Artigos - Poéticas Visuais

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Artigos - Poéticas Visuais
The walking dead e a contemporaneidade:
diálogos, reflexões e crítica aos indivíduos pós-modernos
The Walking Dead and the Contemporaneity:
Dialogues, Thoughts and Critical to Post-Modern Individuals
Claudio Roberto Perassoli Júnior*
*Mestre em Literatura Comparada (Literaturas de Língua Portuguesa), pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade de Marília, SP, Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Fundação Educacional do Município de Assis, SP e Licenciado em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus
de Assis, SP. Em acordo firmado entre a UNESP e a Universitàdegli Studi di Perugia, cursou a disciplina de Semiótica
na instituição italiana ([email protected]).
Resumo
Neste artigo, busca-se discutir e expor diálogos entre a expressão da Comunicação de Massa, a série televisiva The
Walking Dead, e a práxis da vida contemporânea. Tendo como base leituras teóricas e questões empíricas, a presente
discussão almeja expor que, embora seja um produto da indústria do entretenimento, o seriado sobre o apocalipse
zumbi possui elementos que sinalizam uma sintonia entre a produção audiovisual e as críticas e considerações sobre a
pós-modernidade. Mais especificamente, objetiva-se extrair, em breves considerações, o sentido metafórico-hiperbólico
que a série representa em relação aos indivíduos contemporâneos.
Palavras-Chave: The WalkingDead; Comunicação de Massa; Pós-modernidade; Transmídia; Michel Foucault; Elemento fantástico; Zumbis
Abstract
In this paper, we seek to discuss and to expose dialogues between the expression of Mass Communication, the
television series The Walking Dead, and the praxis of contemporary life. Based on theoretical interpretations and
empirical issues, this discussion aims to expose that the series about the zombie apocalypse has elements that signal
a line between the audiovisual production and critical and considerations of the post modernity, although it is the
entertainment industry’s product. More specifically, the objective is to extract, in brief remarks, the metaphorical-hyperbolic sense that the series represents about the contemporary subjects.
Keywords: The Walking Dead; Mass Communication; Post modernity; Transmedia; Michel Foucault; Fantastic
element; Zombies
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uitas são as críticas relacionadas às expressões da Cultura de Massa, como filmes de grande
circulação, séries televisivas, novelas e, atualmente, o fenômeno das narrativas audiovisuais
produzidas e veiculadas especificamente para o meio digital. No livro de Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados (2011), no qual há uma incursão por entre o debate que se instaura na área da
comunicação, são arroladas as mais salientes apreciações a esse nível da cultura, como também são
expostos argumentos que o defendam. Em um trabalho por vias labirínticas, o semioticista italiano
se posiciona na linha limítrofe entre os que assentem e os que dissentem a respeito dessas expressões
culturais.
Utilizando dos pressupostos teóricos de análise da situação atual da literatura, ou seja, da Cultura Superior, pretende-se alinhar também a essas considerações a expressão encontrada na Comunicação de Massa, em referência às ânsias e reflexões do homem contemporâneo, mais especificamente,
na série, sucesso de crítica, de audiência e de vendas, The Walking Dead. Programa de televisão com
conteúdo dramático e pós-apocalíptico, o seriado é baseado nos quadrinhos homônimos, criado por
Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard, e estreou no canal pago norte-americano, AMC, no
dia das bruxas, em 31 de outubro de 2010.
A série norte-americana relata a história de um grupo de sobreviventes, em um cenário catastrófico no qual os mortos “retornam à vida” zumbificados, com o objetivo de se alimentar de carne
humana. O seriado é protagonizado por Andrew Lincoln, que interpreta Rick Grimes, um vice-xerife
de uma cidade estadunidense que acorda de um coma em um hospital, após um confronto armado
entre fugitivos e policiais. A personagem se descobre em um mundo pós-apocalíptico dominado por
mortos-vivos, iniciando, então, a busca por sua família e, no caminho, estabelecendo a liderança em
um grupo, durante suas trajetórias, desobreviventes.
A narrativa de The Walking Dead, assim, conta a história de um pequeno grupo de sobreviventes em um apocalipse zumbi, nos arredores de Atlanta e, em seguida, em torno da região rural do
norte da Georgia. Para os vivos que remanesceram,resta, nesse momento caótico trazido pelo universo ficcional de Kirkman, a procura de um refúgio e local seguro, longe das hordas de mortos-vivos,
cuja mordida seria infecciosa para os seres humanos – uma mordida de um desses monstros seria
capaz de, depois da febre, matar e trazer “de volta” aquele corpo. Porém, o grande perigo que espreita
toda a narrativa não são essas criaturas do imaginário popular, mas, sim, os outros seres humanos,
vivos, que também estão lutando pela sobrevivência, muitas vezes, a qualquer custo. Construindo um
enredo que comumente desvia-se da narrativa central para se focalizar em eventos tangenciais ou dos
coadjuvantes, a série oferece um teor dramático que a diferencia das demais produções audiovisuais
com o mesmo cenário, já que o norte evidenciado desde os primeiros momentos da história é expor e
discutir principalmente os dilemas os quais o grupo enfrenta, além de lutarpela manutenção da vida,
os sentimentos conturbados entre os seres humanos, a afeição/rejeição em relação à morte e os desafios do dia-a-dia em um mundo hostil e praticamente dominado por esses monstros.
O grupo, liderado por Rick Grimes, sua esposa, Lori, e seu filho, Carl, bem como para que os
outros sobreviventes a ele unidos, para possa viver e tentar reestabelecer um mínimo de ordenamento,em grande parte da narrativa precisa adquirir novos meios de convívio social, tendo em vista que
as estruturas da sociedade em que eles viviam entraram em colapso e a realidade tornou-se insólita.
Novos modelos sociais irão surgir os quais devem ser estabelecidos paulatinamente, no contato entre
os sobreviventes e nos seus conflitos, pelo apocalipse.
Desde sua estreia, em 2010, o seriado vem crescendo em número de telespectadores que assistem ao programa pelo canal de TV paga, AMC, dos Estados Unidos. Quando se iniciou a segunda
temporada, em meados de 2011, de acordo com a empresa Nielsen, instituto que mede a audiência da
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televisão estadunidense, a produção televisiva referida tornou-se recorde de público com um índice
muito elevado para padrões da TV por assinatura norte-americana, de 7,3 milhões de espectadores.
Entretanto, o crescimento da série, por entre a população e a crítica, culminaria em números ainda
mais expressivos: no fim da sua terceira temporada, em 2013, a história do grupo de sobreviventes em
meio a um apocalipse zumbi foi acompanhada por 10,9 milhões de pessoas, superando suas próprias
marcas de rating. Na estreia da quarta temporada, o seriado, enfim, galgou o posto de única série
norte-americana que, além de cunhar o título da produção que superou as expectativas estabelecidas
anteriormente de audiência para a televisão por assinatura, também ultrapassou seu próprio recorde e
estabeleceu um novo horizonte para os programas de TV dos EUA: ainda em 2013, com o lançamento
do primeiro episódio da quarta temporada, The Walking Dead alcançou a marca de 16,1 milhões de
telespectadores, um feito considerado histórico para um produto advindo da TV paga.
Fenômeno transmídia
Antes analisado por alguns críticos como um fenômeno passageiro, de um sucesso instantâneo, The Walking Dead, por meio de seus números, prova o contrário. A série, em sua atual quinta
temporada, no finalde 2014 e início de 2015, continua expandindo-se por entre a população mundial
e, a cada episódio, conquista mais seguidores. Fãs os quais estão em diversas mídias, se relacionando
com a produção narrativa por meio de dinâmicaatualmente comum à Cultura de Massa: a veiculação
e a criação de produtos hiper/transmidiáticos, fenômenos advindos do desenvolvimento das relações
humanas por meio da era tecnológica/digital.
O termo “transmídia” foi apresentado inicialmente por Henry Jenkins, professor de Jornalismo, Comunicação e Cinema da University of Southern California e ex-diretor do Programa de
Estudos de Mídia Comparada do MIT (Massachussets Institute of Technology), em seu livro Cultura
da Convergência (2008). Desde meados da década de 90 do século passado, é possível identificar
produções de narrativas transmidiáticas na indústria do entretenimento norte-americana, as quais se
complementaram e, com a proliferação do uso da internet por grande parte da população mundial,
puderam expandir seus campos de ação e desenvolvimento.
Além disso, com a ascensão das relações hiper/transmidiáticas, houve alterações no que se
refere aos modos de produção e também à análise antes conferida ao papel do leitor nas relações comunicativas. O sociólogo francês Michel Maffesoli (2004) pondera que, no contexto atual, “por mais
que isso horrorize os críticos politicamente corretos, as pessoas não querem só informação da mídia,
mas também é fundamental ver-se, ouvir-se, participar, contar o próprio cotidiano para si mesma e
para aqueles com quem convivem” (2004, p. 23). O vocábulo “transmídia” tem inspirado um número
expressivo de produtores e estudiosos os quais partem do princípio de que se pode desenvolver uma
base narrativa, a qual seja consistente e flexível, permitindo criar, assim, um esqueleto de ações, possibilidades de modificações e engajamentos que viabilizem o florescimento de um projeto transmidiático. Desenvolver, escrever e produzir histórias iniciadas em uma plataforma de mídia, e que tem seu
desdobramento estendido a outras plataformas, mesmo de modo não-linear, é hoje, um modo recorrentemente utilizado para alcançar o sucesso. Para o estudioso da área, Henry Jerkins, a transmídia
seria:
Processo onde os elementos integrais da ficção são sistematicamente dispersos
através de múltiplos canais de distribuição para criar uma experiência unificada e
coordenada de entretenimento. [...] Em termos de domínio cultural, transmídia nos
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permite criar uma experiência mais rica, mais profunda do que a expressa por um
único meio. (JERKINS, 2008)
Dessa maneira, a narrativa transmídia (transmediastorytelling) nega a concepção de narrativa
clássica, com sua estrutura fixa e canônica. Comumente, neste tipo tradicional de criação ficcional, o
leitor é um ser passivo, que recebe as informações como um observador, à revelia do enredo. Contudo,
com o egresso e posterior desenvolvimento da internet e das relações digitais, a narrativa transmídia
foi capaz de modificar o papel do leitor na semiose: mesmo conservando o caráter de receptor, aquele
que recebe a mensagem, este transformou-se também em emissor/mediador de mensagens, descontruindo as relações entre sujeito e material textual antes instauradas.
O leitor com a narrativa transmídia, assim, além de ser um agente fruidor da mensagem,
está apto a decodificar e aplicar as informações recolhidas em uma mídia para outra, transpondo-as.
Mais concretamente e objetivando estabelecer um modelo que se encaixe nas análises desse tipo de
relação midiática, Umberto Eco, em seu livro Sobre espelhos e outros ensaios, ponderou que, para
conseguir avançar na narrativa, ao trabalhar com uma produção transmídia, são necessários alguns
componentes os quais tendem a sustentar as histórias: a criação de um universo ficcional repleto de
personagens, de informações, para que se possa aprofundar cada um dos pequenos relatos, colhendo
novas mensagens, envolvendo-se e participando deste contexto. Para Eco (ECO, 1989), a intertextualidade é uma característica muito encontrada na transmediastorytelling, fruto e exemplo claro da
Cultura de Massa, elemento que tem sido utilizado ao extremo pelas mídias digitais, sendo definida
como a capacidade de um produto de uma mídia (livro, filme, programa de televisão, videogame etc.)
em citar, direta ou indiretamente, por meio de repetição, paráfrase ou outro recurso linguístico, uma
outra obra ou ela mesma.
Ao esboçar uma definição deste conceito, um cuidado que deve ser exposto é quanto à continuidade das narrativas. Embora permaneça no mesmo universo ficcional, muitas vezes, o produto
transmídia pode não dar prosseguimento ao enredo exposto no texto original, caracterizando uma
construção não-linear da narrativa, em que pontos complementares não interferem uns nos outros.
Para efeitos de elucidação, utiliza-se como exemplo a própria narrativa de The WalkingDead, a qual
foi criada na plataforma impressa das histórias em quadrinhos em 2003, adaptada para a televisão em
2010, e que se tornou jogo para a rede social Facebook, além do desenvolvimento de dois romances,
de webisodes, para os sites de vídeos da internet, como também de programas de televisão, como
TalkingDead, produzido pelo mesmo canal pago norte-americano, AMC, em que são discutidas as
questões levantadas pelo seriado durante a semana. Ainda, no meio digital, os seguidores da série
criam enciclopédias específicas para o universo ficcional representado, guias de sobrevivência para
um apocalipse zumbi e livros em que são analisados os mais diversos conteúdos, como debates filosóficos, éticos e sociais vinculados à produção.
Dessa maneira, The WalkingDead mostra-se expoente do fenômeno da Comunicação de Massa, a criação de obras hiper/transmidiáticas, ao expandir seu universo ficcional para as mais diversas
mídias. Entretanto, todos os produtos adjacentes à narrativa são produzidos em caráter não-linear, ou
seja, o enredo da história base não é desenvolvido, não progride nas outras plataformas – elas, unidas,
são complementares naquele específico recorte fictício, todavia, não constituem totalmente e nem
influenciam a continuidade uma das outras: no jogo produzido especialmente para o Facebook, The
WalkingDead Social Game, o ponto de partida é o cenário evidenciado também nas primeiras impressões da narrativa televisiva, porém nada tem a acrescentá-la, apenas explorando-a de uma maneira diferente, como se, após o espectador ter visto a série e ser introduzido ao enredo, no jogo, por sua
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vez, ele adentrasse nas relações evidenciadas pelo programa de televisão, em pontos que podem ser
melhor expandidos, envolvendo ainda mais o leitor. Desenvolvendo a narrativa não-linearmente, os
produtos sobre o grupo de sobreviventes em uma apocalipse zumbi se mostram exemplos evidentes
da relação comunicativa que se faz presente na rotina dos processos da Cultura de Massa, principalmente, já que a finalidade fundante deste nível cultural é a relação mercadológica, visando o lucro.
Aliás, o presente objeto de análise galgou, inclusive, espaço por entre os estudos mais elitizados, reservando um pequeno lugar por entre a Cultura Superior, ao ser a sua temática incluída, por
exemplo, em cursos de especialização e extensão de universidades norte-americanas. Expressão clara
do conceito de mainstream, ou seja, da corrente de fruição e de gosto compartilhados por um grande
número de indivíduos, o seriado também alcançou a academia: em parceria com o programa e ministrado pela UniversityofCalifornia, com uma metodologia interdisciplinar, foi lançado o curso Society, Science, Survival: LessonsFromAMC’s The WalkingDead. Simultaneamente à transmissão dos
novos episódios da série, as aulas são ministradas semanalmente, cada uma desenvolvendo os temas
abordados no episódio. Além disso, a série tem ganhado espaço por entre os estudos acadêmicos, por
representar, como aqui exposto, o mundo com uma perspectiva niilista quanto à existência humana,
sendo comumente encontrados estudos e reflexões acerca do caráter social-filosófico que a obra pode
tentar se aventurar, como é o caso do livro The WalkingDead e a Filosofia: espingarda, revólver e razão, lançado pela editora BestSeller, em 2013, organizado pelo professor de ética e políticas públicas
Christopher Robichaud e editado pelo estudioso em filosofia Willian Irwin. Indicado ao Globo de
Ouro como melhor série de televisão e outras diversas nomeações, o seriado já ganhou prêmios tais
quais o de Programa do Ano de 2010, pelo American Film Institute Awards; o de Melhor Maquiagem,
no Emmy Awards, e o Prêmio Inovação, no Saturn Awards, ambos em 2011.
Desse modo, evidencia-se que The WalkingDead não se tornou um fenômeno do gênero terror para a televisão norte-americana (vertente esta em ascensão), mas, sim, demonstra-se como um
produto eficiente da Cultura de Massa, da indústria do entretenimento, e também como uma obra
queconseguiu espaço entre o público, que cada dia mais parece se interessar pela incursão no mundo
apocalíptico zumbi, e a crítica, a qual começa a aceitar aos poucos,mas ainda minimamente, a qualidade da representação criada por Robert Kirkman de um mundo caótico em paralelo à sociedade
contemporânea. A condição humana da atualidade serve como base verossímil para a construção da
narrativa, que por alguns momentos realiza elos entre situações cotidianas reais e o universo apocalíptico reproduzido.
O acontecimento apocaliptico
Há duas possíveis significações para o termo “apocalipse”, das quais uma, original grega, tende
à denotação de “revelação”, enquanto a outra, uma construção que tomou força por entre o imaginário
coletivo a partir da Era Cristã, advinda da interpretação do livro do Apocalipse da Bíblia, de “fim do
mundo”, de “juízo final”.
Em The WalkingDead, o apocalipse com a conotação de hecatombe da humanidade, de um
cataclismo físico, material, é ponto de partida para a narrativa: recuperando o mito e o universo do
zumbi, instaurando junto a ele a ideia de caos mundial diante de um evento desconhecido, Robert
Kirkman cria, para o gênero de terror em quadrinhos, um relato de um mundo no qual a estrutura
social desintegrara-se e as relações humanas estariam em conflito, colocando em questionamento a
posição do próprio homem diante de sua existência e de seu percurso de evolução. E quando apontado, o “homem” não se restringe apenas ao personagem principal. Uma característica interessante da
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narrativa de Kirkman, adaptada para a televisão, é a abordagem e a construção de um relato que considera um destino coletivo, no qual a coletividade, embora seja representada muitas vezes pela figura
do protagonista, torna-se o cerne das questões da série. Em alguns episódios, percebe-se que a focalização/narração supera a visão de Rick e estende-se para outros indivíduos de seu grupo, conferindo
uma pluralidade de “vozes”, internas à narrativa, por meio de alguma personagem ou de os eventos os
quais constroem o enredo da série.
The Walking Dead, logo em seu início, no primeiro episódio, intituladoDaysGone Bye (Dias
passados, em português), apresenta um incidente violento para os padrões da televisão paga norte-americana. Antes dos créditos de abertura, é exposto Rick, caminhando por entre os carros abandonados à procura de combustível, encontrando uma pequena garota loira, percebida de costas pela
câmera. Ao chamá-la e depois de se identificar como um policial, a imagem da menina vira-se e o
protagonista, bem como o telespectador, deparam-se com uma morta-viva criança. Espantado, Rick
coloca em punho seu revólver e, após alguns segundos em que mede sua ação, atira na cabeça da criatura, que, em movimento captado lentamente pela câmera, cai no chão, finalmente morta. Enfim, a
música da abertura começa a tocar ao fundo, pausando o enredo.
Esse evento confere um caráter subversivo à narrativa, logo de início. O questionamento que paira em
relação a essa cena seria sobre a escolha do primeiro zumbi que apareceria na história. Poderia ter sido
selecionado uma imagem de um homem, de uma mulher em idade mais avançada, de um(a) jovem...
Mas a escolha foi por uma criança. Momento violento para a concepção de moral no mundo contemporâneo, no qual crianças são consideradas seres que devem possuir uma mediação para a inclusão na
sociedade, bem como representam uma ingenuidade natural, de fácil coerção. Ao inserir assim uma
criança morta-viva, ainda de aparelho ortodôntico, por onde escorre sangue, recebendo um tiro no
cérebro, Robert Kirkman introduz a situação de barbárie em que estaria a humanidade presenciando
no universo ficcional: nem sequer as crianças estão a salvo. Como explica Christopher Robichaud
(2013), em seu artigo chamado “Optando por cair fora: a ética do suicídio em The WalkingDead”:
A intenção é fazer com que o público entenda, desde o início, que o mundo dele
(Kirkman) é um pesadelo eterno. O terror em The WalkingDead é explícito. Não
são alguns zumbis putrefatos atacando Rick, sua família e o restante dos sobreviventes. Isso é apenas assustador. Não se trata de zumbis avançando a passos lentos
atrás dessas pessoas, sem se cansarem, não importa aonde elas vão. Isso é somente
apavorante. O terror está no fato de garotinhas virarem zumbis e precisarem levar
tiros na cabeça. O terror está no fato de, após ataques incansáveis dos mortos que
andam, os sobreviventes nem mesmo perceberem o quanto a situação em que se
encontram é terrível. (ROBICHAUD, 2013, p. 12)
Assim, é impactante ao fruidor da narrativa o contato inicial com uma criança zumbi e igualmente representativo da situação caótica em que até o ordenamento e a moralidade não são nem
sequer poupados. Ao instaurar um apocalipse por entre a normalidade, Kirkman insere também na
narrativa audiovisual a noção de acontecimento, descrita por Michel Foucault em meados do século
XX. Depois do prólogo em flashforward com a morta-viva criança, há uma regressão na linha do
tempo da narrativa para antes da epidemia começar. A cena é uma conversa entre o protagonista Rick
e seu melhor amigo e companheiro de estação policial Shane, que recebem um chamado para auxiliarem na captura de fugitivos. Durante a ação, Rick é baleado gravemente e levado para um hospital. Na
tomada seguinte, a personagem principal acorda do coma, nota que o vaso ao lado da cama está com
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as flores secas – indicando uma passagem de tempo, e, desesperado, chama pelo auxílio das enfermeiras – entretanto, ninguém vai ajudá-lo. Ao conseguir sair do quarto, Rick se depara com um estado
de calamidade no qual a instituição de saúde encontra-se, deserta e caótica – por extensão, o mundo
tomado pelo apocalipse.
O que aconteceu ao planeta o telespectador e o protagonista descobrirão juntos, cena a cena
do primeiro episódio, mas, o interessante é notar a forma com a qual foi introduzida a problemática
da série, em um efeito que rememora a elipse, figura de linguagem que suprime partes de uma construção sintático-semântica, desde que haja indicações na própria estrutura as quais evidenciem o elemento retirado da ordem tradicional. E é nesse momento que a plateia compreende: o acontecimento
que deu origem a toda a conturbação não foi evidenciado, bem como suas causas e consequências
iniciais. Para Foucault, filósofo francês, a noção de acontecimento é:
Ruptura das evidências, essas evidências sobre as quais se apoiam nosso saber,
nossos conceitos, nossas práticas. [...] Consiste em reencontrar as conexões, os
encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, etc. que, em
dado momento, formaram o que em seguida funcionará como evidência, universalidade, necessidade. (FOUCAULT, 2006, p. 339)
Há em The Walking Dead a presença de um acontecimento que surge como ruptura de um
momento histórico, proporcionando a dispersão de possibilidades materiais de mudança e alteração
na ordem vigente anteriormente. O acontecimento é um evento, fato ou situação que marcadamente
estremece as relações e ordenamentos sociais estabelecidos anteriormente, provocando novas formas
de arranjos os quais serão alterações do momento anterior a ele. Na série, a noção de acontecimento é
perceptível, porém não é evidenciada em sua totalidade – pressupõe-se que algo muito grave aconteceu, a partir do momento que Rick sai do seu quarto, no hospital. E o cenário descrito pelo episódio,
ao passo em que o protagonista vai saindo da casa de saúde, parece intensificar seu valor negativo, sua
caracterização catastrófica, como uma ruptura a qual trouxe, junto da mudança, a hecatombe e algo
muito significativo sucedeu para inverter até a ordem natural da vida: os mortos estavam caminhando.
Aos moldes dos estudos de Foucault, da noção criada por Kant, o acontecimento é parte da
narrativa de Kirkman, fornecendo, inclusive, a possibilidade de dividir triadicamente seu signo em
rememorativum, demonstrativum e prognosticum. O apocalipse dos mortos-vivos rompeu com uma
regularidade já existente, condição para que ele se efetive – no caso de The Walking Dead, ainda no
primeiro episódio, como também em flashbacks durante o desenvolvimento do enredo, é mostrado
um ambiente, antes da epidemia dos mortos-vivos irromper e o caos se fazer presente, corriqueiro
ao homem da contemporaneidade, uma singularidade perceptível e correlacionável ao mundo real
– situação/signo que é condição para a qual o acontecimento surja; uma eficácia transformadora da
situação inicial, ou seja, signos ou fatos concretos e abstratos do acontecimento que demonstrem e
reverberem a desconstrução do estado de regularidade anteriormente estabelecido – os mortos, ao
serem reanimados por questões desconhecidas, oferecem a tônica da inversão e da modificação de
valores, as quais demonstram, em seu cerne, a eficiência da transformação: os cadáveres os quais se
levantam são signos que evidenciam e são determinados pelo momento inicial instaurado; e, por fim,
efeitos dos mais variados, os quais impõem uma descontinuidade para depois alcançar uma nova
regularidade, como, por exemplo, seria a própria dispersão dos indivíduos da série que se desmembraram da massa para criarem pequenos agrupamentos e a busca incessante de algumas personagens
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por estabelecer um mínimo de ordem diante do caos. Desta forma, o rememorativum, o demonstrativume o prognosticum, respectivamente, são os três signos internos ao apocalipse zumbi do seriado
televisivo.
Utopia, distopia e heterotopia
A epidemia – o acontecimento aos moldes foucaltianos, inclusive, reverbera na criação e nas
noções de tempo e de espaço. Na narrativa, é exposta uma (não) noção de tempo e uma caracterização do ambiente de tal modo que se podem evidenciar duas percepções: uma, em vias subversivas,
distópica, e outra, de maneira alegórica, heterotópica. Para Inocência Mata, ao refletir sobre a construção da utopia na expressão artística africana e do sentimento distópico na produção pós-colonial
da Literatura, conclui que, enquanto o Modernismo caracterizava-se pela escrita da utopia, ou seja,
a projeção de um lugar futuro positivo por oposição ao presente histórico/real, atualmente a tônica
encontrada frequentemente é da utopia da escrita, isto é, “uma escrita dessacralizante que desvela a
desconstrução de sentidos, denuncia os simulacros da História, repovoa os espaços vazios desfeitos e
assinala um novo espaço de significação” (MATA, 2003, p. 62).
