Cuidar da Família ao longo da vida
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Cuidar da Família ao longo da vida
Cuidar da Família ao longo da vida Catalogação recomendada DURO, Susana Cuidar da Família ao longo da vida / Susana Duro. – Lisboa : Universidade Católica Editora, 2013. – 120 p. ; 23 cm ( Investigação ) ISBN 978-972-54-0372-3 I – Tít. II – Col. CDU 316.356.2:616-083 616-083:316.356.2 © Universidade Católica Editora | Lisboa 2013 Edição: Universidade Católica Editora, Unipessoal, Lda. Revisão Editorial: António Brás Pré-impressão, impressão e acabamento: Europress, Lda. Data: Janeiro 2013 Depósito Legal: 352131/12 ISBN: 978-972-54-0372-3 Universidade Católica Editora Palma de Cima - 1649-023 Lisboa Tel. (351) 217 214 020 | Fax. (351) 217 214 029 [email protected] | www.uceditora.ucp.pt Susana Duro Cuidar da Família ao longo da vida Lisboa Universidade Católica Editora 2013 Índice Nota Prévia 7 Prefácio9 Introdução 13 Capítulo 1 – Abordagem ao fenómeno e metodologia 1.1.Questões orientadoras 19 1.2.Critérios de selecção do cuidador a entrevistar 20 1.3.Procedimentos de colheita de dados 21 1.4.Procedimentos de análise 21 Capítulo 2 – Resultados da análise 2.1.Panorâmica sobre os eventos marcantes da narrativa 23 2.2.Cuidar da família ao longo do ciclo de vida 26 2.2.1. Cuidar em criança 27 2.2.2. Cuidar dos filhos 35 2.2.3. Cuidar da mãe 37 2.2.4. Cuidar da família alargada: percebendo o cuidar como necessidade 40 2.2.5. Cuidar da avó 61 Capítulo 3 – Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro91 Capítulo 4 – As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida: o cuidar intergeracional99 Conclusão 107 Bibliografia 113 Nota Prévia A evolução demográfica dos últimos anos tem levantado um conjunto de preocupações a propósito do envelhecimento, tendo em conta a necessidade de responder aos desafios que esta etapa da vida representa para as pessoas e para a sociedade organizada. A aposta crescente que tem vindo a ser feita na criação de redes de apoio domiciliário, associada a um cada vez maior desenvolvimento dos cuidados paliativos, tem dirigido a atenção (e investigação) dos enfermeiros para questões que se relacionam com a sobrecarga dos cuidadores familiares. No entanto, as razões pelas quais muitos familiares escolhem prosseguir com uma assistência muitas vezes penosa e exigente – mesmo até ao momento da morte – não têm sido exploradas tão extensivamente. Torna-se então relevante aprofundar as circunstâncias que podem estar presentes naquelas situações em que o cuidador apresente, ou tenha desenvolvido, um forte sentido para cuidar. A investigação começou com a seguinte pergunta de partida: como se encontra sentido para cuidar de um familiar com doença incurável até ao momento da morte? Este é um estudo de caso baseado na análise da narrativa de uma cuidadora familiar. A cuidadora seleccionada estava inserida na base de dados de doentes acompanhados por uma equipa de cuidados continuados de um centro de saúde e tinha cuidado da familiar até ao momento da sua morte. A selecção ponderou a experiência da equipa relativamente aos cuidadores que ajudaram. A análise mostrou uma história de vários episódios anteriores de cuidado, que revelaram, em relação ao processo de tomada de decisão, três momentos distintos ao longo do tempo: o cuidar por obrigação, o cuidar por escolha e o cuidar como missão de vida. O percurso de cuidar da cuidadora desenvolveu-se perspectivando um ideal de cuidar da família ao longo da vida. Este modelo de cuidar da família, baseado na sequência de gerações e apoio mútuo – no contexto de um ciclo de vida familiar tradicional – foi posteriormente analisado na sua relação simbólica com o tempo, procurando perceber de que forma esta relação interfere com processos da família e se relaciona com as alternâncias das relações entre poder e vulnerabilidade que se estabelecem ao longo da vida. Nota técnica da autora: Para que fosse possível analisar as variações do discurso transcrito em verbatim e, além disso, cumprir com rigor os sons audíveis, foram adoptadas convenções de transcrição que irão surgir ao longo das citações do discurso da cuidadora. Para uma melhor compreensão do leitor passam-se a listar: (número) – Pausa no discurso traduzida em segundos. PALAVRA – Aumento da amplitude da voz. (paraverbal) – Descrição de possíveis aspectos da linguagem não-verbal/ /expressão pessoal relevantes. Itálico – Discurso relativamente ao qual se referem as descrições do paraverbal. Palavra – Frases emitidas com ênfase ou vigor. Palavra (?) / texto (?) – Confinam transcrições incertas, incluindo a «melhor suposição» do transcritor. Palav … – Palavra incompleta ou interrompida. [texto] – Sobreposição do discurso. {notas} – Aspectos relacionados com questões técnicas de gravação. Palavra::: – Prolongamento de sons. hhh – Inspirações audíveis. Prefácio O próprio título desta obra “Cuidar da Família ao longo da vida” sugere que a reflexão que a antecede sob a forma de prefácio seja feita à volta de três conceitos fundamentais e estruturantes da própria obra: o cuidado, a família e a vida. Numa sociedade individualista como parece ser cada vez mais a atual, o cuidado dos outros aparece como paradoxo e como esperança. Como paradoxo, porque cuidar exige uma atenção para fora de si, centrada no outro, para além do que pode ser o meu próprio interesse. Exige que me comprometa, leva-me a agir, apela à minha solicitude na convicção que posso fazer sempre algo mais. E a solicitude exige-me conhecer as necessidades daquele que cuido, porque devo fazê-lo no sentido do seu próprio interesse. E esta tarefa não é fácil. Por isso é também esperança, porque é o cuidado que mantém a vida e, em cada instante, nos é dado testemunho de que os seres humanos continuam a cuidar uns dos outros. E a família, ontem como hoje, qualquer que seja a sua dimensão, é o lugar privilegiado do cuidado. Porque o cuidado obriga à partilha e à participação no caminho do outro. Um caminho de tolerância pelo ritmo de cada um, pelo modo de ser e crescer individual, no amor que une os diferentes membros num destino comum, criando oportunidades para aprender e cuidar mais. Porque podemos escolher os amigos, mas a família está sempre lá, para cuidar e ser cuidada. E aqui lembramos Nietzsche: «…quem promete a alguém amá-lo sempre, […] promete algo que não está em seu poder; mas o que pode perfeitamente prometer são aquelas ações que, na verdade, são geralmente as consequência do amor […], mas que também podem emanar de outras razões1». Por isso o cuidado surge também como obrigação, como promessa a cumprir sem opção. Mas é sobretudo uma vontade assumida de estar ali, fazendo do gesto e do afeto a razão de ser família. De ser família ao longo da vida. Primeiro, ser família onde se nasce e se é cuidado, se cresce e mais cedo ou mais tarde se participa no cuidado aos outros. Por vezes muito cedo, por vezes sempre. E neste estudo se dá conta das situações que levam as crianças a cuidar dos outros, na família, lembrando fatores que intervêm para a construção desta realidade: seja a privação económica da família, a inexistência de redes 1 Nietzsche, F. – Humano, Demasiado Humano. &58. 10 | Cuidar da Família ao longo da vida de suporte, a monoparentalidade ou separação dos pais, ou a existência de doença crónica, entre outros. Em muitas circunstâncias as crianças cuidam dos pais, dos irmãos e dos idosos, seja na satisfação das suas necessidades pessoais ou seja no serviço doméstico. Como enfermeira, a autora manifesta sua preocupação com as consequências que esta atividade tão precoce na vida de algumas crianças possa ter na sua saúde, numa fase posterior, mas não encontram eco na literatura científica. Como refere, aspetos positivos e negativos têm sido identificados, mas os negativos parecem mais associados aos problemas que estão na origem da necessidade de cuidado por parte dos familiares mais velhos, que à própria atividade de cuidado em si. Pelo contrário, a experiência pode ajudar a crescer em solidariedade e responsabilidade se acompanhada e compreendida. Depois, ser família onde a maternidade surge como situação particular de cuidado inquestionável. Não que algumas mães não sejam incapazes de cuidar, mas porque o dever de cuidar surge da concretização de um querer, associado à decisão de ter filhos, embora se apresente simplesmente como aquilo que é socialmente esperado. É desta forma que o cuidado de um filho «é fácil» simplesmente porque não é questionável, afirma a autora. E por fim, de ser família onde os mais velhos, antes suporte e exemplo, adoecem e se apresentam vulneráveis, carecem de cuidados que nem sempre a família pode superar. Na verdade, este é hoje o maior desafio da sociedade em que vivemos. Em que o dilema de muitas famílias, que não podem cuidar dos seus e nisso experimentam o sofrimento associado ao não poder ser família, coexiste com o escândalo do abandono dos mais frágeis pelas famílias que o não são. Cuidar da mãe que adoece e da avó no fim da vida, emerge, na narrativa em estudo, como um imperativo particular que concilia o que é pensado como obrigação e o que é sentido com uma necessidade individual de ação. Na narrativa em estudo, cuidar aparece também como uma forma de cuidado pessoal, como algo que é bom para aquele que cuida. E porque cuidar é bom para mim, é nisso que qualquer decisão se fundamenta. Sem dúvida ou hesitação. É escolha. É uma necessidade sentida a que é preciso dar expressão sem espaço para a incerteza. É aqui que a conclusão de que a ação de cuidar do outro é determinada por algo que é «bom para si» leva a autora a um alargado conjunto de questões éticas. Qual o valor ético da ação de cuidar motivada por interesses que muitos considerariam egoístas? Qual a perspetiva ética sobre um cuidar por interesse próprio, que é simultaneamente cuidado de si? Apresentando-nos a perspetiva de diversos autores, importa considerar que os compor- Prefácio |11 tamentos altruístas não necessitam de ser completamente não recompensados. Talvez baste que se focalizem no outro e que a sua razão primeira seja a intenção de aliviar o sofrimento ou garantir o bem do outro a quem o cuidado é dirigido. E diariamente verificamos que a ação de muitos cuidadores está imbuída de altruísmo e que, em pequenos gestos, desenvolvem uma ação tão significativa para si próprios quanto essencial para a manutenção da família e da sociedade. Esta interação pode parecer paradoxal: ao mesmo tempo que assume a fragilidade do outro ser humano e a inevitabilidade do seu sofrimento, cuidando dele, o cuidador confronta-se com a possibilidade real de não ser capaz de suprir as suas próprias necessidades e, nesse cuidado ao outro, procura formas de cuidado de si. E encontra um sentido para a sua vida. Por fim, a autora analisa ainda como o sentido de cuidar da família ao longo da vida precisa, em si, de ser também cuidado. Porque os limites individuais não permitem ocultar as necessidades de quem cuida. E as tarefas de autocuidado não podem ser descuidadas. A necessidade de apoio contínuo na interação familiar quando não satisfeito pode originar isolamento social e sensação de desamparo, nem sempre aliviados pelo sentido de coerência interior, ainda que o cuidador sinta que faz o que deve, e que o deve porque quer. E é assim que, mesmo carecendo de cuidados, quem sempre cuidou e percebeu a importância desta ação para quem cuida, continua a sua tarefa de cuidar deixando-se cuidar por outros, numa oferta generosa de si ao cuidado. As experiências de cuidar de si e dos outros no passado, podem exercer uma grande influência sobre a forma como é vivida a situação de receber cuidados na dependência ou velhice. Como refere a autora, permitir-se ser cuidado por outros é frequentemente uma estratégia de continuar a contribuir para o desenvolvimento e realização pessoal de quem cuida. Neste estudo, a partir da análise da narrativa de uma pessoa, que foi criança, mulher e mãe, filha e neta, amiga e solidária em diferentes ou simultâneas fases da sua vida, a autora tenta perceber o espaço que o cuidado tem tido e continua a ter na base da construção social que é a família, concluindo que as dinâmicas de cuidado acabam por se tornar reveladoras da força das relações existentes entre os diferentes elementos que a compõem. Ao longo desta obra percebemos que cuidar é tanto a razão quanto o produto da família e que se encontra intrinsecamente unido aos processos de desenvolvimento do ser humano, no que tem de mais humano – a sua relação com o outro mais frágil. É assim facilmente compreendida a relação estabelecida entre a família e os profissionais de saúde que lhe prestam cuidados no domicílio: uma relação de confiança em que o cuidado é compreendido e par- 12 | Cuidar da Família ao longo da vida tilhado entre a família e os enfermeiros que, como a autora, partilham o mesmo espaço de ação e significado. Este é o estudo de uma enfermeira que, para além dos resultados obtidos, coloca a ênfase num método com grande potencial para o conhecimento que a enfermagem traz hoje à comunidade académica e ao trabalho multiprofissional em saúde. O resultado final contribui para uma perspetiva global sobre o cuidar familiar, as suas dinâmicas e evolução no tempo. Não podemos deixar de concordar com a autora, quando evidencia estes aspetos como particularmente importantes para o enquadramento e definição da intervenção do enfermeiro de família no seu campo de ação específico. Cuidar da Família ao longo da vida é um estudo, mas é também uma perspetiva única e muito específica do fenómeno estudado, na medida em que contêm uma direção intencional, e na escrita simultaneamente científica e poética com que a autora nos brinda, cria pontes simbólicas entre o passado, o presente e o futuro da pessoa em cuja narrativa se baseia e constitui um caminho para o esclarecimento do mistério que é o cuidado – e embora acreditemos que o cuidado permanecerá sempre um mistério, ler este livro permite desocultá-lo o suficiente para começar a percebê-lo! Margarida Vieira Dezembro 2012 Introdução No ponto de partida para um percurso de investigação, as questões sobre a pertinência do estudo e motivações pessoais são necessárias, mas, também, praticamente inevitáveis. Neste estudo em particular, as respostas encontram-se no ponto de convergência de duas realidades a diferentes níveis: por um lado, um contexto social dominado por um crescente número de pessoas que necessitam de cuidados de saúde prolongados (e uma cada vez maior necessidade de suporte da família e da comunidade); por outro, um percurso profissional que passou pelo cuidado a doentes idosos, oncológicos e, posteriormente, pela prestação de cuidados paliativos no domicílio. Este conjunto de experiências proporcionou um confronto constante com a perspectiva do fim de vida em diferentes contextos assistenciais. Relativamente aos idosos, Satow (2005) aborda o problema considerando uma dicotomia existente entre os problemas individuais e as questões sociais: «a questão social é o aumento das pessoas idosas […] os problemas são as experiências daqueles de nós que têm de cuidar dos pais idosos numa sociedade que não se preparou para os cuidar – apenas assegura a sua longevidade» (p. 249). A noção de que a enfermagem acompanha o ser humano desde o nascimento até à morte pressupõe uma consciência das transformações que decorrem da passagem do tempo (o crescimento e o envelhecimento), mas também das que podem decorrer de experiências de crise e que podem acontecer em qualquer das etapas da vida. Assim, a morte de um ser humano pode constituir um momento difícil para a sua família e, nesta perspectiva, ela deverá ser um foco de atenção dos enfermeiros. Se pensarmos que esta crise pode atingir membros da família em diferentes etapas do seu ciclo vital, rapidamente deduzimos o grau de complexidade que este acompanhamento pode implicar. Há, por isso, que ter presente, com Wright (2005), que «[o] sofrimento não afecta unicamente a pessoa doente. A doença é um assunto de família e todos os familiares sofrem» (p. 43). Percebe-se, assim, que as questões sobre a morte e o morrer possam começar pela necessidade de compreender as transformações que ocorrem na pessoa (que está a morrer), mas que naturalmente evoluam para a necessidade de compreender as que ocorrem no seio da família que opta por cuidar do doente em fase terminal. Este contexto pressupõe (quase sempre) a introdu- 14 | Cuidar da Família ao longo da vida ção de uma variável que o torna muito particular: a existência de um ou mais cuidadores com um passado de ligação entre eles e a pessoa que está a morrer. Nesta perspectiva, os cuidados de enfermagem desenvolvem-se de forma mais alargada, tal é a importância que a família e a comunidade assume na promoção do bem-estar no contexto domiciliário. O envolvimento com doentes em fim de vida e suas famílias, que buscam respostas para o que experimentam, expõe dificuldades para ajudar e dúvidas sobre o sentido da morte, do sofrimento e, inevitavelmente, sobre o sentido da vida. Durante a minha prática profissional, tenho tido oportunidade de observar cuidadores em situações de sofrimento extremo durante o cuidado ao familiar doente e, mesmo assim, querendo prosseguir nesse acompanhamento. Perguntei-lhes e perguntei-me várias vezes sobre o sentido que estava subjacente a um agir que acarretava tantas dificuldades. É desta reflexão que deriva a pergunta que me lançou para esta pesquisa: como se encontra sentido para cuidar de um familiar com doença incurável até ao momento da morte?1 A pesquisa na base de dados EBSCO com as palavras-chave meaning e care revelou que, na generalidade, os artigos abordam as questões do sentido da vida inseridas na discussão sobre a espiritualidade. No início da investigação foram isolados os conceitos-chave (Flick, 2005) que iriam constituir a base da pesquisa. A pergunta de partida foi decomposta para tornar evidentes os elementos fundamentais: as pessoas (cuidador familiar e doente), a procura de sentido e o cuidar. Questões relacionadas com a procura de sentido, e de que forma ele pode ser encontrado mesmo em situações de sofrimento, constituem a base das ideias já desenvolvidas por Viktor Frankl (1986) e, para a disciplina de enfermagem, torna-se particularmente relevante o desenvolvimento de uma abordagem assente no paradigma de cuidar.2 Kahana et al. (2005) levantam questões semelhantes e referem-se à insuficiência de estudos sobre o porquê de cuidar: «[i]n addition to questions related to the who, when, how and what of caregiving, a relatively neglected but important background consideration involves the why of caregiving. What are the motivational bases for getting involved in the provision of costly assistance to others?» (p. xviii). 3 Vide, por exemplo, Skaggs B. G. e Barron C. R. (2006), que, numa análise conceptual 2 da procura de sentido associada a acontecimentos negativos, exploram os conceitos de sentido global e sentido situacional e a relação entre eles, concluindo que: «[n]urses are in a key position to assist people through negative events. The process of searching for meaning provides a solid foundation for the development of nursing Introdução |15 Considerando que a visão ética do homem também o vê transformado pelos seus actos, parece fazer sentido um olhar aproximado sobre o processo transformativo, que pode decorrer, não só da proximidade com a doença e morte do familiar (situações de sofrimento), como também das situações que decorrem da prestação do cuidado propriamente dito. A pesquisa revelou a existência de pontes que ligam as ideias desenvolvidas por Frankl (1986) e Watson (1999). 3 A exploração da narrativa permitiu descortinar que circunstâncias foram consideradas relevantes nos vários episódios de cuidar relatados pela cuidadora e, ainda, perceber de que forma os sentidos atribuídos ao cuidar foram evoluindo ao longo do seu ciclo de vida. Uma panorâmica sobre os aspectos significativos e possibilidades simbólicas do conteúdo narrado permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva sobre a evolução das dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida familiar e, também, analisar de que forma essa evolução poderá representar uma via importante para a aprendizagem das dinâmicas relacionais necessárias em situações de aquisição ou perda de capacidades (poder ou vulnerabilidade) naturalmente presentes na vida familiar. interventions to assist individuals through difficult times. Research is needed to develop nursing interventions based on the process of the search for meaning, as well as measures reflective of the search for meaning». 4 Para esta autora, cuidar é «um meio de progresso onde um indivíduo se move em direcção a um elevado sentido do ser e de harmonia com a sua mente corpo e alma» (p. 122). Esta concepção sobre o cuidar encontra paralelos com a visão de Florence Nightingale (Macrae, 2001) sobre a enfermagem e o que esta considerava ser o propósito da humanidade. Capítulo 1 Abordagem ao fenómeno e metodologia Este estudo é um estudo de caso (Bogdan e Biklen, 1994) que consistiu na análise da narrativa de uma cuidadora familiar. Tem sido crescente a importância que se tem vindo a atribuir à narrativa como abordagem terapêutica5 e às histórias sobre situações de cuidar no desenvolvimento da enfermagem como disciplina (Boykin e Schoenhofer, 1991; Latimer 2003; Sakalys 2002, 2003). No contexto do ensino, discute-se também sobre a melhor forma de promover as competências dos alunos de enfermagem para a narrativa6. Falamos não só de uma competência a nível interpretativo (da narrativa de outros) mas também a nível da execução (organização de uma narrativa sobre si próprio). Estas questões remetem para a necessidade de olharmos para as diferentes perspectivas da narrativa: o conteúdo, o processo e as competências para narrar. A utilização da narrativa como método de investigação para aquisição de conhecimento na enfermagem e teorização é actualmente o centro de uma discussão alargada. Num artigo em que discute uma intervenção terapêutica baseada nas narrativas das pessoas doentes sobre a sua doença, Sakalys (2003, p. 231) cita Taylor (2001) para ilustrar esta ideia: «[s]tories link past, present, and future in a way that tell us where we have been, where we are, and where we could be going… [they] turn mere chronology, one thing after another, into the purposeful action of plot, and thereby into meaning… if nothing is connected, then nothing matters. Stories are the singles best way humans have for accounting for our experience. They help us to see how choices and events are tied together, why things are and how things could be». A autora explora o poder terapêutico da narrativa e a possibilidade que cria para um aumento da consciência de si. Para esta autora, no processo de reflexão envolvido podem ser descobertos padrões na experiência, assim como explicação, sentido e coerência. 6 Sobre este assunto, Sakalys (2002) defende a utilização de literatura ficcional e autobiográfica no ensino de enfermagem (pedagogia literária) como uma primeira forma de entender as experiências de vida dos doentes e de proporcionar o desenvolvimento de capacidades essenciais de pensamento dos alunos (p. 386). A autora desenvolve modelos para aplicação da narrativa que se relacionam com o desenvolvimento das competências textuais: leitura, interpretação e crítica. Boykin e Schoenhofer (1991) defendem que «as histórias oferecem uma abordagem que ajuda no enraizamento da base epistemológica da disciplina de enfermagem na sua ontologia» (p. 248). 5 18 | Cuidar da Família ao longo da vida A narrativa enquadra-se no conjunto de abordagens qualitativas que permitem analisar as experiências subjectivas vividas pelas pessoas. Bingley et al. (2008) salientam a importância de distinguir entre análise qualitativa aplicada à narrativa e a narrativa como método. Para alguns autores, ela é assumida inequivocamente como uma via de desenvolvimento para a profissão (Boykin e Schoenhofer, 1991; Gadow, 1999), para outros (Frid et al., 2000), a análise crítica sobre o conceito de narrativa e a reflexão sobre o papel que pode desempenhar na disciplina de enfermagem estão ainda no início quando comparados com as ciências sociais. Na literatura percebe-se uma grande variedade de perspectivas sobre o conceito de narrativa e sobre a forma de utilização desta como método para a investigação (e. g.: Gadow, 1999; Frid et al., 2000; Kelly e Howie, 2007; Bingley et al., 2008). Por exemplo, quando Bingley et al. (2008) caracterizam os métodos narrativos de investigação como aqueles que «têm como objectivo explorar os sentidos dentro de narrativas individuais e obter uma perspectiva geral das experiências subjectivas» e os distinguem dos restantes métodos qualitativos pelo facto de «só lidarem com histórias (sobre qualquer forma)», estimulam questões semelhantes às que foram levantadas por Frid et al. (2000), relativamente ao que se entende por narrativa7, não deixando de evidenciar o facto de os dois termos serem usados muitas vezes de forma indiscriminada. Frid et al. (2000) chamam a atenção para a diferença entre narrative e a designação comum em inglês de stori-telling. A primeira consiste num relato de acontecimentos experimentados pelo narrador; a segunda na leitura repetida de uma história por outra pessoa que não o narrador. Latimer (2003) explora também os conceitos de história e narrativa. Ponderando o quadro de referência proposto por Gadow (1995; 1999) podemos também perspectivar a narrativa como um processo relacional dinâmico – narrativas cuidativas (caring narratives) ou de análise – narrativas de cuidar (narratives of caring). 7 Ao abordar a narrativa e a aquisição do conhecimento em enfermagem Gadow (1995) recorre a uma metáfora aludindo ao tipo de conhecimento local que um explorador obtém de uma região e ao domínio da região por um colonizador (que se apropria dela mas não compreende os significados que encerra). A narrativa, conforme perspectivada pela autora, é comparada ao explorador que tenta interagir com os habitantes e compreender o que significa para eles habitar aquele local. Discute de que forma uma busca constante da disciplina de enfermagem pelo conhecimento objectivo pode revelar uma necessidade de apropriação e controlo: «what do we want from knowledge? […] we want to order the world, to make sense of the it in the knower’s terms, to examine it in safety without the danger of being overwhelmed»; e afirma que a enfermagem pode escolher vias que lhe permitam envolvimento e compreensão do que significa para as pessoas as experiências que estão a viver. Abordagem ao fenómeno e metodologia |19 A análise de Frid et al. (2000) e a sua abordagem sobre as narrativas na filosofia de Paul Ricoeur revelou-se particularmente útil no desenvolvimento deste estudo. Os autores propõem como base metodológica possível a teoria narrativa de Ricoeur e as suas dimensões de interpretação, tempo, acção e ética no desenvolvimento do conhecimento em enfermagem. As narrativas contêm direcção, criam pontes simbólicas entre o passado, o presente e o futuro da pessoa e constituem um caminho para o mistério, a criatividade e as imagens carregadas de símbolos. Esta pesquisa não perspectiva a utilização da narrativa como método, porém foram consideradas as suas dimensões na construção da pergunta generativa e nos procedimentos de análise. Este estudo poderá também contribuir para o debate sobre o papel da narrativa na disciplina de enfermagem e sobre as suas possibilidades no âmbito da investigação (Flick, 2005). Frid et al. (2000) referem-se a Krish (1996)8 para referir que «a utilização da narrativa como ponto de partida pode ser útil para enfatizar as dimensões espirituais do cuidado de enfermagem» (p. 696). Considerando a problemática em estudo, a utilização dos componentes da narrativa conforme descrita por Frid et al. (2000) poderá contribuir para uma análise aprofundada de possíveis significados inerentes, sentidos atribuídos e simbologia associada à experiência de cuidar de um familiar até ao momento da morte, na vida e para a vida do cuidador. 1.1. Questões orientadoras Foram várias as questões prévias que orientaram a pesquisa no ponto de partida para o desenrolar da narrativa: a) Qual é o contexto em que se inicia a acção de cuidar? b) Quais os sentidos que são atribuídos ao cuidar pelo cuidador? c) Que actividades são relacionadas com o cuidar do outro? d)Que contextos favorecem a construção ou desconstrução do sentido durante a acção de cuidar? e) Que tipo de transformações ocorreram na vida e na pessoa do cuidador durante o cuidado e após a morte do familiar? 8 Kirsh B. 1996. A narrative approach to adressing spirituality in occupational therapy: exploring personal meanings and purpose. Canadian Journal of Occupational Therapy. 63: 55-61. 20 | Cuidar da Família ao longo da vida Para os efeitos deste estudo considera-se cuidador familiar a pessoa que se co-responsabiliza (juntamente com a equipa de saúde) pela prestação de cuidados a outra doente no domicílio e com a qual tinha uma relação anterior ao processo de doença. Para a construção da questão generativa da narrativa foram consideradas as questões desenvolvidas por Frid et al. (2000) e por Flick (2005) relativamente às narrativas entre a biografia e o episódio. Foram considerados aspectos relacionados com as circunstâncias presentes consideradas relevantes (da perspectiva do narrador), a evolução da acção no tempo e a decisão de cuidar até ao momento da morte. Ao colaborador (C1) foi colocada a seguinte questão: «Gostaria que me contasse, com os pormenores de que se lembrar, as circunstâncias da descoberta da doença do seu familiar, o que aconteceu depois e como ficou a cuidar dele até ao momento da sua morte.» 1.2. Critérios de selecção do cuidador a entrevistar Considerando a problemática que se pretendia analisar, foram estabelecidos os seguintes critérios para a selecção do cuidador a entrevistar: a) Existência de relação prévia entre cuidador e doente (familiar); b) O cuidador ser o principal responsável pelos cuidados prestados e pela articulação com a equipa de saúde responsável pelo acompanhamento; c) O cuidador ter manifestado forte motivação para cuidar do familiar, inclusive até ao momento da morte no domicílio; d) Inexistência de registos de ocorrência de luto patológico no cuidador após a morte do familiar; e) Inexistência de contacto prévio com a investigadora. A selecção ponderou também a experiência da equipa que a acompanhou e o conhecimento abrangente que possuíam sobre as características dos cuidadores que apoiavam no domicílio, nomeadamente, sobre as suas capacidades para narrar. A cuidadora seleccionada, além de corresponder aos critérios de inclusão definidos previamente, foi unanimemente referenciada pela equipa como possuidora de competências e forte sentido para cuidar da sua avó, tendo também já cuidado de outros familiares anteriormente. A cuidadora/colaboradora (C1) foi uma mulher adulta que mantinha uma relação familiar (neta) com a última pessoa que cuidou e com quem Abordagem ao fenómeno e metodologia |21 partilhava habitação juntamente com outros familiares. Mais pormenores que poderiam caracterizar o colaborador não serão expostos no respeito pela garantia de confidencialidade dada relativamente à identidade da participante. 1.3. Procedimentos de colheita de dados Foi fornecida informação sobre os objectivos deste estudo e pedida autorização formal a um centro de saúde, no sentido de ser possibilitado o acesso à base de dados de cuidadores em contexto domiciliário apoiados pela equipa de cuidados continuados nos últimos cinco anos. Depois de seleccionada a colaboradora, foi realizado um primeiro contacto telefónico para apresentação da investigadora, explicação dos objectivos do estudo, critérios de selecção, pedido colaboração e marcação de data para o desenrolar da narrativa. A colheita de dados verbais realizou-se em local e hora designados pela cuidadora, após a clarificação e validação dos objectivos e procedimentos do estudo – que exigem um compromisso de confidencialidade – e assinatura de um documento formal para autorização da gravação em áudio. A narrativa foi posteriormente transcrita para a forma de verbatim que constituiu o conjunto de dados verbais utilizados para análise. 