Território dos Sentidos Ivo Mesquita

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Território dos Sentidos Ivo Mesquita
Território dos Sentidos Ivo Mesquita
Texto publicado no livro do artista “Daniel Senise – Ela que não está”, Cosac & Naify Edições, São Paulo, 1998
I.
Nos anos 80, várias produções pictóricas que se destacaram e agitaram o ambiente
artístico internacional se consolidaram e atraíram a atenção da crítica, das instituições e
do mercado de arte. Essas produções foram desenvolvidas, inicialmente, com apropriação
dos estilos e do repertório da história da arte e da indústria cultural; foram criadas
imagens a partir de imagens, desde um vigoroso e algumas vezes selvagem primitivismo
até o mais refinado maneirismo conceitual e plástico. Essa desafiadora mescla de formas
e as múltiplas manipulações da linguagem artística revelaram pintores que estão entre
os mais interessantes surgidos nos últimos vinte anos: Sigmar Polke, Georg Baselitz,
Ross Bleckner, Anselm Kiefer, Philip Taafe, Julio Galán, Francesco Clemente, David Salle,
Susan Rothenberg, Marlene Dumas, Guillermo Kuitka, Julian Schnabel, Beatriz Milhazes
e Daniel Senise são alguns deles. Especificar a natureza dessas produções não é uma
tarefa fácil, uma vez que elas envolvem uma pluralidade estilística e filosófica que quase
impossibilita a configuração de um todo ou a definição de uma “escola” ou “movimento”
capaz de agrupar ou reunir sensibilidades tão distintas. A pintura é o meio privilegiado
por esses artistas e o arco de questões que constitui a sua tradição, o objeto problematizado
pelos seus trabalhos. Entretanto, em tempos pós-modernos, de globalização e
multiculturalismo, cada uma dessas produções opera no interior de um contexto próprio,
propondo significantes que vão além da especificidade do território plástico. E mais, cada
conjunto de trabalhos é elaborado como uma série de narrativas que apontam para um
imaginário pessoal e um desejo de enunciar algo que afirme a fenomenologia do olhar e a
pintura como possibilidades de organizar e expor idéias, conhecimento ou crítica.
Esses artistas, apesar da pluralidade de estilos, das diferenças de temas e repertórios,
compartilham um mesmo movimento empreendido no sentido de definir o presente pessoal, artístico e ético - em termos de uma relação com o passado, não pelo “bom desejo”
de reconciliar-se com ele, mas como forma de pensar novas possibilidades de produção
de subjetividade e comunicação. A estratégia que adotam não visa inserir o trabalho
na tradição e sim manipulá-la para a construção de novos significantes. Eles querem
recuperar certa experiência visual quase excluída pelo experimentalismo que vigorou nas
décadas de 60 e 70. Não se coloca a questão da morte ou do renascimento da pintura. A
pintura não se apresenta como um problema em si mesma. Apesar das incertezas que se
repetem em sua história tão desconstruída, a pintura continua sendo hoje um território
onde o sentido pode ser criado e comunicado. Porque, para esse grupo de artistas, “pintase não por negligência mas como um meio de construir uma identidade e estabelecer uma
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relação de comunicação e interação com o mundo”.
Com essa intenção, tais produções promoveram o reaparecimento de uma sensibilidade
romântica, identificada com o desejo de realizar uma tarefa, manter em movimento um
campo de referências, ainda que dentro de um ambiente de dúvida e ceticismo. De fato,
esses artistas, na qualidade de pintores, definem-se, muitas vezes, como contadores de
histórias - similares àqueles responsáveis, nas comunidades primitivas, pela manutenção
da ordem e das tradições do grupo através de relatos transmitidos oralmente de geração
para geração. Mas, ao contrário desses narradores, eles sabem que tudo já foi feito, que
não há nada a ser afirmado ou positivado e que o conceito de ficção define aquilo que
produzem. As práticas possíveis são sempre re-leituras, re-escrituras, já ensinava Barthes.