Em vias gerais, a distopia, também conhecida como antiutopia, é um conceito expresso em
criações ficcionais ou reflexões filosóficas, as quais retratam uma sociedade construída no sentido
oposto ao da utopia, que por sua vez prevê um sistema perfeito, um estado ideal, onde vigoram a felicidade e a total concórdia entre seus cidadãos. Em oposição à utopia, o ambiente costuma apresentar
um conteúdo ético/moral, projetando o modo como os dilemas atuais figurariam no futuro, o que por
sua vez culmina na crítica social e política, normalmente relacionada à exposição de uma sociedade
corruptível, que se demonstra rude, porém frágil, devido à estupidez coletiva. Além disso, o poder é
representado exclusivamente por uma elite, mediante privações do indivíduo comum. Por seu caráter
pessimista, são raras as vezes em que flerta com sentimentos e valores positivos, como a esperança,
normalmente conferindo ao cenário desenvolvido uma completa ausência de crença no futuro da
humanidade, a qual se demonstra, naquele recorte distópico, banalmente violenta.
Porém, além da veiculação de um cenário distópico, no qual há a subversão de conteúdos
relacionados à contemporaneidade do texto, existe também a noção de heterotopia, desenvolvida por
Foucault que se faz presente quando o espaço em The WalkingDead “tem o poder de justapor em um
só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 2013, p. 418). Para o filósofo francês, os espaços heterotópicos seriam onde convergiriam
todas as estruturas sociais, políticas e reflexivas/ideológicas, criando, assim, um não-espaço, um ambiente o qual, por meio de seu microcosmo, representa um macrocosmo. Segundo as palavras do
próprio pensador, as heterotopias seriam:
[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que foram desenhados pela própria
instituição da sociedade, e que são tipos de contra-localizações, tipos de utopias
efetivamente realizadas dentro das quais as localizações reais, todas as outras localizações reais que se pode achar no interior da cultura são simultaneamente
representadas, contestadas e invertidas, tipos de lugares que se encontram fora
de todos os lugares, ainda que, entretanto, eles sejam efetivamente localizáveis.
Esses lugares, como são absolutamente outros do que todas as localizações que
eles refletem e das quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, as
heterotopias (FOUCAULT, 2013, p.417).
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Uma das marcas da heterotopia é a completa inutilidade da marcação temporal, afinal, em
um espaço que contém, por recuperação e analogia, todos os outros espaços, a contagem cronológica
não rege e também não controla as relações advindas desse meio. Em The WalkingDead, o cenário
apocalíptico, reverberando uma distopia, igualmente reproduz um ambiente heterotópico, no qual,
essencialmente, há o caráter de sublevação das atitudes humanas, sempre com caráter reflexivo em si
mesmo – embora seja necessário aniquilar os mortos-vivos na série de televisão, tal ato é ruminado
constantemente pela consciência das personagens.
Outros pontos os quais indicam a existência, na narrativa audiovisual, desse espaço heterotópico, por onde se desenvolve o enredo, são a queda de instituições. A primeira, evidentemente
pelo próprio plot da história, faz-se frequente: diante de uma hecatombe, o corpo social desfaz-se,
as obrigações individuais no que tangem à sociedade hodierna liquefazem-se e as autoridades não
conseguem, sequer, controlar a situação. Claro exemplo dessa dissolução dos parâmetros sociais anteriormente instituídos os quais são relevados pela heterotopia é no que diz respeito às profissões, às
funções sociais que cada personagem exercia no mundo anterior ao caos as quais, naquele contexto,
são dispensáveis ou, até mesmo, modificadas: o antigo entregador de pizza torna-se um estrategista; o
veterinário opera um ser humano; a filha mimada, descrente e temerosa vê-se responsável por realizar
um parto.
A ausência de marcação temporal que a narrativa proporciona é também fundante à narrativa:
ao acordar do coma, Rick nota um relógio parado em seu quarto. Nos corredores, os outros aparelhos
também não funcionam: o tempo teria parado? Sem a marcação exata do tempo e a estipulação individual de tarefas com finalidade social, demonstrando uma dissolução e uma nova reconstituição de
deveres ao corpo social, The WalkingDead posiciona seu enredo em um cenário que subverte a ordem
instaurada na realidade, representando dentre desse mesmo cenário todas as ânsias e reflexões sobre
as atitudes tomadas nesse mesmo espaço – configurando, portanto, um local da heterotopia.
Além disso, ao se tratar dos elementos do espaço da narrativa, deve-se destacara presença constante
e violentados zumbis neste cenário distópico, os quais não possuem humanidade, que vagam em
pequenos e grandes grupos, ávidos consumidores da carne humana – são corpos que perambulam
buscando saciar um desejo incontrolável. Estes são nomeados na série de televisão de “walkers”, em
português, os “errantes”, o queressalta, assim, o diálogoentre as produções de Kirkman e de George A.
Romero, tendo em vista que o idealizador de The WalkingDead absorveu da tradição de A Noite dos
Mortos-Vivos (1968) e Despertar de Mortos (1978): a preferência por não denominar essas criaturas
como zumbis. Em nenhum momento, as personagens chamam os monstros de “zumbis” ou “mortos-vivos”.
O universo criado por Kirkman, adaptado para a televisão em 2010, denomina-os, durante
toda a narrativa, seja pelos personagens do grupo de Rick, ou pelos outros sobreviventes, de “walkers”, de “biters” (mordedores, em português), ou então de “infecteds” (infectados). O motivo dessa
preferência não é explicitado pelo autor da série, porém, comparando o processo de produção de
Romero em Despertar de Mortos, por exemplo, é possível considerar que essa escolha está relacionada à conotação pejorativa a qual esses monstros possuem ao serem chamados de zumbis. Como é de
reconhecimento de grande parte da população, o termo “zumbi” imprime nas produções ficcionais
um tom depreciativo, este devido ao próprio desenvolvimento do mito dos mortos-vivos, os quais,
para a população em geral, são criaturas de segundo escalão, negligenciadas muitas vezes pela própria
indústria do entretenimento.
Aliás, os zumbis possuem como base de sua representação a cultura híbrida caribenha com a
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expressão do vodu haitiano. Antigamente, a crença em torno do zumbi, seres autômatos que estavam
à mercê de um senhor, dono das plantações de cana-de-açúcar, era uma superstição real, a qual fazia
parte do imaginário popular. Com o passar dos anos, a cultura norte-americana, com o processo de
invasão militar no Haiti e na República Dominicana pelos Estados Unidos, incorporou esses monstros ao rol de criaturas conhecidas popularmente.
“Atire na cabeça”: Contemporaneidade desvelada
O ponto que interessa a esta breve discussão, ao recuperar as ideias sobre a origem do mito
do zumbi, é quanto ao seu uso e sua presença em The WalkingDead. Reconhecidamente baseado
no universo ficcional criado por George Romero, Robert Kirkman absorveu da representação e do
enredo em torno dos mortos-vivos de Romero para, então, criar sua narrativa. Inclusive, a história
de Kirkman retoma alguns temas que, em 1968, eram perceptíveis nos filmes de Romero, atualizando-os, como o caso da violência que se tornou ainda mais explícita: enquanto Romero quebrava os
parâmetros do cinema, mostrando pela primeira vez, em meados da década de 60, cenas de agressão,
sangue, entranhas e cadáveres, até então efeitos inéditos, Kirkman propõe um relato mais brutal para
a televisão por assinatura, na atualidade.
Uma maquiagem premiada pela crítica; cenas as quais deturpam e invertem os ditames da
moralidade; uso de violência extrema, física, psicológica ou sexual, são constantes dessa produção televisiva. Romero, no século passado, reverberava a violência ocasionada pela instabilidade econômica
e empregatícia em decorrência da crise de 1929 e também as então recentes guerras. Na contemporaneidade, política e socialmente, a violência não foi amenizada, nem na realidade, nem na ficção: o
estado atual das sociedades pelo mundo está marcado pela insegurança da população em geral, pelo
permanente sentimento de vulnerabilidade a que o ser humano hodierno está submetido – seja por
uma ameaça próxima, passando pela violência de caráter social, como assaltos e estupros, até o risco
de atentados contra grupos e nações. The WalkingDead, assim, aos moldes de Romero, confere ao
universo criado uma conotação de barbárie constante, sendo esta reflexo do próprio século XXI e da
desconfiança do indivíduo contemporâneo não só em relação às autoridades, mas também, ao outro,
recaindo a suspeita, por fim, em todos, como se constantemente o ser humano lembrasse que o perigo
está à espreita. Como expõe, de modo claro, a pesquisadora Débora Almeida de Oliveira, em seu artigo “E as Tintas Criaram Vida...: Aspectos da Transposição dos Quadrinhos The WalkingDead para
a série de TV”(2013):
Em The WalkingDead, [...], o mito do zumbi é descrito de modo mais próximo às
lendas tradicionais. Aqui o zumbi é um ser sem nenhum resquício de memória ou
consciência de si mesmo ou dos fenômenos que o rodeiam[...]. Apesar de possuir um enredo geral extremamente simples, The WalkingDead prima por explorar
situações que provocam grandes questionamentos filosóficos, políticos e sociais.
Via de regra, a problemática com os zumbis parece ser a última preocupação dos
sobreviventes, que se deparam com grandes dificuldades devido ao convívio com
outros seres humanos. Assassinos, psicopatas, estupradores e pessoas com desvio
de comportamento acabam se tornando mais ameaçadores que os próprios mortos-vivos. (OLIVEIRA, 2013, p. 173)
Este último ponto também se refere à outra característica dos filmes de Romero: o conflito
dos seres humanos. Até mesmo antes de A Noite dos Mortos-Vivos, obra considerada germe do terPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 14-31, 2015.
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ror zumbi em filmes para a massa, esses monstros não causavam tanto horror – esses monstros eram
vistos como criaturas de segunda categoria, aos quais muitas vezes era conferido um caráter quase
cômico à sua presença. Embora assustadores e perigosos, os mortos-vivos representam o menor dos
problemas para os sobreviventes dos filmes de Romero, como também o são na criação de Kirkman.
Lidar com a presença desses seres famintos por carne humana é uma tarefa difícil, porém contornável. O que impede as personagens de The WalkingDead de gozarem de momentos mais tranquilos,
tentando estabelecer uma mínima ordem possível, são os próprios seres humanos, os outros grupos
de sobreviventes e, até mesmo, os internos àquela comunidade.
Os mortos-vivos em The WalkingDead servem como pano de fundo para o desenvolvimento
do enredo: o foco principal na obra são as relações entre os indivíduos. A série, ao contrário do que
se espera de um produto do gênero terror, possui grande expressão dramática e muitos momentos
nos quais os zumbis mal aparecem na narrativa, dando espaço para o desenvolvimento dos relacionamentos humanos. Aliás, interessante nesse processo de discussão é no que diz respeito à própria
representação dos zumbis em The WalkingDead. O próprio mito do zumbi sofreu alterações com o
passar do tempo, as quais se faziam pela reflexão do momento histórico-social à época vigente. Os
mortos-vivos na série são representados como seres autômatos, sem nenhum tipo de vínculo com
uma força acima deles, como era o caso do mestre vodu na tradição haitiana. Vagando solitários, mas
normalmente representados em grupos, as denominadas hordas, possuem como objetivo saciar uma
fome incontrolável por carne, seja ela humana ou não, como é o caso da horripilante cena do primeiro
episódio da temporada inicial Days Gone Bye (Dias passados) em que Rick, após atravessar a cidade
de Atlanta montado em um cavalo, é atacado por um grande número de zumbis. Desvencilhando-se
do ataque, lança mão do animal o qual, por sua vez, é devorado vivo em uma sequência permeada por
sangue e entranhas.
Além de serem carnívoros, não possuem outra função a não ser a de vagar por todos os espaços, na cidade, no campo, nas estradas. Isso fica evidenciado principalmente pela própria segmentação da estrutura narrativa: na primeira temporada, com seis episódios, o espectador entra em contato
com o mundo apocalíptico que havia se instaurado na narrativa, reconhecendo-o, e isto se deve ao
acompanhamento do mesmo processo de descoberta no qual o protagonista se encontra após acordar
do coma em um hospital. A série, assim, em seu primeiro ano, realiza uma espécie de contextualização
do universo dos mortos-vivos, às primeiras impressões e reflexões sobre esse novo mundo, buscando
inclusive explicações lógicas para a hecatombe. Um planeta infestado por zumbis, os quais apenas podem ser abatidos por meio do ferimento em seus cérebros. “Atire na cabeça”, o mote do filme de 1978,
Despertar dos Mortos, de George Romero, é recuperado em grande parte da filmografia zumbi da
atualidade a qual se baseia nessa ação para dar um “fim” à presença dos mortos-vivos, como na série
de filmes, baseada no jogo de videogames, ResidentEvil.
Ao contrário de adaptações cinematográficas atuais, como Extermínio (28 Days Later, 2002)
e Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004), este último refilmagem do original de Romero,
The WalkingDead manteve o vagar particular dos zumbis: ao invés de conferirem-lhes possibilidades de ação com força sobre-humana e velocidade, Kirkman conserva o tradicional cambalear desse
monstro, o qual se arrasta e alcança, quando muito, um ritmo mais acelerado de passo. Aliás, pertinente elucidação para a presente análise: ao contrário do caráter sci-fi de oferecer ao zumbi da atualidade uma energia sobrenatural ou científica, a série representa suas criaturas com uma abordagem
mais usual, ou seja, os mortos-vivos do programa de televisão são simplesmente cadáveres de seres
humanos sem consciência individual, dotados apenas de uma energia de “vida”, quase letárgica, e de
uma fome constante.
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Sem poderes ou forças além dos que são reconhecidos ao próprio homem, a representação
de Kirkman resiste ao fluxo contemporâneo da ficção científica para permanecer em um relato mais
verossímil. Ao delinear os zumbis com forças extremas individualmente, as novas produções audiovisuais negligenciam, em parte, o caráter mais amedrontador desse mito: o verdadeiro perigo não é
deparar-se com um zumbi solitário – ação encarada de maneira simples pelos personagens de The
WalkingDead, como o caso de Carl, filho do protagonista Rick, que, embora seja criança, consegue
duelar fisicamente com uma dessas criaturas –, mas, sim, seu caráter de coletividade. Como avisa
Morgan Jones, personagem que ajuda Rick, no primeiro episódio da primeira temporada, Days Gone
Bye, de que sozinhos, os zumbis podem não ser perigosos, porém em massa, desesperados e famintos,
oferecem mais perigo.
Outro ponto interessante quanto ao desenvolvimento do enredo e a construção desse universo
ficcional é no que tange às origens desse apocalipse. Ao contrário de outras obras as quais tratam do
tema, The Walking Dead não se preocupa em expor as causas que levaram a epidemia a espalhar-se.
O espectador é inserido abruptamente, assim como as personagens da trama, nesse mundo caótico e
cinzento, sem explicações, evidências ou dicas as quais apontem para uma solução. Como as personagens que desconhecem o evento o qual gerou todo o caos, realizando suposições que vão desde a
crença religiosa até a própria ciência, a audiência é inserida em um fenômeno inexplicável pela narrativa e pela lógica da realidade, já que toda a construção da história é realizada pela perspectiva das
personagens. Então, os telespectadores, como também os sujeitos desse universo, possuem informações desencontradas, pedaços desarticulados e fragmentários de relatos provindos dos sobreviventes,
conferindo à narrativa um caráter contemporâneo do elemento fantástico.
O seriado, por seu perfil cruel e insólito, cria a sensação no espectador de estar diante de um
sonho, porém, este se torna, cena a cena, mais concreto e referente à realidade empírica de cada indivíduo. Um evento inexplicável para o telespectador, sobre o qual nem sequer as personagens têm
certeza de sua origem, cria como efeito o elemento fantástico da narrativa. Não há nenhum tipo de
certeza acerca da epidemia que transforma mortos em seres devoradores de carne – não seria, então,
nem sequer maravilhoso e mágico. O fantástico atua na dúvida, no momento de exasperação no qual
o telespectador, que está decodificando a mensagem, não consegue chegar a um significado que totalize ou explique os fatos narrados, nem pela própria narrativa, nem pela sua experiência de vida. Como
melhor definido emTodorov (2010):
Em primeiro lugar, é necessário que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo
dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Logo,
esta vacilação pode ser também sentida por um personagem de tal modo, o papel
do leitor está, por assim dizê-lo, crédulo a um personagem e, ao mesmo tempo a
vacilação está representada, converte-se em um dos temas da obra; no caso de
uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com o personagem. Finalmente,
é importante que o leitor adote uma determinada atitude frente ao texto: deverá
rechaçar tanto a interpretação alegórica como a interpretação “poética”. Estas
três exigências não têm o mesmo valor. A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode não cumprir-se. Entretanto, a maioria dos
exemplos cumprem com as três. (TODOROV, 2010, p. 19-20)
Apresentando uma história a qual, embora tente minimamente evidenciar alguma explicação
sobre a origem da epidemia de mortos-vivos, rechaçando todas as suas possibilidades conclusivas
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acerca desse mistério, The Walking Dead faz parte do rol de narrativas as quais se utilizam do elemento fantástico como basilar e ponto de apoio para seu enredo. Como o estudioso húngaro defendeu
acima, há uma exigência a qual não é necessária para um texto se tornar fantástico, porém, que pode
ser encontrada no seriado norte-americano: a representação dessa dúvida, desse paradoxo vivenciado
no universo ficcional em alguma personagem.
Os indivíduos representados em The WalkingDead não são meras personagens planas, realizando atividades e dando o enlace à narrativa, pelo contrário, são pessoas com histórias, medos,
aspirações, ambições e desejos, denominadas enfim esféricas. Pelo caráter dramático conferido à série,
evidenciando as relações humanas, bem como um número de informações vasto sobre esse universo
ficcional, o espectador depara-se com a complexidade e heterogeneidade da construção de caráter de
cada personagem, reconhecendo-se particularmente em um ou nas ações e reflexões por esse desencadeadas, não apenas identificando-se com aquele indivíduo fictício, mas sentindo-se representado,
através das circunstâncias fornecidas, naquele ambiente. O desastre e a morte de seus entes queridos
pesam sobre os ombros dos sobreviventes... Quando agem diante das dificuldades, nota-se a inerente
reflexão da audiência de que, provavelmente, faria da mesma maneira. Apesar da realidade apresentada pelo material audiovisual ser fantástica, os desdobramentos e ponderações dela sobre o mundo
possuem um caráter verdadeiro, verossímil, crível, nos limites da sanidade e da loucura.
Monstro da pós-modernidade
Além do elemento fantástico, presente recorrentemente nesta expressão artística, é possível
encontrar na série de televisão estadunidense de Robert Kirkman outros pontos que sinalizam a sintonia que a produção possui em relação à contemporaneidade. Uma dessas características é o que diz
respeito à diáspora, vocábulo comumente utilizado para caracterizar o deslocamento físico de um
grupo ou de uma coletividade, o qual é motivado em busca de algoque os plenifique, uma terra toda
sua.
A diáspora está diretamente relacionada ao ato de, por meio do deslocamento físico, procurar
por algo que esteja interno às ânsias de um indivíduo ou de um grupo. Normalmente, esse processo é
caracterizado de uma maneira filosófica, pela própria busca do sujeito em se reconhecer, mesmo em
proporções menores, integrante de um processo histórico, como também em conseguir enxergar-se
ou desenvolver a sua identidade. Essas ações estão comumente relacionadas à ideia de casa, lar, abrigo,
os quais sirvam de reflexo das relações internas aos indivíduos ou a uma coletividade. Sobre a diáspora, o estudioso de cultura Rolando Walter discorre:
A existência diaspórica, portanto, designa um entre­lugar caracterizado por desterritorializaçāo e reterritorializaçāo e a implícita tensão entre a vida aqui, e tanto a
memória quanto o desejo por lá. Neste sentido, os que vivem na diáspora (migrantes, imigrantes, exilados, refugiados, Gastarbeiter, entre outros) compartilham
uma dupla, senão múltipla consciência e perspectiva caracterizadas por um diálogo difícil entre vários costumes e maneiras de ver e agir. (WALTER, 2006, p. 5).
Objetivando a construção e desenvolvimento da identidade, seja ela particular ou coletiva, o
que, por sua vez, influencia na produção cultural, a diáspora é um recorrente elemento na expressão
contemporânea literária. E The WalkingDead não renega esse caráter. Analisando, à primeira instância, já é perceptível a diáspora na narrativa: os zumbis, como massa de indivíduos, caminham inces-
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santemente pelo cenário descrito. Sejam sozinhos ou em grupo, os mortos-vivos têm como ponto
fundamental o deslocamento físico, proporcionado por necessidades “naturais”: saciar sua fome em
busca de comida. Metaforicamente visto, essas criaturas marcham initerruptamente, procurando algo
que as preencha, em uma vontade de consumo a qual parece não ser saciada.
As cenas com os zumbis, marchando por entre o centro da cidade de Atlanta, nos primeiros
episódios da primeira temporada, trazem um questionamento para o próprio indivíduo hodierno:
quais são as ânsias que movem uma grande massa em meio à rotina? Estariam todos, sublevados pelas relações sociais institucionalizadas, como zumbis, procurando saciar uma vontade e objetivos mal
reconhecidos? Aliás, esse ponto também toca na interrogação do indivíduo moderno frente ao modelo social-político-econômico do capitalismo: os mortos-vivos são seres que possuem a ausência de
persona, ou seja, não possuem qualidades afetivas e/ou psicológicas (morais e éticas) suficientes para
serem caracterizados como pessoas em si. Dessa maneira, sem esse perfil que os tornariam humanos,
são, por conseguinte, corpos automatizados, tomados por uma inconsciente vontade de consumir. Em
paralelo, no sistema hegemônico, que rege as relações políticas e sociais, com base em uma estrutura
puramente econômica, o ser humano atual, incônscio grande parte das vezes das reais condições nas
quais está inserido, estaria vivendo, por extensão, em um estado de pós-morte, nos moldes dos zumbis.
O mesmo ocorre com os sobreviventes os quais surgem durante a narrativa: no cenário apocalíptico descrito, os grupos de sujeitos esbarram uns nos outros, algumas vezes ajudando, outras,
trazendo mais turbulência ao coletivo liderado por Rick. O que é notório na história de Kirkman é
o contínuo caminhar que o grupo de sobreviventes realiza, de lugar em lugar, de casa em casa, buscando alimentação e um local seguro o qual os acolha e, ao mesmo tempo, lhes represente a salvação
por entre os percursos da vida, reflexo da construção completa de sua identidade. Expressando uma
contínua peregrinação, metaforicamente e por transposição, do homem contemporâneo em busca de
algo que o complemente, travando uma luta constante contra os outros seres humanos por seu espaço.
A qualidade da Comunicação de Massa está exatamente no poder dela expressar elos diretos entre a
ficção e a realidade, justamente por objetivar o maior número de indivíduos fruidores que, de alguma
maneira, devem identificar-se com o produto veiculado.
Essa experiência cotidiana de vida retratada metaforicamenteque, em The Walking Dead, parece tomar um formato brutal, alegórico, utiliza os zumbis como imagem exata de um momento pós-moderno da humanidade. De acordo com o sociólogo Anthony Giddens, em seu livro As Consequências da Modernidade (1991), no qual o estudioso analisa as inferências no cotidiano da população
no atual momento social-político, a pós-modernidade “vê o eu como dissolvido ou desmembrado
pela fragmentação da experiência” (GIDDENS, 1991, p. 163). O que seriam os zumbis se não seres
fragmentados, inconscientes de uma existência a qual não entrelaça os diversos âmbitos da vivência
humana (trabalho, estudo, família, círculo social)? Além disso, o momento seguinte à modernidade
também “vê o “esvaziamento” da vida cotidiana como resultado da introdução dos sistemas abstratos”
(GIDDENS, 1991, p. 163). A representação desses monstros seria, portanto, a total tomada de um
conceito abstrato (a morte) sob um corpo vazio de relações, o qual não interconecta informações,
dispostas pelo modelo social-econômico de maneira díspar.
Acerca deste tópico, elucida-se que o termo latino “monstro” pode ter como explicação de sua
origem algumas possibilidades, como: em monstra que significa “mostrar, apresentar”; em monstrum,
com significado de “aquele que revela, aquele que adverte”; ou mesmo em monstrare, que possui a
ideia de “ensinar um comportamento, prescrever a via a seguir”. De uma maneira geral, o monstro é
um ser, objeto ou criatura ficcional que tem alguma coisa para mostrar, basicamente. Porém, o conPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1 , p. 14-31, 2015.
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ceito de “monstro” não se resume apenas a esse significado abrangente: mais exatamente, para os pesquisadores em sociologia e filosofia, funciona como um operador conceitual, ou seja, na medida em
que ele representa o desenvolvimento de todas as irregularidades possíveis, afinal é um “monstro”, ele
também entra em conflito ecoloca em questão a normalidade. Neste sentido, como afirma Foucault,
o monstro é um “princípio de inteligibilidade” de todas as anomalias, e, ainda assim, é um “princípio
verdadeiramente tautológico”, porque a propriedade do monstro consiste em se afirmar enquanto
tal, “explicar em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja em si mesmo
ininteligível” (FOUCAULT, 2010, p. 48).
Dessa forma, o monstro não é apenas a criação ficcional de uma criatura aleatória: ele recupera
as noções inerentes à construção social vigente, como a de normalidade, para enfim tornar-se assustador – não pela sua caracterização horrenda na qual costumeiramente apresenta-se, mas por destoar
da norma vigente. E os zumbis de The WalkingDead também querem demonstrar algo: a norma até
então instaurada inverteu-se ao nível de ser extraída daqueles que parecem seres humanos, a própria
humanidade. O apocalipse zumbi, como acontecimento, inverte a ordem natural estabelecida, bem
como a hierarquia social institucionalizada previamente, provocando mudanças de caráter metafórico
e hiperbólico: em um mundo regido por um modelo social-político que “cega” os cidadãos, elevando
à saturação o pensamento, causada graças aos exacerbados processos e sugestões racionais, comparar
os seres humanos contemporâneos com zumbis não parece um equívoco de leitura. Inconscientes dos
atos, dos desejos que possuem, negligenciando as vontades próprias e coletivas, os zumbis surgem
como uma representação coerente e uma demonstração plausível da sociedade atual, que observa um
apocalipse potencial à espreita.
Isto posto, os mortos-vivos são a ambivalência materializada. Representam a morte em vida
do indivíduo contemporâneo ou a vida morta de sujeitos aquém da realidade. Demonstram um contrassenso o qual vai além da sua imagem putrefata: a contradição do mundo estar regido por pessoas
as quais não se sujeitam à humanidade. Os zumbis, embora sejam criação do início do século XX, são
a materialização do fracasso social, do fim da modernidade e de um projeto de civilização que, diante
do perigo, se enfraquece, prejudicando principalmente aqueles à margem da sociedade.