1.4. Procedimentos de análise Numa primeira fase, foram executadas leituras simples da narrativa, transcrita em forma de verbatim, com o objectivo de interiorização e familiarização com o conteúdo narrado. Frid et al. (2000) referem, fundados no pensamento de Ricoeur, que «não pode haver só um método de trabalhar com a análise estrutural. Se isto leva ou não a um novo entendimento e interpretações produtivas depende da criatividade do investigador» (p. 699). Sugerem a clarificação das partes da narrativa – mostrando como estas unificam o todo –, organização de temas, análise semântica e, ainda, a procura do enredo e a direcção da narrativa. Explicam também que: «para obter uma interpretação compreensiva, o investigador deve ser capaz de criativamente ir além da análise estrutural» (p. 699). 22 | Cuidar da Família ao longo da vida Uma primeira análise teve como objectivo expor os eventos considerados marcantes9 – na perspectiva da cuidadora – directamente relacionados com os contextos do cuidar familiar que desenvolveu (Gauer e Gomes, 2009). Esta análise permitiu não só evidenciar momentos que poderão ter sido determinantes como também perceber de que forma se encontram relacionados uns com os outros e revelam, só por si, a estrutura temporal da narrativa (passado, presente, futuro) e as competências para narrar de C1. O texto foi posteriormente analisado em profundidade sob várias perspectivas para se revelarem conceitos emergentes, acções, detalhes de circunstâncias, valorações, sequências de eventos (reais e narrados), sentimentos, metáforas, significados e possibilidades simbólicas. Os vários episódios de cuidar foram considerados e analisados isoladamente, respeitando a sequência temporal dos acontecimentos e a sua relação com a biografia da cuidadora. Algumas unidades de análise foram agrupadas em temas mais abrangentes, na medida em que apresentavam transversalidade e representavam um fio condutor comum a vários episódios da narrativa (Frid et al., 2000), se enquadraram na discussão ética, ou derivaram da análise de conceitos, significados e associações entre eles. A pesquisa e revisão bibliográfica realizadas não têm como objectivo validar os significados gerados, mas o de permitir alargar o horizonte sobre aspectos que neste trabalho se optou por desenvolver ou que permitem uma melhor compreensão dos percursos interpretativos. Souza e Barbieri (2001) num estudo sobre eventos marcantes na história de vida referem que «a essencialidade de um evento marcante está na percepção, pelo narrador, do significado de uma alteração momentânea ou fundamental de vida, acompanhada de emoções, sentimentos e análise de consequências». Num estudo mais recente, utilizando o QMA (questionário de memória autobiográfica) para caracterizar a capacidade de recordar eventos pessoais específicos, Gauer, G., e Gomes, W. (2009) apontam para «uma articulação entre as variáveis de julgamento que caracterizam o fenômeno de memórias vívidas – importância e intensidade emocional do evento, ensaio repetido, conseqüências pessoais, e caráter incomum do evento – e a vivacidade da experiência fenomenal, como determinantes da atribuição de relevância pessoal a um evento». 9 Capítulo 2 Resultados da análise Na resposta à pergunta de partida a narrativa iniciou-se com a descrição dos cuidados prestados à avó. Foi nesse contexto que recebeu suporte da equipa de saúde através da qual se efectuou o contacto para participar neste estudo. A referência a episódios anteriores de cuidar surge por sua iniciativa e, quando questionada directamente sobre eles, a cuidadora desencadeou o relato cronológico dos acontecimentos. A análise dos eventos marcantes que se segue é o resultado de várias leituras simples efectuadas e pretende tornar evidentes aspectos transversais que possam, eventualmente, contribuir para fazer emergir o fio condutor da narrativa. 2.1. Panorâmica sobre os eventos marcantes da narrativa Relativamente a esta cuidadora em particular, e embora a questão de partida incidisse sobre o cuidar do familiar, a resposta foi imediatamente direccionada para a história de vida pessoal da cuidadora: «… é assim, os pormenores que eu me lembrar, ahh, eu vou tomar como ponto de partida a vinda para Portugal, porque eu não vivia neste país. Estou no país há 17 anos, feitos o ano passado em Setembro… ahh, vivi a maior parte da minha vida na África do Sul, saí deste país com ano e meio ahh, foi lá que estudei, realizei a minha vida, casei, tive as filhas». A narrativa transforma-se imediatamente num relato autobiográfico. A cuidadora recorre imediatamente à contextualização do acontecimento no passado para, a partir daí iniciar uma sequência temporal e a sua organização para a construção de sentido. A mudança de país constituiu um marco do passado a partir do qual outros acontecimentos se organizam. Um claro exemplo deste tipo de organização de acontecimentos é visível na descrição sequencial dos antecedentes da doença da avó: «Teve os seus problemas, pronto. Ela foi operada à vesícula na África do Sul, ahh, foi operada à bexiga […] ahh, e é assim, todas as vezes que ela necessitava de acompanhamento médico era eu que ia com ela. Ahh, na altura na África 24 | Cuidar da Família ao longo da vida do Sul por causa do problema da língua, de comunicar […] ela teve aqui em Portugal, ahh, dois episódios graves de AVC, ahh, e:: ela era hipertensa, sofria de angina de peito.» Alguns episódios marcantes são evocados e assim denominados pela própria cuidadora. Durante a descrição dos cuidados que prestou ao pai, a cuidadora explica: «uma coisa que me recorda que me marcou… eu é que tinha de fazer os curativos… e tinha um cheiro horroroso […] depois de tirar aquela carne esponjosa… com uma cor bastante amarelada… era terrível, e fazer penso quase, tipo… eu acho que lhe chamavam mechas na altura, em que se tinha de dobrar as gazes e encher aquele buraco todo, pronto… ahh… no outro dia, ou no mesmo dia, se fosse necessário, que nós víssemos que o penso era necessário fazer, quem os fazia era eu. Então eu fui cuidadora com a idade mais ou menos dos 12 anos em diante». No futuro, durante os cuidados prestados à mãe, a cuidadora percebe o mesmo em relação à própria filha: «“eu não vou conseguir tar-lhe a tirar a bomba do cateter para colocar a nova sozinha, quem é que me vai ajudar?” que eu não tinha ninguém que me ajudasse. Foi a minha filha que na altu— mais nova, que na altura tinha 7 anos que dizia: “ó mãe se não tens quem te faça, eu ajudo-te” mas marcou-a. Ahh… Ahh… e tal como a minha mãe pediu, pronto… ela teve sempre em casa, ahh… não foi fácil. Não, não foi». Este episódio marcante é o culminar da descrição dos cuidados prestados à mãe e encerra o episódio de forma muito semelhante à forma como os cuidados ao pai foram também expostos. O que antecede este momento prende-se com a explicação das circunstâncias que a ele conduziram e, perante a recuperação do acontecimento, surge uma nova análise de circunstâncias e consequências à luz dos conhecimentos e experiências mais actuais da cuidadora: «Eu acho que é importante na área da saúde, ahh… haver equipas devidamente qualificadas para darem apoio a doentes e não só… a familiares que sejam cuidadores de doentes, especialmente em fase terminal porque… é assim, eu acho que a minha mãe, se a minha mãe fosse viva hoje, ela não teria passado, ahh… claro que ela tinha falecido na mesma, eu não questiono isso, já não a tinha cá na mesma mas é assim, eu acho que o sofrimento físico e não só… psicológico não era tão grande, nem para ela, nem para mim, se nós tivéssemos tido a sorte de ter sido acompanhadas. Um acompanhamento, por exemplo, como eu tive com a avó.» Da mesma forma, reportando-se ao cuidado prestado ao pai durante a sua adolescência, a cuidadora analisa os seus limites na altura e consciencializa Resultados da análise |25 o seu processo evolutivo e a aquisição de competências ao longo do tempo (Sakalys, 2003): «isto sou eu a falar com 14 anos e pensando agora, analisando, hoje aquilo que eu me apercebi… aquilo que não me apercebi na altura». Percebe-se então que esta recuperação do passado poderá dar origem a uma compreensão mais alargada dos factos ocorridos onde são introduzidas novas variáveis do presente que contribuem para a reformulação da sua história. Observa-se também que os movimentos temporais da narrativa não representam os movimentos temporais reais das experiências vividas, que são permanentemente reinterpretadas. Os episódios marcantes caracterizam-se por acontecimentos que proporcionaram momentos de tomadas de decisão, hiperestimulação sensorial, emoção, revelação e inspiração: «a luz que eu digo que não hei-de esquecer aquele brilho, brilho que foi partilhado na hora da partida. Eu acho que foi algo que me iluminou […] só com a partida da minha avó é que eu disse: “mas é essa a tua missão”». Apesar de, na literatura consultada, ser praticamente ausente a discussão do papel específico que os pensamentos inspiradores poderão desempenhar na vida das pessoas, a cuidadora sinaliza-os como um evento marcante que é transmitido à filha (a quem também foi diagnosticada uma doença oncológica) num contexto de apoio e suporte: «é assim: eu li uma vez uma frase que me marcou e que eu digo sempre à minha filha: ahh… “um vencedor não é aquele que ganha tudo, que vence todas as batalhas, é aquele que cada vez que fracassa se levanta e continua a ir à luta, e aprende através dessa luta”». Não é objectivo deste estudo uma análise extensiva dos factores determinantes e estruturais dos eventos marcantes na narrativa. Porém, estudá-los no contexto de análise de uma narrativa sobre o cuidar parece-me particularmente relevante do ponto de vista ontológico e epistemológico. Ao pensar nas capacidades humanas envolvidas associadas à memória autobiográfica e no papel da narrativa no desenvolvimento de um conhecimento do ser humano sobre si próprio, facilmente surgem questões relacionadas com as consequências da afectação cognitiva e com os factores que poderão contribuir para estimular o desenvolvimento de competências a esse nível. Da análise efectuada, os aspectos abordados relativamente aos eventos marcantes apresentam alguma transversalidade na transição ou mudança. A mudança da pessoa e em determinado aspecto da vida da pessoa. Nesta nar- 26 | Cuidar da Família ao longo da vida rativa, por exemplo, ocorreram mudanças espaciais (mudança de país), mudanças que decorreram da acumulação de saberes e mudanças internas na sua forma de sentir e perspectivar a vida que resultaram da vivência emocional intensa, da estimulação dos sentidos, da inspiração e da revelação que ocorreu durante o cuidar do outro. Percebe-se um movimento interior entre passado, presente e futuro. Esta ligação permanente, existente entre as diferentes dimensões do tempo, transforma a narrativa numa forma de transcendência temporal não passível de concretizar materialmente considerando os limites físicos do ser humano. Por outro lado, esta contínua interacção temporal exige a reavaliação e reformulação constante de acontecimentos passados e expectativas futuras perante estímulos do presente. Além de ser importante considerarmos as estruturas cognitivas que poderão estar associadas à memória autobiográfica podemos discutir as formas observáveis deste movimento interior nas narrativas dos cuidadores. No discurso desta cuidadora observa-se que esta avalia no presente decisões tomadas no passado: «foi isso que eu achei que devia de fazer e: ainda hoje acho que foi a decisão certa». Esta avaliação decorre de um processo já consciente em que analisa e compara as circunstâncias da acção em dimensões do tempo distintas: «futuramente, se tiver que tomar uma decisão perante uma situação idêntica já se vai lembrar que da outra vez tomou a decisão errada e vai dizer assim: “daquela vez, perante a mesma situação, uma situação semelhante, o que é que tu fizeste?”». Observa-se um determinado controlo sobre o processo reflexivo que possibilita a antecipação do processo de reflexão no futuro. Durante toda a narrativa observam-se mudanças na vida da cuidadora a partir de acontecimentos significativos que decorreram na vida e na saúde dos familiares cuidados, numa relação de afectação mútua que irá ser analisada posteriormente. Para o desenvolvimento desta análise foram apenas considerados os eventos que a própria cuidadora denominou de marcantes. 2.2. Cuidar da família ao longo do ciclo de vida A expressão cuidar ao longo do ciclo de vida representa uma orientação básica para a organização e desenvolvimento dos cuidados de enfermagem. No contexto da formação, a compreensão desta expressão centraliza o cuidar no papel dos enfermeiros: os enfermeiros que cuidam de pessoas em diferentes Resultados da análise |27 etapas do seu ciclo de vida. Esta ideia, por si só, encerra uma perspectiva que tem de estar sempre presente. Embora seja contraproducente atribuirmos um contexto de vida à pessoa que cuidamos, baseando-nos numa descrição, mais ou menos normalizada, das variáveis habituais e relacionadas a priori com a etapa do ciclo vital em que se encontra, o mesmo se pode aplicar ao facto de não a termos em conta. O desenho deste estudo e os conceitos emergentes da narrativa dirigem o foco de atenção da acção de cuidar não para os enfermeiros mas para as pessoas que cuidam de outras, mais especificamente, de familiares. Esta deslocação permite perceber as dinâmicas de cuidar no que tem sido considerado a base para a construção social: a família. É geralmente no contexto da família que ocorrem os elementos fundamentais do auto e heterocuidado. Collière (1999) começa por nos colocar uma questão verdadeiramente simples: «ser cuidado… cuidar de si próprio… cuidar… Quem, ao longo da vida, não conheceu cada um destes imperativos?» (p. 15). Embora o início da narrativa se focalize no último episódio de cuidar que foi acompanhado pela equipa de cuidados continuados, para efeitos desta análise, será respeitada a ordem cronológica dos acontecimentos seguindo a biografia da cuidadora. Foi possível analisar os episódios de cuidar relativamente às circunstâncias referenciadas que rodearam a acção, ao controlo sentido sobre a tomada de decisão para cuidar, aos cuidados prestados, à descrição da doença e, ainda, ao estádio no ciclo de vida da cuidadora. 2.2.1. Cuidar em criança O primeiro episódio de cuidar considerado por C1 é o cuidar do pai aos 12 anos. O início do cuidar deu-se por necessidade imperiosa da família: «Com o meu pai doente e incapacitado, a minha mãe era o ganha-pão para a família, e então o que é que acontecia? Enquanto eu estava na escola… lá teria que ser… quando eu chegava da escola é assim, tinha de cuidar das minhas irmãs que eram mais novas que eu e… quando o meu pai estava em altura de crise tinha de cuidar do meu pai: lavá-lo, virá-lo, ahh… alcançar-lhe qualquer coisa que ele pedisse… de comida, de bebida, ahh… posicioná-lo.» A resposta encontrada pela família para garantir os cuidados ao pai resultou numa alteração (inversão) de papéis por necessidade de subsistência familiar decorrente da doença. C1 sente um nível de participação praticamente nulo nesta decisão: 28 | Cuidar da Família ao longo da vida «Da minha mãe é assim, do meu pai não tinha grande opção, da minha mãe ela tinha a casa dela e foi opção minha, claro, não é? Foi.» Na descrição deste cuidar sem opção, os cuidados enumerados relacionam-se com a higiene, mobilidade (e posicionamentos), alimentação e curativos. São lembrados e realçados exclusivamente os aspectos visíveis dos cuidados, essencialmente cuidados físicos. Após a identificação da doença, na base de um diagnóstico médico, segue-se uma descrição das perdas observadas: «O meu pai tinha períodos em que não andava, deixava o… perdeu o andar completamente, ahh… perdia a sensibilidade a pontos de não ter qualquer sensibilidade da cintura para baixo. Perdia a mobilidade, não tinha controle na urina, não tinha controle nas fezes…» O relato imediato sobre as perdas observadas centraliza-se na descrição das capacidades físicas afectadas. As questões relacionadas com a evolução da doença são descritas com alguma dificuldade no estabelecimento da relação causa-efeito (entre doença, sintomas e tratamentos efectuados): «ele foi aberto na barriga das pernas não sei porquê… mas abriram-lhe a barriga das pernas mais tarde. Entretanto ele, não sei se derivado à diabetes, porque eu não sei se ele era diabético ou não, na altura não me apercebi, ahh… ele à volta dos tornozelos ele tinha constan— no peito do pé, onde ele foi operado, ele tinha constantemente feridas». Verifica-se alguma tentativa de esclarecer acontecimentos do passado à luz dos conhecimentos do presente sobre doenças, entretanto desenvolvidos. As feridas e o evento marcante da execução dos curativos encerram a descrição do episódio. À semelhança do que acontece no início do relato do cuidar da avó, também aqui a cuidadora situa o cuidar e a morte do pai relativamente a si, à sua vida e à sua etapa de desenvolvimento: «o meu pai faleceu em Setembro e faria 38 anos em Dezembro nesse ano em que ele faleceu. Ele sofreu da doença mais ou menos cinco anos. Quando o meu pai faleceu, eu tinha 14 anos […] porque eu acho que com aquela idade há muita coisa que nos passa ao lado, há muita coisa que nós não questionamos, ahh, sobre que tipo de doença, nós só vemos a degradação física, o sofrimento». Além de percebermos a tomada de consciência de C1 de capacidades não existentes no momento em que o cuidar foi desenvolvido (o não questionamento) podemos ainda observar que a cuidadora dá relevo ao facto de a atenção então se direccionar apenas para a degradação física e o sofrimento, entendido de uma forma generalizada, não especificada. Resultados da análise |29 O processo de análise deste episódio foi gerador de várias questões que cruzam aspectos do desenvolvimento humano com o cuidar. Neste caso particular, poderíamos pensar na forma como o adolescente pensa e vive o cuidar do outro ou, ainda mais especificamente, de que forma é que as transformações corporais – que habitualmente ocorrem nessa fase do ciclo de vida – interferem com os aspectos valorizados do sofrimento do outro (dimensão física do sofrimento). De uma forma mais alargada, a análise poderia incidir sobre quais são os primeiros indicadores de que as capacidades humanas se organizam de forma competente para cuidar do outro, ou, ainda, de que forma o cuidar é entendido e vivido ao longo da vida das pessoas, desde o nascimento até à morte, nomeadamente, que factores poderão estar relacionados com diferentes concepções e sentidos atribuídos. Neste exemplo vivido, existem uma série de factores que concorrem para o impacto da experiência sobre a cuidadora: a vivência dos processos associados à adolescência, a alteração do papel na família e a responsabilidade de cuidar de familiares em diferentes etapas do ciclo de vida simultaneamente. Esta experiência de cuidar torna-se também especialmente intensa pelo facto de ter exposto a cuidadora ao contacto com a indispensabilidade de satisfazer necessidades físicas de adultos doentes e crianças simultaneamente. Este contexto aparece geralmente no ciclo de vida pessoal do indivíduo, inserido no ciclo de vida familiar, numa fase mais tardia: quando cuida dos pais e dos filhos ao mesmo tempo. Crianças e jovens cuidadores na família Um aspecto absolutamente consensual na literatura que aborda a problemática dos cuidadores menores é a necessidade de estudos mais alargados sobre o assunto10. Não foram encontradas referências que abordassem e descrevessem esta realidade em Portugal ou a analisasse na perspectiva dos enfermeiros. Existem relatórios facilmente acessíveis via internet que exploraram esta problemática nos Estados Unidos da América (Hunt et al., 2005) 10 Referindo-se às questões que rodeiam o cuidar na família e sobre as lacunas na investigação nesta área, Kahana (1994) explica que os estudos se têm centrado sobre o cuidador principal adulto (geralmente de idosos com demência) e que: «much less is known about the nature, components, cedents, and sequelae of caregiving involving other age groups and diverse illness situations» (xiv). 30 | Cuidar da Família ao longo da vida e no Reino Unido (Dearden e Becker, 1997). O estudo americano estima a existência aproximada de 1,3 a 1,4 milhões de crianças cuidadoras naquele país, com maiores percentagens para as que têm idades compreendidas entre os 12 e os 15 anos. Metzing-Blau e Schnepp (2008) referem-se à prevalência do Reino Unido – 1,5%, correspondendo a um total de 175 000 crianças – para projectar uma possível existência de 200 000 crianças cuidadoras na Alemanha. Dearden e Becker (1997) analisam esta problemática e a sua relação com o encaminhamento de crianças para o sistema de protecção infantil e institucionalização. Os estudos citados concordam e referem-se a outros que exploram os factores que intervêm para a construção desta realidade: privação económica da família, inexistência de redes de suporte, monoparentalidade ou separação dos pais, existência de doença crónica e socialização no cuidar. As crianças cuidam dos pais, de irmãos e de idosos e fazem diversas actividades que incluem a ajuda na satisfação de necessidades pessoais dos familiares doentes e o serviço doméstico. Os artigos encontrados na pesquisa sobre este assunto (EBSCO) revelam a utilização de abordagens metodológicas que incidiram sobre o passado de cuidar de actuais adultos (Lackey e Gates 2001; Shifren 2001; Shifren e Kachorek, 2003), sobre a experiência de profissionais que contactam com crianças cuidadoras (Fox, 1998) e abordagens que incidiram sobre os pais (Barkman et al., 2007) e as próprias crianças que cuidam (Earley et al., 2007; Cree, V., 2003). A preocupação recorrente, e que orienta a generalidade dos estudos, é o efeito que as experiências de cuidar de familiares em fases precoces da vida poderá ter na fase adulta. Relativamente a este assunto, os resultados não definem com precisão efeitos peremptoriamente negativos ou positivos: ambos estão presentes. Uma análise detalhada permite perceber que são várias as variáveis envolvidas que podem contribuir para o resultado final da experiência. Shifren (2001) e Shifren e Kachorek (2003) detectaram que a amostra de adultos que cuidaram em crianças apresentava mais saúde mental positiva do que negativa – ainda que se encontrem nas amostras indivíduos que apresentam indicadores positivos de depressão – e concluem que o exercício do cuidar precocemente não está associado, de uma forma universalmente negativa, a deficiente saúde mental na fase adulta para muitos dos que foram cuidadores. Os cuidadores cujos pais apresentavam simultaneamente problemas emocionais e abuso de drogas constituíram a excepção para esta tendência. Shifren e Kachorek (2003) e Barkman et al. (2007) analisam estudos prévios que sustentam o facto de a doença mental dos pais se encontrar mais frequentemente Resultados da análise |31 associada à doença mental dos filhos na fase adulta. Os estudos não permitem perceber até que ponto esta consequência se relaciona directamente com o cuidar ou com alguma predisposição familiar. Um estudo na Alemanha conduzido por Barkman (2007) refere diferenças na afectação de rapazes e raparigas na adolescência, sendo mais expressiva nos rapazes do que nas raparigas e tendendo a agravar-se em relação a ambos quando o progenitor doente é do mesmo sexo. Os mecanismos que conduzem a estas realidades ainda não são claros. Há autores que se referem também a diferenças de género relativamente à expressão das emoções (Cree, 2003; Hunt et al., 2005) O tamanho da família, idade dos irmãos, posição ordinal na família e género são factores enumerados como passíveis de influenciar os papéis dos cuidadores. Por outro lado, o facto de terem cuidado de familiares pode também influenciar escolhas de carreiras profissionais (Lackey e Gates, 2001). Partindo de entrevistas com 51 adultos ex-cuidadores (Lackey e Gates, 2001) e com crianças cuidadoras (Earley et al., 2007; Cree, 2003) os autores procuram escrutinar as possíveis consequências positivas ou negativas de um cuidar precoce. O estudo de Lackey e Gates (2001) orienta as entrevistas incluindo uma perspectiva temporal do antes (no papel de crianças cuidadoras) e do agora (na fase adulta), possibilitando a reinterpretação da experiência. Associada à experiência anterior de cuidar estão sentimentos de utilidade, valorização, apreciação, pertença (à família) e, no lado oposto da balança, é referida a dificuldade em ver a deterioração física, a dor, cheiros e visões desagradáveis e, ainda, a sensação de demasiada responsabilidade. Ao mesmo tempo que o cuidar permitiu maior proximidade com a família, resultou, por vezes, em alterações da dinâmica familiar, com troca de papéis e, associado à doença, o aparecimento de problemas financeiros que se agravam quando o adulto doente representa a maior fonte de rendimento. Uma quantidade significativa destes factores faz parte da descrição de C1 sobre o contexto que enquadrou a prestação de cuidados ao pai. Há ainda a considerar os efeitos sobre a vida escolar e sobre o convívio com os amigos. Enquanto, para algumas crianças, a vida escolar foi afectada negativamente, para outras, a escola representou um momento de refúgio e protecção (Lackey e Gates, 2001; Cree, 2003). Na avaliação actual que fazem da experiência, os adultos consideram como positivos para a sua vida presente: o desenvolvimento de um maior respeito e compaixão pelos outros, a capacidade de perspectivar o que é importante e a valorização da vida. São considerados efeitos negativos: a manutenção de sentimentos de raiva e culpa, medo de ter uma doença crónica ou terminal e luto não resolvido. 32 | Cuidar da Família ao longo da vida A grande maioria dos ex-cuidadores considera que a participação das crianças nos cuidados à família pode ser positiva. Desde que não tenham total responsabilidade, poderá ser uma oportunidade de crescimento e mudança. Os entrevistados referem-se ainda à importância de ser honesto com a criança, de contar a verdade sobre a condição do adulto, de incluir a criança na tomada de decisão e de lhe permitir tempo livre. Lackey e Gates (2001) referem-se ainda a estudos realizados no Reino Unido e a autores que sugerem a introdução cautelosa, ou mesmo a exclusão, de crianças e jovens nos cuidados aos familiares na medida em que tais cuidados poderiam retirar-lhes a vivência da infância. Porém, estes autores concluem que: «prestar cuidados pode ser uma oportunidade útil e de afirmação para o jovem e para a família provendo que as tarefas sejam claramente definidas, seja realizada supervisão e seja assegurado que o jovem não assuma total responsabilidade pelo cuidado» (p. 326). Os autores ressaltam a necessidade de desenvolver estudos que permitam determinar parâmetros adequados relativamente a tipos de cuidados aceitáveis para cada idade no sentido de definir a linha entre as expectativas normais da vida familiar e a inclusão de crianças e jovens no cuidar. Neste caso particular, verificamos a participação activa de C1 na execução de tratamentos de feridas. Embora a cuidadora atribua à idade a incapacidade de ver outras coisas para além do sofrimento físico, os curativos são narrados como parte do rol de eventos marcantes e o procedimento efectuado classificado como terrível. Determinar com exactidão que tipo de experiências de cuidar em criança poderão implicar consequências negativas no futuro pode ser considerado um objectivo irrealista e até redutor do potencial de superação pessoal dos indivíduos. No entanto, a forma como os cuidadores juvenis classificam e relatam as experiências vividas durante o cuidar relativamente às suas etapas de desenvolvimento poderá contribuir para um melhor discernimento de possíveis contextos de risco que, a existirem, requeiram monitorização adequada e suporte que auxilie o menor na integração adequada dos acontecimentos. Earley et al. (2007) e Cree (2003) descrevem sentimentos e problemas encontrados que derivam dos relatos das crianças cuidadoras. São referidos elementos que funcionam como stressores relacionados com sensações de ser diferente e mesmo bullying, interferência no processo de desenvolvimento da identidade com parentificação e existência de sentimentos de lealdade para com a pessoa cuidada11. Avaliando os resultados obtidos, Earley et al. (2007) 11 O termo parentificação foi descrito por Ivan Boszormenyi-Nagy no trabalho que desenvolveu sobre terapia familiar. A parentificação denomina um processo de inversão Resultados da análise |33 sugerem a possibilidade de efeitos positivos sobre o autoconceito. Cree (2003) aborda também problemas relacionados com o sono, suicídio, distúrbios alimentares, auto-agressão, problemas com drogas e com a polícia. Porém, considerando a sua amostra, refere ser impossível separar os problemas inseridos no contexto geral da vivência da adolescência do impacto isolado e particular de ser cuidador. A mesma autora alerta para o facto de os estudos já realizados assentarem em diferentes critérios definidores do que é um cuidador jovem com variações nas idades e actividades de cuidar consideradas. O estudo de Hunt et al. (2005) sobre a realidade americana revela, por exemplo, que a afectação da criança é maior quando esta ajuda na execução de uma ou mais actividades pessoais de vida diária (e. g., higiene, vestir, alimentar). Metzing-Blau e Schnepp (2008), num estudo de famílias alemãs, desenvolveram uma teoria enraizada que serviu de base à criação do modelo de experiência e construção do cuidar familiar no qual as crianças tomam um papel activo. Neste modelo são encontrados dois fenómenos centrais do processo: manter a família unida e viver o curso normal da vida. Na discussão, os autores realçam a ideia de que a doença pertence à vida familiar. No entanto, a par da necessidade de convívio com a doença, coabita a necessidade sentida pelas famílias de não deixar que esta domine as suas vidas. O bem-estar da família está no topo das prioridades dos jovens cuidadores. Neste contexto, a ajuda e suporte articulado deve: assentar numa visão da família como um todo, considerar o sentido atribuído à doença crónica pela pessoa doente e a forma como esta pretende viver o dia-a-dia com e na família. De outra forma, os planos de tratamento continuarão a não ser seguidos e as famílias continuarão a tomar as suas próprias decisões tentando encontrar compromissos que consigam suportar. Metzing-Blau e Schnepp (2008) referem-se ainda aos estudos efectuados no Reino Unido e ao facto de, até recentemente, estes se focarem nas crianças cuidadoras e não na família como um todo. Sustentam que o alívio destas crianças não poderá ser possível sem alívio dos pais e demonstram que a forma como os pais lidam com a doença tem uma influência maior na experiência dos jovens cuidadores (nos sintomas de medo e depressão) do que a severidade da doença em si. de dependências na família, especificamente nas situações em que os filhos passam a cuidar dos pais. Earley et al. (2007) referem-se a este autor e ao seu livro Invisible Loyalties (1973) para considerar a possibilidade da lealdade à família atrasar o processo de separação/individuação na medida em que a criança pode vivenciar sentimentos de culpa à medida que cria compromissos externos ao papel de cuidador. Alarcão (2006) também se refere a este processo como habitualmente associado às famílias monoparentais (em que um dos filhos assume o papel do progenitor ausente). 