Cuidar da Família ao longo da vida

Transcrição

Cuidar da Família ao longo da vida
Cuidar da Família
ao longo da vida
Catalogação recomendada
DURO, Susana
Cuidar da Família ao longo da vida / Susana Duro. – Lisboa : Universidade Católica Editora, 2013.
– 120 p. ; 23 cm
( Investigação )
ISBN 978-972-54-0372-3
I – Tít. II – Col.
CDU 316.356.2:616-083
616-083:316.356.2
© Universidade Católica Editora | Lisboa 2013
Edição: Universidade Católica Editora, Unipessoal, Lda.
Revisão Editorial: António Brás
Pré-impressão, impressão e acabamento: Europress, Lda.
Data: Janeiro 2013
Depósito Legal: 352131/12
ISBN: 978-972-54-0372-3
Universidade Católica Editora
Palma de Cima - 1649-023 Lisboa
Tel. (351) 217 214 020 | Fax. (351) 217 214 029
[email protected] | www.uceditora.ucp.pt
Susana Duro
Cuidar da Família
ao longo da vida
Lisboa
Universidade Católica Editora
2013
Índice
Nota Prévia 7
Prefácio9
Introdução 13
Capítulo 1 – Abordagem ao fenómeno e metodologia
1.1.Questões orientadoras
19
1.2.Critérios de selecção do cuidador a entrevistar
20
1.3.Procedimentos de colheita de dados
21
1.4.Procedimentos de análise
21
Capítulo 2 – Resultados da análise
2.1.Panorâmica sobre os eventos marcantes da narrativa
23
2.2.Cuidar da família ao longo do ciclo de vida
26
2.2.1. Cuidar em criança
27
2.2.2. Cuidar dos filhos
35
2.2.3. Cuidar da mãe
37
2.2.4. Cuidar da família alargada: percebendo o cuidar como necessidade
40
2.2.5. Cuidar da avó
61
Capítulo 3 – Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro91
Capítulo 4 – As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida:
o cuidar intergeracional99
Conclusão
107
Bibliografia 113
Nota Prévia
A evolução demográfica dos últimos anos tem levantado um conjunto de
preocupações a propósito do envelhecimento, tendo em conta a necessidade
de responder aos desafios que esta etapa da vida representa para as pessoas e
para a sociedade organizada.
A aposta crescente que tem vindo a ser feita na criação de redes de apoio
domiciliário, associada a um cada vez maior desenvolvimento dos cuidados paliativos, tem dirigido a atenção (e investigação) dos enfermeiros para questões
que se relacionam com a sobrecarga dos cuidadores familiares. No entanto, as
razões pelas quais muitos familiares escolhem prosseguir com uma assistência
muitas vezes penosa e exigente – mesmo até ao momento da morte – não têm
sido exploradas tão extensivamente. Torna-se então relevante aprofundar as
circunstâncias que podem estar presentes naquelas situações em que o cuidador apresente, ou tenha desenvolvido, um forte sentido para cuidar.
A investigação começou com a seguinte pergunta de partida: como se encontra sentido para cuidar de um familiar com doença incurável até ao momento da morte?
Este é um estudo de caso baseado na análise da narrativa de uma cuidadora
familiar. A cuidadora seleccionada estava inserida na base de dados de doentes acompanhados por uma equipa de cuidados continuados de um centro de
saúde e tinha cuidado da familiar até ao momento da sua morte. A selecção
ponderou a experiência da equipa relativamente aos cuidadores que ajudaram.
A análise mostrou uma história de vários episódios anteriores de cuidado,
que revelaram, em relação ao processo de tomada de decisão, três momentos
distintos ao longo do tempo: o cuidar por obrigação, o cuidar por escolha e o
cuidar como missão de vida.
O percurso de cuidar da cuidadora desenvolveu-se perspectivando um ideal
de cuidar da família ao longo da vida. Este modelo de cuidar da família, baseado na sequência de gerações e apoio mútuo – no contexto de um ciclo de vida
familiar tradicional – foi posteriormente analisado na sua relação simbólica
com o tempo, procurando perceber de que forma esta relação interfere com
processos da família e se relaciona com as alternâncias das relações entre poder
e vulnerabilidade que se estabelecem ao longo da vida.
Nota técnica da autora:
Para que fosse possível analisar as variações do discurso transcrito em verbatim e, além disso, cumprir com rigor os sons audíveis, foram adoptadas convenções de transcrição que irão surgir ao longo das citações do discurso da
cuidadora. Para uma melhor compreensão do leitor passam-se a listar:
(número) – Pausa no discurso traduzida em segundos.
PALAVRA – Aumento da amplitude da voz.
(paraverbal) – Descrição de possíveis aspectos da linguagem não-verbal/
/expressão pessoal relevantes.
Itálico – Discurso relativamente ao qual se referem as descrições do paraverbal.
Palavra – Frases emitidas com ênfase ou vigor.
Palavra (?) / texto (?) – Confinam transcrições incertas, incluindo a «melhor suposição» do transcritor.
Palav … – Palavra incompleta ou interrompida.
[texto] – Sobreposição do discurso.
{notas} – Aspectos relacionados com questões técnicas de gravação.
Palavra::: – Prolongamento de sons.
hhh – Inspirações audíveis.
Prefácio
O próprio título desta obra “Cuidar da Família ao longo da vida” sugere que
a reflexão que a antecede sob a forma de prefácio seja feita à volta de três conceitos fundamentais e estruturantes da própria obra: o cuidado, a família e a
vida.
Numa sociedade individualista como parece ser cada vez mais a atual,
o cuidado dos outros aparece como paradoxo e como esperança. Como paradoxo, porque cuidar exige uma atenção para fora de si, centrada no outro, para
além do que pode ser o meu próprio interesse. Exige que me comprometa,
leva-me a agir, apela à minha solicitude na convicção que posso fazer sempre
algo mais. E a solicitude exige-me conhecer as necessidades daquele que cuido, porque devo fazê-lo no sentido do seu próprio interesse. E esta tarefa não é
fácil. Por isso é também esperança, porque é o cuidado que mantém a vida e,
em cada instante, nos é dado testemunho de que os seres humanos continuam
a cuidar uns dos outros.
E a família, ontem como hoje, qualquer que seja a sua dimensão, é o lugar
privilegiado do cuidado. Porque o cuidado obriga à partilha e à participação
no caminho do outro. Um caminho de tolerância pelo ritmo de cada um, pelo
modo de ser e crescer individual, no amor que une os diferentes membros
num destino comum, criando oportunidades para aprender e cuidar mais.
Porque podemos escolher os amigos, mas a família está sempre lá, para cuidar
e ser cuidada. E aqui lembramos Nietzsche: «…quem promete a alguém amá-lo sempre, […] promete algo que não está em seu poder; mas o que pode
perfeitamente prometer são aquelas ações que, na verdade, são geralmente as
consequência do amor […], mas que também podem emanar de outras
razões1». Por isso o cuidado surge também como obrigação, como promessa a
cumprir sem opção. Mas é sobretudo uma vontade assumida de estar ali, fazendo do gesto e do afeto a razão de ser família. De ser família ao longo da vida.
Primeiro, ser família onde se nasce e se é cuidado, se cresce e mais cedo ou
mais tarde se participa no cuidado aos outros. Por vezes muito cedo, por vezes
sempre. E neste estudo se dá conta das situações que levam as crianças a cuidar dos outros, na família, lembrando fatores que intervêm para a construção
desta realidade: seja a privação económica da família, a inexistência de redes
1
Nietzsche, F. – Humano, Demasiado Humano. &58.
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de suporte, a monoparentalidade ou separação dos pais, ou a existência de
doença crónica, entre outros. Em muitas circunstâncias as crianças cuidam dos
pais, dos irmãos e dos idosos, seja na satisfação das suas necessidades pessoais
ou seja no serviço doméstico. Como enfermeira, a autora manifesta sua preocupação com as consequências que esta atividade tão precoce na vida de algumas crianças possa ter na sua saúde, numa fase posterior, mas não encontram
eco na literatura científica. Como refere, aspetos positivos e negativos têm sido
identificados, mas os negativos parecem mais associados aos problemas que
estão na origem da necessidade de cuidado por parte dos familiares mais velhos, que à própria atividade de cuidado em si. Pelo contrário, a experiência
pode ajudar a crescer em solidariedade e responsabilidade se acompanhada e
compreendida.
Depois, ser família onde a maternidade surge como situação particular de
cuidado inquestionável. Não que algumas mães não sejam incapazes de cuidar,
mas porque o dever de cuidar surge da concretização de um querer, associado à
decisão de ter filhos, embora se apresente simplesmente como aquilo que é
socialmente esperado. É desta forma que o cuidado de um filho «é fácil» simplesmente porque não é questionável, afirma a autora.
E por fim, de ser família onde os mais velhos, antes suporte e exemplo,
adoecem e se apresentam vulneráveis, carecem de cuidados que nem sempre
a família pode superar. Na verdade, este é hoje o maior desafio da sociedade
em que vivemos. Em que o dilema de muitas famílias, que não podem cuidar
dos seus e nisso experimentam o sofrimento associado ao não poder ser família,
coexiste com o escândalo do abandono dos mais frágeis pelas famílias que
o não são. Cuidar da mãe que adoece e da avó no fim da vida, emerge, na
narrativa em estudo, como um imperativo particular que concilia o que é
pensado como obrigação e o que é sentido com uma necessidade individual
de ação.
Na narrativa em estudo, cuidar aparece também como uma forma de cuidado pessoal, como algo que é bom para aquele que cuida. E porque cuidar é
bom para mim, é nisso que qualquer decisão se fundamenta. Sem dúvida ou
hesitação. É escolha. É uma necessidade sentida a que é preciso dar expressão
sem espaço para a incerteza. É aqui que a conclusão de que a ação de cuidar do
outro é determinada por algo que é «bom para si» leva a autora a um alargado
conjunto de questões éticas. Qual o valor ético da ação de cuidar motivada por
interesses que muitos considerariam egoístas? Qual a perspetiva ética sobre um
cuidar por interesse próprio, que é simultaneamente cuidado de si? Apresentando-nos a perspetiva de diversos autores, importa considerar que os compor-
Prefácio
|11
tamentos altruístas não necessitam de ser completamente não recompensados.
Talvez baste que se focalizem no outro e que a sua razão primeira seja a intenção de aliviar o sofrimento ou garantir o bem do outro a quem o cuidado é
dirigido. E diariamente verificamos que a ação de muitos cuidadores está imbuída de altruísmo e que, em pequenos gestos, desenvolvem uma ação tão
significativa para si próprios quanto essencial para a manutenção da família e
da sociedade. Esta interação pode parecer paradoxal: ao mesmo tempo que
assume a fragilidade do outro ser humano e a inevitabilidade do seu sofrimento, cuidando dele, o cuidador confronta-se com a possibilidade real de não ser
capaz de suprir as suas próprias necessidades e, nesse cuidado ao outro, procura formas de cuidado de si. E encontra um sentido para a sua vida.
Por fim, a autora analisa ainda como o sentido de cuidar da família ao longo
da vida precisa, em si, de ser também cuidado. Porque os limites individuais
não permitem ocultar as necessidades de quem cuida. E as tarefas de autocuidado não podem ser descuidadas. A necessidade de apoio contínuo na interação familiar quando não satisfeito pode originar isolamento social e sensação
de desamparo, nem sempre aliviados pelo sentido de coerência interior, ainda
que o cuidador sinta que faz o que deve, e que o deve porque quer.
E é assim que, mesmo carecendo de cuidados, quem sempre cuidou e percebeu a importância desta ação para quem cuida, continua a sua tarefa de
cuidar deixando-se cuidar por outros, numa oferta generosa de si ao cuidado.
As experiências de cuidar de si e dos outros no passado, podem exercer uma
grande influência sobre a forma como é vivida a situação de receber cuidados
na dependência ou velhice. Como refere a autora, permitir-se ser cuidado por
outros é frequentemente uma estratégia de continuar a contribuir para o
desenvolvimento e realização pessoal de quem cuida.
Neste estudo, a partir da análise da narrativa de uma pessoa, que foi criança, mulher e mãe, filha e neta, amiga e solidária em diferentes ou simultâneas
fases da sua vida, a autora tenta perceber o espaço que o cuidado tem tido e
continua a ter na base da construção social que é a família, concluindo que as
dinâmicas de cuidado acabam por se tornar reveladoras da força das relações
existentes entre os diferentes elementos que a compõem.
Ao longo desta obra percebemos que cuidar é tanto a razão quanto o produto da família e que se encontra intrinsecamente unido aos processos de desenvolvimento do ser humano, no que tem de mais humano – a sua relação
com o outro mais frágil. É assim facilmente compreendida a relação estabelecida entre a família e os profissionais de saúde que lhe prestam cuidados no
domicílio: uma relação de confiança em que o cuidado é compreendido e par-
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tilhado entre a família e os enfermeiros que, como a autora, partilham o
mesmo espaço de ação e significado.
Este é o estudo de uma enfermeira que, para além dos resultados obtidos,
coloca a ênfase num método com grande potencial para o conhecimento que
a enfermagem traz hoje à comunidade académica e ao trabalho multiprofissional em saúde. O resultado final contribui para uma perspetiva global sobre o
cuidar familiar, as suas dinâmicas e evolução no tempo. Não podemos deixar de
concordar com a autora, quando evidencia estes aspetos como particularmente importantes para o enquadramento e definição da intervenção do enfermeiro de família no seu campo de ação específico.
Cuidar da Família ao longo da vida é um estudo, mas é também uma perspetiva única e muito específica do fenómeno estudado, na medida em que contêm uma direção intencional, e na escrita simultaneamente científica e poética
com que a autora nos brinda, cria pontes simbólicas entre o passado, o presente e o futuro da pessoa em cuja narrativa se baseia e constitui um caminho para
o esclarecimento do mistério que é o cuidado – e embora acreditemos que o
cuidado permanecerá sempre um mistério, ler este livro permite desocultá-lo o
suficiente para começar a percebê-lo!
Margarida Vieira
Dezembro 2012
Introdução
No ponto de partida para um percurso de investigação, as questões sobre
a pertinência do estudo e motivações pessoais são necessárias, mas, também,
praticamente inevitáveis.
Neste estudo em particular, as respostas encontram-se no ponto de convergência de duas realidades a diferentes níveis: por um lado, um contexto social
dominado por um crescente número de pessoas que necessitam de cuidados de
saúde prolongados (e uma cada vez maior necessidade de suporte da família e
da comunidade); por outro, um percurso profissional que passou pelo cuidado
a doentes idosos, oncológicos e, posteriormente, pela prestação de cuidados
paliativos no domicílio. Este conjunto de experiências proporcionou um confronto constante com a perspectiva do fim de vida em diferentes contextos
assistenciais.
Relativamente aos idosos, Satow (2005) aborda o problema considerando
uma dicotomia existente entre os problemas individuais e as questões sociais:
«a questão social é o aumento das pessoas idosas […] os problemas são as
experiências daqueles de nós que têm de cuidar dos pais idosos numa sociedade que não se preparou para os cuidar – apenas assegura a sua longevidade»
(p. 249).
A noção de que a enfermagem acompanha o ser humano desde o nascimento até à morte pressupõe uma consciência das transformações que decorrem da passagem do tempo (o crescimento e o envelhecimento), mas também
das que podem decorrer de experiências de crise e que podem acontecer em
qualquer das etapas da vida. Assim, a morte de um ser humano pode constituir um momento difícil para a sua família e, nesta perspectiva, ela deverá ser
um foco de atenção dos enfermeiros. Se pensarmos que esta crise pode atingir
membros da família em diferentes etapas do seu ciclo vital, rapidamente deduzimos o grau de complexidade que este acompanhamento pode implicar. Há,
por isso, que ter presente, com Wright (2005), que «[o] sofrimento não afecta
unicamente a pessoa doente. A doença é um assunto de família e todos os
familiares sofrem» (p. 43).
Percebe-se, assim, que as questões sobre a morte e o morrer possam começar pela necessidade de compreender as transformações que ocorrem na
pessoa (que está a morrer), mas que naturalmente evoluam para a necessidade
de compreender as que ocorrem no seio da família que opta por cuidar do
doente em fase terminal. Este contexto pressupõe (quase sempre) a introdu-
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| Cuidar da Família ao longo da vida
ção de uma variável que o torna muito particular: a existência de um ou mais
cuidadores com um passado de ligação entre eles e a pessoa que está a morrer.
Nesta perspectiva, os cuidados de enfermagem desenvolvem-se de forma mais
alargada, tal é a importância que a família e a comunidade assume na promoção do bem-estar no contexto domiciliário.
O envolvimento com doentes em fim de vida e suas famílias, que buscam
respostas para o que experimentam, expõe dificuldades para ajudar e dúvidas
sobre o sentido da morte, do sofrimento e, inevitavelmente, sobre o sentido
da vida.
Durante a minha prática profissional, tenho tido oportunidade de observar cuidadores em situações de sofrimento extremo durante o cuidado ao familiar doente e, mesmo assim, querendo prosseguir nesse acompanhamento.
Perguntei-lhes e perguntei-me várias vezes sobre o sentido que estava subjacente a um agir que acarretava tantas dificuldades. É desta reflexão que deriva
a pergunta que me lançou para esta pesquisa: como se encontra sentido para
cuidar de um familiar com doença incurável até ao momento da morte?1
A pesquisa na base de dados EBSCO com as palavras-chave meaning e care
revelou que, na generalidade, os artigos abordam as questões do sentido da
vida inseridas na discussão sobre a espiritualidade.
No início da investigação foram isolados os conceitos-chave (Flick, 2005)
que iriam constituir a base da pesquisa. A pergunta de partida foi decomposta
para tornar evidentes os elementos fundamentais: as pessoas (cuidador familiar e doente), a procura de sentido e o cuidar.
Questões relacionadas com a procura de sentido, e de que forma ele pode
ser encontrado mesmo em situações de sofrimento, constituem a base das
ideias já desenvolvidas por Viktor Frankl (1986) e, para a disciplina de enfermagem, torna-se particularmente relevante o desenvolvimento de uma abordagem assente no paradigma de cuidar.2
Kahana et al. (2005) levantam questões semelhantes e referem-se à insuficiência de
estudos sobre o porquê de cuidar: «[i]n addition to questions related to the who, when,
how and what of caregiving, a relatively neglected but important background consideration involves the why of caregiving. What are the motivational bases for getting
involved in the provision of costly assistance to others?» (p. xviii).
3
Vide, por exemplo, Skaggs B. G. e Barron C. R. (2006), que, numa análise conceptual
2
da procura de sentido associada a acontecimentos negativos, exploram os conceitos
de sentido global e sentido situacional e a relação entre eles, concluindo que:
«[n]urses are in a key position to assist people through negative events. The process
of searching for meaning provides a solid foundation for the development of nursing
Introdução
|15
Considerando que a visão ética do homem também o vê transformado pelos
seus actos, parece fazer sentido um olhar aproximado sobre o processo transformativo, que pode decorrer, não só da proximidade com a doença e morte do
familiar (situações de sofrimento), como também das situações que decorrem
da prestação do cuidado propriamente dito. A pesquisa revelou a existência de
pontes que ligam as ideias desenvolvidas por Frankl (1986) e Watson (1999). 3
A exploração da narrativa permitiu descortinar que circunstâncias foram
consideradas relevantes nos vários episódios de cuidar relatados pela cuidadora e, ainda, perceber de que forma os sentidos atribuídos ao cuidar foram
evoluindo ao longo do seu ciclo de vida.
Uma panorâmica sobre os aspectos significativos e possibilidades simbólicas
do conteúdo narrado permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva sobre a
evolução das dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida familiar e, também, analisar de que forma essa evolução poderá representar uma via importante para a aprendizagem das dinâmicas relacionais necessárias em situações
de aquisição ou perda de capacidades (poder ou vulnerabilidade) naturalmente presentes na vida familiar.
interventions to assist individuals through difficult times. Research is needed to develop
nursing interventions based on the process of the search for meaning, as well as measures reflective of the search for meaning».
4
Para esta autora, cuidar é «um meio de progresso onde um indivíduo se move em direcção a um elevado sentido do ser e de harmonia com a sua mente corpo e alma» (p. 122).
Esta concepção sobre o cuidar encontra paralelos com a visão de Florence Nightingale
(Macrae, 2001) sobre a enfermagem e o que esta considerava ser o propósito da humanidade.
Capítulo 1
Abordagem ao fenómeno e metodologia
Este estudo é um estudo de caso (Bogdan e Biklen, 1994) que consistiu na
análise da narrativa de uma cuidadora familiar.
Tem sido crescente a importância que se tem vindo a atribuir à narrativa
como abordagem terapêutica5 e às histórias sobre situações de cuidar no desenvolvimento da enfermagem como disciplina (Boykin e Schoenhofer, 1991; Latimer 2003; Sakalys 2002, 2003). No contexto do ensino, discute-se também
sobre a melhor forma de promover as competências dos alunos de enfermagem
para a narrativa6. Falamos não só de uma competência a nível interpretativo
(da narrativa de outros) mas também a nível da execução (organização de
uma narrativa sobre si próprio). Estas questões remetem para a necessidade de
olharmos para as diferentes perspectivas da narrativa: o conteúdo, o processo
e as competências para narrar.
A utilização da narrativa como método de investigação para aquisição de
conhecimento na enfermagem e teorização é actualmente o centro de uma
discussão alargada.
Num artigo em que discute uma intervenção terapêutica baseada nas narrativas das
pessoas doentes sobre a sua doença, Sakalys (2003, p. 231) cita Taylor (2001) para
ilustrar esta ideia:
«[s]tories link past, present, and future in a way that tell us where we have been, where
we are, and where we could be going… [they] turn mere chronology, one thing after
another, into the purposeful action of plot, and thereby into meaning… if nothing is
connected, then nothing matters. Stories are the singles best way humans have for
accounting for our experience. They help us to see how choices and events are tied
together, why things are and how things could be».
A autora explora o poder terapêutico da narrativa e a possibilidade que cria para um
aumento da consciência de si. Para esta autora, no processo de reflexão envolvido podem
ser descobertos padrões na experiência, assim como explicação, sentido e coerência.
6
Sobre este assunto, Sakalys (2002) defende a utilização de literatura ficcional e
autobiográfica no ensino de enfermagem (pedagogia literária) como uma primeira forma
de entender as experiências de vida dos doentes e de proporcionar o desenvolvimento
de capacidades essenciais de pensamento dos alunos (p. 386). A autora desenvolve
modelos para aplicação da narrativa que se relacionam com o desenvolvimento das
competências textuais: leitura, interpretação e crítica.
Boykin e Schoenhofer (1991) defendem que «as histórias oferecem uma abordagem
que ajuda no enraizamento da base epistemológica da disciplina de enfermagem na sua
ontologia» (p. 248).
5
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| Cuidar da Família ao longo da vida
A narrativa enquadra-se no conjunto de abordagens qualitativas que permitem analisar as experiências subjectivas vividas pelas pessoas. Bingley et al.
(2008) salientam a importância de distinguir entre análise qualitativa aplicada
à narrativa e a narrativa como método. Para alguns autores, ela é assumida inequivocamente como uma via de desenvolvimento para a profissão (Boykin e
Schoenhofer, 1991; Gadow, 1999), para outros (Frid et al., 2000), a análise crítica sobre o conceito de narrativa e a reflexão sobre o papel que pode desempenhar na disciplina de enfermagem estão ainda no início quando comparados
com as ciências sociais.
Na literatura percebe-se uma grande variedade de perspectivas sobre o
conceito de narrativa e sobre a forma de utilização desta como método para a
investigação (e. g.: Gadow, 1999; Frid et al., 2000; Kelly e Howie, 2007; Bingley et al., 2008). Por exemplo, quando Bingley et al. (2008) caracterizam os
métodos narrativos de investigação como aqueles que «têm como objectivo
explorar os sentidos dentro de narrativas individuais e obter uma perspectiva geral das experiências subjectivas» e os distinguem dos restantes métodos
qualitativos pelo facto de «só lidarem com histórias (sobre qualquer forma)»,
estimulam questões semelhantes às que foram levantadas por Frid et al. (2000),
relativamente ao que se entende por narrativa7, não deixando de evidenciar o
facto de os dois termos serem usados muitas vezes de forma indiscriminada.
Frid et al. (2000) chamam a atenção para a diferença entre narrative e a designação
comum em inglês de stori-telling. A primeira consiste num relato de acontecimentos
experimentados pelo narrador; a segunda na leitura repetida de uma história por outra
pessoa que não o narrador. Latimer (2003) explora também os conceitos de história e
narrativa.
Ponderando o quadro de referência proposto por Gadow (1995; 1999) podemos também
perspectivar a narrativa como um processo relacional dinâmico – narrativas cuidativas
(caring narratives) ou de análise – narrativas de cuidar (narratives of caring).
7
Ao abordar a narrativa e a aquisição do conhecimento em enfermagem Gadow
(1995) recorre a uma metáfora aludindo ao tipo de conhecimento local que um
explorador obtém de uma região e ao domínio da região por um colonizador (que
se apropria dela mas não compreende os significados que encerra). A narrativa,
conforme perspectivada pela autora, é comparada ao explorador que tenta interagir
com os habitantes e compreender o que significa para eles habitar aquele local.
Discute de que forma uma busca constante da disciplina de enfermagem pelo
conhecimento objectivo pode revelar uma necessidade de apropriação e controlo:
«what do we want from knowledge? […] we want to order the world, to make sense
of the it in the knower’s terms, to examine it in safety without the danger of being
overwhelmed»; e afirma que a enfermagem pode escolher vias que lhe permitam
envolvimento e compreensão do que significa para as pessoas as experiências que
estão a viver.
Abordagem ao fenómeno e metodologia |19
A análise de Frid et al. (2000) e a sua abordagem sobre as narrativas na filosofia
de Paul Ricoeur revelou-se particularmente útil no desenvolvimento deste estudo. Os autores propõem como base metodológica possível a teoria narrativa de
Ricoeur e as suas dimensões de interpretação, tempo, acção e ética no desenvolvimento do conhecimento em enfermagem. As narrativas contêm direcção, criam
pontes simbólicas entre o passado, o presente e o futuro da pessoa e constituem
um caminho para o mistério, a criatividade e as imagens carregadas de símbolos.
Esta pesquisa não perspectiva a utilização da narrativa como método, porém foram consideradas as suas dimensões na construção da pergunta generativa e nos procedimentos de análise.
Este estudo poderá também contribuir para o debate sobre o papel da narrativa na disciplina de enfermagem e sobre as suas possibilidades no âmbito da
investigação (Flick, 2005).
Frid et al. (2000) referem-se a Krish (1996)8 para referir que «a utilização
da narrativa como ponto de partida pode ser útil para enfatizar as dimensões
espirituais do cuidado de enfermagem» (p. 696).
Considerando a problemática em estudo, a utilização dos componentes da
narrativa conforme descrita por Frid et al. (2000) poderá contribuir para uma
análise aprofundada de possíveis significados inerentes, sentidos atribuídos e
simbologia associada à experiência de cuidar de um familiar até ao momento
da morte, na vida e para a vida do cuidador.
1.1. Questões orientadoras
Foram várias as questões prévias que orientaram a pesquisa no ponto de
partida para o desenrolar da narrativa:
a) Qual é o contexto em que se inicia a acção de cuidar?
b) Quais os sentidos que são atribuídos ao cuidar pelo cuidador?
c) Que actividades são relacionadas com o cuidar do outro?
d)Que contextos favorecem a construção ou desconstrução do sentido
durante a acção de cuidar?
e) Que tipo de transformações ocorreram na vida e na pessoa do cuidador
durante o cuidado e após a morte do familiar?
8
Kirsh B. 1996. A narrative approach to adressing spirituality in occupational therapy:
exploring personal meanings and purpose. Canadian Journal of Occupational Therapy.
63: 55-61.
20
| Cuidar da Família ao longo da vida
Para os efeitos deste estudo considera-se cuidador familiar a pessoa que
se co-responsabiliza (juntamente com a equipa de saúde) pela prestação de
cuidados a outra doente no domicílio e com a qual tinha uma relação anterior
ao processo de doença.
Para a construção da questão generativa da narrativa foram consideradas as
questões desenvolvidas por Frid et al. (2000) e por Flick (2005) relativamente
às narrativas entre a biografia e o episódio. Foram considerados aspectos relacionados com as circunstâncias presentes consideradas relevantes (da perspectiva do narrador), a evolução da acção no tempo e a decisão de cuidar até
ao momento da morte.
Ao colaborador (C1) foi colocada a seguinte questão:
«Gostaria que me contasse, com os pormenores de que se lembrar, as
circunstâncias da descoberta da doença do seu familiar, o que aconteceu
depois e como ficou a cuidar dele até ao momento da sua morte.»
1.2. Critérios de selecção do cuidador a entrevistar
Considerando a problemática que se pretendia analisar, foram estabelecidos os seguintes critérios para a selecção do cuidador a entrevistar:
a) Existência de relação prévia entre cuidador e doente (familiar);
b) O cuidador ser o principal responsável pelos cuidados prestados e pela
articulação com a equipa de saúde responsável pelo acompanhamento;
c) O cuidador ter manifestado forte motivação para cuidar do familiar, inclusive até ao momento da morte no domicílio;
d) Inexistência de registos de ocorrência de luto patológico no cuidador
após a morte do familiar;
e) Inexistência de contacto prévio com a investigadora.