O apocalipse zumbi, portanto, não opera apenas como um destruidor da estrutura social vigente dentro da narrativa, mas também como um deslocador da própria visão de mundo dos sujeitos descritos
naquele universo ficcional: o acontecimento, aos moldes de Foucault, reverbera inclusive na representação e na identidade das personagens. Neste momento, é oportuno introduzir algumas considerações
sobre outro ponto fundamental para esta análise: o seu título. Ao contrário do que se acredita,The WalkingDead, ou seja, a morte que anda, não refere-se aos zumbis – no fim da segunda temporada, para
o seu grupo, Rick revela o segredo que lhe fora confessado pelo médico do CCD, Dr. Jenner: todos
já estavam infectados. Não haveria escapatória para a epidemia, inevitavelmente todos já continham
em si o germe da doença que revivia os zumbis. Mordidos, arranhados ou não, todos os sujeitos vivos já estavam contaminados, carregando a fagulha dos mortos-vivos internamente, incubada. Nesse
momento, a narrativa assume uma perspectiva mais filosófica: “se todos nós possuímos cá dentro a
morte, o que diferencia mortos de vivos? O que é estar vivo?”. A luta a partir de então das personagens
é de não morrerem.
Em suma, o que os walkers querem significar? Seria The Walking Dead, portanto, uma produção a qual possui como objetivo único a fruição?
Como um acontecimento que irrompe uma regularidade, a epidemia a qual faria mortos se
tornarem “vivos”, possui em sua constituição interna três signos: um rememorativum, um demonstrativum e outro prognosticum. Nesse âmbito, o rememorativum, o qual representa as condições de uma
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singularidade que virá a romper-se, também indica um ponto de ligação entre o universo ficcional e
a presente realidade: isso se deve ao pressuposto do qual a regularidade instaurada na narrativa faz
parte do contexto real, do cotidiano compartilhado por grande parte da população. Por ser uma obra
com teor fantástico, é necessária para que ela efetive-se nesse gênero do terror a conjectura da qual o
ambiente descrito pelo enredo seja parte de uma realidade comum a todos os indivíduos, para, então,
haver um elemento o qual desarticule as certezas e implante um sentido insólito à experiência verossímil.
Dessa maneira, o signo rememorativum implica na suposição coletiva de que, antes da epidemia ser instaurada como nova ordem, a normalidade prévia condiria à práxis rotineira de vida
no mundo contemporâneo. Ao iniciar a série estabelecendo uma relação entre a realidade e a ficção,
Kirkman parece objetivar para além de uma narrativa de terror – utilizando de um signo o qual resgata e implanta uma normalidade inerente ao homem hodierno, aproxima a produção televisiva de seus
telespectadores. E o que isso implica? Para melhor elucidação, far-se-á um breve panorama da vida
contemporânea e suas impressões.
Há de se expor que, no atual momento histórico, o ser humano ainda está colhendo os desdobramentos colaterais que a expansão ininterrupta do capitalismo conferiu à humanidade. Se, a partir
das ruinas do feudalismo e até o fim do século XIX, a sociedade europeia plantou as sementes e viu
florescer, no mundo, essa estrondosa árvore chamada de modernidade, já no século XX, o ser humano
percebeu que seus galhos começaram a envolvê-lo de tal forma que ele estava “preso”, sem escapatória
nesse modelo sócio-político-econômico. Estudiosos, então, notaram as consequências do modo de
vida moderno: as grandes e devastadoras guerras eclodiram em diversos países, advindas de relações
internacionais problemáticas; invasões militares armadas, as quais, embora com justificativa de paz,
ferem os Direitos Humanos, instaurando por sua vez uma crescente tensão entre nações e sociedades;
a crise do capitalismo, o qual, para manter-se operante, demonstra desgastar cada dia mais as relações
sociais, e a queda da hegemonia de potências mundiais, com efeitos profundos na economia e na
organização social desses países, como é o caso do alto índice de desemprego percebido em nações
europeias; o risco iminente de um evento nuclear, por descuido ou por questões bélicas; as lutas dos
povos dominados da Ásia e África por emancipação; o progresso científico-tecnológico que, por mais
que possa ser para fins positivos, cria uma desconfiança quanto ao futuro da humanidade, como o
desenvolvimento de doenças em laboratórios, as quais, dissipadas, oferecem riscos pandêmicos.
Como consequências sociais desses frutos das relações políticas modernas, ainda podem-se
citar: a abismal desigualdade social, na qual indivíduos que morrem de fome compartilham do mesmo espaço que aqueles motorizados com um carro de luxo; a intensificação da segregação de grupos
destoantes, principalmente aqueles os quais não possuem poder de compra e, logo, não conseguem
estar inseridos na dinâmica mercadológica; o sentimento de insegurança da população, a qual se torna vulnerável; a barbárie vivenciada cotidianamente, como reflexo das austeras relações econômico-políticas e da ineficiência dos órgãos de proteção pública; e, por fim, a alienação em massa, ou seja, a
inconsciência coletiva dos processos e atividades a qual o ser humano desempenha, reforçada por sistemas de educação os quais não direcionam o indivíduo para um caminho de crítica e reflexão, mas,
pelo contrário, reafirmam a posição desse sujeito como marionete de um modelo socioeconômico.
Todos esses processos e suas consequências deram-se a custa de milhares de vidas humanas
e foi inevitável que o pensamento crítico-social captasse as nuances dessa modernidade e concluísse que o capitalismo não significava, como se acreditava, uma libertação da humanidade, mas, sim,
como expôs profeticamente Max Weber (2001, p. 131), em 1905, seria a criação de uma nova grade
de ferro a qual só esfacelar-se-ia quando a última camada de carvão fóssil fosse consumida. E, na conPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 14-31, 2015.
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temporaneidade, além dessas ameaças ao ser humano causadas pelo próprio sistema no qual ele vive
e se desenvolve, há novos perigos à espreita. O processo de radicalização da modernidade liquefez as
instituições criadas por ela mesma, criando na população global um sentimento de instabilidade e
vulnerabilidade diante do percurso histórico, rumando o homem contemporâneo sem objetivo claro
para ele mesmo.
O que sobra ao ser humano contemporâneo é a incerteza e o niilismo: tudo parece não ter
sentido e o propósito das relações humanas simplesmente desfaleceu-se.
Nesse ínterim, ressurgem, na expressão da Cultura de Massa, as narrativas com a temática do
mito do zumbi, pois este monstro parece ser uma metáfora cabível e facilmente reconhecível do mundo do hoje.O homem hodierno em comparação metafórica torna-se a morte em vida, a qual vaga,
por entre os centros urbanos em busca de algo que não se faz evidente nem sequer para o próprio
indivíduo. The WalkingDead faz sucesso não só por ser uma série a qual resgata os contos de terror
para a televisão norte-americana, propondo um momento fruitivo de barbárie, violência e sangue,
mas também, pela maneira como trata os seus temas, seus personagens e, acima de tudo, por conseguir tocar a subjetividade do indivíduo contemporâneo (mesmo inconscientemente) o qual, no seu
íntimo, reconhece-se como um morto-vivo em meio à rotina. Assistir à aniquilação da imagem dos
zumbis, na série, pode ser uma exasperação do homem contemporâneo, ser autômato, dirigido por
uma vontade irreconhecível de preenchimento, em meio a uma distopia da vida moderna.
O cerne da história em quadrinhos e, por extensão, da produção audiovisual não são os walkers, os zumbis. “The WalkingDead é uma história difícil de se superar. É poderosa, dramática, horripilante e assustadora. Mostra com sucesso as ideias de medo e sobrevivência. Mas Robert Kirkman
resume melhor: “A série é sobre humanidade.”” (BELLUOMINI, 2013, p. 57). Humanidade esta que
parece estar, devido às consequências do processo do modernismo, esvaziada de vida própria – sujeita
a uma (des)ordem que não é nem sequer explicada ou explicitada.
Cumprindo seu papel fruitivo e evasivo de sentimentos, fornecendo ao telespectador um relato bárbaro da sobrevivência humana em meio a um apocalipse zumbi, a narrativa de The WalkingDead também pode ser considerada a representação, mesmo que em vias não tão poéticas, do fracasso
da sociedade contemporânea. Oferecendo uma metáfora hiperbólico-subversiva, The WalkingDead
sinaliza a crise da razão da contemporaneidade. Mergulhados em vínculos superficiais de um sistema
o qual não esclarece o próprio ser humano, apenas o bloqueia mentalmente, é significativa a maneira
com que os walkers devem ser atacados para, finalmente, morrerem: um ferimento no cérebro, aos
moldes de George Romero. Para que serve, então, o cérebro em um mundo onde as relações sociais
saturam o indivíduo, automatizando-o?
Destarte, Robert Kirkman, ao apresentar um relato distópico-subversivo, relembra a humanidade de que mais importante do que as convenções sociais ou instituições de poder, é a relação
entre seres humanos vivos, pois, diante de um cenário de hecatombe, tudo perderia seu sentido, seu
significado, inclusive a morte. Um mundo apocalíptico no qual apenas sobra ao homem ele mesmo.
Analogamente com a realidade, The WalkingDead é a expressão paradoxal de um mundo o qual,
tomado pela racionalidade, torna-se, incessantemente, mais irracional. Um mundo que vivo se apresenta morto.
Referências
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IRWIN, William; ROBICHAUD, Christopher. The Walking Dead e a Filosofia: espingarda, revolver
e razão. Tradução: Patrícia Azeredo. Rio de Janeiro: Editora BestSeller, 2013.
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Ângela Vaz (Org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
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IRWIN, William; ROBICHAUD, Christopher. The WalkingDead e a Filosofia: espingarda, revolver
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SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2001.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WALTER, Roland. Transferências Interculturais: Notas sobre Trans­Cultura, Multi Cultura, Diásporas
e encruzilhadas. Revista Sociopoética, vol.1, 2006.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2001.
Recebido em 31 de janeiro de 2015
Aprovado para publicação em 18 agosto de 2015
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Memorial da América Latina: Roteiro de Visita
às Obras de Arte
Latin America Memorial: script to visit the work of art
Alecsandra Matias de Oliveira*
*Doutora em Artes Visuais – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Especialista em Cooperação e Extensão Universitária do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Resumo
Nesse âmbito de redemocratização política, surge o projeto de edificação do Memorial da América
Latina. Concebido por Oscar Niemeyer e com planejamento cultural do antropólogo Darcy Ribeiro,
o Memorial é fundado em 18 de março de 1989, no bairro operário da Barra Funda. O espaço destina-se a ser núcleo de cultura, política e lazer construído com o objetivo de disseminar as expressões
criativas da América Latina, visando estabelecer laços culturais, políticos e sociais entre as nações.
Palavras-Chave: América Latina; Memorial da América Latina; Oscar Niemeyer; Obra de Arte; Arte e Politica.
Abstract
In this context of political democratization , appears the building project of the Latin America Memorial . Designed
by Oscar Niemeyer and cultural anthropologist Darcy Ribeiro planning , the Memorial is founded on March 18,
1989 , the working-class district of Barra Funda . The space is intended to be the core of culture, politics and leisure
built in order to disseminate the creative expressions of Latin America, to establish cultural, political and social
ties among nations.
Keywords: Latin America; Memorial da América Latina; Oscar Niemeyr; Work of Art; Art and Politics.
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or três séculos, São Paulo tem casas de barro e sofre com chuvas e umidade permanentes, características do clima tropical de altitude. Quando completa seu quarto centenário em 1954,
atinge um tamanho jamais sonhado por seus habitantes coloniais, transforma-se em um grande
centro urbano-industrial. No início do século XXI, São Paulo é a terceira maior aglomeração urbana
do planeta, é uma imensa megalópole circundada por cidades-satélites – que, anteriormente, constituíam-se em reduções indígenas. Seus bairros, ruas e avenidas carregam as memórias desta transformação e, principalmente, dão condição à cidade de proporcionar o sentimento de estar “em casa” para
muitos povos. Como cidade contemporânea é fragmentada e transitiva. Porém, o diferencial está no
reconhecimento dessa condição. Desde sua fundação São Paulo recebe indivíduos de outros locais,
configurando-se em lugar múltiplo. Os monumentos que registram as memórias fundantes da cidade
estão espalhados pela malha urbana e garantem essa condição.
O exame do percurso histórico trilhado por São Paulo auxilia na compreensão da movimentação entre memórias e aspectos identitários. Identifica-se certa tendência, por exemplo, de imigrantes
de nacionalidades semelhantes concentrarem-se em bairros específicos: italianos no Brás, Bexiga, Belém, Mooca e Bom Retiro; japoneses e chineses na Liberdade, alemães no Brooklin e em Santo Amaro;
árabes na região do Mercado Municipal, judeus no Bom Retiro e após 1920 em Higienópolis; coreanos, atualmente, também, no Bom Retiro e arredores; russos, poloneses e, especialmente, lituanos na
Vila Zelina, iugoslavos na Mooca e no Belém, armênios na Luz; e outros. São Paulo é partilhada por
todos. Porém, há pedaços desta cidade mais italianos, espanhóis ou orientais, onde o sentimento de
identificação é mais forte.
Nessa cidade, a edificação de monumentos configura-se como obra comemorativa de arquitetura ou escultura2. Para Le Goff (2003), esses monumentos são “verdadeiros arquivos de pedra”
que acumulam, além da função de arquivo propriamente dito, a de “peças publicitárias” duradouras.
Nesses monumentos, a marca principal é o esforço em manter a comemoração e a lembrança por
intermédio de imagens e inscrições que, geralmente, encerram uma narrativa dos eventos gloriosos.
Após a ditadura militar (1964-1985), os monumentos erigidos na cidade abandonam o aspecto comemorativo e tentam suprir a necessidade de expressão cultural da cidade – espaços como a Praça
da Sé, o Parque Ibirapuera, o Memorial da América Latina e as estações do metrô buscam emergir
as memórias da cidade, atribuindo mais valor à sensibilidade estética do que ao “sentimento cívico”
ou de evocação da história de uma “nação” que se tem anteriormente ao fim da ditadura. Artistas de
variadas nacionalidades se incubem da missão de humanização dos espaços públicos a serem vividos
por essa população multiétnica.
Nesse âmbito de redemocratização política, surge o projeto de edificação do Memorial da
América Latina. Concebido por Oscar Niemeyer e com planejamento cultural do antropólogo Darcy
Ribeiro, o Memorial é fundado em 18 de março de 1989, no bairro operário da Barra Funda. O espaço destina-se a ser núcleo de cultura, política e lazer construído com o objetivo de disseminar as
expressões criativas da América Latina, visando estabelecer laços culturais, políticos e sociais entre as
nações.
Ocupando uma área total de 84.482 m2, o Memorial da América Latina é formado por prédios, posicionados em duas esferas conectadas por uma passarela; alcançando 25.210 m2 de construção, englobando: o Salão de Atos, a Biblioteca Latino-Americana, o Centro de Estudos, a Galeria
Marta Traba, o Pavilhão da Criatividade, o Auditório Simón Bolívar, o Anexo dos Congressistas e o
Parlamento Latino-Americano.
Esses espaços abrigam em suas áreas internas e externas diversas obras de arte. São obras de
artistas brasileiros, em sua maioria.Convidados por Oscar Niemeyer a juntarem esforços na constiPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 32-45, 2015.
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tuição do Memorial da América Latina, os artistas preocupam-se em pensar o espaço para cada obra,
interagindo entre a demanda do local e entre a sua própria poética. Cada obra, no projeto original,
reserva seu espaço no monumento e expressa o cenário artístico brasileiro dos fins dos anos 1980,
além de mostraras ligações do arquiteto com as artes visuais do período. Hoje, muito do projeto original de Oscar Niemeyer passa por reformulações (de posicionamento espacial ou por conservação da
obra), mas muitas ainda permanecem como testemunhos de uma tentativa de aliança e interação com
a América Latina – expressa nos objetivos do Memorial. Outras obras chegam ao longo do tempo, incluindo trabalhos de artistas latino-americanos, transformando o espaço e renovando suas intenções.
Nesse ponto, propõe-se aqui um passeio despretensioso pelo espaço e pelas obras de arte, a
partir dos comentários dos próprios artistas, críticos e de Oscar Niemeyer:
Juan Muzzi, América, 2008. 100 x 100 x 300 cm, aço
carbono com pintura epóxi. Recentemente doada ao
Memorial da América Latina, o artista demonstra a
preocupação em integrar seu trabalho ao conjunto
de obras já existente local. Por essa razão, pede que
a peça seja pintada de vermelho.
1. Espaço dos congressistas
2. Auditório Simon Bolívar
Maria Bonomi, Futura Memória, 1989. Mural em solo cimento, 300 x 800 cm.(...)
Esta unidade geológica e arqueológica remonta à expansão oceânica que
dividiu a África, Europa e continente sul-americano há cerca de 200 milhões
de anos. À direita surgem sobrepostos os contornos dos povos que vieram nos
colonizar desde a África até os Urais (...). O lado esquerdo do painel é o contorno
da costa do Pacífico, porta de acesso das outras “presenças” enriquecedoras
desta mitologia. (Depoimento de Maria Bonomi. In: FUNDAÇÃO MEMORIAL DA
AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São Paulo: Projeto/PW, 1990,p. 97).
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Vera Torres, Torso Negro, 1989. Bronze, 300 cm.
“Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta,
dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai
é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas
montanhas de meu país, no curso sinuoso dos seus
rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada.
De curvas é feito todo o Universo. O Universo curvo
de Einstein”. (Depoimento de Oscar Niemeyer.
In: FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA.
Integração das Artes. São Paulo: Projeto/PW, 1990).
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Victorio Macho, Simon Bolívar, sd., bronze, 220 cm. Em meio às linguagens abstratas
predominantes no complete do Memorial da América Latina, está o busto do herói latinoamericano.
Carbajal Enrique Gonzalez, Ventana negra, 1989. Ferro pintado – 226 x 266 x 62 cm
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Alfredo Ceschiatti, Sem Título, 1989. Bronze, 220 x 300 cm. O artista conheceu Oscar
Niemyer quando da encomenda de uma escultura para o Conjunto Arquitetônico da
Pampulha em Belo Horizonte, em 1942. O trabalho de Ceschiatti também está em Brasília, 1960 e completa-se com esta peça de 1989. Obra danificada no incêndio ocorrido em
2013.
Victor Arruda, Agora, 1989. Painel em tinta acrílica, composto por 10 telas,
990 x 220 cm.
Obra danificada no incêndio ocorrido em 2013.
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Carlos Scliar, Homenagem
ao Teatro, 1989. Painel em
tinta vinílica com aplicações
de colagens e impressos em
serigrafia, composto de 12
módulos de 200 x 140 cm e
dimensão total 600 x 560 cm
(atualmente, essa obra não
está à disposição do púbico por
questões de conservação). Pablo
Picasso, Guernica, 1937
Exposta na II Bienal de São Paulo,
1953/1954.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda
Svevo/Fundação Bienal de São
Paulo.
Tomie Ohtake, Sem título, 1989, Tapeçaria em quatro cores, 800 m2. (...) O resultado a que
cheguei procurou também manter a unidade plateia-palco-plateia. O grande mural é um
desenho com muitas linhas que se compõem numa grande forma, atravessando como num
só gesto, todo comprimento do auditório (...). (Depoimento de Tomie Ohtake. In: FUNDAÇÃO
MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São Paulo: Projeto/PW, 1990,p. 85).
destruída no –incêndio
em 2013.
3.Obra
Administração
Centroocorrido
Brasileiro
de Estudos Latino-Americanos:
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Vallandro Keating, Sem título, 1989, (detalhe), painel em tinta acrílica,
pastel seco e grafite sobre tela, 750 x 250 cm. O assunto é o homem latinoamericano que luta por sua liberdade e autonomia
4. Praça Cívica
Herman Braun-Vega,La leçon… à la campagne, 1984, tinta acrílica sobre
tela.É uma releitura “Lição de Anatomia”, de Rembrandt. Ela faz referencia
à foto do cadáver de Che Guevara, tirada pelos responsáveis por sua
captura e assassinato, em 1967, na Bolívia. É característico nas criações do
artista elementos da cultura peruana, temas políticos e referencias a obras
importantes da história da arte, sempre explorados com maestria técnica,
crítica mordaz, ironia e certo humor.
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Oscar Niemeyer, A mão, 1989.“Suor, sangue e
pobreza marcaram a história desta América Latina tão
desarticulada e oprimida. Agora urge reajustá-la num
monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e
feliz”.(Depoimento de Oscar Niemeyer. In: FUNDAÇÃO
MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes.
São Paulo: Projeto/PW, 1990).
Franz Weissmann, A Grande Flor
Tropical, 1989. Escultura em chapa de
aço SAC-50. 700 cm x 650 cm. “Flores
de Aço”.A primeira nasceu de um
impacto visual. Ao ver uma flor abrir-se,
a seu lado, aquecida e iluminada pelo
calor de uma lâmpada, observou (mais
atento) a disposição formal de suas
pétalas estreitas e longas, com uma
leve dobradura, uma sutil “cantoneira”.
Da vivência desse momento mágico
surgiram em sua obra as “flores”
geometrizadas,compostas de dobras
no aço, retilíneas ou diagonais, em
quadrados ou retângulos. Para ele,
não são esculturas figurativas, nem
abstratização da flor: apenas uma
recriação livre, signo e símbolo da flor.
FRANCO, Maria Eugênia. (“A Grande
Flor Tropical de Franz Weissmann:
Informe e Testemunho”. In: FUNDAÇÃO
MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA.
Integração das Artes. São Paulo:
Projeto/PW, 1990,p. 25).
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Maria Bonomi, Etnias – Do Primeiro e Sempre Brasil, 2008. Bronze, barro, espelho e alumínio.
Passagem – Portão 1. A instalação, localizada na passagem subterrânea que liga o metrô
ao conjunto arquitetônico de Niemeyer, retrata a cultura e a situação indígena no território
brasileiro desde antes da “colonização” portuguesa até os dias de hoje.
5. Salão de Atos
Gilmar Pinna, Início da Vida, sd, aço inox.
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Poty/Caribé, Sem título, 1989. Painéis em concreto aparente, gravados em baixo-relevo,
cada qual medindo 400 x 1500 cm. (...) Tudo funcionando para dar vida a essa atalaia
dos povos latino-americanos onde ChichiCastenango poderá dialogar com Ushuaia
e com o Cuzco; com a Bahia, com Cuernavaca, com Gregório de Matos, com Bolívar
e San Martin em seus próprios labirintos, ou ChichénItzá ouvindo o canto de Neruda
aos cumes de Machu-Picchu, ou os cientistas tratando dos pais e mães dos menores
abandonados, ou também, porque não, Zapata e Santa Rosa de Lima dançando uma
marinera ou um huapango. Tudo isso na Barra Funda. Depoimento de Caribé. In:
FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São Paulo: Projeto/
PW, 1990,p. 63.
Bruno Giorgi, Integração, 1989. Escultura em mármore estatuário branco de Carrara, 125 cm.
Tal como Alfredo Ceschiatti, Bruno Giorgi, amigo íntimo de Oscar Niemeyer, tem obras em
diversos projetos do arquiteto, incluindo Brasília.
Candido Portinari, Tiradentes,1948-1949. Painel a têmpera /tela 309 x 1767cm.O responsável pelo
pedido da obra a Portinari foi o fundador do Colégio Cataguases, Francisco Inácio Peixoto, que
a encomendou em 1948 pelo valor de Cr$400,00. Mais tarde, a tela foi transferida para o Palácio
dos Bandeirantes e anos depois para o Memorial da América Latina.
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6. Biblioteca Latino-Americana Vitor Civita
Marianne Peretti, América Latina, 1989. Painel em vidro transparente e fosqueado, fixados
com parafusos de aço, sobre base metálica – 800 cm de extensão. De longos e sinuosos rios,
montanhas e florestas misteriosas surge a AMÉRICA LATINA, continente de cidades gigantes e
pequenos povoados – mistura do indígeno, dos séculos passados com o dia de hoje, beija-flores
e supersônicos ... O voo do ultraleve a bilhar no sol em cima do mar. Depoimento de Marianne
Peretti. In: FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São Paulo:
Projeto/PW, 1990, p. 41.
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da América Latina, provoca profundas reestruturações na cidade. Exige novo repertório técnico e
institucional; novas estratégias para a ação no espaço urbano e, uma readequação do espaço voltado à conservação da memória. Nesse conjunto de funções voltadas ao espaço urbano, à política e à
cultura latina, as obras de arte presentes nos espaços internos e externos do Memorial resgatam as
diversas metáforas instauradas no conceito de unidade na diversidade que a instituição apregoa. O
projeto original de Oscar Niemeyer prevê essa conjunção entre arquitetura e arte desde o seu primeiro
momento de concepção e ao longo do tempo, novas peças são incorporadas no lugar. Desta América
Latina reconstruída no coração da Barra Funda, se tem como ações mais significativas: o esforço para
a integração e o resgate das diversas memórias que a constituem.
Mario Gruber, Homenagem a Clay Gama de Carvalho, 1989. Painel composto de ladrilhos
cerâmicos em grés, preto e branco, 800 x 300 cm. Escritor, dramaturgo e poeta. Tornouse anônimo pela nossa falta de memória e principalmente pela ditadura que confiscou o
manuscrito de sua obra, a Literatura Americana no Exílio, na alfândega (...). Depoimento de
Mario Gruberg. In: FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São
Paulo: Projeto/PW, 1990.
7. Restaurante (atual Galeria Marta Traba)
Referências
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São Paulo: P. Carnier Júnior, 1999.
FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Integração das Artes. São Paulo: Projeto/PW,
1990.
LAGE, Beatriz H. G. ; LEITE, Edson. « Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro ». In : AJZENBERG,
Elza (org.). Arteconhecimento. São Paulo: MAC USP/PGEHA, 2006, p.p. 49-56.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias. Poéticas da Memória: Maria Bonomi e Epopeia Paulista. São
Paulo: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2008 (tese de doutoramento).
TIRAPELI, Percival. São Paulo: Artes e Etnias. São Paulo: Editora da UNESP/Imprensa Oficial, 2007.