34 | Cuidar da Família ao longo da vida Numa crítica a algumas publicações inglesas que abordam esta temática, Keith (1995) desenvolve a sua perspectiva nos seguintes termos: «a forma como as crianças de pessoas incapacitadas têm sido definidas como “jovens cuidadores” é um assunto de grande interesse pessoal assim como de relevância política para aqueles que são, como eu, pais incapacitados. O debate, se o podemos chamar assim, foca mais frequentemente em como as crianças são privadas da sua infância devido aos “fardos” de cuidar. Raramente inclui a discussão sobre como podemos dar melhor suporte ao pai incapacitado para ser capaz de exercer o seu papel parental» (p. 384). A autora continua explicando que a forma como a investigação e os media evocam a problemática dos jovens cuidadores pode contribuir para desvalorizar o papel dos pais e para que estes sejam vistos como inadequados. As conclusões de Metzing-Blau e Schnepp (2008) e as críticas de Keith (1995) revelam-se no estudo efectuado por Dearden e Becker (1997), que mostra que os receios dos pais de serem considerados incapazes para o papel parental e de institucionalização dos filhos (com consequente desfragmentação da família) está na base da relutância em procurar ajuda médica e social. Por outro lado, a não procura de ajuda contribui para exacerbar os problemas destas famílias e manter a criança como cuidador principal. Os autores fundamentam desta forma a importância de valorizar a proximidade entre pais e filhos (mantendo as famílias juntas) e, numa clara resposta às criticas adiantadas por Keith (1995), referem que «enquanto nós podemos concordar com Keith e Morris (1995) que pessoas incapacitadas sofrem como consequência da provisão inadequada de serviços a elas como pessoas incapacitadas, nós podemos também sugerir que alguns podem sofrer por causa de inadequados serviços que reconhecem as suas necessidades como pais incapacitados». E continuam expondo argumentos que fundamentam a importância de identificar as crianças incluídas nestas famílias como crianças em necessidade potencial. A literatura consultada permitiu iluminar os componentes que participam na complexidade de factores a ter em conta na problemática da criança cuidadora na família. Os elementos presentes na narrativa de C1 foram o ponto de partida para esta análise que foi considerada pertinente desenvolver. Os desafios para os profissionais que se deparam com esta realidade passam pela compreensão dos contextos associados ao cuidar da família pelas crianças, por intervenções que devem captar a realidade familiar de forma abrangente e pela ajuda no estabelecimento de limites de participação e responsabilização dos mais novos pelo cuidar. Conclui-se que uma análise pormenorizada dos contextos particulares de cada família e uma intervenção Resultados da análise |35 adequada sobre as crianças e sobre os pais no exercício do seu papel parental pode contribuir para o reconhecimento e aproveitamento de competências existentes – favorecendo a integração e valorização do jovem cuidador no seio da sua família –, prevenir níveis de envolvimento excessivo no cuidar que poderão contribuir para efeitos negativos a longo prazo e, ainda, permitir o reconhecimento de oportunidades de desenvolvimento. 2.2.2. Cuidar dos filhos Na alusão ao cuidar dos filhos não existe a descrição de nenhum processo de ponderação. As energias motoras para a concretização deste cuidado são óbvias, na perspectiva da cuidadora. É um cuidar que decorre do desejo da maternidade e, portanto, não desperta questões relativamente à responsabilidade, que é assumida de forma natural e referenciada nestes termos: «cuidar de um filho é fácil, é a obrigação de uma mãe, é o dever de uma mãe, por isso nós queremos ser mães». Curiosamente, nesta frase sumária sobre o cuidar dos filhos, C1 inclui o conceito de obrigação, um conceito mais direccionado para formas de imposição externas ao indivíduo – ao qual está associada também uma ideia de submissão e restrição da liberdade que advém geralmente do entendimento de um contexto social alargado –, e de dever, conceito que, na clássica e historicamente influente perspectiva desenvolvida por Kant (1995), encerra uma necessidade de agir por respeito à lei que a razão dá a si mesma12. Kant defende a supremacia da razão sobre o indivíduo e as suas paixões. Nesta situação particular, o entendimento do que constitui o seu dever não resulta de uma imposição pela razão individual mas é simplesmente o resultado da concretização de um querer, associado a uma ideia, entendida de forma generalizada, sobre o que está inerente à decisão de ter filhos, óbvia, praticamente não questionável, e a concretização de um desejo individual (não da sua negação) que assume à partida o que é socialmente esperado. Assim, a ponderação não se coloca relativamente à escolha do cuidar mas à opção de 12 O dever, na visão de Kant, constrói-se a partir das máximas possíveis de transpor para leis universais (e assim possuidoras de valor moral), como se depreende, designadamente, do imperativo categórico: «Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal» (Kant, 1995, p. 59). 36 | Cuidar da Família ao longo da vida ter filhos. É desta forma que a decisão sobre cuidar de um filho «é fácil» – simplesmente porque não é questionável. Assim, ainda que se possa verificar uma aparente inexistência de um exercício da razão relativamente à decisão de ter filhos, a relação e imersão social constitui-se reguladora para a responsabilização individual pela vida do Outro que vai nascer. É aqui visível o papel modulador que a sociedade pode ter nas acções individuais. As razões que estão na base da opção de ter filhos têm vindo a mudar ao longo dos anos e vão desde a justificação das características naturais da mulher e o seu propósito, à sua negação pela liberdade feminina, a uma forma de responder a necessidades emocionais, até se constituir num direito que fundamenta as tecnologias de reprodução artificial (Grewal e Urschel, 2001; Roberts, 2001). Roberts (2001) salienta a existência de diferenças entre o processo de querer (posse) ter um filho e o processo de se tornar mãe (transformação) e termina a sua discussão apontando para o facto do porquê de ter filhos ser por vezes pouco explorado pelos pais, levantando questões relacionadas com novas formas possíveis de instrumentalizar as crianças que necessitam de ser consideradas actualmente13. O estudo desenvolvido por Grewal e Urschel (2001) colocou directamente a questão a 133 mulheres de diferentes etnias e em diferentes estádios da parentalidade. Os autores também concluíram que, apesar de ser necessário preparação e planeamento para ter um filho, pouca atenção é dada ao porquê o que remete para o facto de que ter filhos é primeiramente uma decisão emocional. Perceber as razões que levam os pais a decidir ter filhos pode abrir portas para compreender o que pode estar na base da estrutura das prioridades e propósitos para cuidar das crianças. Apesar de esta ser uma opção que transfigura a estrutura familiar e a prolonga no processo transgeracional14 são muito poucos os estudos encontrados que abordam especificamente esta temática. «So, what do children mean to 21st-century women? They may provide, as they have always done, love, reward, fulfilment, fun; in addition to compromise, exhaustion, frustration and guilt. But can it really be in a child’s best interests for an adult to exploit ever more new and profitable opportunities to treat him or her as a post-menopausal attempt at eternal youth; a cute consumer item; a must-have fashion accessory; a route to 15 minutes of fame; a source of cash; an antidote to a mid-life-crisis, or a way of averting marital meltdown?» 14 «A segunda etapa do ciclo vital da família é marcada pelo nascimento do primeiro filho […] é nesta altura que os pais sobem de geração, passando a ter responsabilidades e experiências que anteriormente pertenciam aos seus próprios pais. Estes, por sua vez, adquirem, igualmente, um novo estatuto e um novo papel» (p. 130). 13 Resultados da análise |37 2.2.3. Cuidar da mãe Na narrativa do cuidar da mãe, C1 identifica a doença oncológica e causa de morte da mãe e imediatamente se preocupa em revelar a vontade desta relativamente ao próprio processo de morrer: «A minha mãe faleceu aqui em Portugal já, com cancro da mama, metástases pulmonares e ósseas. O osso esterno deformou todo. Ela sempre pediu para morrer em casa. Ahh… não foi fácil. Extremamente difícil.» Neste contexto, o cuidar é assumido como uma escolha que visa responder à vontade expressa da mãe de permanecer em casa: «da minha mãe ela tinha a casa dela e foi opção minha, claro, não é? Foi. Eu podia ter dito: “é assim, eu não aguento, não quero, não posso, não sei… ahh… tenho imensa pena, embora queiras morrer em casa, embora queiras tar em casa a tempo inteiro, nunca quereres estar hospitalizada… tens que ir para o hospital”, ponto final. Muitos familiares fazem isso, estão certos, estão errados? Não posso julgar. Eu posso falar pelas minhas acções, pelas minhas decisões, eu sou responsável por elas e foi isso que eu achei que devia de fazer e: ainda hoje acho que foi a decisão certa […] Ahh… mas a decisão sem dúvida! Apesar dela me ter feito o pedido oficialmente (riso), a decisão foi minha, porque eu podia dizer: “olha mãe eu sei que é isso que tu queres mas, não é possível”». Para descrever o contexto associado à decisão de cuidar a cuidadora expõe as alternativas (através das quais confirma a não inevitabilidade da sua decisão) perante o conhecimento da vontade da doente, faz referência às decisões tomadas por outras pessoas em situações idênticas e, perante decisões contrárias à sua, adopta uma série de atitudes: não julgamento, auto-responsabilidade e autojuízo. No relato da doença são incluídas as decisões médicas sobre os tratamentos, o período de controlo da doença e ausência de sintomas, assim como o seu reaparecimento e a confrontação com a recidiva. São especificados os períodos mais difíceis e, também neste contexto, o respeito pela vontade da doente relativamente ao apoio que deveria ser prestado: «os últimos dois anos não foram fáceis, porque ela depois fez, por duas vezes, quimioterapia sempre em ambulatório porque ela recusava-se a ficar internada […] Ahh… ela nos períodos mais difíceis, por causa das náuseas, e das diarreias, e das aftoses e tudo o resto, ela ficava em minha casa… mas ela não queria largar a casa dela. Ela consentia até que se pudesse sentir mais ou menos equilibrada e depois e queria… voltava à casa dela». A forma como o cuidar se desenrola relaciona-se com o consentimento da doente, com o que é permitido (ou não) por ela. Nesta relação de cuidar entre 38 | Cuidar da Família ao longo da vida mãe e filha, apesar de a primeira se encontrar doente e debilitada, continua a ser ela quem dá autorização e estabelece as regras relativamente aos cuidados prestados por C1, revelando uma possível manutenção de padrões de relacionamento anteriores, relacionados com papéis desempenhados no passado e com os significados a eles associados. Da realçar que no relato da vivência do cuidar da mãe não são referenciados cuidados físicos. A cuidadora centra-se na forma incorrecta como a situação foi lidada pelos profissionais, nas dificuldades sentidas relativamente a conhecimentos e execução de técnicas para manipulação de equipamentos e na falta de apoio recebido: «Ela teve colocar o cateter. Ahh… o cateter foi-lhe colocado numa salinha de apoio à sala do hospital de dia. Ela sentada numa cadeira, com anestesia local, e ela pediu para eu estar com ela, ahh… é assim […] infelizmente para mim na altura, eu tinha… pouco conhecimento sobre, ahh… maneiras de controlar a dor, ahh… na altura não havia, nem sequer uma equipa de cuidados continuados, não havia cuidados paliativos, eu não tive apoio nenhum, nem do centro clínico, nem do IPO: “tudo bem, a sua mãe quer ir para casa, não quer tar internada, faça-se a vontade da doente”. E fica por aí. Eu ia todos os dias buscar a bomba infusora ao IPO para colocar no cateter da minha mãe, mas não é fácil… uma pessoa que não tinha… nunca tive treino, que és-lhe mostrado: “olhe, agora fecha aqui para que o ar não entre, tira aqui, enfia ali, mas tem que ter a certeza que ar não entra”… é assim, é a primeira vez, tá sobre pressão, é um ente querido, ahh… tem medo de errar […].» Este relato de dificuldades sentidas conduz a uma narrativa que explica a necessidade de ajuda da filha para a manipulação de um dispositivo médico (cateter venoso central) rotulado pela cuidadora como um evento marcante. Os receios associados à execução de um procedimento técnico considerado complexo e para o qual se sente pouco preparada centraliza todo o relato do cuidar da mãe. Não existem referências a outro tipo de cuidados prestados, nem mesmo aos cuidados físicos já identificados na descrição do cuidar do pai. Este contexto poderá indicar que a inclusão de familiares na execução de procedimentos técnicos que possam causar ansiedade e preocupação com os riscos da manipulação, neste caso medo de errar, poderá eventualmente contribuir para obscurecer outro tipo de cuidados e interacções que, apesar de poderem estar favorecidas pelo contexto de cuidados no seio da família, acabam por não acontecer ou não serem assimiladas. Estas conclusões não eliminam a possibilidade de execução de procedimentos técnicos por parte dos familiares. O que se pretende é realçar a importância de se avaliar correctamente os prós e contras inerentes. Esta situação Resultados da análise |39 evidencia que o critério deverá ser a ansiedade e os receios que a execução da técnica pelo familiar poderá causar e não a complexidade ou simplicidade do procedimento na perspectiva de um profissional habilitado15. Alguns aspectos interessantes derivam de uma análise cuidada sobre o eixo da narrativa e do desenvolvimento no ciclo de vida. Sobre a narrativa, percebe-se uma leitura dos acontecimentos passados tomando como referência a experiência mais recente de apoio recebido durante o cuidar da avó: «eu acho que o sofrimento físico e não só… psicológico não era tão grande, nem para ela ou nem para mim, se nós tivéssemos tido a sorte de ter sido acompanhadas. Um acompanhamento, por exemplo, como eu tive com a avó, ahh… que a minha mãe faleceu há dez anos. Há dez anos não havia nada de… uma enfermeira do posto não ia lá a casa. Não ia. Quanto mais uma enfermeira do IPO, ou uma auxiliar do IPO, ou alguém que nos pudesse dar uma mão ou… eu se tivesse dúvidas não sabia a quem contactar. Não sabia. Ahh… é assim, era esperar pelo dia seguinte, pedir que a minha mãe durasse até ao dia seguinte para depois meter-me no carro e ir para o IPO expor todas as dúvidas e… e dizer o que é que ela tava a sentir, o que não tava a sentir e o que é que eu devia fazer se isso se tornasse a suceder, mas pronto… a minha mãe faleceu». Esta quase permanente e intemporal actualização e comparação constante dos contextos das experiências vividas abre as portas para um diferente entendimento sobre como estas se podem afectar mutuamente e afectar o indivíduo, transformando-o num ser em mutação permanente em níveis de existência onde o acesso a diferentes dimensões do tempo é permitido. Daqui se depreende que os acontecimentos do passado podem de novo ser visitados perante novas perspectivas do presente e despoletar um novo conjunto de sentimentos anteriormente não experimentados. Estas ideias constituem crenças básicas da teoria de cuidar desenvolvida por Watson (1999) sobre a vida e sobre a pessoa16. Há também ainda a considerar os significados que poderão estar inerentes a uma ajuda na satisfação das necessidades do corpo – contexto que a pessoa doente pode controlar – e a uma manipulação técnica do corpo, que mais facilmente escapa ao controlo do doente, o que pode estar associado a uma forma de exercício de poder sobre Outro podendo interferir com a relação de cuidar. 16 «A minha concepção de vida e de ser pessoa está ligada a noções de que a nossa alma possui um corpo que não está limitado por espaço e tempo objectivos. O mundo vivido da pessoa que passa por uma experiência, não é distinguido por noções externas e internas de tempo e de espaço, mas molda o seu próprio tempo e espaço, que não está constrangido pela linearidade. Noções de ser pessoa, então, transcendem o aqui e o agora, e cada um tem a capacidade de coexistir com o passado, presente e futuro simultaneamente […] A capacidade de cada um para transcender o espaço e o tempo, ocorre de forma semelhante, no pensamento, na imaginação e nas emoções de cada um. Os nossos 15 40 | Cuidar da Família ao longo da vida Perante a experiência mais recente do cuidar da avó, C1 compreende que o sofrimento vivido durante o cuidar da mãe poderia ter sido menos intenso. Daqui resulta a expressão de algum ressentimento relativamente ao apoio que lhe foi fornecido. Há ainda a ter em conta a etapa do ciclo de vida desta mulher que, vivendo agora a experiência da maternidade, e na presença de filhos durante o cuidar da mãe, dirige as suas preocupações para o impacto que a acção desenvolvida poderá ter sobre a sua filha de 7 anos. Este é também um relato de um momento no tempo que contém um conjunto de coincidências entre a história passada e presente de C1 e do presente da sua filha: a exposição, enquanto criança, ao sofrimento do pai e manipulação do seu corpo (através de actos técnicos), a situação actual de não se sentir convenientemente preparada para realizar o procedimento, e a vivência da filha que experimenta, de forma semelhante, estas duas realidades. O fio condutor dos relatos destes dois eventos marcantes parece assim estar ligado a uma vivência emocional intensa relacionada com a exposição precoce ao sofrimento do outro e manipulação do seu corpo através de procedimentos técnicos invasivos. Porém, esta experiência poderá também proporcionar a C1 uma nova perspectiva sobre os acontecimentos do passado – a responsabilização precoce que lhe foi pedida pela própria mãe (agora doente) pelos cuidados ao pai – na medida em que, no presente, percebe que a participação da sua filha menor na manipulação do cateter se torna absolutamente essencial e inevitável. Mais uma vez (e agora nos papéis de mãe e filha), a cuidadora se depara com o cuidar de pessoas queridas em diferentes etapas da vida. 2.2.4. Cuidar da família alargada: percebendo o cuidar como necessidade O relato do episódio seguinte de cuidar centra-se na descrição da causa que precipita a necessidade de cuidados e os motivos que conduziram à acção de cuidar: «Próxima doente… a irmã da minha falecida avó, minha madrinha, morreu em minha casa com cento e um ano de velhice […] Ela não tinha filhos. Ahh... e eu achei… que… tinha necessidade de intervir. Ela precisava de mim. corpos podem estar fisicamente presentes num local ou situação, mas as nossas mentes e sentimentos relacionados podem estar noutro local qualquer» (pp. 81-83). Resultados da análise |41 S – Desculpe, a senhora sentiu necessidade de intervir? C1 – Sim. Ahh… porque é assim, tudo aquilo que a gente semeia mais cedo ou mais tarde a gente vai colher, ahh… não sei se concorda comigo… é assim, há a lei de causa e efeito h... e também é assim, tudo o que a gente faz, seja uma palavra, uma acção, tudo! A nós retorna. Mais cedo ou mais tarde, não interessa quando. E: quando me disse se eu senti necessidade de, é assim, eu gostava, se algum dia me achar nessas circunstâncias, de ter alguém que trate de mim, mesmo que não tenha capacidade de o fazer, porque às vezes o importante é saber que está ali alguém, que nos quer, que nos tá a dar apoio, que nos ampara, ahh… que está connosco, não é? E se for alguém que nos é querido ainda mais, não é?» A pergunta colocada durante a entrevista direccionou o relato para uma exploração dos aspectos envolvidos no sentir o cuidar como necessidade. A cuidadora explica o que está na base de uma necessidade que se parece enraizar na necessidade percebida do outro. De certa forma, as necessidades do outro (madrinha) passam a ser sentidas como suas pela cuidadora como necessidade de dar resposta à necessidade do outro. A primeira ideia focada relaciona-se com a crença: neste caso, a crença de que todas as acções realizadas têm retorno num limite de tempo não definido. Esta crença, na qual subjaz, à primeira vista, a ideia de consequência, parece ser moduladora da acção que se aproxima, neste contexto, de um imperativo hipotético (Kant, 1995, p. 50). No entanto, o facto de a acção se desenrolar tomando como referencial para o outro o bem que se deseja para o próprio (sendo que o próprio é um ser que vive simultaneamente no passado, presente e futuro) e este desejo de formatar o que é sentido como sendo o correcto complexifica uma visão linear e diferencial entre o que é o imperativo hipotético e categórico. A explicação da cuidadora evolui, de facto, para a referência a um cuidar que tem na sua base uma necessidade de concretizar o pensado e sentido como correcto: «ahh… as pessoas que me são mais próximas, mesmo aquelas que me são menos próximas e que me fazem sofrer, eu digo sempre: “se um dia precisarem, eu estarei lá” se elas me quiserem, se elas necessitarem da minha ajuda, do meu apoio, estou lá! Se elas me quiserem isso o problema já não é meu. Eu faço aquilo que eu penso, que eu sinto que é correcto. Que eu preciso de fazer». O cuidar emergiu como um imperativo particular que concilia o que é pensado e o que é sentido com uma necessidade. Até que ponto reconhecemos o que para nós constitui uma necessidade, tendo como base uma concordância entre o que sentimos e pensamos, foi algo sobre o qual me questionei e que penso poder ser importante explorar. Watson (1999) refere-se à necessidade de harmonia no íntimo da pessoa como condição de bem-estar: «[i]ncongruência entre o Eu como é percebido e a expe- 42 | Cuidar da Família ao longo da vida riência da pessoa reflecte a presença da desarmonia no íntimo da mente, corpo e alma o “Eu” não é igual ao verdadeiro Eu ou verdadeiro Me. Esta incongruência conduz à ameaça, à ansiedade, ao tumulto interior e pode conduzir ao sentimento de desespero existencial, ao temor e ao mal-estar. Se prolongado, pode contribuir para a doença» (p. 101). C1 descreve, na sua experiência, momentos de tumulto interior onde se observa dificuldade em compreender emoções/sentimentos considerados negativos que decorrem de escolhas livres sentidas como certas: «ahh… (6)… às vezes eu gostava… eu própria, irritava-me comigo própria e dizia assim: “porque é que tás tão irritada? Porquê essa raiva? Porquê essa revolta? Tás nessas condições até porque queres! Foi a tua escolha”, mas é assim, sou humana. Eu questiono-me e depois é tipo, dou a mão à minha própria palmatória (risos) e digo assim: “não devias ter esses sentimentos”, mas sou humana. Não sou perfeita. Não sou (risos), às vezes gostava de ser (risos)… mas pronto». Associado a este diálogo interno surge a ideia de um ser humano generalizado pelos limites de compreensão de si próprio, das suas emoções. De facto, quando Goleman (2003) aborda as questões relacionadas com a inteligência emocional, expõe o identificar e rotular sentimentos como uma capacidade emocional e a autoconversa17 como uma aptidão cognitiva. Esta descrição revela também o que poderá ser uma vivência de um processo de transição (de papel) precipitado por uma escolha que despoleta um conjunto de variadas emoções na vivência real do que a escolha determinou. Meleis (2005), além de identificar a possibilidade de um processo de transição associado à mudança de papel nas relações existentes, inclui os significados, expectativas, níveis de conhecimento e capacidade, ambiente, níveis de planeamento e o bem-estar físico e emocional como factores que podem afectar o desenrolar desse mesmo processo. Uma abordagem às necessidades humanas Considerar as várias dimensões do ser humano (emocional, psicológica, social e espiritual) é assumir, antes de mais, que a sua vivência não se reduz à sua dimensão física e, por outro lado, projectar níveis diferentes de necessidades. Se utilizarmos como referencial as necessidades básicas para manter a vida do corpo físico (p. ex., alimentação, hidratação, respiração, eliminação) fa- 17 Por autoconversa entende-se o conduzir um «diálogo interior» como uma maneira de lidar com um tema ou um desafio ou reforçar o próprio comportamento. Resultados da análise |43 cilmente nos apercebemos da facilidade com que são reconhecidas. Aqui, o reconhecimento das sensações corporais pela pessoa é o ponto de partida para que esta inicie o conjunto de acções que lhe visam dar resposta. Partindo deste ponto, poderemos então questionar sobre como se processa o reconhecimento das necessidades que atravessam outras dimensões do ser humano. Na sua explicação sobre as ligações entre emoção, consciência e corpo, Damásio (2000) explica que «[t]odas as emoções usam o corpo como teatro» (p. 72) e que, para a maior parte de nós, «as emoções constituem um razoável barómetro do nosso bem-estar» (p. 69). Distingue entre emoção (dirigida para o exterior e pública), sentimento (dirigido para o interior e privado) e conhecimento que temos um sentimento (p. 56)18. Podemos perceber que nem sempre a emoção e a representação do sentimento acontecem de forma consciente e, assim sendo, não é garantido que o indivíduo reconheça o sentimento que está a viver. É neste contexto que o autor se refere à importância da existência e do papel da consciência: «a consciência tem de estar presente para que os sentimentos possam influenciar os sujeitos que os tem, para além do aqui e agora imediato» (p. 57). As emoções constituem a via pela qual a consciência dos sentimentos (e o seu impacto interno) poderá ser possível. A importância das emoções é bem reforçada pelo autor que as relaciona com o corpo e com os mecanismos que asseguram a vida19. São precisamente estes aspectos que se cruzam na origem (corpo) e nos objectivos (assegurar a vida) das necessidades mais básicas do ser humano. Na visão de Watson (2008) «[s]er humano é sentir». A autora explica que «[d]emasiadas vezes nós permitimos a nós mesmos pensar os nossos pensamentos mas não sentir os nossos sentimentos» (p. 68). Também Damásio (2000) se refere à relevância que a ciência tem atribuído à razão em detrimento da emoção, cujo papel tem vindo a ser desvalorizado nos processos da consciência. Pensarmos nas emoções como efectivamente ligadas às necessidades humanas é também considerar a possibilidade de que o próprio indivíduo pos- O autor configura três fases possíveis ao longo de um contínuo: «o estado de emoção, que pode ser desencadeado e executado de forma não consciente; o estado de sentimento, que pode ser representado de forma não consciente; e o estado de sentimento tornado consciente (conhecido pelo organismo que experimenta tanto a emoção como o sentimento» (p. 57). 19 «As emoções são conjuntos complicados de respostas químicas e neurais que formam um padrão; todas as emoções desempenham um papel regulador que conduz, de uma forma ou de outra, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo que manifesta o fenómeno; as emoções dizem respeito à vida de um organismo, mais precisamente ao seu corpo; a finalidade das emoções é ajudar o organismo a manter a vida» (p. 72). 18 44 | Cuidar da Família ao longo da vida sa não ter conscientes todas as suas necessidades e este aspecto reveste-se de particular importância nos processos de cuidar (de si próprio e do outro). O que Taylor (2004) caracteriza como actividade de autocuidado (no contexto da teoria de Dorothea Orem) poderá ilustrar esta perspectiva. Esta autora explica a actividade de autocuidado como «a capacidade complexa adquirida para atingir a maturidade e amadurecer pessoas para saber e colmatar as suas necessidades contínuas de acção deliberada, intencional para regular o seu próprio funcionamento e desenvolvimento humano» (p. 218). À luz do que foi analisado, parece-me que esta capacidade complexa poderá estar directamente relacionada com processos de tomada de consciência que visam saber as necessidades pessoais. Neste caso particular, falamos de uma necessidade que aparece no ponto de convergência entre a razão e o sentir relativamente à acção de cuidar do outro20. O cuidar é aqui uma expressão de coerência interior da pessoa quando confrontada com a percepção das necessidades do outro, sentidas em relação a si próprio, às suas necessidades, percebidas fora de um conceito linear do tempo (Watson, 1999): as que reconhece recuperando o passado e as que prevê projectando um futuro (que não é necessariamente o seu, mas a projecção de si nas circunstâncias actuais do outro). Podemos então talvez falar de uma necessidade que parte de um sentimento já representado mas cuja explicação é difícil: «Ahh... eu se calhar não tou a fazê-la compreender o que eu... eu sinto.» Na verdade, quando tenta explicar o seu sentir que é correcto a cuidadora percebe a existência de uma resposta para cuidar já interiorizada, não questionada e, até ao momento da entrevista, não percebida como necessidade: «Ahh... e quando eu disse “senti necessidade” eu... nessa altura nem... a gente nem se questiona! Por aqui se percebe o saber das necessidades pessoais como resultado de processos de auto-análise do sentir relativamente a decisões tomadas no passado. É nesta perspectiva que as emoções são abordadas numa discussão que se pretende desenvolver sobre necessidades humanas. Porém, ainda que possamos considerar as explicações de Damásio (2000) sobre o papel 20 Um outro conceito de cuidar que daqui deriva e está associado a estas ideias exploradas é o cuidar como resposta ao apelo do outro. Perante a visão do cuidar como um fim em si mesmo C1 prevê a possibilidade da acção de cuidar no futuro depender exclusivamente da necessidade e da escolha do outro (este assunto será retomado posteriormente). Resultados da análise |45 das emoções, a discussão sobre a origem das necessidades sentidas pelas pessoas não se esgota num processo que envolve a existência material do cérebro e do corpo, mas alarga-se para a compreensão de uma interacção entre uma narrativa individual que constrói e atribui sentido à história pessoal inserida num contexto e história social. Savater (2000) refere-se a esta tarefa complexa: «nem a própria noção de necessidade humana, nem o reportório de tais necessidades são fáceis de estabelecer» (p. 69). Considera que o humano não é apenas um simples processo biológico mas também um processo social e simbólico. Acrescenta ainda que: «[p]ode ser muito certo que nenhuma necessidade humana, por mais básica que seja, jamais se apresenta sem uma série de importantíssimos, e muitas vezes determinantes, componentes culturais, isto é, convencionais; mas não é menos certo que as necessidades da vida humana não são simplesmente uma questão convencional» (p. 70). É precisamente no seguimento destas perspectivas que podemos perceber que as necessidades se ligam à vulnerabilidade como fundamento da universalidade do ser humano – na medida em que todos os seres humanos têm necessidades, nem que seja considerando apenas um nível elementar de existência — e, ao mesmo tempo, à individualidade e diferença de cada um, que as sente, avalia, prioriza e expressa de forma diferente ao longo do ciclo de vida. Para Watson (2008), qualquer necessidade básica no plano físico pode ser considerada como uma necessidade da alma que encarna o corpo21. Nos seus primeiros trabalhos, Watson (1985) recorre à teoria de Maslow para organizar as necessidades humanas em necessidades de ordem inferior e superior. Nos seus trabalhos mais recentes (Watson, 2008) reavalia a teoria de Maslow, considerando-a desactualizada na hierarquia de necessidades que estabelece, e desenvolve uma perspectiva mais alargada sobre o que se habitualmente se entende por necessidades básicas. Estas necessidades, essenciais para manter a vida do corpo, são entendidas como simbolicamente ligadas a outras dimensões da existência humana que emergem e se reproduzem na for- 21 A discussão sobre a alma e o corpo e a possibilidade de ligação entre ambos remontam aos filósofos da antiguidade. Picard (1997) expõe as ideias vigentes desde os filósofos gregos, passando pelo dualismo de Descartes (para o qual a alma e o corpo são mutuamente exclusivas nas suas propriedades) e incorpora na discussão sobre a actualidade os novos conhecimentos da neurociência e acrescidas discussões de filósofos da actualidade. Watson (2002) apresenta-nos o corpo como «espelho sagrado», um espírito corporizado que reveste de sacralidade a prática de cuidar. Macrae (2001) analisa as perspectivas de Florence Nightingale que se referem ao corpo como «veículo do espírito» (p. 17). 46 | Cuidar da Família ao longo da vida ma como as necessidades são satisfeitas ou afectadas. Esta interconexão complexa é o resultado da evolução da forma da humanidade ser-no-mundo22 que conduz para novos níveis de capacidade, mas também de necessidade. Watson (2008) recorre ao filósofo Levinas para explicar que cuidar das necessidades dos outros é tocar na força de vida e alma de outra pessoa e na nossa. Nesta perspectiva, podemos também olhar para a necessidade de cuidar do outro como resposta a um desejo de contactar com a própria vulnerabilidade e realizar um percurso de desenvolvimento interior. A explicação de C1 evolui, de facto, para relacionar o cuidar do outro com o seu bem-estar pessoal: «Ahh… e quando eu disse senti necessidade eu... nessa altura nem... a gente nem se questiona! Porque é isso que você quer fazer, que tem de fazer, por si! Não tanto pela outra pessoa. Claro que ao fazer, vai ajudar a outra pessoa mas... é... no fundo, no fundo é bom para si.» Da exploração do cuidar como necessidade emerge efectivamente o conceito de cuidar para autocuidado. Cuidar para autocuidado: a ética de um cuidar auto-interessado Nesta perspectiva, o cuidar aparece como uma forma de cuidado pessoal, como algo que é bom para o próprio. Esta perspectiva sobre o cuidar constitui factor de ponderação para a decisão: «acima de tudo nós temos de ser responsáveis por nós próprios, pelos nossos actos, por isso nós possuímos o livre-arbítrio, nós podemos decidir por nós, e só nó... a nós é que é que no—ahh... so... somos responsáveis por essa decisão, perante nós próprios, não perante os outros! Nós temos que responder a nós próprios, temos de nos sentir bem com nós próprios». Aqui se associam novamente os conceitos de auto-responsabilidade e autojuízo pelas decisões e acções realizadas. O cuidar é aqui também uma escolha. 