A selecção ponderou também a experiência da equipa que a acompanhou e
o conhecimento abrangente que possuíam sobre as características dos cuidadores
que apoiavam no domicílio, nomeadamente, sobre as suas capacidades para narrar.
A cuidadora seleccionada, além de corresponder aos critérios de inclusão
definidos previamente, foi unanimemente referenciada pela equipa como possuidora de competências e forte sentido para cuidar da sua avó, tendo também
já cuidado de outros familiares anteriormente.
A cuidadora/colaboradora (C1) foi uma mulher adulta que mantinha
uma relação familiar (neta) com a última pessoa que cuidou e com quem
Abordagem ao fenómeno e metodologia |21
partilhava habitação juntamente com outros familiares. Mais pormenores
que poderiam caracterizar o colaborador não serão expostos no respeito
pela garantia de confidencialidade dada relativamente à identidade da participante.
1.3. Procedimentos de colheita de dados
Foi fornecida informação sobre os objectivos deste estudo e pedida autorização formal a um centro de saúde, no sentido de ser possibilitado o acesso à
base de dados de cuidadores em contexto domiciliário apoiados pela equipa de
cuidados continuados nos últimos cinco anos.
Depois de seleccionada a colaboradora, foi realizado um primeiro contacto
telefónico para apresentação da investigadora, explicação dos objectivos do
estudo, critérios de selecção, pedido colaboração e marcação de data para o
desenrolar da narrativa.
A colheita de dados verbais realizou-se em local e hora designados pela
cuidadora, após a clarificação e validação dos objectivos e procedimentos do
estudo – que exigem um compromisso de confidencialidade – e assinatura de
um documento formal para autorização da gravação em áudio.
A narrativa foi posteriormente transcrita para a forma de verbatim que
constituiu o conjunto de dados verbais utilizados para análise.
1.4. Procedimentos de análise
Numa primeira fase, foram executadas leituras simples da narrativa, transcrita em forma de verbatim, com o objectivo de interiorização e familiarização
com o conteúdo narrado.
Frid et al. (2000) referem, fundados no pensamento de Ricoeur, que
«não pode haver só um método de trabalhar com a análise estrutural. Se
isto leva ou não a um novo entendimento e interpretações produtivas depende da criatividade do investigador» (p. 699). Sugerem a clarificação das
partes da narrativa – mostrando como estas unificam o todo –, organização
de temas, análise semântica e, ainda, a procura do enredo e a direcção da
narrativa. Explicam também que: «para obter uma interpretação compreensiva, o investigador deve ser capaz de criativamente ir além da análise
estrutural» (p. 699).
22
| Cuidar da Família ao longo da vida
Uma primeira análise teve como objectivo expor os eventos considerados
marcantes9 – na perspectiva da cuidadora – directamente relacionados com
os contextos do cuidar familiar que desenvolveu (Gauer e Gomes, 2009). Esta
análise permitiu não só evidenciar momentos que poderão ter sido determinantes como também perceber de que forma se encontram relacionados uns
com os outros e revelam, só por si, a estrutura temporal da narrativa (passado,
presente, futuro) e as competências para narrar de C1.
O texto foi posteriormente analisado em profundidade sob várias perspectivas para se revelarem conceitos emergentes, acções, detalhes de circunstâncias, valorações, sequências de eventos (reais e narrados), sentimentos, metáforas, significados e possibilidades simbólicas.
Os vários episódios de cuidar foram considerados e analisados isoladamente, respeitando a sequência temporal dos acontecimentos e a sua relação com
a biografia da cuidadora.
Algumas unidades de análise foram agrupadas em temas mais abrangentes, na medida em que apresentavam transversalidade e representavam um fio
condutor comum a vários episódios da narrativa (Frid et al., 2000), se enquadraram na discussão ética, ou derivaram da análise de conceitos, significados
e associações entre eles.
A pesquisa e revisão bibliográfica realizadas não têm como objectivo validar os significados gerados, mas o de permitir alargar o horizonte sobre aspectos que neste trabalho se optou por desenvolver ou que permitem uma melhor
compreensão dos percursos interpretativos.
Souza e Barbieri (2001) num estudo sobre eventos marcantes na história de vida
referem que «a essencialidade de um evento marcante está na percepção, pelo narrador,
do significado de uma alteração momentânea ou fundamental de vida, acompanhada de
emoções, sentimentos e análise de consequências».
Num estudo mais recente, utilizando o QMA (questionário de memória autobiográfica)
para caracterizar a capacidade de recordar eventos pessoais específicos, Gauer, G., e
Gomes, W. (2009) apontam para «uma articulação entre as variáveis de julgamento que
caracterizam o fenômeno de memórias vívidas – importância e intensidade emocional
do evento, ensaio repetido, conseqüências pessoais, e caráter incomum do evento – e a
vivacidade da experiência fenomenal, como determinantes da atribuição de relevância
pessoal a um evento».
9
Capítulo 2
Resultados da análise
Na resposta à pergunta de partida a narrativa iniciou-se com a descrição dos
cuidados prestados à avó. Foi nesse contexto que recebeu suporte da equipa
de saúde através da qual se efectuou o contacto para participar neste estudo.
A referência a episódios anteriores de cuidar surge por sua iniciativa e,
quando questionada directamente sobre eles, a cuidadora desencadeou o relato cronológico dos acontecimentos.
A análise dos eventos marcantes que se segue é o resultado de várias leituras simples efectuadas e pretende tornar evidentes aspectos transversais que
possam, eventualmente, contribuir para fazer emergir o fio condutor da narrativa.
2.1. Panorâmica sobre os eventos marcantes da narrativa
Relativamente a esta cuidadora em particular, e embora a questão de partida incidisse sobre o cuidar do familiar, a resposta foi imediatamente direccionada para a história de vida pessoal da cuidadora:
«… é assim, os pormenores que eu me lembrar, ahh, eu vou tomar como ponto
de partida a vinda para Portugal, porque eu não vivia neste país. Estou no país
há 17 anos, feitos o ano passado em Setembro… ahh, vivi a maior parte da minha vida na África do Sul, saí deste país com ano e meio ahh, foi lá que estudei,
realizei a minha vida, casei, tive as filhas».
A narrativa transforma-se imediatamente num relato autobiográfico.
A cuidadora recorre imediatamente à contextualização do acontecimento no
passado para, a partir daí iniciar uma sequência temporal e a sua organização
para a construção de sentido.
A mudança de país constituiu um marco do passado a partir do qual outros
acontecimentos se organizam. Um claro exemplo deste tipo de organização de
acontecimentos é visível na descrição sequencial dos antecedentes da doença
da avó:
«Teve os seus problemas, pronto. Ela foi operada à vesícula na África do Sul,
ahh, foi operada à bexiga […] ahh, e é assim, todas as vezes que ela necessitava
de acompanhamento médico era eu que ia com ela. Ahh, na altura na África
24
| Cuidar da Família ao longo da vida
do Sul por causa do problema da língua, de comunicar […] ela teve aqui em
Portugal, ahh, dois episódios graves de AVC, ahh, e:: ela era hipertensa, sofria
de angina de peito.»
Alguns episódios marcantes são evocados e assim denominados pela própria
cuidadora. Durante a descrição dos cuidados que prestou ao pai, a cuidadora
explica:
«uma coisa que me recorda que me marcou… eu é que tinha de fazer os curativos… e tinha um cheiro horroroso […] depois de tirar aquela carne esponjosa… com uma cor bastante amarelada… era terrível, e fazer penso quase,
tipo… eu acho que lhe chamavam mechas na altura, em que se tinha de dobrar
as gazes e encher aquele buraco todo, pronto… ahh… no outro dia, ou no mesmo dia, se fosse necessário, que nós víssemos que o penso era necessário fazer,
quem os fazia era eu. Então eu fui cuidadora com a idade mais ou menos dos
12 anos em diante».
No futuro, durante os cuidados prestados à mãe, a cuidadora percebe o
mesmo em relação à própria filha:
«“eu não vou conseguir tar-lhe a tirar a bomba do cateter para colocar a nova
sozinha, quem é que me vai ajudar?” que eu não tinha ninguém que me ajudasse. Foi a minha filha que na altu— mais nova, que na altura tinha 7 anos
que dizia: “ó mãe se não tens quem te faça, eu ajudo-te” mas marcou-a. Ahh…
Ahh… e tal como a minha mãe pediu, pronto… ela teve sempre em casa,
ahh… não foi fácil. Não, não foi».
Este episódio marcante é o culminar da descrição dos cuidados prestados
à mãe e encerra o episódio de forma muito semelhante à forma como os cuidados
ao pai foram também expostos. O que antecede este momento prende-se com a
explicação das circunstâncias que a ele conduziram e, perante a recuperação do
acontecimento, surge uma nova análise de circunstâncias e consequências à luz
dos conhecimentos e experiências mais actuais da cuidadora:
«Eu acho que é importante na área da saúde, ahh… haver equipas devidamente qualificadas para darem apoio a doentes e não só… a familiares que sejam
cuidadores de doentes, especialmente em fase terminal porque… é assim, eu
acho que a minha mãe, se a minha mãe fosse viva hoje, ela não teria passado,
ahh… claro que ela tinha falecido na mesma, eu não questiono isso, já não a
tinha cá na mesma mas é assim, eu acho que o sofrimento físico e não só…
psicológico não era tão grande, nem para ela, nem para mim, se nós tivéssemos
tido a sorte de ter sido acompanhadas. Um acompanhamento, por exemplo,
como eu tive com a avó.»
Da mesma forma, reportando-se ao cuidado prestado ao pai durante a sua
adolescência, a cuidadora analisa os seus limites na altura e consciencializa
Resultados da análise |25
o seu processo evolutivo e a aquisição de competências ao longo do tempo
(Sakalys, 2003):
«isto sou eu a falar com 14 anos e pensando agora, analisando, hoje aquilo que
eu me apercebi… aquilo que não me apercebi na altura».
Percebe-se então que esta recuperação do passado poderá dar origem a uma
compreensão mais alargada dos factos ocorridos onde são introduzidas novas
variáveis do presente que contribuem para a reformulação da sua história.
Observa-se também que os movimentos temporais da narrativa não representam os movimentos temporais reais das experiências vividas, que são permanentemente reinterpretadas.
Os episódios marcantes caracterizam-se por acontecimentos que proporcionaram momentos de tomadas de decisão, hiperestimulação sensorial, emoção, revelação e inspiração:
«a luz que eu digo que não hei-de esquecer aquele brilho, brilho que foi partilhado na hora da partida. Eu acho que foi algo que me iluminou […] só com a
partida da minha avó é que eu disse: “mas é essa a tua missão”».
Apesar de, na literatura consultada, ser praticamente ausente a discussão
do papel específico que os pensamentos inspiradores poderão desempenhar
na vida das pessoas, a cuidadora sinaliza-os como um evento marcante que é
transmitido à filha (a quem também foi diagnosticada uma doença oncológica)
num contexto de apoio e suporte:
«é assim: eu li uma vez uma frase que me marcou e que eu digo sempre à minha
filha: ahh… “um vencedor não é aquele que ganha tudo, que vence todas as
batalhas, é aquele que cada vez que fracassa se levanta e continua a ir à luta, e
aprende através dessa luta”».
Não é objectivo deste estudo uma análise extensiva dos factores determinantes e estruturais dos eventos marcantes na narrativa. Porém, estudá-los no
contexto de análise de uma narrativa sobre o cuidar parece-me particularmente relevante do ponto de vista ontológico e epistemológico. Ao pensar nas capacidades humanas envolvidas associadas à memória autobiográfica e no papel
da narrativa no desenvolvimento de um conhecimento do ser humano sobre
si próprio, facilmente surgem questões relacionadas com as consequências da
afectação cognitiva e com os factores que poderão contribuir para estimular o
desenvolvimento de competências a esse nível.
Da análise efectuada, os aspectos abordados relativamente aos eventos
marcantes apresentam alguma transversalidade na transição ou mudança.
A mudança da pessoa e em determinado aspecto da vida da pessoa. Nesta nar-
26
| Cuidar da Família ao longo da vida
rativa, por exemplo, ocorreram mudanças espaciais (mudança de país), mudanças que decorreram da acumulação de saberes e mudanças internas na sua forma
de sentir e perspectivar a vida que resultaram da vivência emocional intensa, da
estimulação dos sentidos, da inspiração e da revelação que ocorreu durante o
cuidar do outro.
Percebe-se um movimento interior entre passado, presente e futuro. Esta ligação
permanente, existente entre as diferentes dimensões do tempo, transforma a narrativa numa forma de transcendência temporal não passível de concretizar materialmente considerando os limites físicos do ser humano. Por outro lado, esta
contínua interacção temporal exige a reavaliação e reformulação constante de
acontecimentos passados e expectativas futuras perante estímulos do presente.
Além de ser importante considerarmos as estruturas cognitivas que poderão
estar associadas à memória autobiográfica podemos discutir as formas observáveis
deste movimento interior nas narrativas dos cuidadores. No discurso desta cuidadora observa-se que esta avalia no presente decisões tomadas no passado:
«foi isso que eu achei que devia de fazer e: ainda hoje acho que foi a decisão
certa».
Esta avaliação decorre de um processo já consciente em que analisa e compara as circunstâncias da acção em dimensões do tempo distintas:
«futuramente, se tiver que tomar uma decisão perante uma situação idêntica
já se vai lembrar que da outra vez tomou a decisão errada e vai dizer assim:
“daquela vez, perante a mesma situação, uma situação semelhante, o que é que
tu fizeste?”».
Observa-se um determinado controlo sobre o processo reflexivo que possibilita a antecipação do processo de reflexão no futuro.
Durante toda a narrativa observam-se mudanças na vida da cuidadora a
partir de acontecimentos significativos que decorreram na vida e na saúde dos
familiares cuidados, numa relação de afectação mútua que irá ser analisada
posteriormente. Para o desenvolvimento desta análise foram apenas considerados os eventos que a própria cuidadora denominou de marcantes.
2.2. Cuidar da família ao longo do ciclo de vida
A expressão cuidar ao longo do ciclo de vida representa uma orientação básica para a organização e desenvolvimento dos cuidados de enfermagem. No
contexto da formação, a compreensão desta expressão centraliza o cuidar no
papel dos enfermeiros: os enfermeiros que cuidam de pessoas em diferentes
Resultados da análise |27
etapas do seu ciclo de vida. Esta ideia, por si só, encerra uma perspectiva que
tem de estar sempre presente. Embora seja contraproducente atribuirmos um
contexto de vida à pessoa que cuidamos, baseando-nos numa descrição, mais
ou menos normalizada, das variáveis habituais e relacionadas a priori com a
etapa do ciclo vital em que se encontra, o mesmo se pode aplicar ao facto de
não a termos em conta.
O desenho deste estudo e os conceitos emergentes da narrativa dirigem o
foco de atenção da acção de cuidar não para os enfermeiros mas para as pessoas que cuidam de outras, mais especificamente, de familiares. Esta deslocação permite perceber as dinâmicas de cuidar no que tem sido considerado a
base para a construção social: a família. É geralmente no contexto da família
que ocorrem os elementos fundamentais do auto e heterocuidado. Collière
(1999) começa por nos colocar uma questão verdadeiramente simples: «ser
cuidado… cuidar de si próprio… cuidar… Quem, ao longo da vida, não conheceu cada um destes imperativos?» (p. 15).
Embora o início da narrativa se focalize no último episódio de cuidar que foi
acompanhado pela equipa de cuidados continuados, para efeitos desta análise,
será respeitada a ordem cronológica dos acontecimentos seguindo a biografia
da cuidadora. Foi possível analisar os episódios de cuidar relativamente às circunstâncias referenciadas que rodearam a acção, ao controlo sentido sobre a
tomada de decisão para cuidar, aos cuidados prestados, à descrição da doença
e, ainda, ao estádio no ciclo de vida da cuidadora.
2.2.1. Cuidar em criança
O primeiro episódio de cuidar considerado por C1 é o cuidar do pai aos
12 anos. O início do cuidar deu-se por necessidade imperiosa da família:
«Com o meu pai doente e incapacitado, a minha mãe era o ganha-pão para a
família, e então o que é que acontecia? Enquanto eu estava na escola… lá teria
que ser… quando eu chegava da escola é assim, tinha de cuidar das minhas
irmãs que eram mais novas que eu e… quando o meu pai estava em altura de
crise tinha de cuidar do meu pai: lavá-lo, virá-lo, ahh… alcançar-lhe qualquer
coisa que ele pedisse… de comida, de bebida, ahh… posicioná-lo.»
A resposta encontrada pela família para garantir os cuidados ao pai resultou
numa alteração (inversão) de papéis por necessidade de subsistência familiar
decorrente da doença. C1 sente um nível de participação praticamente nulo
nesta decisão:
28
| Cuidar da Família ao longo da vida
«Da minha mãe é assim, do meu pai não tinha grande opção, da minha mãe ela
tinha a casa dela e foi opção minha, claro, não é? Foi.»
Na descrição deste cuidar sem opção, os cuidados enumerados relacionam-se com a higiene, mobilidade (e posicionamentos), alimentação e curativos.
São lembrados e realçados exclusivamente os aspectos visíveis dos cuidados,
essencialmente cuidados físicos.
Após a identificação da doença, na base de um diagnóstico médico, segue-se uma descrição das perdas observadas:
«O meu pai tinha períodos em que não andava, deixava o… perdeu o andar
completamente, ahh… perdia a sensibilidade a pontos de não ter qualquer sensibilidade da cintura para baixo. Perdia a mobilidade, não tinha controle na
urina, não tinha controle nas fezes…»
O relato imediato sobre as perdas observadas centraliza-se na descrição
das capacidades físicas afectadas. As questões relacionadas com a evolução da
doença são descritas com alguma dificuldade no estabelecimento da relação
causa-efeito (entre doença, sintomas e tratamentos efectuados):
«ele foi aberto na barriga das pernas não sei porquê… mas abriram-lhe a barriga das pernas mais tarde. Entretanto ele, não sei se derivado à diabetes, porque
eu não sei se ele era diabético ou não, na altura não me apercebi, ahh… ele à
volta dos tornozelos ele tinha constan— no peito do pé, onde ele foi operado,
ele tinha constantemente feridas».
Verifica-se alguma tentativa de esclarecer acontecimentos do passado à
luz dos conhecimentos do presente sobre doenças, entretanto desenvolvidos.
As feridas e o evento marcante da execução dos curativos encerram a descrição
do episódio.
À semelhança do que acontece no início do relato do cuidar da avó, também aqui a cuidadora situa o cuidar e a morte do pai relativamente a si, à sua
vida e à sua etapa de desenvolvimento:
«o meu pai faleceu em Setembro e faria 38 anos em Dezembro nesse ano em
que ele faleceu. Ele sofreu da doença mais ou menos cinco anos. Quando o meu
pai faleceu, eu tinha 14 anos […] porque eu acho que com aquela idade há
muita coisa que nos passa ao lado, há muita coisa que nós não questionamos,
ahh, sobre que tipo de doença, nós só vemos a degradação física, o sofrimento».
Além de percebermos a tomada de consciência de C1 de capacidades não
existentes no momento em que o cuidar foi desenvolvido (o não questionamento) podemos ainda observar que a cuidadora dá relevo ao facto de a atenção então se direccionar apenas para a degradação física e o sofrimento, entendido de uma forma generalizada, não especificada.
Resultados da análise |29
O processo de análise deste episódio foi gerador de várias questões que cruzam aspectos do desenvolvimento humano com o cuidar. Neste caso particular,
poderíamos pensar na forma como o adolescente pensa e vive o cuidar do outro
ou, ainda mais especificamente, de que forma é que as transformações corporais
– que habitualmente ocorrem nessa fase do ciclo de vida – interferem com os
aspectos valorizados do sofrimento do outro (dimensão física do sofrimento).
De uma forma mais alargada, a análise poderia incidir sobre quais são os
primeiros indicadores de que as capacidades humanas se organizam de forma
competente para cuidar do outro, ou, ainda, de que forma o cuidar é entendido
e vivido ao longo da vida das pessoas, desde o nascimento até à morte, nomeadamente, que factores poderão estar relacionados com diferentes concepções
e sentidos atribuídos.
Neste exemplo vivido, existem uma série de factores que concorrem para o
impacto da experiência sobre a cuidadora: a vivência dos processos associados
à adolescência, a alteração do papel na família e a responsabilidade de cuidar
de familiares em diferentes etapas do ciclo de vida simultaneamente.
Esta experiência de cuidar torna-se também especialmente intensa pelo
facto de ter exposto a cuidadora ao contacto com a indispensabilidade de satisfazer necessidades físicas de adultos doentes e crianças simultaneamente. Este
contexto aparece geralmente no ciclo de vida pessoal do indivíduo, inserido
no ciclo de vida familiar, numa fase mais tardia: quando cuida dos pais e dos
filhos ao mesmo tempo.
Crianças e jovens cuidadores na família
Um aspecto absolutamente consensual na literatura que aborda a problemática dos cuidadores menores é a necessidade de estudos mais alargados sobre o assunto10. Não foram encontradas referências que abordassem e
descrevessem esta realidade em Portugal ou a analisasse na perspectiva dos
enfermeiros. Existem relatórios facilmente acessíveis via internet que exploraram esta problemática nos Estados Unidos da América (Hunt et al., 2005)
10
Referindo-se às questões que rodeiam o cuidar na família e sobre as lacunas na
investigação nesta área, Kahana (1994) explica que os estudos se têm centrado sobre
o cuidador principal adulto (geralmente de idosos com demência) e que: «much less is
known about the nature, components, cedents, and sequelae of caregiving involving
other age groups and diverse illness situations» (xiv).
30
| Cuidar da Família ao longo da vida
e no Reino Unido (Dearden e Becker, 1997). O estudo americano estima a
existência aproximada de 1,3 a 1,4 milhões de crianças cuidadoras naquele
país, com maiores percentagens para as que têm idades compreendidas entre
os 12 e os 15 anos. Metzing-Blau e Schnepp (2008) referem-se à prevalência
do Reino Unido – 1,5%, correspondendo a um total de 175 000 crianças –
para projectar uma possível existência de 200 000 crianças cuidadoras na Alemanha. Dearden e Becker (1997) analisam esta problemática e a sua relação
com o encaminhamento de crianças para o sistema de protecção infantil e
institucionalização. Os estudos citados concordam e referem-se a outros que
exploram os factores que intervêm para a construção desta realidade: privação
económica da família, inexistência de redes de suporte, monoparentalidade
ou separação dos pais, existência de doença crónica e socialização no cuidar.
As crianças cuidam dos pais, de irmãos e de idosos e fazem diversas actividades que incluem a ajuda na satisfação de necessidades pessoais dos familiares
doentes e o serviço doméstico.
Os artigos encontrados na pesquisa sobre este assunto (EBSCO) revelam
a utilização de abordagens metodológicas que incidiram sobre o passado de
cuidar de actuais adultos (Lackey e Gates 2001; Shifren 2001; Shifren e
Kachorek, 2003), sobre a experiência de profissionais que contactam com
crianças cuidadoras (Fox, 1998) e abordagens que incidiram sobre os pais
(Barkman et al., 2007) e as próprias crianças que cuidam (Earley et al., 2007;
Cree, V., 2003).
A preocupação recorrente, e que orienta a generalidade dos estudos, é o
efeito que as experiências de cuidar de familiares em fases precoces da vida
poderá ter na fase adulta. Relativamente a este assunto, os resultados não definem com precisão efeitos peremptoriamente negativos ou positivos: ambos
estão presentes. Uma análise detalhada permite perceber que são várias as
variáveis envolvidas que podem contribuir para o resultado final da experiência. Shifren (2001) e Shifren e Kachorek (2003) detectaram que a amostra de
adultos que cuidaram em crianças apresentava mais saúde mental positiva do
que negativa – ainda que se encontrem nas amostras indivíduos que apresentam indicadores positivos de depressão – e concluem que o exercício do cuidar
precocemente não está associado, de uma forma universalmente negativa, a
deficiente saúde mental na fase adulta para muitos dos que foram cuidadores.
Os cuidadores cujos pais apresentavam simultaneamente problemas emocionais e abuso de drogas constituíram a excepção para esta tendência. Shifren
e Kachorek (2003) e Barkman et al. (2007) analisam estudos prévios que sustentam o facto de a doença mental dos pais se encontrar mais frequentemente
Resultados da análise |31
associada à doença mental dos filhos na fase adulta. Os estudos não permitem
perceber até que ponto esta consequência se relaciona directamente com o
cuidar ou com alguma predisposição familiar.
Um estudo na Alemanha conduzido por Barkman (2007) refere diferenças
na afectação de rapazes e raparigas na adolescência, sendo mais expressiva nos
rapazes do que nas raparigas e tendendo a agravar-se em relação a ambos quando
o progenitor doente é do mesmo sexo. Os mecanismos que conduzem a estas
realidades ainda não são claros. Há autores que se referem também a diferenças
de género relativamente à expressão das emoções (Cree, 2003; Hunt et al., 2005)
O tamanho da família, idade dos irmãos, posição ordinal na família e género são factores enumerados como passíveis de influenciar os papéis dos cuidadores. Por outro lado, o facto de terem cuidado de familiares pode também
influenciar escolhas de carreiras profissionais (Lackey e Gates, 2001).
Partindo de entrevistas com 51 adultos ex-cuidadores (Lackey e Gates,
2001) e com crianças cuidadoras (Earley et al., 2007; Cree, 2003) os autores
procuram escrutinar as possíveis consequências positivas ou negativas de um
cuidar precoce.
O estudo de Lackey e Gates (2001) orienta as entrevistas incluindo uma perspectiva temporal do antes (no papel de crianças cuidadoras) e do agora (na fase
adulta), possibilitando a reinterpretação da experiência. Associada à experiência
anterior de cuidar estão sentimentos de utilidade, valorização, apreciação, pertença (à família) e, no lado oposto da balança, é referida a dificuldade em ver
a deterioração física, a dor, cheiros e visões desagradáveis e, ainda, a sensação
de demasiada responsabilidade. Ao mesmo tempo que o cuidar permitiu maior
proximidade com a família, resultou, por vezes, em alterações da dinâmica familiar, com troca de papéis e, associado à doença, o aparecimento de problemas
financeiros que se agravam quando o adulto doente representa a maior fonte de
rendimento. Uma quantidade significativa destes factores faz parte da descrição
de C1 sobre o contexto que enquadrou a prestação de cuidados ao pai.
Há ainda a considerar os efeitos sobre a vida escolar e sobre o convívio
com os amigos. Enquanto, para algumas crianças, a vida escolar foi afectada
negativamente, para outras, a escola representou um momento de refúgio e
protecção (Lackey e Gates, 2001; Cree, 2003).
Na avaliação actual que fazem da experiência, os adultos consideram como
positivos para a sua vida presente: o desenvolvimento de um maior respeito e compaixão pelos outros, a capacidade de perspectivar o que é importante e a valorização da vida. São considerados efeitos negativos: a manutenção de sentimentos de
raiva e culpa, medo de ter uma doença crónica ou terminal e luto não resolvido.
32
| Cuidar da Família ao longo da vida
A grande maioria dos ex-cuidadores considera que a participação das
crianças nos cuidados à família pode ser positiva. Desde que não tenham total
responsabilidade, poderá ser uma oportunidade de crescimento e mudança.
Os entrevistados referem-se ainda à importância de ser honesto com a criança,
de contar a verdade sobre a condição do adulto, de incluir a criança na tomada
de decisão e de lhe permitir tempo livre.
Lackey e Gates (2001) referem-se ainda a estudos realizados no Reino Unido e a autores que sugerem a introdução cautelosa, ou mesmo a exclusão, de
crianças e jovens nos cuidados aos familiares na medida em que tais cuidados
poderiam retirar-lhes a vivência da infância. Porém, estes autores concluem
que: «prestar cuidados pode ser uma oportunidade útil e de afirmação para o
jovem e para a família provendo que as tarefas sejam claramente definidas, seja
realizada supervisão e seja assegurado que o jovem não assuma total responsabilidade pelo cuidado» (p. 326).
Os autores ressaltam a necessidade de desenvolver estudos que permitam
determinar parâmetros adequados relativamente a tipos de cuidados aceitáveis
para cada idade no sentido de definir a linha entre as expectativas normais da
vida familiar e a inclusão de crianças e jovens no cuidar. Neste caso particular,
verificamos a participação activa de C1 na execução de tratamentos de feridas. Embora a cuidadora atribua à idade a incapacidade de ver outras coisas
para além do sofrimento físico, os curativos são narrados como parte do rol de
eventos marcantes e o procedimento efectuado classificado como terrível. Determinar com exactidão que tipo de experiências de cuidar em criança poderão
implicar consequências negativas no futuro pode ser considerado um objectivo
irrealista e até redutor do potencial de superação pessoal dos indivíduos. No
entanto, a forma como os cuidadores juvenis classificam e relatam as experiências vividas durante o cuidar relativamente às suas etapas de desenvolvimento
poderá contribuir para um melhor discernimento de possíveis contextos de risco que, a existirem, requeiram monitorização adequada e suporte que auxilie o
menor na integração adequada dos acontecimentos.