Notas de Rodapé
1. De 2008 a 2013, ocorreram edições do Curso de Extensão “Arte e sociedade na América Latina”,
promovido pela Cátedra Unesco Memorial da América Latina. Organizadas pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina e coordenadas pelas Profas. Dras. Elza Ajzenberg e Alecsandra
Matias de Oliveira. O presente texto surgiu das discussões e atividades realizadas durante estas edições. Assim, agradecemos aos funcionários da Fundação Memorial da América Latina, aos alunos
e a todos os docentes que compartilharam seus conhecimentos nas aulas deste curso. Aqui ficam o
registro e os agradecimentos do que foram aqueles dias.
AthosBulcão, Sem Título, 1988. Foto: Tuca Reinés. 220 m2. O azulejo tornou-se de tal forma
importante no conjunto da obra de AthosBulcão que é possível dizer-se que é ele o que
influencia, hoje, sua pintura e não o contrário. A pintura, por seu caráter intimista, artesanal e
silencioso, certamente agrada mais a AthosBulcão (...). (Texto de Frederico Morais, extraído do
livro Azulejaria Contemporânea no Brasil.Editora Publicações e Comunicações Ltda., capítulo
VII, São Paulo, patrocínio da INCEP – Indústria Cerâmica Paraná S.A). Hoje, a obra não está
Em síntese, como um grande projetode instituição cultural transnacional, o Memorial mais disponível ao público. O espaço foi reformulado para abrigar a Galeria Marta Traba.
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2. Monumentumremete à raiz indo-européiamen que exprime uma das funções essenciais do espírito
(mens), a memória (memini). O verbo monere significa “fazer recordar”, “avisar”, “iluminar”,
“instruir”. O monumentumé um sinal do passado – tudo aquilo que pode evocar o passado e
perpetuar a recordação.
Recebido em 3 de novembro de 2014.
Aprovado para publicação em fevereiro de 2015
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A comédia que nasce na tragédia:
a filosofia da comédia aplicada a filmes de woody allen
The comedy is born in tragedy:
The philosophy of comedy applied to Woody Allen movies
Myriam Pessoa Nogueira*
*Doutora em Artes-Cinema pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) no Departamento de Letras Literaturas de Língua Portuguesa. Especialista
pela UCLA em Cinema, Vídeo, TV e Novas Mídias. É professora na PUC-Minas.
Resumo
Seguindo os filósofos que teorizaram sobre o riso, desde Aristóteles, Kierkegaard e Schopenhauer,até Henri Bergson, Gilles Déléuze e Umberto Eco, vamos tentar aplicar as teorias da comédia à prática dos roteiros e textos de
Woody Allen – também ator cômico – considerando que seu humor nasce de uma situação trágica da qual nos
distanciamos emocionalmente, através da própria ironia do autor.
“O melhor humor é intelectual sem tentar ser”
Woody Allen(Apud YACOWAR, 1979, p. 3)1
Em Melinda & Melinda, (2004), de Allen, a mesma estória é contada por dois dramaturgos,
sob o ponto de vista trágico e sob o olhar cômico.
Gérard Genette, autor de Palimpsestes – a bíblia da teoria da intertextualidade – já disse que
“o cômico é apenas o trágico visto por trás.” (GENETTE, 1997, p. 16). O também humorista Steve
Allen, autor do livro How to Be Funny, é apontado como sendo o autor da frase citada pelo personagem de Alan Alda em Crimes and Misdemeanors(Crimes e pecados, 1989), de Allen: “a comédia é a
tragédia mais o tempo”. Steve Allen nega, porém, dizendo que ‘colou’ de outra frase anterior, que dizia
que “a comédia é sobre tragédia” (SPIGNESI, 1992, p. 72.)
Na verdade, a tese é do ex-crítico teatral do New York Times, Walter Kerr, que em seu livro
Tragedy & Comedy cita o conto grego de Édipo. Segundo Ed Hooks, ele “desenha a linha entre tragédia e comédia”, que seria “o drama estendido, elevado, enriquecido e exagerado”2 (HOOKS, 2003, p.
99-100). A comédia seria um giro de 180 graus da tragédia e ambas estão ligadas como siamesas. Se,
por exemplo,
[...] quando Édipo cega-se e exila-se no deserto, em seu caminho para fora da
cidade, ele passar por outro cego que matou o pai e se casou com a mãe, a situação se torna cômica. Por quê? Porque não podemos lidar com a ideia de dois
Édipos! O horror e a dor são muito grandes para serem suportados, então, rimos.
(HOOKS, 2003, p. 99).3
Palavras-chave: Comédia; Tragédia; Roteirização; Cinema; Literatura
Abstract
Following the philosophers that theorized on the laughing, since Aristotle, Kierkegaard and Schopenhauer, until
Henri Bergson, Gilles Déléuze and Umberto Eco, we will try to apply the theories of comedy to the practice of
screenwriting and texts of Woody Allen – also a comic actor – considering that his humor is born from a tragic
situation in which we will emotionally detach ourselves, through the author’s own irony.
Aliás, em inglês, Oedipus Wrecks (Édipo arrasado), título do episódio de Allen para New York
Stories (Contos de Nova York, 1989) de Allen, Scorsese e Coppola, rima com Oedipus Rex, o título
original da tragédia grega; neste curta, o personagem de Allen tenta negar suas origens, mas, como o
coro grego em Mighty Aphrodite (Poderosa Afrodite, 1995) de Allen – que reclama dos filhos que não
telefonam – toda a população da cidade apoia sua mãe. De acordo com Nichols,
Oedipus Wrecks é sobre um homem que tenta negar suas origens, mas falha ao
tentar fazê-lo. Portanto ecoa o antigo drama de Sófocles. O personagem que Allen
interpreta é responsável por fazer sua mãe desaparecer assim como Édipo comete
parricídio, mas em ambos os casos, os pais, no entanto, assombram enormemente
a vida dos filhos.(NICHOLS, 2000, p. 9)4
Keywords: Comedy; Tragedy; Screenwriting; Cinema; Literature
Para Ortega & Gasset, enquanto a tragédia “nos abre para o heroico na realidade”, a comédia
reabsorve o herói para dentro da realidade, gozando suas pretensões “como uma máscara sob a qual
uma criatura vulgar se move.” (ORTEGA & GASSET apud NICHOLS, 2000, p. 211)5. Para Ed Hooks:
Antes da comédia, vem a tragédia. [...] O riso é na verdade uma evasão do desespero. [...] Estamos todos encarando as mandíbulas da morte, e gastamos a maior
parte de nossas vidas tentando não pensar sobre isto. Em última instância, a piada
é sobre nós, porque vamos morrer de todo jeito. (HOOKS, 2003, p. 98-99)6
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Isto nos leva ao ensaio crítico “O Riso”, de Henri Bergson. Apesar de Allen não acreditar na
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teoria de Bergson, acreditamos que ela possa servir para analisar os filmes de Allen, como veremos a
seguir.
Hösle alega que no riso culto há uma certa identificação melancólica com o objeto do riso.
Que aquele que ri inteligentemente reconhece que a matéria da qual ele ri não é diferente de si mesmo. Ele admira a cultura do sentido da comédia por aqueles atores e escritores que são mais sutis do
que outros e que se ressentem da vulgaridade de seus colegas. Para Hösle, “alguém tem apenas de ler
a parábase7 de alguma das comédias de Aristófanes ou o prólogo do Volpone de Ben Johnson para
ver o quanto o desgosto pelo humor barato é uma característica essencial de um grande comediante.”
(HÖSLE, 2007, p. 12).8
Kierkegaard teorizava que [...]
[...] o cômico purifica as emoções cheias de pathos, e, por outro lado, as mesmas
dão substância ao cômico. [...] A veia cômica é a mais responsável arma e então
está essencialmente presente apenas nas mãos de alguém que tem um pathos totalmente equivalente. [...] Mas alguém que quer usar a indignação e não tem a correspondente veia cômica, prontamente degenerará em retórica e será, ele mesmo,
objeto de riso. (KIRKEGAARD apud HÖSLE, 2007, p.1). 9
Explicando melhor, o comportamento de escárnio é algo que deveria ser evitado quando, ao
rirmos, reconhecemos certos padrões também para nós e nos obrigamos a infringir certas regras – se
o fizermos, sabemos que nós também seremos ridicularizados.
Maynard Mack, porém, escreveu que a comédia depende de nossa permanência do lado de
fora, como espectadores, numa posição da qual podemos notar as discrepâncias entre as fachadas
de personalidades enquanto elas se apresentam, e estas personalidades como elas realmente são: “O
nosso ponto de vista deve ter continuidade na comédia não com o do personagem, mas com o do
autor.” (MAYNARD apud WISSE, 1971, p. 103)10 Ou seja,10 o riso demandaria, a seu ver, um certo
complexo de superioridade da plateia que assiste ao cômico, uma certa moralização da sociedade ao
que é diferente, uma reação de rejeição.
Segundo Ariano Suassuna, comediógrafo e teórico, “Aristóteles definia o risível como uma desarmonia de pequenas proporções e sem consequências dolorosas”. (SUASSUNA, 1979, p.132). Aristóteles incluiu, para Suassuna, o “feio” no campo estético. Segundo palavras do próprio mestre grego,
“O risível é apenas certa desarmonia, certa feiura comum e inocente; que bem o demonstra a máscara
cômica que, feia e disforme, não tem expressão de dor.” (ARISTÓTELES apud SUASSUNA, 1979,
p.52). Essa desarmonia seria um contraste sobre algo que existe e o que deveria existir.
Bergson aponta, porém, que há contrastes risíveis e não-risíveis: “É necessário procurar qual é
a causa específica de desarmonia que produz o efeito cômico”. (BERGSON, 1983, p.105).
Segundo Eco, nas formas de arte que exprimem a harmonia perdida e malograda, [...]
[...] temos o cômico como perda e rebaixamento ou ainda como mecanização dos
comportamentos normais. Desse modo, pode-se rir daquela pessoa que tem movimentos rígidos de uma marionete; mas pode-se rir também com as várias formas
de frustração das expectativas, com a animalização dos traços humanos, com a
inabilidade de um trapalhão e com muitos jogos de palavras. Estas e outras formas
de comicidade jogam com a deformação [...](ECO, 2007, p. 135)
“Atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos
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leva a pensar num simples mecanismo”, diz Bergson (1983, p.23).
Por exemplo, em Modern Times (Tempos modernos, 1936), de Chaplin, o operário que se torna parte ele mesmo da engrenagem é risível. Allen parodia esta famosa sequência de Carlitos quando
seu personagem em Bananas (1971) é uma espécie de cobaia para testes de invenções. A propósito das
comédias de Buster Keaton, Nazario (1999, p. 63) observa que, em seu universo, “o indivíduo parece
perdido no mundo mecanizado e massificado”.
Essa mecanicidade é explorada ao máximo por Allen em outras comédias físicas, como quando ele se finge de robô em The Sleeper (O dorminhoco, 1973), ou, no mesmo filme, quando ele tenta
fugir com Diane Keaton num lago, com uma roupa inflável.
Jacobs diz que a fragilidade de Woody Allen nos lembra Chaplin: “Ao modo chaplinesco, ele é
tão fisicamente vulnerável, que sequestradores grandalhões, germes, ‘Neandertais’, mesmo porteiros –
não podem resistir a ele”. (JACOBS, 1982, p. 14). E ela continua adiante:
Ambos são homenzinhos em dificuldades; mas onde o inimigo de Chaplin é o mundo grande e frio, o de Allen é especificamente a América urbana. E enquanto a alienação de Chaplin é um conflito entre um homem e a sociedade, Allen é autoconflituoso. [...] Chaplin – com seu corpo e rosto incrivelmente descritíveis – não tem
necessidade de palavras; estas são cruciais para a visão de Allen de si mesmo e de
sua alienação. Enquanto o vagabundo é inconfortável em relação à sociedade, ele
está graciosamente em casa com seu próprio corpo. Woody, por outro lado, está em
guerra com todas as coisas físicas – seu próprio corpo incluído. Sua inteligência
afiada não encontra correlação em seus olhos abatidos e míopes ou suas pernas
desajeitadas. Enquanto o vagabundo luta com todo sentimento contra um universo
cruel e perplexo lá fora, Woody – ao manter o conflito de mente e corpo de Allen
– luta com seu cérebro e humor para ser bem-sucedido, apesar, não apenas do universo, mas de sua própria feiura ruiva. Se Chaplin é o espelho do homem, Woody é
sua contradição. Então o diálogo, que é geralmente irrelevante na arte de Chaplin,
é vital para a anomalia de Allen. (JACOBS, 1982, p. 58-59. Tradução da autora)11
Deleuze fala, porém, que não estamos mais na “idade do utensílio ou da máquina, tal como
elas aparecem nos estágios precedentes, notadamente nas máquinas de Keaton” [...]
[...] É a nova idade da eletrônica, e dos objetos teleguiados que substituem os signos ópticos e sonoros aos signos sensoriais-motores. Nãoé mais a máquina que se
desregula e se torna louca, como a máquina de alimentar de Tempos modernos, é a
fria racionalidade do objeto técnico autônomo que reage sobre a situação e arrasa
com o cenário. (DÉLÉUZE, 1985, p. 88)12
Alguns teoristas, como Gerald Mast (KING, 2001, p. 24), acham que o estilo de Woody Allen é
próximo de cineastas franceses tais como Jacques Tati, devido, talvez, ao tema do homem em contraste com a mecanicidade do mundo moderno. Em um esquete de humor chamado “Objetos mecânicos”,
Woody Allen comenta que nunca teve um bom relacionamento com objetos mecânicos de nenhum
tipo, e, como num filme de Tati, vai descrevendo que seu relógio anda em sentido contrário, que sua
tostadeira salta a torrada, a balança e a queima. Toda vez que vai tomar um banho e alguém utiliza
água, ele sai escaldado. Conta que numa noite, fez uma reunião com todos os seus pertences: “Eu disPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 46-61. 2015
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se: ‘Eu sei o que está acontecendo, então cortem essa’”. Algumas noites depois, a televisão portátil se
comportou mal e ele a quebrou. No dia seguinte, ao pegar o elevador, o elevador diz a ele: “Você não é
o cara que bateu na televisão?” E aí ele nos conta que sua má sorte com as máquinas vem do tempo em
que seu pai foi “tecnologicamente desempregado. Eles o substituíram por uma pequena geringonça.
Ela faz tudo o que meu pai faz, só que muito melhor. A coisa deprimente é que minha mãe correu pra
comprar uma.” (JACOBS, 1982, p. 15-16).
“Quando a persona de Allen interpreta heróis, é num tom burlesco”, diz Marie-Phoenix Rivet
(In: KING, 2001, p. 30). Em Midsummer Night’s Sex Comedy (Sonhos eróticos de uma noite de verão,
1982), Allen é o próprio inventor que, como Ícaro, se espatifa no chão com suas asas mecânicas. Esse
tipo de risível Bergson chamaria de o ‘risível de movimento’.
Outro tipo de risível, para Bergson, é o das formas. Um sujeito baixinho, feio, com óculos de
aros pretos e lentes grossas, cabeça desproporcionalmente grande como a de um anão, nariz ainda
maior, já é um grande ponto de partida para um comediante como Allen.
Segundo Jacobs, “como mais de um cômico de aparência estranha antes dele, [Allen] descrevia-se basicamente como um garanhão”. (JACOBS, 1982, p. 11)13 A comparação que fazemos, em Play
It Again, Sam da figura de Allan (seu personagem aqui, não seu nome na vida real) com a de galã de
Humphrey Bogart – ironicamente um homem não exatamente belo, com o lábio inferior paralisado
por um ferimento de guerra – encaixa-se também nesse tipo de contraste.
Suassuna introduziu seu ensaio a respeito do cômico justamente falando da caricatura, de
como ele próprio era feio, e, portanto, fácil de caricaturar. Os atores cômicos sempre utilizaram-se
de sua feiura, ou de seus traços não-harmônicos, vamos assim dizer, fora dos padrões de beleza, para
obterem uma boa risada de sua plateia. Allen sempre se aproveitou de seu tamanho, assim como
Chaplin e Keaton. Também utilizou seus óculos (diferentes dos de Groucho Marx), seu cabelo ruivo
e suas feições judaicas para passar uma imagem de intelectual neurótico em contraponto com lindas
mulheres por quem seus personagens se apaixonam.
Karl Rosenkranzs, em Estética do feio, III (1853), nos diz, a respeito da caricatura:
[...] É o ápice da forma do feio, mas, justamente por isso, por seu reflexo determinado na imagem positiva que ela distorce, transmuda-se em comicidade. Até agora
temos examinado o ponto no qual o feio pode tornar-se ridículo. O disforme e o
incorreto, o vulgar e o repugnante, destruindo-se, podem produzir uma realidade aparentemente impossível e, com isso, o cômico.(ROSENKRANZS apud ECO,
2007, p. 154).
Dentro dessa temática, voltamos a Bergson, quando este diz que “rimo-nos sempre que uma
pessoa nos dê a impressão de ser uma coisa”. (BERGSON, 1983, p. 36). Para Nazario (1982, p. 10), na
slapstick comedy, “homens são convertidos em coisas para serem espatifadas”. Nas comédias “físicas”
de Allen, há vários exemplos que nos fazem rir apenas pelo seu físico, como quando ele vira bala de
canhão em Love and Death (A última noite de Bóris Gruchenko, 1975). Por esse filme, aliás, ele ganhou um Urso de Prata em Berlim em 1975 por “contribuição artística fora do comum” (outstanding
artistic contribution)14.
E ainda: “É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa estando em causa o moral” (BERGSON, 1983, p. 33). O personagem de Zelig(1983), o camaleão, se transforma em qualquer pessoa com quem esteja falando, ele não tem nenhuma personalidade. Torna-se
um negro entre negros, um índio entre índios, etc.
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O ‘risível de caracteres’ é quando algo mecânico se instalou na alma de um personagem. As
“personas” de Allen em seus filmes, principalmente na fase que se seguiu a Annie Hall, seriam invariavelmente neuróticas. A ponto de ele ser chamado para dublar uma formiga que se deita num divã, em
AntZ (FormiguinhaZ, 1998) de Eric Darnell e Tim Johnson. Esse personagem que sofre de anedonia
– a perda da capacidade de sentir prazer – está sempre querendo estar em outro lugar, tem insatisfação
crônica, sexual, total incompetência para relacionamentos afetivos – nada mais é do que um retrato
social do homem de nosso tempo, do habitante das grandes cidades. Rimos porque identificamos nele
uma doença social, a do ego, do individualismo, de certo modo somos semelhantes a ele em seus defeitos e – o que é tragicômico – em sua incapacidade de ser flexível, de se adaptar, de mudar. Bergson
assim caracteriza esse tipo de personagem cômico:
[...] grandes desviados, com uma superioridade sobre os demais, dado que o seu
desvio é sistemático, organizado em torno de uma ideia central – porque as suas
desventuras estão também ligadas, bem ligadas pela lógica inexorável que a realidade aplica para corrigir o sonho – e porque provocam em torno de si, por efeitos
capazes de se somarem sempre uns aos outros, um riso cada vez maior. (BERGSON, 1983, p. 16).
Enquanto o protagonista de Bananas ou de The Sleeper se adapta a novas situações, por mais
incríveis que sejam, o protagonista das comédias realistas (chamadas de românticas porque tratam de
relacionamentos amorosos) é irremediavelmente perdedor no amor. Não como os heróis de faroeste
ou os super-heróis, que têm o destino de lobos solitários a cumprir, mas como o anti-herói contemporâneo que tem relacionamentos descartáveis e que usa a sua capacidade intelectual como defesa.
Quanto ao risível de ditos espirituosos, estamos aqui falando de um mestre neste tópico. Allen
tem tiradas cômicas desde seu tempo de humorista (stand-up), até seus contos para a revista The New
Yorker, peças ou filmes. Bergson ressalta, porém, que “[...] a arte do teatrólogo bufo não consiste apenas em fazer frases. Difícil é dar à frase sua força de sugestão, isto é, torná-la aceitável. E só a aceitaremos se nos parecer surgir de um estado de espírito ou se enquadrar nas circunstâncias”. (BERGSON,
1983, p. 38).
Para Bergson, um efeito da paródia é o de transformar o solene em familiar. Estamos no terreno das variáveis cômicas intelectuais. A primeira é quando se tenta “inserir uma ideia absurda num
modelo de frase consagrada” (BERGSON, 1983, p. 61).
Um exemplo em Allen, seria quando ele diz: “Aquele que não perecerá pelo ferro nem pela
fome, perecerá pela peste, então, pra que se barbear?” (ALLEN, 1975, p. 6)15 Ou: “O leão e a ovelha
poderão dormir juntos, mas a ovelha não conseguirá pegar no sono” (ALLEN, 1979, p. 28). Ou quando Allen apresenta a lista de candidatos para a autoria das peças de Shakespeare: “Ben Johnson, Sir
Francis Bacon, Rainha Elizabeth e talvez até um sujeito chamado Old Vic”(ALLEN, 1979, p. 159)16 –
todas as possibilidades são críveis, mas a última é absurda.
Outra variante cômica intelectual é quando algo empregado no sentido figurado é levado a
sério literalmente. Seria a rigidez mecânica intelectual. Bergson explica: “desde que nossa atenção se
concentre na materialização de uma metáfora, a ideia expressa torna-se cômica” (BERGSON, 1983, p.
62). Por exemplo, na famosa frase de humor “alleniano”, “Colei na prova de metafísica. Olhei para a
alma do colega que estava sentado a meu lado” (LAX, 1991, p. 149).
Obtém-se também comicidade quando, numa frase, o foco é deslocado para outro ambiente.
Em Annie Hall, quando o menino está no psicólogo com a mãe – pois está deprimido com a expansão
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do universo – a mãe lhe diz: “E o que você tem com isso? Você está no Brooklyn, e o Brooklyn não está
se expandindo!” (ALLEN, 1982, p.5)
Bergson exemplifica que “a expressão de coisas antigas em termos de vida moderna produz o
mesmo efeito, por causa da aura de poesia que envolve a Antiguidade Clássica” (BERGSON, 1983, p.
66). Lembramos então do coro grego de Mighty Aphrodite, de Allen, em Taormina, que insere problemas triviais da vida dos nova-iorquinos, cujos filhos “crescem e movem-se para lugares ridículos
como Cincinatti ou Boise, Idaho, e você nunca mais os vê...” (ALLEN apud NICHOLS, 2000, p.197.
Tradução da autora)17.
Outro bom exemplo em Allen é quando temos o famoso monólogo “Ser ou não ser” feito pelo
bobo da corte em Everything that You Always Wanted to Know about Sex – but Were Afraid to Ask
(Tudo que você sempre quis saber sobre sexo - mas tinha medo de perguntar, 1972). Este personagem,
inclusive, anda com uma marionete nas mãos, o que nos remete à teoria de Bergson de imitação paródica. Transcrevemos este monólogo no capítulo sobre Shakespeare em Allen.
Bergson utilizou o termo “transposição” quando uma repetição se dá em termos de linguagem
e não de situações.A transposição de tom de uma ideia filosófica séria, de um conceito religioso, que
termina em algo trivial, profano, degradante, é uma diferença entre início e fim que fazem o riso mais
intenso: “Não apenas não há Deus, mas tente encontrar um bombeiro nos fins-de-semana”; ou então:
“O universo é meramente uma ideia transitória na mente de Deus – um pensamento bem desconfortável, particularmente se você acabou de pagar a prestação de uma casa”(ALLEN, apud SPIGNESI,
1992, p. 96)18. Para Kant, neste caso, há uma criação de expectativa e uma conclusão surpreendente,
que suscitaria o riso. Kant dizia: “o riso advém de uma espera que dá subitamente em nada.”(KANT
apud BERGSON, 1983, p. 49) Ou como disse Marshall Brickman, colaborador de Allen, “uma piada é
algo que traz em si um pouco de surpresa, um pouco de verdade e uma conexão invisível entre essas
duas coisas”. (LAX, 1991, p. 257)
Há também o caso, continua Bergson, da “própria linguagem que se torna cômica”. Pode-se
traduzir uma língua, mas “não o efeito que ela cria” (BERGSON, 1983, p.57). Esse é o problema de
traduzir comédia de uma cultura para outra, pois estas diferem em termos de associação de ideias, de
costumes, e ainda poderíamos acrescentar, de acontecimentos políticos. Melhor dizendo, a estrutura
da frase e a escolha das palavras não se traduzem. Isso acontece, por exemplo, em certas traduções
de peças e textos de Allen do inglês para o português. Muito se perde, em termos culturais. O filme
What’s Up, Tiger Lily? (O que é que há, Tigreza? ,1966), de Allen, é todo ele uma grande sátira à
tradução de filmes. Allen chegou a escrever um sketch cômico também, Sdelka(2009), sobre mal-entendidos causados por um intérprete de inglês na Rússia.
Já no risível das situações, continua Suassuna, Bergson classifica repetições, inversões e interferências. Na repetição, diz Suassuna, “uma série de acontecimentos aparece, desaparece e reaparece,
num ritmo mais ou menos regular, dando uma ideia de teimosia mecanizada” (SUASSUNA, 1979, p.
146).
Hösle dá um exemplo quanto à repetição: lembra Casino Royale (1967), quando Jimmy Bond
consegue escapar de uma execução de um pelotão de fuzilamento ao pular um muro, só para encontrar do outro lado outra esquadra armada trabalhando”. (HÖSLE, 2007, p. 21)
Em Oedipus wrecks (Édipo arrasado), episódio de New York Stories,temos um bom exemplo
para a inversão. A inversão é quando o feitiço vira-se contra o feiticeiro. Vemos o personagem de Allen (Sheldon), no início, dizendo a seu psiquiatra que gostaria às vezes que sua mãe desaparecesse. E
é isso literalmente que vai acontecer no show de mágica em que ele leva sua mãe judia. Só que ela vai
reaparecer no céu, e contar a vida íntima dele para toda a metrópole. Quando ele finalmente encontra
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uma namorada que sua mãe aprova, a velhinha materializa-se novamente.
Já a interferência é quando “uma pessoa [...] está numa série de acontecimentos e outra pessoa
noutra. As duas séries se cruzam e, por algum equívoco, cada pessoa julga que a série da outra é a
mesma sua” (SUASSUNA, 1979, p. 147), nos explica Suassuna. Vamos buscar em Allen um exemplo,
na cena onde o personagem Baxter, em The Purple Rose of Cairo encontra a prostituta:
EMMA: Oi, garotão. […] Tá sozinho?