Híbridos do fim do modernismo com a abertura do pós-modernismo, eles guardam uma
certa nobreza e idealismo em sua concepção de arte. Consideram que a pintura é um dado
da cultura - um quadro é um quadro e existe dentro de uma tradição irrevogável que define
a sua natureza - e assumem seu ofício como um meio de construir o sentido ético do
trabalho. Fazer pintura ainda é, talvez, uma forma de pensar uma utopia. Mas não existe
a vontade de ser pedagógico ou educativo. Como estética e como ethos, a sensibilidade
romântica desses artistas caracteriza-se por um princípio que privilegia o sentido em
detrimento da razão. No entanto, é no encontro com a tradição que eles vão fundar a base
conceitual dos seus projetos de trabalho. Na medida em que são apropriações, simulacros,
objetos decorativos, seus trabalhos mexem com algumas das questões que informam o
debate sobre a pintura contemporânea. Contudo, eles se referem também à memória, à
percepção, ao sonho, aos prazeres dos sentidos, a todos os estados mentais que revelam
um desejo de transporte para outros estados e lugares.
Essa peculiar e instigante visão romântica, filtrando a história da cultura moderna e
contemporânea, e ao mesmo tempo sendo filtrada por ela, opera por meio de um viés
representativo e figurativo que às vezes é abstrato, às vezes é realista, mas que está
sempre vinculado ao poder expressivo da pintura e da representação. Os trabalhos são
concebidos como uma ação deliberada e pessoal que vá além da realidade ou das idéias ali
apresentadas. Os próprios artistas assumem o papel de agentes na abordagem dos temas
da arte - história, iconografia, representação, cor, decoração - propondo com a experiência
de suas obras uma evocação, uma metáfora ou apenas uma estrutura formal de apelo
puramente visual.
Tais artistas, porém, são criticados por representarem, de certo modo, uma espécie de
“retorno à ordem” após as experiências radicais do minimalismo e da arte conceitual.
Eles são chamados de conservadores, primeiro porque seus trabalhos reivindicariam uma
continuidade de cunho positivista à tradição encerrada com o modernismo, resgatando os
grandes temas da arte e restaurando histórias nacionais; e depois, porque alimentariam
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o sistema das mercadorias estéticas com um discurso ideologicamente disfuncional,
que reifica apenas as categorias de connoisseurship, moda e objets d’art.. Eles significariam
assim uma espécie de retrocesso, seriam anacrônicos diante do fim da história e da crise
das representações, das possibilidades expressivas dos novos veículos de comunicação
e das urgências do mundo contemporâneo. Entretanto, esses artistas não propõem
o julgamento moral do seu tempo. Pretendem apenas manter uma possibilidade de
percepção e conhecimento. A verdade que buscam não reside na literalidade das coisas ou
dos eventos que pintam, mas no reconhecimento da capacidade que a imaginação tem de
criar, nomear e crer apenas em verdades artísticas. Como observou Craig Owens, em um
texto sobre as tendências revisionistas urgentes nos anos 80, eles são “engaged not (as is
frequently claimed by critics who find mirrored in this art their own frustration with the
radical art of the present) only in the recovery and reinvestment of tradition, but rather in
declaring its bankruptcy - specifically, the bankruptcy of the modernist tradition. What
we are witnessing, then, is the wholesale liquidation of the entire modernist legacy”. A
angústia amorosa por trás dessa produção está associada à idéia de que o artista pinta sem
poder acreditar na pintura, sem acreditar que se possa alcançar, por meio dela, alguma
coisa que esteja além da experiência individual. A pintura faz parte de um jogo, e está
em xeque a todo instante. Para participar do jogo é preciso submeter-se à sua lógica e
acreditar. Isso não é diferente do resto das coisas da arte e da vida.
II.
O Brasil, nos anos 80, viveu um momento de grande euforia por conta de um episódio
de sua historia: em 1984, sob forte pressão popular pedindo eleições diretas e a volta
do governo do país às mãos dos civis, chega ao fim o regime militar de exceção, que
tinha restringido a produção e a circulação de informação e cultura no país, e volta-se à
normalidade democrática. Com o retorno à ordem de direito, a sociedade brasileira passou
a estimular suas possibilidades de expressão e conhecimento, no intuito de identificar
valores artísticos e culturais que pudessem dar conta da nova realidade. O crescimento
da indústria cultural e a popularização das artes, particularmente as visuais, pelos mass
media a partir de então são. por exemplo, sintomas da ordem instaurada pela democracia
reconquistada.