Earley et al. (2007) e Cree (2003) descrevem sentimentos e problemas
encontrados que derivam dos relatos das crianças cuidadoras. São referidos
elementos que funcionam como stressores relacionados com sensações de ser
diferente e mesmo bullying, interferência no processo de desenvolvimento da
identidade com parentificação e existência de sentimentos de lealdade para
com a pessoa cuidada11. Avaliando os resultados obtidos, Earley et al. (2007)
11
O termo parentificação foi descrito por Ivan Boszormenyi-Nagy no trabalho que
desenvolveu sobre terapia familiar. A parentificação denomina um processo de inversão
Resultados da análise |33
sugerem a possibilidade de efeitos positivos sobre o autoconceito. Cree (2003)
aborda também problemas relacionados com o sono, suicídio, distúrbios alimentares, auto-agressão, problemas com drogas e com a polícia. Porém, considerando a sua amostra, refere ser impossível separar os problemas inseridos
no contexto geral da vivência da adolescência do impacto isolado e particular
de ser cuidador. A mesma autora alerta para o facto de os estudos já realizados
assentarem em diferentes critérios definidores do que é um cuidador jovem com
variações nas idades e actividades de cuidar consideradas. O estudo de Hunt
et al. (2005) sobre a realidade americana revela, por exemplo, que a afectação
da criança é maior quando esta ajuda na execução de uma ou mais actividades
pessoais de vida diária (e. g., higiene, vestir, alimentar).
Metzing-Blau e Schnepp (2008), num estudo de famílias alemãs, desenvolveram uma teoria enraizada que serviu de base à criação do modelo de experiência
e construção do cuidar familiar no qual as crianças tomam um papel activo. Neste
modelo são encontrados dois fenómenos centrais do processo: manter a família
unida e viver o curso normal da vida. Na discussão, os autores realçam a ideia
de que a doença pertence à vida familiar. No entanto, a par da necessidade de
convívio com a doença, coabita a necessidade sentida pelas famílias de não
deixar que esta domine as suas vidas. O bem-estar da família está no topo das
prioridades dos jovens cuidadores. Neste contexto, a ajuda e suporte articulado deve: assentar numa visão da família como um todo, considerar o sentido
atribuído à doença crónica pela pessoa doente e a forma como esta pretende
viver o dia-a-dia com e na família. De outra forma, os planos de tratamento continuarão a não ser seguidos e as famílias continuarão a tomar as suas
próprias decisões tentando encontrar compromissos que consigam suportar.
Metzing-Blau e Schnepp (2008) referem-se ainda aos estudos efectuados no Reino
Unido e ao facto de, até recentemente, estes se focarem nas crianças cuidadoras e
não na família como um todo. Sustentam que o alívio destas crianças não poderá
ser possível sem alívio dos pais e demonstram que a forma como os pais lidam com
a doença tem uma influência maior na experiência dos jovens cuidadores (nos
sintomas de medo e depressão) do que a severidade da doença em si.
de dependências na família, especificamente nas situações em que os filhos passam
a cuidar dos pais. Earley et al. (2007) referem-se a este autor e ao seu livro Invisible
Loyalties (1973) para considerar a possibilidade da lealdade à família atrasar o processo
de separação/individuação na medida em que a criança pode vivenciar sentimentos
de culpa à medida que cria compromissos externos ao papel de cuidador. Alarcão
(2006) também se refere a este processo como habitualmente associado às famílias
monoparentais (em que um dos filhos assume o papel do progenitor ausente).
34
| Cuidar da Família ao longo da vida
Numa crítica a algumas publicações inglesas que abordam esta temática,
Keith (1995) desenvolve a sua perspectiva nos seguintes termos: «a forma
como as crianças de pessoas incapacitadas têm sido definidas como “jovens
cuidadores” é um assunto de grande interesse pessoal assim como de relevância política para aqueles que são, como eu, pais incapacitados. O debate, se o
podemos chamar assim, foca mais frequentemente em como as crianças são
privadas da sua infância devido aos “fardos” de cuidar. Raramente inclui a
discussão sobre como podemos dar melhor suporte ao pai incapacitado para ser
capaz de exercer o seu papel parental» (p. 384). A autora continua explicando
que a forma como a investigação e os media evocam a problemática dos jovens
cuidadores pode contribuir para desvalorizar o papel dos pais e para que estes
sejam vistos como inadequados.
As conclusões de Metzing-Blau e Schnepp (2008) e as críticas de Keith
(1995) revelam-se no estudo efectuado por Dearden e Becker (1997), que
mostra que os receios dos pais de serem considerados incapazes para o papel
parental e de institucionalização dos filhos (com consequente desfragmentação da família) está na base da relutância em procurar ajuda médica e social.
Por outro lado, a não procura de ajuda contribui para exacerbar os problemas
destas famílias e manter a criança como cuidador principal. Os autores fundamentam desta forma a importância de valorizar a proximidade entre pais e
filhos (mantendo as famílias juntas) e, numa clara resposta às criticas adiantadas por Keith (1995), referem que «enquanto nós podemos concordar com
Keith e Morris (1995) que pessoas incapacitadas sofrem como consequência
da provisão inadequada de serviços a elas como pessoas incapacitadas, nós podemos também sugerir que alguns podem sofrer por causa de inadequados serviços que reconhecem as suas necessidades como pais incapacitados». E continuam expondo argumentos que fundamentam a importância de identificar as
crianças incluídas nestas famílias como crianças em necessidade potencial.
A literatura consultada permitiu iluminar os componentes que participam
na complexidade de factores a ter em conta na problemática da criança cuidadora na família. Os elementos presentes na narrativa de C1 foram o ponto
de partida para esta análise que foi considerada pertinente desenvolver.
Os desafios para os profissionais que se deparam com esta realidade passam pela compreensão dos contextos associados ao cuidar da família pelas
crianças, por intervenções que devem captar a realidade familiar de forma
abrangente e pela ajuda no estabelecimento de limites de participação e responsabilização dos mais novos pelo cuidar. Conclui-se que uma análise pormenorizada dos contextos particulares de cada família e uma intervenção
Resultados da análise |35
adequada sobre as crianças e sobre os pais no exercício do seu papel parental
pode contribuir para o reconhecimento e aproveitamento de competências
existentes – favorecendo a integração e valorização do jovem cuidador no
seio da sua família –, prevenir níveis de envolvimento excessivo no cuidar
que poderão contribuir para efeitos negativos a longo prazo e, ainda, permitir
o reconhecimento de oportunidades de desenvolvimento.
2.2.2. Cuidar dos filhos
Na alusão ao cuidar dos filhos não existe a descrição de nenhum processo
de ponderação. As energias motoras para a concretização deste cuidado são
óbvias, na perspectiva da cuidadora. É um cuidar que decorre do desejo da maternidade e, portanto, não desperta questões relativamente à responsabilidade,
que é assumida de forma natural e referenciada nestes termos:
«cuidar de um filho é fácil, é a obrigação de uma mãe, é o dever de uma mãe,
por isso nós queremos ser mães».
Curiosamente, nesta frase sumária sobre o cuidar dos filhos, C1 inclui o
conceito de obrigação, um conceito mais direccionado para formas de imposição externas ao indivíduo – ao qual está associada também uma ideia de
submissão e restrição da liberdade que advém geralmente do entendimento
de um contexto social alargado –, e de dever, conceito que, na clássica e historicamente influente perspectiva desenvolvida por Kant (1995), encerra uma
necessidade de agir por respeito à lei que a razão dá a si mesma12. Kant defende
a supremacia da razão sobre o indivíduo e as suas paixões.
Nesta situação particular, o entendimento do que constitui o seu dever não
resulta de uma imposição pela razão individual mas é simplesmente o resultado da concretização de um querer, associado a uma ideia, entendida de forma
generalizada, sobre o que está inerente à decisão de ter filhos, óbvia, praticamente não questionável, e a concretização de um desejo individual (não da
sua negação) que assume à partida o que é socialmente esperado. Assim, a
ponderação não se coloca relativamente à escolha do cuidar mas à opção de
12
O dever, na visão de Kant, constrói-se a partir das máximas possíveis de transpor para leis
universais (e assim possuidoras de valor moral), como se depreende, designadamente,
do imperativo categórico: «Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal» (Kant, 1995, p. 59).
36
| Cuidar da Família ao longo da vida
ter filhos. É desta forma que a decisão sobre cuidar de um filho «é fácil» – simplesmente porque não é questionável.
Assim, ainda que se possa verificar uma aparente inexistência de um exercício
da razão relativamente à decisão de ter filhos, a relação e imersão social constitui-se
reguladora para a responsabilização individual pela vida do Outro que vai nascer.
É aqui visível o papel modulador que a sociedade pode ter nas acções individuais.
As razões que estão na base da opção de ter filhos têm vindo a mudar
ao longo dos anos e vão desde a justificação das características naturais da
mulher e o seu propósito, à sua negação pela liberdade feminina, a uma forma de responder a necessidades emocionais, até se constituir num direito que
fundamenta as tecnologias de reprodução artificial (Grewal e Urschel, 2001;
Roberts, 2001).
Roberts (2001) salienta a existência de diferenças entre o processo de querer (posse) ter um filho e o processo de se tornar mãe (transformação) e termina
a sua discussão apontando para o facto do porquê de ter filhos ser por vezes
pouco explorado pelos pais, levantando questões relacionadas com novas formas possíveis de instrumentalizar as crianças que necessitam de ser consideradas actualmente13.
O estudo desenvolvido por Grewal e Urschel (2001) colocou directamente a
questão a 133 mulheres de diferentes etnias e em diferentes estádios da parentalidade. Os autores também concluíram que, apesar de ser necessário preparação
e planeamento para ter um filho, pouca atenção é dada ao porquê o que remete
para o facto de que ter filhos é primeiramente uma decisão emocional.
Perceber as razões que levam os pais a decidir ter filhos pode abrir portas
para compreender o que pode estar na base da estrutura das prioridades e propósitos para cuidar das crianças.
Apesar de esta ser uma opção que transfigura a estrutura familiar e a prolonga no processo transgeracional14 são muito poucos os estudos encontrados
que abordam especificamente esta temática.
«So, what do children mean to 21st-century women? They may provide, as they have always
done, love, reward, fulfilment, fun; in addition to compromise, exhaustion, frustration and
guilt. But can it really be in a child’s best interests for an adult to exploit ever more new and
profitable opportunities to treat him or her as a post-menopausal attempt at eternal youth; a
cute consumer item; a must-have fashion accessory; a route to 15 minutes of fame; a source
of cash; an antidote to a mid-life-crisis, or a way of averting marital meltdown?»
14
«A segunda etapa do ciclo vital da família é marcada pelo nascimento do primeiro filho
[…] é nesta altura que os pais sobem de geração, passando a ter responsabilidades e
experiências que anteriormente pertenciam aos seus próprios pais. Estes, por sua vez,
adquirem, igualmente, um novo estatuto e um novo papel» (p. 130).
13
Resultados da análise |37
2.2.3. Cuidar da mãe
Na narrativa do cuidar da mãe, C1 identifica a doença oncológica e causa
de morte da mãe e imediatamente se preocupa em revelar a vontade desta
relativamente ao próprio processo de morrer:
«A minha mãe faleceu aqui em Portugal já, com cancro da mama, metástases
pulmonares e ósseas. O osso esterno deformou todo. Ela sempre pediu para
morrer em casa. Ahh… não foi fácil. Extremamente difícil.»
Neste contexto, o cuidar é assumido como uma escolha que visa responder à
vontade expressa da mãe de permanecer em casa:
«da minha mãe ela tinha a casa dela e foi opção minha, claro, não é? Foi. Eu
podia ter dito: “é assim, eu não aguento, não quero, não posso, não sei… ahh…
tenho imensa pena, embora queiras morrer em casa, embora queiras tar em
casa a tempo inteiro, nunca quereres estar hospitalizada… tens que ir para o
hospital”, ponto final. Muitos familiares fazem isso, estão certos, estão errados?
Não posso julgar. Eu posso falar pelas minhas acções, pelas minhas decisões,
eu sou responsável por elas e foi isso que eu achei que devia de fazer e: ainda
hoje acho que foi a decisão certa […] Ahh… mas a decisão sem dúvida! Apesar dela me ter feito o pedido oficialmente (riso), a decisão foi minha, porque eu
podia dizer: “olha mãe eu sei que é isso que tu queres mas, não é possível”».
Para descrever o contexto associado à decisão de cuidar a cuidadora expõe as
alternativas (através das quais confirma a não inevitabilidade da sua decisão) perante o conhecimento da vontade da doente, faz referência às decisões tomadas
por outras pessoas em situações idênticas e, perante decisões contrárias à sua,
adopta uma série de atitudes: não julgamento, auto-responsabilidade e autojuízo.
No relato da doença são incluídas as decisões médicas sobre os tratamentos, o período de controlo da doença e ausência de sintomas, assim como o seu
reaparecimento e a confrontação com a recidiva. São especificados os períodos
mais difíceis e, também neste contexto, o respeito pela vontade da doente relativamente ao apoio que deveria ser prestado:
«os últimos dois anos não foram fáceis, porque ela depois fez, por duas vezes,
quimioterapia sempre em ambulatório porque ela recusava-se a ficar internada […] Ahh… ela nos períodos mais difíceis, por causa das náuseas, e das
diarreias, e das aftoses e tudo o resto, ela ficava em minha casa… mas ela não
queria largar a casa dela. Ela consentia até que se pudesse sentir mais ou menos
equilibrada e depois e queria… voltava à casa dela».
A forma como o cuidar se desenrola relaciona-se com o consentimento da
doente, com o que é permitido (ou não) por ela. Nesta relação de cuidar entre
38
| Cuidar da Família ao longo da vida
mãe e filha, apesar de a primeira se encontrar doente e debilitada, continua a
ser ela quem dá autorização e estabelece as regras relativamente aos cuidados
prestados por C1, revelando uma possível manutenção de padrões de relacionamento anteriores, relacionados com papéis desempenhados no passado e
com os significados a eles associados.
Da realçar que no relato da vivência do cuidar da mãe não são referenciados cuidados físicos. A cuidadora centra-se na forma incorrecta como a
situação foi lidada pelos profissionais, nas dificuldades sentidas relativamente
a conhecimentos e execução de técnicas para manipulação de equipamentos e
na falta de apoio recebido:
«Ela teve colocar o cateter. Ahh… o cateter foi-lhe colocado numa salinha
de apoio à sala do hospital de dia. Ela sentada numa cadeira, com anestesia
local, e ela pediu para eu estar com ela, ahh… é assim […] infelizmente para
mim na altura, eu tinha… pouco conhecimento sobre, ahh… maneiras de
controlar a dor, ahh… na altura não havia, nem sequer uma equipa de cuidados continuados, não havia cuidados paliativos, eu não tive apoio nenhum,
nem do centro clínico, nem do IPO: “tudo bem, a sua mãe quer ir para casa,
não quer tar internada, faça-se a vontade da doente”. E fica por aí. Eu ia todos os dias buscar a bomba infusora ao IPO para colocar no cateter da minha
mãe, mas não é fácil… uma pessoa que não tinha… nunca tive treino, que
és-lhe mostrado: “olhe, agora fecha aqui para que o ar não entre, tira aqui,
enfia ali, mas tem que ter a certeza que ar não entra”… é assim, é a primeira
vez, tá sobre pressão, é um ente querido, ahh… tem medo de errar […].»
Este relato de dificuldades sentidas conduz a uma narrativa que explica a
necessidade de ajuda da filha para a manipulação de um dispositivo médico
(cateter venoso central) rotulado pela cuidadora como um evento marcante.
Os receios associados à execução de um procedimento técnico considerado
complexo e para o qual se sente pouco preparada centraliza todo o relato do
cuidar da mãe. Não existem referências a outro tipo de cuidados prestados,
nem mesmo aos cuidados físicos já identificados na descrição do cuidar do pai.
Este contexto poderá indicar que a inclusão de familiares na execução de procedimentos técnicos que possam causar ansiedade e preocupação com os riscos
da manipulação, neste caso medo de errar, poderá eventualmente contribuir
para obscurecer outro tipo de cuidados e interacções que, apesar de poderem
estar favorecidas pelo contexto de cuidados no seio da família, acabam por não
acontecer ou não serem assimiladas.
Estas conclusões não eliminam a possibilidade de execução de procedimentos técnicos por parte dos familiares. O que se pretende é realçar a importância de se avaliar correctamente os prós e contras inerentes. Esta situação
Resultados da análise |39
evidencia que o critério deverá ser a ansiedade e os receios que a execução da
técnica pelo familiar poderá causar e não a complexidade ou simplicidade do
procedimento na perspectiva de um profissional habilitado15.
Alguns aspectos interessantes derivam de uma análise cuidada sobre o eixo
da narrativa e do desenvolvimento no ciclo de vida. Sobre a narrativa, percebe-se uma leitura dos acontecimentos passados tomando como referência a
experiência mais recente de apoio recebido durante o cuidar da avó:
«eu acho que o sofrimento físico e não só… psicológico não era tão grande,
nem para ela ou nem para mim, se nós tivéssemos tido a sorte de ter sido acompanhadas. Um acompanhamento, por exemplo, como eu tive com a avó, ahh…
que a minha mãe faleceu há dez anos. Há dez anos não havia nada de… uma
enfermeira do posto não ia lá a casa. Não ia. Quanto mais uma enfermeira do
IPO, ou uma auxiliar do IPO, ou alguém que nos pudesse dar uma mão ou… eu
se tivesse dúvidas não sabia a quem contactar. Não sabia. Ahh… é assim, era
esperar pelo dia seguinte, pedir que a minha mãe durasse até ao dia seguinte
para depois meter-me no carro e ir para o IPO expor todas as dúvidas e… e
dizer o que é que ela tava a sentir, o que não tava a sentir e o que é que eu devia
fazer se isso se tornasse a suceder, mas pronto… a minha mãe faleceu».
Esta quase permanente e intemporal actualização e comparação constante dos
contextos das experiências vividas abre as portas para um diferente entendimento sobre como estas se podem afectar mutuamente e afectar o indivíduo, transformando-o num ser em mutação permanente em níveis de existência onde o
acesso a diferentes dimensões do tempo é permitido. Daqui se depreende que os
acontecimentos do passado podem de novo ser visitados perante novas perspectivas do presente e despoletar um novo conjunto de sentimentos anteriormente
não experimentados. Estas ideias constituem crenças básicas da teoria de cuidar
desenvolvida por Watson (1999) sobre a vida e sobre a pessoa16.
Há também ainda a considerar os significados que poderão estar inerentes a uma
ajuda na satisfação das necessidades do corpo – contexto que a pessoa doente pode
controlar – e a uma manipulação técnica do corpo, que mais facilmente escapa ao
controlo do doente, o que pode estar associado a uma forma de exercício de poder
sobre Outro podendo interferir com a relação de cuidar.
16
«A minha concepção de vida e de ser pessoa está ligada a noções de que a nossa alma
possui um corpo que não está limitado por espaço e tempo objectivos. O mundo vivido da
pessoa que passa por uma experiência, não é distinguido por noções externas e internas de
tempo e de espaço, mas molda o seu próprio tempo e espaço, que não está constrangido
pela linearidade. Noções de ser pessoa, então, transcendem o aqui e o agora, e cada um
tem a capacidade de coexistir com o passado, presente e futuro simultaneamente […]
A capacidade de cada um para transcender o espaço e o tempo, ocorre de forma
semelhante, no pensamento, na imaginação e nas emoções de cada um. Os nossos
15
40
| Cuidar da Família ao longo da vida
Perante a experiência mais recente do cuidar da avó, C1 compreende que
o sofrimento vivido durante o cuidar da mãe poderia ter sido menos intenso.
Daqui resulta a expressão de algum ressentimento relativamente ao apoio que
lhe foi fornecido.
Há ainda a ter em conta a etapa do ciclo de vida desta mulher que, vivendo
agora a experiência da maternidade, e na presença de filhos durante o cuidar
da mãe, dirige as suas preocupações para o impacto que a acção desenvolvida
poderá ter sobre a sua filha de 7 anos. Este é também um relato de um momento no tempo que contém um conjunto de coincidências entre a história passada e presente de C1 e do presente da sua filha: a exposição, enquanto criança,
ao sofrimento do pai e manipulação do seu corpo (através de actos técnicos),
a situação actual de não se sentir convenientemente preparada para realizar
o procedimento, e a vivência da filha que experimenta, de forma semelhante,
estas duas realidades.
O fio condutor dos relatos destes dois eventos marcantes parece assim estar
ligado a uma vivência emocional intensa relacionada com a exposição precoce ao sofrimento do outro e manipulação do seu corpo através de procedimentos técnicos invasivos.
Porém, esta experiência poderá também proporcionar a C1 uma nova perspectiva sobre os acontecimentos do passado – a responsabilização precoce que
lhe foi pedida pela própria mãe (agora doente) pelos cuidados ao pai – na
medida em que, no presente, percebe que a participação da sua filha menor na
manipulação do cateter se torna absolutamente essencial e inevitável.
Mais uma vez (e agora nos papéis de mãe e filha), a cuidadora se depara
com o cuidar de pessoas queridas em diferentes etapas da vida.
2.2.4. Cuidar da família alargada: percebendo o cuidar como necessidade
O relato do episódio seguinte de cuidar centra-se na descrição da causa
que precipita a necessidade de cuidados e os motivos que conduziram à acção
de cuidar:
«Próxima doente… a irmã da minha falecida avó, minha madrinha, morreu em
minha casa com cento e um ano de velhice […] Ela não tinha filhos. Ahh... e
eu achei… que… tinha necessidade de intervir. Ela precisava de mim.
corpos podem estar fisicamente presentes num local ou situação, mas as nossas mentes e
sentimentos relacionados podem estar noutro local qualquer» (pp. 81-83).
Resultados da análise |41
S – Desculpe, a senhora sentiu necessidade de intervir?
C1 – Sim. Ahh… porque é assim, tudo aquilo que a gente semeia mais cedo ou
mais tarde a gente vai colher, ahh… não sei se concorda comigo… é assim, há
a lei de causa e efeito h... e também é assim, tudo o que a gente faz, seja uma
palavra, uma acção, tudo! A nós retorna. Mais cedo ou mais tarde, não interessa
quando. E: quando me disse se eu senti necessidade de, é assim, eu gostava, se algum dia me achar nessas circunstâncias, de ter alguém que trate de mim, mesmo
que não tenha capacidade de o fazer, porque às vezes o importante é saber que
está ali alguém, que nos quer, que nos tá a dar apoio, que nos ampara, ahh… que
está connosco, não é? E se for alguém que nos é querido ainda mais, não é?»
A pergunta colocada durante a entrevista direccionou o relato para uma
exploração dos aspectos envolvidos no sentir o cuidar como necessidade. A cuidadora explica o que está na base de uma necessidade que se parece enraizar
na necessidade percebida do outro. De certa forma, as necessidades do outro
(madrinha) passam a ser sentidas como suas pela cuidadora como necessidade
de dar resposta à necessidade do outro.
A primeira ideia focada relaciona-se com a crença: neste caso, a crença de
que todas as acções realizadas têm retorno num limite de tempo não definido.
Esta crença, na qual subjaz, à primeira vista, a ideia de consequência, parece
ser moduladora da acção que se aproxima, neste contexto, de um imperativo
hipotético (Kant, 1995, p. 50). No entanto, o facto de a acção se desenrolar
tomando como referencial para o outro o bem que se deseja para o próprio (sendo
que o próprio é um ser que vive simultaneamente no passado, presente e futuro) e este desejo de formatar o que é sentido como sendo o correcto complexifica
uma visão linear e diferencial entre o que é o imperativo hipotético e categórico.
A explicação da cuidadora evolui, de facto, para a referência a um cuidar que tem
na sua base uma necessidade de concretizar o pensado e sentido como correcto:
«ahh… as pessoas que me são mais próximas, mesmo aquelas que me são menos próximas e que me fazem sofrer, eu digo sempre: “se um dia precisarem, eu
estarei lá” se elas me quiserem, se elas necessitarem da minha ajuda, do meu
apoio, estou lá! Se elas me quiserem isso o problema já não é meu. Eu faço
aquilo que eu penso, que eu sinto que é correcto. Que eu preciso de fazer».
O cuidar emergiu como um imperativo particular que concilia o que é pensado e o que é sentido com uma necessidade. Até que ponto reconhecemos o
que para nós constitui uma necessidade, tendo como base uma concordância
entre o que sentimos e pensamos, foi algo sobre o qual me questionei e que
penso poder ser importante explorar.
Watson (1999) refere-se à necessidade de harmonia no íntimo da pessoa como
condição de bem-estar: «[i]ncongruência entre o Eu como é percebido e a expe-
42
| Cuidar da Família ao longo da vida
riência da pessoa reflecte a presença da desarmonia no íntimo da mente, corpo e
alma o “Eu” não é igual ao verdadeiro Eu ou verdadeiro Me. Esta incongruência
conduz à ameaça, à ansiedade, ao tumulto interior e pode conduzir ao sentimento
de desespero existencial, ao temor e ao mal-estar. Se prolongado, pode contribuir
para a doença» (p. 101). C1 descreve, na sua experiência, momentos de tumulto
interior onde se observa dificuldade em compreender emoções/sentimentos considerados negativos que decorrem de escolhas livres sentidas como certas:
«ahh… (6)… às vezes eu gostava… eu própria, irritava-me comigo própria e dizia assim: “porque é que tás tão irritada? Porquê essa raiva? Porquê essa revolta?
Tás nessas condições até porque queres! Foi a tua escolha”, mas é assim, sou
humana. Eu questiono-me e depois é tipo, dou a mão à minha própria palmatória (risos) e digo assim: “não devias ter esses sentimentos”, mas sou humana.
Não sou perfeita. Não sou (risos), às vezes gostava de ser (risos)… mas pronto».
Associado a este diálogo interno surge a ideia de um ser humano generalizado pelos limites de compreensão de si próprio, das suas emoções.
De facto, quando Goleman (2003) aborda as questões relacionadas com a
inteligência emocional, expõe o identificar e rotular sentimentos como uma capacidade emocional e a autoconversa17 como uma aptidão cognitiva.
Esta descrição revela também o que poderá ser uma vivência de um processo de transição (de papel) precipitado por uma escolha que despoleta um
conjunto de variadas emoções na vivência real do que a escolha determinou.
Meleis (2005), além de identificar a possibilidade de um processo de transição
associado à mudança de papel nas relações existentes, inclui os significados,
expectativas, níveis de conhecimento e capacidade, ambiente, níveis de planeamento e o bem-estar físico e emocional como factores que podem afectar o
desenrolar desse mesmo processo.
Uma abordagem às necessidades humanas
Considerar as várias dimensões do ser humano (emocional, psicológica, social e espiritual) é assumir, antes de mais, que a sua vivência não se reduz à sua
dimensão física e, por outro lado, projectar níveis diferentes de necessidades.
Se utilizarmos como referencial as necessidades básicas para manter a vida
do corpo físico (p. ex., alimentação, hidratação, respiração, eliminação) fa-
17
Por autoconversa entende-se o conduzir um «diálogo interior» como uma maneira de
lidar com um tema ou um desafio ou reforçar o próprio comportamento.
Resultados da análise |43
cilmente nos apercebemos da facilidade com que são reconhecidas. Aqui, o
reconhecimento das sensações corporais pela pessoa é o ponto de partida para
que esta inicie o conjunto de acções que lhe visam dar resposta. Partindo deste
ponto, poderemos então questionar sobre como se processa o reconhecimento
das necessidades que atravessam outras dimensões do ser humano.
Na sua explicação sobre as ligações entre emoção, consciência e corpo,
Damásio (2000) explica que «[t]odas as emoções usam o corpo como teatro»
(p. 72) e que, para a maior parte de nós, «as emoções constituem um razoável
barómetro do nosso bem-estar» (p. 69). Distingue entre emoção (dirigida para
o exterior e pública), sentimento (dirigido para o interior e privado) e conhecimento que temos um sentimento (p. 56)18.
Podemos perceber que nem sempre a emoção e a representação do sentimento acontecem de forma consciente e, assim sendo, não é garantido que
o indivíduo reconheça o sentimento que está a viver. É neste contexto que o
autor se refere à importância da existência e do papel da consciência: «a consciência tem de estar presente para que os sentimentos possam influenciar os
sujeitos que os tem, para além do aqui e agora imediato» (p. 57). As emoções
constituem a via pela qual a consciência dos sentimentos (e o seu impacto
interno) poderá ser possível. A importância das emoções é bem reforçada pelo
autor que as relaciona com o corpo e com os mecanismos que asseguram a
vida19. São precisamente estes aspectos que se cruzam na origem (corpo) e nos
objectivos (assegurar a vida) das necessidades mais básicas do ser humano.
Na visão de Watson (2008) «[s]er humano é sentir». A autora explica que
«[d]emasiadas vezes nós permitimos a nós mesmos pensar os nossos pensamentos mas não sentir os nossos sentimentos» (p. 68). Também Damásio (2000) se
refere à relevância que a ciência tem atribuído à razão em detrimento da emoção, cujo papel tem vindo a ser desvalorizado nos processos da consciência.