TOM: Oh, oi. Anh, bem, eu, ahh, eu estou sozinho agora mas, ahh, mais tarde eu
tenho um compromisso, ou, ahh, deveria dizer rendezvous?
EMMA: Que bom pra você.[…]
TOM: Bem, ahn…quem é você?
EMMA: Meu nome é Emma.
TOM: Oh, adorável. O que você faz, Emma?
EMMA: Sou garota de programa.
TOM: E o que você faz, criatura delicada?
EMMA: Qualquer coisa que dê um trocado.
TOM: Bem, nós Baxters nunca realmente tivemos de nos preocupar com dinheiro.
EMMA: Aposto. Quer vir comigo?
TOM: Para onde, Emma?
EMMA: Pra onde eu trabalho. Acho que você poderia se divertir.
TOM: Soa encantador. Estou aberto a novas experiências.
EMMA: Eu posso ser capaz de ajudar. (ALLEN, 1987, p. 420-422).20
A cena nos soa cômica porque a personagem quixotesca de Baxter – que se apresenta inclusive
como “explorador, poeta, aventureiro” – já nos é conhecida por sua ingenuidade frente ao mundo real,
pois veio do universo de celuloide, ou, como diriam os americanos, de Tinseltown21. Inclusive quando
ele diz que os Baxters não se preocupam com dinheiro, é porque ele só utiliza o dinheiro do cinema,
que tanto vem como vai, e que ele acredita valer no mundo real. Como a prostituta Emma desconhece
completamente estes fatos, interpreta literalmente quando ele fala de “rendez-vous”, ou de estar “aberto a novas experiências”, por exemplo. Aí está estabelecida a comédia. Um personagem totalmente
ingênuo e irreal, e uma prostituta cínica e realista.
Hösle acrescenta à lista de atributos cômicos de Bergson caretas, mascaradas, a mente mais
poderosa que o corpo, a reificação de pessoas, insociabilidade, obstinação, distração: “Todos esses
fenômenos, a maioria dos quais têm um papel importante em Allen, são revisados por Bergson e
conectados pela ideia comum de que todos violam a essência da vida”. (HÖSLE, 2007, p. 20)22. O
corpo pequeno de Allen, que sustenta aquela grande cabeça, não tem a desenvoltura de um Chaplin,
quando, por exemplo, ele quer tocar violoncelo numa banda de música, tentando assentar-se numa
cadeira durante uma parada. A insociabilidade e a obstinação são características da persona alleniana.
Por exemplo, em Manhattan, quando ele fica furioso com Mary porque ela não gosta dos seus artistas
prediletos.
Ele também fala de retribuição, e nos lembra “O Episódio Kugelmass”, o conto mais premiado
de Allen:
O mágico, incapaz de resolver os problemas pessoais que ele causou a Kugelmass
trazendo Mme. Bovary para Nova York, diz, ‘Eu sou um mágico, não um analista’.
Nós rimos porque lembramos do desespero do analista que não podia ajudar KuPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 46-61. 2015
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gelmass: ‘Eu sou um analista, não um mágico.’ (HÖSLE, 2007, p. 22)23
Woody Allen, que estudou dramaturgia com Lajos Egri, autor de The Art of Dramatic Writing,
fala sobre o conflito na comédia:
“A comédia, como qualquer outro gênero teatral, precisa de um impulso interior. O impulso
vem da própria história e explode em situações que se tornam engraçadas mesmo quando as falas são
sérias. O que importa é o arranjo, não as lantejoulas”. (LAX, 1991, p. 243)
Allen também admite que a mistura ideal, padronizada pelos dramaturgos, é de ‘caos e eros’: “O caos
ou é excitante ou é divertido, enquanto o eros é fascinante. [...] Se você tiver o caos puro, também
terá a farsa. [...] Mas, a meu ver, a combinação é das mais adequadas.” (BJÖRKMAN, 1995, p. 207).É
essa mistura talvez o segredo da catarse em suas comédias românticas, como Annie Hall, Midsummer
Night’s Sex Comedy, Ever ything You Always Wanted to Know about Sex, Mighty Aphrodite, dentre
outras, onde o amor sensual é um descanso no caos, como num filme dos irmãos Marx.
Nesta entrevista a Björkman (1995, p.131), Allen admite que existe um elemento de hostilidade quando se diz que um comediante “matou a plateia de rir”. Nazario (1999, p.67-68) comenta que “a
missão do cômico é libertar-nos da lógica mesquinha da realidade, satisfazendo nosso sadomasoquismo reprimido pela provocação de sonoras gargalhadas.” Nazario (1982, p.15) completa ainda que
[...] é preciso que não haja diferença de essência entre a comicidade e o sadismo,
para que a passagem se realize. De fato, a característica comum ao cômico e ao
sádico é a estrutura psíquica totalitária. Os cômicos parecem inocentes porquanto
sobrevivem às catástrofes que desencadeiam, gozam da destruição de que participam e tiram da hecatombe lições de segurança.
Segundo ele, existe uma antiga comédia, protagonizada, por exemplo, pelos irmãos Marx,
onde há a subversão da ordem – e uma nova comédia, onde os primeiros filmes de Allen se encaixam,
e que não tem uma preocupação social.
Para Yacowar, porém, Allen dramatiza as várias funções da comédia. Ela pode descobrir uma
verdade ou uma emoção que o enunciador desconhece. A comédia pode liberar uma tensão causada
por inibições sociais ou pessoais. Há um espírito de comunidade na comédia:
Allen vê o comediante da maneira como Shelley via o poeta – como um legislador inconsciente da humanidade. A comédia confronta as mais profundas tensões,
prepara o espírito para a simpatia e a compreensão, e é a atividade compulsiva
daqueles que sentem as coisas mais intensamente. (YACOWAR, 1979, p. 71)24
odiava o teatro. Ele diz então que odeia, e também odeia ver sangue, mas que o sangue está em suas
veias. Isso, segundo Rivet, “poderia perfeitamente se aplicar à persona Woody27 – e talvez mesmo ao
próprio Allen, que têm um relacionamento paradoxal com seus ambientes e interesses na vida.” (RIVET In: KING, 2001, p. 26).28
“Eu não gosto de Chaplin como comediante. Algum trabalho seu é superior, um diretor de
primeira, ele tem pathos, mas os irmãos Marx são mais engraçados” (ALLEN apud TERKEL, 1965)29 ,
expressou Allen sua opinião em entrevista. Em outra entrevista dois anos mais tarde, ele justificou que
é o indivíduo, o personagem engraçado, que interessa: “você pode colocar o pior material nas mãos de
W. C. Fields ou Groucho Marx e será engraçado.” (ALLEN apud WILDE, 1967).30
Hösle ainda acrescenta que a personalidade cômica tem uma capacidade de rir de si mesma:
“ao fazê-lo, ela se une aos espectadores ou leitores, e eles estão muito mais propensos a se identificarem com ela e então rirem com ela, não dela.” (HÖSLE, 2007, p. 14).31 Ele dá o exemplo de Falstaff: nós
rimos algumas vezes dele, e algumas vezes com ele, particularmente quando ele se une às pessoas que
estão rindo. “Nesse aspecto, a persona Woody é relativamente próxima de Falstaff ”, diz Hösle (2007,
p.14).32
Ele continua teorizando que, por causa desse crescente autoconhecimento, o herói cômico é
mais individualizado do que o sujeito de uma sátira:
Comédias satíricas podem ter títulos indicando uma qualidade abstrata (como em
O Misantropo de Molière), ou os nomes das pessoas podem ser, como em Volpone,
o de um animal (Dr. Lupus) – o mesmo nome de um cirurgião plástico em Celebridade (1998, de Allen).33 (HÖSLE, 2007, p. 15. Nota final da autora).
Enquanto a sátira tem um alcance mais social, a ironia nos inclui, rimos de nós mesmos. Schoppenhauer dizia que “a ironia é diversão escondida na seriedade, e o humor é a seriedade escondida
atrás da diversão.”(SCHOPPENHAUER Apud HÖSLE, 2007, p. 16). Sigmund Freud já dizia que o
humor era o processo defensivo mais elevado:
Ele desdenha retirar da atenção consciente o conteúdo ideacional que porta o
afeto doloroso, tal como faz a repressão, e assim domina o automatismo de defesa.
Realiza isto descobrindo os meios de retirar a energia da liberação de desprazer,
já está em preparação, transformando-o pela descarga em prazer. (FREUD, 1996,
p. 216)
Ou como diz Nazario (1999, p. 49), “a gargalhada é uma fuga bem sucedida que exala o deleite
da impotência ante a catástrofe que se anuncia”.
De acordo com Hösle, “Allen recupera uma totalidade do cômico que havia sido perdida pela
arte erudita – com exceções tais como Rabelais e, em algumas de suas peças, Shakespeare – por mais
de dois milênios.” (HÖSLE, 2007, p.7)27 Acreditamos que aqui ele exagera, pois se esquece de Molière
e também de Chaplin, antecessores de Allen, além de tantos outros diretores-autores-atores de comédia.26
No entanto, Chaplin e Allen têm ainda mais um ponto em comum. Rivet nos lembra o episódio em que Calvero, interpretado por Chaplin em Limelight (Luzes da ribalta, 1952) diz, ao entrar no
palco pela última vez, que pertencia àquele lugar. Terry, a bailarina, responde que ela pensava que ele
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1. (No original): “Great humor is intellectual without trying to be”.
et de l’objet téléguidé qui substitue des signes optiques et sonores aux signes sensori-moteurs. Ce
n’est plus la machine qui se dérègle et devient folle, comme la machine à nourrir des Temps Modernes,
c’est la froide rationalité de l’objet technique autonome qui réagit sur la situation et ravage le décor.”
2. (No original): “He draws the line between comedy and tragedy […] drama extended, heightened,
enriched and exaggerated.”
13. (No original): “like many an odd-looking comic before him, described himself as ‘basically a
stud’.”
3. (No original): [...]when Oedipus puts out his own eyes and banishes himself to the desert, in his
way off […] on his way out of town, passes another blind guy who has killed his father and married
his mother, the situation becomes comedic. Why is that? Because we can’t handle the idea of two
Oedipuses! The awfulness and pain is too much to bear, and so we laugh.”
14. http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_awards_and_nominations_received_by_Woody_Allen
4. (No original): “Oedipus Wrecks [...]is about a man who attempts to deny his origins, but fails
to do so. It thereby echoes Sophocles’ ancient drama. The character that Allen plays is responsible
for making his mother disappear just as Oedipus commits patricide, but, in each case the parent
nevertheless looms large in the child’s life.”
16. Ruy Castro traduz Homestead Act(ato de propriedade rural) não literalmente, mas faz uma
transcriação (termo cunhado por Haroldo de Campos) para o nome de um teatro elisabetano. Conto
“Mistérios da Literatura”.
Notas de rodapé
5. (No original): “opens [us] up to the heroic in reality […] a mask beneath which a vulgar creature
moves.”
6. (No original): “Before comedy, there was tragedy. […]Laughter is actually an evasion of despair.
We’re all staring into the jaws of death, and we spend most of our lives trying not to think about it.
[…] Ultimately, the joke is on us because we die anyway.”
7. Moving Image Section – Library of Congress – The Dick Cavett Show – 1977 _ (no original): “If
you want to sleep at night, you can read it. But it doesn’t translate into comedies, though.”
8. Parábase é uma abertura das peças gregas, uma espécie de prólogo tanto da comédia quanto da
tragédia.
9. (No original): “One has only to read the parabasis of some of Aristophanes’ comedies or the
prologue to Ben Johnson’s Volpone to see how disgust at cheap humor is an essential characteristic
of great comedians.”
10. (No original): “the comic purifies the pathos-filled emotions, and conversely the pathos-filled
emotions give substance to the comic. […] Vis Comica (comic powder) is the most responsible weapon
and thus is essentially present only in the hands of someone who has a fully equivalent pathos. […]
But anyone who wants to use indignation and does not have the corresponding vis comica will readily
degenerate into rhetoric and will himself become comic.”
11. (No original): “The point of view that ours must be continuous with in comedy is not the character’s,
but the author’s.”
12. (No original): “Ce n’est plus l’ âge de l’outil ou de la machine, tels qu’ils appairassent dans les
stades précedents, notamment dans les machines de Keaton.[…] C’est le nouvel âge de l’electronique,
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15. (No original) “Celui qui ne périra par le fer, ni par la famine périra par la peste, alors, à quoi
bon se raser?”
17. (No original):“…growing up and moving out, to ridiculous places like Cincinnati or Boise, Idaho.
Then you never see them again…” (Coro de Poderosa Afrodite).
19. (No original): “Not only there is no God, but try getting a plumber on weekends.”[…] “The
universe is merely a fleeting idea in God’s mind, a pretty uncomfortable thought, particularly if
you’ve just made a down payment on a house.”
20. (No original): “Casino Royale, when Jimmy Bond manages to escape execution by a firing squad
by jumping over the wall, only to find on the other side another firing squad at work.”
21. (No original): “EMMA: Hi, big boy. […]You alone?TOM: Oh, hello. Uh, well, I’m, uh, I’m alone
for now but, uh, later I have an appointment, or, uh, should I say rendezvous?EMMA: Good for you.
[…]TOM: Well, uh, who are you? EMMA: My name’s Emma. TOM: Oh, that’s lovely. What do you
do, Emma?EMMA: I’m a working girl. TOM: And what do you do, you delicate creature?EMMA:
Anything that will make a buck. TOM: Well, we Baxters never really had to worry about money.
EMMA: I’ll bet. You want to come along with me?TOM: Where to, Emma?EMMA: Where I work. I
think you might have a good time. TOM: Sounds enchanting. I’m up for new experiences. EMMA: I
may be able to help.”
22. Os angelinos apelidam ironicamente Los Angeles como Tinseltown (cidade de celuloide), ou “La
La Land”, assim como chamam os moradores de Hollywood “hollyweird”, isto é, “esquisitões”.
23. (No original) “All these phenomena, most of which play an important role in Allen, are paraded
in review by Bergson and connected by the common idea that they all violate the essence of life.”
24. (No original) “The magician, unable to solve the personal problems he has caused Kugelmass
by bringing Mme. Bovary to New York, says, ‘I’m a magician, not an analyst’, we laugh because
we remember the desperate remark of the analyst who could not help Kugelmass: ‘after all, I’m an
analyst, not a magician.”
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25. (No original):“Allen views the comedian the way Shelley regarded the poet – as the unacknowledged legislator of mankind. Comedy confronts the deepest tensions, it prepares the spirit for sympathy
and understanding, and it is the compulsive activity of those who feel things the most intensely”.
26. No original): “Allen recovers a fullness of the comic that had been lost by high art – of course
with exceptions such as Rabelais and, in some of his plays, Shakespeare – for more than two millennia.”
34. (No original): “Satiric comedies may have titles indicating an abstract quality (as in Molière’s
The Miser), or the names of the persons may be […] as in Volpone, where a Doctor Lupus (an animal)
– is mentioned, the same name given to the beauty surgeon in Celebrity.”
Recebido em 7 de agosto de 2014.
Aprovado para publicação em 18 de outubro de 2014
27. Inclusive ironicamente suas vidas pessoais tornaram-se escândalos por casamento com mulheres
30, 40 anos mais jovens.
28. É em Diane Jacobs que pela primeira vez vemos a separação entre o criador, o artista ‘Allen’ do
personagem criado por ele, a “persona” ‘Woody’.
29. (No original): “This could easily apply to Allen’s persona – and maybe to Allen himself – who
have a paradoxical relationship with their environments and interests in life.”
30. Entrevista concedida a Studs Terkel em 1º de junho de 1965; 24’30”; Recorded Sound Research
Center – Library of Congress: (no original) “I don’t like Chaplin as a comedienne. Some of his work
is superior, a prime time director, he has pathos, but the Marx Bros. are ‘more funny’.”
31. Entrevista concedida ao compositor Larry Wilde para um livro, em Janeiro de 1967. 55’. Recorded Sound Research Center: (no original) “You can take the worst material and put it in the hands of
W.C. Fields or Groucho Marx and it will be funny.”
32. (No original): “In doing so she joins the spectators or readers, they are much more prone to identify with her and thus laugh with her, not at her.”
33. (No original): “In this aspect the Woody persona is, as we will see, closely related to Falstaff.”
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O dito e o visto: um jogo de diáologo entre o eu e o outro
Said and Seen: a dialogic game between me and the other.
Terezinha de Jesus Bellote Chaman*
*Doutora em Serviço Social e em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista, câmpus de Franca e Buru(SP), professora de português, especialista em Linguística do Texto, pesquisadora do GEPEFA - Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Famílias – Unesp de Franca, Franca (SP).
Resumo
Analisando o jogo dialógico entre o eu e o outro, que perpassa a obra “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, comento, de um lado, como o texto ancora a imagem e pode indicar um nível correto de leitura. A isso
Barthes nomeia interação; de outro lado, mostro como a imagem, em função complementar, ilumina o texto, dando-lhe maior vida e expressão. Por derradeiro, quer queiramos, quer não, “as palavras e as imagens revezam-se,
interagem, complementam-se e esclarecem-se com uma energia revitalizante” (Joly, 2003, p. 33). Assim, fica claro
que quanto mais se trabalha sobre as imagens, mais se gosta das palavras. E nesse jogo texto/imagem, emerge o
implícito da obra: a sabedoria do encontro eu versus o outro, numa dimensão tridimensional.
Palavras-chave: Texto; Imagem; Diálogo; Complementaridade; Sentido.
Abstract
Analyzing the dialogic game between me and the other present in the whole of Little Prince by Saint-Exupéry, on
one hand, we can see how the text supports the image and how it directs itself to a right level of reading, that is
interaction, according to Barthes; on the other hand, we can show how the image, with a complementary function,
illuminates the text giving it more life and expression. Finally, whether we want it or not “the words and the images
take shifts, interact, complement each other and reveal themselves with a revitalizing energy” (Joly, 2003, p.33). So,
the more we work on the images, the more we enjoy the words. And in this game text/image, the knowledge of the
encounter between me and the other emerges from the text as tridimensional.
Keywords: Text; Image; Dialog; Complementarity; Meaning.
Introdução
Definindo texto, assim se pronuncia Ingedore V. Kock: “Trata-se, necessariamente, de um
evento dialógico (Bakhtin), de interação entre sujeitos sociais – contemporâneos ou não, co-presentes
ou não, do mesmo grupo social ou não, mas em diálogo constante.” Falando sobre palavra e imagem,
Godard assim se manifesta: “São como cadeira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, precisa de
ambas.” Se a contemporaneidade aponta para a civilização da imagem; se a declaração parte de um homem de imagens que reconhece a especificidade e complementaridade de cada uma das linguagens,
não há o que temer quanto ao desaparecimento da civilização do escrito.
A leitura é uma atividade multifacetada: é complexa, é plural. Gilles Thérien (1990, p.1-4)
“Pour une semiotique de la lecture” [“Por uma semiótica da leitura”] propõe cinco dimensões no
processo leitural: neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico.
Sabe-se que a argumentatividade permeia todo o uso da linguagem humana e está presente em qualquer tipo de texto, não apenas nos classificados como tal. E é essa dimensão que privilegiaremos na
leitura imagístico-textual de O Pequeno Príncipe.
Se a linguagem é constitutivamente dialógica, por natureza (Bakhtin), necessário se faz que se
abra o diálogo com o texto; necessário se faz que se desmonte o texto; necessário se faz que se “rompam” as palavras e se desvendem as imagens. O diálogo metalingüístico só se abre ao se levantar o véu
do dito e do visto, ao perscrutarmos-lhes os sentidos mais ocultos, ao buscarmos, até sofregamente, o
percurso figurativo (isotopias) do texto.
Na desconstrução do texto como produção de sentido, vai-se construindo uma rede de significações, vai-se trançando significados. Vai-se mergulhando na essência das palavras e das imagens.
Vai-se penetrando na “pretensa neutralidade” do discurso do texto narrado (no caso fábula, alegoria
e/ou parábola) e levantando-se o véu que revela o fortíssimo argumento da tridimensionalidade do
homem. Se a leitura naïve, a mais realizada, direciona o livro às crianças, a leitura crítica coloca-a entre as leituras para adultos, ou melhor dizendo, para a criança que deve ou deveria fazer morada nas
pessoas grandes. E no ir e vir, entre a desconstrução e o desvelamento, entre a análise detalhada e a
síntese, nas sucessivas releituras, surge a clara essência do jogo texto-imagem: o ser humano é um ser
da comunicação. E comunicação não apenas no macrodomínio dos seres brutos, dos seres orgânicos,
do homem. Mas no macrodomínio do homem em relação triádica: 1º) com o homem (consigo mesmo): 2º) com o outro (sensações, desejos, afetos, pensamentos); 3º) com o mundo (infinito, metafísico
e/ou transcendente). É a apologia do grande diálogo, que ultrapassa o sentido individual e proclama
seu sentido antropológico (alteridade), a necessidade de ir ao encontro do outro, num processo conscientemente argumentativo: racional/emotivo de busca, de autocultivo, de sofrimento, de aprendizagem, de sabedoria, de autorrealização, de felicidade, de encontro e de espera. Eis a razão pela qual
elegemos a dimensão argumentativa como estrela-guia para a desconstrução da obra. Eis porque acreditamos na dimensão tridimensional, que subjaz às palavras e às imagens desta pesquisa. E por nela
crermos, afirmamos, com Friedrich Nietzche, ao avançar na tese de que a comunicação guarda uma
estreita correlação com o aparecimento da consciência: “a consciência é uma rede de comunicação
entre os homens”. E, com Luiz C. Martino, reiteramos: tal formulação indica corretamente a natureza
do processo comunicativo como um fenômeno de consciência, fenômeno simultaneamente coletivo e
individual.
Desenvolvimento
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Construamos a rede de significações, objetivando a tridimensionalidade do homem, não nos
esquecendo de que: o seu olhar só pode estar aberto à recepção da leitura imagístico-textual, se o seu
coração estiver aberto. Lembremo-nos das palavras de Iser (1996): a obra é o ser constituído do texto
na consciência do leitor. A obra, enquanto literária, ainda não existe até ser ativada pelo leitor. Mas
não nos esqueçamos de Derrida: “Um texto só é um texto se ele oculta, ao primeiro olhar, ao primeiro
encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo” (1991, p. 7). “A dissimulação da textura, pode,
em todo caso, levar séculos para desfazer seu pano” (p.7). Quantos nós a serem desfeitos, quantas
ambiguidades! Quanto inscrito atrás do dito e do visto! Quanto! A leitura é um rio sem discurso, se
eu não juntar as partes. Se junto texto-imagem, constrói-se o diálogo. Nesse diálogo constrói-se o
sentido. Reiteramos com Godard: palavra e imagem são como cadeira e mesa.
Arregacemos as mangas. Vamos aos vazios do texto. Só o diálogo com ele pode preenchê-los. Localizemos o que é implícito, subliminar, visando sempre ao que se propõe na pesquisa: a tridimensionalidade do homem.
1ª DIMENSÃO: o relacionamento do homem consigo mesmo.
O autocultivo (autoconhecimento) gera instrução, que leva à sabedoria do relacionamento
com o outro. O acendedor de lampiões é o único que podia ter sido seu amigo, mas havia o Outro, o
Regulamento, representado pela Ideologia.
O sentido nasce da diferença que os distancia: a fidelidade como falta de liberdade (acendedor
de lampiões) não interessa ao Pequeno Príncipe. Sua fuga já havia sido fruto do conflito com a rosa. Aí
observamos termos subjacentes às figuras e que predicam o mundo. Vamos desvendando cuidadosa e
seguramente os sentidos que estão, reiteramos, inscritos no dito e no visto: flor, rei, vaidoso, bêbado,
homem de negócios, acendedor de lampiões, geógrafo, serpente, uma flor, montanha, jardim de rosas,
raposa, guarda-chaves, vendedor. Através do percurso figurativo (isotopias) vamos cautelosamente
“desmanchando” a organização textual: continuidade X descontinuidade. Do concreto (figuras) passamos ao abstrato (tema), entrelaçando o figurativo ao temático. Canalizamos a atenção para a contradição evidente do discurso do acendedor de lampiões. Vamos além: somos induzidos a perceber a
superioridade intelectual do discurso da raposa. Fica clara a oposição temática entre o convencimento
pela razão, e a persuasão, pela emoção (raposa). O trabalho do acendedor é útil, mas fá-lo destruir-se,
morrer, pois considera-o terrível. Escravo de uma estrutura que o oprime, o esmaga e o aflige impiedosamente.
A raposa evoca amor e respeito, silêncio e olhar, serviço e espera... vida e construção e assim
cativa o Pequeno Príncipe e vice-versa. Usa seus dons (malícia, astúcia) numa argumentação positiva,
para o bem.
2ª DIMENSÃO: o relacionamento com e para o outro
O Pequeno Príncipe aproxima-se do aviador já com sabedoria, maturidade “só se pode ver
bem com o coração”. Ambos “inter-agem”, num processo dialógico, prevalecendo o silêncio do menino, mas com atitudes fortes, determinadas, de quem sabe o que quer, de quem tem já decisão,
autodeterminação, de quem já tem autoconhecimento e busca, na interação com o outro, o encontro
do outro consigo mesmo. O sentido nasce da diferença do conflito eu X outro. A dinamicidade dos
sentidos que se aproximam e se afastam é muito bem aproveitada, no texto, pelo Pequeno Príncipe, já
que o silêncio dele revela eloquência e as palavras do aviador são vãs, muitas vezes. “A consciência que
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tenho de mim passa pela consciência que o outro tem de mim”, já o diz Bakhtin.