22 «Any presenting need can be related to self-survival, even if existential-spiritual in nature; our needs are not restricted to the biophysical in the usual sense of “basic needs”. These deeper, evolving human needs beyond physical survival encompass the human in a unified way that expands and deepens our evolving humanity and being-in-the-world […] Soul care as well as physical care is required to respond to each and all needs, in that the whole of spirit/soul is in each physical and nonphysical need and is embodied in the physical plane of the body» (pp. 146-147). Resultados da análise |47 Porém, não é evocada a vontade da doente mas uma necessidade sentida da cuidadora. O sentir-se bem está directamente relacionado com um autojuízo positivo sobre si próprio, pelo qual cada um é, nesta perspectiva, directamente responsável. Pensar que o que determina a acção de cuidar do outro é algo que «no fundo, no fundo é bom para si» pode, por outro lado, remeter-nos para um conjunto alargado de questões éticas. Poderemos questionar o valor ético desta acção de cuidar porque motivada por interesses que muitos considerariam egoístas? Qual a perspectiva ética sobre um cuidar por interesse próprio? Rachels (2004) desenvolve e clarifica os conceitos de egoísmo psicológico, interesse próprio e egoísmo ético. Os conceitos emergem das tentativas de explicar os comportamentos das pessoas e também da busca das melhores respostas para resolver a tensão existente entre os nossos interesses e os interesses dos outros. Nesta perspectiva, o egoísmo psicológico refere-se a uma teoria que procura explicar a natureza das pessoas e como elas se comportam, enquanto o egoísmo ético é uma teoria normativa sobre como as pessoas se deveriam comportar. O autor sinaliza a tendência generalizada para confundir egoísmo com interesse próprio e clarifica que agir no interesse próprio e procurar o nosso próprio bem-estar não é incompatível com uma genuína preocupação com os outros. O comportamento egoísta é, segundo Rachels (2004): «o comportamento que ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser ignorados» (p. 108). O egoísmo ético é descrito por Rachels (2004) como «a ideia de que cada pessoa tem obrigação exclusiva de lutar pelos seus próprios interesses» (p. 117). Aqui o princípio fundamental de conduta é o interesse próprio e este resume todos os outros deveres. Porém, isto não quer dizer que devamos evitar acções que promovam os interesses dos outros. Na verdade, o mesmo autor acrescenta a possibilidade de uma coincidência de interesses. Seguindo uma linha de pensamento próxima mas mais elaborada, Savater (2000) fundamenta uma ética no amor-próprio23 e na auto-afirmação do humano. Critica uma depreciação do amor-próprio (conotado negativamente como egoísmo) e uma moral que exige uma renúncia a si próprio24. O concei Savater (2000) não recorre à denominação de egoísmo ético elaborada por Rachels (2004), preferindo a ambiguidade do amor-próprio aos «equívocos suscitados em torno do termo “egoísmo”» (p. 34). 24 «Claro, a fundamentação de ética no amor-próprio e na auto-afirmação se choca com a venerável tradição moral renunciativa, de cunho primordial mas não exclusivamente cristão que pôs na superação ou mesmo na abolição do amor-próprio (chamado de maneira ainda mais censória de “egoísmo” e na correspondente potencialização do altruísmo a própria característica da opção ética» (p. 29). 23 48 | Cuidar da Família ao longo da vida to de amor-próprio desenvolvido por Savater sustenta-se numa concepção da liberdade como a «intervenção da vontade na identidade, ou também: a liberdade é o primordial dever (ser) de nosso querer ser» (p. 22). Nesta perspectiva, é «[q]uerer continuar sendo, querer ser mais, querer ser de forma mais segura, mais plena, mais rica em possibilidades, mais harmoniosa e completa: ser contra a debilidade, a discórdia paralisante, a impotência e a morte» (p. 24). O ser é uma constante perseveração na reforma e reinvenção do seu ser, inacabável, onde não existem etapas definitivamente humanas. Esta inacababilidade é uma resposta à consciência de que a morte é inevitável e corresponde a um anseio de sobrevivência que se exprime num projecto de imortalidade. Este não é um projecto que se concretiza no indivíduo sozinho, mas um projecto colectivo onde a imortalidade surge na capacidade que a espécie tem de subsistir através de meios que asseguram a perduração física dos indivíduos que a compõem e o reconhecimento inter-humano que, para Savater (2000), terá de ser obrigatoriamente instituído. É a este projecto que a ética, direito e política (diferentes relativamente ao peso da necessidade de reconhecimento) procuram dar resposta. É a partir desta ideia que Savater (2000) se preocupa em explicar que egoísmo não é o mesmo que egocentrismo (fechar-se em si mesmo) e em contrapor uma oposição habitual entre egoísmo e sociabilidade defendendo que o primeiro é um autêntico fundamento da segunda. O amor-próprio é o ponto de partida e medida do amor aos outros, expresso no conhecido mandamento cristão: «Ama o próximo como a ti mesmo.»25 Associado à discussão do egoísmo ético (Rachels, 2004) e do amor-próprio (Savater, 2000) aparece, numa quase contraposição dialéctica, o conceito de altruísmo. Ambos os autores recorrem a Thomas Hobbes para explicar que mesmo as maiores acções solidárias e altruístas podem partir do mais primário egoísmo. Thomas Hobbes concentrou-se na análise dos comportamentos altruístas mostrando como todos podiam ser compreendidos em termos egoístas nas suas concepções sobre a caridade e piedade. Rachels (2004) cita Hobbes explicando que a caridade não é mais do que um meio de um homem demonstrar o seu poder sobre o outro: «[n]ão pode haver maior argumento para um homem, provando o seu próprio poder, do que saber-se capaz não apenas de realizar os seus desejos, como ainda de ajudar outros homens nos seus: e é 25 O autor cita Miguel de Unamuno para ilustrar a importância de sabermos amarmo-nos: «“Ama o teu próximo como a ti mesmo!” disseram-nos, pressupondo que cada um se ame a si mesmo; não nos disseram: “ama-te!” Contudo, não sabemos nos amar» (p. 44). Resultados da análise |49 nisso mesmo que consiste a concepção do que se chama “caridade”» (p. 101). Continuando a citar Hobbes, a piedade «consiste em imaginar ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de outrem» (p. 102)26. Rachels (2004) dá exemplos de como os comportamentos altruístas poderão estar relacionados com o «desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina» (p. 100) e recorre aos argumentos de Ayn Rand para reforçar o que está na base da recusa de uma ética do altruísmo: «[s]e um ser humano aceita a ética do altruísmo a sua primeira preocupação não é como viver a vida, mas como sacrificá-la». O sacrifício da vida não significa a morte de forma literal mas a afectação nas dimensões que constituem a vida de determinada pessoa. Daqui resulta a não primazia do valor de uma vida individual. Também Savater (2000) recusa o ideal habitualmente associado ao altruísmo e cita Nietzsche: «o próximo elogia o desinteresse porque colhe seus frutos. Se o próximo raciocinasse de um modo desinteressado, recusaria essa ruptura de forças, se oporia ao nascimento de semelhantes inclinações e afirmaria antes de tudo seu desinteresse, designando-as precisamente como ruins» (pp. 58-59) e, abordando as razões pelas quais nos devemos comportar moralmente com os outros, parafraseia W. H. Walsh para resumir que: «devo ser moral porque não posso ser o que realmente desejo sem o ser». Numa abordagem do altruísmo no contexto familiar, Midlarsky (2006) considera que os comportamentos altruístas não necessitam de ser completamente não recompensados. Para esta autora, o que é importante é que se foquem no outro e que a razão primária do indivíduo (se não a única) para realizá-los seja o seu desejo e intenção de aliviar o sofrimento e/ou realçar o bem-estar de outro. As perspectivas analisadas sobre o egoísmo ético e sobre o amor-próprio diferem na conotação atribuída à palavra egoísmo e no entendimento do que lhe está subjacente. Apresentam-se como conceitos próximos, não idênticos. Alguns dos argumentos de Rachels (2004) contra o egoísmo são implicitamente desmontados por Savater (2000) porque também são diferentes os pressupostos dos dois autores. Enquanto o primeiro se preocupa com uma exposição de argumentos contra e a favor do egoísmo ético, o segundo constrói toda uma ética baseada no amor-próprio. 26 Duas observações breves se poderão fazer sobre este assunto: a primeira é que esta concepção sobre a caridade poderá contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre as relações de poder no contexto de cuidar que advêm dos preconceitos dos cuidadores sobre o que é ser caridoso. 50 | Cuidar da Família ao longo da vida Para Savater (2000) o individualismo é um produto e êxito da sociabilidade e, portanto, não existe uma oposição real entre indivíduo e sociedade como habitualmente se deduz. Explica que «o sujeito que leva em conta seu destino como aventura pessoal formada por escolhas próprias recebe como contrapartida a imposição de encarregar-se dos outros: quanto mais radical e madura a individualização, mais universal a compaixão para com os demais» (p. 134). No desenvolvimento da sua abordagem, Midlarsky (2006) começa por se questionar sobre o momento em que emerge no indivíduo a motivação para comportamentos altruístas e contraria uma certa tendência para assumir uma ideia animalesca do Homem que, partindo de uma visão darwinista associada a conceitos como selecção natural e competição, conotaram a sua base biológica com o egoísmo. A natureza humana aparece aqui derivada da de animais «inferiores» e assumida como negativa e autocentrada. Dando exemplos de comportamentos altruístas evidentes nos animais, a autora pretende contrariar a noção de que somente agressão, competição e egoísmo são naturais. Ao abordar o altruísmo na infância refere que, qualquer que seja a predisposição inata para ajudar, é a ligação e identificação com um cuidador nutridor que irá servir de modelo para o desenvolvimento de um altruísmo genuíno. Recorre também aos seus estudos anteriores (Midlarsky, 1984, 1991)27 para sustentar que independentemente da motivação inicial para os comportamentos de ajuda, quando estes resultam em efeitos positivos, a probabilidade de que estes comportamentos se repitam aumenta. Também para esta autora, as competências de um cuidar maduro – a habilidade de perceber correctamente a necessidade pela perspectiva do outro, o sentir preocupação genuína, o desenvolver de uma intenção e o agir eficazmente – são produtos da socialização normal, referindo-se a estudos que concluem que o altruísmo aumenta ao longo da vida numa preocupação que vai sendo progressivamente mais alargada a toda a humanidade. Estes pontos encontram linhas comuns com as ideias desenvolvidas por Savater (2000). As perspectivas e evidências analisadas expõem argumentos que sustentam do ponto de vista ético uma fundamentação da preocupação consigo próprio no cuidado aos outros e são unânimes em refutar o ideal de um altruísmo puro Midlarsky, E. 1984. Competence and Helping. In E. Staub, D. Bar-Tal, J. Karylowski e J. Reykowski (eds.). Development and maintenance of prosocial behaviour. New York: Plenum. Pp. 291-308. Midlarsky, E. 1991. Helping as coping. In M. Clark (Ed.). Review of personality and social psychology. Newbury Park, CA: Sage. Pp. 238-264. 27 Resultados da análise |51 caracterizado por completa inexistência de recompensa ou diferentes formas de retorno pelos actos praticados. Aliás, Midlarsky (2006) considera que uma visão extrema do altruísmo pode tomar um percurso de acção autodestrutivo dando como exemplo os actos de heroísmo em contextos de guerra. Excluindo esta radicalidade, refere podermos verificar que a vida diária de muitos cuidadores está imbuída de um conjunto de acções altruístas que, embora menos extremas e dramáticas, são absolutamente críticas para a manutenção da sociedade. Entre o heterocuidado, autocuidado e o sofrimento Encerrando a discussão sobre o valor ético da acção podemos questionar-nos sobre como é que o heterocuidado (cuidar do outro) se poderá transformar numa forma de autocuidado apesar das exigências que lhe poderão estar subjacentes. Numa teoria que desenvolve os aspectos do cuidar, Watson (2008) aprofunda o que denomina de processos caritas e que correspondem a uma evolução e extensão do que anteriormente tinha já desenvolvido e designado por factores de cuidar (Watson, 1985). Esta é uma evolução que permite olhar mais directamente sobre os processos dinâmicos que constituem uma manifestação da presença desses mesmos factores. Assim, o factor de cuidar, enquanto «cultivar sensibilidade para consigo e com os outros», evolui para «cultivar as práticas pessoais espirituais e o self transpessoal, ir além do ego-self» (p. 67). Neste contexto, a autora explica de que forma se interligam o cuidar do próprio crescimento espiritual e a sensibilidade para com os outros28. Ressalta a importância de sermos capazes de olhar para dentro sem recear mesmo os nossos aspectos mais obscuros – que receamos ou de que não gostamos – mas que nos ligam profundamente ao humano. Esta é uma ideia, entre outras, que está na base da sua adesão e recomendação de práticas meditativas. É este processo que está presente, como teremos oportunidade de verificar, nas práticas de cuidar de C1. 28 «However, without attending to and cultivating one’s own spiritual growth, insight, mindfulness, and spiritual dimension of live, its very difficult to be sensitive to self and other. Without this lifelong process and journey, we can become hardened and brittle and can close down our compassion and caring for self and other» (p. 67). 52 | Cuidar da Família ao longo da vida Foucault (1994) desenvolve também o conceito de souci de soi (cuidado de si) e de que forma este foi desenvolvido historicamente desde a antiguidade. Na sua extensa exploração, explica que o cuidado de si, embora contemplasse os cuidados do corpo, era essencialmente um cuidado direccionado para a alma. Para os epicuristas, a filosofia era «um exercício do cuidado consigo» e, para Séneca, a disponibilidade para si próprio era importante para «uma pessoa se fazer a si própria», «se transformar» e «voltar a si» (p. 57). No entanto, é em Epicteto que Foucault reconhece a mais alta elaboração filosófica deste tema. Epicteto define o ser humano como «aquele a quem foi confiado o cuidado de si […] porque o deus quis que ele pudesse fazer livremente uso de si próprio; e foi com esse objectivo que o dotou de razão» (p. 58). O mesmo autor continua fazendo também referência ao conceito de epimeleia: «o termo epimeleia não designa só uma preocupação, mas todo um conjunto de ocupações; é de epimeleia que se fala para designar as actividades do dono da casa, as tarefas do príncipe que vela pelos seus súbditos, os cuidados a prestar a um doente ou a um ferido, ou ainda os deveres que se tem para com os deuses e os mortos. Também em relação a si mesmo, a epimeleia implica um labor» (p. 62). Este labor sobre si próprio exige tempo consagrado especificamente para o efeito: «[p]ara isso é preciso tempo […] Recorre-se a muitas fórmulas diversas. Pode-se, à noite ou de manhã, reservar alguns momentos ao recolhimento, ao exame daquilo que se tem de fazer, à memorização de alguns princípios úteis, ao exame do dia que passou» (p. 62). Este exercício habitual sobre si próprio está muito bem demarcado na narrativa de C1: «eu chego ao final do dia, na paz do meu quarto, tudo às escuras, eu deito-me na minha cama, raramente faço uma prece, mas, tento questionar-me. Tento rever desde o início desse dia até ao final do dia e ver tudo aquilo... passar como em filme o meu dia e dizer: “o que é que fizeste hoje? O que é que podias ter feito? O que é que não fizestes? Ahh... onde é que falhastes? O que é que podias ter dito? O que é que podias ter calado?”, ahh... e é nessa análise que nós vamos tentando... é assim, o importante é tentar ser melhor hoje do que fui ontem nem que seja uma milésima de um milímetro (risos) mas o importante é nós trabalharmos nisso diariamente e: tentar ser melhor amanhã do que fui hoje. E é isso que transmito às minhas filhas». A cuidadora descreve um trabalho reflexivo diário, que incide sobre o fazer e dizer realizados ou omitidos com vista a um aperfeiçoamento contínuo. É uma reflexão que se faz no quarto, local calmo, e às escuras, com estímulo reduzido. É assim um momento de isolamento e de se relacionar consigo mesma, e, na linha do que é referido por Watson (2008), de analisar os aspectos de si que não gosta e necessita de melhorar. Resultados da análise |53 Estas práticas deste exame de consciência são também descritas por Foucault (1994)29 associadas à prática dos «procedimentos de provação» (p. 71) utilizada para aquisição e avaliação de virtudes alcançadas. Práticas semelhantes existem ainda hoje: diferentes religiões mantêm práticas de jejum e abstinência entendidas como forma de enriquecimento espiritual. O Livro de Job, por exemplo, descreve uma vivência de sofrimento que se insere num conjunto de provações progressivas a que é submetido por Deus. O exemplo de Job, servo justo e fiel, é um convite à compreensão de que nem sempre os males terrenos devem ser entendidos como expressão da justiça divina que avalia o binómio culpa-castigo. Eles podem constituir um convite ao aperfeiçoamento quando se aceita a existência de desígnios não compreendidos. É no auge do seu sofrimento que as questões que se relacionam com o sentido da vida emergem nas lamentações30 de Job. Também C1 elabora um discurso que questiona o sentido dos acontecimentos: «O esforço físico, o... a nossa entrega pode ser... levar-nos até à exaustão por vezes, ao cansaço físico, mas depois... naquela hora nós até podemos dizer assim: “tou cansada, porquê eu?”, ahh... questionamo-nos, até pode haver momentos de revolta porque somos humanos não é?» Por um lado, estas «provações» colocam em evidência a associação do sofrimento aos males do corpo e à privação das suas necessidades; por outro, uma ideia generalizada de que «para crescer é necessário sofrer». Esta Foucault (1994) refere que é Séneca (De ira, III) quem realiza a descrição mais pormenorizada destas práticas reflexivas cuja origem atribui a Sextius (histórico romano) e que consistia predominantemente numa avaliação do progresso ao fim do dia: «quando se recolhia para o repouso da noite, Sextius interrogava a sua alma: “de que defeito ficaste curada; que vício combateste: em que é que te tornaste melhor?”». Estas práticas, também realizadas por Séneca, careciam da obscuridade, «a partir do momento em que a luz se retira», e do silêncio (quando «a mulher se cala»). Foucault (1994) cita as palavras de Séneca: «Que há de mais belo do que interrogar todo o seu dia? Que sono iguala aquele que sucede a passagem em revista das suas acções? Como é calmo (tranquillus), profundo (altus) e livre (liber) quando a alma recebeu a sua porção de elogio e de censura» e explica que os procedimentos se enquadram numa espécie de processo judicial semelhante ao «comparecer diante de um juiz» e administrativo que visa «avaliar uma actividade executada, para reactivar os princípios e corrigir no futuro a sua aplicação» (pp. 74-75). 30 «Porque não morri no seio da minha mãe, ou não pereci ao sair das suas entranhas? Porque encontrei joelhos que me acolheram e seios que me amamentaram?» (Bíblia Sagrada, 1986, Job 3, 11-12). Este lamento de Job é particularmente expressivo da relação íntima entre o sofrimento, o sentido da vida e o sentido do cuidar. 29 54 | Cuidar da Família ao longo da vida ideia, muitas vezes transmitida desta forma simplista, conduz, por vezes, a interpretações lineares que, ou são terminantemente recusadas, ou poderiam resultar na prática de uma série de actos estranhamente masoquistas. Torna-se então pertinente explorar os elementos que estão associados a esta ideia. Na panorâmica que faz sobre as dificuldades sentidas estão bem demarcadas as privações que teve de ultrapassar: «Ahh... cuidar de uma pessoa a tempo inteiro não é fácil. Especialmente quando não tem apoio de ninguém. Ahh... tem de prescindir da sua vida, do seu tempo, da família, da sua profissão, de tudo! Tem que estar a cem por cento disponível para aquilo que a pessoa lhe diz. Ahh... o que por vezes não é fácil quando tem uma família, filhos, marido, ahh… uma profissão (riso) tudo em cima dos seus ombros. E tem uma pessoa que você sabe que precisa de si a tempo inteiro. Não tem tempo por vezes nem sequer de tomar um duche rápido.» Foucault (1994) descreve práticas de privação desde a tradição de Epicuro cujo objectivo era o de proporcionar aos praticantes o conhecimento sobre os limites a partir dos quais a privação os fazia sofrer. Para os estóicos, as mesmas práticas estavam também associadas à ideia de Séneca de «familiarização com o mínimo» (p. 73) e constituíam uma via a partir da qual era possível uma preparação para futuras privações eventuais. Tornavam-se assim em vias para o auto-conhecimento que se baseavam em exposição controlada a factores conhecidos passíveis de despoletar sofrimento. Foucault (1994) agrupa o objectivo geral destas práticas sob um princípio comum que denomina de princípio de conversão a si, ao qual se associa uma ética de domínio. Esta conversão a si representa o fim de um percurso de retorno do indivíduo a si mesmo, que procura pertencer-se a si próprio, depender exclusivamente de si e exercer um poder (não limitativo nem ameaçador) sobre si31. O resultado dessa procura é o que o autor expõe nestes termos: «[a] quele que conseguiu finalmente ter acesso a si próprio é, para si, um objecto de prazer» (p. 79). É neste acesso a si que pode ser encontrado um prazer que permite o estado de serenidade do corpo e da alma, pois não depende de nada externo – onde se situam os prazeres «violentos, incertos e provisórios» (p. 80). Foucault (1994) desenvolve também as referências que encontra relativamente à necessidade de um «trabalho do pensamento sobre ele mesmo» que deve assumir a forma de uma «filtragem permanente das representações: examiná-las, controlá-las, triá-las». Este deverá ser uma constante na relação consigo mesmo. O autor explica que: «o controlo é uma prova de poder e de garantia de liberdade: um modo de assegurar em permanência que não ficaremos ligados àquilo que não depende do nosso domínio» (p. 77). Não se trata de descobrir apenas os significados que poderão estar ocultos nas representações mas perceber de que forma se relacionam consigo e o que, em liberdade, se pode ou não aceitar. 31 Resultados da análise |55 Embora o cuidar do outro apresente pontos comuns, nas consequências, com as «práticas de provação» descritas por Foucault (1994), há diferenças que é importante considerar. A prática do heterocuidado exige a C1 uma descentralização quase permanente de si para o outro e, como é o caso deste episódio em análise, por tempo não determinado. Além disso, o reconhecimento e valorização do outro introduz na equação um conjunto de variáveis que, no respeito pela relação e especificidade de cada ser humano, não podem ser completamente controladas pela cuidadora. Os contextos que C1 associa a momentos de maior fragilidade irão ser analisados posteriormente. Este enredo torna-se inevitavelmente numa via de abdicação de si própria, mas também desperta a necessidade de tempo para si. É neste olhar para dentro que C1 procura reforçar o controlo sobre a relação que tem consigo própria32 no sentido de se superar, de responder «com serenidade no corpo e na alma» e evitar que o outro se sinta um fardo: «você tem de estar disponível para essa pessoa. Ahh... e tem de estar minimamente por ela, você psicologicamente e fisicamente tem de se encontrar Uma perspectiva possível para analisarmos a relação para consigo próprio é compreendê-la como o referencial, o ponto a partir do qual outras relações se desenvolvem. A relação que cada um estabelece com o seu corpo é particularmente importante para o cuidar: existe, por exemplo, a possibilidade de o corpo ser escutado, respeitado, negligenciado, controlado, dominado e, até, transformar-se num companheiro com quem estabelecemos diálogo e uma série de rituais que constroem a história em comum (Gadow, 1986). As necessidades confinam a pessoa devolvendo-lhe as limitações do seu corpo. Por seu lado, o corpo – como teatro das emoções (Damásio, 2000) – e os seus sentidos constituem vias pelas quais o indivíduo constrói a consciência de si, se expande, reforça as suas relações com os outros e aumenta a capacidade de superar os limites que o próprio corpo, como realidade física, determina. As emoções, na sua função de «barómetro do nosso bem-estar» (Damásio, 2000), são despoletadas pelo corpo em necessidade. Assim, no corpo em sofrimento ou privado dos seus sentidos e impossibilitado de se expressar, de se expandir e de alcançar a compreensão e os significados dos outros, pode habitar um ser aprisionado que vive a sensação permanente de ser encarnado (Gadow, 1980). Nesta situação, o corpo deixa de ser uma possibilidade de crescimento ou um aliado para passar a ser «um fardo», e a «pessoa» – caso os outros não sejam capazes de «desencarnar» e ir ao seu encontro – pode deixar de o ser para passar a ser «o corpo». A relação com o seu corpo doente é também narrada por Miguel Torga (1999): «[o] pior na doença, mais do que o sofrimento, é a desgraça de ter a todos os momentos na consciência a humilhação das fraquezas do corpo. É sentir cada órgão a recusar a função, cumprir de má vontade o acto de viver. É suportar a tirania dos sentidos e nada poder contra a degradação e o empobrecimento de ser seu escravo. Viver é estar inocente de si próprio» (p. 1717). Watson (2002) explica de que forma uma visão mecanizada do corpo pode dar origem a um conjunto de intervenções externas que consegue «ajudar a eliminar ou reparar doenças do corpo físico, mas não consegue curar ao nível transpessoal, interior, profundo o que aqui se pretende» (p. 130). 32 56 | Cuidar da Família ao longo da vida bem para se poder dar, porque a pessoa que está naquelas condições não necessita de sentir que é um fardo, de sentir que é pesada, de sentir que está a causar um desgaste... porque aquela pessoa precisa de si. Então tem que estar no seu melhor e... é assim, isto é se estiver sozinha como cuidadora duma pessoa nessas condições […] Você precisa de tempo também para si, de... com a minha avó eu tive alturas, como eu digo, eu nem ao duche eu conseguia ir até eu ter a família em casa». As ideias sobre o sentido do sofrimento desenvolvidas por Frankl (2004)33 podem contribuir para alargar as perspectivas nesta análise e ajudar a compreender de que forma o sentido do sofrimento se encontra intimamente ligado ao sentido da vida. Frankl (2004) enfatiza que o sofrimento não é necessário para encontrar sentido, mas que este pode ser encontrado nas situações em que o sofrimento é inevitável. Um dos pressupostos básicos no qual assenta a logoterapia, desenvolvida por Viktor Frankl, é que a principal preocupação do homem não é a procura de prazer ou evitar a dor, mas sim a procura de um sentido para a sua vida. A partir daqui, advoga que o homem pode, inclusive, estar preparado para sofrer desde que o seu sofrimento tenha sentido. Frankl (2004) explica que, sempre que somos confrontados com uma situação que não podemos mudar, somos desafiados a mudarmo-nos34. É em face desta inevitabilidade que a mudança interior ocorre. O outro pode então representar num paradigma de respeito pela sua individualidade e liberdade, a possibilidade do inevitável. Neste cuidar familiar que C1 desenvolve, é o familiar e as suas necessidades que representam as circunstâncias inevitáveis e que escapam ao seu controlo. Neste sentido, também C1 se torna dependente do outro e também o heterocuidado pode induzir a mudança e desenvolvimento da relação que estabelece consigo própria no sentido de também manter a sua integridade (autocuidado). Neste paradigma, as conexões entre as dimensões do autocuidado e do heterocuidado transformam-se num circuito interdependente em que cada uma Publicação baseada na obra originalmente publicada em 1946 sobre o titulo Ein Psycholog erlebt das Konzentrationslager (titulo original em inglês: From Death – Camp to Existentialism). 34 «We must never forget that we may also find meaning in life even when confronted with a hopless situation, when facing a fate that cannot be changed. For what then matters is to bear witness to the uniquely human potential at its best, which is to transform a personal tragedy into a triumph, to turn one’s predicament into a human achievement. When we are no longer able to change a situation – just think of an incurable disease such as inoperable cancer – we are challenged to change ourselves» (p. 117). 33 Resultados da análise |57 pressupõe a existência de outra, ambas se potenciam mutuamente e onde se torna difícil de delimitar pontos de partida e de chegada, onde «tem de se encontrar bem para se poder dar»: Figura 1. Circuito interdependente entre o auto e heterocuidado Heterocuidado Autocuidado Sensibilidade para com os outros Abdicação de si Consciência das necessidades, limites e capacidades pessoais Sofrimento: privação da satisfação das necessidades «Conversão a si» «Sensibilidade para consigo» Meditação/reflexão Procura de sentido Estas interacções são o resultado de uma vivência paradoxal: ao mesmo tempo que cuidar do outro (heterocuidado) é assumir a fragilidade do ser humano e a inevitabilidade do sofrimento – porque nos confronta com a possibilidade real de não sermos capazes de suprir as nossas necessidades – é, também, a negação deste pela procura de formas de superação (autocuidado)35. Na sua abordagem ao sentido do sofrimento, Frankl (2004) refere-se ainda à liberdade que deve ser dada a cada um de atribuir sentido ao seu sofrimento, de ter orgulho, de o considerar dignificante, nomeadamente, de aceitar o «desafio de sofrer corajosamente» (p. 118). O potencial de desenvolvimento 35 Neste paradigma de interacção em que se focam as dimensões do cuidar, o sofrimento poderia ser definido como a ausência de resposta a necessidades sentidas causada por acontecimentos de vida que criaram diminuição permanente ou transitória da capacidade de cuidar de si próprio e/ou dos outros. 