Dentro desse espírito, entre tantos eventos realizados naquele ano, estava a exposição
“Como vai você, Geração 80?”, montada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio
de Janeiro. Nela foram apresentados mais de 120 jovens artistas, quase todos pintores, de
diversas partes do país, muitos deles expondo pela primeira vez. Eles foram recebidos com
uma unanimidade quase total da crítica e do público como a expressão da força renovadora
das artes plásticas nacionais, como uma demonstração da liberdade criativa dos nossos
artistas. Além disso, a volta à pintura proposta pelos trabalhos confirmaria o talento
natural e a vocação da arte brasileira à contemporaneidade, pois o mesmo acontecia
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simultaneamente no resto do mundo. O revival da pintura naqueles anos foi, de imediato,
interpretado como um retorno ao modo direto e sensual de o brasileiro se relacionar com
as linguagens plásticas, como uma reação ao cerebralismo e ao excesso de metáforas
da arte produzida pelas gerações anteriores (o que, no Brasil, significava não apenas o
enfrentamento das questões da visualidade contemporânea mas também estar num
embate constante com a censura institucionalizada pelos militares). A consagração veio
em 1985, quando Rodrigo Andrade, Fernando Barata, Carlito Carvalhosa, Leda Catunda,
Fabio Miguez, Nuno Ramos e Daniel Senise foram apresentados na Grande Tela da XVIII
Bienal Internacional de São Paulo ao lado de artistas como Enzo Cucchi, Gunter Damisch,
Martin Disler, Stefano Di Stasio, Dukoupil, Koberling, Middendorf, Salomé, Hubert
Scheibl, Tadanori Yokoo, algumas das estrelas da cena internacional da época. Entretanto,
como é natural, ao final dos anos 90, daqueles cento e vinte e poucos, somente uns vinte
continuam por aí. Mesmo assim, não são vistas no trabalho deles afinidades suficientes
para que se possa falar em uma identidade artística geracional e programática como a que
existiu, ainda que por pouco tempo, na geração de 22.
Tudo isso para dizer que talvez a Geração 80 seja mais uma figura de retórica do que
propriamente uma geração de artistas brasileiros que tenha transformado o meio
artístico local ou apresentado uma produção mais instigante ou contestadora em relação
às gerações anteriores. Ao contrário, quando se observa a grande maioria da produção
pictórica daquele período, percebe-se o hedonismo narcisista que se movimentava para
produzir imagens e superfícies que não foram além dos estereótipos e clichês de sempre
- paisagens, corpos, explosão de cores, energia - e da vaidade infantil de exibir-se. O
que foi tomado como audacioso, revigorante, tornou-se rapidamente uma convenção.
Gestualidade energética, pinceladas grossas, estocadas de tinta sobre a tela, empasto,
contornos escuros, atitudes “tão cheias de espontaneidade”, foram todos usados como
elementos pictóricos e expressivos à exaustão, até virarem uma mecânica vazia, autoreferente, que alimentava a “expectativa ingênua” no potencial liberador de práticas
artísticas apolíticas e não-dialéticas”.
O que críticos e pesquisadores (eu, inclusive) receberam e aclamaram como renovador
ou revigorante não passou de um evento, ou de uma série de eventos, em um momento
de expectativas e fantasias coletivas. A “Geração 80” enquanto grupo não tinha um
projeto, não definia um programa, não propunha uma estratégia de produção. Propunha
a pintura, ponto. O resto era festa, media e mercado num momento de transformação
nacional, mas não tinha nada a ver com as demandas reais. A pintura se tornou um
fetiche, objeto aurático, de culto, para consumidores. A estratégia de apropriação dos
estilos e de prática do mainstream foi entendida como um desdobramento contemporâneo
das estratégias de assimilação propostas pelo Manifesto Antropófago de 1928. Os brasileiros
não tem raízes nacionais tão profundas como os alemães e os italianos, que puderam
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pensar , naquele momento, num neo-expressionismo ou numa pittura-colta. A condição
de país periférico, dependente de livros e reproduções para formar seus artistas, aliada à
noção de canibalismo cultural, alimentou o mito de que se estava fazendo “arte brasileira”,
dentro de uma tradição local. Ninguém se deu conta de que, na relação com a história
da arte, o signo pictórico não é transparente nem está disponível como mercadoria: ele é
uma estrutura codificada que não pode ser expressiva sem a mediação de um projeto de
trabalho comentado ou problematizando o sistema que cria a sua necessidade.