Pensarmos nas emoções como efectivamente ligadas às necessidades humanas é também considerar a possibilidade de que o próprio indivíduo pos-
O autor configura três fases possíveis ao longo de um contínuo: «o estado de emoção, que
pode ser desencadeado e executado de forma não consciente; o estado de sentimento, que
pode ser representado de forma não consciente; e o estado de sentimento tornado consciente
(conhecido pelo organismo que experimenta tanto a emoção como o sentimento» (p. 57).
19
«As emoções são conjuntos complicados de respostas químicas e neurais que formam um
padrão; todas as emoções desempenham um papel regulador que conduz, de uma forma
ou de outra, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo que manifesta o
fenómeno; as emoções dizem respeito à vida de um organismo, mais precisamente ao seu
corpo; a finalidade das emoções é ajudar o organismo a manter a vida» (p. 72).
18
44
| Cuidar da Família ao longo da vida
sa não ter conscientes todas as suas necessidades e este aspecto reveste-se
de particular importância nos processos de cuidar (de si próprio e do outro).
O que Taylor (2004) caracteriza como actividade de autocuidado (no contexto da teoria de Dorothea Orem) poderá ilustrar esta perspectiva. Esta autora
explica a actividade de autocuidado como «a capacidade complexa adquirida
para atingir a maturidade e amadurecer pessoas para saber e colmatar as suas
necessidades contínuas de acção deliberada, intencional para regular o seu
próprio funcionamento e desenvolvimento humano» (p. 218). À luz do que foi
analisado, parece-me que esta capacidade complexa poderá estar directamente
relacionada com processos de tomada de consciência que visam saber as necessidades pessoais.
Neste caso particular, falamos de uma necessidade que aparece no ponto
de convergência entre a razão e o sentir relativamente à acção de cuidar do
outro20. O cuidar é aqui uma expressão de coerência interior da pessoa quando
confrontada com a percepção das necessidades do outro, sentidas em relação a
si próprio, às suas necessidades, percebidas fora de um conceito linear do tempo (Watson, 1999): as que reconhece recuperando o passado e as que prevê
projectando um futuro (que não é necessariamente o seu, mas a projecção de
si nas circunstâncias actuais do outro).
Podemos então talvez falar de uma necessidade que parte de um sentimento já representado mas cuja explicação é difícil:
«Ahh... eu se calhar não tou a fazê-la compreender o que eu... eu sinto.»
Na verdade, quando tenta explicar o seu sentir que é correcto a cuidadora
percebe a existência de uma resposta para cuidar já interiorizada, não questionada e, até ao momento da entrevista, não percebida como necessidade:
«Ahh... e quando eu disse “senti necessidade” eu... nessa altura nem... a gente
nem se questiona!
Por aqui se percebe o saber das necessidades pessoais como resultado de
processos de auto-análise do sentir relativamente a decisões tomadas no
passado. É nesta perspectiva que as emoções são abordadas numa discussão
que se pretende desenvolver sobre necessidades humanas. Porém, ainda
que possamos considerar as explicações de Damásio (2000) sobre o papel
20
Um outro conceito de cuidar que daqui deriva e está associado a estas ideias exploradas
é o cuidar como resposta ao apelo do outro. Perante a visão do cuidar como um fim em si
mesmo C1 prevê a possibilidade da acção de cuidar no futuro depender exclusivamente
da necessidade e da escolha do outro (este assunto será retomado posteriormente).
Resultados da análise |45
das emoções, a discussão sobre a origem das necessidades sentidas pelas
pessoas não se esgota num processo que envolve a existência material do
cérebro e do corpo, mas alarga-se para a compreensão de uma interacção
entre uma narrativa individual que constrói e atribui sentido à história pessoal inserida num contexto e história social. Savater (2000) refere-se a esta
tarefa complexa: «nem a própria noção de necessidade humana, nem o reportório de tais necessidades são fáceis de estabelecer» (p. 69). Considera
que o humano não é apenas um simples processo biológico mas também um
processo social e simbólico. Acrescenta ainda que: «[p]ode ser muito certo
que nenhuma necessidade humana, por mais básica que seja, jamais se
apresenta sem uma série de importantíssimos, e muitas vezes determinantes, componentes culturais, isto é, convencionais; mas não é menos certo
que as necessidades da vida humana não são simplesmente uma questão
convencional» (p. 70). É precisamente no seguimento destas perspectivas
que podemos perceber que as necessidades se ligam à vulnerabilidade como
fundamento da universalidade do ser humano – na medida em que todos
os seres humanos têm necessidades, nem que seja considerando apenas um
nível elementar de existência — e, ao mesmo tempo, à individualidade e
diferença de cada um, que as sente, avalia, prioriza e expressa de forma
diferente ao longo do ciclo de vida.
Para Watson (2008), qualquer necessidade básica no plano físico pode ser
considerada como uma necessidade da alma que encarna o corpo21.
Nos seus primeiros trabalhos, Watson (1985) recorre à teoria de Maslow
para organizar as necessidades humanas em necessidades de ordem inferior e
superior. Nos seus trabalhos mais recentes (Watson, 2008) reavalia a teoria
de Maslow, considerando-a desactualizada na hierarquia de necessidades que
estabelece, e desenvolve uma perspectiva mais alargada sobre o que se habitualmente se entende por necessidades básicas. Estas necessidades, essenciais
para manter a vida do corpo, são entendidas como simbolicamente ligadas a
outras dimensões da existência humana que emergem e se reproduzem na for-
21
A discussão sobre a alma e o corpo e a possibilidade de ligação entre ambos remontam aos
filósofos da antiguidade. Picard (1997) expõe as ideias vigentes desde os filósofos gregos,
passando pelo dualismo de Descartes (para o qual a alma e o corpo são mutuamente
exclusivas nas suas propriedades) e incorpora na discussão sobre a actualidade os novos
conhecimentos da neurociência e acrescidas discussões de filósofos da actualidade.
Watson (2002) apresenta-nos o corpo como «espelho sagrado», um espírito corporizado
que reveste de sacralidade a prática de cuidar. Macrae (2001) analisa as perspectivas de
Florence Nightingale que se referem ao corpo como «veículo do espírito» (p. 17).
46
| Cuidar da Família ao longo da vida
ma como as necessidades são satisfeitas ou afectadas. Esta interconexão complexa é o resultado da evolução da forma da humanidade ser-no-mundo22 que
conduz para novos níveis de capacidade, mas também de necessidade.
Watson (2008) recorre ao filósofo Levinas para explicar que cuidar das necessidades dos outros é tocar na força de vida e alma de outra pessoa e na
nossa. Nesta perspectiva, podemos também olhar para a necessidade de cuidar
do outro como resposta a um desejo de contactar com a própria vulnerabilidade
e realizar um percurso de desenvolvimento interior.
A explicação de C1 evolui, de facto, para relacionar o cuidar do outro com
o seu bem-estar pessoal:
«Ahh… e quando eu disse senti necessidade eu... nessa altura nem... a gente
nem se questiona! Porque é isso que você quer fazer, que tem de fazer, por si! Não
tanto pela outra pessoa. Claro que ao fazer, vai ajudar a outra pessoa mas... é... no
fundo, no fundo é bom para si.»
Da exploração do cuidar como necessidade emerge efectivamente o conceito
de cuidar para autocuidado.
Cuidar para autocuidado: a ética de um cuidar auto-interessado
Nesta perspectiva, o cuidar aparece como uma forma de cuidado pessoal,
como algo que é bom para o próprio. Esta perspectiva sobre o cuidar constitui
factor de ponderação para a decisão:
«acima de tudo nós temos de ser responsáveis por nós próprios, pelos nossos
actos, por isso nós possuímos o livre-arbítrio, nós podemos decidir por nós, e
só nó... a nós é que é que no—ahh... so... somos responsáveis por essa decisão,
perante nós próprios, não perante os outros! Nós temos que responder a nós
próprios, temos de nos sentir bem com nós próprios».
Aqui se associam novamente os conceitos de auto-responsabilidade e autojuízo pelas decisões e acções realizadas. O cuidar é aqui também uma escolha.
22
«Any presenting need can be related to self-survival, even if existential-spiritual in
nature; our needs are not restricted to the biophysical in the usual sense of “basic
needs”. These deeper, evolving human needs beyond physical survival encompass the
human in a unified way that expands and deepens our evolving humanity and being-in-the-world […] Soul care as well as physical care is required to respond to each and all
needs, in that the whole of spirit/soul is in each physical and nonphysical need and is
embodied in the physical plane of the body» (pp. 146-147).
Resultados da análise |47
Porém, não é evocada a vontade da doente mas uma necessidade sentida da
cuidadora. O sentir-se bem está directamente relacionado com um autojuízo
positivo sobre si próprio, pelo qual cada um é, nesta perspectiva, directamente
responsável.
Pensar que o que determina a acção de cuidar do outro é algo que «no fundo, no fundo é bom para si» pode, por outro lado, remeter-nos para um conjunto alargado de questões éticas. Poderemos questionar o valor ético desta acção
de cuidar porque motivada por interesses que muitos considerariam egoístas?
Qual a perspectiva ética sobre um cuidar por interesse próprio?
Rachels (2004) desenvolve e clarifica os conceitos de egoísmo psicológico, interesse próprio e egoísmo ético. Os conceitos emergem das tentativas de explicar
os comportamentos das pessoas e também da busca das melhores respostas para
resolver a tensão existente entre os nossos interesses e os interesses dos outros.
Nesta perspectiva, o egoísmo psicológico refere-se a uma teoria que procura explicar
a natureza das pessoas e como elas se comportam, enquanto o egoísmo ético é uma
teoria normativa sobre como as pessoas se deveriam comportar. O autor sinaliza a
tendência generalizada para confundir egoísmo com interesse próprio e clarifica que
agir no interesse próprio e procurar o nosso próprio bem-estar não é incompatível
com uma genuína preocupação com os outros. O comportamento egoísta é, segundo Rachels (2004): «o comportamento que ignora os interesses dos outros em
circunstâncias nas quais não deviam ser ignorados» (p. 108).
O egoísmo ético é descrito por Rachels (2004) como «a ideia de que cada
pessoa tem obrigação exclusiva de lutar pelos seus próprios interesses» (p. 117).
Aqui o princípio fundamental de conduta é o interesse próprio e este resume
todos os outros deveres. Porém, isto não quer dizer que devamos evitar acções
que promovam os interesses dos outros. Na verdade, o mesmo autor acrescenta a possibilidade de uma coincidência de interesses.
Seguindo uma linha de pensamento próxima mas mais elaborada, Savater
(2000) fundamenta uma ética no amor-próprio23 e na auto-afirmação do humano. Critica uma depreciação do amor-próprio (conotado negativamente
como egoísmo) e uma moral que exige uma renúncia a si próprio24. O concei Savater (2000) não recorre à denominação de egoísmo ético elaborada por Rachels
(2004), preferindo a ambiguidade do amor-próprio aos «equívocos suscitados em torno
do termo “egoísmo”» (p. 34).
24
«Claro, a fundamentação de ética no amor-próprio e na auto-afirmação se choca com
a venerável tradição moral renunciativa, de cunho primordial mas não exclusivamente
cristão que pôs na superação ou mesmo na abolição do amor-próprio (chamado de
maneira ainda mais censória de “egoísmo” e na correspondente potencialização do
altruísmo a própria característica da opção ética» (p. 29).
23
48
| Cuidar da Família ao longo da vida
to de amor-próprio desenvolvido por Savater sustenta-se numa concepção
da liberdade como a «intervenção da vontade na identidade, ou também: a
liberdade é o primordial dever (ser) de nosso querer ser» (p. 22). Nesta perspectiva, é «[q]uerer continuar sendo, querer ser mais, querer ser de forma mais segura,
mais plena, mais rica em possibilidades, mais harmoniosa e completa: ser contra
a debilidade, a discórdia paralisante, a impotência e a morte» (p. 24). O ser é
uma constante perseveração na reforma e reinvenção do seu ser, inacabável,
onde não existem etapas definitivamente humanas. Esta inacababilidade é
uma resposta à consciência de que a morte é inevitável e corresponde a um
anseio de sobrevivência que se exprime num projecto de imortalidade. Este
não é um projecto que se concretiza no indivíduo sozinho, mas um projecto
colectivo onde a imortalidade surge na capacidade que a espécie tem de subsistir através de meios que asseguram a perduração física dos indivíduos que
a compõem e o reconhecimento inter-humano que, para Savater (2000), terá
de ser obrigatoriamente instituído. É a este projecto que a ética, direito e política (diferentes relativamente ao peso da necessidade de reconhecimento)
procuram dar resposta.
É a partir desta ideia que Savater (2000) se preocupa em explicar que
egoísmo não é o mesmo que egocentrismo (fechar-se em si mesmo) e em contrapor uma oposição habitual entre egoísmo e sociabilidade defendendo que o
primeiro é um autêntico fundamento da segunda. O amor-próprio é o ponto
de partida e medida do amor aos outros, expresso no conhecido mandamento
cristão: «Ama o próximo como a ti mesmo.»25
Associado à discussão do egoísmo ético (Rachels, 2004) e do amor-próprio
(Savater, 2000) aparece, numa quase contraposição dialéctica, o conceito de
altruísmo. Ambos os autores recorrem a Thomas Hobbes para explicar que
mesmo as maiores acções solidárias e altruístas podem partir do mais primário
egoísmo. Thomas Hobbes concentrou-se na análise dos comportamentos altruístas mostrando como todos podiam ser compreendidos em termos egoístas
nas suas concepções sobre a caridade e piedade. Rachels (2004) cita Hobbes
explicando que a caridade não é mais do que um meio de um homem demonstrar o seu poder sobre o outro: «[n]ão pode haver maior argumento para um
homem, provando o seu próprio poder, do que saber-se capaz não apenas de
realizar os seus desejos, como ainda de ajudar outros homens nos seus: e é
25
O autor cita Miguel de Unamuno para ilustrar a importância de sabermos amarmo-nos:
«“Ama o teu próximo como a ti mesmo!” disseram-nos, pressupondo que cada um se
ame a si mesmo; não nos disseram: “ama-te!” Contudo, não sabemos nos amar» (p. 44).
Resultados da análise |49
nisso mesmo que consiste a concepção do que se chama “caridade”» (p. 101).
Continuando a citar Hobbes, a piedade «consiste em imaginar ou fantasiar as
nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades
de outrem» (p. 102)26.
Rachels (2004) dá exemplos de como os comportamentos altruístas poderão
estar relacionados com o «desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de
reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma
recompensa divina» (p. 100) e recorre aos argumentos de Ayn Rand para reforçar
o que está na base da recusa de uma ética do altruísmo: «[s]e um ser humano aceita
a ética do altruísmo a sua primeira preocupação não é como viver a vida, mas
como sacrificá-la». O sacrifício da vida não significa a morte de forma literal mas
a afectação nas dimensões que constituem a vida de determinada pessoa. Daqui
resulta a não primazia do valor de uma vida individual.
Também Savater (2000) recusa o ideal habitualmente associado ao altruísmo e cita Nietzsche: «o próximo elogia o desinteresse porque colhe seus frutos.
Se o próximo raciocinasse de um modo desinteressado, recusaria essa ruptura de forças, se oporia ao nascimento de semelhantes inclinações e afirmaria antes de tudo seu desinteresse, designando-as precisamente como ruins»
(pp. 58-59) e, abordando as razões pelas quais nos devemos comportar moralmente com os outros, parafraseia W. H. Walsh para resumir que: «devo ser
moral porque não posso ser o que realmente desejo sem o ser».
Numa abordagem do altruísmo no contexto familiar, Midlarsky (2006) considera que os comportamentos altruístas não necessitam de ser completamente
não recompensados. Para esta autora, o que é importante é que se foquem no
outro e que a razão primária do indivíduo (se não a única) para realizá-los seja o
seu desejo e intenção de aliviar o sofrimento e/ou realçar o bem-estar de outro.
As perspectivas analisadas sobre o egoísmo ético e sobre o amor-próprio diferem na conotação atribuída à palavra egoísmo e no entendimento do que
lhe está subjacente. Apresentam-se como conceitos próximos, não idênticos.
Alguns dos argumentos de Rachels (2004) contra o egoísmo são implicitamente desmontados por Savater (2000) porque também são diferentes os pressupostos dos dois autores. Enquanto o primeiro se preocupa com uma exposição
de argumentos contra e a favor do egoísmo ético, o segundo constrói toda uma
ética baseada no amor-próprio.
26
Duas observações breves se poderão fazer sobre este assunto: a primeira é que esta
concepção sobre a caridade poderá contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre
as relações de poder no contexto de cuidar que advêm dos preconceitos dos cuidadores
sobre o que é ser caridoso.
50
| Cuidar da Família ao longo da vida
Para Savater (2000) o individualismo é um produto e êxito da sociabilidade
e, portanto, não existe uma oposição real entre indivíduo e sociedade como
habitualmente se deduz. Explica que «o sujeito que leva em conta seu destino
como aventura pessoal formada por escolhas próprias recebe como contrapartida a imposição de encarregar-se dos outros: quanto mais radical e madura a
individualização, mais universal a compaixão para com os demais» (p. 134).
No desenvolvimento da sua abordagem, Midlarsky (2006) começa por
se questionar sobre o momento em que emerge no indivíduo a motivação
para comportamentos altruístas e contraria uma certa tendência para assumir uma ideia animalesca do Homem que, partindo de uma visão darwinista associada a conceitos como selecção natural e competição, conotaram a sua
base biológica com o egoísmo. A natureza humana aparece aqui derivada
da de animais «inferiores» e assumida como negativa e autocentrada. Dando exemplos de comportamentos altruístas evidentes nos animais, a autora
pretende contrariar a noção de que somente agressão, competição e egoísmo são naturais. Ao abordar o altruísmo na infância refere que, qualquer
que seja a predisposição inata para ajudar, é a ligação e identificação com um
cuidador nutridor que irá servir de modelo para o desenvolvimento de um
altruísmo genuíno. Recorre também aos seus estudos anteriores (Midlarsky,
1984, 1991)27 para sustentar que independentemente da motivação inicial
para os comportamentos de ajuda, quando estes resultam em efeitos positivos,
a probabilidade de que estes comportamentos se repitam aumenta. Também
para esta autora, as competências de um cuidar maduro – a habilidade de perceber correctamente a necessidade pela perspectiva do outro, o sentir preocupação genuína, o desenvolver de uma intenção e o agir eficazmente – são
produtos da socialização normal, referindo-se a estudos que concluem que o
altruísmo aumenta ao longo da vida numa preocupação que vai sendo progressivamente mais alargada a toda a humanidade. Estes pontos encontram linhas
comuns com as ideias desenvolvidas por Savater (2000).
As perspectivas e evidências analisadas expõem argumentos que sustentam
do ponto de vista ético uma fundamentação da preocupação consigo próprio
no cuidado aos outros e são unânimes em refutar o ideal de um altruísmo puro
Midlarsky, E. 1984. Competence and Helping. In E. Staub, D. Bar-Tal, J. Karylowski e
J. Reykowski (eds.). Development and maintenance of prosocial behaviour. New York:
Plenum. Pp. 291-308.
Midlarsky, E. 1991. Helping as coping. In M. Clark (Ed.). Review of personality and
social psychology. Newbury Park, CA: Sage. Pp. 238-264.
27
Resultados da análise |51
caracterizado por completa inexistência de recompensa ou diferentes formas
de retorno pelos actos praticados. Aliás, Midlarsky (2006) considera que uma
visão extrema do altruísmo pode tomar um percurso de acção autodestrutivo
dando como exemplo os actos de heroísmo em contextos de guerra. Excluindo
esta radicalidade, refere podermos verificar que a vida diária de muitos cuidadores está imbuída de um conjunto de acções altruístas que, embora menos
extremas e dramáticas, são absolutamente críticas para a manutenção da sociedade.
Entre o heterocuidado, autocuidado e o sofrimento
Encerrando a discussão sobre o valor ético da acção podemos questionar-nos sobre como é que o heterocuidado (cuidar do outro) se poderá transformar numa forma de autocuidado apesar das exigências que lhe poderão estar
subjacentes.
Numa teoria que desenvolve os aspectos do cuidar, Watson (2008) aprofunda o que denomina de processos caritas e que correspondem a uma evolução e extensão do que anteriormente tinha já desenvolvido e designado
por factores de cuidar (Watson, 1985). Esta é uma evolução que permite olhar
mais directamente sobre os processos dinâmicos que constituem uma manifestação da presença desses mesmos factores. Assim, o factor de cuidar, enquanto
«cultivar sensibilidade para consigo e com os outros», evolui para «cultivar as práticas pessoais espirituais e o self transpessoal, ir além do ego-self»
(p. 67). Neste contexto, a autora explica de que forma se interligam o cuidar
do próprio crescimento espiritual e a sensibilidade para com os outros28. Ressalta a importância de sermos capazes de olhar para dentro sem recear mesmo os
nossos aspectos mais obscuros – que receamos ou de que não gostamos – mas
que nos ligam profundamente ao humano. Esta é uma ideia, entre outras, que
está na base da sua adesão e recomendação de práticas meditativas. É este processo que está presente, como teremos oportunidade de verificar, nas práticas
de cuidar de C1.
28
«However, without attending to and cultivating one’s own spiritual growth, insight,
mindfulness, and spiritual dimension of live, its very difficult to be sensitive to self and
other. Without this lifelong process and journey, we can become hardened and brittle
and can close down our compassion and caring for self and other» (p. 67).
52
| Cuidar da Família ao longo da vida
Foucault (1994) desenvolve também o conceito de souci de soi (cuidado de
si) e de que forma este foi desenvolvido historicamente desde a antiguidade. Na
sua extensa exploração, explica que o cuidado de si, embora contemplasse os cuidados do corpo, era essencialmente um cuidado direccionado para a alma. Para
os epicuristas, a filosofia era «um exercício do cuidado consigo» e, para Séneca,
a disponibilidade para si próprio era importante para «uma pessoa se fazer a si
própria», «se transformar» e «voltar a si» (p. 57). No entanto, é em Epicteto
que Foucault reconhece a mais alta elaboração filosófica deste tema. Epicteto
define o ser humano como «aquele a quem foi confiado o cuidado de si […]
porque o deus quis que ele pudesse fazer livremente uso de si próprio; e foi com
esse objectivo que o dotou de razão» (p. 58). O mesmo autor continua fazendo
também referência ao conceito de epimeleia: «o termo epimeleia não designa só
uma preocupação, mas todo um conjunto de ocupações; é de epimeleia que se
fala para designar as actividades do dono da casa, as tarefas do príncipe que vela
pelos seus súbditos, os cuidados a prestar a um doente ou a um ferido, ou ainda
os deveres que se tem para com os deuses e os mortos. Também em relação a
si mesmo, a epimeleia implica um labor» (p. 62). Este labor sobre si próprio exige
tempo consagrado especificamente para o efeito: «[p]ara isso é preciso tempo
[…] Recorre-se a muitas fórmulas diversas. Pode-se, à noite ou de manhã, reservar alguns momentos ao recolhimento, ao exame daquilo que se tem de fazer,
à memorização de alguns princípios úteis, ao exame do dia que passou» (p. 62).
Este exercício habitual sobre si próprio está muito bem demarcado na narrativa de C1:
«eu chego ao final do dia, na paz do meu quarto, tudo às escuras, eu deito-me
na minha cama, raramente faço uma prece, mas, tento questionar-me. Tento
rever desde o início desse dia até ao final do dia e ver tudo aquilo... passar
como em filme o meu dia e dizer: “o que é que fizeste hoje? O que é que podias
ter feito? O que é que não fizestes? Ahh... onde é que falhastes? O que é que
podias ter dito? O que é que podias ter calado?”, ahh... e é nessa análise que
nós vamos tentando... é assim, o importante é tentar ser melhor hoje do que
fui ontem nem que seja uma milésima de um milímetro (risos) mas o importante
é nós trabalharmos nisso diariamente e: tentar ser melhor amanhã do que fui
hoje. E é isso que transmito às minhas filhas».
A cuidadora descreve um trabalho reflexivo diário, que incide sobre o fazer e dizer realizados ou omitidos com vista a um aperfeiçoamento contínuo.
É uma reflexão que se faz no quarto, local calmo, e às escuras, com estímulo
reduzido. É assim um momento de isolamento e de se relacionar consigo mesma, e, na linha do que é referido por Watson (2008), de analisar os aspectos de
si que não gosta e necessita de melhorar.
Resultados da análise |53
Estas práticas deste exame de consciência são também descritas por Foucault
(1994)29 associadas à prática dos «procedimentos de provação» (p. 71) utilizada para aquisição e avaliação de virtudes alcançadas. Práticas semelhantes
existem ainda hoje: diferentes religiões mantêm práticas de jejum e abstinência entendidas como forma de enriquecimento espiritual.
O Livro de Job, por exemplo, descreve uma vivência de sofrimento que se insere
num conjunto de provações progressivas a que é submetido por Deus. O exemplo de Job, servo justo e fiel, é um convite à compreensão de que nem sempre os
males terrenos devem ser entendidos como expressão da justiça divina que avalia
o binómio culpa-castigo. Eles podem constituir um convite ao aperfeiçoamento
quando se aceita a existência de desígnios não compreendidos. É no auge do seu
sofrimento que as questões que se relacionam com o sentido da vida emergem nas
lamentações30 de Job. Também C1 elabora um discurso que questiona o sentido
dos acontecimentos:
«O esforço físico, o... a nossa entrega pode ser... levar-nos até à exaustão por vezes, ao cansaço físico, mas depois... naquela hora nós até podemos dizer assim:
“tou cansada, porquê eu?”, ahh... questionamo-nos, até pode haver momentos
de revolta porque somos humanos não é?»
Por um lado, estas «provações» colocam em evidência a associação do
sofrimento aos males do corpo e à privação das suas necessidades; por outro, uma ideia generalizada de que «para crescer é necessário sofrer». Esta
Foucault (1994) refere que é Séneca (De ira, III) quem realiza a descrição mais
pormenorizada destas práticas reflexivas cuja origem atribui a Sextius (histórico
romano) e que consistia predominantemente numa avaliação do progresso ao fim do
dia: «quando se recolhia para o repouso da noite, Sextius interrogava a sua alma: “de
que defeito ficaste curada; que vício combateste: em que é que te tornaste melhor?”».
Estas práticas, também realizadas por Séneca, careciam da obscuridade, «a partir do
momento em que a luz se retira», e do silêncio (quando «a mulher se cala»). Foucault
(1994) cita as palavras de Séneca: «Que há de mais belo do que interrogar todo o seu
dia? Que sono iguala aquele que sucede a passagem em revista das suas acções? Como é
calmo (tranquillus), profundo (altus) e livre (liber) quando a alma recebeu a sua porção
de elogio e de censura» e explica que os procedimentos se enquadram numa espécie de
processo judicial semelhante ao «comparecer diante de um juiz» e administrativo que
visa «avaliar uma actividade executada, para reactivar os princípios e corrigir no futuro
a sua aplicação» (pp. 74-75).
30
«Porque não morri no seio da minha mãe, ou não pereci ao sair das suas entranhas?
Porque encontrei joelhos que me acolheram e seios que me amamentaram?» (Bíblia
Sagrada, 1986, Job 3, 11-12). Este lamento de Job é particularmente expressivo da
relação íntima entre o sofrimento, o sentido da vida e o sentido do cuidar.
29
54
| Cuidar da Família ao longo da vida
ideia, muitas vezes transmitida desta forma simplista, conduz, por vezes, a
interpretações lineares que, ou são terminantemente recusadas, ou poderiam
resultar na prática de uma série de actos estranhamente masoquistas. Torna-se então pertinente explorar os elementos que estão associados a esta ideia.
Na panorâmica que faz sobre as dificuldades sentidas estão bem demarcadas as privações que teve de ultrapassar:
«Ahh... cuidar de uma pessoa a tempo inteiro não é fácil. Especialmente quando não tem apoio de ninguém. Ahh... tem de prescindir da sua vida, do seu
tempo, da família, da sua profissão, de tudo! Tem que estar a cem por cento
disponível para aquilo que a pessoa lhe diz. Ahh... o que por vezes não é fácil
quando tem uma família, filhos, marido, ahh… uma profissão (riso) tudo em
cima dos seus ombros. E tem uma pessoa que você sabe que precisa de si a tempo inteiro. Não tem tempo por vezes nem sequer de tomar um duche rápido.»
Foucault (1994) descreve práticas de privação desde a tradição de Epicuro cujo objectivo era o de proporcionar aos praticantes o conhecimento
sobre os limites a partir dos quais a privação os fazia sofrer. Para os estóicos,
as mesmas práticas estavam também associadas à ideia de Séneca de «familiarização com o mínimo» (p. 73) e constituíam uma via a partir da qual
era possível uma preparação para futuras privações eventuais. Tornavam-se
assim em vias para o auto-conhecimento que se baseavam em exposição
controlada a factores conhecidos passíveis de despoletar sofrimento.