58 | Cuidar da Família ao longo da vida não reside pois no facto exterior de sofrer mas no acto que o tenta superar com coragem. Perceber-se capaz de superar o sofrimento – pela relação que estabelece consigo ou com os outros – pode constituir uma via de realização, uma forma de encontrar sentido e, na medida em que isso se constitui como necessidade humana, de autocuidado36. Esta abordagem permite clarificar os processos despoletados pelas situações de sofrimento para enquadrar e compreender a narrativa de C1: «nos últimos quatro meses de vida da minha mãe eu acho que não há ninguém que mereça esse tipo de sofrimento. Mas, também acho que o ser humano... ou ao ser humano só lhes é dado aquilo que têm capacidade de». O sofrimento é referido numa dicotomia paradoxal: o sofrimento «merecido» versus o sofrimento proporcional à «capacidade». Este segmento da narrativa ilustra a coexistência de duas concepções já analisadas sobre o sofrimento. Uma que se orienta para a visão de que o sofrimento pode constituir uma resposta a acções desenvolvidas e, neste sentido, ser (ou não) merecido – o castigo ou punição – e outra que concebe o sofrimento num contexto que tem em conta as capacidades do indivíduo e onde a superação é possível. C1 explica então uma visão na qual a superação do sofrimento é conseguida pela conclusão do processo de aprendizagem que a «vida» pretende estimular. A vida transforma-se numa entidade mentora, equiparada metaforicamente a uma «escola», e os acontecimentos na sua forma de comunicar «as lições» que existem para aprender: «nesta escola todos nós temos o nosso timing, ahh... cada um de nós tem as suas competências, mas todos nós temos de chegar até vá, ao doutoramento (risos)... [S – risos], é verdade! Ahh... tal qual uma criança pode fazer a primária nos quatro anos que são devidos, há alguns deles que levam cinco! E depois há alunos que chegam ao décimo segundo ano e é assim... nunca reprovaram, ahh, passaram sempre... e nós também. Todas as lições que temos de aprender, ahh... se não formos alunos aplicados, se não nos esforçarmos para aprender aquilo que a vida nos tem para ensinar, tudo aquilo que nós temos que passar e que dar, ahh... nós não vamos passar de classe, sem dúvida! Não evoluímos, não... como... como na gíria mais jovem diz: “não conseguimos partir para outra”, não conseguimos! Andamos ali a marcar passo até aprendermos a lição que temos que aprender com... ou com... com aquele sofrimento, ou com aquela dor ou... Em última análise podemos questionar-nos sobre até que ponto é que uma exposição voluntária a situações que se conhecem a priori como causadoras de sofrimento não poderá ser a via encontrada para exprimir a necessidade de encontrar um sentido para a vida. 36 Resultados da análise |59 ahhh... é quase, tipo... um círculo vicioso, ahh... que não vai desandar até nós conseguirmos sair daque--... daq--... daquele circulozinho vá. Andamos ali à roda e à roda e à roda e nós dizemos assim: “mas isto é cíclico não é? A lição não foi aprendida? Estás a ser castigada?” é como, por exemplo, a professora primária: diz... faz um ditado, explica a diferença entre A com H e A com acento, e: a professora diz: “ok, ahh... vamos lá: há nuvens no céu, escreve-se como” e o aluno diz: “sem H” e a professora diz: “tá mal!”. No dia seguinte torna a dizer: “há flores bonitas no jardim! Como é que escreves?”, “sem H”, “está mal!... ouviste aquilo que te digo?” e a gente vai para casa, resmunga... atira com os livros e… não é? No dia seguinte a professora diz ahh: “à uma hora, há um filme! Qual é a palavra que leva H?” se o aluno aprendeu a lição a professora diz assim: “ah:: finalmente! Agora onde é que está o H?” Chegou lá, não é?». Frankl (2004) realça a importância desta mudança de perspectiva perante a vida: «[n]ós tínhamos de aprender e, além disso, ensinar ao homem em desespero que o que importava realmente não era o que nós esperávamos da vida, mas antes o que a vida esperava de nós» (p. 85). Assim, o homem deve pensar em si próprio como aquele que está, a todo o momento, a ser questionado pela vida. A «vida» e as suas tarefas são também para Frankl (2004) algo muito concreto e real37. O sentido da vida e as tarefas a executar variam de homem para homem e de momento para momento, pelo que uma definição geral do que é concretamente o sentido da vida não é possível. O sentido que C1 atribui ao sofrimento surge inserido num paradigma de aprendizagem sobre a dádiva de si mesma. Nesta visão metafórica, a capacidade que cada um tem de encontrar formas de dádiva de si próprio influencia a repetição de vivências e a descoberta da missão de vida: 37 «Na vida... todas as lições que a vida nos tenta transmitir é a mesma coisa, nós podemos levar anos para compreender qual é a nossa missão na terra, o que é que nós temos que dar para receber, e nós só aprendemos se nos aplicarmos. Se... como é que eu hei-de dizer? Se realmente formos à luta, se nos dermos, porque se não formos alunos aplicados vamos ali andar a marcar passo, não sei até quando! Se calhar, passará esta vida e teremos outra vida e ainda estamos a marcar o mesmo passo! (risos). Ahh… e é assim, eu descobri que, ao dar, embora às vezes não seja fácil, e quando às vezes as pessoas dizem: “ah! Mas eu dou! Eu vejo um pobrezinho e dou! Eu dou uma esmola!”. Não. Dar não é isso. Nós só damos aquilo que é nosso. E o que é que é nosso? O que é que nós levamos «“Life” does not mean something vague, but something very real and concrete, just as life’s tasks are also very real and concrete. They form man’s destiny, which is different and unique for each individual. No man and no destiny can be compared with any other man or any other destiny» (p. 85). 60 | Cuidar da Família ao longo da vida quando nós partimos? Não levamos nada, nem... nem o invólucro que é a parte física. A bagagem que levamos é tudo de bom que nós fizemos por isso, aquilo que damos é aquilo que é nosso, cá dentro (mão sobre o peito). Ahh... é assim, eu acho que ainda não dei o suficiente.» Neste processo de aprendizagem C1 realça o que para ela constituiu a aprendizagem mais relevante: «ahh... e a maior lição que nós podemos aprender e que todos temos de aprender, não importa o tempo que levemos, ou quando vamos aprender, é o quanto é importante o amor, o dar». Na sequência da partilha de uma aprendizagem que considera universal, a cuidadora revela de que forma os sucessivos episódios de cuidar a ajudaram à tomada de consciência da sua missão no mundo: «Eu acho que, ahh... (7)... que houve uma luz que se acendeu com a partida dela, a luz que eu digo que não hei-de esquecer aquele brilho, brilho que foi partilhado na hora da partida. Eu acho que foi algo que me iluminou. Ahh... porque embora tivesse passado por experiências muito semelhantes e me tivesse dado, eu só comecei realmente a analisar tudo aquilo por… que eu tive por passar, tudo aquilo que eu tive de vivenciar, ahh... e só quando realmente interiorizei a lição que a vida me tava a tentar dar é que tive paz. Ahh... e tive a percepção de qual a minha missão realmente porque eu questionava-me: “Porquê eu? Porquê a mim? Toda a minha vida?”, Porque sempre fui cuidadora, só que eu não compreendia o porquê. E só com a partida da minha avó é que eu disse: “mas é essa a tua missão”.» Ser cuidadora torna-se numa forma consciente de realização pela percepção de uma tarefa que permite pôr em prática a «lição» aprendida sobre o amor. É através do cuidar do outro que C1 encontra uma forma de dádiva de si. A descoberta da missão de vida surge no contexto do confronto com a morte da avó38 e resulta de um diálogo interno que permite tornar consciente algo que a movia mas que lhe era desconhecido até então. Nos escritos de Viktor Frankl (2004) e Watson (2005) podemos encontrar relatos dos autores descrevendo momentos de consciencialização semelhantes39. Para Frankl (2004) «o amor é o último e maior objectivo para o qual o Posteriormente irá ser discutido de que forma o confronto com a morte pode catapultar questões sobre o sentido da vida. 39 «A thought transfixed me: for the first time in my life I saw the truth as it is set into song by so many poets, proclaimed as the final wisdom by so many thinkers. The truth – that love is the ultimate and the highest goal to which man can aspire. Then I grasped the meaning of the greatest secret that human poetry and human thought and belief have to impart: The salvation of man is trough love and in love» (Frankl, 2004, p. 49). 38 Resultados da análise |61 homem pode aspirar» (p. 49). Watson (2005) explora o amor como o estado mais elevado de consciência, um campo de energia universal ao qual todos estamos ligados e vê o percurso da vida humana como um processo de lembrança de si: pertencer, ser e tornar-se – Belonging-Being-Becoming. 2.2.5. Cuidar da avó O episódio de cuidar da avó foi o mais recente e, como já foi referido, o único em que se verificou a existência de apoio de saúde estruturado através de uma equipa de cuidados continuados. É o relato mais extenso e pormenorizado. Para efeitos de análise, consideraram-se vários momentos do decorrer da acção, respeitando a sua sequência cronológica. Concomitantemente, foram analisadas as dinâmicas ocorridas, possibilidades simbólicas e realizada revisão bibliográfica sobre os conteúdos emergentes para uma compreensão mais alargada de cada momento em particular. O contexto do início do cuidar e o ideal do cuidar intergeracional A descrição do cuidar da avó inicia-se no momento da decisão de mudança de país: «e quando o marido decidiu, derivado à insegurança política do país na altura, ahh, vir para Portugal, ahh, claro, como família, viemos todos. A minha avó na altura ainda não vivia a tempo inteiro comigo, ahh, tínhamos uma relação muito chegada, a única coisa que ela não fazia era dormir lá em casa, dormia em casa da minha ----- {pausa durante a verificação do gravador} C1 – ... (7)... ahh, quando tomamos a decisão, a minha avó disse que queria vir connosco primeiro porque era muito chegada a nós e segundo ela disse não ia deixar os netos nem as duas bisnetas, ahh nós concordamos em trazê-la contra «But for now, I want to explain that all of this experience and time out/in resulted in one epiphany of a moment, when I had this powerful cosmic moment when I felt that I had Become Love! It was not a feeling of being loved, or being in love, I felt I WAS LOVE, and it was as if I realized that was what I had come here to remember […] I now believe my experience of Becoming Love is our true state of Belonging-Being-Becoming that we are all seeking to remember in our own way. I felt I had received a holy gift, which I cannot forget» (Watson, 2005, p. 73). 62 | Cuidar da Família ao longo da vida a vontade das filhas, ahh, mas mesmo assim nós trouxemo-la, então ela viveu connosco, ahh, debaixo do mesmo tecto, com tudo partilhado, ahh, aqui em Portugal, pronto, ahh, praticamente dezasseis anos». A mudança de país foi o momento que marcou o assumir da responsabilidade do cuidar, pela inclusão formal da familiar (avó) na família nuclear que mudou de país. O contexto de comprometimento da segurança é o que vai despoletar uma reavaliação das relações existentes na família e tornar evidente, pela manifestação da sua vontade, o grupo familiar onde a avó se sente incluída. Há aqui dois aspectos que se destacam de forma particular: o primeiro diz respeito à sobrevalorização da vontade da doente relativamente à vontade das filhas; o segundo, ao papel preponderante atribuído à relação já existente, que acaba por estar na base da escolha realizada. Esta é também uma decisão fracturante do esquema familiar formal, que afasta geograficamente a mãe (avó de C1) das filhas, que decorre num contexto de conflito de vontades e que irá condicionar no futuro as dinâmicas familiares e a assumpção da responsabilidade pela prestação de cuidados. A cuidadora contextualiza a sua relação com a avó na história e ciclo de vida familiar. A relação preexistente com a mãe da cuidadora e a morte prematura desta contribuíram para o reforço da ligação afectiva que já existia. Neste caso, a morte de um elemento da família causa alteração no sistema familiar e reforço de relações preexistentes: «Ahh, e depois de ela perder a minha mãe eu acho que o elo de ligação que havia entre nós ainda mais forte se tornou, porque ela perdeu a filha que, para ela, era a filha mais querida, a filha mais próxima. Ahh... (3)... e é assim, claro que, se na saúde nós tivemos próximas na doença... ainda essa proximidade, ainda mais aumentou porque, naquela altura claro, ela precisava de nós, não é?» A relação é descrita associada à partilha. Os elementos partilhados são enumerados nos aspectos mais essenciais: o tempo e o espaço. Esta partilha de tempo e espaço é a expressão de uma partilha contínua, simbolicamente representada nos conceitos que a definem como fisicamente existente, mas ao mesmo tempo como a via para aceder a outros níveis de partilha dos envolvidos: «porque ela já faleceu há dois... (3)... é assim... (4)... quando... (3)... a gente partilha o mesmo tecto partilha-se muita coisa, ahh... (2)… ela já não era nova (expressão facial: boca trémula e com olhos humedecidos)». No entanto, embora a relação e o facto de morarem na mesma casa sejam os primeiros factores referidos que estiveram presentes na ponderação para cuidar, outros factores se revelaram também pertinentes no decorrer da narrativa da cuidadora. C1 exprime um processo de decisão que avalia circunstân- Resultados da análise |63 cias do passado e do presente relativamente a vontades expressas pela doente e tipo de cuidados prestados pelas filhas: «É assim, isto foi o que levou ao meu envolvimento. Ahh, foi o ela estar em minha casa, e como eu mencionei antes, ela... a minha avó teve três filhas, duas das quais ainda são vivas, ahh, que infelizmente não quiseram muito saber da mãe... (3)... das 3 filhas... (2)… a única que era mais chegada a ela e que com ela ainda dizia que não se importava de viver se não fosse connosco era a filha mais nova que era minha mãe […] ahh... e embora, quem sou eu para julgar as outras pessoas, mas é assim, embora ela tivesse filhas, embora muitas pessoas me perguntassem e dissessem e chegassem a afirmar que eu não tinha obrigação, ahh, quando lhe era perguntado a ela... porque as filhas chegaram-me a fazer-me uma abordagem e a dizer: mete-a num lar…» É este o cenário que despoleta a decisão de cuidar. A relação afectiva de proximidade que era estabelecida pela avó com a filha transfere-se agora para a neta (C1) e esta assume também as responsabilidades que caberiam e que seriam provavelmente assumidas pela mãe, não fosse a sua morte prematura. Além disso, se, por um lado, a cuidadora reconhece a formalidade da obrigação socialmente reconhecida que atribui aos filhos o cuidar dos pais, por outro, percebe que o respeito pela mesma iria culminar num desprezo pela vontade da familiar doente, algo a que C1 atribuía mais valor: «quando ela necessitou dos cuidados continuados e de um cuidador a tempo inteiro com ela, e foi-nos proposto outras alternativas não só o domicílio, eu disse: “é assim, por mim ela continua aqui, quer tenha ajuda ou não”. Ahh, mas é assim, há duas filhas, quem sou eu para dar v... voz à vontade porque, primeiro elas, mas, antes de mais, o doente porque, como a minha avó estava consciente e conseguia comunicar, ela só dizia: “eu sei que te estou a dar muito trabalho” e eu disse: “o trabalho para mim não é nada, se é aqui onde você quer estar, é aqui que você vai continuar”. Ahh... pronto, e foi assim até ao fim». Esta ponderação e escolha perspectivam o cuidar familiar idealizado por C1. Esta opção constitui-se assim como uma via possível para atribuição de sentido para a existência de laços familiares e estes, por seu lado, são percebidos como essenciais para que se desenvolvam os esforços necessários para cuidar com afecto: «eu gostava, se algum dia me achar nessas circunstâncias, de ter alguém que trate de mim, mesmo que não tenha capacidade de o fazer, porque às vezes o importante é saber que está ali alguém, que nos quer, que nos tá a dar apoio, que nos ampara, ahh... que está connosco, não é? E se for alguém que nos é 64 | Cuidar da Família ao longo da vida querido ainda mais, não é? Porque é assim... eu não digo que as pessoas nos hospitais não sejam bem cuidadas, longe de mim, não é? Claro que há sempre alguém... como é que eu hei-de dizer? Ahh... há sempre… al… alguém dentro da área da saúde que se calhar se afeiçoa mais ou menos àquele doente que se calhar até lhe diz algo, ou lhe transmitiu algo, ou que há aquela química entre elas, mas é assim, eu acho que não é a mesma coisa. Porque, ahh... os laços de família existem por alguma razão... e é algo que nos aproxima mais. Então... se calhar através desses laços, ahh... esse elo fala mais forte e nós podemos dar mais de nós. Por... se calhar a filha... eu não digo que seja, mas devia de ser, não é?». Aos laços familiares é atribuída uma simbologia de compromisso incondicional para cuidar ou uma garantia de protecção, amparo e afecto – tornam-se em si mesmos num valor na medida em que proporcionam, na perspectiva da entrevistada, uma ligação mais profunda que nutre com a energia necessária para a superação pessoal que o cuidar do outro exige. Esta descrição e atribuição de poderes aos laços familiares constituem também uma hipótese na tentativa de explicação e expressão de diferenças fundamentais no cuidar familiar relativamente ao cuidar formal dos cuidadores ou instituições. C1 não se foca nos cuidados objectivos propriamente ditos, considerando até a possibilidade de o cuidador familiar ter menos capacidade para executá-los, mas na garantia de uma presença significativa e afecto. Kahana et al. (1994) explicam, citando Litwak (1985), que os toques pessoais que são necessários para manter o bem-estar emocional de quem recebe cuidados podem faltar nos encontros com os prestadores formais. Além da ligação não familiar, há ainda a considerar como possível factor indutor de despersonalização as exigências burocráticas das estruturas e organizações que prestam cuidados de saúde. Sarti (2001) refere que «[s]e os laços biológicos unem as famílias é porque são, em si, significantes. Ninguém se atreveria a contestar a força simbólica dos laços de sangue em nossa cultura ibérica/ocidental». No entanto, esta referência surge na explicação de que a família «não corresponde à soma de indivíduos unidos por laços biológicos mas pelos elementos significantes que criam os elos de sentido nas relações familiares, sem os quais estas relações se esfacelam, precisamente pela perda, ou inexistência, de sentido». Assim, sem negarmos a força simbólica do laço biológico que pode delimitar naturalmente os elementos que constituem a família, percebemos que as relações existentes e a força dessas relações dependem também do sentido atribuído e partilhado pelos indivíduos nela inseridos. Ponderar a importância da partilha de histórias vividas em conjunto e a partilha de sentidos para a criação de laços remete-nos Resultados da análise |65 para o papel preponderante que a narrativa pode desempenhar em contextos de cuidar formais no sentido da humanização e de dar resposta às necessidades emocionais dos doentes. Uma nova simbologia é possível atribuir aos laços familiares – a representação da força da profunda partilha de histórias inerentes à vida familiar. A cuidadora idealiza então um cuidar da família ao longo da vida onde os pais cuidam dos filhos e reciprocamente os filhos cuidam dos pais na velhice. A lei portuguesa reconhece este modelo de obrigação no seio da família40. Além dos estudos sincrónicos e diacrónicos das famílias (Alarcão, 2006), poderá também ser relevante reflectir e aprofundar o valor simbólico e os significados atribuídos às diferentes gerações que se cruzam no ciclo de vida familiar para melhor percebermos que emoções poderão ser despoletadas na vivência deste cuidar intergeracional. Teremos aqui de considerar o facto de que avós, pais e crianças partilham uma vivência de tempo em conjunto, mas têm uma relação diferente com este: a relação com o passado é intensa nos avós, mediada pelos pais e praticamente incipiente nas crianças. Entretanto, a relação com o futuro pessoal varia geralmente na proporção inversa. É habitualmente à geração de adultos que vivem a fase produtiva das suas vidas que, inserida neste paradigma de responsabilidade familiar pelo cuidado, cabe o cuidado dos idosos dependentes e das crianças. Uma atribuição simbólica do passado, presente e futuro da família respectivamente às gerações dos avós, pais e crianças situa-a como mediadora entre o passado e o futuro (fig. 2). Esta é a geração denominada frequentemente de geração sandwich (Seaward, 1999; Pierret, 2006). No entanto, Sarti (2001) explica que: «quanto aos idosos, sua presença na família marca uma noção de tempo – passado, presente e futuro –, dada por gerações que se sucedem. Junto com as crianças, os velhos conformam uma ideia de continuidade, que corresponde à própria concepção de família no «1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens. 2. Os filhos devem obediência aos pais; estes porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida» (art.o 1878.o, do Código Civil). «1. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência. 2. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar» (art.o 1874.o, do Código Civil). 40 66 | Cuidar da Família ao longo da vida imaginário social. O cuidado dos idosos pelos adultos da família é parte desse movimento cíclico, dessa noção cumulativa da família, como uma retribuição que lhe é devida» (p. 91). A relação do tempo com a mudança poderá também ter diferentes valores simbólicos que poderão ser relevantes considerar. No passado reside o que já não pode ser mudado e necessita de ser aceite: é o tempo onde se situam as perdas e o que necessita de ser perdoado. No futuro, reside todo o potencial de mudança e o desejo; no presente, reside o momento das escolhas que tentam conciliar a experiência passada com as expectativas para o futuro. Esta ligação simbólica do tempo com a sua representação material nas diferentes gerações da família não pode ser encarada de forma rígida, mas poderá orientar, de uma forma muito genérica, para as questões que poderão emergir durante o cuidar dos familiares: o confronto com as perdas de capacidades e a necessidade de perdão por actos do passado no cuidado dos pais e idosos; a ajuda para aquisição e gestão de competências adquiridas e a esperança de um futuro diferente no cuidar das crianças (fig. 2). Estas ideias são ainda expandidas na descrição de Satow (2005) quando compara o cuidar dos pais e dos filhos e a perspectiva de futuro que ambos encerram: «[c]uidar de um pai ou mãe idosos não é o mesmo que tomar conta de uma criança. Em vez de estarmos a investir num crescimento saudável e em autonomia, aqui estamos perante uma deterioração lenta ou, em alguns casos, rápida até. Em lugar de vermos o mundo da criança a abrir-se e a expandir-se, o que vemos, neste caso, é o mundo dos nossos pais a ficar cada vez mais reduzido. Ao contrário da criança, que tem a vida pela frente, os pais idosos têm a morte à sua frente» (p. 249). O relato de C1 sobre o cuidar da avó espelha esta realidade simbólica, à qual se associam evidências físicas (nas perdas observadas) e sensitivas (experiências semelhantes às que tinha já vivido durante o cuidar do pai): «os últimos dois anos nós começamos a notar uma d... decadência, vá (hesitação) ahh, uma degradação física mais do que psicológica, ahh, pronto, ela, derivado às cataratas, já não via tão bem, ahh, começou a ter novamente alguma incontinência urinária por exemplo […] e é assim, a urina de uma pessoa idosa não tem o mesmo odor que a urina de uma criança ou de um bebé». A figura 2 procura esquematizar, de forma muito simplificada, as interacções que decorrem das etapas do desenvolvimento individual com a sua correspondente geracional e simbologia temporal associada. Resultados da análise |67 Figura 2. A relação das dimensões temporais com o ciclo de vida individual e correspondente ciclo geracional da família inserida num paradigma de cuidado intergeracional Futuro: – Esperança – Gestão da aquisição de capacidades Infância/ /Adolescência (Filhos) Nascimento Idade Adulta «Geração sandwich» Morte (Pais) Velhice (Avós) Presente: – Análise do passado e escolhas para o futuro Passado – Histórias do passado – Perdão – Perda de capacidades Descrição dos cuidados realizados A descrição da evolução da doença da avó, da participação nas decisões médicas tomadas, das necessidades, capacidades e cuidados prestados é minuciosa e revela um progressivo e profundo envolvimento da cuidadora no acompanhamento da familiar doente. O primeiro cuidado que identifica é o acompanhamento médico, assumido por C1 devido à existência de competência facilitadora: «ahh, e é assim, todas as vezes que ela necessitava de acompanhamento médico era eu que ia com ela. Ahh, na altura na África do Sul, por causa do problema da língua, de comunicar, pronto, a minha avó não falava inglês, nenhuma das filhas falava inglês, e: eu é que a acompanhava, não é?». Verifica-se um conhecimento bastante organizado dos antecedentes de doença, assim como a sua denominação utilizando terminologia específica: «ela teve aqui em Portugal ahh, dois episódios graves de AVC, ahh, e:: ela era hipertensa, sofria de angina de peito, ap..., coisas que, com a idade, claro, há 68 | Cuidar da Família ao longo da vida o desgaste físico, há acumulação de toxinas e tudo o resto e apesar de sermos uma máquina perfeita a máquina também falha (risos) [S – pois falha], ahh, à parte disso pronto, nós nunca tínhamos descoberto ou nunca nos foi dito que ela sofresse assim de uma patologia bastante grave, não é? À parte dos AVC, pronto…». No relato dos problemas de saúde que afectaram a familiar é incluída a descrição das circunstâncias que levaram à descoberta de doença oncológica, assim como os contornos do seu envolvimento na participação nas decisões que ponderam o prognóstico e os tratamentos a realizar: «Ela [a médica] disse-me: “nós não temos 100% a certeza mas temos 90%. Tamos quase lá, de que a avó sofre de cancro do endométrio, ahh, com esta idade, derivado aos problemas de coração e a idade dela e tudo nós não vamos fazer muito mais. Não vale a pena operá-la, ahh, só causaria transtorno, não é viável, e:: nós vamos medicá-la e vamos ver como é que isto vai evoluir”, pronto.» Após a exposição dos antecedentes de doença, a cuidadora descreve o padrão habitual da avó relativamente às capacidades para suprir as suas necessidades: «ahh, ela sempre foi muito autónoma, muito independente, ahh, muito consciente, muito lúcida ahh». A descrição do cuidar revela competências direccionadas para a avaliação de limitações e capacidades atendendo ao conhecimento dos padrões habituais de comportamentos e rotinas e medindo a recuperação, após episódio de doença aguda e debilidade, pela capacidade de executar actividades de vida diária: «ela teve novo AVC, foi internada, depois de ter sido internada ela veio para casa bastante debilitada ahh, mas é assim, nada que ela não tivesse recuperado: ela recuperou o andar, ela recuperou a fala, ela recuperou a autonomia… ahh... completa pronto, ela lavava-se, ela vestia-se já com alguma dificuldade derivado à idade, não derivado a qualquer patologia em si ahh…». Mais uma vez, e à semelhança do que tinha acontecido no passado (aquando da mudança do país), é a confrontação com a necessidade de garantir a segurança da avó que vai originar alterações na relação existente: «uma das vezes na altura do Inverno adormeceu com um cobertor eléctrico ligado na cama que nós não nos apercebemos, tinha frio: “eu vou para a cama, tá tanto frio, vou ligar o cobertorzinho; antes de adormecer, desligo” e eu nunca me passou pela cabeça verificar porque ela era cuidadosa o suficiente para, não só com ela mas com as bisnetas: “vejam lá, vejam se o saco de água quente está bem fechado e assim, não adormeçam com o cobertor, liguem uma hora antes Resultados da análise |69 de irem para a cama assim que entrarem desliguem, olhem que isso pode causar algum curto-circuito [ S – pode ser perigoso] e pode ser perigoso”. Nessa noite ela adormeceu de cobertor eléctrico e não deu conta que fez uma quei... queimaduras graves na parte das nádegas e na zona sacra […] depois do episódio da queimadura e do episódio da descoberta do cancro do endométrio ela começou ainda em declínio mais acentuado, ela deu uma queda, durante a noite […] Ahh, e ela tinha por hábito nunca acender a luz do quarto, nunca. Ela levantava-se da cama, sabia onde o bacio estava, abaixava-se, sentava-se no bacio, mas um dos dias ela desequilibrou-se no bacio e caiu desamparada, bateu com a parte de trás da nuca numa camilha, que servia de mesa-de-cabeceira, ahh, e raspou. E a partir daí, é assim, foi a queimadura, foi a descoberta do cancro do endométrio [S – do endométrio…], foi a queda e a minha avó depois começou por perder o andar, começávamos a trazê-la e ela acompanhava-me até aqui, ahh, onde quer que fosse, a minha avó ia comigo. Se eu saísse de casa às 6 da manhã, às 6 da manhã a minha avó saía comigo». C1 altera o padrão relacional estabelecido quando observa incongruências entre o que a avó verbaliza e consegue fazer, ao deparar-se com a ocorrência de acidentes em circunstâncias não esperadas. Os acidentes domésticos mudaram a percepção da cuidadora sobre a capacidade da familiar cuidar da própria segurança. Os aspectos que anteriormente tinha utilizado para descrever a partilha existente (tempo e espaço da interacção) são agora alterados, com aumento do tempo de contacto e redução do espaço entre ambas de forma a garantir uma vigilância permanente: «Ahh, com o declínio que se foi notando e acentuando, eu já não confiava, por exemplo, ela acender o fogão, ela acendia o fogão e depois em vez de desligar o bico, ahh, torcia o botão em sentido contrário, a chama apagava e o gás continuava aceso. Ahh, pequenas coisas que eu notei, pronto. Ela dizia-me: “mas já não tens confiança em mim?”, “não é isso avó, é assim, eu prefiro que você esteja comigo porque assim eu estou de olho em ti... em... em si, ahh, e então pronto, eu saía de manhã e ela saía comigo e quando eu entrasse em casa à noite ou a horas... à hora que fosse ela regressava a casa comigo.» Às questões da segurança física se associam imediatamente questões que se relacionam com a confiança existente na relação existente, colocada em causa perante a alteração das dinâmicas relacionais e a proximidade progressiva que as novas circunstâncias exigem. Espontaneamente, C1 descreve com pormenor a abordagem que faz à avó para promoção da mudança no padrão de satisfação da necessidade de eliminação vesical: «e eu então disse: “ó avó não leve a mal, mas olhe, é assim, há umas cuequinhas, não é fraldas, é umas cuecas tal e qual uma cueca normal que você veste, 70 | Cuidar da Família ao longo da vida eu vou-lhe comprar um pacotão e você vai ver se se adapta”. Numa das alturas em que eu depois, eu comprei o pacotão e disse-lhe: “olhe vamos experimentar” e ela disse “oh tá bem”». A descrição pormenorizada da interacção que visa ao estabelecimento de novas formas de satisfação da necessidade em causa é muito reveladora. A cuidadora prevê uma possível dificuldade da avó na utilização do dispositivo de contenção de urina, evita a utilização da denominação de fraldas, sugere o dispositivo mais parecido com o habitualmente utilizado (cueca), considera a possibilidade de não adaptação e sugere um período de experimentação. O culminar da interacção revela uma aceitação aparentemente pacífica da mudança proposta. Todo o cuidado na construção da forma de abordagem de C1 poderá ter origem nas suas próprias concepções relativamente à necessidade de utilização de fraldas, às suas experiências anteriores com os outros familiares que cuidou, às concepções sociais inerentes ao simbolismo da utilização de fraldas por adultos e idosos ou, ainda, a um conhecimento prévio sobre o que a avó pensava sobre o assunto. Estas são possíveis variáveis que podem interferir com a interacção durante o cuidar das necessidades dos outros e que envolve o contexto social, a história individual do cuidador, da pessoa cuidada e da partilha de ambas. Compreende-se daqui a possibilidade de que a partilha das histórias e a convivência familiar contribua para a criação dos mapas das características individuais de cada um e que o cuidado no seio da família possa garantir um apoio personalizado, atento ao detalhe e toques pessoais, conforme já descrito por Kahana (2005). Um outro aspecto particularmente importante se revela no início desta descrição da interacção. C1 preocupa-se com a possibilidade de a relação com a avó ser afectada neste processo em que assume a iniciativa e exerce algum controlo sobre ela. Assim, começa o diálogo salvaguardando o seu receio: «ó avó não leve a mal». Este é um momento ilustrativo de como cuidar de outro, ainda que familiar próximo, pode envolver um profundo nível de contacto com a intimidade física à qual se associam outros níveis de partilha pelo que lhe está simbolicamente associado. O cuidador não se confronta simplesmente com o toque e observação simples de partes do corpo habitualmente consideradas do foro íntimo, mas também com os sentimentos que isso lhe pode despoletar e a reacção de quem está a ser cuidado à exposição e ao controlo do outro. Num outro momento da narrativa, C1 recorda um momento de refeição: «a minha avó tinha por hábito dizer, nós chegávamos a casa e se ela tivesse lanchado tarde eu tirava-lhe a sopa e levava-lhe a sopa até ao sofá e dizia: “vá Resultados da análise |71 vamos a comer a sopa, se não quer ir à mesa, está aí aconchegada”, “ahh, não me apetece jantar, eu lanchei tão tarde”, “vá lá”, às vezes eu dizia às minhas filhas: “levem a tigela