O entendimento superficial e mecânico da apropriação como prática artística e do
Manifesto Antropófago deve corresponder a uma necessidade de escrever a história, ser
agente (novamente) do próprio destino, mas a falta de um panorama consistente
fomenta uma ansiosa busca de sintomas e acontecimentos capazes de conferir uma
linearidade a essa escritura. Acrobacias intelectuais são necessárias para fazer os fatos
aparecerem como necessidade histórica, construídos por uma extrema urgência de
fatores sociais, políticos e culturais. Por ser quase sempre reativa e não problematizadora
dos movimentos e tendências internacionais, a produção artística brasileira ainda não
ganhou a consistência que possibilita escrever uma história da arte de forma linear e
orgânica, não com uma geração sucedendo a outra no tempo, e sim com o encadeamento
das questões que engendram os modos e processos de produzir visualidade. Mas talvez
isso nem interesse mais. O importante é perceber que somos um monte de fragmentos
(impossível formar uma imagem única que dê conta da diversidade sociocultural do
país) e que estamos tentando construir algo a partir dessas partes, que se fragmentam de
novo. A “Geração 80” foi um deleite do mercado de arte e da media, porém não teve fôlego
suficiente para se impor como movimento contundente dentro de uma possível história da
arte no Brasil. Quase todas as obras daqueles anos revelam-se hoje como “derivativas” em
relação ao que se fazia no resto do mundo, funcionam apenas como imagens-miragens de
individualidade e liberdade pessoal.
III.
As pinturas de Daniel Senise, desde o princípio, estabeleceram uma relação direta com a
história da arte, com o universo das imagens e os seus modos de construção e percepção.
Testemunhas do compromisso do artista com a pintura como linguagem, o conjunto
delas demonstra uma articulada orquestração de significantes - o próprio meio expressivo,
a superfície plana, apropriação, representação, percepção, cultura de massas e o seu
imaginário pessoal - em trabalhos que, longe de ser pura expressão pictórica, inauguram
o retorno à pintura como diferença conceitual e positiva da modernidade que orientou
as gerações precedentes. Elas são o registro de quinze anos de luta de Senise na busca de
composições de linguagem, de matérias expressivas, de constituição de configurações.
Como trazer frescor ao olhar saturado deste fim do século? Como continuar vivendo dos
fragmentos da ironia dissecadora do estilo pós-moderno? Como alimentar e sobreviver em
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um território simultaneamente utópico e em colapso? Como produzir “algo de inesperado
quando já não existe mais espera”? Essas são algumas das questões que têm sustentado o
trabalho de Senise.
Como outros artistas brasileiros aparecidos entre o final dos anos 70 e o início dos 80 e
envolvidos com as tendências emergentes de seu tempo, Senise, inicialmente, construiu
paisagens povoadas por formas volumosas, heróicas mesmo, que ocupavam a quase
totalidade da tela, impondo-se como presenças monumentais mas vazias de qualquer
conotação temática. Uma paleta econômica de cores soturnas usadas com gestos precisos,
objetos híbridos, fragmentos de corpos e arquiteturas, articulações de formas e detalhes
apropriados da história ou de outros artistas - tudo isso servia a uma especulação sobre a
construção do espaço pictórico, o sentido da pintura e da representação. Esses primeiros
trabalhos revelam o empenho de Senise para delimitar um território de trabalho: ele
revisitou e inventariou os diversos estilos que formam a modernidade, emprestando
deles ícones e significantes. Nesse momento, contudo, não são as obras históricas que
estão na mira do pintor; ele procura o expressionismo invocado por Baselitz e Kiefer, ou o
cubismo reinterpretado por artistas como Markus Lupertz (Sem título, 1984) [019-84] . Como
observou Wilson Coutinho, as pinturas das primeiras exposições, imagens de objetos
que na sua estranheza tentam escapar da banalidade da existência pela grandiloquência
de suas presenças, são como um “teatro das sensações mutiladas”, oferecendo-se como
“dispositivo retórico e cenográfico” em uma “atmosfera de catástrofe e terror noturno”.