Foucault (1994) agrupa o objectivo geral destas práticas sob um princípio
comum que denomina de princípio de conversão a si, ao qual se associa uma
ética de domínio. Esta conversão a si representa o fim de um percurso de retorno do indivíduo a si mesmo, que procura pertencer-se a si próprio, depender
exclusivamente de si e exercer um poder (não limitativo nem ameaçador) sobre si31. O resultado dessa procura é o que o autor expõe nestes termos: «[a]
quele que conseguiu finalmente ter acesso a si próprio é, para si, um objecto
de prazer» (p. 79). É neste acesso a si que pode ser encontrado um prazer que
permite o estado de serenidade do corpo e da alma, pois não depende de nada
externo – onde se situam os prazeres «violentos, incertos e provisórios» (p. 80).
Foucault (1994) desenvolve também as referências que encontra relativamente à
necessidade de um «trabalho do pensamento sobre ele mesmo» que deve assumir a
forma de uma «filtragem permanente das representações: examiná-las, controlá-las,
triá-las». Este deverá ser uma constante na relação consigo mesmo. O autor explica que:
«o controlo é uma prova de poder e de garantia de liberdade: um modo de assegurar
em permanência que não ficaremos ligados àquilo que não depende do nosso domínio»
(p. 77). Não se trata de descobrir apenas os significados que poderão estar ocultos nas
representações mas perceber de que forma se relacionam consigo e o que, em liberdade,
se pode ou não aceitar.
31
Resultados da análise |55
Embora o cuidar do outro apresente pontos comuns, nas consequências,
com as «práticas de provação» descritas por Foucault (1994), há diferenças
que é importante considerar. A prática do heterocuidado exige a C1 uma descentralização quase permanente de si para o outro e, como é o caso deste episódio em análise, por tempo não determinado. Além disso, o reconhecimento
e valorização do outro introduz na equação um conjunto de variáveis que,
no respeito pela relação e especificidade de cada ser humano, não podem ser
completamente controladas pela cuidadora. Os contextos que C1 associa a
momentos de maior fragilidade irão ser analisados posteriormente.
Este enredo torna-se inevitavelmente numa via de abdicação de si própria, mas também desperta a necessidade de tempo para si. É neste olhar para
dentro que C1 procura reforçar o controlo sobre a relação que tem consigo
própria32 no sentido de se superar, de responder «com serenidade no corpo e
na alma» e evitar que o outro se sinta um fardo:
«você tem de estar disponível para essa pessoa. Ahh... e tem de estar minimamente por ela, você psicologicamente e fisicamente tem de se encontrar
Uma perspectiva possível para analisarmos a relação para consigo próprio é compreendê-la como o referencial, o ponto a partir do qual outras relações se desenvolvem.
A relação que cada um estabelece com o seu corpo é particularmente importante
para o cuidar: existe, por exemplo, a possibilidade de o corpo ser escutado, respeitado,
negligenciado, controlado, dominado e, até, transformar-se num companheiro com
quem estabelecemos diálogo e uma série de rituais que constroem a história em comum
(Gadow, 1986).
As necessidades confinam a pessoa devolvendo-lhe as limitações do seu corpo. Por
seu lado, o corpo – como teatro das emoções (Damásio, 2000) – e os seus sentidos
constituem vias pelas quais o indivíduo constrói a consciência de si, se expande, reforça
as suas relações com os outros e aumenta a capacidade de superar os limites que o próprio
corpo, como realidade física, determina. As emoções, na sua função de «barómetro
do nosso bem-estar» (Damásio, 2000), são despoletadas pelo corpo em necessidade.
Assim, no corpo em sofrimento ou privado dos seus sentidos e impossibilitado de se
expressar, de se expandir e de alcançar a compreensão e os significados dos outros, pode
habitar um ser aprisionado que vive a sensação permanente de ser encarnado (Gadow,
1980). Nesta situação, o corpo deixa de ser uma possibilidade de crescimento ou um
aliado para passar a ser «um fardo», e a «pessoa» – caso os outros não sejam capazes de
«desencarnar» e ir ao seu encontro – pode deixar de o ser para passar a ser «o corpo».
A relação com o seu corpo doente é também narrada por Miguel Torga (1999): «[o]
pior na doença, mais do que o sofrimento, é a desgraça de ter a todos os momentos
na consciência a humilhação das fraquezas do corpo. É sentir cada órgão a recusar
a função, cumprir de má vontade o acto de viver. É suportar a tirania dos sentidos e
nada poder contra a degradação e o empobrecimento de ser seu escravo. Viver é estar
inocente de si próprio» (p. 1717).
Watson (2002) explica de que forma uma visão mecanizada do corpo pode dar origem
a um conjunto de intervenções externas que consegue «ajudar a eliminar ou reparar
doenças do corpo físico, mas não consegue curar ao nível transpessoal, interior, profundo
o que aqui se pretende» (p. 130).
32
56
| Cuidar da Família ao longo da vida
bem para se poder dar, porque a pessoa que está naquelas condições não
necessita de sentir que é um fardo, de sentir que é pesada, de sentir que está
a causar um desgaste... porque aquela pessoa precisa de si. Então tem que
estar no seu melhor e... é assim, isto é se estiver sozinha como cuidadora
duma pessoa nessas condições […] Você precisa de tempo também para si,
de... com a minha avó eu tive alturas, como eu digo, eu nem ao duche eu
conseguia ir até eu ter a família em casa».
As ideias sobre o sentido do sofrimento desenvolvidas por Frankl (2004)33
podem contribuir para alargar as perspectivas nesta análise e ajudar a compreender de que forma o sentido do sofrimento se encontra intimamente ligado
ao sentido da vida. Frankl (2004) enfatiza que o sofrimento não é necessário
para encontrar sentido, mas que este pode ser encontrado nas situações em
que o sofrimento é inevitável. Um dos pressupostos básicos no qual assenta
a logoterapia, desenvolvida por Viktor Frankl, é que a principal preocupação
do homem não é a procura de prazer ou evitar a dor, mas sim a procura de um
sentido para a sua vida. A partir daqui, advoga que o homem pode, inclusive,
estar preparado para sofrer desde que o seu sofrimento tenha sentido. Frankl
(2004) explica que, sempre que somos confrontados com uma situação que
não podemos mudar, somos desafiados a mudarmo-nos34. É em face desta inevitabilidade que a mudança interior ocorre. O outro pode então representar
num paradigma de respeito pela sua individualidade e liberdade, a possibilidade do inevitável.
Neste cuidar familiar que C1 desenvolve, é o familiar e as suas necessidades que representam as circunstâncias inevitáveis e que escapam ao seu
controlo. Neste sentido, também C1 se torna dependente do outro e também
o heterocuidado pode induzir a mudança e desenvolvimento da relação que
estabelece consigo própria no sentido de também manter a sua integridade
(autocuidado).
Neste paradigma, as conexões entre as dimensões do autocuidado e do heterocuidado transformam-se num circuito interdependente em que cada uma
Publicação baseada na obra originalmente publicada em 1946 sobre o titulo Ein
Psycholog erlebt das Konzentrationslager (titulo original em inglês: From Death – Camp to
Existentialism).
34
«We must never forget that we may also find meaning in life even when confronted with
a hopless situation, when facing a fate that cannot be changed. For what then matters
is to bear witness to the uniquely human potential at its best, which is to transform a
personal tragedy into a triumph, to turn one’s predicament into a human achievement.
When we are no longer able to change a situation – just think of an incurable disease
such as inoperable cancer – we are challenged to change ourselves» (p. 117).
33
Resultados da análise |57
pressupõe a existência de outra, ambas se potenciam mutuamente e onde se
torna difícil de delimitar pontos de partida e de chegada, onde «tem de se encontrar bem para se poder dar»:
Figura 1. Circuito interdependente entre o auto e heterocuidado
Heterocuidado
Autocuidado
Sensibilidade para
com os outros
Abdicação de si
Consciência das
necessidades, limites e
capacidades pessoais
Sofrimento: privação da
satisfação das necessidades
«Conversão a si»
«Sensibilidade para consigo»
Meditação/reflexão
Procura de sentido
Estas interacções são o resultado de uma vivência paradoxal: ao mesmo
tempo que cuidar do outro (heterocuidado) é assumir a fragilidade do ser
humano e a inevitabilidade do sofrimento – porque nos confronta com
a possibilidade real de não sermos capazes de suprir as nossas necessidades – é, também, a negação deste pela procura de formas de superação
(autocuidado)35.
Na sua abordagem ao sentido do sofrimento, Frankl (2004) refere-se ainda
à liberdade que deve ser dada a cada um de atribuir sentido ao seu sofrimento, de ter orgulho, de o considerar dignificante, nomeadamente, de aceitar o
«desafio de sofrer corajosamente» (p. 118). O potencial de desenvolvimento
35
Neste paradigma de interacção em que se focam as dimensões do cuidar, o sofrimento
poderia ser definido como a ausência de resposta a necessidades sentidas causada
por acontecimentos de vida que criaram diminuição permanente ou transitória da
capacidade de cuidar de si próprio e/ou dos outros.
58
| Cuidar da Família ao longo da vida
não reside pois no facto exterior de sofrer mas no acto que o tenta superar com
coragem.
Perceber-se capaz de superar o sofrimento – pela relação que estabelece
consigo ou com os outros – pode constituir uma via de realização, uma forma
de encontrar sentido e, na medida em que isso se constitui como necessidade
humana, de autocuidado36.
Esta abordagem permite clarificar os processos despoletados pelas situações
de sofrimento para enquadrar e compreender a narrativa de C1:
«nos últimos quatro meses de vida da minha mãe eu acho que não há ninguém
que mereça esse tipo de sofrimento. Mas, também acho que o ser humano... ou
ao ser humano só lhes é dado aquilo que têm capacidade de».
O sofrimento é referido numa dicotomia paradoxal: o sofrimento «merecido» versus o sofrimento proporcional à «capacidade». Este segmento da narrativa ilustra a coexistência de duas concepções já analisadas sobre o sofrimento.
Uma que se orienta para a visão de que o sofrimento pode constituir uma
resposta a acções desenvolvidas e, neste sentido, ser (ou não) merecido – o
castigo ou punição – e outra que concebe o sofrimento num contexto que tem
em conta as capacidades do indivíduo e onde a superação é possível.
C1 explica então uma visão na qual a superação do sofrimento é conseguida
pela conclusão do processo de aprendizagem que a «vida» pretende estimular.
A vida transforma-se numa entidade mentora, equiparada metaforicamente a
uma «escola», e os acontecimentos na sua forma de comunicar «as lições» que
existem para aprender:
«nesta escola todos nós temos o nosso timing, ahh... cada um de nós tem as suas
competências, mas todos nós temos de chegar até vá, ao doutoramento (risos)...
[S – risos], é verdade! Ahh... tal qual uma criança pode fazer a primária nos
quatro anos que são devidos, há alguns deles que levam cinco! E depois há
alunos que chegam ao décimo segundo ano e é assim... nunca reprovaram, ahh,
passaram sempre... e nós também. Todas as lições que temos de aprender, ahh...
se não formos alunos aplicados, se não nos esforçarmos para aprender aquilo
que a vida nos tem para ensinar, tudo aquilo que nós temos que passar e que
dar, ahh... nós não vamos passar de classe, sem dúvida! Não evoluímos, não...
como... como na gíria mais jovem diz: “não conseguimos partir para outra”, não
conseguimos! Andamos ali a marcar passo até aprendermos a lição que temos
que aprender com... ou com... com aquele sofrimento, ou com aquela dor ou...
Em última análise podemos questionar-nos sobre até que ponto é que uma exposição
voluntária a situações que se conhecem a priori como causadoras de sofrimento não poderá
ser a via encontrada para exprimir a necessidade de encontrar um sentido para a vida.
36
Resultados da análise |59
ahhh... é quase, tipo... um círculo vicioso, ahh... que não vai desandar até nós
conseguirmos sair daque--... daq--... daquele circulozinho vá. Andamos ali à
roda e à roda e à roda e nós dizemos assim: “mas isto é cíclico não é? A lição não
foi aprendida? Estás a ser castigada?” é como, por exemplo, a professora primária: diz... faz um ditado, explica a diferença entre A com H e A com acento, e:
a professora diz: “ok, ahh... vamos lá: há nuvens no céu, escreve-se como” e o
aluno diz: “sem H” e a professora diz: “tá mal!”. No dia seguinte torna a dizer:
“há flores bonitas no jardim! Como é que escreves?”, “sem H”, “está mal!...
ouviste aquilo que te digo?” e a gente vai para casa, resmunga... atira com os
livros e… não é? No dia seguinte a professora diz ahh: “à uma hora, há um filme! Qual é a palavra que leva H?” se o aluno aprendeu a lição a professora diz
assim: “ah:: finalmente! Agora onde é que está o H?” Chegou lá, não é?».
Frankl (2004) realça a importância desta mudança de perspectiva perante
a vida: «[n]ós tínhamos de aprender e, além disso, ensinar ao homem em desespero que o que importava realmente não era o que nós esperávamos da vida, mas
antes o que a vida esperava de nós» (p. 85). Assim, o homem deve pensar em si
próprio como aquele que está, a todo o momento, a ser questionado pela vida.
A «vida» e as suas tarefas são também para Frankl (2004) algo muito concreto e real37. O sentido da vida e as tarefas a executar variam de homem para
homem e de momento para momento, pelo que uma definição geral do que é
concretamente o sentido da vida não é possível.
O sentido que C1 atribui ao sofrimento surge inserido num paradigma de
aprendizagem sobre a dádiva de si mesma. Nesta visão metafórica, a capacidade que cada um tem de encontrar formas de dádiva de si próprio influencia a
repetição de vivências e a descoberta da missão de vida:
37
«Na vida... todas as lições que a vida nos tenta transmitir é a mesma coisa, nós
podemos levar anos para compreender qual é a nossa missão na terra, o que é
que nós temos que dar para receber, e nós só aprendemos se nos aplicarmos.
Se... como é que eu hei-de dizer? Se realmente formos à luta, se nos dermos,
porque se não formos alunos aplicados vamos ali andar a marcar passo, não sei
até quando! Se calhar, passará esta vida e teremos outra vida e ainda estamos a
marcar o mesmo passo! (risos). Ahh… e é assim, eu descobri que, ao dar, embora
às vezes não seja fácil, e quando às vezes as pessoas dizem: “ah! Mas eu dou!
Eu vejo um pobrezinho e dou! Eu dou uma esmola!”. Não. Dar não é isso. Nós
só damos aquilo que é nosso. E o que é que é nosso? O que é que nós levamos
«“Life” does not mean something vague, but something very real and concrete, just as
life’s tasks are also very real and concrete. They form man’s destiny, which is different
and unique for each individual. No man and no destiny can be compared with any other
man or any other destiny» (p. 85).
60
| Cuidar da Família ao longo da vida
quando nós partimos? Não levamos nada, nem... nem o invólucro que é a parte
física. A bagagem que levamos é tudo de bom que nós fizemos por isso, aquilo
que damos é aquilo que é nosso, cá dentro (mão sobre o peito). Ahh... é assim,
eu acho que ainda não dei o suficiente.»
Neste processo de aprendizagem C1 realça o que para ela constituiu a
aprendizagem mais relevante:
«ahh... e a maior lição que nós podemos aprender e que todos temos de aprender,
não importa o tempo que levemos, ou quando vamos aprender, é o quanto é
importante o amor, o dar».
Na sequência da partilha de uma aprendizagem que considera universal, a
cuidadora revela de que forma os sucessivos episódios de cuidar a ajudaram à
tomada de consciência da sua missão no mundo:
«Eu acho que, ahh... (7)... que houve uma luz que se acendeu com a partida
dela, a luz que eu digo que não hei-de esquecer aquele brilho, brilho que foi
partilhado na hora da partida. Eu acho que foi algo que me iluminou. Ahh...
porque embora tivesse passado por experiências muito semelhantes e me tivesse dado, eu só comecei realmente a analisar tudo aquilo por… que eu tive
por passar, tudo aquilo que eu tive de vivenciar, ahh... e só quando realmente
interiorizei a lição que a vida me tava a tentar dar é que tive paz. Ahh... e tive a
percepção de qual a minha missão realmente porque eu questionava-me: “Porquê eu? Porquê a mim? Toda a minha vida?”, Porque sempre fui cuidadora, só
que eu não compreendia o porquê. E só com a partida da minha avó é que eu
disse: “mas é essa a tua missão”.»
Ser cuidadora torna-se numa forma consciente de realização pela percepção
de uma tarefa que permite pôr em prática a «lição» aprendida sobre o amor.
É através do cuidar do outro que C1 encontra uma forma de dádiva de si.
A descoberta da missão de vida surge no contexto do confronto com a morte
da avó38 e resulta de um diálogo interno que permite tornar consciente algo
que a movia mas que lhe era desconhecido até então.
Nos escritos de Viktor Frankl (2004) e Watson (2005) podemos encontrar
relatos dos autores descrevendo momentos de consciencialização semelhantes39. Para Frankl (2004) «o amor é o último e maior objectivo para o qual o
Posteriormente irá ser discutido de que forma o confronto com a morte pode catapultar
questões sobre o sentido da vida.
39
«A thought transfixed me: for the first time in my life I saw the truth as it is set into song
by so many poets, proclaimed as the final wisdom by so many thinkers. The truth – that
love is the ultimate and the highest goal to which man can aspire. Then I grasped the
meaning of the greatest secret that human poetry and human thought and belief have
to impart: The salvation of man is trough love and in love» (Frankl, 2004, p. 49).
38
Resultados da análise |61
homem pode aspirar» (p. 49). Watson (2005) explora o amor como o estado
mais elevado de consciência, um campo de energia universal ao qual todos estamos ligados e vê o percurso da vida humana como um processo de lembrança
de si: pertencer, ser e tornar-se – Belonging-Being-Becoming.
2.2.5. Cuidar da avó
O episódio de cuidar da avó foi o mais recente e, como já foi referido, o
único em que se verificou a existência de apoio de saúde estruturado através
de uma equipa de cuidados continuados. É o relato mais extenso e pormenorizado.
Para efeitos de análise, consideraram-se vários momentos do decorrer da
acção, respeitando a sua sequência cronológica. Concomitantemente, foram
analisadas as dinâmicas ocorridas, possibilidades simbólicas e realizada revisão
bibliográfica sobre os conteúdos emergentes para uma compreensão mais alargada de cada momento em particular.
O contexto do início do cuidar e o ideal do cuidar intergeracional
A descrição do cuidar da avó inicia-se no momento da decisão de mudança
de país:
«e quando o marido decidiu, derivado à insegurança política do país na altura,
ahh, vir para Portugal, ahh, claro, como família, viemos todos. A minha avó
na altura ainda não vivia a tempo inteiro comigo, ahh, tínhamos uma relação
muito chegada, a única coisa que ela não fazia era dormir lá em casa, dormia
em casa da minha ----- {pausa durante a verificação do gravador}
C1 – ... (7)... ahh, quando tomamos a decisão, a minha avó disse que queria vir
connosco primeiro porque era muito chegada a nós e segundo ela disse não ia
deixar os netos nem as duas bisnetas, ahh nós concordamos em trazê-la contra
«But for now, I want to explain that all of this experience and time out/in resulted in one
epiphany of a moment, when I had this powerful cosmic moment when I felt that I had
Become Love! It was not a feeling of being loved, or being in love, I felt I WAS LOVE, and
it was as if I realized that was what I had come here to remember […] I now believe my
experience of Becoming Love is our true state of Belonging-Being-Becoming that we are
all seeking to remember in our own way. I felt I had received a holy gift, which I cannot
forget» (Watson, 2005, p. 73).
62
| Cuidar da Família ao longo da vida
a vontade das filhas, ahh, mas mesmo assim nós trouxemo-la, então ela viveu
connosco, ahh, debaixo do mesmo tecto, com tudo partilhado, ahh, aqui em
Portugal, pronto, ahh, praticamente dezasseis anos».
A mudança de país foi o momento que marcou o assumir da responsabilidade do cuidar, pela inclusão formal da familiar (avó) na família nuclear que mudou de país. O contexto de comprometimento da segurança é o que vai despoletar uma reavaliação das relações existentes na família e tornar evidente, pela
manifestação da sua vontade, o grupo familiar onde a avó se sente incluída.
Há aqui dois aspectos que se destacam de forma particular: o primeiro diz
respeito à sobrevalorização da vontade da doente relativamente à vontade das
filhas; o segundo, ao papel preponderante atribuído à relação já existente, que
acaba por estar na base da escolha realizada. Esta é também uma decisão fracturante do esquema familiar formal, que afasta geograficamente a mãe (avó
de C1) das filhas, que decorre num contexto de conflito de vontades e que irá
condicionar no futuro as dinâmicas familiares e a assumpção da responsabilidade pela prestação de cuidados.
A cuidadora contextualiza a sua relação com a avó na história e ciclo de
vida familiar. A relação preexistente com a mãe da cuidadora e a morte prematura desta contribuíram para o reforço da ligação afectiva que já existia. Neste
caso, a morte de um elemento da família causa alteração no sistema familiar e
reforço de relações preexistentes:
«Ahh, e depois de ela perder a minha mãe eu acho que o elo de ligação que havia
entre nós ainda mais forte se tornou, porque ela perdeu a filha que, para ela, era
a filha mais querida, a filha mais próxima. Ahh... (3)... e é assim, claro que, se
na saúde nós tivemos próximas na doença... ainda essa proximidade, ainda mais
aumentou porque, naquela altura claro, ela precisava de nós, não é?»
A relação é descrita associada à partilha. Os elementos partilhados são enumerados nos aspectos mais essenciais: o tempo e o espaço. Esta partilha de tempo
e espaço é a expressão de uma partilha contínua, simbolicamente representada
nos conceitos que a definem como fisicamente existente, mas ao mesmo tempo
como a via para aceder a outros níveis de partilha dos envolvidos:
«porque ela já faleceu há dois... (3)... é assim... (4)... quando... (3)... a gente
partilha o mesmo tecto partilha-se muita coisa, ahh... (2)… ela já não era nova
(expressão facial: boca trémula e com olhos humedecidos)».
No entanto, embora a relação e o facto de morarem na mesma casa sejam
os primeiros factores referidos que estiveram presentes na ponderação para
cuidar, outros factores se revelaram também pertinentes no decorrer da narrativa da cuidadora. C1 exprime um processo de decisão que avalia circunstân-
Resultados da análise |63
cias do passado e do presente relativamente a vontades expressas pela doente
e tipo de cuidados prestados pelas filhas:
«É assim, isto foi o que levou ao meu envolvimento. Ahh, foi o ela estar em
minha casa, e como eu mencionei antes, ela... a minha avó teve três filhas, duas
das quais ainda são vivas, ahh, que infelizmente não quiseram muito saber da
mãe... (3)... das 3 filhas... (2)… a única que era mais chegada a ela e que com
ela ainda dizia que não se importava de viver se não fosse connosco era a filha
mais nova que era minha mãe […] ahh... e embora, quem sou eu para julgar as
outras pessoas, mas é assim, embora ela tivesse filhas, embora muitas pessoas
me perguntassem e dissessem e chegassem a afirmar que eu não tinha obrigação, ahh, quando lhe era perguntado a ela... porque as filhas chegaram-me a
fazer-me uma abordagem e a dizer: mete-a num lar…»
É este o cenário que despoleta a decisão de cuidar. A relação afectiva de
proximidade que era estabelecida pela avó com a filha transfere-se agora
para a neta (C1) e esta assume também as responsabilidades que caberiam
e que seriam provavelmente assumidas pela mãe, não fosse a sua morte prematura.
Além disso, se, por um lado, a cuidadora reconhece a formalidade da obrigação socialmente reconhecida que atribui aos filhos o cuidar dos pais, por
outro, percebe que o respeito pela mesma iria culminar num desprezo pela
vontade da familiar doente, algo a que C1 atribuía mais valor:
«quando ela necessitou dos cuidados continuados e de um cuidador a tempo
inteiro com ela, e foi-nos proposto outras alternativas não só o domicílio, eu
disse: “é assim, por mim ela continua aqui, quer tenha ajuda ou não”. Ahh,
mas é assim, há duas filhas, quem sou eu para dar v... voz à vontade porque,
primeiro elas, mas, antes de mais, o doente porque, como a minha avó estava
consciente e conseguia comunicar, ela só dizia: “eu sei que te estou a dar
muito trabalho” e eu disse: “o trabalho para mim não é nada, se é aqui onde
você quer estar, é aqui que você vai continuar”. Ahh... pronto, e foi assim até
ao fim».
Esta ponderação e escolha perspectivam o cuidar familiar idealizado por
C1. Esta opção constitui-se assim como uma via possível para atribuição de
sentido para a existência de laços familiares e estes, por seu lado, são percebidos como essenciais para que se desenvolvam os esforços necessários para
cuidar com afecto:
«eu gostava, se algum dia me achar nessas circunstâncias, de ter alguém que
trate de mim, mesmo que não tenha capacidade de o fazer, porque às vezes o
importante é saber que está ali alguém, que nos quer, que nos tá a dar apoio,
que nos ampara, ahh... que está connosco, não é? E se for alguém que nos é
64
| Cuidar da Família ao longo da vida
querido ainda mais, não é? Porque é assim... eu não digo que as pessoas nos
hospitais não sejam bem cuidadas, longe de mim, não é? Claro que há sempre
alguém... como é que eu hei-de dizer? Ahh... há sempre… al… alguém dentro da área da saúde que se calhar se afeiçoa mais ou menos àquele doente
que se calhar até lhe diz algo, ou lhe transmitiu algo, ou que há aquela química entre elas, mas é assim, eu acho que não é a mesma coisa. Porque, ahh... os
laços de família existem por alguma razão... e é algo que nos aproxima mais.
Então... se calhar através desses laços, ahh... esse elo fala mais forte e nós
podemos dar mais de nós. Por... se calhar a filha... eu não digo que seja, mas
devia de ser, não é?».
Aos laços familiares é atribuída uma simbologia de compromisso incondicional para cuidar ou uma garantia de protecção, amparo e afecto – tornam-se em si mesmos num valor na medida em que proporcionam, na perspectiva
da entrevistada, uma ligação mais profunda que nutre com a energia necessária para a superação pessoal que o cuidar do outro exige. Esta descrição e
atribuição de poderes aos laços familiares constituem também uma hipótese
na tentativa de explicação e expressão de diferenças fundamentais no cuidar
familiar relativamente ao cuidar formal dos cuidadores ou instituições. C1
não se foca nos cuidados objectivos propriamente ditos, considerando até a
possibilidade de o cuidador familiar ter menos capacidade para executá-los,
mas na garantia de uma presença significativa e afecto. Kahana et al. (1994)
explicam, citando Litwak (1985), que os toques pessoais que são necessários
para manter o bem-estar emocional de quem recebe cuidados podem faltar
nos encontros com os prestadores formais. Além da ligação não familiar, há
ainda a considerar como possível factor indutor de despersonalização as exigências burocráticas das estruturas e organizações que prestam cuidados de
saúde.
Sarti (2001) refere que «[s]e os laços biológicos unem as famílias é porque
são, em si, significantes. Ninguém se atreveria a contestar a força simbólica
dos laços de sangue em nossa cultura ibérica/ocidental». No entanto, esta referência surge na explicação de que a família «não corresponde à soma de
indivíduos unidos por laços biológicos mas pelos elementos significantes que
criam os elos de sentido nas relações familiares, sem os quais estas relações se
esfacelam, precisamente pela perda, ou inexistência, de sentido». Assim, sem
negarmos a força simbólica do laço biológico que pode delimitar naturalmente
os elementos que constituem a família, percebemos que as relações existentes
e a força dessas relações dependem também do sentido atribuído e partilhado
pelos indivíduos nela inseridos. Ponderar a importância da partilha de histórias
vividas em conjunto e a partilha de sentidos para a criação de laços remete-nos
Resultados da análise |65
para o papel preponderante que a narrativa pode desempenhar em contextos
de cuidar formais no sentido da humanização e de dar resposta às necessidades
emocionais dos doentes.
Uma nova simbologia é possível atribuir aos laços familiares – a representação da força da profunda partilha de histórias inerentes à vida familiar.
A cuidadora idealiza então um cuidar da família ao longo da vida onde os pais
cuidam dos filhos e reciprocamente os filhos cuidam dos pais na velhice. A lei
portuguesa reconhece este modelo de obrigação no seio da família40.
Além dos estudos sincrónicos e diacrónicos das famílias (Alarcão,
2006), poderá também ser relevante reflectir e aprofundar o valor simbólico e os significados atribuídos às diferentes gerações que se cruzam no
ciclo de vida familiar para melhor percebermos que emoções poderão ser
despoletadas na vivência deste cuidar intergeracional. Teremos aqui de considerar o facto de que avós, pais e crianças partilham uma vivência de tempo em conjunto, mas têm uma relação diferente com este: a relação com o
passado é intensa nos avós, mediada pelos pais e praticamente incipiente
nas crianças. Entretanto, a relação com o futuro pessoal varia geralmente
na proporção inversa. É habitualmente à geração de adultos que vivem a
fase produtiva das suas vidas que, inserida neste paradigma de responsabilidade familiar pelo cuidado, cabe o cuidado dos idosos dependentes e
das crianças. Uma atribuição simbólica do passado, presente e futuro da
família respectivamente às gerações dos avós, pais e crianças situa-a como
mediadora entre o passado e o futuro (fig. 2). Esta é a geração denominada
frequentemente de geração sandwich (Seaward, 1999; Pierret, 2006). No
entanto, Sarti (2001) explica que: «quanto aos idosos, sua presença na família marca uma noção de tempo – passado, presente e futuro –, dada por
gerações que se sucedem. Junto com as crianças, os velhos conformam uma
ideia de continuidade, que corresponde à própria concepção de família no
«1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes,
prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e
administrar os seus bens. 2. Os filhos devem obediência aos pais; estes porém, de acordo
com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares
importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida» (art.o 1878.o,
do Código Civil).