E no tecido do texto, desmontado, não tomado como um produto, acentua-se agora, evocando
Barthes, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha, através de um entrelaçamento perpétuo. E,
nesse ir e vir constante emerge o grande encontro: eu X outro. A alteridade que liberta o homem, pois
que como espelho, fá-lo ver-se a si mesmo, através do outro. O pequeno grande príncipe e o aviador:
conflituados e encontrados... mas só a dor faz ver, só a dor levanta o véu do sentido oculto nas mínimas redes do texto, no jogo linguístico das isotopias, no jogo linguístico do texto e da imagem, na mistura de continuidade e descontinuidade. O texto é plástico, como o é o desenho. O discurso fabular é
colocado a serviço do outro e dos outros, fazendo o texto transbordar sua natureza plural. Atrevo-me
então a ler e a ver na falta da imagem do rosto do aviador um traço do grande Outro (Ideologia) que
o tornou assujeitado, sem vontade de expressar emoções, mas apenas de controlá-las, como muito
sabiamente cita Massimo Canevacci (2001, p. 130): “O rosto como espelho da alma. Com o vício ou
a virtude da identidade de cada um. Como condenação que exibe publicamente nossa verdade mais
interior e particular”. O aviador é o homem sem rosto, nervoso, preocupado, incrédulo (aposta no
motor), busca o Pequeno Príncipe porque necessita da água do poço, confronta-se com o pequeno
homem, que tem olhos de ver, é crédulo, aposta na esperança de achar o poço, é determinado, sábio,
parece conhecer o caminho, não desiste e leva o outro a acompanhá-lo. É o serviço de quem quer
convencer e persuadir. Como lembra Antônio S. Abreu: “Argumentar é, pois, em última análise, a arte
de gerenciando informação, convencer o outro de alguma coisa no plano das ideias e de, gerenciando
relação, persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que desejamos que ele faça”.
E contra toda expectativa, o aviador consegue realizar o conserto. O que parecia impossível
torna-se realidade. É o processo de transformação. O homem sem rosto precisou parar e consertar os
estragos que os reveses da vida deixaram como marcas. A pane foi para ele o momento de autocultivo
e de possibilidade de conhecimento de si mesmo e do outro, de modificar o olhar, de saber separar o
que é essencial do que é acidental, de não ser escravo de condicionar-se às expectativas dos outros, de
mudar o regulamento, de humanizá-lo, de assumir o rosto do jovem pequeno e sábio príncipe. “O sujeito é, pois, conscientemente, aquele que carrega um rosto que é a expressão da alma” (Canevacci, p.
129). “A linguagem do corpo, na era da comunicação visual é, essencialmente, a linguagem do rosto”
(idem, p.131). Agora ele pode ter o rosto do amigo, o rosto que é a alma do Pequeno Príncipe. E chora,
porque cativou-se, criou laços, porque só se pode amar o que se conhece.
É o clímax do encontro eu X outro: o encontro que culmina na liberdade, na ausência de conflito.
3ª DIMENSÃO: o relacionamento do homem com o infinito, o metafísico e/ou transcendente.
Por origem e por destino, o homem integral parece ser tridimensional. Somos oriundos do
céu, como aquele menino louro?
A Fonte, e não apenas uma fonte qualquer é o princípio e o fim. Segundo o aforismo de Karl
Krauss, a origem é a meta. Precisamos voltar ao começo para resolver nosso paradoxo, muito bem o
diz Cavenacci. A fuga ao obstáculo, a busca, porque sem o esforço da busca é impossível a alegria do
encontro. Você e eu, como o aviador e o Pequeno Príncipe somos desafiados a procurar uma fonte,
uma fonte em pleno deserto. O silêncio do Pequeno Príncipe faz silenciar o aviador, que silenciando
as palavras faz romper a emoção, o sentido da busca, o sentido da vida. Vida que só tem sentido nas
dimensões exploradas pela obra: o plano vertical é ascético, e é assim que o Pequeno Príncipe permanece ao longo do texto; o plano horizontal é ação, e é assim que encontramos o Pequeno Príncipe
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ao final da obra, numa perfeita e paradoxal harmonia de verticalidade X horizontalidade. O Pequeno
Príncipe tomba devagarinho como uma árvore, já que a árvore tomba e permanece útil, transformando-se em madeira, utensílios, fogo para aquecer, adubo para a terra.
Metaforicamente, a árvore cresce e se transforma na vertical ... e após servir, tomba na horizontal e continua a servir: a origem é a meta.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe (com aquarelas do autor). Trad. Dom Marcos
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& Ciência Villipress, 20
Conclusão
Por derradeiro, as reflexões feitas apontam para a clara argumentatividade que permeia a obra,
a despeito da pretensa neutralidade do autor. Texto e imagem harmonizam seu discurso, numa relação de interação e complementaridade. O olhar e o ouvido do leitor são provocados pelo jogo imagético-linguístico que aflora no texto. Embora reconheçamos a especificidade de cada linguagem, vemos
no processo de interação e complementaridade como o texto ancora a imagem e como esta ilumina o
texto, provocando e instaurando o sentido. Texto e imagem revelam na obra o projeto para o homem:
dobrar-se sobre si mesmo, conhecer-se e “explodir” em direção ao outro, dando substância ao que o
Infinito sonhou para ele, emergindo assim a importante relação tridimensional no macrodomínio do
HOMEM.
Recebido em 5 de agosto de 2014.
Aprovado para publicação em 17 de novembro de 2015
Referências
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Rui e o ensino do desenho no Brasil
Rui and the teaching of drawing in Brazil
Wilson Barbosa Alves* & Cláudio Silveira Amaral**
*Professor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Paulista, campus de Araçatuba ,SP e mestrando no Programa de pós-graduação pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, FAAC, da Universidade Estadual
Paulista, Unesp, câmpus de Bauru, Bauru(SP).
**Pós-doutorado pela Ruskin Library and Research Centre na Universidade de Lancaster ,United Kingdon, bolsa
FAPESP (2013); doutor e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo(FAU) da Universidade de São Paulo(USP) (2005); Arquiteto e Urbanista pela FAU-PUCC (1979); professor e pesquisador de História, Teoria e Projetos
de Arquitetura no Curso de Graduação e Pós-Graduação da FAAC-UNESP, campus de Bauru - SP.
Resumo
No século XIX países da Europa realizavam experiências em educação utilizando o ensino do desenho como forma de qualificação profissional para o seu desenvolvimento industrial. O Brasil, por sua vez, sob essa perspectiva,
através de Rui Barbosa apontava, por meio de sua proposta de Reforma do Ensino Primário, as vantagens que o
conhecimento do desenho traria à nossa indústria (projeto de Rui de transformar o país em agrário para industrial), entre elas, a valorização das profissões industriais. Entretanto, essa proposta, iniciada no Rio de Janeiro,
não seguiu adiante. O início da história do ensino do desenho foi perdido entre desvios e amnésias de nossa tradição. O presente artigo de pesquisa procura resgatar a origem do ensino do desenho no Brasil.
Palavras-chave: Pareceres de ensino de Rui Barbosa; A história do desenho; Ensino do desenho no Brasil.
Abstract
In European countries nineteenth century performed experiments in education using the teaching of drawing as a
form of professional qualification for its industrial development. Brazil, in turn, from this perspective, by Rui Barbosa pointed, through its proposal for reform of primary education, the advantages that the design of knowledge
would bring to our industry (Rui project to transform the agrarian country to industrial), including the upgrading
of industrial occupations. However, this proposal, which began in Rio de Janeiro, has not moved on. The early
history of the teaching of drawing was lost between deviations and amnesia of our tradition. This research article
seeks to recover the teaching of drawing the origin in Brazil.
Keewords: Teaching Opinions Rui Barbosa; The history of design; Design Education in Brazil.
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O Brasil do século XIX
O
Brasil no século XIX possuía uma base agrária e escravocrata, e uma das características marcantes, segundo Carvalho (2012), era a elite que se destacava, sobretudo, pela homogeneidade
ideológica como base na educação superior, “a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos”. Sendo o meio eficaz de se preservar a ordem era manter a escravidão como forma de unidade
no país, o que era considerado um compromisso da manutenção da classe alta brasileira.
Segundo dados de Carvalho (2012), como meio de se preservar a ordem, boa parte da elite se
concentravam na formação jurídica na Universidade de Coimbra, em Portugal. A transferência para
Coimbra foi o modo de evitar o contato mais intenso de seus estudantes com Iluminismo francês, que
era considerado politicamente perigoso para a preservação da ordem no país.
A educação em Coimbra era influenciada pelo direito romano, a ocupação burocrática, os mecanismos de treinamento, tudo contribuía para dar à elite que
presidiu à consolidação imperial um consenso básico em torno de algumas opções
políticas fundamentais. Por sua educação, pela ocupação, pelo treinamento, a elite
brasileira era totalmente não-representativa da população do país. (CARVALHO,
2012, p,231)
Os ideais e valores da elite como também as instituições implantadas por ela não representava
naturalmente a realidade do social do país “uma sociedade escravocrata governada por instituições
liberais e representativas; uma sociedade agrária e analfabeta dirigida por uma elite cosmopolita voltada para modelo europeu de civilização”. (CARVALHO, 2012, p.417)
No início dos processos de Independência, formaram-se dois polos distintos de poder político, o primeiro pela continuidade de Coimbra (Portugal), e o segundo com sede no Brasil (São Paulo
e Recife). A constituição de bases superiores no Brasil ainda seguia tendências vindas de Portugal,
conforme a tradição de orientação política para a manutenção da ordem no país, prevalecendo assim
à formação jurídica. No entanto, já surgiam leves tendências ao regionalismo brasileiro.
Carvalho (2012) destaca que o governo central do Império era responsável somente da Educação superior, sendo exceção na Corte, onde se encarregava da educação primária e de algumas instituições de ensino secundário. Porém os gastos nestas áreas eram modestos e mesmo sendo obrigação
do Estado desde Constituição de 1824, bem pouco foi difundida pelas províncias.
O fato é particularmente grave por vigorar, ao mesmo tempo, a convicção de que
a falta de educação era obstáculo sério à verdade das eleições. A eliminação dos
analfabetos do direito do voto, levada a efeito em 1881, não teve como consequência esforço especial para promover a educação primária. Aos poderes provinciais
e locais, na verdade, não interessava aumentar o número dos cidadãos esclarecidos. (CARVALHO, 2012, p. 282)
O Brasil imperial havia um abismo entre elite, na qual a grande maioria possuía curso superior, e a maior parte da população, que era analfabeta. Segundo dados de Carvalho (Carvalho), em
1890 somente 14,80 % da população brasileira era alfabetizada, e anteriormente, em 1872, o número
de alunos matriculados em escolas primárias e secundárias era muito baixo.
De acordo com o Censo de 1872, somente 16,85% da população entre seis e 15
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anos frequentava escola. E havia menos de 12.000 alunos matriculados nas escolas secundárias numa população livre de 8.490.910 habitantes. No que se refere à
educação, não há dúvida de que a elite política não podia ser menos representativa
da população em geral. (CARVALHO, 2012, p.80)
Enquanto a elite buscava sua formação na Europa ou mesmo em escolas tradicionais do Brasil
(São Paulo ou mesmo em Pernambuco), as pessoas com menores recursos deveriam completar sua
educação nos seminários ou em escolas públicas. Escolhendo a seguir uma carreira eclesiástica em
grandes seminários, a carreira militar na Escola Militar ou uma carreira técnica junto à Politécnica ou
Escola de Minas, nas quais era fornecida bolsa de estudos para alunos pobres.
Nota-se uma realidade que retrata uma elite que não tinha o menor interesse em aumentar
o número de cidadãos esclarecidos. O interesse era em manter a ordem através de um sistema que
dependia: da manutenção da educação de poucos e da riqueza agrícola e conservação de uma política
escravocrata. Essa política de ordem será, por sua vez, questionada pela afirmação de Carvalho (2012,
p.275):
“Dependia-se da riqueza agrícola, mas não era ela considerada como caminho ideal para o
desenvolvimento do país.”
A pressão externa
A mão de obra no Brasil era escrava, o que despertou debates intensos em torno desse tema
tanto entre os brasileiros como em países europeus, em destaque a Inglaterra, que inicio uma luta
contra o tráfico de escravos; o motivo era claro: eles não queriam ficar em desvantagem com relação
ao Brasil, pois o trabalho escravo era mais lucrativo.
Esses mesmos ingleses geraram uma pressão sobre o Brasil, e exigiram o fim do tráfico como
condição do reconhecimento diplomático da independência. O Brasil, por sua vez, somente resistiu
às pressões, convencido da pressão política de se extinguir o tráfico. Porém, em um episódio histórico
iniciado 1839 e que prosseguiu até 1842, manifestou-se uma grande pressão sobre Brasil e sua política
escravocrata:
“Como pressão, multiplicou as apreensões de navios brasileiros e portugueses entre 1839 e
1842, provocando grande irritação que se manifestava em incidentes de rua e na imprensa.” (CARVALHO, 2012, p.295)
Sobre árduas pressões, o governo decidiu, em 1848, acabar com o tráfico, iniciando desta forma um conjunto de políticas que, aos poucos, levou à extinção da escravidão.
Apesar da crença de que o país seria afetado economicamente pela consequência da extinção da escravidão, o cenário foi completamente inverso, a escravidão foi tida como economicamente compensadora, pois gerou um grande aumento da imigração a partir 1887 e facilitou a perspectiva de um país
favorável à mudança política. (CARVALHO, 2012)
A nova perspectiva
Com a extinção da escravidão no final do século XIX e o aumento gradativo da população urbana, correspondia 42% da categoria “sem profissão”, houve começo de exigências para uma mudança
que pudesse gerar o desenvolvimento no Brasil, mas surgiam divergências quando discutiam os meios
de fazê-lo.
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A nova perspectiva ficou a cargo do Conselho do Estado para implantação de um modelo
brasileiro de desenvolvimento:
“Em mais de uma ocasião, tiveram os conselheiros oportunidade de manifestar-se a respeito
da liberdade de indústria e de comércio, em geral tomando a Inglaterra como referência.” (CARVALHO, 2012, p.367)
O Conselho de Estado, dito pelas palavras de Carvalho (2012) era o “cérebro da monarquia”.
Os conselheiros eram escolhidos pelo imperador depois de longa passagem por vários postos da administração e da representação política, sendo boa parte pertencente à magistratura. A tendência
dominante de pensamento dos conselheiros estava na importância ao sistema da engrenagem política
do Império.
(...) por sua composição, por constituir um grupo razoavelmente homogêneo em
termos de posição na hierarquia política, pela longa convivência, pelo trato constante com os mais variados problemas da política nacional, ele constitui sem dúvida organização estratégica para se estudar o pensamento da elite política do
império. (CARVALHO, 2012, p.357)
O Conselho era fascinado com o brilho europeu de desenvolvimento, a questão estava centrada: qual seria o meio mais coerente para este processo de desenvolvimento no Brasil?
Fica, no entanto, a pergunta: se havia no Conselho um sentido crítico em relação
à importação de ideias e instituições, se não se tratava de um grupo de utópicos
fascinados com o brilho europeu, por que não se elaborou dentro da instituição, ou
mesmo fora dela, um pensamento mais coerente sobre qual deveria ser o caminho
brasileiro de desenvolvimento? (CARVALHO, 2012, p. 374)
Por sua vez, a elite intelectual do país iniciou uma campanha pela reforma do ensino, onde acreditava
que “chave” deste desenvolvimento estava na educação, e eles manifestaram insatisfação por parte
deficiência dos ginásios, e das escolas superiores que exigiam a matrícula daqueles que não tinham
certificados oficiais à prestação de exames antes de admiti-los; o ensino primário e normal era provincial. (LACOMBE, 1984)
Pensou-se então numa lei orgânica que viesse substituir a legislação vigente, que
ainda era o conjunto de leis chamado Reforma Pedreira (Luís Pedreira do Couto
Ferraz, visconde do Bom Retiro, ministro durante a Conciliação). Chamou-se para
isso, de São Paulo, um professor que se distinguira em trabalhos sobre o assunto,
entregando-lhe a pasta do Império, a fim de promover esta reforma. Era o conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho, o que pôs mãos à obra. Em vez de apresentar
ao parlamento um projeto de reforma do ensino, na forma habitual, o conselheiro
Carlos Leôncio de Carvalho começou por expedir um decreto executivo reformando o ensino primário e secundário da Corte e o superior em todo o Império, proclamando enfaticamente: “É completamente livre o ensino primário e secundário no
município da Corte e o superior em todo o Império”, e reformando profundamente
o conjunto do sistema escolar, mas declarando que não seria executado antes da
aprovação pela câmara das disposições que trouxessem aumento de despesa ou
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dependessem de autorização legislativa. É a imagem de um decreto-lei. (LACOMBE, 1984, p.25)
Este decreto foi para a Câmara para aprovação e Rui Barbosa foi o relator.
Rui Barbosa
Em 05 de novembro de 1849 nasce Rui Barbosa na Rua Capitães, hoje Rui Barbosa – freguesia
da Sé – Salvador – Bahia.
Jornalista, jurista e em 1878 entra oficialmente na política, quando foi eleito deputado. Foi
ministro da Fazenda e da Justiça. Foi responsável pela revisão da primeira Constituição Republicana
do Brasil, promulgada em 1891, além de ter elaborado conjunto de trabalhos relevantes à história do
país entre os mais importantes: pareceres sobre a reforma do ensino. (MAGALHÃES, 1999)
Filho de João José Barbosa de Oliveira (médico formado na Escola de Medicina da Bahia) e de Maria
Adélia Barbosa de Almeida. Os dois eram primos.
João Barbosa, pai de Rui, ingressou no Partido Liberal Baiano e foi soldado disciplinado do
chefe liberal Manuel Pinto de Sousa Dantas. Foi deputado provincial e logo depois deputado geral. Foi
diretor da Instrução Pública da Bahia e organizador do Liceu Provincial. Infelizmente nada disso lhe
trouxe dinheiro e no final de sua vida morreu pobre, vivendo do modesto emprego de secretário da
Santa Casa, obtido por indicação de seu chefe e amigo, o Senador Dantas.
O filho Rui o admirava, mas arcou com muitas dívidas que o pai deixou em sua morte.
Mas Rui não somente herdou suas dívidas, como também herdou o posto da batalha político descrito
por Lacombe (1984, p. 03):
Não entra na vida somente resgatando nos bancos baianos as letras paternas, mas
disposto a suceder-lhe nos postos da batalha política em que ele estava empenhado: a luta pela difusão do ensino público, pela elevação da cultura e, acima de
tudo, pelos ideais de liberdade que eram historicamente os de seu partido.
Seu pai era muito dedicado ao filho e, percebendo a sua tendência para oratória, resolveu ensinar-lhe noções de eloquência.
“Colocava-o sobre uma velha mala e fazia com que recitasse trechos de cor, de modo a ser entendido pelo público que era o círculo diminuto da família. Formava assim cuidadosamente um dos
maiores tribunos da raça.” (LACOMBE, 1984, p. 04)
Rui dedicou-se aos estudos com grande determinação, o que gerou vantagens excepcionais.
Iniciou o curso em Pernambuco e em 1868 e fez uma transferência para a Faculdade de São Paulo,
devido a incidente desagradável com um professor de Pernambuco, que não simpatizou com Rui, e
deu-lhe um “R” como nota, o que significaria um “simplesmente”.
“Isto não lhe trazia nenhum prejuízo nos estudos. Mas impedia o eventual doutoramento e,
sobretudo, arranhava a sensibilidade de um rapaz hiperbrioso. Seria preciso repetir o exame na mesma Faculdade, ou em São Paulo.” (LACOMBE, 1984, p. 24)
Em São Paulo, Rui foi um excelente estudante no curso jurídico adentrando na vida acadêmica
uma trajetória política a partir de jornais estudantis dirigidas por Rodrigues Alves e Afonso Pena. E
enfim, Rui começou a trabalhar na advocacia e no jornalismo, pertencendo logo após o Partido Liberal como pai.
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“O chefe liberal a que João Barbosa servia, e que estendeu facilmente sua simpatia ao jovem
bacharel, era o conselheiro Manuel Pinto de Sousa Dantas, futuro senador do Império e conselheiro
de Estado.” (LACOMBE, 1984, p. 11)
Rui foi incorporado pela família Dantas e se tornou amigo íntimo por Rodolfo (filho de Manuel Pinto de Souza Dantas), e esta amizade chegou ao campo do trabalho, onde estavam juntos na
redação do Diário da Bahia e no escritório de advocacia.
Rui possuía fama de orador, e sua presença na Câmara foi logo notada:
Com seus discursos conquistou Rui a fama de grande parlamentar. São ambos
longos e repletos de erudição. Rui não os improvisava. Nem tampouco os decorava. Preparava-os, porém minuciosamente. Elaborava um sumário, com os temas
em ordem de exposição, com remissões a citações que trazia em pequenas laudas,
copiadas de seu punho. (LACOMBE, 1984, p. 18)
Pareceres sobre a reforma do ensino e o projeto de industrialização para o brasil
“Na segunda metade do século XIX, difundiu-se, nos países ocidentais, a ideia de que a escola
era um dever do Estado e obrigatória para todo cidadão. Este clima e a pressão dos parlamentares
brasileiros colocaram a reforma educacional como tema do dia.” (MACHADO, 2010, p. 23)
Rui participou de uma das campanhas em que desafiava os liberais: a reforma do ensino. Rui foi relator e elaborou durante quatro anos o mais completo estudo sobre a instrução no país e sobre os meios
de resolvê-lo.
Rui dividiu o trabalho em dois relatórios: um sobre ensino secundário e superior,
apresentado em 1882; outro sobre o ensino primário, em 1883. O exame da pedagogia da época e sua adaptação ao Brasil é o mais completo possível. Protestando
contra a inversão da ordem natural com a remessa de decretos, e não de proposições ao Parlamento, apresenta Rui um substitutivo completo, uma autêntica lei orgânica do ensino, que, é triste dizer, nunca foi submetida à votação e desapareceu
do arquivo do Legislativo. Para elaboração desse projeto o relator não se limitou
a esquadrinhar a mais recente bibliografia pedagógica europeia e americana. Entrou em contato com os professores brasileiros, assistiu a aulas em estabelecimentos pioneiros, recolheu material de ensino, levou o ministro do Império para
assistir a demonstrações pedagógicas. (LACOMBE, 1984, p. 26)
Ele, Rui, defendia a criação de um ministério da educação em que organizasse as escolas desde os jardins de infância até o ensino superior, sendo a função do Estado financiar esse projeto. Esse
projeto tinha consistência na modernização do país através de um sistema nacional de ensino em que
se baseava nas escolas públicas de outros países que acreditavam que a educação poderia igualar e dar
as mesmas oportunidades às diferentes classes sociais.
Na escola pública, seriam veiculados conteúdos que atendessem ao interesse público, conteúdos estes que velassem pela conservação da ordem e da riqueza burguesa, assim, seu papel era preparar para o trabalho e para a cidadania. Por meio
dessa instituição, o Estado poderia, por outro lado, reparar certas desigualdades
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sociais. Nesse momento, apresenta-se a ideia de que a escola tinha um imenso
poder transformador e por isso seria fundamental a qualquer nação que desejasse
ser livre e civilizada. Nesse clima de entusiasmo pela causa da propagação da
educação escolarizada, Rui Barbosa elaborou os dois pareceres sobre educação
[...] (MACHADO,2010, p.18)
Mesmo não sendo educador de ofício, Rui percebia que as reformas liberais poderiam contribuir não somente com o desenvolvimento do trabalho industrial, mas iria desenvolver o progresso
educacional dirigido à necessidade da classe social de trabalhadores.
“Reformador social, a um tempo homem de pensamento e ação, movia-se ele num
mundo em que estavam presentes todas as ideias – as de filosofia e da ciência, as
de arte e das técnicas sociais – pairassem na ordem abstrata buscando a harmonia
de um sistema, ou atendessem a razões de ordem prática, como resposta a solicitações de sua vida de homem de partido, parlamentar, advogado e jornalista. Por
essa forma, sem que tivesse sido educador de ofício, Rui foi levado a estudar os
fundamentos e as explicações da pedagogia, para deixar, ainda nesse ramo, obra
de inegável grandeza.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 23)
A projeção nacional de Rui Barbosa através do sistema público de educação era para igualitarismo entre todos brasileiros, o regime de liberdade democrática, compreensão cívica, formação
profissional e riqueza geral.
Ora, à medida que vamos penetrando nessa floresta que é a produção de Rui Barbosa, na imprensa, na tribuna popular, na tribuna política, na tribuna acadêmica
ou nos estudos técnicos parlamentares, o que encontramos é a preocupação constante de tocar o fundo da famosa “realidade nacional”. Haverá algum estudo que
tenha levado a maiores minúcias primária, e mais, que tenha alertado as autoridades para a situação calamitosa da crescente incultura das massas diante da inação
dos poderes públicos, já então distribuindo as culpas entre o poder central e as
províncias e municípios? É ler o capítulo primeiro do parecer sobre o Ensino Primário em 1883. Nenhum trabalho na época levou tão longe as pesquisas. Todo o
projeto parte das premissas mais objetivas e tangíveis. (LACOMBE, 1984, p. 214)
O projeto de Rui, reforma do ensino, era apresentado como instrumento para os planos de revigoramento das instituições liberais, pelas quais o deputado tanto propagava descrito por Lourenço
Filho (2001, p. 66):
“Não nos cansemos de fundar e manter escolas gratuitas”, diz Rui, citando um autor americano.
“Quando não, bem depressa chegaremos ao aviltamento do direito do sufrágio, e, por conseguinte,
ao aniquilamento desse direito”. Mas a política que sustenta, só será possível, com plena expansão,
em país de produção organizado, de ordem estável, de defesa bem estabelecida, e assim julgado, no
continente e no mundo. De tudo isso, a instrução seria o melhor sustentáculo.
A prova de fogo para Rui é que seus pareceres fossem votados e aprovados na Câmara, mas por
interesses contrários por partes dos partidos políticos os pareceres de Rui foram ao “mofo e a traçaria
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dos arquivos”.