“Teatro da pintura”, elas são a visão que se ocupa da cena, transformando o mundano,
o corriqueiro e o que é negligenciável em algo ‘possuído’ pela inquietação das coisas.”
Essas incursões à tradição serão recorrentes no trabalho do artista. No entanto, haverá
uma mudança no sentido da relação com a história da arte: a passagem da apropriação
de elementos de estilos para uma apropriação mais lateral do presente, das imagens
da tradição percebidas através da indústria cultural e que formam um certo imaginário
coletivo contemporâneo.
Como que se dando conta do esgotamento ou das limitações das estratégias “neo”
e como que para encerrar o que se pode chamar de seu período de formação, Senise
lança-se, em seguida, num embate direto com a tela e com a criação de imagens, que,
embora às vezes preexistentes e referenciais, são indissociáveis dos processos de fatura
investidos em sua formação. Coincidindo com as primeiras pinturas a óleo, o trabalho
concentra-se na elaboração da materialidade da superfície. O acúmulo e a mutilação das
imagens que dominaram os primeiros trabalhos dão lugar a formas mais definidas, não
limitadas umas pelas outras nem contidas pelos limites do quadro. As cores passam a
ser mais intensas e variadas e as formas sobre as telas, mais pictóricas do que gráficas,
recolocando-se a questão figura e fundo, ausente na produção anterior. Essa série de
pinturas caracteriza-se pela “ausência de profundidade do fundo, que, apesar de seu
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tratamento matérico, é basicamente plano”, e pelo contraste do fundo com as formas
isoladas, como que aplicadas sobre ele. Introduz-se, desse modo, uma outra compreensão
da imagem pictórica na obra do artista. (Sem título, 1987) [121-87].
Com a mudança das telas de lona para cretone, tecido mais permeável, e com a adoção
de procedimentos técnicos como o frottage e marouflage, a pintura de Senise ganha
especificidade e adensamento. Tais procedimentos resultam em uma pintura desenvolvida
em muitas etapas, dando ao artista uma elasticidade espacial, o que lhe permite fazer
coexistir simultaneamente, na mesma superfície, áreas de opacidade e de vertiginosa
profundidade. As imagens vão ficando cada vez mais imbricadas com o processo de
construir o plano pictórico, são cada vez mais engendradas na articulação entre figura
e fundo. “Essa articulação só é possível porque a matéria, determinada pelo modo como
o suporte é tratado, integra os objetos pintados à superfície da tela. A matéria sobredetermina, pois, o caráter imagético dessas pinturas” (V.G. [p.73] [182-89], e Ex-Voto [p.97]
[185-89]). É como se o olhar do artista abandonasse o mundo exterior para encontrar a vida
que habita a fina espessura que reveste a tela.
As pinturas desse momento inauguram a singularidade do projeto de trabalho de Senise. Tal
projeto se define pela construção de paisagens imaginárias habitadas por acontecimentos,
formas, citações que emergem do fundo sem explicitar-se integralmente, deslizando
pelo espaço, quase figuras, ainda sombras, fragmentos de algo que já esqueceu o todo e
busca uma outra existência. Senise mostra ao observador um mundo de ambigüidades em
refinadas elaborações de pentimento e chiaroscuro, e o olhar deve ser aguçado, porque o que se
vê são pedaços de vida, partes de uma autobiografia psíquica e sentimental, objetos parciais
costurados com a história e eventos de mitos existenciais. Ele lança questões que suspendem
e congelam o tempo, que formam as imagens virtualmente impenetráveis à literalidade do
significado, esquivas a uma interpretação fixa, à reconstituição de uma história ou uma
iconografia formalizada. Fascinantes, essas imagens incursionam por terrenos onde o
mundo visível vê seus limites se desfazendo pouco a pouco para dar lugar a objetos/artifícios
produzidos por “uma ânsia por objetos inexistentes”.