«1. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência. 2. O dever de
assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a
vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar»
(art.o 1874.o, do Código Civil).
40
66
| Cuidar da Família ao longo da vida
imaginário social. O cuidado dos idosos pelos adultos da família é parte
desse movimento cíclico, dessa noção cumulativa da família, como uma
retribuição que lhe é devida» (p. 91).
A relação do tempo com a mudança poderá também ter diferentes valores simbólicos que poderão ser relevantes considerar. No passado reside
o que já não pode ser mudado e necessita de ser aceite: é o tempo onde se
situam as perdas e o que necessita de ser perdoado. No futuro, reside todo
o potencial de mudança e o desejo; no presente, reside o momento das
escolhas que tentam conciliar a experiência passada com as expectativas
para o futuro.
Esta ligação simbólica do tempo com a sua representação material nas
diferentes gerações da família não pode ser encarada de forma rígida, mas
poderá orientar, de uma forma muito genérica, para as questões que poderão emergir durante o cuidar dos familiares: o confronto com as perdas de
capacidades e a necessidade de perdão por actos do passado no cuidado
dos pais e idosos; a ajuda para aquisição e gestão de competências adquiridas e a esperança de um futuro diferente no cuidar das crianças (fig. 2).
Estas ideias são ainda expandidas na descrição de Satow (2005) quando
compara o cuidar dos pais e dos filhos e a perspectiva de futuro que ambos
encerram: «[c]uidar de um pai ou mãe idosos não é o mesmo que tomar
conta de uma criança. Em vez de estarmos a investir num crescimento
saudável e em autonomia, aqui estamos perante uma deterioração lenta
ou, em alguns casos, rápida até. Em lugar de vermos o mundo da criança a abrir-se e a expandir-se, o que vemos, neste caso, é o mundo dos
nossos pais a ficar cada vez mais reduzido. Ao contrário da criança, que
tem a vida pela frente, os pais idosos têm a morte à sua frente» (p. 249).
O relato de C1 sobre o cuidar da avó espelha esta realidade simbólica,
à qual se associam evidências físicas (nas perdas observadas) e sensitivas
(experiências semelhantes às que tinha já vivido durante o cuidar do pai):
«os últimos dois anos nós começamos a notar uma d... decadência, vá (hesitação) ahh, uma degradação física mais do que psicológica, ahh, pronto,
ela, derivado às cataratas, já não via tão bem, ahh, começou a ter novamente alguma incontinência urinária por exemplo […] e é assim, a urina
de uma pessoa idosa não tem o mesmo odor que a urina de uma criança ou
de um bebé».
A figura 2 procura esquematizar, de forma muito simplificada, as interacções que decorrem das etapas do desenvolvimento individual com a sua correspondente geracional e simbologia temporal associada.
Resultados da análise |67
Figura 2. A relação das dimensões temporais com o ciclo de
vida individual e correspondente ciclo geracional da família inserida
num paradigma de cuidado intergeracional
Futuro:
– Esperança
– Gestão da
aquisição de
capacidades
Infância/
/Adolescência
(Filhos)
Nascimento
Idade Adulta
«Geração sandwich»
Morte
(Pais)
Velhice
(Avós)
Presente:
– Análise do
passado e
escolhas
para o
futuro
Passado
– Histórias do
passado
– Perdão
– Perda de
capacidades
Descrição dos cuidados realizados
A descrição da evolução da doença da avó, da participação nas decisões
médicas tomadas, das necessidades, capacidades e cuidados prestados é minuciosa e revela um progressivo e profundo envolvimento da cuidadora no
acompanhamento da familiar doente.
O primeiro cuidado que identifica é o acompanhamento médico, assumido
por C1 devido à existência de competência facilitadora:
«ahh, e é assim, todas as vezes que ela necessitava de acompanhamento médico
era eu que ia com ela. Ahh, na altura na África do Sul, por causa do problema
da língua, de comunicar, pronto, a minha avó não falava inglês, nenhuma das
filhas falava inglês, e: eu é que a acompanhava, não é?».
Verifica-se um conhecimento bastante organizado dos antecedentes de
doença, assim como a sua denominação utilizando terminologia específica:
«ela teve aqui em Portugal ahh, dois episódios graves de AVC, ahh, e:: ela era
hipertensa, sofria de angina de peito, ap..., coisas que, com a idade, claro, há
68
| Cuidar da Família ao longo da vida
o desgaste físico, há acumulação de toxinas e tudo o resto e apesar de sermos
uma máquina perfeita a máquina também falha (risos) [S – pois falha], ahh, à
parte disso pronto, nós nunca tínhamos descoberto ou nunca nos foi dito que
ela sofresse assim de uma patologia bastante grave, não é? À parte dos AVC,
pronto…».
No relato dos problemas de saúde que afectaram a familiar é incluída a
descrição das circunstâncias que levaram à descoberta de doença oncológica,
assim como os contornos do seu envolvimento na participação nas decisões
que ponderam o prognóstico e os tratamentos a realizar:
«Ela [a médica] disse-me: “nós não temos 100% a certeza mas temos 90%.
Tamos quase lá, de que a avó sofre de cancro do endométrio, ahh, com esta
idade, derivado aos problemas de coração e a idade dela e tudo nós não vamos fazer muito mais. Não vale a pena operá-la, ahh, só causaria transtorno,
não é viável, e:: nós vamos medicá-la e vamos ver como é que isto vai evoluir”, pronto.»
Após a exposição dos antecedentes de doença, a cuidadora descreve o padrão habitual da avó relativamente às capacidades para suprir as suas necessidades:
«ahh, ela sempre foi muito autónoma, muito independente, ahh, muito consciente, muito lúcida ahh».
A descrição do cuidar revela competências direccionadas para a avaliação
de limitações e capacidades atendendo ao conhecimento dos padrões habituais
de comportamentos e rotinas e medindo a recuperação, após episódio de doença aguda e debilidade, pela capacidade de executar actividades de vida diária:
«ela teve novo AVC, foi internada, depois de ter sido internada ela veio para
casa bastante debilitada ahh, mas é assim, nada que ela não tivesse recuperado:
ela recuperou o andar, ela recuperou a fala, ela recuperou a autonomia… ahh...
completa pronto, ela lavava-se, ela vestia-se já com alguma dificuldade derivado à idade, não derivado a qualquer patologia em si ahh…».
Mais uma vez, e à semelhança do que tinha acontecido no passado (aquando da mudança do país), é a confrontação com a necessidade de garantir a
segurança da avó que vai originar alterações na relação existente:
«uma das vezes na altura do Inverno adormeceu com um cobertor eléctrico
ligado na cama que nós não nos apercebemos, tinha frio: “eu vou para a cama,
tá tanto frio, vou ligar o cobertorzinho; antes de adormecer, desligo” e eu nunca
me passou pela cabeça verificar porque ela era cuidadosa o suficiente para, não
só com ela mas com as bisnetas: “vejam lá, vejam se o saco de água quente está
bem fechado e assim, não adormeçam com o cobertor, liguem uma hora antes
Resultados da análise |69
de irem para a cama assim que entrarem desliguem, olhem que isso pode causar
algum curto-circuito [ S – pode ser perigoso] e pode ser perigoso”. Nessa noite
ela adormeceu de cobertor eléctrico e não deu conta que fez uma quei... queimaduras graves na parte das nádegas e na zona sacra […] depois do episódio da
queimadura e do episódio da descoberta do cancro do endométrio ela começou
ainda em declínio mais acentuado, ela deu uma queda, durante a noite […]
Ahh, e ela tinha por hábito nunca acender a luz do quarto, nunca. Ela levantava-se da cama, sabia onde o bacio estava, abaixava-se, sentava-se no bacio,
mas um dos dias ela desequilibrou-se no bacio e caiu desamparada, bateu com
a parte de trás da nuca numa camilha, que servia de mesa-de-cabeceira, ahh, e
raspou. E a partir daí, é assim, foi a queimadura, foi a descoberta do cancro do
endométrio [S – do endométrio…], foi a queda e a minha avó depois começou
por perder o andar, começávamos a trazê-la e ela acompanhava-me até aqui,
ahh, onde quer que fosse, a minha avó ia comigo. Se eu saísse de casa às 6 da
manhã, às 6 da manhã a minha avó saía comigo».
C1 altera o padrão relacional estabelecido quando observa incongruências
entre o que a avó verbaliza e consegue fazer, ao deparar-se com a ocorrência
de acidentes em circunstâncias não esperadas. Os acidentes domésticos mudaram a percepção da cuidadora sobre a capacidade da familiar cuidar da própria segurança. Os aspectos que anteriormente tinha utilizado para descrever
a partilha existente (tempo e espaço da interacção) são agora alterados, com
aumento do tempo de contacto e redução do espaço entre ambas de forma a
garantir uma vigilância permanente:
«Ahh, com o declínio que se foi notando e acentuando, eu já não confiava, por
exemplo, ela acender o fogão, ela acendia o fogão e depois em vez de desligar
o bico, ahh, torcia o botão em sentido contrário, a chama apagava e o gás continuava aceso. Ahh, pequenas coisas que eu notei, pronto. Ela dizia-me: “mas
já não tens confiança em mim?”, “não é isso avó, é assim, eu prefiro que você
esteja comigo porque assim eu estou de olho em ti... em... em si, ahh, e então
pronto, eu saía de manhã e ela saía comigo e quando eu entrasse em casa à
noite ou a horas... à hora que fosse ela regressava a casa comigo.»
Às questões da segurança física se associam imediatamente questões que se
relacionam com a confiança existente na relação existente, colocada em causa
perante a alteração das dinâmicas relacionais e a proximidade progressiva que
as novas circunstâncias exigem.
Espontaneamente, C1 descreve com pormenor a abordagem que faz à avó
para promoção da mudança no padrão de satisfação da necessidade de eliminação vesical:
«e eu então disse: “ó avó não leve a mal, mas olhe, é assim, há umas cuequinhas, não é fraldas, é umas cuecas tal e qual uma cueca normal que você veste,
70
| Cuidar da Família ao longo da vida
eu vou-lhe comprar um pacotão e você vai ver se se adapta”. Numa das alturas
em que eu depois, eu comprei o pacotão e disse-lhe: “olhe vamos experimentar” e ela disse “oh tá bem”».
A descrição pormenorizada da interacção que visa ao estabelecimento
de novas formas de satisfação da necessidade em causa é muito reveladora.
A cuidadora prevê uma possível dificuldade da avó na utilização do dispositivo
de contenção de urina, evita a utilização da denominação de fraldas, sugere
o dispositivo mais parecido com o habitualmente utilizado (cueca), considera a possibilidade de não adaptação e sugere um período de experimentação.
O culminar da interacção revela uma aceitação aparentemente pacífica da
mudança proposta. Todo o cuidado na construção da forma de abordagem de
C1 poderá ter origem nas suas próprias concepções relativamente à necessidade de utilização de fraldas, às suas experiências anteriores com os outros familiares que cuidou, às concepções sociais inerentes ao simbolismo da utilização
de fraldas por adultos e idosos ou, ainda, a um conhecimento prévio sobre o
que a avó pensava sobre o assunto. Estas são possíveis variáveis que podem
interferir com a interacção durante o cuidar das necessidades dos outros e que
envolve o contexto social, a história individual do cuidador, da pessoa cuidada
e da partilha de ambas. Compreende-se daqui a possibilidade de que a partilha
das histórias e a convivência familiar contribua para a criação dos mapas das
características individuais de cada um e que o cuidado no seio da família possa
garantir um apoio personalizado, atento ao detalhe e toques pessoais, conforme
já descrito por Kahana (2005).
Um outro aspecto particularmente importante se revela no início desta
descrição da interacção. C1 preocupa-se com a possibilidade de a relação
com a avó ser afectada neste processo em que assume a iniciativa e exerce
algum controlo sobre ela. Assim, começa o diálogo salvaguardando o seu receio: «ó avó não leve a mal». Este é um momento ilustrativo de como cuidar
de outro, ainda que familiar próximo, pode envolver um profundo nível de
contacto com a intimidade física à qual se associam outros níveis de partilha
pelo que lhe está simbolicamente associado. O cuidador não se confronta
simplesmente com o toque e observação simples de partes do corpo habitualmente consideradas do foro íntimo, mas também com os sentimentos que isso
lhe pode despoletar e a reacção de quem está a ser cuidado à exposição e ao
controlo do outro.
Num outro momento da narrativa, C1 recorda um momento de refeição:
«a minha avó tinha por hábito dizer, nós chegávamos a casa e se ela tivesse
lanchado tarde eu tirava-lhe a sopa e levava-lhe a sopa até ao sofá e dizia: “vá
Resultados da análise |71
vamos a comer a sopa, se não quer ir à mesa, está aí aconchegada”, “ahh, não
me apetece jantar, eu lanchei tão tarde”, “vá lá”, às vezes eu dizia às minhas
filhas: “levem a tigela vazia, vão lá dentro, dizem à vó que tá aí a sopa” ela di...
assim que c... ia ver a tigela ainda à entrada da sala dizia: “não quero a so... não
quero comer, não quero sopa, eu depois, se tiver aqui mais um bocadinho bebo
uma chávena de café com leite ou qualquer coisa antes de me ir deitar para a
tua mãe depois não se chatear comigo, diz que é muita hora sem comer” depois
nós, uma de nós gritava da cozinha: “ó vó mas olha que é piza ao jantar” eu
achava-lhe uma graça que ela levantava-se do sofá e dizia assim: “é piça?”, não
dizia piza: “É PIÇA? ENTÃO EU QUERO!” [S – risos]
... então cada vez que fazemos piza lá em casa, nós pomos sempre um lugar
extra! Pode achar que é um... uma maluquice vá, parvoíce, mas nós pomos a
mesa e quando há piza lá em casa nós pomos um lugar extra, e: nós partimos
as fatias, ahh, servimos, e: ou eu ou uma das minhas filhas viram o prato,
nós viramos os pratos ao contrário, ahh, viramos o prato, pomos um bocadinho de piza naquele prato, no lugar que era dela e: inevitavelmente uma de
nós diz sempre: “Avó, hoje é piza” e todos nos desmanchámos às gargalhadas
porque... ahh, é assim, não é... não é... como é que hei-de dizer? Uma pessoa
pode dizer assim: “ah! Isso não tem graça nenhuma” mas, é com carinho,
com saudade, é: uma lembrança que fica. Ahh, são nessas pequenas coisas,
nessas pequenas vivências, ahh, que está a importância da vida, que está a
essência da vida, ahh... porque é assim... aquilo que eu aprendi... porque a
vida é uma escola para todos nós. Todos nós temos de passar por essa escola,
e: a escola da vida dá muitas… aprendizados vá, e ao sermos alunos nesta
escola, todos nós temos lições a aprender, sejam elas qual forem, ahh... e
a maior lição que nós podemos aprender e que todos temos de aprender, não
importa o tempo que levemos, ou quando vamos aprender, é o quanto é
importante o amor, o dar. Porque é assim, eu aprendi que é dando que a
gente vai receber. Geralmente nós recebemos muito mais do que aquilo que
damos».
Esta descrição é exemplificativa de como a alimentação se encontra relacionada com muito mais do que a simples ingestão de alimentos e líquidos para
sobrevivência (Watson, 2008). Neste caso particular, o momento de partilha é
recordado e ritualizado após a morte da familiar.
O ritual torna presente a vivência do passado pela repetição dos actos que
renovam a vivência de memórias significativas positivas e permite a partilha
em família de um momento em que se procura transcender os limites do tempo linear. O ritual, além de se tornar numa via possível para elaboração da
perda/luto, tem também o objectivo de ajudar a construir a história comum
da família que irá atravessar as futuras gerações (Alarcão, 2006). Fiamenghi
(2002) explica que os rituais são «eventos dinâmicos e devem responder às
72
| Cuidar da Família ao longo da vida
necessidades da família» (p. 28) e distingue vários tipos de rituais: rituais de
celebração, de libertação e de transformação41. Também Giblin (1995) se refere à importância dos rituais na família como facilitadores da formação da
identidade, de transições de desenvolvimento, da manutenção da estabilidade
e continuidade, de processos de sarar, e de conexão entre dimensões afectivas,
de sentido, simbólicas e inconscientes da família.
No contexto do que entende por Caritas Nursing, Watson (2008) desenvolve os significados associados à necessidade de comida e bebida. A autora
explica que a experiência de nutrir alimenta ambos os envolvidos no acto.
É através da dádiva que se recebe. Esta necessidade está associada com a confiança, amor, calor e segurança nas relações humanas. Experiências passadas
conscientes e inconscientes, significados reais e simbólicos estão também relacionados com esta necessidade42.
Nesta descrição é também visível o ajustamento que a familiar doente faz
relativamente à ingestão de alimentos para corresponder às expectativas da
cuidadora relativamente à sua alimentação. O objectivo é alimentar-se de
acordo com o esperado ou negociar para que a relação entre ambas não seja
afectada. Na sequência da descrição do momento da alimentação, a cuidadora
associa, validando a perspectiva de Watson (2008), as suas ideias sobre a vida,
o amor, o carinho e sobre dar e receber.
«a) Rituais de celebração: homenageiam situações que foram bem-sucedidas ou
simplesmente expressam amor e carinho. Eles comemoram o que é positivo e permitem
uma conexão dos indivíduos com um senso de humanidade através do tempo,
favorecendo as lembranças felizes. Rituais desse tipo são os aniversários, nascimentos,
casamentos, promoções, aquisições pessoais significativas, etc.
b) Rituais de libertação: rituais que permitem desvencilhar [sic] os indivíduos de emoções
dolorosas, favorecendo um senso de proximidade e de compartilhar. Rituais de libertação
podem ser utilizados para perdoar os outros, reconciliar diferenças, lidar com luto e
recobrar-se de eventos traumáticos.
c) Rituais de transformação: importantes quando os indivíduos mudam para fases diferentes
de vida, auxiliando a terminar situações e iniciar novas. Rituais desse tipo estão presentes
em sociedades que celebram a passagem da adolescência para a idade adulta» (p. 28).
42
«Theory and research support the proposition that emotional and energetic associations
are related to this biophysical Basic need. Emotional factors can create associations that
permeate life patterns and affect imbalances and eating disorders. Food and fluid need
represents and symbolizes much more than the intake of nourishment for survival. This
need is energetically associated with trust, love, warmth, security, and safety in human
relationships. This need is related to past experiences, conscious and unconscious
experiences and meanings, symbolic and real meanings associated with early feeding
experiences, and relationships with food, eating, and emotional experiences with
significant others […]» (p. 152).
41
Resultados da análise |73
As interacções que ocorrem entre o cuidador e quem está a ser cuidado
são o palco dos simbolismos que estão associados à satisfação das necessidades
humanas e estes dois exemplos, embora limitados e não generalizáveis, são
demonstrativos de duas vivências distintas que ocorrem simultaneamente: ser
cuidador e ser cuidado. Por exemplo, Satow (2006) referindo-se à experiência
dos filhos de cuidar dos pais escreve o seguinte: «[o] cuidador tem que fazer
sacrifícios pessoais e debater-se com a raiva e o remorso, enquanto o pai idoso
tem de abdicar da sua autonomia e aceitar que depende dos filhos. Mesmo
quando tudo corre bem, a prestação de cuidados está afectada por conflitos
emocionais» (p. 253).
Kahana et al. (2006) explicam que, no que concerne aos estudos efectuados
sobre o cuidar na família, a ênfase tem sido a figura do cuidador e refere-se à
necessidade de considerar a díade cuidador/receptor de cuidados na expansão
do paradigma de cuidar para uma perspectiva interactiva, que considera não
só o prestador de cuidados mas também o receptor. Posteriormente, irão ser
analisados com mais pormenor aspectos relacionados com a realidade de ser
cuidado.
Os contextos da perda de sentido
A descrição dos momentos de maior fragilidade aparece associada a momentos em que poderá existir descarga emocional não controlada dirigida a
pessoas que não estão directamente envolvidas na situação. Um período longo
de prestação de cuidados e a incerteza sobre o tempo que a situação irá durar
originam também sentimentos de ambivalência:
«Tento trabalhar diariamente para ser melhor. Ahh... mas há coisas que falham.
É assim, às vezes, ahh… nós até disparatamos com a pessoa que menos culpa tem!
E quando o período de cuidar é longo, há o desgaste físico, há o desgaste psicológico, há o desgaste emocional, há aquela incerteza: “quanto mais tempo isto
vai durar?”. Você até gostaria que durasse para sempre, embora a situação seja
quase insuportável, porque sabe que, quando a situação terminar, é o ponto
final, é a perda. E a gente sabe que nu... por muito mentalizados que estejamos, nós nunca estamos preparados para essa transição, porque não estamos.
Ahh... e é assim, com o desgaste que essa situação só... por si só... se nós pudéssemos dizer assim: “eu sou cuidadora duma pessoa, ahh... tem uma doença
prolongada, incurável e está na recta final de vida”, por exemplo, defina recta
final... pode ser um mês, pode ser uma semana, pode ser um ano, e você tem de
estar disponível para essa pessoa.»
74
| Cuidar da Família ao longo da vida
A cuidadora inclui também as solicitações constantes que resultam da necessidade de atender simultaneamente às necessidades dos outros familiares,
ao cuidado do lar e da familiar doente e o facto de não dispor de tempo para si:
«Agora, comece a trazer de fo... coisas de fora para esta situação: agora há
um marido que traz... p’aquela situação, que exige o seu tempo, não é? Chega
a casa, cansado, quer o jantar, ahh... quer roupa lavada para o dia seguinte...
depois tem duas filhas, que precisam de ajuda com trabalhos de escola, que
precisam de carinho... depois há a casa. Para além de manter a higiene e todos
os cuidados com o doente tem: roupa da família h... as refeições, tem a limpeza
da casa tem tudo. Depois tem o problema do seu trabalho não é? Isto depois é
uma roda-viva. Porque depois a filha diz: “ó mãe tu não me estás a dar atenção”
e está uma campainha no quarto a tocar… “eu já venho”, você dá uma corrida
até ao fundo do corredor e pergunta: “o que é que se passa? O que é que precisa?”, “Não, tou bem assim, vira-me de lado.” Claro, é assim, só para uma... um
novo posicionamento se calhar você está ali meia hora porque não tem mais
ninguém que a ajude. Acaba o posicionamento e está o marido a gritar: “ainda
não me trouxestes a roupa e eu estou no banho”. Agora, é assim, quando é uma
semana a coisa tolera-se, vai a duas, a gente diz: “hoje estás melhor, hoje estás
pior? Amanhã será um novo dia, será melhor. As exigências não serão tantas”.
Passa o primeiro mês, passa o segundo mês, passam cinco meses, passa um ano,
passa ano e meio... não é fácil. Você precisa de tempo também para si, de... com
a minha avó eu tive alturas, como eu digo, eu bem ao duche eu conseguia ir até
eu ter a família em casa. Para dizer às minhas filhas: “agora vocês ficam aqui um
bocadinho que eu vou tomar o meu duche”.»
Este é o contexto onde se tornam evidentes as necessidades da cuidadora.
É aqui notória a indispensabilidade de gerir tarefas de autocuidado e heterocuidado dirigido para o marido, filhos e para a avó significando respectivamente
uma orientação para o futuro e para elementos que se situam no seu passado.
A necessidade de apoio contínuo e completa dependência da familiar que
está a ser cuidada origina isolamento social e mesmo sensação de desamparo
(helplessness) que é aliviada pelo seu sentido de coerência interior relativamente ao que considera ser correcto fazer:
«A pessoa não sai à rua, a pessoa não sai ao café, a pessoa não faz compras, chega a pontos que não tem nada dentro do seu frigorífico, porque não tem quem
lhe deite a mão. Claro que aí há dias que você consegue dar a volta por cima e
diz assim: “estás no bom caminho, estás a fazer aquilo que tens de fazer. Sentes
que é aquilo que deves fazer”. Mas há outros dias... se calhar as exigências por
parte de outros, ou porque se sente psicologicamente mais fraco, ou fisicamente
mais debilitada e cansada, ou emocionalmente, porque uma das filhas telefonou e: questiona, ou teve lá.»
Resultados da análise |75
Também os problemas e conflitos familiares existentes emergem e podem
causar interferências nos processos de cuidar. Ao evocar uma possível ajuda
das filhas da doente – tias de C1–, a cuidadora reconhece um padrão individual e socialmente reconhecido, associado a ideais de regras de interajuda nas
famílias:
«Pouca ajuda tive, das filhas, ahh... e criou alguma ansiedade porque as duas filhas, que ainda estão vivas, não se davam, não se falavam, ahh… e é assim, com
os problemas familiares, ahh, a minha avó, embora ela afirmasse verbalmente
que não lhe custava, no fundo, no fundo, elas eram ambas filhas dela.»
A procura de referências e artigos sobre o cuidar intergeracional revela
que estes se debruçam geralmente sobre o cuidar de idosos, entendido de uma
forma muito genérica ou sobre o cuidado dos pais. Esta tendência poderá já
em si ser reveladora de expectativas existentes e socialmente assumidas relativamente à responsabilização pelo cuidado na cadência das gerações. Neste
caso particular abordamos o cuidar da avó de C1. Cuidar dos avós e conviver
com os filhos directos existentes destes poderá levantar uma especificidade de
problemas relacionados com expectativas socialmente criadas e que poderá ser
relevante explorar.
Relativamente ao cuidar dos pais, por exemplo, Satow (2005) refere que
este poderá trazer de volta a infância sob novas perspectivas e despoletar uma
série de questões e problemas não resolvidos na família: «[p]ara muitos cuidadores é uma oportunidade estimulante. Muitas vezes até enriquecedora,
porque conseguem desagravar os sentimentos mal resolvidos da infância e as
sensações a eles associadas como sejam o remorso, a tristeza e o desânimo. Em
outros casos, porém, o cuidador não consegue deixar de repetir dinâmicas que
foram tão nefastas na infância» (p. 26).
Apesar deste episódio de cuidar de C1 se referir ao cuidar da avó, a assumpção da avó como fazendo parte da família nuclear que regressou ao país de
origem, e a prestação de cuidados directos propriamente ditos desenrolou-se
na presença constante de um conflito entre as filhas da doente. Trata-se portanto de um conflito do passado que persiste, que C1 tenta ultrapassar e gerir
no presente mas que se torna factor de desgaste acrescido, com aparecimento
de sentimentos de revolta e perda de sentido:
«... as duas juntaram-se ao portão da entrada da casa e outra não sobe porque
não fala com a que está no quarto e depois você tem que servir de intermediário:
“agora já esteve aqui meia hora, tem a sua irmã lá em baixo e ela já está aflita,
ainda não veio ver a mãe”, tá a compreender? E depois a pessoa diz assim: “o
que é que eu estou aqui a fazer? Porquê eu?”... e depois chega a hora de ir para
76
| Cuidar da Família ao longo da vida
a cama, ahh... para análise do dia (riso) e começa a passar o filme e só chega às
oito da manhã!... e a campainha toca. E você sai da cama, corre até ao quarto
ou até aos pés da sua onde se encontra a cama da avó e está ali mais hora e
meia, descalça, em camisa de noite, ahh... a ouvi-la, a acarinhá-la, enquanto
todo o mundo dorme. Depois no dia seguinte a outra filha telefona: “como é
que está a minha mãe?”. Claro que a revolta não é dirigida à pessoa que necessita de cuidados. É tudo o resto. Eu não sei se estou a fazer-me compreender.
Não é pela situação que você está a viver, é por tudo o resto que está à volta».
Quando C1 relata as dinâmicas familiares, quer com a família nuclear quer
com as tias, é visível que, nesta situação particular, as dinâmicas de cuidados
estabelecidas demonstram um diferente empenho dos vários elementos com
a tarefa de cuidar. A cuidadora realça a disponibilidade que teve de demonstrar para responder às necessidades da avó «enquanto todo o mundo dorme».
A tónica é colocada especialmente nas filhas, que questionam sobre o bem-estar da mãe mas que não se disponibilizam para colaborar nos cuidados. Aparentemente, o aparecimento de sentimentos de revolta surgem pela percepção
do diferencial existente entre uma perspectiva de colaboração interfamiliar
que idealiza e a realidade conforme esta se lhe apresenta.
Ao longo da narrativa de C1 é perceptível uma experiência subjectiva que
poderíamos denominar globalmente por solidão no compromisso de cuidar, para
traduzir um isolamento que não é causado directamente pelo afastamento do
convívio social (embora este também tenha existido), nem pelo facto de viver
sozinha, mas o isolamento que o seu compromisso para consigo e para com o
cuidar da avó significou relativamente aos restantes elementos da família.