vazia, vão lá dentro, dizem à vó que tá aí a sopa” ela di... assim que c... ia ver a tigela ainda à entrada da sala dizia: “não quero a so... não quero comer, não quero sopa, eu depois, se tiver aqui mais um bocadinho bebo uma chávena de café com leite ou qualquer coisa antes de me ir deitar para a tua mãe depois não se chatear comigo, diz que é muita hora sem comer” depois nós, uma de nós gritava da cozinha: “ó vó mas olha que é piza ao jantar” eu achava-lhe uma graça que ela levantava-se do sofá e dizia assim: “é piça?”, não dizia piza: “É PIÇA? ENTÃO EU QUERO!” [S – risos] ... então cada vez que fazemos piza lá em casa, nós pomos sempre um lugar extra! Pode achar que é um... uma maluquice vá, parvoíce, mas nós pomos a mesa e quando há piza lá em casa nós pomos um lugar extra, e: nós partimos as fatias, ahh, servimos, e: ou eu ou uma das minhas filhas viram o prato, nós viramos os pratos ao contrário, ahh, viramos o prato, pomos um bocadinho de piza naquele prato, no lugar que era dela e: inevitavelmente uma de nós diz sempre: “Avó, hoje é piza” e todos nos desmanchámos às gargalhadas porque... ahh, é assim, não é... não é... como é que hei-de dizer? Uma pessoa pode dizer assim: “ah! Isso não tem graça nenhuma” mas, é com carinho, com saudade, é: uma lembrança que fica. Ahh, são nessas pequenas coisas, nessas pequenas vivências, ahh, que está a importância da vida, que está a essência da vida, ahh... porque é assim... aquilo que eu aprendi... porque a vida é uma escola para todos nós. Todos nós temos de passar por essa escola, e: a escola da vida dá muitas… aprendizados vá, e ao sermos alunos nesta escola, todos nós temos lições a aprender, sejam elas qual forem, ahh... e a maior lição que nós podemos aprender e que todos temos de aprender, não importa o tempo que levemos, ou quando vamos aprender, é o quanto é importante o amor, o dar. Porque é assim, eu aprendi que é dando que a gente vai receber. Geralmente nós recebemos muito mais do que aquilo que damos». Esta descrição é exemplificativa de como a alimentação se encontra relacionada com muito mais do que a simples ingestão de alimentos e líquidos para sobrevivência (Watson, 2008). Neste caso particular, o momento de partilha é recordado e ritualizado após a morte da familiar. O ritual torna presente a vivência do passado pela repetição dos actos que renovam a vivência de memórias significativas positivas e permite a partilha em família de um momento em que se procura transcender os limites do tempo linear. O ritual, além de se tornar numa via possível para elaboração da perda/luto, tem também o objectivo de ajudar a construir a história comum da família que irá atravessar as futuras gerações (Alarcão, 2006). Fiamenghi (2002) explica que os rituais são «eventos dinâmicos e devem responder às 72 | Cuidar da Família ao longo da vida necessidades da família» (p. 28) e distingue vários tipos de rituais: rituais de celebração, de libertação e de transformação41. Também Giblin (1995) se refere à importância dos rituais na família como facilitadores da formação da identidade, de transições de desenvolvimento, da manutenção da estabilidade e continuidade, de processos de sarar, e de conexão entre dimensões afectivas, de sentido, simbólicas e inconscientes da família. No contexto do que entende por Caritas Nursing, Watson (2008) desenvolve os significados associados à necessidade de comida e bebida. A autora explica que a experiência de nutrir alimenta ambos os envolvidos no acto. É através da dádiva que se recebe. Esta necessidade está associada com a confiança, amor, calor e segurança nas relações humanas. Experiências passadas conscientes e inconscientes, significados reais e simbólicos estão também relacionados com esta necessidade42. Nesta descrição é também visível o ajustamento que a familiar doente faz relativamente à ingestão de alimentos para corresponder às expectativas da cuidadora relativamente à sua alimentação. O objectivo é alimentar-se de acordo com o esperado ou negociar para que a relação entre ambas não seja afectada. Na sequência da descrição do momento da alimentação, a cuidadora associa, validando a perspectiva de Watson (2008), as suas ideias sobre a vida, o amor, o carinho e sobre dar e receber. «a) Rituais de celebração: homenageiam situações que foram bem-sucedidas ou simplesmente expressam amor e carinho. Eles comemoram o que é positivo e permitem uma conexão dos indivíduos com um senso de humanidade através do tempo, favorecendo as lembranças felizes. Rituais desse tipo são os aniversários, nascimentos, casamentos, promoções, aquisições pessoais significativas, etc. b) Rituais de libertação: rituais que permitem desvencilhar [sic] os indivíduos de emoções dolorosas, favorecendo um senso de proximidade e de compartilhar. Rituais de libertação podem ser utilizados para perdoar os outros, reconciliar diferenças, lidar com luto e recobrar-se de eventos traumáticos. c) Rituais de transformação: importantes quando os indivíduos mudam para fases diferentes de vida, auxiliando a terminar situações e iniciar novas. Rituais desse tipo estão presentes em sociedades que celebram a passagem da adolescência para a idade adulta» (p. 28). 42 «Theory and research support the proposition that emotional and energetic associations are related to this biophysical Basic need. Emotional factors can create associations that permeate life patterns and affect imbalances and eating disorders. Food and fluid need represents and symbolizes much more than the intake of nourishment for survival. This need is energetically associated with trust, love, warmth, security, and safety in human relationships. This need is related to past experiences, conscious and unconscious experiences and meanings, symbolic and real meanings associated with early feeding experiences, and relationships with food, eating, and emotional experiences with significant others […]» (p. 152). 41 Resultados da análise |73 As interacções que ocorrem entre o cuidador e quem está a ser cuidado são o palco dos simbolismos que estão associados à satisfação das necessidades humanas e estes dois exemplos, embora limitados e não generalizáveis, são demonstrativos de duas vivências distintas que ocorrem simultaneamente: ser cuidador e ser cuidado. Por exemplo, Satow (2006) referindo-se à experiência dos filhos de cuidar dos pais escreve o seguinte: «[o] cuidador tem que fazer sacrifícios pessoais e debater-se com a raiva e o remorso, enquanto o pai idoso tem de abdicar da sua autonomia e aceitar que depende dos filhos. Mesmo quando tudo corre bem, a prestação de cuidados está afectada por conflitos emocionais» (p. 253). Kahana et al. (2006) explicam que, no que concerne aos estudos efectuados sobre o cuidar na família, a ênfase tem sido a figura do cuidador e refere-se à necessidade de considerar a díade cuidador/receptor de cuidados na expansão do paradigma de cuidar para uma perspectiva interactiva, que considera não só o prestador de cuidados mas também o receptor. Posteriormente, irão ser analisados com mais pormenor aspectos relacionados com a realidade de ser cuidado. Os contextos da perda de sentido A descrição dos momentos de maior fragilidade aparece associada a momentos em que poderá existir descarga emocional não controlada dirigida a pessoas que não estão directamente envolvidas na situação. Um período longo de prestação de cuidados e a incerteza sobre o tempo que a situação irá durar originam também sentimentos de ambivalência: «Tento trabalhar diariamente para ser melhor. Ahh... mas há coisas que falham. É assim, às vezes, ahh… nós até disparatamos com a pessoa que menos culpa tem! E quando o período de cuidar é longo, há o desgaste físico, há o desgaste psicológico, há o desgaste emocional, há aquela incerteza: “quanto mais tempo isto vai durar?”. Você até gostaria que durasse para sempre, embora a situação seja quase insuportável, porque sabe que, quando a situação terminar, é o ponto final, é a perda. E a gente sabe que nu... por muito mentalizados que estejamos, nós nunca estamos preparados para essa transição, porque não estamos. Ahh... e é assim, com o desgaste que essa situação só... por si só... se nós pudéssemos dizer assim: “eu sou cuidadora duma pessoa, ahh... tem uma doença prolongada, incurável e está na recta final de vida”, por exemplo, defina recta final... pode ser um mês, pode ser uma semana, pode ser um ano, e você tem de estar disponível para essa pessoa.» 74 | Cuidar da Família ao longo da vida A cuidadora inclui também as solicitações constantes que resultam da necessidade de atender simultaneamente às necessidades dos outros familiares, ao cuidado do lar e da familiar doente e o facto de não dispor de tempo para si: «Agora, comece a trazer de fo... coisas de fora para esta situação: agora há um marido que traz... p’aquela situação, que exige o seu tempo, não é? Chega a casa, cansado, quer o jantar, ahh... quer roupa lavada para o dia seguinte... depois tem duas filhas, que precisam de ajuda com trabalhos de escola, que precisam de carinho... depois há a casa. Para além de manter a higiene e todos os cuidados com o doente tem: roupa da família h... as refeições, tem a limpeza da casa tem tudo. Depois tem o problema do seu trabalho não é? Isto depois é uma roda-viva. Porque depois a filha diz: “ó mãe tu não me estás a dar atenção” e está uma campainha no quarto a tocar… “eu já venho”, você dá uma corrida até ao fundo do corredor e pergunta: “o que é que se passa? O que é que precisa?”, “Não, tou bem assim, vira-me de lado.” Claro, é assim, só para uma... um novo posicionamento se calhar você está ali meia hora porque não tem mais ninguém que a ajude. Acaba o posicionamento e está o marido a gritar: “ainda não me trouxestes a roupa e eu estou no banho”. Agora, é assim, quando é uma semana a coisa tolera-se, vai a duas, a gente diz: “hoje estás melhor, hoje estás pior? Amanhã será um novo dia, será melhor. As exigências não serão tantas”. Passa o primeiro mês, passa o segundo mês, passam cinco meses, passa um ano, passa ano e meio... não é fácil. Você precisa de tempo também para si, de... com a minha avó eu tive alturas, como eu digo, eu bem ao duche eu conseguia ir até eu ter a família em casa. Para dizer às minhas filhas: “agora vocês ficam aqui um bocadinho que eu vou tomar o meu duche”.» Este é o contexto onde se tornam evidentes as necessidades da cuidadora. É aqui notória a indispensabilidade de gerir tarefas de autocuidado e heterocuidado dirigido para o marido, filhos e para a avó significando respectivamente uma orientação para o futuro e para elementos que se situam no seu passado. A necessidade de apoio contínuo e completa dependência da familiar que está a ser cuidada origina isolamento social e mesmo sensação de desamparo (helplessness) que é aliviada pelo seu sentido de coerência interior relativamente ao que considera ser correcto fazer: «A pessoa não sai à rua, a pessoa não sai ao café, a pessoa não faz compras, chega a pontos que não tem nada dentro do seu frigorífico, porque não tem quem lhe deite a mão. Claro que aí há dias que você consegue dar a volta por cima e diz assim: “estás no bom caminho, estás a fazer aquilo que tens de fazer. Sentes que é aquilo que deves fazer”. Mas há outros dias... se calhar as exigências por parte de outros, ou porque se sente psicologicamente mais fraco, ou fisicamente mais debilitada e cansada, ou emocionalmente, porque uma das filhas telefonou e: questiona, ou teve lá.» Resultados da análise |75 Também os problemas e conflitos familiares existentes emergem e podem causar interferências nos processos de cuidar. Ao evocar uma possível ajuda das filhas da doente – tias de C1–, a cuidadora reconhece um padrão individual e socialmente reconhecido, associado a ideais de regras de interajuda nas famílias: «Pouca ajuda tive, das filhas, ahh... e criou alguma ansiedade porque as duas filhas, que ainda estão vivas, não se davam, não se falavam, ahh… e é assim, com os problemas familiares, ahh, a minha avó, embora ela afirmasse verbalmente que não lhe custava, no fundo, no fundo, elas eram ambas filhas dela.» A procura de referências e artigos sobre o cuidar intergeracional revela que estes se debruçam geralmente sobre o cuidar de idosos, entendido de uma forma muito genérica ou sobre o cuidado dos pais. Esta tendência poderá já em si ser reveladora de expectativas existentes e socialmente assumidas relativamente à responsabilização pelo cuidado na cadência das gerações. Neste caso particular abordamos o cuidar da avó de C1. Cuidar dos avós e conviver com os filhos directos existentes destes poderá levantar uma especificidade de problemas relacionados com expectativas socialmente criadas e que poderá ser relevante explorar. Relativamente ao cuidar dos pais, por exemplo, Satow (2005) refere que este poderá trazer de volta a infância sob novas perspectivas e despoletar uma série de questões e problemas não resolvidos na família: «[p]ara muitos cuidadores é uma oportunidade estimulante. Muitas vezes até enriquecedora, porque conseguem desagravar os sentimentos mal resolvidos da infância e as sensações a eles associadas como sejam o remorso, a tristeza e o desânimo. Em outros casos, porém, o cuidador não consegue deixar de repetir dinâmicas que foram tão nefastas na infância» (p. 26). Apesar deste episódio de cuidar de C1 se referir ao cuidar da avó, a assumpção da avó como fazendo parte da família nuclear que regressou ao país de origem, e a prestação de cuidados directos propriamente ditos desenrolou-se na presença constante de um conflito entre as filhas da doente. Trata-se portanto de um conflito do passado que persiste, que C1 tenta ultrapassar e gerir no presente mas que se torna factor de desgaste acrescido, com aparecimento de sentimentos de revolta e perda de sentido: «... as duas juntaram-se ao portão da entrada da casa e outra não sobe porque não fala com a que está no quarto e depois você tem que servir de intermediário: “agora já esteve aqui meia hora, tem a sua irmã lá em baixo e ela já está aflita, ainda não veio ver a mãe”, tá a compreender? E depois a pessoa diz assim: “o que é que eu estou aqui a fazer? Porquê eu?”... e depois chega a hora de ir para 76 | Cuidar da Família ao longo da vida a cama, ahh... para análise do dia (riso) e começa a passar o filme e só chega às oito da manhã!... e a campainha toca. E você sai da cama, corre até ao quarto ou até aos pés da sua onde se encontra a cama da avó e está ali mais hora e meia, descalça, em camisa de noite, ahh... a ouvi-la, a acarinhá-la, enquanto todo o mundo dorme. Depois no dia seguinte a outra filha telefona: “como é que está a minha mãe?”. Claro que a revolta não é dirigida à pessoa que necessita de cuidados. É tudo o resto. Eu não sei se estou a fazer-me compreender. Não é pela situação que você está a viver, é por tudo o resto que está à volta». Quando C1 relata as dinâmicas familiares, quer com a família nuclear quer com as tias, é visível que, nesta situação particular, as dinâmicas de cuidados estabelecidas demonstram um diferente empenho dos vários elementos com a tarefa de cuidar. A cuidadora realça a disponibilidade que teve de demonstrar para responder às necessidades da avó «enquanto todo o mundo dorme». A tónica é colocada especialmente nas filhas, que questionam sobre o bem-estar da mãe mas que não se disponibilizam para colaborar nos cuidados. Aparentemente, o aparecimento de sentimentos de revolta surgem pela percepção do diferencial existente entre uma perspectiva de colaboração interfamiliar que idealiza e a realidade conforme esta se lhe apresenta. Ao longo da narrativa de C1 é perceptível uma experiência subjectiva que poderíamos denominar globalmente por solidão no compromisso de cuidar, para traduzir um isolamento que não é causado directamente pelo afastamento do convívio social (embora este também tenha existido), nem pelo facto de viver sozinha, mas o isolamento que o seu compromisso para consigo e para com o cuidar da avó significou relativamente aos restantes elementos da família. O isolamento é um factor incluído na avaliação dos aspectos objectivos e subjectivos da sobrecarga dos cuidadores familiares (Andrén e Elmståhl, 2005). O isolamento social surge muitas vezes como factor causal da solidão, mas esta vai muito para além do simples distanciamento temporal e espacial dos outros (ElSadr et al. 2009). As conclusões que resultaram do estudo realizado por Montgomery et al. (1985) já mostravam preocupação com a existência de dimensões objectivas e subjectivas para a sobrecarga dos cuidadores e confirmavam empiricamente que as tarefas que confinam temporal e geograficamente o cuidador se revelaram preditoras da sobrecarga objectiva dos cuidados. A análise da solidão aparece também frequentemente associada ao problema da depressão (e. g., Hsu et al., 2001), embora outros autores refiram a importância de a considerar como um problema isolado (McWhirter, 1990; ElSadr et al., 2009). A base conceptual que orientou a análise desta narrativa foi a recente revisão da literatura efectuada por ElSadr et al. (2009) sobre o Resultados da análise |77 conceito de solidão. Os autores enfatizam o seu carácter de experiência subjectiva e directamente relacionada com a dimensão relacional das pessoas43. Este entendimento sobre a experiência da solidão abre-nos a possibilidade de enquadrar e estimar a sua existência nas situações em que os indivíduos percepcionam, nos que os rodeiam, relações pouco significativas com valores pelos quais se comprometem e estão dispostos a abdicar de si próprios. No rol de circunstâncias que ajudaram a superar os momentos em que se sentia mais fragilizada, além da referência ao apoio da família nuclear que partilhava a habitação e ao reconhecimento da avó do seu esforço (voltaremos a este assunto com mais pormenor), a cuidadora exprime de que forma a equipa de saúde, mais especificamente, a enfermeira dos cuidados continuados domiciliários, desempenhou um papel fundamental: «e por vezes, tinha o apoio dos cuidados continuados, em que eu dizia: “ahh... não sei o que fazer”, ou pegava no telefone: “tou a vivenciar isto, eu não sei o que fazer, a minha avó não está bem, eu não sei o que fazer, ajudem-me!” ou quando precisava de falar. Por isso é que eu digo, a enfermeira X para mim, e eu disse-lhe isto a ela, já por várias vezes, ela passou a ser um membro da minha família, porque... embora eu não... como se costuma dizer, despejasse o saco, às vezes bastava saber que o carro dela tinha parado cá fora à porta, eu não me sentia tão só e não me sentia desamparada. Foi o que eu lhe disse a ela... eu não sei se ela lhe mostrou a dedicatória que eu lhe escrevi». O apoio da equipa de saúde ajudou-a a superar situações imprevistas. Podemos observar que embora o contacto com a equipa de saúde tenha sido despoletado por alterações do estado de saúde da avó, o diálogo estabelecido centra-se no que a cuidadora está a «vivenciar» e o pedido de ajuda surge para prover a si própria. Além do papel dos profissionais no controlo de sintomas em ocorrência não previstas, C1 refere-se também à sua necessidade de «falar». A narrativa revela-se aqui no seu carácter de emergência que pode justificar, isoladamente, um critério para uma intervenção de enfermagem não programada – mesmo na ausência de necessidade de executar procedimentos «técnicos objectivos» que visam os cuidados ao corpo. Um outro aspecto referenciado por C1 é o que Fisher e Eustis (1994) denominam de integração simbólica dos profissionais de cuidados domiciliários 43 «Loneliness can be defined as a subjective experience in which a person feels psychological disconfort and an inability to increase the quality and/or quantity of relationships to the person’s desired level. Loneliness occurs following a perceived lack of and/or loss of significant relationships and can contribute to several physical and psychological health problems» (ElSadr et al., 2009, p. 32). 78 | Cuidar da Família ao longo da vida na vida da família. Neste processo, os profissionais podem, inclusive, assumir papéis familiares simbólicos de acordo com a sua posição e a do doente no ciclo de vida. Os autores explicam de que forma esta dinâmica pode ser representativa dos afectos criados44. Quando relembra o tipo de interacção que a enfermeira proporcionava, o seu relato centra-se na dimensão paraverbal da enfermeira: «Ahh... havia sempre um sorriso à chegada e à partida e isso para mim, por muita revolta que tivesse havido durante parte do dia, por muita raiva, por muitas interrogações, por muitas dúvidas, ahh... a gente dizia assim: “olha por ela que está ali naquela cama, e só por este sorriso e este abraço, continua porque vale a pena”.» É a linguagem do corpo, os gestos (o sorriso e o abraço) que são evocados nas memórias de C1. A forma como o corpo exprime uma mensagem de disponibilidade total, de abertura, proximidade, envolvência e amparo resume tudo o que a cuidadora poderia eventualmente ter dito sobre o apoio que sentiu. Não será por isso de estranhar a total ausência de descrição de trocas de palavras. É aqui notório o poder da linguagem do corpo e de como este, na sua expressividade, se pode transformar numa potente forma de narrativa simbólica. A perspectiva de ser cuidado Os estudos sobre o cuidar na família focam tradicionalmente a sobrecarga do cuidador e o impacto do stress de cuidar de um familiar com doença crónica. O receptor de cuidados não tem sido tão extensivamente considerado. Kahana et al. (2006) consideram que as perspectivas sobre os cuidadores estão embebidas em paradigmas de stress-coping-suporte, revelando-se unidireccionais na medida em que partem dos efeitos adversos do cuidar que resultam da resposta a estímulos stressores. Também McPherson et al. (2007) explicam que, embora exista já um bom desenvolvimento da literatura na área da sobrecarga do prestador de cuidados, os significados de estar do outro lado da relação, como receptor de cuidados, só agora começam a emergir e exploram o que parece ser um sentimento generalizado que está presente na situação de sermos cuidados 44 «Saying that a worker is “like family” is a measure of affection and attachment between client and worker. This definition of the relationship, however, does not necessarily create any direct ties between the worker and other members of the client’s family» (p. 304). Resultados da análise |79 por outros que denominam por fardo autopercepcionado traduzido do inglês self-perceived burden (SPB). O SPB é definido por McPherson et al. (2007) referindo-se a outros autores, como: «preocupação empática gerada pelo impacto nos outros da própria doença e necessidade de cuidados, resultando em culpa, angústia, sentimentos de responsabilidade, e um diminuído sentido de si» (p. 115). Os autores referem-se à evidência que tem vindo a demonstrar que este é um problema preocupante para muitas pessoas que se encontram perto do final das suas vidas e, além disso, está associado a um número de importantes decisões relativamente à sua saúde. Na narrativa de C1 e na sua descrição de diálogos ocorridos é também possível observar este tipo de preocupação por parte da avó: «como a minha avó estava consciente e conseguia comunicar, ela só dizia: “eu sei que te estou a dar muito trabalho” e eu disse: “o trabalho para mim não é nada, se é aqui onde você quer estar, é aqui que você vai continuar”». McPherson et al. (2007) realizaram uma extensa revisão da literatura deparando-se com diferentes metodologias utilizadas pelos investigadores para avaliar o SPB e, por isso, confrontaram-se também com a dificuldade na comparação de resultados. Os estudos são separados consoante a abordagem tenha sido qualitativa ou quantitativa e descritos nas metodologias utilizadas e conclusões obtidas. Da análise da revisão de literatura efectuada salienta-se o facto descrito de que alguns doentes podem esconder sintomas para aliviar a sobrecarga dos que deles cuidam levando a que as suas necessidades de cuidados permaneçam por atender. Os mesmos autores referem que não constituir uma sobrecarga para a família faz parte do que alguns doentes denominam de boa morte enquanto, para os profissionais, cuidadores informais, familiares e voluntários que convivem com os doentes, a ideia de uma boa morte é associada ao controlo de sintomas, preparação para a morte e cuidados de higiene. Estudos citados evidenciam que o SPB pode ser subestimado pelos profissionais de saúde. A opinião pública generalizada parece estar mais sensível às perspectivas dos doentes. Os fardos mencionados relacionam-se com o esforço para cuidar, responsabilidade pela tomada de decisões difíceis relativamente a tratamentos e dificuldades financeiras. Preocupações relacionadas com a sobrevivência da família após a morte do doente também surgem associadas ao SPB. Fornecer directivas antecipatórias, enquanto se sentem capacitados, sobre tratamentos a realizar e a suspender, realizar preparativos direccionados para a sobrevivência e bem-estar dos que ficam são estratégias encontradas pelos doentes para aliviar a 80 | Cuidar da Família ao longo da vida família nos processos de tomada de decisão e das possíveis dificuldades que poderão advir após a própria morte. Estudos de doentes que optaram pelo planeamento antecipatório de cuidados sugerem que o processo se revela mais importante do que a criação de um documento formal escrito com as directivas pretendidas e, também, que aquele é influenciado pela disposição dos entes queridos em participar nas discussões que lhe estão subjacentes. Outras decisões passíveis de estar associadas ao SPB referem-se ao local para receber cuidados e aos pedidos de eutanásia e suicídio assistido. Para alguns doentes, optar por não permanecer doente em casa ou antecipar a morte podem ser estratégias para aliviar a carga que poderão constituir para os outros45. No estudo de Bowman e Singer (2001, citado por McPherson et al., 2007)46 que envolveu seniores chineses no Canadá, os autores concluem que, para esta população estudada, a decisão pelo não tratamento da doença pode ser vista como um acto de compaixão porque alivia os fardos associados com a doença, a si próprio, à sua família e à sociedade como um todo. Poderemos, no entanto, questionar se os pedidos para antecipação da morte baseados no alívio da sobrecarga para os outros, mesmo quando o suporte aos cuidadores é assegurado e adequado, são moralmente justificáveis. Numa sociedade ocidental que valoriza a autonomia e a autodeterminação a discussão sobre este assunto é recorrente e, em alguns países, a prática da eutanásia e suicídio assistido é aceite e pode até ser entendido como um acto altruísta. A mesma revisão da literatura aponta para a existência de diferenças na aceitação da SPB como fundamento para estas práticas e realça o facto de os profissionais de saúde deverem ter em mente que os doentes que expressam um forte sentido de sobrecarga para os outros podem também estar a experimentar stress significativo em outras áreas. A investigação existente sobre o SPB em diferentes países e culturas sugere que se trata de uma preocupação universal e aparece mais fortemente associada a questões psicológicas e existenciais. Com o objectivo de identificar factores de risco de suicídio em doentes oncológicos, Filiberti et al. (2001) realizaram autópsias psicológicas a cinco doentes com cancro que cometeram suicídio em casa enquanto eram cuidados por equipas diferenciadas de cuidados paliativos. O perfil dos doentes coincidia com pessoas que tinham desenvolvido profissões na área de gestão. Os resultados revelaram a presença simultânea de múltiplos factores de vulnerabilidade, no entanto, a perda ou medo de perder autonomia e a sua independência e de ser um fardo para outros foram os mais relevantes. 46 Bowman, K. E., Singer, P. A. 2001. Chinese seniors’ perspectives on end-of-life decisions. Soc Sci Med. 5: 455-64. 45 Resultados da análise |81 A perspectiva psicológica da teoria da equidade é apontada como uma possível explicação para o SPB. A teoria postula que os indivíduos se esforçam por manter o equilíbrio entre dar e receber ajuda e suporte nas suas relações. A impossibilidade de repor a ajuda recebida pela situação de doença poderá ter como consequência o desenvolvimento de sentimento de sobrecarga para os outros. Nesta perspectiva, este sentimento pode não estar relacionado com a existência de uma sobrecarga real dos cuidadores ou de apoio inadequado mas sim com a incapacidade do familiar doente para encontrar formas de retribuir, dado o seu contexto de necessidade e fragilidade. Por outro lado, McPherson et al. (2007) citam Gunderson (2004)47 para explicarem que a não aceitação de ser cuidado subverte as normas de reciprocidade que são necessárias para uma relação prosperar e, neste sentido, aceitar o cuidado pode também significar altruísmo e preocupação com os outros. Verifica-se então que a análise das circunstâncias que orientam um familiar para ser cuidado aparecem também inevitavelmente associadas às discussões sobre o altruísmo. Midlarsky (2006) explora a evolução do altruísmo ao longo da vida articulando etapas do desenvolvimento humano no contexto do cuidar familiar. A autora distingue três diferentes formas de manifestação de comportamentos altruístas: ajudar (socorro), partilhar (generosidade) e nutrir (cuidar). Cuidar é aqui considerada uma expressão por excelência do altruísmo no seio da família. É a estrutura familiar que garante a subsistência e o acesso aos alimentos para o crescimento físico desde o nascimento. No entanto, esta é apenas a materialização de uma série de cuidados que lhe estão associados simbolicamente e que promovem o desenvolvimento integral das várias dimensões da vida de cada um dos elementos48. Embora várias questões sobre o altruísmo tenham sido já exploradas no contexto de análise das relações entre o autocuidado e heterocuidado elas não se tornam menos complexas quando se perspectiva a forma como aquele poderá ser expresso na óptica de quem está a ser cuidado por outro. A evidência de que o altruísmo aumenta ao longo da vida e de que o cuidar do outro pode estar relacionado com os mecanismos de autocuidado leva à Gunderson, M. 2004. Being a burden: reflections on refusing medical care. Hastings Center Rep. 5: 37-43. 48 Na abordagem de Macrae (2001) às ideias de Florence Nightingale a autora explica que, para Florence, o propósito da existência humana é implementar o processo de desenvolvimento. É partindo deste pressuposto que se poderão revelar as ligações profundas entre o cuidar familiar, o desenvolvimento e o propósito da existência humanos. 