Esses trabalhos mais narrativos, onde proliferam imagens e signos associados à presença
de um repertório de ícones emprestados da arquitetura, dos motivos religiosos e populares
ou da história da arte, têm servido a uma aproximação, por certa crítica, da produção de
Senise a de outros artistas latino-americanos: Guillermo Kuitca, Julio Galán, Juan Dávila,
Arturo Duclos, Adriana Varejão, Nahum B. Zenil... Essas produções são entendidas
como parte de uma longa tradição na visualidade continental de artistas híbridos e
sincréticos, que tomaram a história global como base para a criação do trabalho e que
estão empenhados no esforço de manter o campo em funcionamento. Embora corretos
em apontar semelhanças entre os artistas, esses críticos não percebem que aquilo que
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identificam como regional nesses trabalhos não é suficiente para gerar interpretações
e dotá-los de pertinência. As categorias de gênero, raça ou etnia propostas pela sócioantropologia pós-moderna não têm-se mostrado instrumentos críticos bastantes para
apreender s extensão do fenômeno plástico. Estratégias que se baseiam na hibridização
de estilos e da iconografia, na prática da apropiação ou do citacionismo - decorrência
natural da condição periférica e colonizada desses países, como justificam alguns-,
não são privilégio de latino-americanos e sim um sintoma indicativo de uma instância
do barroco na atualidade, no dizer de Severo Sarduy. Essas instâncias de barroco desdobramento cultural do barroco histórico que particularmente na América Latina
revelou-se fecundo em realizações paradigmáticas na construção da visualidade local querem ultrapassar a literalidade da iconografia, da cultura vernacular ou dos temas como
erotismo e mortificação. Querem se referir, isto sim, aos processos de difusão semântica,
à produção de ambigüidades, à proliferação incontrolada de significantes, ao gosto pela
artificialização, à possibilidade de comentários sempre multiplicáveis e ao “envolvimiento
sucesivo de uma escritura por otra”. Dessa forma, podem-se perceber instâncias do barroco nos
filmes de Peter Greenaway ou em Matthew Barney, nas novelas de Italo Calvino, nas
pinturas de Philip Taafe, nas fotografias de Evergon ou no design de Delacroix.
“...el barroco atual, el neobarroco, refleja estructuralmente la inarmonia, la ruptura
de la homogeneidad, del logos en tanto que absoluto, la carencia que constituye nuestro
fundamento epistémico. Neobarroco del desequilibrio, reflejo estructural de un deseo
que non puede alcanzar su objeto, deseo para el cual el logos no ha organizado más que
una pantalla que esconde su carencia... Neobarroco: reflejo necesariamente pulverizado
de un saber que sabe que ya non está “apaciblemente” cerrado sobre sí mismo. Arte del
destronamiento y la discusión”.
O trabalho de Senise sugere a busca de uma redefinição do espaço da pintura na
contemporaneidade. Em Sem título (p. 87.) [170-88], a cena que se apresenta por detrás
da cortina vermelha é interrompida por um elaborado recorte negro, profundo e
perturbador, que se abre como um espaço entre a superfície e a representação. É
exatamente aí, neste espaço “entre”, o território da prática da pintura. Numa referência,
quem sabe, a Les Demoiselles d’Avignon (1906-1907), que descortinava o projeto modernista
na pintura, a abertura descortinada por Senise traz para o artista a possibilidade única
de caminhar em um labirinto povoado de fantasmas cansados da tarefa de significar. A
pintura propõe-se então como intertextualidade - citações, reminiscências e filigranas
intrínsecas à produção imagética - e a superfície da tela oferece-se como espaço para uma
operação constante de re-leitura de signos, ícones e procedimentos, formando outras
constelações de sentido, prestes a entregar-se a novas leituras. O que esta representação
representa é precisamente o fato de não ser mais que uma representação, um artifício
e um divertimento plástico que surge do empenho que se põe na pintura. Aqui, ela e
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sua tradição são códigos utilizados como lugar-comum, ambas são esvaziadas de sua
funcionalidade e estilizadas como modelo, sempre reiterado, de artifício, que é o que
suporta a pintura enquanto prática de ficção. Pintar é contar histórias.