O isolamento é um factor incluído na avaliação dos aspectos objectivos
e subjectivos da sobrecarga dos cuidadores familiares (Andrén e Elmståhl,
2005). O isolamento social surge muitas vezes como factor causal da solidão,
mas esta vai muito para além do simples distanciamento temporal e espacial dos outros (ElSadr et al. 2009). As conclusões que resultaram do estudo
realizado por Montgomery et al. (1985) já mostravam preocupação com a existência de dimensões objectivas e subjectivas para a sobrecarga dos cuidadores
e confirmavam empiricamente que as tarefas que confinam temporal e geograficamente o cuidador se revelaram preditoras da sobrecarga objectiva dos
cuidados.
A análise da solidão aparece também frequentemente associada ao problema da depressão (e. g., Hsu et al., 2001), embora outros autores refiram a
importância de a considerar como um problema isolado (McWhirter, 1990;
ElSadr et al., 2009). A base conceptual que orientou a análise desta narrativa
foi a recente revisão da literatura efectuada por ElSadr et al. (2009) sobre o
Resultados da análise |77
conceito de solidão. Os autores enfatizam o seu carácter de experiência subjectiva e directamente relacionada com a dimensão relacional das pessoas43.
Este entendimento sobre a experiência da solidão abre-nos a possibilidade de
enquadrar e estimar a sua existência nas situações em que os indivíduos percepcionam, nos que os rodeiam, relações pouco significativas com valores pelos quais se comprometem e estão dispostos a abdicar de si próprios.
No rol de circunstâncias que ajudaram a superar os momentos em que se
sentia mais fragilizada, além da referência ao apoio da família nuclear que partilhava a habitação e ao reconhecimento da avó do seu esforço (voltaremos a
este assunto com mais pormenor), a cuidadora exprime de que forma a equipa
de saúde, mais especificamente, a enfermeira dos cuidados continuados domiciliários, desempenhou um papel fundamental:
«e por vezes, tinha o apoio dos cuidados continuados, em que eu dizia: “ahh...
não sei o que fazer”, ou pegava no telefone: “tou a vivenciar isto, eu não sei o
que fazer, a minha avó não está bem, eu não sei o que fazer, ajudem-me!” ou
quando precisava de falar. Por isso é que eu digo, a enfermeira X para mim, e eu
disse-lhe isto a ela, já por várias vezes, ela passou a ser um membro da minha
família, porque... embora eu não... como se costuma dizer, despejasse o saco, às
vezes bastava saber que o carro dela tinha parado cá fora à porta, eu não me
sentia tão só e não me sentia desamparada. Foi o que eu lhe disse a ela... eu não
sei se ela lhe mostrou a dedicatória que eu lhe escrevi».
O apoio da equipa de saúde ajudou-a a superar situações imprevistas. Podemos observar que embora o contacto com a equipa de saúde tenha sido
despoletado por alterações do estado de saúde da avó, o diálogo estabelecido
centra-se no que a cuidadora está a «vivenciar» e o pedido de ajuda surge
para prover a si própria. Além do papel dos profissionais no controlo de sintomas em ocorrência não previstas, C1 refere-se também à sua necessidade de
«falar». A narrativa revela-se aqui no seu carácter de emergência que pode
justificar, isoladamente, um critério para uma intervenção de enfermagem não
programada – mesmo na ausência de necessidade de executar procedimentos
«técnicos objectivos» que visam os cuidados ao corpo.
Um outro aspecto referenciado por C1 é o que Fisher e Eustis (1994) denominam de integração simbólica dos profissionais de cuidados domiciliários
43
«Loneliness can be defined as a subjective experience in which a person feels
psychological disconfort and an inability to increase the quality and/or quantity of
relationships to the person’s desired level. Loneliness occurs following a perceived lack
of and/or loss of significant relationships and can contribute to several physical and
psychological health problems» (ElSadr et al., 2009, p. 32).
78
| Cuidar da Família ao longo da vida
na vida da família. Neste processo, os profissionais podem, inclusive, assumir
papéis familiares simbólicos de acordo com a sua posição e a do doente no ciclo
de vida. Os autores explicam de que forma esta dinâmica pode ser representativa dos afectos criados44.
Quando relembra o tipo de interacção que a enfermeira proporcionava, o
seu relato centra-se na dimensão paraverbal da enfermeira:
«Ahh... havia sempre um sorriso à chegada e à partida e isso para mim, por muita revolta que tivesse havido durante parte do dia, por muita raiva, por muitas
interrogações, por muitas dúvidas, ahh... a gente dizia assim: “olha por ela que
está ali naquela cama, e só por este sorriso e este abraço, continua porque vale
a pena”.»
É a linguagem do corpo, os gestos (o sorriso e o abraço) que são evocados
nas memórias de C1. A forma como o corpo exprime uma mensagem de disponibilidade total, de abertura, proximidade, envolvência e amparo resume
tudo o que a cuidadora poderia eventualmente ter dito sobre o apoio que
sentiu. Não será por isso de estranhar a total ausência de descrição de trocas
de palavras. É aqui notório o poder da linguagem do corpo e de como este,
na sua expressividade, se pode transformar numa potente forma de narrativa
simbólica.
A perspectiva de ser cuidado
Os estudos sobre o cuidar na família focam tradicionalmente a sobrecarga
do cuidador e o impacto do stress de cuidar de um familiar com doença crónica.
O receptor de cuidados não tem sido tão extensivamente considerado. Kahana
et al. (2006) consideram que as perspectivas sobre os cuidadores estão embebidas em paradigmas de stress-coping-suporte, revelando-se unidireccionais na
medida em que partem dos efeitos adversos do cuidar que resultam da resposta
a estímulos stressores. Também McPherson et al. (2007) explicam que, embora exista já um bom desenvolvimento da literatura na área da sobrecarga do
prestador de cuidados, os significados de estar do outro lado da relação, como
receptor de cuidados, só agora começam a emergir e exploram o que parece ser
um sentimento generalizado que está presente na situação de sermos cuidados
44
«Saying that a worker is “like family” is a measure of affection and attachment between
client and worker. This definition of the relationship, however, does not necessarily create
any direct ties between the worker and other members of the client’s family» (p. 304).
Resultados da análise |79
por outros que denominam por fardo autopercepcionado traduzido do inglês self-perceived burden (SPB).
O SPB é definido por McPherson et al. (2007) referindo-se a outros autores, como: «preocupação empática gerada pelo impacto nos outros da própria
doença e necessidade de cuidados, resultando em culpa, angústia, sentimentos de responsabilidade, e um diminuído sentido de si» (p. 115). Os autores
referem-se à evidência que tem vindo a demonstrar que este é um problema
preocupante para muitas pessoas que se encontram perto do final das suas
vidas e, além disso, está associado a um número de importantes decisões relativamente à sua saúde.
Na narrativa de C1 e na sua descrição de diálogos ocorridos é também possível observar este tipo de preocupação por parte da avó:
«como a minha avó estava consciente e conseguia comunicar, ela só dizia: “eu
sei que te estou a dar muito trabalho” e eu disse: “o trabalho para mim não é
nada, se é aqui onde você quer estar, é aqui que você vai continuar”».
McPherson et al. (2007) realizaram uma extensa revisão da literatura deparando-se com diferentes metodologias utilizadas pelos investigadores para
avaliar o SPB e, por isso, confrontaram-se também com a dificuldade na comparação de resultados. Os estudos são separados consoante a abordagem tenha sido qualitativa ou quantitativa e descritos nas metodologias utilizadas e
conclusões obtidas. Da análise da revisão de literatura efectuada salienta-se o
facto descrito de que alguns doentes podem esconder sintomas para aliviar a
sobrecarga dos que deles cuidam levando a que as suas necessidades de cuidados permaneçam por atender. Os mesmos autores referem que não constituir
uma sobrecarga para a família faz parte do que alguns doentes denominam de
boa morte enquanto, para os profissionais, cuidadores informais, familiares e
voluntários que convivem com os doentes, a ideia de uma boa morte é associada ao controlo de sintomas, preparação para a morte e cuidados de higiene.
Estudos citados evidenciam que o SPB pode ser subestimado pelos profissionais de saúde. A opinião pública generalizada parece estar mais sensível às
perspectivas dos doentes.
Os fardos mencionados relacionam-se com o esforço para cuidar, responsabilidade pela tomada de decisões difíceis relativamente a tratamentos e dificuldades financeiras. Preocupações relacionadas com a sobrevivência da família
após a morte do doente também surgem associadas ao SPB. Fornecer directivas
antecipatórias, enquanto se sentem capacitados, sobre tratamentos a realizar
e a suspender, realizar preparativos direccionados para a sobrevivência e bem-estar dos que ficam são estratégias encontradas pelos doentes para aliviar a
80
| Cuidar da Família ao longo da vida
família nos processos de tomada de decisão e das possíveis dificuldades que
poderão advir após a própria morte.
Estudos de doentes que optaram pelo planeamento antecipatório de cuidados sugerem que o processo se revela mais importante do que a criação de
um documento formal escrito com as directivas pretendidas e, também, que
aquele é influenciado pela disposição dos entes queridos em participar nas discussões que lhe estão subjacentes.
Outras decisões passíveis de estar associadas ao SPB referem-se ao local
para receber cuidados e aos pedidos de eutanásia e suicídio assistido. Para alguns doentes, optar por não permanecer doente em casa ou antecipar a morte podem ser estratégias para aliviar a carga que poderão constituir para os
outros45. No estudo de Bowman e Singer (2001, citado por McPherson et al.,
2007)46 que envolveu seniores chineses no Canadá, os autores concluem que,
para esta população estudada, a decisão pelo não tratamento da doença pode
ser vista como um acto de compaixão porque alivia os fardos associados com
a doença, a si próprio, à sua família e à sociedade como um todo. Poderemos,
no entanto, questionar se os pedidos para antecipação da morte baseados no
alívio da sobrecarga para os outros, mesmo quando o suporte aos cuidadores é assegurado e adequado, são moralmente justificáveis. Numa sociedade
ocidental que valoriza a autonomia e a autodeterminação a discussão sobre
este assunto é recorrente e, em alguns países, a prática da eutanásia e suicídio
assistido é aceite e pode até ser entendido como um acto altruísta. A mesma
revisão da literatura aponta para a existência de diferenças na aceitação da
SPB como fundamento para estas práticas e realça o facto de os profissionais
de saúde deverem ter em mente que os doentes que expressam um forte sentido de sobrecarga para os outros podem também estar a experimentar stress significativo em outras áreas. A investigação existente sobre o SPB em diferentes
países e culturas sugere que se trata de uma preocupação universal e aparece
mais fortemente associada a questões psicológicas e existenciais.
Com o objectivo de identificar factores de risco de suicídio em doentes oncológicos,
Filiberti et al. (2001) realizaram autópsias psicológicas a cinco doentes com cancro que
cometeram suicídio em casa enquanto eram cuidados por equipas diferenciadas de
cuidados paliativos. O perfil dos doentes coincidia com pessoas que tinham desenvolvido
profissões na área de gestão. Os resultados revelaram a presença simultânea de múltiplos
factores de vulnerabilidade, no entanto, a perda ou medo de perder autonomia e a sua
independência e de ser um fardo para outros foram os mais relevantes.
46
Bowman, K. E., Singer, P. A. 2001. Chinese seniors’ perspectives on end-of-life decisions.
Soc Sci Med. 5: 455-64.
45
Resultados da análise |81
A perspectiva psicológica da teoria da equidade é apontada como uma possível explicação para o SPB. A teoria postula que os indivíduos se esforçam
por manter o equilíbrio entre dar e receber ajuda e suporte nas suas relações.
A impossibilidade de repor a ajuda recebida pela situação de doença poderá ter
como consequência o desenvolvimento de sentimento de sobrecarga para os
outros. Nesta perspectiva, este sentimento pode não estar relacionado com a
existência de uma sobrecarga real dos cuidadores ou de apoio inadequado mas
sim com a incapacidade do familiar doente para encontrar formas de retribuir,
dado o seu contexto de necessidade e fragilidade.
Por outro lado, McPherson et al. (2007) citam Gunderson (2004)47 para
explicarem que a não aceitação de ser cuidado subverte as normas de reciprocidade que são necessárias para uma relação prosperar e, neste sentido, aceitar o
cuidado pode também significar altruísmo e preocupação com os outros.
Verifica-se então que a análise das circunstâncias que orientam um familiar
para ser cuidado aparecem também inevitavelmente associadas às discussões
sobre o altruísmo. Midlarsky (2006) explora a evolução do altruísmo ao longo da vida articulando etapas do desenvolvimento humano no contexto do
cuidar familiar. A autora distingue três diferentes formas de manifestação
de comportamentos altruístas: ajudar (socorro), partilhar (generosidade) e
nutrir (cuidar). Cuidar é aqui considerada uma expressão por excelência do
altruísmo no seio da família. É a estrutura familiar que garante a subsistência
e o acesso aos alimentos para o crescimento físico desde o nascimento. No
entanto, esta é apenas a materialização de uma série de cuidados que lhe estão associados simbolicamente e que promovem o desenvolvimento integral
das várias dimensões da vida de cada um dos elementos48.
Embora várias questões sobre o altruísmo tenham sido já exploradas no
contexto de análise das relações entre o autocuidado e heterocuidado elas
não se tornam menos complexas quando se perspectiva a forma como aquele
poderá ser expresso na óptica de quem está a ser cuidado por outro.
A evidência de que o altruísmo aumenta ao longo da vida e de que o cuidar
do outro pode estar relacionado com os mecanismos de autocuidado leva à
Gunderson, M. 2004. Being a burden: reflections on refusing medical care. Hastings
Center Rep. 5: 37-43.
48
Na abordagem de Macrae (2001) às ideias de Florence Nightingale a autora explica
que, para Florence, o propósito da existência humana é implementar o processo de
desenvolvimento. É partindo deste pressuposto que se poderão revelar as ligações
profundas entre o cuidar familiar, o desenvolvimento e o propósito da existência
humanos.
47
82
| Cuidar da Família ao longo da vida
consciencialização de que esta necessidade de dar resposta às necessidades dos
outros pode estar profundamente comprometida quando o familiar cuidado
sente que não já não é capaz de cuidar de outros. Midlarsky (2006) salienta de
forma muito clara esta ideia quando refere que: «a maior gentileza que alguém
pode fazer por um indivíduo com necessidade de ajuda – como um membro da
família doente ou incapacitado – é prover oportunidades para aquele indivíduo poder ajudar»(p. 88). Esta é uma perspectiva possível e poderá ser mais ou
menos relevante mediante as ligações da história de vida pessoal às tarefas de
cuidar de outros e à forma como estas foram assimiladas.
Como já tivemos oportunidade de analisar, na narrativa de C1, o relato
das interacções é demonstrativo de como a avó também realiza cedências e
abdica de si própria na forma de satisfação das suas necessidades para permitir
a estabilidade e progressão da relação existente com C1. Aparentemente, esta
cedência e abdicação poderão ser também uma forma de retribuição que permite aliviar as preocupações da cuidadora e facilitar as actividades de cuidado.
Além disso, ao permitir-se ser cuidada, a avó possibilita a C1 um sentido e uma
vivência congruente com os seus valores e a sensação de controlo pessoal e
competência (Midlarsky, 2006). Este contexto poderá contribuir para perceber
de que forma o receptor de cuidados poderá também ser confrontado, numa
vivência paralela ao seu cuidador, com alterações permanentes na forma de
satisfazer as suas necessidades pessoais das quais a necessidade de cuidar dos
outros poderá ser um exemplo.
Ser predominantemente cuidado por outros é uma repetição no ciclo de
vida dos momentos que sucedem o nascimento (fig. 2). Porém, no final da
vida, o indivíduo é portador de uma história de desenvolvimento que no início
está ainda por descobrir. É esta história, onde se incluem as escolhas que foram
sendo realizadas relativamente ao cuidar de si e dos outros no passado, que
poderá eventualmente exercer uma grande influência sobre como é vivida a
situação de receber cuidados.
Permitir-se ser cuidado por outros pode envolver um processo de procura
de estratégias que permitam continuar a ser cuidador e de continuar a contribuir para o desenvolvimento e realização pessoal de quem cuida. C1 relata
como o reconhecimento da avó dos seus esforços e competências para cuidar
a animava em momentos de desânimo:
«e quando eu estava sozinha… é assim, por vezes mesmo quando eu me sentia
fraquejar, bastava olhar para ela e ela dar-me um sorriso ou dizer-me: “estou-te
a dar tanto trabalho”, “oh!”, eu dizia assim: “Vó! Quem sou eu?”, “és a Lena”,
“quem é a Lena?”, “a minha neta!”, “só?” e ela dizia: “és a minha enfermeira, o
Resultados da análise |83
meu anjo-da-guarda”... e nós dizíamos assim: “só por isso vale a pena!”, a gente
dava meia-volta aos calcanhares outra vez e tínhamos outro ânimo. Parecia que
tinha sido uma lufada de ar fresco que vinha».
Assim, além de ajustar a satisfação das suas necessidades abdicando de algum controlo sobre elas, a avó também valoriza o esforço da neta reconhecendo nela a competência para cuidar e velar por si como um anjo-da-guarda.
Quando se constata o papel que o reconhecimento do doente pode desempenhar no ânimo do cuidador pode-se antecipar a possibilidade de maiores
dificuldades para os cuidadores nas situações em que os familiares cuidados
não têm capacidade física ou relacional para reconhecer os seus esforços.
Por seu lado, C1 consciencializa a sua aprendizagem e desenvolvimento
num processo que envolveu o acompanhamento da familiar até ao momento
da morte:
«Mas, se nós não entendermos naquela hora, naquele momento de desgaste físico, de desgaste psicológico... mais tarde sentamo-nos, ahh… analisando tudo
o que está por trás e dizemos assim: “afinal valeu a pena” e... e... isso é que nos
ajuda a crescer, é que nos ajuda a aprender as lições, é que nos ajuda, ahh... a
evoluir […] eu acho que foi com a morte da minha avó que eu aprendi muitas
lições que a vida há muito tempo me tava a tentar fazer com que eu aprendesse
e que eu quase que batia com a cabeça contra a parede e... e não chegava lá,
não chegava lá.»
O estudo desenvolvido por Crist (2005) revela que a aceitação do cuidado
familiar se encontra muito relacionado com relações positivas entre os cuidadores e as pessoas cuidadas e das quais resultam o crescimento pessoal de
ambos.
Partindo do equilíbrio entre dar e receber, C1 explica que os ganhos associados ao facto de ter cuidado da avó não foram imediatamente percebidos.
O desgaste contínuo em que por vezes se encontrou submersa originou um
desfasamento temporal entre o que foi vivido e integrado que só foi recuperado posteriormente pela análise retrospectiva dos acontecimentos. Além de se
tornar aqui evidente e sair reforçada a necessidade dos cuidadores disporem de
tempos e interacções que promovam a consciencialização e integração das experiências emocionais que estão a viver, a descrição de C1 sobre o seu percurso
pessoal despoleta outro tipo de análise possível. Uma questão que daqui pode
decorrer é até que ponto é que esta consciencialização dos ganhos pessoais
que advêm de ser cuidador poderá facilitar o processo, caso ele ocorra, de ser
cuidado no futuro e contribuir para a redução do SPB. Esta questão parece
pertinente na medida em que ter consciente que ser cuidador pode constituir
84
| Cuidar da Família ao longo da vida
uma via para o autocuidado, crescimento e realização pessoal, poderá ser um
passo importante para compreender que, mesmo estando numa situação em
que se é predominantemente receptor dos cuidados dos outros e se perspectiva
a morte, se pode continuar a cuidar, ou seja, continuar a contribuir para o propósito da existência humana conforme perspectivado por Florence Nightingale: implementar o processo de desenvolvimento49.
O acompanhamento na morte e a missão de vida
C1 começa por exprimir as ideias e interpretações sobre o processo de morrer da avó analisando de que forma este poderá ter sido influenciado pela existência de conflitos entre as filhas:
«eu acho que a hora da partida da minha avó foi mais prolongada, porque
ela tinha um problema pendente para resolver, embora ela dissesse que não se
importava que as filhas, ahh, não se dessem, não se falassem e que se não o fizessem enquanto ela era viva escusavam de fazer depois da morte dela, a minha
avó não partiu enquanto... eu virei-me…».
No início da narrativa o elemento evocado, e que vai direccionar grande
parte da descrição, é o conflito existente com as filhas. Esta questão desempenha um papel central e é, principalmente, o resultado de expectativas manifestadas e projectadas para este momento da vida. A familiar doente estabelece,
inclusive, um prazo que lhe permita estar presente e verificar a reconciliação.
O conflito existente constituía um problema pendente que, na opinião de C1,
seria importante ao ponto de a manter viva durante mais tempo.
Neste tipo de análise será talvez irrelevante perceber se o morrer ou a agonia dos doentes moribundos poderá ou não ser mais prolongada em situações
em que se conhece a existência de um contexto de conflitos familiares. Existem
49
Os relatos de «Às terças com Morrie» (Albom, 1999) e «O escafandro e a borboleta»
(Bauby, 1997) constituem dois possíveis exemplos da procura de vias de desenvolvimento
mesmo quando se é confrontado com situações limite (morte) e extremamente
limitantes. No primeiro livro podemos contactar com o testemunho da vivência de uma
doença terminal e cujo objectivo é precisamente o de ajudar outros na compreensão do
processo de morrer. No segundo, além de ser possibilitada a partilha da vivência interior
de um doente com locked-in sindrome – cuja única capacidade motora era a de abrir e
fechar um olho – revela também de que forma a paciência e determinação permitiu a
Jean Paul construir a sua narrativa, expandir-se além do seu corpo e deixar um legado
importante para outros doentes com o mesmo problema, na geração presente e futura.
Resultados da análise |85
aqui dois aspectos que parecem ser cruciais: o primeiro, é perceber de que forma essa ideia e interpretação dos acontecimentos pode exprimir a importância
atribuída à integridade da família no final da vida50; o segundo, a noção de que
a vida se constitui por um conjunto de tarefas que devem ser completadas até
ao momento da morte.
A narração da morte da avó é um exemplo de sincronicidade entre os gestos que são descritos, a sequência de acontecimentos e emoções despoletadas:
«eu virei-me... é assim, eu estava à cabeceira da minha avó, ajoelhada, de mão
dada com ela, ah... estava cada uma das filhas ahh... de cada lado da cama, op...
do lado oposto, não se encaravam, ahh…».
A descrição dos acontecimentos é minuciosa e apela à imaginação do momento pelo seu carácter visual. É relatada a posição espacial relativa e a postura corporal dos familiares presentes em relação ao leito da avó para revelar
o corpo em relação. C1 expõe o que poderia ser um quadro (estático) tentando
50
King e Winne (2004) exploram a emergência da integridade familiar na fase tardia
da vida. O seu artigo pretende introduzir este conceito como reflector de um
desafio de desenvolvimento que é fundamental para o bem-estar dos idosos e muito
influenciado por factores sistémicos familiares. Explicam que, apesar das tendências
demográficas apontarem para um envelhecimento populacional progressivo, muita
da teoria e investigação existente sobre a família se concentra preferencialmente
na primeira metade do ciclo vital, ou foca de forma muito limitada os adultos
idosos como receptores de cuidados, ignorando os seus papéis vitais e contribuições
durante várias décadas de vida familiar.
King e Winne (2004) propõem três funções vitais ou competências do sistema
familiar que poderão estar na base da capacidade de os idosos alcançarem a
integridade familiar:
a)A transformação das relações ao longo do tempo de uma forma que é dinâmica
e responsiva às necessidades em mudança do ciclo de vida dos membros da
família;
b)A resolução ou aceitação de perdas no passado, desapontamentos, ou conflitos
com os mortos assim como com os vivos;
c)A criação de sentido pela partilha de histórias, temas e rituais familiares dentro
e através das gerações.
Os autores estimam que a capacidade para a integridade familiar aumente à medida
que o indivíduo se aproxima da fase adulta tardia, mas pode ser dificultada ou
facilitada por situações de doença ou outras perdas que aumentam a consciência da
fragilidade da vida humana.
Todos os elementos desenvolvidos por estes autores se encontram presentes ao
longo desta narrativa. A morte é a confrontação com a perda e com a fragilidade da
vida humana e é possível perceber pelos relatos de C1 de que forma esta realidade
descrita por King e Winne (2004) se torna emergente.
86
| Cuidar da Família ao longo da vida
expressar o sistema de relações existentes entre os elementos presentes pela
forma como se posicionam, aproximam, tocam e se olham.
A utilização da expressão corpo em relação pretende enfatizar o papel que
o corpo pode assumir na dinâmica das relações entre as pessoas. A descrição
pormenorizada de C1, mais do que indicativa da sua capacidade de observação
ou atenção, mostra de que forma as histórias das pessoas presentes se relacionavam, através do seu corpo, com os acontecimentos proporcionados pelas
circunstâncias e, por outro lado, de que forma os significados atribuídos foram
interpretados por C1 e articulados numa narrativa que procura enquadrar de
modo coerente o que era possível observar e de que forma o observado se relacionava com uma realidade não visível.
Na altura em que C1 se apercebe da proximidade da morte e, mais uma
vez, no respeito pelo que sabia serem os desejos da familiar, toma a iniciativa
de contactar as filhas para estarem presentes:
«eu achei por bem chamá-las e que elas tivessem presentes na hora da partida,
ahh, ou pelo menos, achei por bem comunicar-lhes que a hora estava próxima
e que se quisessem vir ver a mãe e se despedirem dela que seria bom para todos,
ahh… especialmente para ela, e... (12)... (contenção de choro)… é assim... pedi-lhes... (4)... que pelo menos, ao se despedirem da mãe, para que ela partisse
em paz... que se falassem, que dessem um beijo, para que a mãe se apercebesse
que elas tinham feito as pazes, e eu disse: “pelo menos nesta hora, mesmo que
depois da partida, vocês se deixem de se falar, porque para ela ia ser uma partida, um final mais tranquilo, ahh... ela teria paz de espírito”».
C1 desenvolve acções no sentido de garantir condições para possibilitar
que a avó visse concretizadas as suas expectativas antes de morrer. Garantir
a integridade familiar no fim da vida revela-se como o valor que justifica a
incoerência que pede às tias: «mesmo que depois da partida vocês se deixem
de falar».
A cuidadora relata de que forma tentou ser um elemento facilitador do
processo de transição que estava a decorrer. Neste seu papel, tenta garantir a
conclusão de tarefas pendentes, ser uma presença de respeito e apoio (simbolicamente representados pelo ajoelhar-se e segurar a mão), fornecer autorização
e incentivo. O momento torna-se especial e também o auge de uma série de
coincidências entre o fim da vida física e o culminar da existência:
«e a minha avó só partiu quando eu ajoelhada, a segurar a mão dela, lhe disse:
“avó podes partir em paz” porque ela, os último momentos foram muito complicados, a minha avó, antes de partir, bolçou sangue, ahh... nunca me hei-de
esquecer os olhos dela, embora fosse uma imagem aflitiva, os olhos da minha
avó estavam serenos, ahh... emanavam uma luz como... eles... ir— como é que
Resultados da análise |87
eu hei-de dizer... eles irradiavam uma luz e serenidade, ahh... eu acho que tinham outro brilho, não era aquele olho mortiço de quem diz assim: “é olho de
quem está prestes a partir” e... e é assim, ahh, tenho visto pessoas partirem mas
eu acho que, com a minha avó, houve aquele momento especial, claro que foi
doloroso, sim, ainda hoje falo e custa-me falar, ahh, mas vivo esse momento
com muito carinho, porque também, como é que hei-de dizer... (3)... não foi
uma partida difícil da parte emocional, da parte espiritual. Da parte física talvez... e, quando eu lhe segredei ao ouvido: “avó, elas beijaram-se, elas fizeram
as pazes, está na hora de partires, pára de lutar, chegou a tua hora”… ela olhou
para mim, exalou um sorriso, deu um suspiro e foi-se… (3)… é assim… (2)...
embora a partida não tivesse sido fácil… (8)… (contenção de choro)… eu não
trocava esse momento... (16)... ahh… porque até no silêncio nós conseguimos...
é assim, cuidar de uma pessoa doente que a gente sabe que vai partir não é fácil,
não é nada fácil, mas se nós soubermos aproveitar os... todos os momentos que
nos restam, ainda há muito que dar, muito que partilhar».
Landsberg (1994, p. 36) faz notar que «só muito raramente o consumar da
existência pessoal coincide com a morte; e só em sonhos e nos mitos o herói
encontra a morte no auge da sua perfeição». Para Frias (2003, p. 99) a morte
anunciada pode também ser o início de uma reflexão sobre si mesmo, de um
balanço da própria vida. A pessoa pode, inclusive, tentar reforçar ou reatar laços com pessoas das quais se tinha distanciado ou vivia em conflito, como que
numa tentativa de antecipar o consumar da sua existência. A consciencialização da morte aparece como que um pretexto para a busca da perfeição do ser.