47 82 | Cuidar da Família ao longo da vida consciencialização de que esta necessidade de dar resposta às necessidades dos outros pode estar profundamente comprometida quando o familiar cuidado sente que não já não é capaz de cuidar de outros. Midlarsky (2006) salienta de forma muito clara esta ideia quando refere que: «a maior gentileza que alguém pode fazer por um indivíduo com necessidade de ajuda – como um membro da família doente ou incapacitado – é prover oportunidades para aquele indivíduo poder ajudar»(p. 88). Esta é uma perspectiva possível e poderá ser mais ou menos relevante mediante as ligações da história de vida pessoal às tarefas de cuidar de outros e à forma como estas foram assimiladas. Como já tivemos oportunidade de analisar, na narrativa de C1, o relato das interacções é demonstrativo de como a avó também realiza cedências e abdica de si própria na forma de satisfação das suas necessidades para permitir a estabilidade e progressão da relação existente com C1. Aparentemente, esta cedência e abdicação poderão ser também uma forma de retribuição que permite aliviar as preocupações da cuidadora e facilitar as actividades de cuidado. Além disso, ao permitir-se ser cuidada, a avó possibilita a C1 um sentido e uma vivência congruente com os seus valores e a sensação de controlo pessoal e competência (Midlarsky, 2006). Este contexto poderá contribuir para perceber de que forma o receptor de cuidados poderá também ser confrontado, numa vivência paralela ao seu cuidador, com alterações permanentes na forma de satisfazer as suas necessidades pessoais das quais a necessidade de cuidar dos outros poderá ser um exemplo. Ser predominantemente cuidado por outros é uma repetição no ciclo de vida dos momentos que sucedem o nascimento (fig. 2). Porém, no final da vida, o indivíduo é portador de uma história de desenvolvimento que no início está ainda por descobrir. É esta história, onde se incluem as escolhas que foram sendo realizadas relativamente ao cuidar de si e dos outros no passado, que poderá eventualmente exercer uma grande influência sobre como é vivida a situação de receber cuidados. Permitir-se ser cuidado por outros pode envolver um processo de procura de estratégias que permitam continuar a ser cuidador e de continuar a contribuir para o desenvolvimento e realização pessoal de quem cuida. C1 relata como o reconhecimento da avó dos seus esforços e competências para cuidar a animava em momentos de desânimo: «e quando eu estava sozinha… é assim, por vezes mesmo quando eu me sentia fraquejar, bastava olhar para ela e ela dar-me um sorriso ou dizer-me: “estou-te a dar tanto trabalho”, “oh!”, eu dizia assim: “Vó! Quem sou eu?”, “és a Lena”, “quem é a Lena?”, “a minha neta!”, “só?” e ela dizia: “és a minha enfermeira, o Resultados da análise |83 meu anjo-da-guarda”... e nós dizíamos assim: “só por isso vale a pena!”, a gente dava meia-volta aos calcanhares outra vez e tínhamos outro ânimo. Parecia que tinha sido uma lufada de ar fresco que vinha». Assim, além de ajustar a satisfação das suas necessidades abdicando de algum controlo sobre elas, a avó também valoriza o esforço da neta reconhecendo nela a competência para cuidar e velar por si como um anjo-da-guarda. Quando se constata o papel que o reconhecimento do doente pode desempenhar no ânimo do cuidador pode-se antecipar a possibilidade de maiores dificuldades para os cuidadores nas situações em que os familiares cuidados não têm capacidade física ou relacional para reconhecer os seus esforços. Por seu lado, C1 consciencializa a sua aprendizagem e desenvolvimento num processo que envolveu o acompanhamento da familiar até ao momento da morte: «Mas, se nós não entendermos naquela hora, naquele momento de desgaste físico, de desgaste psicológico... mais tarde sentamo-nos, ahh… analisando tudo o que está por trás e dizemos assim: “afinal valeu a pena” e... e... isso é que nos ajuda a crescer, é que nos ajuda a aprender as lições, é que nos ajuda, ahh... a evoluir […] eu acho que foi com a morte da minha avó que eu aprendi muitas lições que a vida há muito tempo me tava a tentar fazer com que eu aprendesse e que eu quase que batia com a cabeça contra a parede e... e não chegava lá, não chegava lá.» O estudo desenvolvido por Crist (2005) revela que a aceitação do cuidado familiar se encontra muito relacionado com relações positivas entre os cuidadores e as pessoas cuidadas e das quais resultam o crescimento pessoal de ambos. Partindo do equilíbrio entre dar e receber, C1 explica que os ganhos associados ao facto de ter cuidado da avó não foram imediatamente percebidos. O desgaste contínuo em que por vezes se encontrou submersa originou um desfasamento temporal entre o que foi vivido e integrado que só foi recuperado posteriormente pela análise retrospectiva dos acontecimentos. Além de se tornar aqui evidente e sair reforçada a necessidade dos cuidadores disporem de tempos e interacções que promovam a consciencialização e integração das experiências emocionais que estão a viver, a descrição de C1 sobre o seu percurso pessoal despoleta outro tipo de análise possível. Uma questão que daqui pode decorrer é até que ponto é que esta consciencialização dos ganhos pessoais que advêm de ser cuidador poderá facilitar o processo, caso ele ocorra, de ser cuidado no futuro e contribuir para a redução do SPB. Esta questão parece pertinente na medida em que ter consciente que ser cuidador pode constituir 84 | Cuidar da Família ao longo da vida uma via para o autocuidado, crescimento e realização pessoal, poderá ser um passo importante para compreender que, mesmo estando numa situação em que se é predominantemente receptor dos cuidados dos outros e se perspectiva a morte, se pode continuar a cuidar, ou seja, continuar a contribuir para o propósito da existência humana conforme perspectivado por Florence Nightingale: implementar o processo de desenvolvimento49. O acompanhamento na morte e a missão de vida C1 começa por exprimir as ideias e interpretações sobre o processo de morrer da avó analisando de que forma este poderá ter sido influenciado pela existência de conflitos entre as filhas: «eu acho que a hora da partida da minha avó foi mais prolongada, porque ela tinha um problema pendente para resolver, embora ela dissesse que não se importava que as filhas, ahh, não se dessem, não se falassem e que se não o fizessem enquanto ela era viva escusavam de fazer depois da morte dela, a minha avó não partiu enquanto... eu virei-me…». No início da narrativa o elemento evocado, e que vai direccionar grande parte da descrição, é o conflito existente com as filhas. Esta questão desempenha um papel central e é, principalmente, o resultado de expectativas manifestadas e projectadas para este momento da vida. A familiar doente estabelece, inclusive, um prazo que lhe permita estar presente e verificar a reconciliação. O conflito existente constituía um problema pendente que, na opinião de C1, seria importante ao ponto de a manter viva durante mais tempo. Neste tipo de análise será talvez irrelevante perceber se o morrer ou a agonia dos doentes moribundos poderá ou não ser mais prolongada em situações em que se conhece a existência de um contexto de conflitos familiares. Existem 49 Os relatos de «Às terças com Morrie» (Albom, 1999) e «O escafandro e a borboleta» (Bauby, 1997) constituem dois possíveis exemplos da procura de vias de desenvolvimento mesmo quando se é confrontado com situações limite (morte) e extremamente limitantes. No primeiro livro podemos contactar com o testemunho da vivência de uma doença terminal e cujo objectivo é precisamente o de ajudar outros na compreensão do processo de morrer. No segundo, além de ser possibilitada a partilha da vivência interior de um doente com locked-in sindrome – cuja única capacidade motora era a de abrir e fechar um olho – revela também de que forma a paciência e determinação permitiu a Jean Paul construir a sua narrativa, expandir-se além do seu corpo e deixar um legado importante para outros doentes com o mesmo problema, na geração presente e futura. Resultados da análise |85 aqui dois aspectos que parecem ser cruciais: o primeiro, é perceber de que forma essa ideia e interpretação dos acontecimentos pode exprimir a importância atribuída à integridade da família no final da vida50; o segundo, a noção de que a vida se constitui por um conjunto de tarefas que devem ser completadas até ao momento da morte. A narração da morte da avó é um exemplo de sincronicidade entre os gestos que são descritos, a sequência de acontecimentos e emoções despoletadas: «eu virei-me... é assim, eu estava à cabeceira da minha avó, ajoelhada, de mão dada com ela, ah... estava cada uma das filhas ahh... de cada lado da cama, op... do lado oposto, não se encaravam, ahh…». A descrição dos acontecimentos é minuciosa e apela à imaginação do momento pelo seu carácter visual. É relatada a posição espacial relativa e a postura corporal dos familiares presentes em relação ao leito da avó para revelar o corpo em relação. C1 expõe o que poderia ser um quadro (estático) tentando 50 King e Winne (2004) exploram a emergência da integridade familiar na fase tardia da vida. O seu artigo pretende introduzir este conceito como reflector de um desafio de desenvolvimento que é fundamental para o bem-estar dos idosos e muito influenciado por factores sistémicos familiares. Explicam que, apesar das tendências demográficas apontarem para um envelhecimento populacional progressivo, muita da teoria e investigação existente sobre a família se concentra preferencialmente na primeira metade do ciclo vital, ou foca de forma muito limitada os adultos idosos como receptores de cuidados, ignorando os seus papéis vitais e contribuições durante várias décadas de vida familiar. King e Winne (2004) propõem três funções vitais ou competências do sistema familiar que poderão estar na base da capacidade de os idosos alcançarem a integridade familiar: a)A transformação das relações ao longo do tempo de uma forma que é dinâmica e responsiva às necessidades em mudança do ciclo de vida dos membros da família; b)A resolução ou aceitação de perdas no passado, desapontamentos, ou conflitos com os mortos assim como com os vivos; c)A criação de sentido pela partilha de histórias, temas e rituais familiares dentro e através das gerações. Os autores estimam que a capacidade para a integridade familiar aumente à medida que o indivíduo se aproxima da fase adulta tardia, mas pode ser dificultada ou facilitada por situações de doença ou outras perdas que aumentam a consciência da fragilidade da vida humana. Todos os elementos desenvolvidos por estes autores se encontram presentes ao longo desta narrativa. A morte é a confrontação com a perda e com a fragilidade da vida humana e é possível perceber pelos relatos de C1 de que forma esta realidade descrita por King e Winne (2004) se torna emergente. 86 | Cuidar da Família ao longo da vida expressar o sistema de relações existentes entre os elementos presentes pela forma como se posicionam, aproximam, tocam e se olham. A utilização da expressão corpo em relação pretende enfatizar o papel que o corpo pode assumir na dinâmica das relações entre as pessoas. A descrição pormenorizada de C1, mais do que indicativa da sua capacidade de observação ou atenção, mostra de que forma as histórias das pessoas presentes se relacionavam, através do seu corpo, com os acontecimentos proporcionados pelas circunstâncias e, por outro lado, de que forma os significados atribuídos foram interpretados por C1 e articulados numa narrativa que procura enquadrar de modo coerente o que era possível observar e de que forma o observado se relacionava com uma realidade não visível. Na altura em que C1 se apercebe da proximidade da morte e, mais uma vez, no respeito pelo que sabia serem os desejos da familiar, toma a iniciativa de contactar as filhas para estarem presentes: «eu achei por bem chamá-las e que elas tivessem presentes na hora da partida, ahh, ou pelo menos, achei por bem comunicar-lhes que a hora estava próxima e que se quisessem vir ver a mãe e se despedirem dela que seria bom para todos, ahh… especialmente para ela, e... (12)... (contenção de choro)… é assim... pedi-lhes... (4)... que pelo menos, ao se despedirem da mãe, para que ela partisse em paz... que se falassem, que dessem um beijo, para que a mãe se apercebesse que elas tinham feito as pazes, e eu disse: “pelo menos nesta hora, mesmo que depois da partida, vocês se deixem de se falar, porque para ela ia ser uma partida, um final mais tranquilo, ahh... ela teria paz de espírito”». C1 desenvolve acções no sentido de garantir condições para possibilitar que a avó visse concretizadas as suas expectativas antes de morrer. Garantir a integridade familiar no fim da vida revela-se como o valor que justifica a incoerência que pede às tias: «mesmo que depois da partida vocês se deixem de falar». A cuidadora relata de que forma tentou ser um elemento facilitador do processo de transição que estava a decorrer. Neste seu papel, tenta garantir a conclusão de tarefas pendentes, ser uma presença de respeito e apoio (simbolicamente representados pelo ajoelhar-se e segurar a mão), fornecer autorização e incentivo. O momento torna-se especial e também o auge de uma série de coincidências entre o fim da vida física e o culminar da existência: «e a minha avó só partiu quando eu ajoelhada, a segurar a mão dela, lhe disse: “avó podes partir em paz” porque ela, os último momentos foram muito complicados, a minha avó, antes de partir, bolçou sangue, ahh... nunca me hei-de esquecer os olhos dela, embora fosse uma imagem aflitiva, os olhos da minha avó estavam serenos, ahh... emanavam uma luz como... eles... ir— como é que Resultados da análise |87 eu hei-de dizer... eles irradiavam uma luz e serenidade, ahh... eu acho que tinham outro brilho, não era aquele olho mortiço de quem diz assim: “é olho de quem está prestes a partir” e... e é assim, ahh, tenho visto pessoas partirem mas eu acho que, com a minha avó, houve aquele momento especial, claro que foi doloroso, sim, ainda hoje falo e custa-me falar, ahh, mas vivo esse momento com muito carinho, porque também, como é que hei-de dizer... (3)... não foi uma partida difícil da parte emocional, da parte espiritual. Da parte física talvez... e, quando eu lhe segredei ao ouvido: “avó, elas beijaram-se, elas fizeram as pazes, está na hora de partires, pára de lutar, chegou a tua hora”… ela olhou para mim, exalou um sorriso, deu um suspiro e foi-se… (3)… é assim… (2)... embora a partida não tivesse sido fácil… (8)… (contenção de choro)… eu não trocava esse momento... (16)... ahh… porque até no silêncio nós conseguimos... é assim, cuidar de uma pessoa doente que a gente sabe que vai partir não é fácil, não é nada fácil, mas se nós soubermos aproveitar os... todos os momentos que nos restam, ainda há muito que dar, muito que partilhar». Landsberg (1994, p. 36) faz notar que «só muito raramente o consumar da existência pessoal coincide com a morte; e só em sonhos e nos mitos o herói encontra a morte no auge da sua perfeição». Para Frias (2003, p. 99) a morte anunciada pode também ser o início de uma reflexão sobre si mesmo, de um balanço da própria vida. A pessoa pode, inclusive, tentar reforçar ou reatar laços com pessoas das quais se tinha distanciado ou vivia em conflito, como que numa tentativa de antecipar o consumar da sua existência. A consciencialização da morte aparece como que um pretexto para a busca da perfeição do ser. A experiência do humano sobre a morte acontece no acompanhamento da morte de outro. Sobre a experiência da morte Landsberg (1994, p. 13) começa por citar Voltaire: «Só a espécie humana sabe que terá de morrer, e só por experiência o sabe.» Um longo saber empírico mostrou ao Homem a inevitabilidade da morte. Sabemos que morremos porque morrem os que nos rodeiam e porque morreram todos os que nos antecederam no tempo. O Homem distingue-se em relação aos outros seres vivos pela consciência que tem da sua mortalidade. Como se enquadra a morte individual? Isaac Asimov, numa das suas obras de ficção – O Homem Positrónico –, expressa-o num interessante diálogo de um robot que se aperfeiçoa permanentemente, na aparência física e sensitiva com o Homem, buscando o reconhecimento da sua humanidade, algo que os humanos só reconhecem quando este se propõe a arranjar forma de morrer51. 51 «Efectivamente, o meu cérebro é imortal. Não é isso a barreira fundamental que me separa da raça humana? Os seres humanos podem tolerar a imortalidade em robots 88 | Cuidar da Família ao longo da vida Na luta protagonizada por este robot estão subjacentes as ideias de universalidade da morte para a humanidade (como condição inerente ao facto de ser humano) e a morte do corpo (dimensão biológica) em contraposição com a morte das forças que o movem e que dão sentido à sua existência (dimensão espiritual). A morte aparece como essencial para dar sentido à luta desenvolvida durante toda a existência da máquina para ser considerada humana. Aqui a humanidade não se define pelo seu carácter biológico. Mas, qual é a importância da morte? Será assim a morte tão importante? Esta questão remete-nos para a discussão da importância da pessoa humana52. A singularidade da pessoa, a dignidade53, a individualidade e irrepetibilidade de cada ser humano transforma a morte num momento único e singular54. No sentido oposto, uma perspectiva superficialmente utilitarista da pessoa reduz a morte a um acontecimento contingente, facilmente ultrapassado quando a pessoa é substituída na função55. porque numa máquina é virtude durar muito tempo e ninguém se sente psicologicamente afectado pelo facto. Mas nunca conseguiriam tolerar a ideia de um ser humano imortal porque a sua própria mortalidade só é tolerável enquanto for universal. Permitam a uma pessoa ficar isenta da morte e todos os outros se sentirão vítimas. E é esta a razão Chee, porque se recusam a tornar-me num ser humano […] o que fiz foi escolher entre a morte do meu corpo e a morte das minhas aspirações e desejos»(Asimov, pp. 193-194). 52 Questão abordada aqui de forma naturalmente superficial, sem qualquer pretensão de tactear sequer uma parte da vasta reflexão filosófica sobre esta matéria. 53 Conceito cuja percepção nunca poderá dispensar a incontornável referência kantiana: «Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja fim em si mesmo, isto é, que não possa jamais ser utilizado por alguém (nem sequer por Deus) simplesmente como um meio, sem ao mesmo tempo ser ele próprio um fim» (Kant, 1997, p. 151). 54 «A consciência da morte anda a par com a individualização humana, com a formação de individualidades singulares, obra da pessoa humana. O essencial desta individualização não consiste em adquirir uma consciência mais definida e matizada da sua singularidade própria mas, sobretudo, em o Homem adquirir realmente mais singularidade. A consciência alterada pressupõe uma alteração do ser» (Landsberg, 1994, p. 22). 55 Huxley (2000), no Admirável Mundo Novo, imagina uma sociedade num auge de desenvolvimento científico, que utiliza técnicas de condicionamento psicológico para que o «elemento» aceite o seu estatuto, a sua função (predeterminada consoante a necessidade social) e a sua morte, transformada num momento isento de individualidade e emoção, já que se considera que ninguém é assim tão importante que não possa ser facilmente substituível: «Quando chegaram à extremidade da sala, Linda estava morta. O selvagem ficou um momento de pé, imobilizado no silêncio, depois caiu de joelhos ao lado da cama e, cobrindo o rosto com as mãos, soluçou desvairadamente. A enfermeira estava sem saber o que fazer, olhando ora a forma ajoelhada perto da cama (que escandalosa exibição!), ora (pobres crianças!) […] Que prejuízo fatal podia causar àqueles pobres inocentes! Destruir assim todo o seu bom condicionamento para Resultados da análise |89 Embora a cuidadora narre momentos de raiva e questionamento quando confrontada com as exigências pessoais do cuidar, a descoberta da sua missão de vida aparece, como já tivemos oportunidade de verificar, sempre associada à morte da avó: «eu acho que só comecei a entender a lição com a morte da minha avó... ahh... (11)... a minha missão é cuidar. E eu só entendi isso quando perdi a minha avó […] sabe aquela luz que lhe falei? Não foi só a luz do olhar da avó, não foi só as vivências, não foi só as partilhas todas porque eu tive isso ao longo do tempo só que... havia algo... eu não me tinha questionado. Eu dizia assim: “eu sei que o carma... eu sei que… estou ligada a isto, não sei porquê mas estou”, mas de repente fez-se aquela luz, eu consegui responder à minha própria resposta: “é a tua missão, é para isso que tu fostes talhada, é para isso que estás aqui desta vez. É para te dares deste jeito aos outros”». A busca do sentido da morte caminha de mãos dadas com a procura do sentido da vida. A possibilidade de, a qualquer momento, de forma inesperada, me transformar em nada força o questionamento sobre a razão da minha existência. Legrée (p. 189) exprime claramente esta ideia: «a proximidade da morte impõe-me a reconsideração da minha existência, um melhor discernimento do que é verdadeiramente importante para mim, por exemplo o que tenho verdadeiramente vontade de fazer se o meu tempo já está contado – e ele está-o sempre, mesmo se eu não o possa traduzir em números». a morte com esta repugnante explosão de gritos, como se a morte fosse qualquer coisa de terrível, como se houvesse pessoa que tivesse semelhante importância!» (Huxley, 2000, p. 216). Capítulo 3 Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro Vimos que as dinâmicas de cuidar acabaram por se tornar reveladoras não só das forças das relações existentes entre os elementos da família mas também da hierarquia de valores e coerências internas que cada um estabelece para si próprio relativamente ao cuidar de outros. Este é um exemplo de como nem as expectativas sociais nem os laços naturais de sangue determinam que as filhas cuidem da mãe. Nesta família, contribuíram para a decisão de cuidar de C1 o conhecimento das histórias das relações e das dinâmicas de cuidar do passado, a relação que mantinha com a avó em resultado das vivências partilhadas – e que a orienta para priorizar e garantir o cumprimento da sua vontade – e, ainda, a procura de uma relação de coerência consigo própria. No entanto, e embora C1 tenha considerado a importância dos laços familiares e da relação preexistente com a avó, a sua narrativa continua numa direcção diferente e aparentemente até contraditória revelando um cuidar para responder ao apelo do outro: «Nem todas as famílias funcionam assim mas, eu dentro da minha, embora a minha família seja muito destruturada, ahh... as pessoas que me são mais próximas, mesmo aquelas que me são menos próximas e que me fazem sofrer, eu digo sempre: “se um dia precisarem, eu estarei lá” se elas me quiserem, se elas necessitarem da minha ajuda, do meu apoio, estou lá! Se elas me quiserem isso o problema já não é meu. Eu faço aquilo que eu penso, que eu sinto que é correcto. Que eu preciso de fazer.» Podemos observar uma evolução do discurso para a abertura a uma nova perspectiva onde a cuidadora exclui a relação existente como critério para a tomada de decisão de cuidar. Nesta nova forma de olhar, é o apelo da pessoa em necessidade que prevalece sobre as regras que tinham sido entretanto elaboradas e que explicaram as circunstâncias do cuidar da avó. Esta dinâmica de discurso poderá ser reveladora de um processo de transição que se inicia com a descrição de componentes presentes das decisões do passado e avaliação dos resultados e prevê os processos de decisão mediante a elaboração da experiência vivida. O que aparentemente parece ser uma demissão de processos de tomada de decisão futuros e abdicação de controlar a própria vida poderá, por outro lado, ser entendido como o estabelecimento de uma condição prévia para viver, baseada em algo que atribui coerência interior (entre o que é pensado e 92 | Cuidar da Família ao longo da vida sentido), garante a realização pessoal de si no mundo e a orientação da própria vida para um propósito específico no sentido de dar resposta à necessidade de auto-actualização e crescimento espiritual (Watson, 2008)56. Ao mesmo tempo que se refere à existência de uma ordem preestabelecida57 para os acontecimentos em que «nada acontece por acaso», conta como se costumava questionar sobre os que tinham ocorrido na sua vida e revela com ênfase a sua missão de ser cuidadora: «Ahh... e nada acontece por acaso! S – Nada acontece por acaso. Que… C1 – É a minha missão. Eu tenho que ser cuidadora. Eu tenho que dar de mim aos outros. Ahh… e eu não entendia isso. Eu questionava-me. Eu dizia: “é o meu carma, a minha passagem por esta vida está ligada a pessoas com falta de saúde, eu não sei porquê eu, mas é assim... muita coisa a partir daí começou a ter mais respostas. Quando eu disse que só com a morte da minha avó é que eu compreendi que era isso... era essa a minha missão. É... é dar-me aos outros, é ajudar. E é através desta área que eu acho que… eu tenho que estar presente.» Considerar a existência de uma ordem universal preestabelecida é assumir, como pressuposto para a vida, que existem razões e mistérios que não conhecemos e que podem estar para além da nossa compreensão58. Depois de experimentar a descoberta da sua missão, o fio condutor que dá sentido aos acontecimentos e vivências que se foram repetindo ao longo do tempo, a cuidadora consciencializa o que não foi capaz de compreender no «[A] self-actualized person is concerned with problems outside of and beyond self, with a mission in life for an internally oriented task to fulfil, a task that helps establish and guide the next generation toward human and environmental health» (p. 186). 57 Na exploração que faz sobre as ideias deixadas escritas por Florence Nightingale em Suggestions for toughts, Macrae (2001) refere-se à sua forte crença na existência de leis que organizam o universo: «Nightingale felt that an ordered universe was a reflection of a higher inteligence. […] In a universe organized by natural or scientific laws, nothing occurs in a vacuum. All events — physical, psychological, and spiritual — are either caused by, or correlated with, other events» (p. 7). 58 Este é um princípio básico do que constitui o décimo processo de cuidar na teoria de Watson (2008): «estar aberto e atender ao espiritual/misteriosos e existenciais não conhecidos da Vida-Morte» (p. 191). A autora convida-nos a estarmos abertos ao mistério, milagres e uma profunda ordem superior dos fenómenos da vida que pode não ser compreendida: «[a]ll I am trying to say is that our rational minds and modern science do not have all the answers to life and death and all the human conditions we face; thus, we have to be open to unknowns we cannot control, even allowing for what we may consider a “miracle” to enter our life and work» (p. 191). 56 Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |93 passado e projecta a possibilidade de encontrar diferentes razões e sentidos no futuro para os factos que vive no presente: «Ahh... mas é assim, eu tive que passar por tudo aquilo que passei, tive que fazer as escolhas todas que eu fiz e, como por vezes, se calhar, não fo... não foi... a lição não foi estudada tão aprofundadamente, eu tive que passar por todas as situações para chegar aonde cheguei hoje, daqui para a frente não sei, se calhar daqui a dois anos vamos ter a mesma entrevista e eu vou-lhe dizer: “afinal a lição ainda não estava aprendida” [S – (riso)] tá a compreender? Ahh... (4)… mas eu penso que tou no caminho certo, tou a cumprir (h) a minha missão.» C1 revela a consciência de si como o ser em permanente transformação e aprendizagem, num percurso onde os sentidos atribuídos às vivências são mutáveis ou se completam no tempo (Frankl, 2004; Gadow, 1999) e socorre-se de uma metáfora para exprimir esta ideia: «Alguma vez pegou num livro […] duma disciplina qualquer […] e lê... sei lá... (5)... um... (5)... um artigo, ou a passagem, hoje uma vez, e pensa: “eu sei o que é que isto quer dizer” e arruma. E depois tem nova prova, e aquela matéria sai outra vez […] diz assim: “estranho, pensei que tinha compreendido isto, mas espera, isto aqui quer-me dizer algo mais” e você fecha e passa a prova […] você chega ao terceiro ano e sai a mesma matéria […] diz assim: “ah! Será a minha maturidade? Será que eu li bem anteriormente? Se calhar não percebi, se calhar não li com tanta atenção”. Agora há mais alguma coisa que lhe foi transmitido, “desta vez, finalmente!”, arruma, terceiro ano está feito. Chega ao quarto ano, ano de licenciatura […] Abre outra vez, até se calhar tem ali umas notazinhas ao lado, que foi fazendo, cada vez que estudava: “olha afinal não era bem isto como tu interpretaste no primeiro ano”. […] você lê tudo aquilo, lê as anotações que fez, porque, ao reler e tornar a reler […] chega ao fim e diz assim: “licenciatura feita” diz assim: “afinal eu pensei que sabia aquela matéria, mas não sabia” […] Tá satisfeita consigo, ter sido aluna aplicada. Finalmente, conseguiu. E, de repente, é convidada para uma palestra qualquer e fez-se luz.» Pressupor um paradigma de transformação permanente resulta numa vivência que aceita a contingência, a incerteza e a própria vulnerabilidade (Gadow, 1999)59. A construção de sentidos não é uma tarefa definitiva mas depende de constantes actos de interpretação60. Esta aceitação não equivale a resignação, na medida em que é esse mesmo paradigma que reconhece ao ser humano a capacidade de se superar. Este enquadramento permite dar um sentido ao paradoxo do cuidar: de aceitação e recusa do sofrimento. 60 «[t]he very enterprise of making meaning is conditional, never assured. It depends on our continuing acts of interpretation». 59 94 | Cuidar da Família ao longo da vida Ao voluntariar-se para colaborar nos cuidados a doentes em fim de vida C1 encontra uma nova via de realização de si: «Ahh... não é fácil, claro que não é fácil, há pessoas, inclusive o meu marido, que me diz: “como é que tu consegues? Tu sabes que vais entrar e lidar... tu estás perante a morte, cada vez que sais daqui ao sábado de manhã, ahh... como é que tu consegues?”, e eu disse: “eu não olho para o doente como doente, eu olho para o doente como uma pessoa, com quem eu vou estar, com quem eu vou partilhar, vivências, desejos, angústias, sofrimentos, experiências... porque eu também partilho com eles as minhas experiências, os meus sentimentos, aquilo que passei, os meus desgostos, ahh... as minhas dúvidas”.» O relato dos princípios que fundamentam as relações que estabelece são a expressão de uma consciência da contingência, onde é mais importante o processo (partilha) do que o resultado (resposta) e onde as dúvidas e os limites sentidos permitem o contacto com uma fragilidade que é íntima mas universal. É nesta universalidade da vulnerabilidade que o ser humano pode ser compreendido, experimentar a comunhão com algo a que todos estão ligados e não se sentir só nem desamparado. Quando se centra na sua missão para a vida, o cuidar deixa de ser um conjunto de acções que dependem da relação preexistente, antes transforma-se na tentativa de se estabelecer a relação certa que permita uma via de comunicação com o sofrimento do Outro para que este – ainda que possivelmente condicionado pelos limites do seu corpo físico – não se desligue da sua humanidade. Toscano (2005) explica de que forma pensadores importantes como Paul Ricoeur e Emanuel Levinas coincidem filosoficamente na ideia de que o Outro é constitutivo de mim mesmo. O facto de eu não existir sem o outro caracteriza a especificidade de ser humano. Daqui resulta que o ser humano só o é na medida em que se consegue relacionar. É esta capacidade de relacionamento com os outros que determina as possibilidades de ser mais, de superação dos limites pessoais61. O sofrimento, a afectação de necessidades que reduzem a possibilidade relacional com os outros, confronta o ser humano com a redução das possibilidades de ser e a morte, com o fim da relação com os outros e o não ser. A partilha da vulnerabilidade permite encontrar um ponto de comunhão que, no auge da limitação, permite a continuidade da relação. Para Gadow 61 Estas ideias vão também ao encontro das defendidas por Savater (2000) na sua discussão sobre o amor-próprio e podem também agora ser enquadradas considerando as perspectivas desenvolvidas sobre as interacções entre o heterocuidado e autocuidado onde se incluiu a discussão sobre as relações de si com o seu corpo. Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |95 (1999) a exposição, a insegurança e a incerteza são as características da única certeza possível para envolvimento. Esta tentativa de estabelecer a relação certa aponta para uma acção em constante movimento e com limites éticos que podem aparecer indefinidos. As ideias desenvolvidas por Gadow (1999), no contexto do desenvolvimento de uma ética para a enfermagem, pressupõem os referenciais que resultam desta análise. No sentido de encontrar um modelo ético explicativo e possível de ser aplicado à prática do cuidar, Gadow (1999) desenvolveu um modelo que designou de narrativa relacional e que se torna oportuno explorar. Narrativa relacional: uma ética para uma acção em mutação Segundo a autora, as categorias que localizam a ética em enfermagem no contexto da disciplina de filosofia não facilitam a sua estrutura porque não revelam relação íntima entre elas num modelo organizativo. Propõe o estabelecimento de conexões filosóficas entre diferentes perspectivas éticas e descreve um modelo dialéctico baseado numa tríade de camadas éticas: imersão subjectiva (iminência ética), distanciamento objectivo (universalismo ético) e compromisso intersubjectivo (narrativa relacional) correspondendo, respectivamente, à ética pré-moderna, moderna e pós-moderna (Gadow, 1999, p. 57). A autora explica que as três perspectivas éticas não podem ser vistas de forma isolada e que somente a sua coexistência constitui uma base segura para a prática (fig. 3). Irão ser utilizados segmentos da narrativa de C1 que poderão, eventualmente, contribuir para ilustrar os componentes deste modelo. O aspecto que me parece mais relevante deste modelo para esta situação concreta da cuidadora é o conceito de iminência ética à qual está associada uma certeza subjectiva baseada na imersão62 (uma imersão numa tradição que proporciona uma apreensão ética da situação e uma imersão na própria situação de cuidar). A iminência ética é o primeiro nível do modelo dialéctico proposto, é uma experiência de certeza que não necessita nem permite explicação, é não discursiva, e o seu poder reside exactamente nestas características. «[i]n ethical terms, immediacy is an unreflective and uncritical certainty about the good. A certainty powerful enough to resist reflection originates outside an individual in order to avoid being undermined by particularity. Certainty about the good, if it is to be more than personal conviction, must derive from a source that transcends the individual, such as religion, family, customs, or the ethos of a profession» (Gadow, 1999, p. 59). 