O trabalho de Senise retém as lições da história, mas sem deixar de criticar a dimensão
idealista da tradição. O legado deixado por ela é formado por imagens gastas pelo tempo,
bandagens e oxidações, superfícies às quais já se infringiu toda ordem de operação
e discurso. Como em uma paisagem calcinada, o que se vê são vestígios de coisas. A
prática de Senise comenta a história de arte como algo “que não está”, que o que dela se
pode dispor são ferragens abandonadas, às quais ele funde panelas recolhidas em uma
propaganda de jornal para compor uma Santa Ceia liderada por uma paródia do Cristo
emprestado do Juízo Final, de Michelangelo, em Last Supper (p.167) [327-93]. Outras vezes,
ao apropriar-se de uma imagem, Senise condensa esses significantes até sua estrutura
mínima, rejeitando qualquer significado anterior que eles possam ter, para construir
uma “ilusão de óptica” em meio a brumas e miasmas. Como figuras de silhueta, sombras
saídas de velhos daguerreótipos, essas pinturas falam da banalidade na construção do
jogo visual, declarando sua dependência, assim como a de todas as outras formas de
empenho humano, do mundo material e histórico. Senise empresta do passado um objeto
ou o que restou dele, uma imagem, não um estilo. Suas pinturas não aspiram a nenhuma
nobreza ou eternidade universal. Apresentam-se em sua deliberada precariedade,
somando-se à transbordante produção de signos visuais de uma ambiente saturado. Jogos
ópticos, diagramas de visibilidade, tautologias, pontos de vista duplos e incompatíveis,
puras fantasias, trágica melancolia desdobram-se do olhar vagamundo do artista e
se reproduzem como colagens de fragmentos, apropriações e referências derivadas da
sua relação com o mundo visível: objetos do cotidiano, anúncios de jornal, detalhes de
fotografias escolhidas ao acaso, além da indústria cultural, acesso facilitado à ilusão da
história. No entanto, mesmo como elementos apropriados e manipulados, eles mantêm
a sua identidade, recusando a ilusão de fazer parte de um todo. Ou, de outro modo, com o
trabalho eles afirmam a impossibilidade de se construir/perceber um todo.
“Today Senise’s work is a painting of problems intercut by the gaze and by History ...
His paintings diagrams a sense of perplexity in the face of a crisis of the discussion about
excess, the end and the eschatological tyranny of History. In this time of doubt, disbelief,
and uncertainty, a remark of the artist’s would appear to be the key to the meanings
negotiated with the gaze: “I prefer to state the problem rather than the solution”.
O interesse despertado pelo trabalho de Daniel Senise pode residir no fato de que seu
universo pictórico se constrói sobre a consciência da inutilidade do gesto, em um mundo
irremediavelmente fragmentado, que se separou da natureza, onde um quadro é um objeto
em si mesmo, condutor de signos à deriva, de relâmpagos inúteis em uma cadeia de efeitos
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sem causa, na escritura e concreção do nada. Espaços de incertezas, reconhecimento
inelutável do trágico da condição humana, essas pinturas, no entanto, oferecem-se, a
um observador seduzido, como janelas, território dos sentidos, da desordem, propondo a
possibilidade de subversão individual da ordem de morte que rege a vida.
1 Esta é uma versão revista e aumentada do texto publicado no catálogo Daniel Senise: The Enlightening Gaze, Museo de Arte
Contemporáneo de Monterrey, México, 1994, pp. 9-15.
2 Temos de ter sempre em mente, ao falar de pintura, que seu primeiro necrolólogico foi escrito com o aparecimento da
fotografia em meados do século XIX. Desde então, a pintura vem sendo praticada, para o bem e para o mal, com altos e baixos,
mas sempre de forma independente dos vaticínios e asserções da crítica, instituições, mercado e público. A pintura continua
em questão, e pode ser negada ou afirmada na forma de fotografia, Photoshop ou tinta sobre tela.