Isso nos parece muito simples dito hoje, quando uma série de campanhas convenceu a nação de que o analfabetismo é uma chaga. Mas não seria naquele tempo
perante uma câmara de latifundiários, cuja mentalidade só agora começa a render-se em face da energia com que o governo enfrenta e vence a resistência passiva, oposta à difusão do ensino popular. (LACOMBE, 1984, p. 215)
Permanece aqui descrito o idealismo que Rui nos ensina, sem dúvida, o amor à pátria e a comunidade universal, a compreensão da vida social, o desejo de aumentar a riqueza pública. Ele sentia
as angústias da época em que vivia, mas apresentava soluções em que poderiam mudar o futuro da
nação. “Ele nos aponta o respeito à verdade, ao bem e ao belo, relativos que sejam... Ele nos mostra que
a técnica muito pode, e que o saber se acumula e se multiplica.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 54)
Rui e o ensino do desenho
Nos pareceres do ensino primário, Rui consagra grande espaço e atenção à metodologia do
desenho, em que a ciência, a indústria e a arte poderiam solidarizar-se para os fins da formação humana. Para Barbosa, o ponto de partida para promover a expansão da indústria e a expansão nacional
é introduzir o ensino do desenho em toda a camada da educação popular, desde as escolas primárias
até os liceus: “o desenho seria a alma do ensino técnico.” (NASCIMENTO, 1997, p.22)
Suas reformas educacionais, a implantação do ensino de desenho no currículo escolar, com o objetivo
primordial de preparação da “massa” para o trabalho, e um ensino que possa partir da criatividade do
aluno que possa envolver a parte emocional.
“Que agente é esse?” – perguntava, no discurso do Liceu de Artes e Ofícios – “capaz de operar no mundo, sem a perda de uma gota de sangue, essas transformações
incalculáveis, prosperar ou empobrecer Estados, vestir ou despir aos povos o manto
da opulência comercial?” E logo respondia: “O desenho, senhores, unicamente essa
modesta e amável, pacificadora, comunicativa e afetuosa entre todas [...]” (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 97)
“O desenho, para Rui Barbosa, recebeu um destaque especial através dos métodos: americano,
austríaco e inglês” (BARBOSA, 1946, p. 103).
O método inglês, porém, e o método austríaco tem passado por provas decisivas. Os seus frutos revelam-se, em ambas as nações, por verdadeiras maravilhas,
por bênçãos inestimáveis, quer quanto à educação geral do espírito popular, quer
quanto à formação das especialidades técnicas, atuando assim, por dois meios de
influência incalculavelmente poderosos, sobre o desenvolvimento da inteligência,
dos sentimentos civilizadores e da prosperidade pública, que tanto na Áustria como
na Inglaterra, é, hoje em grande parte, obra do ensino do desenho geométrico e
industrial.(BARBOSA, 1946, p.168)
Rui destaca o ensino do desenho como base fundamento da construção do conhecimento para
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desenvolvimento do país.
A imaginação, a observação e a execução, essas três faculdades que o desenho
promove, alimentam e multiplicam, não são faculdades de luxo, cuja educação se
deixe ao arbítrio de pais mal esclarecidos; são pelo contrário, as mais usuais, as
mais práticas, as mais indispensáveis de todas as faculdades nas competências da
vida entre indivíduo e indivíduo, entre nação e nação. Delas e, portanto, do ensino
escolar, universal, imperativo do desenho de ornato, do desenho de indústria, depende toda a prosperidade industrial do país. (BARBOSA, 1946, p.163)
Para ele, Rui, o ensino do desenho é chave do progresso de industrialização dos países europeus, pois o desenho desenvolve o gosto artístico, que leva o trabalhador a imprimir aos artefatos,
quaisquer que sejam, com maior atração e valor.
O ensino do desenho inundou a Alemanha que, ainda entre a embriaguez das suas
vitórias de 1871, não se envergonhou de inaugurar uma propaganda oficial, estimulando nessa direção com a primazia artística dos vencidos o brio cívico dos
triunfadores. Hoje o ensino popular do desenho, que em si encerra a chave de todas as questões e de todos os destinos do domínio da arte, é, entre todas as nações
cultas, um fato total ou parcialmente consumado. (BARBOSA, 1946, p.243)
Rui admitia os fundamentos do ensino do desenho como condições de progresso do aperfeiçoamento humano das classes populares.
Nem o fim da educação contemporânea pela arte é promover individualidades extraordinárias, mas educar esteticamente a massa geral das populações, formando,
a um tempo, consumidor e produtor, determinando simultaneamente a oferta e a
procura nas indústrias do gosto. A faculdade de sentir, admirar e gozar o belo
existe virtualmente em todas as almas; é, em todos nós, apenas questão de cultivo.
(BARBOSA, 1946, p. 246)
O Brasil, sendo um país agrícola, como poderia se transformar em nação industrial? E Rui
dava solução, o meio para desenvolvimento da solução e sua fundamentação:
“A solução do problema, conseguintemente, é esta; criar a educação industrial.” (BARBOSA, 1946, p.
255)
“O dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer parte obrigatória do plano de
estudos na vida do ensino nacional, datará o começo da história da indústria e da arte no Brasil.”
(BARBOSA, 1946, p. 257)
“O desenho não é o produto de fantasia ociosa, mas o estudado fruto da observação acumulada. Sem observação, sem experiência, não há desenho.” (BARBOSA, 1946, p. 258)
Nos termos em que Rui apresenta o ensino do desenho e da arte industrial, houve somente um
exemplo claro no Brasil destes esforços para o desenvolvimento da nação industrial: Liceu de Artes e
Ofícios do Rio de Janeiro.
Resta, portanto, à iniciativa individual acordar o país. Neste sentido o Liceu de Ar-
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tes e Ofícios é um rasgo de heroicidade moral que inspira aos mais incrédulos uma
confiança reanimadora. O nome de Bethencourt da Silva pertence ao número dos
beneméritos cuja condecoração incumbe à história. Com ele os seus auxiliares, os
entusiastas intrépidos, que se dedicaram à obra deste Evangelho vivo, formam, no
horizonte do nosso país, a maior constelação do futuro. (BARBOSA, 1946, p. 265)
O material referente ao ensino do desenho de Rui é bem manifestado, nos dos pareceres do
ensino primário, mas o que todos desconhecem é que Rui propunha a instituir uma “Escola Normal
Nacional de Arte Aplicada” onde teriam a sua biblioteca e sua coleção de desenhos, gravuras e fotografias. Uma escola organizada particularmente ao desenho aplicado à indústria para como elemento
indispensável à formação dos trabalhadores nas artes industriais, tendo um elo amplo entre a ciência,
a indústria e arte para os fins da formação humana.
Nesta escola, segundo Barbosa (1946, p. 182), as cadeiras seriam distribuídas da seguinte forma:
1 de desenho mecânico e arquitetônico.
1 de geometria e perspectiva.
1 de modelação.
1 de pintura.
1 de desenho de ornato a mão livre.
1 de desenho da figura humana, anatomia e desenho anatômico.
1 de desenho ornamental.
1 de gravura e fotografia.
O desenho, tanto nos pareceres do ensino primário como na escola que Rui propunha harmonizavam-se, para ato ensinar o aluno a ver, a pensar, a comunicar, a produzir; no domínio espiritual,
ensinar a encarar a vida, a inventar com a liberdade da mente. (LOURENÇO FILHO, 2001)
Rui em oposição ao ensino mecanicista
Seus pareceres condenavam as orientações educativas da época, ele dizia “que seria incapaz de
habituar o comum das almas a essa alta filosofia do dever.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p 43)
Ele pregava a instrução para fins da verdadeira democracia no país e a educação era caminho.
“Sua reforma proposta procurava preparar os homens para a vida, portanto, era necessário um
ensino diferente do ministrado até então. Este era criticado por privilegiar a retórica e a memorização,
bem como por se fundamentar sob bases da religião católica no Brasil.” (MACHADO, 2010, p. 18)
Com os estilos que dominam em nosso país, na aula de primeiras letras, o menino
ainda não é homem, mas uma máquina de repetir. A sensibilidade, a perceptividade,
a espontaneidade, a originalidade, a atividade pessoal, a curiosidade, o gosto de
observação, o gênio imitativo são elementos, que, desconhecidos na criança pela
primeira educação, desaparecem de todo, ou se entorpecem para sempre no indivíduo, deixando constituir-se, por essa sucessiva superposição de camadas inertes,
uma nação inevitavelmente inferior em independência de caráter, em capacidade produtora, em expansividade intelectual e moral, em robustez mental e física,
em todas as qualidades de resistência, assimilação e desenvolvimento essenciais à
existência sadia, honrosa e próspera de qualquer povo.(BARBOSA, 1946, p.160)
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Rui acreditava que na necessidade de uma mudança na pedagogia da época aplicada ao ensino
do desenho, o ensino deveria começar através de processos intuitivos, da experiência sensorial, da
intuição real e não por descrições verbais: “Educar o instinto de observação de criação, o instinto de
execução”.
O ponto de apoio da educação deve, portanto, mudar; deixar de executar-se
exclusivamente no espírito do mestre para se fixar, principalmente, na energia
individual, nas faculdades produtoras do aluno. (BARBOSA, 1946, p.55)
O primeiro caráter dessa pedagogia desnaturada e homicida é a cultura exclusiva,
mas ininteligente, brutal, da memória. Despertar a curiosidade, inata ao homem e
vivacíssima no menino, eis primeiro empenho do professor, num método racional.
Da curiosidade nasce a atenção; da atenção, a percepção e a memória inteligente.
“Ensinar a quem não tem curiosidade de aprender é semear um campo que não
se arou. Contenta-se o professor inábil de apresentar aos discípulos a lição, e
verificar mais tarde se a não esqueceram. Assim aqueles cuja memória é pronta e
tenaz, conservam o espírito num estado meramente passivo, como o indivíduo que,
andando muito tempo exclusivamente de palanquim, acabasse por perder quase de
todo o uso das pernas. Depois se espantam de que pessoas tão bem ensinadas, e de
tanta facilidade no aprender e recordar, não venha a serem homens hábeis; coisa
tão razoável quanto supor que uma vasta cisterna, porque uma vez se encheu se
houvesse de transformar em fonte perene...” (BARBOSA, 1946, p.36-37)
“Barbosa acreditava que o desenvolvimento do ensino do desenho é praticado irracionalmente, não instrui, não esclarece; debilita, vicia, sobrecarrega o entendimento.” (BARBOSA, 1946, p.51)
Barbosa expressa que o desenvolvimento de qualidade do ensino do desenho deva iniciar-se naturalmente, sem esforço e com eficácia. Partindo da ênfase das energias individuais do aluno, induzindo
pelo hábito de observar e experimentar o desenho. Ele enfatiza o novo método do ensino intuitivo
como resposta ao método mecanicista atual.
O influxo empestador dessas tradições corromperá e materializará os melhores
métodos, mecanizará as lições de coisas, o ensino intuitivo, se instrumentos de tal
delicadeza forem confiados sem grandes precauções a um pessoal deseducado, e
se não prepararmos, a fim de suceder-lhe, uma sementeira de mestres para as exigências do novo ensino. (BARBOSA, 1946, p.162)
O que é importante ressaltar é que essa pedagogia “homicida” que Rui condenava já tinha
sido uma de suas orientações filosóficas, e mais tarde ele compreendeu que essa direção filosófica iria
contra o que ele defendia e chamava de “mecanização educativa”.
Nos pareceres, Rui declara que o positivismo é escola a que humanidade já muito
deve, e que o conhecimento positivo, único saber verdadeiro, remodelará o mundo. Doze anos depois, dirá, porém, que positivismo é “denominação pretensiosa
e infiel, que quer elevar um método à altura de uma filosofia”. Rui já então havia
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Bases de Rui
sentido que a ciência é uma “descrição”, não “um programa”. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 44)
Os pareceres de Rui Barbosa possuem aspectos políticos nos quais a educação é um instrumento para os planos de revigoramento das instituições liberais. Ele traça todo o estudo com ampla
informação das instituições educativas dos países mais adiantados, ele não inventa.
Desta forma, Rui mantinha contato com os grandes pensadores da ciência, da pedagogia e das artes;
acima de tudo, ele conhecia as correntes do pensamento da época.
Num olhar atento à produção legada por ele, verificamos que ele era um homem
informado sobre a dinâmica do mundo, por estar em permanente contato com a
Europa, e como conhecedor profundo da realidade brasileira, escreveu um minucioso projeto de educação pública e sobre diversos assuntos de interesse social.
(MACHADO, 2010, p.11)
A história das exposições internacionais na metade do século XIX foi decisiva para revelar a
importância do desenho ao processo de desenvolvimento nas indústrias europeias percebida por Rui
Barbosa e exposta em seus pareceres.
“A exposição de Londres, em 1851, voltou para este lado do horizonte o espírito humano.”
(BARBOSA, 1946, p.106)
“A de Paris, que em 1867 teve por um dos seus fins principais estimularem e uniformizar, na
França, a educação artístico-industrial.” (STETSON, 1867 apud BARBOSA , 1946, p. 106)
Da de Viena, em 1873, o intuito preponderante foi iniciar o povo austríaco, apresentando-lhe os resultados extraordinários da educação industrial no seio das outras nações, a encetar a mesma vereda, assentando em amplas bases, na instrução
de todas as classes, o desenho e arte aplicada como fator de primeira ordem na
obra do engrandecimento do país. (BARBOSA, 1946, p.107)
O presidente do Board of Directors de S. Luiz, nos Estados Unidos, M. Thomas
Richeson, no relatório anual de 1875, assegurava que “a educação do olho e da
mão, o desenvolvimento do gosto e o hábito do desenho, adquirido desde os primeiros anos da vida, todos esses efeitos imediatos do Kindergarten, completados
pelo ensino do desenho elementar e industrial na primary e na gramar school,
seriam suficientes, para produzir uma revolução nas fábricas do país, e granjear,
dentro em poucos anos, um notável acrescentamento de valor aos produtos nacionais.”(RAPPORT, s/d apud BARBOSA, 1946, p.116)
Rui cita as palavras de Pestalozzi, em que o “desenho é um profícuo auxiliar no ensino da escrita que
facilita largamente o ensino das outras matérias.” (BARBOSA, 1946, p. 110)
“Escrita e o desenho são a mesma coisa: trocai algumas classes de escrita por algumas de desenho.
Com isso a própria escrita lucrará.” (BARBOSA, 1946, p. 115)
Rui descreve um dos relatórios apresentados, em 1880, ao congresso internacional do ensino em Bruxelas no qual enfatiza o ensino do desenho para desenvolvimento não somente ao progresso indusPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 68-83, 2015.
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trial de um país, mas também para desenvolvimento social e educacional de uma nação:
Para os operários o desenho é tão útil quando a leitura e a escrita; pode-se, até,
generalizar este axioma, dizendo que a eles o desenho é mais necessário do que
uma e outra; visto como se pode saber o ofício, e for hábil artífice, sem ler, nem escrever; mas não sem compreender o desenho... As escolas primárias têm principalmente por fim o desenvolvimento intelectual dessa classe, e, pois, devem timbrar,
sobretudo em ensinar os elementos da geometria e do desenho, por força da mesma
razão que os da escrita e do cálculo... Seja qual for à carreira a que o homem se
destine, quer se prepare para operário, quer se dê aos estudos científicos ou artísticos, o desenho deve constituir a base do ensino na escola popular... Só quando
se houver generalizado o ensino do desenho, introduzindo-o obrigatoriamente em
todas as escolas, e com especialidade nas escolas populares, onde caminhe lado a
lado com os elementos de geometria prática e os demais ramos de estudo, é que a
instrução assumirá o caráter de utilidade geral e popular atingindo o verdadeiro
fim, a que deve tender.(BARBOSA, 1946, p.123)
Rui traduziu um dos mais nobres livros de pedagogia do ensino intuitivo que influenciou os países
que prosperaram no progresso industrial do século XIX:
“O livro Lições de coisa, do educador norte-americano Norman Allyson Calkins, traduzido em 1881,
mas só impresso em 1886, como que delimita, no tempo, a produção pedagógica.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p.35)
A obra de Calkins se fundava em Pestalozzi e Froebel, base também de Rui Barbosa em seus pareceres.
O desenho de Rui também foi influenciado pelas expressões da natureza do crítico de arte Inglês John
Ruskin, que propunha uma lógica do desenho no ato de ensinar a ver, e ver para o aluno sentir a lógica
natural a chamou de composição natural. (AMARAL, 2011)
Ruskin também propunha uma natureza política da ajuda mútua, que deriva do princípio do desenho
da árvore na qual cada elemento natural (raízes e folhas) seriam depositários de um desenho próprio
de ajuda mútua para o bem comum. Ele acreditava que homens deveriam imitar este exemplo em suas
atividades. (AMARAL, 2011)
Rui dedica em seus pareceres do Ensino Primário um belo trecho sobre Ruskin defendendo a natureza
na educação como também as artes.
Mr. Ruskin, o eloquente artista, a cuja influência se deve, em nossos dias, o despertar da vida artística no seio da Inglaterra, e cuja benéfica propaganda substituiu, no sentimento público, o culto das antigas convenções pelo estudo reverente e
afetuoso da natureza, atuando profundamente na moderna cultura popular do seu
país, Mr. Ruskin lamentava um dia o esquecimento da natureza na educação, em
palavras que parecem tecidas de propósito para o estado geral do ensino entre nós.
(BARBOSA, 1946, p.253)
Por honra sua, a pátria de Ruskin não tardou em escutar a voz dos altos espíritos
que a chamavam a reconciliar a educação com a natureza; e a Inglaterra emprega
hoje heroicos esforços, para levar amplamente a efeito essa transformação, a
mais profunda, a mais pacífica e a mais benfazeja de todas as revoluções sociais;
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a renovação da cultura popular pela arte e pela ciência, inauguradas no ensino
desde a escola. (BARBOSA, 1946, 254)
Nos escritos pedagógicos de Rui há uma multiplicidade de fontes em que não seja possível citá-los completamente, mas dizia ele que não se pode escravizar-se a nenhuma delas, pois “o pensador
mais original não é o que tenha tido um só mestre, mas muitos deles...” (LOURENÇO FILHO, 2001,
p. 41)
As Frustrações de Rui Barbosa
Os pareceres de Rui Barbosa deram a ele vários títulos de precursor: da educação física, onde
foi um dos primeiros a enquadrá-la dentro do currículo; do ensino musical e principalmente pelo
ensino do desenho e trabalhos manuais considerados a base do ensino industrial. (LACOMBE,1984)
Foi esta ligação entre o ensino de desenho, base de ensino profissional, e a transformação da sociedade brasileira, de agrícola em industrial, o tema de um famoso
discurso que também pronunciou, por essa época, no Liceu de Artes e Ofícios. Essa
ideia, de que a reforma do ensino era básica para uma transformação social, e que
esta transformação devia consistir numa industrialização urgente do país, vai ser
uma constante do pensamento de Rui. (LACOMBE, 1984, p. 26)
Rui foi convocado para uma entrevista com Imperador devido à repercussão que tiveram seus
pareceres perante a Corte brasileira.
“..., passaram horas dissecando as páginas dos volumes impressos com as margens repletas de
notas do punho imperial. Foi uma sabatina em regra, da qual o Imperador não parece ter saído insatisfeito, pois meses após expedia a Rui o título de conselheiro.” (LACOMBE, 1984, p. 26)
Mas nem tudo é um “mar de flores” nesse momento histórico descrito por Lacombe (1984),
sendo uma das mais amargas passagens decisivas na história do Brasil, devido a uma decisão injusta
que costuma acontecer com os que sobem ao poder.
O velho senador e conselheiro Dantas, que era uma pessoa cativante e de grandes influências
políticas, e foi revelador de vocações políticas e de uma equipe de alto nível como Rui Barbosa e o
próprio filho Rodolfo Dantas, foram o escolhido pelo Imperador para organizar o Gabinete.
E a ascensão de Dantas, por ser confidente do próprio Imperador, levou-o a deferir um grande
golpe em Rui.
Ao chegar de São Cristóvão, com a incumbência de organizar o Gabinete, Dantas
encontrou a casa cheia, como costuma acontecer com o que sobem ao poder. Foi
logo se dirigindo a Rui e exclamando diante de todos: “Rui, estás ministro, se
quiseres”. A única dúvida, disse o novo premier, era saber se lhe daria a pasta do
Império, para realizar a reforma do ensino, ou a da Agricultura, para encaminhar
a solução do problema servil, missão específica do Gabinete. O imperador preferia
a pasta do Império, porque tinha muito interesse pelo projeto de Rui de reforma do
ensino. (LACOMBE, 1984, p. 28)
E a decisão desse conselheiro mudaria todo o rumo histórico de nosso ensino brasileiro, afirmado
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pela passagem de Lacombe (1984, p. 28-29):
Dantas voltou no dia seguinte ao Paço com a lista dos ministros. Nela figurava
Francisco Sodré, na pasta da Justiça. Rui não era ministro. Não é possível, assim, atribuir ao Imperador qualquer veto, como depois se espalhou. A culpa coube
mesmo inteira a Dantas, que mais tarde, conversando com o Dr. Jacobina, primo e
amigo de Rui, fez os maiores elogios ao “extraordinário talento” do seu “filho pelo
coração”, mas negou totalmente sua capacidade como administrador. Quem não
se conformou com essa atitude do velho Dantas foi seu filho Rodolfo, que chegou a
cair de cama com a decepção que experimentou.
Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1999.
.
NASCIMENTO, T. A. Pedagogia liberal modernizador. Campinas: Autores Associados, 1997.
Recebido em 9 de fevereiro de 2015.
Aprovado para publicação em 28 de maio de 2015
Segundo Lourenço Filho (2001), logo após a publicação do livro Lições de coisas, em 1886, Rui
não se ocupou mais de temas ligados ao ensino.
E, para finalizar sua frustração, foi lhe concedido uma cerimônia consagrada no saguão da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde ele recebera um simples busto no lugar de uma estátua
que certamente merecia, e declarou em público sua decepção:
A honra do busto é mais uma carícia, um extremo, um afetuosíssimo requinte com
que não se corrigem de me amimalhar os meus caros conterrâneos [...]. Não se hão
de magoar eles, pois, que eu me dê a buscar, na linguagem, meios de corresponder
à intenção carinhosa [...]. Porque, senhor perdoe-me a indiscrição de aqui dizer:
de bustos e estátuas não sou lá grande entusiasta. Essa petrificação ou mineralização de um vulto humano não me fala à alma. Um homem em metal ou pedra me
parece duas vezes morto. Muito pode valer a estátua pelo merecimento da obra-prima. Mas então o seu lugar adequado será no museu. Perdida nos salões das
bibliotecas, ou isolada, entre a multidão, no vazio das praças, a mim se me afigura
uma espécie de consagração do esquecimento [...]. (LOURENÇO FILHO, p.18)
Referências
AMARAL, C.S. John Ruskin e o ensino do desenho no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2012.
BARBOSA, R. Reforma do ensino primário. Obras completas de Rui Barbosa, v.10, 1883, t.2. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946.
CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a
política imperial. 7º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
LACOMBE, A. J. À sombra de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984.
LOURENÇO FILHO, M. B. A pedagogia de Rui Barbosa. Organizado: Ruy Lourenço Filho – 4.
ed.rev.ampl. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 2001.
MACHADO, M. C. G. Rui Barbosa. Recife: Fundação Joaquim Nabuco Massangana, 2010.
MAGALHÃES, R. M. M. de A. Rui Barbosa: cronologia da vida e da obra. 2. ed. rer. Rio de
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O design e a produção artesanal em extensão universitária:
coopeg, desenvolvimento de produtos de papel machê
The design and crafts manship in university extension:
coopeg, product development papier maché
Kelvin Borges Mendonça* & Cláudio Roberto y Goya**
* Aluno de Graduação do Curso de Design, com ênfase em Projeto de Produto pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp - câmpus de Bauru). Participa do Projeto de extensão Labsol - Laboratório de Design Solidário.
** Arquiteto pela Universidade de São Paulo (1986) e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São
Paulo (1999). Professor assistente da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no curso de Design. Coordenador do
Curso de Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Unesp, câmpus de Bauru. Desde março de 2007 coordena o Laboratório de Design Solidário da FAAC da Unesp-Bauru, onde pesquisa tecnologias sociais
relacionadas ao Design e atende comunidades em atividades de extensão, em 2010 a 2013 assumiu a coordenação da
Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unesp-Bauru(SP).
Resumo
Trata-se de um trabalho empírico de caráter prático, onde após revisão bibliográfica, envolvendo áreas como, o design, pesquisa cultural e de mercado, moda, e química/ambiental, tendo como base conceitual a Sustentabilidade,
o Ecodesign e a Economia Solidária, utiliza-se a Metodologia do Projeto em Design do Produto (BAXTER, 2011)
procurandosuprir a demanda da Cooperativa e o desenvolvimento de novos produtos tendo em conta as características sócio-culturais em que se insere a Coopeg.
Será utilizada a metodologia de projeto em Design para o desenvolvimento de novos produtos, valorizando o
artesanato e as características regionais, gerando um desenvolvimento sustentável e valorizando os produtores e
seus produtos.
Palavras-chave: Labsol; Papel; Machê; Sustentabilidade; Ecodesign.
Abstract
This is an empirical work of a practical nature, where after literature review, involving reas such as the design,
cultural and market research, fashion, chemical / environmental, and Sustainability as a conceptual basis, the Eco
design and the Solidarity Economy we use the Project Methodology in product Design (BAXTER, 2011) trying to
meet the demand of the Cooperative and the development of new products taking into account
The socio-cultural characteristicst hat fits the Coopeg.
The project methodology in design to the development of new products will be used , valuing craftand regional
characteristics , generating a sustainable development and enhancing the producers and their products.
Keywords: Labsol; Pape; Machê; Sustainability; Ecodesign.
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Introdução
O
Projeto de Extensão Labsol, Laboratório de Design Solidário, pertencente ao Departamento
de Design da FAAC, da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho- UNESP -Campus de
Bauru, possui como principal proposta, o desenvolvimento de ações conjuntas entre o design
e o artesanato como patrimônio cultural. O Labsol trabalha partindo de um tripé constituído pelos
conceitos de Sustentabilidade, Ecodesign e Economia Solidária e atende grupos e comunidades de
artesãos orientando e qualificando seus produtos, além de promover projetos e ações que agregam e
melhoram os seus processos produtivos, tendo em conta a cultura e a comunidade local.
Entende-se Sustentabilidade como a capacidade do ser humano interagir com o mundo, preservando o meio ambiente e não comprometendo os recursos naturais das gerações futuras, junto a
isso o Ecodesign, desenvolve produtos, sistemas e serviços que reduzem o uso de recursos não renováveis e/ ou minimizem o seu impacto. Seguindo a mesma linha, a Economia Solidária é uma forma de
produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital,
que tem base associativista e cooperativista e é voltada para a produção, consumo e comercialização
de bens e serviços de modo autogerido, envolvendo a dimensão social, econômica, política, ecológica
e cultural. Isto porque, além da visão econômica de geração de trabalho e renda, as experiências de
Economia Solidária se projetam no espaço público, no qual estão inseridas, tendo como perspectiva
a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável. Esses elementos são a base na qual é
fundamentado o Labsol.