62 96 | Cuidar da Família ao longo da vida Na narrativa de C1, o que se situa num nível ético imediato aparece muito bem demarcado pela dificuldade em encontrar as razões que direccionaram a acção ou pelo desenvolvimento de respostas automáticas para agir: «é um sentido de que estava certo o passo que eu ia dar, que é o passo certo. Não é? Não é uma necessidade por obrigação, vá, a pessoa... h... é assim, é difícil de explicar». «e automaticamente é assim, perante certas e determinadas situações que se nos deparam, são situações que depois são tão vulgares, que nos acontecem com tanta frequência que você assume a responsabilidade ou dá uma resposta que nem necessita de pensar porque já vivenciou a situação tanta vez que nem se questiona, se é correcto se não é correcto, se precisa de, se não precisa, qual é o ponto qual não é, não é?». Figura 3. Tríade de camadas éticas* Ética pré-moderna Iminência ética Ética moderna Universalismo ético Certeza subjectiva baseada em distanciamento relacional ▪Princípios ▪Teorias ▪Códigos ▪Leis Ética pós-moderna Compromisso ético Contingência intersubjectiva baseada na narrativa relacional ▪ Significado do bem construído contextualmente Reproduzido e traduzido com autorização da autora. * Certeza subjectiva baseada na imersão ▪Família ▪Religião ▪Tradição ▪Comunidade Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |97 Quando é pedido à cuidadora uma explicação sobre a sua certeza subjectiva, imediatamente o discurso se desloca para procurar uma série de princípios que acredita serem universais, aplicáveis a todo o ser humano: «S – Que sente que é correcto, desculpe interromper, que sente que é correcto... deixe… consegue explicar melhor esta questão do “sentir que é correcto”? C1 – Ahh… é assim, todo o ser humano, a todo... ou melhor... a todo o ser humano é-lhe dado livre-arbítrio, você pode fazer as suas escolhas, sejam elas certas ou erradas, ahh... é assim, todos nós, no percurso da nossa vida fazemos escolhas certas, erradas, menos certas. Ahh… e é consoante a nossa escolha, a nossa decisão, vamos acatar as consequências.» O modelo dialéctico de Gadow (1999) explica este deslocamento63. Ao universalismo ético a autora relaciona uma ética moderna baseada num distanciamento racional, de princípios, teorias, códigos e leis. Centralizando-se na explicação do processo de tomada de decisão (e negando processos intuitivos), a cuidadora retorna à contingência da situação particular: «C1 – Ahh... (11)... quando toma uma decisão, toma uma decisão assim, sem pensar? Não? É ou não? S – Sim. C1 – Diz assim: “esta é a situação. Perante esta situação o que é que eu tenho que fazer?” A decisão a que chego para muita gente pode até nem ser a sol... a decisão correcta, a decisão que outras pessoas tomariam mas o importante é aquilo que é importante para si.» O novo deslocamento que ocorre aproxima-se do compromisso intersubjectivo da narrativa relacional. Nesta ética existencialista, a característica principal é a unicidade dos indivíduos. A transcendência é a capacidade de imaginar e apreciar diferentes perspectivas e não assumir uma perspectiva universal de parte alguma64. A narrativa relacional sustenta-se num paradigma pós-mo«Dialectically, the move away from immediacy produces its opposite, rational objectivity […] Rationality counters subjectivity with principles that are categorical and inconditional. Freed from the limiting perspective of particularity, reason equals universality. […] The strength of ethical universalism is epitomized by the principle of respecting individuals equally. Respect for individuals is based on the rational autonomy that each person possesses, the ability to transcend personal feelings in making universalistic choices» (p. 61). 64 «The valuing of persons requires perception of each one’s uniqueness, and percepcion involves engagement. […] the engagement of care respect is the opposite of ethical 63 98 | Cuidar da Família ao longo da vida derno e desenvolve-se através de um compromisso que decorre num tempo e espaço partilhados, baseado numa contingência de ambas as partes, procurando novos sentidos (particulares, condicionais e não definitivos). Por outras palavras, este compromisso pressupõe uma relação entre pessoas completas (cuidador e pessoa cuidada). Juntas procuram a história que faz sentido para a situação particular. Este modelo abre também espaço para os processos dinâmicos da tomada de consciência das pessoas dos sentidos que atribuem às experiências. Direccionando-se para o cuidar das enfermeiras, Gadow (1980) aborda também a necessidade de preencher o vazio existente entre a dimensão profissional e pessoal das enfermeiras. Este segmento, por exemplo, ilustra um momento em que C1 procura retorno na interacção com a investigadora e lhe pede uma perspectiva pessoal sobre o processo de tomada de decisão. objectivity; it is the personal responsiveness to the particular other, a relation between individuals that is grounded in the ambiguity of their being at once encumbered and free, situated and transcendent» (p. 63). Capítulo 4 As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida: o cuidar intergeracional Partindo das ideias emergentes, a figura 4 procura ilustrar uma possível esquematização da evolução das dimensões do cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado) no ciclo de vida de um indivíduo inserido no ciclo de vida familiar (Alarcão, 2006): Figura 4. A relação das dimensões temporais com o ciclo de vida individual e correspondente ciclo geracional da família e as variações das dimensões do cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado) num paradigma de cuidar intergeracional Ser Cuidado Infância/ /Adolescência Autocuidado Heterocuidado Idade Adulta Nascimento Morte . Autocuidado V/S Heterocuidado Autocuidado Heterocuidado Velhice Ser Cuidado Estas perspectivas fundamentam-se no ideal de cuidar intergeracional referido por C1 e resultam da análise de uma narrativa em particular que tem na sua base um modelo de família tradicional. Este modelo, aqui projectado, permite verificar que os vários elementos que compõem o grupo familiar são 100 | Cuidar da Família ao longo da vida expostos a uma grande variedade de combinações entre poderes (capacidades) e limitações (necessidades) nas relações de cuidar existentes e que se poderá tornar a base do desenvolvimento da sua expertise relacional ao longo da vida – consigo próprio e com os outros. À geração de adultos que cuida dos filhos e dos pais simultaneamente exige-se a capacidade de articular e desenvolver estratégias adequadas para o estabelecimento e superação de limites, mediante o conhecimento prévio da história e das capacidades de cada elemento cujo cuidado considera ser da sua responsabilidade. Esta é a geração que se constitui como elo de ligação entre o passado e o futuro da família e onde se situa a cuidadora entrevistada (C1). Embora seja de extrema importância termos em conta que as conclusões que advêm desta análise não são generalizáveis, nelas se incluem processos que nos direccionam para o questionamento sobre qual será a sua expressividade e relevância e de que modo poderão contribuir para a abordagem dos enfermeiros às famílias em geral. Alarcão (2006) analisa a família como um sistema e cita Sampaio e Gameiro (1985)65 para definir família como «um sistema, um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior, que mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimento percorrido através de estádios de evolução diversificados» (p. 39). As famílias são depois exploradas pela autora tomando também como referência o ciclo de vida familiar associado à estrutura tradicional66. No entanto, a cada vez maior plasticidade das actuais organizações e constituições familiares e o aparecimento cada vez mais evidente de novas formas de família (Alarcão, 2006) levanta novos desafios e estimula uma análise sobre que bases constituem a essência da definição de família67. Ao abordar novas configurações familiares Alarcão (2006) cita a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1994)68: «o conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento, parceria sexual ou adopção. Qualquer grupo cujas relações sejam baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino Sampaio e Gameiro. 1985. Terapia familiar. Porto. Edições afrontamento. Pp 11-12. O desenvolvimento da sua análise é organizado tomando como referência as seguintes etapas do ciclo de vida familiar: formação do casal, família com filhos pequenos, família com filhos na escola, família com filhos adolescentes, família com filhos adultos. 67 «As transformações a que temos vindo a assistir, no que toca à constituição e composição da família, levam-nos a equacionar a necessidade de se realizarem novas investigações e novas sistematizações do(s) precurso(s) desenvolvimental(ais) das famílias» (p. 111). 68 OMS. 1994. World AIDS day newsletter, 1. 65 66 As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |101 comum, deve ser encarado como família» (p. 204). Esta concepção estabelece como critério definidor do que constitui uma família a existência de relações cuidativas. Nesta narrativa foi também possível observar que, apesar de C1 idealizar um cuidar intergeracional fundamentado na cadência das gerações e nas relações entre pais e filhos, é a própria que acaba por quebrar a rigidez deste modelo para dar prioridade às relações existentes – as que tem com os que opta por cuidar e à relação consigo própria (procurando ser fiel a si mesma e coerente com os seus próprios valores) – e não à proximidade de laços formais ou sanguíneos. Cuidar é simultaneamente a razão e o produto da existência da família e é, conforme já foi explorado, a razão pela qual esta se encontra intrinsecamente ligada aos processos de desenvolvimento do indivíduo. Não é por isso de estranhar a integração simbólica na família dos profissionais que prestam cuidados no domicílio, pois, mediante a relação de confiança estabelecida, também eles colaboram em actividades que garantem suporte da família. Perante esta perspectiva evolutiva do conceito de «família», qual poderá ser então a relevância de um paradigma que, embora apareça associado à existência de um forte sentido para cuidar, não se reflecte na realidade e tendências actuais das famílias? O que este modelo parece sugerir, quando confrontado com a perspectiva já mais recente e transformada do conceito de «família» da OMS, é que as tarefas de desenvolvimento essenciais para construir a identidade e garantir a subsistência dos indivíduos não dependem tanto das características específicas dos elementos que constituem o grupo familiar, mas da capacidade que estes têm (ou tiveram) de estabelecer relações de confiança que proporcionem oportunidades para que cada um possa experimentar as diferentes variações das dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida, isto é: (i) ser cuidado numa perspectiva de preparação para o futuro, e de aprendizagem da gestão da aquisição de capacidades no sentido de desenvolver a capacidade de autocuidado – que passa também por cuidar de outros em diferentes etapas do ciclo de vida – (ii) o heterocuidado, (iii) a necessidade de articular o autocuidado e heterocuidado e, ainda, (iv) ser cuidado num contexto de perda progressiva das capacidades que permitiram a construção da sua história no passado. No seu fio condutor, a estas actividades de cuidar se ligam relações de poder e vulnerabilidade direccionadas para o futuro ou para o passado. Estes pressupostos poderão contribuir para orientar os enfermeiros na avaliação das dimensões do cuidar do grupo familiar como um todo, mas, também, das formas e possibilidades que cada elemento encontra – ponderando-se a 102 | Cuidar da Família ao longo da vida sua etapa do ciclo de vida e as capacidades individuais – de experimentar e desenvolver essas dimensões de forma adequada. Kahana et al. (1994) referem-se também à importância de considerar a dimensão temporal da prestação de cuidados e o que tem sido designado por «developmental time». Este conceito está relacionado com o impacto do timing em que os papéis de cuidar ocorrem no desenvolvimento individual de cuidadores e receptores de cuidados. Tomando como exemplo a problemática das crianças e jovens cuidadores (já referida anteriormente), podemos verificar que uma responsabilização inadequada pelos cuidados a outros poderá precipitar uma necessidade de articular tarefas de autocuidado e heterocuidado numa altura do ciclo de vida em que a criança pode não ter um passado significativo como referência (ao qual se pode recorrer na idade adulta), essencial para construção da narrativa e para identificar e exprimir emoções que ajudem à integração das vivências69. Por seu lado, os pais – em situações de doença – destas crianças podem ver comprometida a sua actividade de heterocuidado (para com os filhos/avós ou sociedade) e necessitar de encontrar formas de permanecerem conscientemente conectados a actividades de desenvolvimento e propósito. Compreender que o desenvolvimento da capacidade de autocuidado inclui tarefas que vão muito para além da execução de cuidados ao corpo e que pode, inclusive, ser potenciado pela actividade de cuidar dos outros, leva-nos também a considerar a possibilidade de que esta seja menos afectada em crianças cujos pais apresentem doenças associadas a limitações exclusivamente físicas, na medida em que estes continuam a ser capazes de orientar os filhos, de os validar positivamente, e de reconhecer os seus esforços e capacidades. Na verdade, os estudos citados confirmam que as crianças mais afectadas são aquelas Durante a exploração sobre os eventos marcantes e a competência da narrativa tivemos oportunidade de verificar que estes poderão novamente surgir associados a outros processos posteriores (ou, no caso particular das crianças, na idade adulta) que despoletem as memórias do que foi vivido. Poderão ser integradas à medida que aumentem as capacidades de narrar-se a si próprio e existam oportunidades para ser escutado e para partilha de experiências. Este constitui também um exemplo de como a narrativa pode ser um instrumento terapêutico (Sakalys, 2003), inserido num paradigma de cuidar-sarar, pela abertura de uma janela panorâmica que permite encontrar as vias que ligam os acontecimentos do passado às circunstâncias do presente e às expectativas para o futuro. A utilização da brincadeira, da arte, da música, da poesia e da dramatização poderá ser importante para ultrapassar dificuldades na auto-expressão e poderá ser particularmente útil em crianças. 69 As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |103 cujos pais têm comportamentos aditivos, perturbações emocionais ou doenças mentais, e a análise desta narrativa revelou a importância que o reconhecimento do receptor de cuidados pode desempenhar. A análise efectuada sobre os eventos marcantes da narrativa permitiu perceber de que forma estes têm um papel fundamental para a organização das experiências – passíveis de serem analisadas de forma isolada e na sua transversalidade –, se tornaram o centro do relato dos episódios de cuidar da família, e de que forma a realidade factual dos acontecimentos é usada para introduzir as variáveis que permitem transmitir significado e simbolismo ao vivido. Os eventos marcantes relacionados com os episódios de cuidar incidiram, como tivemos oportunidade de ver, em acontecimentos que colocaram em risco a segurança e que criaram circunstâncias inesperadas, que precipitaram escolhas ou vivências emocionais intensas, indutoras de diferentes tipos de mudanças, visíveis e invisíveis. No entanto, a particularidade que parece estar na base da construção destes mesmos eventos – e que se torna mais evidente na recta final desta análise – é o facto de todos se relacionarem com conjunturas que provocaram alterações das relações de cuidar previstas no ciclo de vida quando tomamos como modelo o ideal de cuidar intergeracional já explorado e que corresponde ao culturalmente enquadrado. Na verdade, cuidar do pai em criança, cuidar da mãe (com necessidade de ajuda da filha) até à sua morte prematura, cuidar da avó, dar apoio à filha (a quem foi diagnosticada doença oncológica) e, ainda, a consciencialização da missão de vida (que redireccionou os cuidados) constituem situações não previsíveis e que alteram as relações da família muito para além das tapas de transição inerentes às etapas de desenvolvimento. De salientar, por exemplo, que apesar das transições importantes que decorrem do nascimento e cuidar de filhos, nenhum aspecto foi considerado marcante relativamente a estes cuidados, referidos como inquestionáveis, previsíveis e socialmente contextualizados. Kahana et al. (1994b) exploram ideias que se encaixam nesta perspectiva, e apontam para autores que salientam que as experiências de cuidar podem ser mais ou menos intensas para os cuidadores, consoante a sua normalidade relativamente à idade e género70 e estão (ou não) on time relativamente à se- 70 Questões relacionadas com o género têm sido amplamente exploradas no âmbito da sua relação com o cuidar. Por exemplo, Achterberg (1991) e Collière (1999) exploram a história da mulher e de que forma ela tem estado ligada a práticas de cuidar e sarar. Gilligan (1993) realiza uma abordagem psicológica ao desenvolvimento da mulher e explica de que forma esta se orienta para uma ética baseada no cuidar. 104 | Cuidar da Família ao longo da vida quência e duração culturalmente prescrita. Os mesmos autores explicam que o cuidar que se desenrola nas suas formas previsíveis ao longo do ciclo de vida tem maior probabilidade de encontrar recursos sociais de apoio adequado e de causar menos impactos negativos nos cuidadores. Poderíamos, talvez, acrescentar que a previsibilidade também se poderá constituir como factor atenuante, porque permite ao indivíduo criar mecanismos antecipatórios e de apoio progressivo mediante as necessidades de ajuda que vão surgindo. Os relatos dos episódios de cuidar revelam que paralelamente a uma vivência de sofrimento do receptor de cuidados decorre uma vivência de sofrimento do cuidador. O resultado é uma afectação mútua e perda de controlo sobre a satisfação das necessidades de ambos. Aqui se percebe que o compromisso com o cuidar do Outro implica colocar-se disponível para ser afectado. No relato do cuidar da avó, percebemos a ocorrência de um isolamento subjectivo que contribui para uma circunstância que designamos globalmente por solidão no compromisso de cuidar e que pode estar associado a situações de sensação de desamparo, nomeadamente em momentos de maior instabilidade e vulnerabilidade da saúde do familiar. Este é o contexto onde a necessidade da narrativa se torna emergente. C1 encontrou nos profissionais de saúde que a acompanharam uma possibilidade de se expressar e ser ouvida. Esta situação poderá ter ainda mais impacto quando o cuidar ocorre em situações fora da norma, na medida em que o cuidador vivencia contextos familiares díspares e muitas vezes não compreendidos pelos que partilham a sua rede social de amigos e etapas do ciclo vital. Isto pode ser particularmente importante nas crianças e jovens cuidadores e contribui para compreender o aparecimento de sentimentos de ser diferente ou actos de bullying (Earley et al., 2007; Cree, 2003). Os jovens adolescentes, por exemplo, poderão experimentar sentimentos profundos de solidão numa altura da vida em que a rede social e o grupo começam a ter cada vez mais relevância. Um outro aspecto particularmente relevante que resultou da análise efectuada foi a necessidade de ponderarmos a possibilidade de atenuação de experiências consideradas marcantes no passado, pela vivência posterior de momentos onde as circunstâncias que rodeiam os acontecimentos são semelhantes, mas onde o indivíduo se situa em níveis diferentes de responsabilidade e controlo sobre elas. Estas coincidências poderão permitir uma conexão entre dois momentos distintos no tempo que permite um novo olhar sobre os acontecimentos e uma nova integração, agora mais abrangente, das experiências ocorridas. É este o processo que parece estar na base da metáfora que a cuidadora utiliza para explicar o seu processo de transformação, As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |105 visível no modo como vai realizando leituras diferentes dos acontecimentos ao longo da vida. Os relatos de C1 dos cuidados ao pai e à mãe são um exemplo desta possibilidade. Quando C1 prestou os cuidados ao pai situava-se na dimensão temporal do futuro do ciclo familiar (criança), depois, já na dimensão do presente, depara-se com a inevitabilidade da participação da filha nos cuidados à mãe. Uma perspectiva que poderá contribuir para uma melhor visão sobre estes aspectos da análise é o desenvolvimento de ideias que King e Wynne (2004) fazem sobre a emergência da integridade familiar na segunda metade do ciclo vital e de que forma esta está relacionada com o conceito de mutualidade. Definem mutualidade como a capacidade de manter um compromisso a longo termo com as relações familiares e reinventá-las através do tempo em face das transições do ciclo de vida. A mutualidade está, então, relacionada com funções relacionais básicas que, considerando a sua descrição, se podem considerar de cuidar71. Para estes autores, é esta capacidade que irá permitir aos adultos crescer no suporte dado aos seus pais na velhice. Estes, reciprocamente, continuam a oferecer várias formas de suporte e assistência aos seus filhos e netos, ao mesmo tempo que se vão tornando cada vez mais capazes e dispostos a aceitar as ideias e ajuda dos filhos e a serem cuidados. King e Wynne (2004) explicam que a transformação para esta etapa da relação familiar (que designam de mutualidade filial) depende da capacidade da família renegociar hierarquias de poder intergeracional e obter relações de adulto-para-adulto entre pais e filhos adultos. As perspectivas destes autores salientam aspectos que despertam para a necessidade de investigar de que forma é que as variações das capacidades e limites do corpo ao longo do ciclo de vida interferem com as relações familiares. Isto pode ser particularmente relevante nas situações de doença na família, pelo seu carácter não normativo. Na medida em que o cuidar se desenrola num jogo entre os limites/necessidades e as capacidades das pessoas, ele é também uma busca contínua de um equilíbrio ou, pelo que resulta da análise, uma tentativa de estabelecer a relação entre poder e vulnerabilidade (fig. 5). 71 Os autores consideram como funções relacionais básicas: o afecto ou prestação de cuidados, a comunicação e a partilha de resolução de problemas. Nesta análise foram todas consideradas como parte integrante do cuidar tendo em conta referenciais já abordados. Conclusão A análise revelou uma história de vários episódios anteriores de cuidar da família que apresentaram, em relação ao processo de tomada de decisão, três momentos distintos ao longo do tempo: o cuidar por obrigação, o cuidar por escolha e o cuidar como missão de vida. Além de acompanharmos uma série de relatos de cuidar ao longo do ciclo de vida, foi possível observar uma evolução dos sentidos atribuídos ao cuidar, que se revelaram condicionais e se foram completando no tempo. O tempo e as experiências interagem permanentemente, e o resultado, que se prevê não definitivo, não pode também ser circunscrito ao episódio de cuidar que esteve na base da pergunta generativa. Por outro lado, o relato de C1 foi revelando circunstâncias e dinâmicas de interacção que podem fornecer pistas importantes para compreendermos de que forma o cuidar do outro, apesar de exigente, poderá ser transformador. Numa perspectiva de desenvolvimento podemos pensar que o processo transaccional é, ao longo da vida, um processo contínuo e inevitável, desencadeado, quer pelas mudanças do corpo – associadas ao crescimento e envelhecimento – quer pelos ganhos e perdas que resultam de relações que se criam e se rompem – pelo nascimento e morte. Todos estes processos ocorrem naturalmente no seio da família e representam, na sua essência, períodos em que existem necessidades aumentadas de cuidados, dirigidos para o próprio ou para os outros. Poderão despoletar crises mais ou menos intensas, consoante (i) os recursos de superação existentes, (ii) ocorram dentro das etapas previstas do desenvolvimento do indivíduo ou, como tivemos oportunidade de analisar, (iii) estejam mais ou menos socialmente enquadrados. A análise efectuada revelou que situações ou contextos que criaram riscos de compromisso da segurança despoletaram uma necessidade de alterar padrões de relacionamento (aproximação ou distanciamento) na família. Ao mesmo tempo, tornaram evidente o nível de confiança das relações já estabelecidas (fig. 5). A existência de necessidades (individuais ou familiares) não controladas pode ser desencadeadora de mal-estar – mais ou menos intenso, mediante a avaliação que o indivíduo faz dos seus limites e capacidades para superar as dificuldades. De notar que esta avaliação não se faz considerando apenas a realidade do presente. Esta tem carácter tridimensional no tempo. O indivíduo pode 108 | Cuidar da Família ao longo da vida recuperar situações idênticas no passado e compará-las relativamente às circunstâncias que as rodearam, às capacidades e limites existentes na altura e às estratégias de resolução encontradas. Depois, poderá antecipar o processo reflexivo e de tomada de decisão no futuro, tendo em conta as expectativas a atingir e a ponderação antecipada dos encargos que consegue prever e dos recursos que se irão (ou não) manter (fig. 5). Há ainda a considerar que as relações de confiança que se estabelecem com os outros podem significar uma parcela a contabilizar na soma dos recursos disponíveis para a superação de situações de instabilidade e risco. Nesta perspectiva, a família assume especial importância. No rol das relações existentes inclui-se, com especial importância, a relação de confiança que o indivíduo consegue manter consigo próprio, nomeadamente, procurando alcançar um sentido de coerência interna relativamente às decisões que irão orientar a sua acção. Este processo constitui-se como um mecanismo importante para o autocuidado. Assim, a pessoa poderá necessitar de repensar a sua hierarquia de valores, prioridades e crenças para conseguir dar resposta à situação de crise/transição. Poderá, por exemplo, procurar formas de isolamento que lhe permitam processos de conversão a si (meditação, reflexão), concretizando uma mudança no padrão da relação consigo próprio (fig. 5). As várias dimensões de cuidar que coexistem na família estão também ilustradas na figura 5, mais especificamente: a forma como se organizam numa perspectiva que considera ganhos e perdas de capacidades previsíveis ao longo do ciclo de vida, a forma como predominantemente se orientam simbolicamente para o passado e para o futuro ou, ainda, para os conteúdos simbólicos da vida e da morte. Conclusão |109 Figura 5. Circuito relacional: o ajuste das relações no processo de transição – as dimensões de cuidar (individual e familiar) no tempo BEM-ESTAR (Controlo sobre as necessidades) Situação de compromisso da segurança Sentidos e percepção Mal-ESTAR (necessidades não controladas) Recuperação de situações de crises anteriores: capacidades e limites existentes e estratégias encontradas (ou não) (PASSADO) Avaliação das expectativas e antecipação dos recursos e encargos previsíveis (FUTURO) Avaliação dos limites e capacidades existentes (PRESENTE) INSTABILIDADE/RISCO Escolhas/Decisões PROCESSO DE TRANSIÇÃO E CUIDAR – Garantir condições para manutenção da vida/gestão do risco – Proporcionar condições para a narrativa/partilha de histórias de vida – partilha de significados e rituais Imersão Imersão Reavaliação das relações existentes para garantir satisfação das necessidades Meditação Reflexão Comunicação M O R T E Com os outros HETEROCUIDADO Gerir perdas SER CUIDADO Conflito nas relações Desorganização VULNERABILIDADE Confiança Mudança do padrão de relações existente (tempo/espaço) Consigo próprio AUTOCUIDADO Gerir ganhos SER CUIDADO Coerência nas relações Organização PODER V I D A 110 | Cuidar da Família ao longo da vida Este trabalho poderá contribuir não só para orientar a intervenção dos enfermeiros em famílias que apresentam contextos de cuidar de doentes em fim de vida, como, também, oferecer uma perspectiva global sobre o cuidar familiar, as suas dinâmicas e evolução no tempo. Estes aspectos são particularmente importantes para o enquadramento e definição da intervenção do enfermeiro de família no que concerne ao seu campo específico de acção. A relação simbólica das dimensões do tempo linear com as gerações presentes no ciclo de vida familiar pode ser particularmente útil para situar a direcção das dimensões de cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado), assim como diferentes combinações de poder e vulnerabilidade, graus de liberdade e responsabilidade e, ainda, imaginá-las em interacção com os processos cognitivos individuais. Esta conexão poderá também permitir localizar processos emocionais importantes na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros: família, sociedade, vida, etc. Pensar no cuidar como o elemento aglutinador do que se entende por família e considerar as suas dinâmicas do ponto de vista geracional (onde os vários intervenientes que interagem se situam em diferentes etapas de desenvolvimento/níveis de capacidade e com distintas relações com o tempo), poderá ser uma via para a compreensão mais alargada dos processos relacionais que ocorrem entre as pessoas que em determinado momento apresentam mais capacidade e as que apresentam mais vulnerabilidade. Além disso, esta perspectiva parece ser mais abrangente e inclusiva, na medida em que estes referenciais não estão restringidos por questões estruturais, sendo válidos para famílias que obedecem a uma estrutura tradicional ou não. Este estudo de caso forneceu também exemplos de não normatividade relativamente à cadência geracional previsível de cuidadores, designadamente: os episódios de cuidar do pai e da avó. Considerando a realidade social actual e o papel determinante que a família desempenha nos processos de desenvolvimento individual e das sociedades, torna-se evidente a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre as situações excepcionais do cuidar familiar que poderão constituir situações de risco e comprometer a integridade do sistema familiar. A problemática dos jovens cuidadores é disto um exemplo possível. Além do estudo das narrativas de cuidadores, a analise efectuada mostrou que poderá ser importante estudar as narrativas de quem está a ser cuidado por outros. A exploração do que significa ser cuidado poderá esclarecer, entre outros aspectos, os factores associados ao SPB (self-perceived burden). Conclusão |111 A importância de compreender as experiências vividas que podem contribuir para o processo contínuo de construção de sentido para cuidar não se limita às possibilidades que se podem abrir no domínio da intervenção que os enfermeiros dirigem para os outros, mas abre caminho para uma intervenção dirigida para si próprios: a construção das narrativas pessoais que dão sentido ao exercício profissional. Bibliografia Achterberg, J. 1991. Woman as Healer. Rider. London. 225 pp. Alarcão, M. 2006. (Des)Equilíbrios familiares. 3.a edição. Quarteto. Coimbra. 374 pp. Albom, M. 1999. Às terças com Morrie. Sinais de Fogo. 122 pp. Andrén, E., Elmståhl, S. 2005. Family Caregivers’ Subjective Experiences of Satisfaction in Dementia Care: aspects of burden, subjective health and sense of coherence. Nordic College of Caring Sciences. Scand. J. Caring Sci. 19: 157-168. Asimov, I., Silverberg, R. O Homem positrónico. Nébula. Publicações Europa-América. 196 pp. Ayres, L., Poirier, S. 2003. 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