3 Daniel Senise em depoimento para o autor em novembro de 1997.
4 Sobre o conceito de neo-romantismo, ver o ensaio de Howard N. Fox, “A New Romanticism in Italian Art”, no catálogo A New
Romanticism, Washington D.C., Hirshorn Museum and Sculpture Garden/Smithsonian Institution Press, 1985, pp. 6-17.
5 Sobre este tema, ver artigos de Benjamin H. D. Buchloch, “Figures of Authority, Ciphers of Regression”, no livro de Brian
Wallis (org.), Art after Modernism: Rethinking Representation, Nova York/Boston, New Museum of Contemporary Art/David R.
Godine, Publisher, Inc., 1984, pp. 107-35; e de Douglas Crimp, “The End of Painting”, em seu livro On the Museum`s Ruins,
Cambridge, MIT Press, 1993. pp. 84-106.
6 “Engajados não (como é frequentemente afirmado pelos críticos que encontram nesta arte o reflexo de sua própria frustração
com a arte radical do presente) apenas na recuperação e reinvestimento da tradição, mas antes em declarar sua falência –
especificamente, a falência da tradição modernista. O que assistimos, então, é a completa liquidação do legado modernista
como um todo” Craig Owens, “Honor, Power and the Love of Women”, publicado na revista Art in America, n.71, ja. 1983, p.9.
7 Benjamim H.D. Buchloch, op.cit., p.120.
8 Não estou aqui renegando o meu entusiasmo e apoio àqueles jovens artistas, meus companheiros de geração. Foi um tempo
de muita conversa produtiva, aprendizado e festa. Foi legal e ficaram algumas grandes amizades. Mas o tempo mostrou-me o
quanto havia ali de afoiteza e inexperiência de juventude. Normal.
9 Daniel Senise em depoimento ao autor em novembro de 1997.
10 Wilson Coutinho, texto sem título no catálogo Daniel Senise, XVIII Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo, Subdistrito
Comercial de Arte, 1985.
11 Fernando Cocchiarale, texto sem título no catálogo Daniel Senise, XX Bienal Internacional de São Paulo, Subdistrito Comercial
de Arte, 1989.
12 Para uma descrição da técnica utilizada por Senise a partir de 1988, ver textos de Fernando Cocchiarale, mencionado
anteriormente, e de Bruce Guenther, “Daniel Senise: Surface Dialogue” na publicação Daniel Senise (série Options 42), Chicago,
Museum of Contemporary Art, 1991.
13 Fernando Cocchiarale, ibid.
14 Daniel Senise em depoimento ao autor em junho de 1993.
15 Severo Sarduy, “El Barroco y el Neo-barroco”, in Cesar Fernández Moreno (org.), America Latina en su Literatura, Paris/México,
UNESCO/Siglo XXI, 1972, pp.167-85.
16 Ibid., p.183. “…o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do
logos como algo absoluto, a carencia que constitui nosso pensamento epistemologico. Neobarroco do desequilibrio, reflexo
estrutural de um desejo que nao pode alcançar seu objeto, desejo para o qual o logos pôde organizar mais do que uma tela
para esconder a sua carencia… Neobarroco: reflexo necessariamente pulverizado de um saber que sabe que já nao esta
pacificamente fechado sobre si mesmo. Arte do destronamento e da discussão.
17 Daniel Senise em depoimento ao autor em novembro de 1997.
18 Paulo Herkenhoff, Daniel Senise, Nova York, Charles Cowles Gallery, 1995, p.11. “Hoje, a produção de Senise é uma pintura
dos problemas entrecortados pelo olhar e pela História… Suas pinturas diagramam um senso de perplexidade no âmago de
uma crise da discussão sobre o excesso, sobre o fim e sobre a tirania escatólogica da História. Nesta era de dúvidas, descrença
e incerteza, uma citação do artista aparece como chave dos significados negociados com o olhar perscrutador: “Eu prefiro
apontar o problema em vez da solução”.”
10/10www.danielsenise.com

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