Dentre os diversos projetos que estão em andamento no ano de 2014, encontra-se a COOPEG
- Cooperativa Pérolas do Guarujá, que atua em conjunto com instituições de ensino e reaproveita
sobras da indústria têxtil, papéis e resíduo da atividade pesqueira com o objetivo de geração de renda
através de uma produção sustentável e dentro dos princípios da Economia Solidária.
A Cooperativa é fundamentada em princípios socioambientais, capacitando e comercializando produtos artesanais elaborados a partir de resíduos que seriam descartados no meio ambiente. Os
produtos são confeccionados a partir da massa de papel reciclada, subproduto da pesca e retalhos de
tecido.
O desenvolvimento de uma cultura empreendedora para o artesanato é importante
porque essa atividade é a principal manifestação cultural do país. Ela está presente em 64,3%[1] dos municípios brasileiros e envolve 8,5 milhões pessoas que
produzem 2,8% do PIB brasileiro. Essa participação no PIB é relevante, mas pode
aumentar ainda mais, se o artesanato evoluir de atividade provisória e complementar à geração de emprego e renda, para se tornar empresa competitiva orientada para negócio. (JOSÉ DE MORAES FALCÃO/SEBRAE. Artesanato: as mãos
visíveis do mercado. Visão do empreendedor. 2008. Disponível em:< http://www2.
rj.sebrae.com.br/boletim/artesanato-as-maos-visiveis-do-mercado/>. Acesso em:
11 abr. 2014.).
O processo produtivo do papel machê difere-se dos demais materiais devido à facilidade de
produção, baixo custo. Aceita acabamento tornando-se um material rígido após sua secagem, adquirindo propriedades semelhantes a da madeira. Pode ser facilmente manipulado, aplicado como cobertura em diversas superfícies. É um material leve e viabiliza a modelagem em estruturas geométricas,
planas, orgânicas e tridimensionais. Sua superfície é de fácil pintura, o que permite a adição de cores
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fortes tanto na produção da massa quanto na finalização do produto, e desenvolve texturas interessantes ao produto final, podendo ser reciclado continuamente, reintegrando-se à cadeia de produção,
e após termino de vida útil e descartado, sua decomposição no meio ambiente é rápida.
O papel machê teve como uso inicialmente a arte decorativa, mas com o tempo houve um aprimoramento de técnicas e o desenvolvimento de novos métodos. Seu emprego no artesanato trouxe
para a sociedade uma diversidade na elaboração de novos projetos com foco sustentável. A produção
de objetos em papel machê desponta como alternativa para a minimização da exploração excessiva
dos recursos naturais (renováveis ou não), ou até mesmo, à sua supressão.
O artesanato é hoje uma segura opção de trabalho, operando com independência
dentro de um mercado em escasso em oferta de emprego. Basta verificar o volume
de vendas cada vez maior de artesanato, tanto no país, quanto para o exterior.
Atividade que dá emprego a 8,5 milhões de pessoas e fatura R$ 28bi por ano, o
artesanato deixa informalidade e gera divisas. Ele acaba de entrar na pauta das
matérias de atualidade. [...] A partir de uma pesquisa feita com 210 cooperativas
e associações de artesanato espalhadas pelo país, os dados demonstrando o tamanho do mercado brasileiro de produtos artesanais, surpreendeu até o governo,
que decidiu, no ano 2005, mapear o setor. Não é para menos, informações do Ministério do Desenvolvimento, apontam o artesanato como responsável pelo movimento de R$ 28bi por ano no Brasil. Essa quantia corresponde a cerca de 2,8% do
PIB.(SEBRAE. Loja de artesanato.Ideias de Negócio. s.d. Disponível em: < http://
www2.ms.sebrae.com.br/uploads/UAI/fichastecnicas/artesanato.pdf>. Acesso em:
11 abr. 2014.).
Objetivos
A partir da demanda da Cooperativa, procura-se suprir as necessidades atuais do grupo, como
o desenvolvimento e reformulação de produtos com uma massa de papel mais homogênea que possibilite uma melhoria na qualidade final do objeto, visando a melhoria estética, procurando agregar
valor ao produto tornando-o mais atrativo ao mercado, tanto conceitualmente, quanto na sua produção e acabamento. Atender essas necessidades respeitando Tripé do Labsol e o conceito de sustentabilidade e não agressão ao meio ambiente, que é também a base da COOPEG.
Os conceitos escolhidos para os produtos são voltados a suprir a demanda da cooperativa, e seguem
temas de datas comemorativas como Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia dos Namorados, Natal,
além do conceito praia que faz parte do ambiente em que se insere a COOPEG.
Os produtos foram confeccionados a partir da massa de papel triturada (optamos pelo jornal,
pois possibilita um acabamento mais homogêneo) junto ao composto misto Neem/Sumo-K à concentração de 3ml/L e15ml/L respectivamente adicionado ao processo de liquidificação dos papéis(500
ml), escoando a água e acrescentando cola branca até formar uma liga homogênea e compactando em
formas industrializadas de acetato.
As formas de acetato utilizadas encaixam-se nos conceitos acima descritos, sendo de fácil
acesso e baixíssimo custo, comumente encontradas em lojas de festas/doces/artesanatos, podendo ser
utilizadas várias vezes para confecção dos produtos.
O tempo de secagem da massa aplicada enxuta com cola na forma é de 3 a 5 dias ao sol, devendo ser retirada somente quando estiver totalmente seca, caso contrário a massa quebrará/esfarelará.
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Fundamentação teórica
1. Design e o Artesanato
Segundo Schneider, professor de história e cultura entende-se Design como: visualização criativa e sistemática dos processos de interação e das mensagens de
diferentes atores sociais; é a visualização criativa e sistemática das diferentes funções de objetos de uso e sua adequação às necessidades dos usuários ou aos efeitos
sobre os receptores. (SCHNEIDER, 2010, p.197).
Segundo a definição adotada pela UNESCO, em 1997, Artesanatos são: “Produtos
artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente à mão, com
uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde que a contribuição
direta manual do artesão permaneça como componente mais substancial do
produto. Essas peças são produzidas sem restrição em termos de quantidade e com
o uso de matérias primas de recursos sustentáveis. A natureza especial dos produtos
artesanais deriva de suas características distintas, que podem ser utilitárias,
estéticas, artísticas, criativas, de caráter cultural, simbólicas e significativas do
ponto de vista social”. ( UNESCO 1997, apud BORGES, pág. 21).
O artesanato é uma atividade hereditária, na qual a relação estabelecida entre homem e trabalho desenvolvem-se técnicas e habilidades na produção do produto. E os ensinamentos são transmitidos para as gerações seguintes, derivados de influencias históricas, sociais e/ou culturais.
Partindo das definições acima, pode-se estabelecer um vinculo entre Artesanato e Design.
Respaldados conceitos apresentam objetivos semelhantes, possibilitando uma aproximação entre as
duas atividades. Classificando-as como “criadoras de objetos” de várias funções e derivações sociais,
que tem por finalidade transmitir uma mensagem ou conceito. Porém divergem-se quanto a sua forma de produção.
Tal interação entre Design e a produção artesanal é discutida por Adélia Borges em seu livro,Design+Artesanato. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
“A aproximação entre designers e artesãos é, sem dúvida, um fenômeno de extrePoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 84-95, 2015.
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ma importância pelo impacto social e econômico que gera e por seu significado
cultural. Ela esta mudando a feição do objeto artesanal brasileiro e ampliando em
muito o seu alcance. Nessa troca, ambos os lados têm a ganhar. O designer passa,
no mínimo, a ter acesso a sabedoria empírica, popular, à qual não teria entrada
por outras vias, além de obter um mercado de trabalho considerável. O artesão,
por sua vez, tem ao menos a possibilidade de interlocução sobre a sua prática e de
um intervalo no tempo para refletir sobre ela.”(BORGES, 2011, p. 137).
2. Sustentabilidade
“ Faz referencia às condições sistêmicas, segundo as quais em nível regional e planetário, as atividades humanas não devem interferir nos ciclos naturais em que se
baseia tudo o que a resiliência do planeta permite, e ao mesmo tempo, não devem
empobrecer seu capital natural, que será transmitido ás gerações futuras. “(MANZINI E VEZZOLI, 2008, p.27).
O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente
sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas
próprias necessidades. Essa preocupação tornou-se frequente nas ultimas décadas,
repercutindo mundialmente, principalmente entre os países mais industrializados.
(Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CMMAD 1988).
Entende-se, portanto, que sustentabilidade é a capacidade de determinado grupo, de manter-se em um meio evitando acarretar estes impactos e perturbações graves. Na proposta organizacional
humana, que haja harmonia na convivência entre a natureza e o homem, obstando danos a biodiversidade e ecossistemas locais e planetários.
3. Ecodesign
Entende-se o ecodesign como o estudo e analise para utilização dos recursos e materiais renováveis,não renováveis e resíduos derivados destes, aplicados na produção de novos produtos com
a finalidade de ampliar a vida útil, retorná-los ao mercadoe minimizar o impacto aferido ao meio
ambiente.
Ainda segundo MANZINI e VEZZOLI (2008, p.18), Ecodesign é “uma aptidão projetual, que
concebe os aspectos do projeto, considerando também o impacto ambiental”, e (p.91) “considera-se
o produto desde a extração dos recursos necessários para a produção dos materiais que o compõem
(nascimento) até o último tratamento (morte) desses materiais após o uso do produto”.
Pode-se relacionar-se ao Life Cycle Design (Ciclo de Vida do Produto), a busca pela redução
dos “inputs” e “outputs” durante o ciclo de vida de determinado material ou produto, promovendo
modificações nos processos de fabricação e desenvolvimento dos mesmos, reduzindo os impactos
ambientais por eles causados. Esse declínio ocorre devido a fatores decididos durante a pré-produção,
produção, distribuição, uso, reutilização e descarte do produto. Adentrando ao contexto do ciclo de
vida, considera-se a possibilidade de reciclagem e/ou reutilização de seus materiais e/ou componentes, promovendo um acréscimo de tempo na vida útil dos materiais e produtos já produzidos.
4. Economia Solidária
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A Economia Solidária “ é uma economia de mercado com base associativista e cooperativista,
voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços, buscando a valorização do
ser humano e não do capital, dentro de um processo de democratização econômica” SINGER, Paul.
(2002).
Contextualiza-se então a Economia Solidária como uma nova forma organizacional econômica que parte do ideal do trabalho coletivo, voltado para a subsistência a partir de uma produção,
venda, compra e troca que beneficie a todos os participantes, não havendo relações verticais ou de
exploração de mão de obra, por mais valia, subjugação econômica e industrial.
Dentro desse meio as decisões são tomadas em conjunto buscando o benefício mútuo, pois é
fundamentada nos conceitos de cooperação, preservação dos recursos naturais e igualdade de poder
na tomada de decisões da empresa, e consequente responsabilidade para com a comunidade local
onde o empreendimento está inserido.
5. Contexto histórico
O papel é um marco na história humana, pois desde o primórdio das civilizações o homem
sente a necessidade de materializar suas memórias visuais. Antes do advento do papel como o conhecemos, muitos povos utilizaram formas curiosas de se expressarem através da escrita. Na Índia,
usavam-se folhas de palmeiras, na antiga China os livros eram feitos com carapaças de tartaruga e
posteriormente em bambu e seda. Também era comum o uso da pedra, do barro e até mesmo da casca
das árvores através da escrita cuneiforme.
Dentre os originários mais famosos, encontram-se o papiro e o pergaminho. O papiro foi desenvolvido pelos antigos egípcios em 3.500 a.C. e era preparado à base de tiras extraídas de papyrus,
plantaabundante nas margens do Rio Nilo. O pergaminho, muito mais resistente do que o papiro, era
produzido a partir de peles tratadas de ovelha, cabra ou vaca.
O surgimento deu-se com os chineses, que foram os primeiros a fabricar papel com as características semelhantes ao atual. Pesquisas apontam que por volta do século VI a.C. os chineses começaram a produzir um papel de seda branco, próprio para a pintura e para a escrita.
As cruzadas expansionistas e a busca por especiarias abriram horizontes, e a técnica desenvolvida na china chegou a península ibérica pelas mãos dos árabes. Data de 1094 a primeira fábrica
de papel em Xativa, Espanha. A partir daí, na Europa, começa-se a alastrar a arte de produzir papel,
usando como matéria prima o algodão.
Com a disseminação desta tecnologia surgiram outras técnicas de manuseio e aproveitamento
das potencialidades do material. Pode-se citar o trabalho dos Monges escribas durante toda idade
média, e uma das invenções mais significativas da época, A prensa de Gutemberg (por volta de 1439
- fim da Baixa Idade Média) que possibilitou a produção e tiragem em série de diversos livros, antes
manuscritos. Com financiamento católico, surgiram as primeiras casas de impressão para produção
de bíblias.
A partir da Primeira Revolução Industrial 1760 - 1830, com o pesado investimento de capital nos setores fabris, principalmente em indústrias privadas, e notadas a demanda de mercado e as
potencialidades ali existentes, surgiram as primeiras fábricas de produção de papel em larga escala, e
com elas novas máquinas e processos de produção através da quebra mecânica e química das fibras de
celulose.
Em território brasileiro a produção iniciou-se a partir do séc. XIX, até então a prática era proiPoéticas Visuais, Bauru, v 6, n. 1, p. 84-95, 2015.
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bida por leis coloniais que embargavam a indústria nacional e obrigavam a importação do material.
A primeira fábrica de papel no Brasil data sua fundação em 1809, na então capital Rio de Janeiro,
construída por empresários portugueses.
6. Resumo do processo produtivo industrial atual
•
Floresta - local de plantio de espécies próprias para a o tipo de celulose ou papel a ser produzido - As empresas trabalham com áreas reflorestadas e tem seus próprios viveiros , clonando as plantas
com as melhores características
•
Captação da madeira/ Corte — A árvore é cortada e descascada, transportada, lavada e picada
em tamanhos pré-estabelecidos.
•
Cozimento/Digestão: A madeira cortada é cozida à temperatura de 160 C
- Nessa etapa obtém-se uma pasta de cor marrom que pode ser utilizada na fabricação de papéis não
branqueados.
•
Branqueamento/ Clareamento - a pasta marrom é submetida a reações com peróxido, dióxido
de sódio, dióxido de cloro, ozônio e ácido e é lavada a cada etapa, transformando-se em polpa branqueada.
•
Secagem/Desidratação: a polpa branqueada é seca e enfardada para transporte caso a fábrica
não possua máquina de papel.
•
Máquina de papel /Compactação - a celulose é secada e compactada até atingir a gramatura
desejada para o papel a ser produzido.
•
Tratamento da lixívia e rejeitos da água /Aproveitamento de resíduos— o licor negro resultante do cozimento é tratado e os químicos são recuperados para serem usado como licor branco. Esse
tratamento ameniza os impactos ambientais causados pela fabrica de papel;
•
Produção de energia/ Aproveitamento de energia — A produção de energia vem de Tubos
geradores que são movidos por vapor proveniente da caldeira.
7. Parecer Final
Avaliação de Teste com Óleos Essenciais Biodegradáveis:
Foram analisados os resultados obtidos nos testes de Conservação do Papel pelo emprego de óleos
biodegradáveis, e avaliou-se uma maior eficácia em proteção à fungos e insetos nas amostras com
Sumo-K ( 3ml/L) e misto - Neem/Sumo-K ( 3ml/L e15ml/L), Que são as amostragens de solução mais
concentradas e completas.O composto misto Neem/Sumo-K( 3ml/L e15ml/L) constatou maior eficiência em relação a todas as outras amostras.
O emprego do composto Sumo-K mostrou-se mais eficiente em todos os testes em relação às
amostras à base de Óleo Essencial Neem. Por contraste visual notou-se uma maior proteção do papel
ao ataque de fungos impedindo a formação de colônias, e alto grau de repelência a insetos, devido as
suas propriedades aromáticas, bactericidas, fungicidas e inseticidas.
As amostras provenientes dos testes com o Óleo Essencial de Neem responderam com bons
resultados no quesito de repelência de insetos. Porém provaram-se ineficientes no combate e controle
à ataque fúngico. Por notório contraste visual, observou-se que grande parte das amostras que foram
empregues somente o Óleo Essencial de Neem foram acometidas pelo fungo Cladosporiumsp.
Avaliação de Texturas e Resistências Físicas:
A massa que apresentou maior homogeneidade dentre as amostras testadas, foram as de jor-
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nal, possibilitando um aspecto mais liso, maior flexibilidade e melhor acabamento no produto final.
As amostras tanto a base de papel sulfite como couchê desenvolveram texturas mais ásperas
em relação ao papel à base de jornal. Foi observado que o papel padrão utilizado para jornal já é por
natureza um papel reciclado e possui alta probabilidade de ser acometido por fungos, já que sua vida
útil após a produção é curta, e seu processo produtivo dificilmente emprega produtos para aumentar
sua longevidade, pois encareceria muito o material e inviabilizaria sua produção.
Devido ao fato de ser um papel reciclado, fibras do jornal são menores e já foram muito desgastadas por processos industriais. Isso proporciona após a liquidificação, uma massa mais uniforme
e homogênea, e uma superfície mais lisa no produto final. Porém é um papel de pouca resistência à
rasgos em baixa gramatura, mas compensa por sua alta flexibilidade.
As avaliações com os controles e amostras de papel reciclado à base de couchê e sulfite apresentaram além de uma textura mais rústica, uma maior resistência à hospedagem de fungos e insetos
em relação ao jornal ,durante as primeiras duas semanas de teste, devido ao tratamento químico sofrido na fábrica durante seu processo de produção. Porém já por volta da segunda semana de rotina
de umidificação, apresentaram visualmente focos de colônia fúngica, e foram acometidos na mesma
escala que o controle de jornal. As amostragens à base desses papéis mostraram-se fisicamente mais
resistentes a rasgos em baixa gramatura do que o papel reciclado à base de jornal, porém possuem
menor flexibilidade.
Avaliação dos Testes com Corantes:
Foram efetuados vários testes de pigmentação, empregando variadas técnicas e espécies de corantes líquidos e sólidos solúveis, administrados diretamente nas formas de acetato antes da alocação
da massa de papel, acrescentados à massa durante o manejo de homogeneização com cola branca, e
anexa ao processo de liquidificação do papel.
Dentre as amostras que exibiram melhores resultados de uniformidade e contraste destacam-se astingidas à partir de corantes em pó/ ou líquidos, dissolvidos em água quente para intensificar as
propriedades fixadoras do material, e incluído durante o processo de liquidificação do papel.
As amostras de papel reciclado pigmentadas pelo processo de aplicação da tinta direto na
superfície da forma de acetato, ou anexas na massa durante o processo de maceração apresentaram
resultados com cores de menor intensidade e de pouca uniformidade.
Ainda serão avaliadas possibilidades de pintura e paletas de cores aos objetos depois de secos, pelo
emprego de tintas guache, aquarela, acrílica, e a base de água.
Avaliação dos Protótipos Primários e Processos Produtivos:
Optamos por utilizar a massa de papel à base de jornal, pois ansiamos uma pasta mais uniforme e uma melhor textura no protótipo após a secagem.
Foram efetuados três testes de aplicação das massas de papel sobre as formas de acetato. Variando a saturação da quantidade de água ecola e a maneira de preenchimento das cavidades.
No primeiro teste as massas mais encharcadas de água e cola, ao serem aplicadas sobre as
formas apresentaram o surgimento de bolhas de ar e maior tempo de secagem (três dias ao sol). Após
a retirada da primeira leva de protótipos, notou-se que as bolhas de ar deixaram falhas na captura de
detalhes e que o acabamento não foi satisfatório.
No segundo teste, com as massas mais drenadas e o ponto de saturação de cola aprendido (
a massa deve estar molhada, porém não pode estar totalmente enxuta, nem ensopada ao ponto de
escorrer água), anexa-se 100 ml de cola branca para aproximadamente 500 kg de massa( volume semelhante a um pão francês) e mistura-se a massa por maceração até que a mesma fique homogênea.
O ponto é quando se faz uma esfera e pressionando o dedo, este forma uma superfície lisa. Se a massa
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estiver esfarelando, adicione cola aos poucos. Se estiver saturada de cola, adicione mais massa de papel.
Durante a aplicação da segunda massa, tomou-se cuidado para evitar as bolhas de ar, aplicando quantidade menores de massa, aproximadamente do mesmo volume das cavidades, seguindo o
sentido do centro para as bordas e pressionando as regiões que havia bolhas. Grande parte das bolhas
foi evitada, e os resultados obtidos foram de melhor qualidade que o teste anterior. Porém houve dificuldade no desenforme de algumas peças, e notou-se que algumas superfícies estavam lisas e com
aspecto “marmorizado” e outras estavam ásperas.
Os princípios para a produção da terceira massa seguem a mesma receita desenvolvida acima,
diferenciando quanto ao modo de aplicação nos moldes. Percebemos que o aspecto marmorizado que
garantia melhor acabamento era proveniente do excesso de cola, optamos por pincelar volumosamente a cola nas formas e em conseguinte aplicar a massa da mesma maneira que aviamos feito, evitando
bolhas e compactando a quantidade suficiente de papel por cava.
Os protótipos resultantes do terceiro teste demonstraram um acabamento superior às amostragens anteriores, sendo mais fáceis de desenformar, apresentando texturas lisas e marmorizadas.
Nos protótipos de objetos maiores e ocos, como por exemplo,os ovos de páscoa, corações,
tartarugas e fuscas, aplicamos camadas de aproximadamente cinco mm de massa, com a finalidade de
garantir resistência física e reduzir o tempo de secagem que era elevado (aproximadamente 1 semana
ao sol).
Notou-se que durante o processo de secagem da massa do papel machê, seu volume tende a diminuir, e a peça tende a “encolher”, o que facilita no desenforme em alguns modelos de moldes. E que
se deve evitara desenformar o protótipo caso este ainda esteja úmido, pois isso danifica gravemente o
produto final.
mente os objetos para lhes agregar maior valor e qualidade. Ao mesmo tempo em que o conhecimento
popular serve como base para desenvolver o conhecimento científico aproximando comunidade e
universidade. Devolvendo à sociedade as oportunidades e conhecimentos gerados dentro do meio
acadêmico como forma de retribuição ao apoio e confiança creditados a Universidade.
Metodologia
Trata-se de um trabalho empírico de caráter prático, onde após revisão bibliográfica, envolvendo áreas como, o design, pesquisa cultural e de mercado, moda, e química/ambiental, tendo como
base conceitual a Sustentabilidade, o Ecodesign e a Economia Solidária, utiliza-se a Metodologia do
Projeto em Design do Produto (BAXTER, 2011) procurando suprir a demanda da Cooperativa e o
desenvolvimento de novos produtos tendo em conta as características socioculturais em que se insere
a Coopeg.
Será utilizada a metodologia de projeto em Design para o desenvolvimento de novos produtos,
reformulação dos existentes, adaptando métodos e processos de produção do papel machê, refinando
seu acabamento. O processo dar-se-á através da pesquisa empírica com variadas técnicas de produção
artesanal de papel, além do emprego de colas ou grudes atóxicos e biodegradáveis que servirão como
base para a elaboração da massa que dará origem ao papel, conciliando os processos de produção e a
matéria prima local à demanda de mercado, reformulando o processo de produção, produtos e técnicas, valorizando o artesanato e as características regionais, gerando um desenvolvimento sustentável
e valorizando os produtores e seus produtos.
Além das questões técnicas sobre a fabricação e utilização do papel, será desenvolvido um
conjunto de objetos artesanais, viáveis para produção em série. A partir da experiência acumulada
pelo Labsol e pela Cooperativa, podemos antever a produção de objetos mais elaborados de papelaria,
de decoração, lúdicos e recreativos além de adornos corporais.
Por meio da captação de conhecimento popular, o Labsol busca desenvolver técnica e estetica-
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da prestada, orientação e disponibilidade durante a realização deste trabalho.
Referências
ZNETTI ,Eloi; FRAGA ,Ronaldo e ;BORGES ,Adélia . ARTESANATO, intervenções e mercados –
caminhos possíveis. SAMPAIO ,Helena (coordenação)São Paulo: Artesol, 2077, 71 páginas.
Recebido em 17 de janeiro de 2015.
Aprovado para publicação em 23 março de 2015
CAVALCANTE ,Claudia . ARTESANATO, produções e mercado. Uma via de mão dupla. São Paulo:
Artesol, 2002.
BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e
P.M. Bardi, 1980.
BAXTER, Mike . Projeto de Produto, Guia prático para o design de novos produtos . Tradução ItiroIida. Editora Blucher, 2011.
BORGES, Adélia. Design+Artesanato. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
FREITAS, Ana Luiza Cerqueira de. Design e artesanato: uma experiência de inserção da metodologia de projeto de produto. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011.
FROTA ,Lélia Coelho . Pequeno Dicionário da ARTE DO POVO BRASILEIRO, séc. XX .Editora
Aeroplano
GUIMARÃES, LiaBuarque de Macedo. Design e Sustentabilidade. Brasil: produção e consumo, design socioténico, FEEng - Porto Alegre – RS
KAZAZIAN, Thierry. Haverá a Idade das Coisas Leve: Design e Desenvolvimento Sustentável.
São Paulo: Editora Senac, 2005.
MANZINI, E.; VEZZOLI, C. O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis.São Paulo: USP. 2008.
MELLÃO, Renata. entreVistas , vol. II design+artesanato. São Paulo –2012 ,Editora A CASA do museu do objeto brasileiro.
MENGOZZI, Frederico. Artesanato no Brasil = Craft in Brazil.São Paulo: Reflexo Texto e Foto,
2000. Edição bilíngue: português/inglês.
RIBEIRO, Berta G. et. al. O artesão tradicional e o seu papel na sociedade contemporânea. Rio de
Janeiro: Funart, 1983.
SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq pela bolsa de iniciação, aos integrantes do Labsol, que trabalhando em
grupo obtém excelentes resultados. Em especial, ao Prof. Dr. Claudio Roberto y Goya, por toda a aju-
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