A experiência do humano sobre a morte acontece no acompanhamento
da morte de outro. Sobre a experiência da morte Landsberg (1994, p. 13) começa por citar Voltaire: «Só a espécie humana sabe que terá de morrer, e só
por experiência o sabe.» Um longo saber empírico mostrou ao Homem a inevitabilidade da morte. Sabemos que morremos porque morrem os que nos rodeiam e porque morreram todos os que nos antecederam no tempo. O Homem
distingue-se em relação aos outros seres vivos pela consciência que tem da sua
mortalidade.
Como se enquadra a morte individual? Isaac Asimov, numa das suas obras
de ficção – O Homem Positrónico –, expressa-o num interessante diálogo de
um robot que se aperfeiçoa permanentemente, na aparência física e sensitiva
com o Homem, buscando o reconhecimento da sua humanidade, algo que os
humanos só reconhecem quando este se propõe a arranjar forma de morrer51.
51
«Efectivamente, o meu cérebro é imortal. Não é isso a barreira fundamental que me
separa da raça humana? Os seres humanos podem tolerar a imortalidade em robots
88
| Cuidar da Família ao longo da vida
Na luta protagonizada por este robot estão subjacentes as ideias de universalidade da morte para a humanidade (como condição inerente ao facto de ser
humano) e a morte do corpo (dimensão biológica) em contraposição com a
morte das forças que o movem e que dão sentido à sua existência (dimensão
espiritual). A morte aparece como essencial para dar sentido à luta desenvolvida durante toda a existência da máquina para ser considerada humana. Aqui
a humanidade não se define pelo seu carácter biológico.
Mas, qual é a importância da morte? Será assim a morte tão importante?
Esta questão remete-nos para a discussão da importância da pessoa humana52.
A singularidade da pessoa, a dignidade53, a individualidade e irrepetibilidade
de cada ser humano transforma a morte num momento único e singular54. No
sentido oposto, uma perspectiva superficialmente utilitarista da pessoa reduz
a morte a um acontecimento contingente, facilmente ultrapassado quando a
pessoa é substituída na função55.
porque numa máquina é virtude durar muito tempo e ninguém se sente psicologicamente
afectado pelo facto. Mas nunca conseguiriam tolerar a ideia de um ser humano imortal
porque a sua própria mortalidade só é tolerável enquanto for universal. Permitam a uma
pessoa ficar isenta da morte e todos os outros se sentirão vítimas. E é esta a razão Chee,
porque se recusam a tornar-me num ser humano […] o que fiz foi escolher entre a morte
do meu corpo e a morte das minhas aspirações e desejos»(Asimov, pp. 193-194).
52
Questão abordada aqui de forma naturalmente superficial, sem qualquer pretensão de
tactear sequer uma parte da vasta reflexão filosófica sobre esta matéria.
53
Conceito cuja percepção nunca poderá dispensar a incontornável referência kantiana:
«Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja fim em si mesmo,
isto é, que não possa jamais ser utilizado por alguém (nem sequer por Deus) simplesmente
como um meio, sem ao mesmo tempo ser ele próprio um fim» (Kant, 1997, p. 151).
54
«A consciência da morte anda a par com a individualização humana, com a formação de
individualidades singulares, obra da pessoa humana. O essencial desta individualização
não consiste em adquirir uma consciência mais definida e matizada da sua singularidade
própria mas, sobretudo, em o Homem adquirir realmente mais singularidade. A consciência
alterada pressupõe uma alteração do ser» (Landsberg, 1994, p. 22).
55
Huxley (2000), no Admirável Mundo Novo, imagina uma sociedade num auge de
desenvolvimento científico, que utiliza técnicas de condicionamento psicológico para
que o «elemento» aceite o seu estatuto, a sua função (predeterminada consoante a
necessidade social) e a sua morte, transformada num momento isento de individualidade
e emoção, já que se considera que ninguém é assim tão importante que não possa
ser facilmente substituível: «Quando chegaram à extremidade da sala, Linda estava
morta. O selvagem ficou um momento de pé, imobilizado no silêncio, depois caiu de
joelhos ao lado da cama e, cobrindo o rosto com as mãos, soluçou desvairadamente.
A enfermeira estava sem saber o que fazer, olhando ora a forma ajoelhada perto da
cama (que escandalosa exibição!), ora (pobres crianças!) […] Que prejuízo fatal podia
causar àqueles pobres inocentes! Destruir assim todo o seu bom condicionamento para
Resultados da análise |89
Embora a cuidadora narre momentos de raiva e questionamento quando
confrontada com as exigências pessoais do cuidar, a descoberta da sua missão
de vida aparece, como já tivemos oportunidade de verificar, sempre associada
à morte da avó:
«eu acho que só comecei a entender a lição com a morte da minha avó... ahh...
(11)... a minha missão é cuidar. E eu só entendi isso quando perdi a minha avó
[…] sabe aquela luz que lhe falei? Não foi só a luz do olhar da avó, não foi só
as vivências, não foi só as partilhas todas porque eu tive isso ao longo do tempo
só que... havia algo... eu não me tinha questionado. Eu dizia assim: “eu sei que
o carma... eu sei que… estou ligada a isto, não sei porquê mas estou”, mas de
repente fez-se aquela luz, eu consegui responder à minha própria resposta: “é a
tua missão, é para isso que tu fostes talhada, é para isso que estás aqui desta vez.
É para te dares deste jeito aos outros”».
A busca do sentido da morte caminha de mãos dadas com a procura do
sentido da vida. A possibilidade de, a qualquer momento, de forma inesperada, me transformar em nada força o questionamento sobre a razão da minha
existência. Legrée (p. 189) exprime claramente esta ideia: «a proximidade da
morte impõe-me a reconsideração da minha existência, um melhor discernimento do que é verdadeiramente importante para mim, por exemplo o que
tenho verdadeiramente vontade de fazer se o meu tempo já está contado – e
ele está-o sempre, mesmo se eu não o possa traduzir em números».
a morte com esta repugnante explosão de gritos, como se a morte fosse qualquer coisa de
terrível, como se houvesse pessoa que tivesse semelhante importância!» (Huxley, 2000,
p. 216).
Capítulo 3
Redireccionar o cuidar
para responder ao apelo do outro
Vimos que as dinâmicas de cuidar acabaram por se tornar reveladoras não
só das forças das relações existentes entre os elementos da família mas também
da hierarquia de valores e coerências internas que cada um estabelece para si
próprio relativamente ao cuidar de outros. Este é um exemplo de como nem as
expectativas sociais nem os laços naturais de sangue determinam que as filhas
cuidem da mãe. Nesta família, contribuíram para a decisão de cuidar de C1 o
conhecimento das histórias das relações e das dinâmicas de cuidar do passado,
a relação que mantinha com a avó em resultado das vivências partilhadas – e
que a orienta para priorizar e garantir o cumprimento da sua vontade – e, ainda, a procura de uma relação de coerência consigo própria.
No entanto, e embora C1 tenha considerado a importância dos laços familiares e da relação preexistente com a avó, a sua narrativa continua numa
direcção diferente e aparentemente até contraditória revelando um cuidar para
responder ao apelo do outro:
«Nem todas as famílias funcionam assim mas, eu dentro da minha, embora
a minha família seja muito destruturada, ahh... as pessoas que me são mais
próximas, mesmo aquelas que me são menos próximas e que me fazem sofrer,
eu digo sempre: “se um dia precisarem, eu estarei lá” se elas me quiserem, se
elas necessitarem da minha ajuda, do meu apoio, estou lá! Se elas me quiserem
isso o problema já não é meu. Eu faço aquilo que eu penso, que eu sinto que é
correcto. Que eu preciso de fazer.»
Podemos observar uma evolução do discurso para a abertura a uma nova
perspectiva onde a cuidadora exclui a relação existente como critério para a
tomada de decisão de cuidar. Nesta nova forma de olhar, é o apelo da pessoa
em necessidade que prevalece sobre as regras que tinham sido entretanto elaboradas e que explicaram as circunstâncias do cuidar da avó. Esta dinâmica de
discurso poderá ser reveladora de um processo de transição que se inicia com a
descrição de componentes presentes das decisões do passado e avaliação dos resultados e prevê os processos de decisão mediante a elaboração da experiência
vivida. O que aparentemente parece ser uma demissão de processos de tomada
de decisão futuros e abdicação de controlar a própria vida poderá, por outro
lado, ser entendido como o estabelecimento de uma condição prévia para viver, baseada em algo que atribui coerência interior (entre o que é pensado e
92
| Cuidar da Família ao longo da vida
sentido), garante a realização pessoal de si no mundo e a orientação da própria
vida para um propósito específico no sentido de dar resposta à necessidade de
auto-actualização e crescimento espiritual (Watson, 2008)56.
Ao mesmo tempo que se refere à existência de uma ordem preestabelecida57
para os acontecimentos em que «nada acontece por acaso», conta como se
costumava questionar sobre os que tinham ocorrido na sua vida e revela com
ênfase a sua missão de ser cuidadora:
«Ahh... e nada acontece por acaso!
S – Nada acontece por acaso. Que…
C1 – É a minha missão. Eu tenho que ser cuidadora. Eu tenho que dar de mim
aos outros. Ahh… e eu não entendia isso. Eu questionava-me. Eu dizia: “é o
meu carma, a minha passagem por esta vida está ligada a pessoas com falta de
saúde, eu não sei porquê eu, mas é assim... muita coisa a partir daí começou a
ter mais respostas. Quando eu disse que só com a morte da minha avó é que eu
compreendi que era isso... era essa a minha missão. É... é dar-me aos outros, é
ajudar. E é através desta área que eu acho que… eu tenho que estar presente.»
Considerar a existência de uma ordem universal preestabelecida é assumir,
como pressuposto para a vida, que existem razões e mistérios que não conhecemos e que podem estar para além da nossa compreensão58.
Depois de experimentar a descoberta da sua missão, o fio condutor que dá
sentido aos acontecimentos e vivências que se foram repetindo ao longo do
tempo, a cuidadora consciencializa o que não foi capaz de compreender no
«[A] self-actualized person is concerned with problems outside of and beyond self, with
a mission in life for an internally oriented task to fulfil, a task that helps establish and
guide the next generation toward human and environmental health» (p. 186).
57
Na exploração que faz sobre as ideias deixadas escritas por Florence Nightingale em
Suggestions for toughts, Macrae (2001) refere-se à sua forte crença na existência de leis
que organizam o universo: «Nightingale felt that an ordered universe was a reflection
of a higher inteligence. […] In a universe organized by natural or scientific laws, nothing
occurs in a vacuum. All events — physical, psychological, and spiritual — are either
caused by, or correlated with, other events» (p. 7).
58
Este é um princípio básico do que constitui o décimo processo de cuidar na teoria de
Watson (2008): «estar aberto e atender ao espiritual/misteriosos e existenciais não
conhecidos da Vida-Morte» (p. 191). A autora convida-nos a estarmos abertos ao
mistério, milagres e uma profunda ordem superior dos fenómenos da vida que pode
não ser compreendida: «[a]ll I am trying to say is that our rational minds and modern
science do not have all the answers to life and death and all the human conditions we
face; thus, we have to be open to unknowns we cannot control, even allowing for what
we may consider a “miracle” to enter our life and work» (p. 191).
56
Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |93
passado e projecta a possibilidade de encontrar diferentes razões e sentidos no
futuro para os factos que vive no presente:
«Ahh... mas é assim, eu tive que passar por tudo aquilo que passei, tive que
fazer as escolhas todas que eu fiz e, como por vezes, se calhar, não fo... não foi...
a lição não foi estudada tão aprofundadamente, eu tive que passar por todas as
situações para chegar aonde cheguei hoje, daqui para a frente não sei, se calhar
daqui a dois anos vamos ter a mesma entrevista e eu vou-lhe dizer: “afinal a
lição ainda não estava aprendida” [S – (riso)] tá a compreender? Ahh... (4)…
mas eu penso que tou no caminho certo, tou a cumprir (h) a minha missão.»
C1 revela a consciência de si como o ser em permanente transformação e
aprendizagem, num percurso onde os sentidos atribuídos às vivências são mutáveis ou se completam no tempo (Frankl, 2004; Gadow, 1999) e socorre-se de
uma metáfora para exprimir esta ideia:
«Alguma vez pegou num livro […] duma disciplina qualquer […] e lê... sei
lá... (5)... um... (5)... um artigo, ou a passagem, hoje uma vez, e pensa: “eu
sei o que é que isto quer dizer” e arruma. E depois tem nova prova, e aquela
matéria sai outra vez […] diz assim: “estranho, pensei que tinha compreendido isto, mas espera, isto aqui quer-me dizer algo mais” e você fecha e passa a
prova […] você chega ao terceiro ano e sai a mesma matéria […] diz assim:
“ah! Será a minha maturidade? Será que eu li bem anteriormente? Se calhar
não percebi, se calhar não li com tanta atenção”. Agora há mais alguma coisa
que lhe foi transmitido, “desta vez, finalmente!”, arruma, terceiro ano está
feito. Chega ao quarto ano, ano de licenciatura […] Abre outra vez, até se
calhar tem ali umas notazinhas ao lado, que foi fazendo, cada vez que estudava: “olha afinal não era bem isto como tu interpretaste no primeiro ano”. […]
você lê tudo aquilo, lê as anotações que fez, porque, ao reler e tornar a reler
[…] chega ao fim e diz assim: “licenciatura feita” diz assim: “afinal eu pensei
que sabia aquela matéria, mas não sabia” […] Tá satisfeita consigo, ter sido
aluna aplicada. Finalmente, conseguiu. E, de repente, é convidada para uma
palestra qualquer e fez-se luz.»
Pressupor um paradigma de transformação permanente resulta numa vivência que aceita a contingência, a incerteza e a própria vulnerabilidade (Gadow, 1999)59. A construção de sentidos não é uma tarefa definitiva mas depende de constantes actos de interpretação60.
Esta aceitação não equivale a resignação, na medida em que é esse mesmo paradigma
que reconhece ao ser humano a capacidade de se superar. Este enquadramento permite
dar um sentido ao paradoxo do cuidar: de aceitação e recusa do sofrimento.
60
«[t]he very enterprise of making meaning is conditional, never assured. It depends on
our continuing acts of interpretation».
59
94
| Cuidar da Família ao longo da vida
Ao voluntariar-se para colaborar nos cuidados a doentes em fim de vida C1
encontra uma nova via de realização de si:
«Ahh... não é fácil, claro que não é fácil, há pessoas, inclusive o meu marido,
que me diz: “como é que tu consegues? Tu sabes que vais entrar e lidar... tu estás
perante a morte, cada vez que sais daqui ao sábado de manhã, ahh... como é
que tu consegues?”, e eu disse: “eu não olho para o doente como doente, eu
olho para o doente como uma pessoa, com quem eu vou estar, com quem eu
vou partilhar, vivências, desejos, angústias, sofrimentos, experiências... porque
eu também partilho com eles as minhas experiências, os meus sentimentos,
aquilo que passei, os meus desgostos, ahh... as minhas dúvidas”.»
O relato dos princípios que fundamentam as relações que estabelece são
a expressão de uma consciência da contingência, onde é mais importante o
processo (partilha) do que o resultado (resposta) e onde as dúvidas e os limites
sentidos permitem o contacto com uma fragilidade que é íntima mas universal.
É nesta universalidade da vulnerabilidade que o ser humano pode ser compreendido, experimentar a comunhão com algo a que todos estão ligados e não se
sentir só nem desamparado.
Quando se centra na sua missão para a vida, o cuidar deixa de ser um conjunto de acções que dependem da relação preexistente, antes transforma-se na
tentativa de se estabelecer a relação certa que permita uma via de comunicação
com o sofrimento do Outro para que este – ainda que possivelmente condicionado pelos limites do seu corpo físico – não se desligue da sua humanidade.
Toscano (2005) explica de que forma pensadores importantes como Paul
Ricoeur e Emanuel Levinas coincidem filosoficamente na ideia de que o Outro
é constitutivo de mim mesmo. O facto de eu não existir sem o outro caracteriza a especificidade de ser humano. Daqui resulta que o ser humano só o é na
medida em que se consegue relacionar. É esta capacidade de relacionamento
com os outros que determina as possibilidades de ser mais, de superação dos
limites pessoais61. O sofrimento, a afectação de necessidades que reduzem a
possibilidade relacional com os outros, confronta o ser humano com a redução
das possibilidades de ser e a morte, com o fim da relação com os outros e o não
ser. A partilha da vulnerabilidade permite encontrar um ponto de comunhão
que, no auge da limitação, permite a continuidade da relação. Para Gadow
61
Estas ideias vão também ao encontro das defendidas por Savater (2000) na sua
discussão sobre o amor-próprio e podem também agora ser enquadradas considerando
as perspectivas desenvolvidas sobre as interacções entre o heterocuidado e autocuidado
onde se incluiu a discussão sobre as relações de si com o seu corpo.
Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |95
(1999) a exposição, a insegurança e a incerteza são as características da única
certeza possível para envolvimento.
Esta tentativa de estabelecer a relação certa aponta para uma acção em constante movimento e com limites éticos que podem aparecer indefinidos.
As ideias desenvolvidas por Gadow (1999), no contexto do desenvolvimento de uma ética para a enfermagem, pressupõem os referenciais que resultam desta análise. No sentido de encontrar um modelo ético explicativo
e possível de ser aplicado à prática do cuidar, Gadow (1999) desenvolveu um
modelo que designou de narrativa relacional e que se torna oportuno explorar.
Narrativa relacional: uma ética para uma acção em mutação
Segundo a autora, as categorias que localizam a ética em enfermagem no
contexto da disciplina de filosofia não facilitam a sua estrutura porque não revelam relação íntima entre elas num modelo organizativo. Propõe o estabelecimento de conexões filosóficas entre diferentes perspectivas éticas e descreve
um modelo dialéctico baseado numa tríade de camadas éticas: imersão subjectiva
(iminência ética), distanciamento objectivo (universalismo ético) e compromisso
intersubjectivo (narrativa relacional) correspondendo, respectivamente, à ética
pré-moderna, moderna e pós-moderna (Gadow, 1999, p. 57). A autora explica
que as três perspectivas éticas não podem ser vistas de forma isolada e que
somente a sua coexistência constitui uma base segura para a prática (fig. 3).
Irão ser utilizados segmentos da narrativa de C1 que poderão, eventualmente, contribuir para ilustrar os componentes deste modelo.
O aspecto que me parece mais relevante deste modelo para esta situação
concreta da cuidadora é o conceito de iminência ética à qual está associada uma
certeza subjectiva baseada na imersão62 (uma imersão numa tradição que proporciona uma apreensão ética da situação e uma imersão na própria situação de
cuidar). A iminência ética é o primeiro nível do modelo dialéctico proposto, é
uma experiência de certeza que não necessita nem permite explicação, é não
discursiva, e o seu poder reside exactamente nestas características.
«[i]n ethical terms, immediacy is an unreflective and uncritical certainty about the good.
A certainty powerful enough to resist reflection originates outside an individual in order
to avoid being undermined by particularity. Certainty about the good, if it is to be more
than personal conviction, must derive from a source that transcends the individual, such
as religion, family, customs, or the ethos of a profession» (Gadow, 1999, p. 59).
62
96
| Cuidar da Família ao longo da vida
Na narrativa de C1, o que se situa num nível ético imediato aparece muito
bem demarcado pela dificuldade em encontrar as razões que direccionaram a
acção ou pelo desenvolvimento de respostas automáticas para agir:
«é um sentido de que estava certo o passo que eu ia dar, que é o passo certo.
Não é? Não é uma necessidade por obrigação, vá, a pessoa... h... é assim, é difícil de explicar».
«e automaticamente é assim, perante certas e determinadas situações que se
nos deparam, são situações que depois são tão vulgares, que nos acontecem
com tanta frequência que você assume a responsabilidade ou dá uma resposta
que nem necessita de pensar porque já vivenciou a situação tanta vez que nem
se questiona, se é correcto se não é correcto, se precisa de, se não precisa, qual
é o ponto qual não é, não é?».
Figura 3. Tríade de camadas éticas*
Ética
pré-moderna
Iminência ética
Ética
moderna
Universalismo
ético
Certeza subjectiva baseada
em distanciamento
relacional
▪Princípios
▪Teorias
▪Códigos
▪Leis
Ética
pós-moderna
Compromisso
ético
Contingência
intersubjectiva baseada
na narrativa relacional
▪ Significado do
bem construído
contextualmente
Reproduzido e traduzido com autorização da autora.
*
Certeza subjectiva baseada
na imersão
▪Família
▪Religião
▪Tradição
▪Comunidade
Redireccionar o cuidar para responder ao apelo do outro |97
Quando é pedido à cuidadora uma explicação sobre a sua certeza subjectiva, imediatamente o discurso se desloca para procurar uma série de princípios
que acredita serem universais, aplicáveis a todo o ser humano:
«S – Que sente que é correcto, desculpe interromper, que sente que é correcto... deixe… consegue explicar melhor esta questão do “sentir que é correcto”?
C1 – Ahh… é assim, todo o ser humano, a todo... ou melhor... a todo o ser
humano é-lhe dado livre-arbítrio, você pode fazer as suas escolhas, sejam elas
certas ou erradas, ahh... é assim, todos nós, no percurso da nossa vida fazemos
escolhas certas, erradas, menos certas. Ahh… e é consoante a nossa escolha, a
nossa decisão, vamos acatar as consequências.»
O modelo dialéctico de Gadow (1999) explica este deslocamento63. Ao
universalismo ético a autora relaciona uma ética moderna baseada num distanciamento racional, de princípios, teorias, códigos e leis.
Centralizando-se na explicação do processo de tomada de decisão (e negando
processos intuitivos), a cuidadora retorna à contingência da situação particular:
«C1 – Ahh... (11)... quando toma uma decisão, toma uma decisão assim, sem
pensar? Não? É ou não?
S – Sim.
C1 – Diz assim: “esta é a situação. Perante esta situação o que é que eu tenho
que fazer?” A decisão a que chego para muita gente pode até nem ser a sol...
a decisão correcta, a decisão que outras pessoas tomariam mas o importante é
aquilo que é importante para si.»
O novo deslocamento que ocorre aproxima-se do compromisso intersubjectivo da narrativa relacional. Nesta ética existencialista, a característica principal
é a unicidade dos indivíduos. A transcendência é a capacidade de imaginar e
apreciar diferentes perspectivas e não assumir uma perspectiva universal de
parte alguma64. A narrativa relacional sustenta-se num paradigma pós-mo«Dialectically, the move away from immediacy produces its opposite, rational
objectivity […] Rationality counters subjectivity with principles that are categorical
and inconditional. Freed from the limiting perspective of particularity, reason equals
universality. […] The strength of ethical universalism is epitomized by the principle of
respecting individuals equally. Respect for individuals is based on the rational autonomy
that each person possesses, the ability to transcend personal feelings in making
universalistic choices» (p. 61).
64
«The valuing of persons requires perception of each one’s uniqueness, and percepcion
involves engagement. […] the engagement of care respect is the opposite of ethical
63
98
| Cuidar da Família ao longo da vida
derno e desenvolve-se através de um compromisso que decorre num tempo
e espaço partilhados, baseado numa contingência de ambas as partes, procurando novos sentidos (particulares, condicionais e não definitivos). Por outras palavras, este compromisso pressupõe uma relação entre pessoas completas
(cuidador e pessoa cuidada). Juntas procuram a história que faz sentido para
a situação particular. Este modelo abre também espaço para os processos dinâmicos da tomada de consciência das pessoas dos sentidos que atribuem às
experiências.
Direccionando-se para o cuidar das enfermeiras, Gadow (1980) aborda
também a necessidade de preencher o vazio existente entre a dimensão profissional e pessoal das enfermeiras. Este segmento, por exemplo, ilustra um momento em que C1 procura retorno na interacção com a investigadora e lhe
pede uma perspectiva pessoal sobre o processo de tomada de decisão.
objectivity; it is the personal responsiveness to the particular other, a relation between
individuals that is grounded in the ambiguity of their being at once encumbered and
free, situated and transcendent» (p. 63).
Capítulo 4
As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida:
o cuidar intergeracional
Partindo das ideias emergentes, a figura 4 procura ilustrar uma possível
esquematização da evolução das dimensões do cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado) no ciclo de vida de um indivíduo inserido no ciclo de
vida familiar (Alarcão, 2006):
Figura 4. A relação das dimensões temporais com o ciclo de vida individual e
correspondente ciclo geracional da família e as variações das dimensões
do cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado) num paradigma
de cuidar intergeracional
Ser Cuidado
Infância/
/Adolescência
Autocuidado Heterocuidado
Idade
Adulta
Nascimento
Morte
.
Autocuidado V/S Heterocuidado
Autocuidado Heterocuidado
Velhice
Ser Cuidado
Estas perspectivas fundamentam-se no ideal de cuidar intergeracional referido por C1 e resultam da análise de uma narrativa em particular que tem
na sua base um modelo de família tradicional. Este modelo, aqui projectado,
permite verificar que os vários elementos que compõem o grupo familiar são
100
| Cuidar da Família ao longo da vida
expostos a uma grande variedade de combinações entre poderes (capacidades) e limitações (necessidades) nas relações de cuidar existentes e que se
poderá tornar a base do desenvolvimento da sua expertise relacional ao longo
da vida – consigo próprio e com os outros.
À geração de adultos que cuida dos filhos e dos pais simultaneamente exige-se a capacidade de articular e desenvolver estratégias adequadas para o
estabelecimento e superação de limites, mediante o conhecimento prévio da
história e das capacidades de cada elemento cujo cuidado considera ser da sua
responsabilidade. Esta é a geração que se constitui como elo de ligação entre
o passado e o futuro da família e onde se situa a cuidadora entrevistada (C1).
Embora seja de extrema importância termos em conta que as conclusões
que advêm desta análise não são generalizáveis, nelas se incluem processos que
nos direccionam para o questionamento sobre qual será a sua expressividade e
relevância e de que modo poderão contribuir para a abordagem dos enfermeiros às famílias em geral.
Alarcão (2006) analisa a família como um sistema e cita Sampaio e Gameiro (1985)65 para definir família como «um sistema, um conjunto de elementos
ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior, que
mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimento percorrido através de estádios de evolução diversificados» (p. 39). As famílias
são depois exploradas pela autora tomando também como referência o ciclo
de vida familiar associado à estrutura tradicional66. No entanto, a cada vez
maior plasticidade das actuais organizações e constituições familiares e o aparecimento cada vez mais evidente de novas formas de família (Alarcão, 2006)
levanta novos desafios e estimula uma análise sobre que bases constituem a
essência da definição de família67.
Ao abordar novas configurações familiares Alarcão (2006) cita a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1994)68: «o conceito de família não pode ser
limitado a laços de sangue, casamento, parceria sexual ou adopção. Qualquer
grupo cujas relações sejam baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino
Sampaio e Gameiro. 1985. Terapia familiar. Porto. Edições afrontamento. Pp 11-12.
O desenvolvimento da sua análise é organizado tomando como referência as seguintes
etapas do ciclo de vida familiar: formação do casal, família com filhos pequenos, família
com filhos na escola, família com filhos adolescentes, família com filhos adultos.
67
«As transformações a que temos vindo a assistir, no que toca à constituição e composição
da família, levam-nos a equacionar a necessidade de se realizarem novas investigações e
novas sistematizações do(s) precurso(s) desenvolvimental(ais) das famílias» (p. 111).
68
OMS. 1994. World AIDS day newsletter, 1.
65
66
As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |101
comum, deve ser encarado como família» (p. 204). Esta concepção estabelece
como critério definidor do que constitui uma família a existência de relações
cuidativas. Nesta narrativa foi também possível observar que, apesar de C1
idealizar um cuidar intergeracional fundamentado na cadência das gerações e
nas relações entre pais e filhos, é a própria que acaba por quebrar a rigidez deste modelo para dar prioridade às relações existentes – as que tem com os que
opta por cuidar e à relação consigo própria (procurando ser fiel a si mesma e
coerente com os seus próprios valores) – e não à proximidade de laços formais
ou sanguíneos.
Cuidar é simultaneamente a razão e o produto da existência da família e é,
conforme já foi explorado, a razão pela qual esta se encontra intrinsecamente
ligada aos processos de desenvolvimento do indivíduo. Não é por isso de estranhar a integração simbólica na família dos profissionais que prestam cuidados
no domicílio, pois, mediante a relação de confiança estabelecida, também eles
colaboram em actividades que garantem suporte da família.
Perante esta perspectiva evolutiva do conceito de «família», qual poderá ser
então a relevância de um paradigma que, embora apareça associado à existência de um forte sentido para cuidar, não se reflecte na realidade e tendências
actuais das famílias?
O que este modelo parece sugerir, quando confrontado com a perspectiva
já mais recente e transformada do conceito de «família» da OMS, é que as
tarefas de desenvolvimento essenciais para construir a identidade e garantir
a subsistência dos indivíduos não dependem tanto das características específicas dos elementos que constituem o grupo familiar, mas da capacidade que
estes têm (ou tiveram) de estabelecer relações de confiança que proporcionem
oportunidades para que cada um possa experimentar as diferentes variações
das dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida, isto é: (i) ser cuidado numa
perspectiva de preparação para o futuro, e de aprendizagem da gestão da aquisição de capacidades no sentido de desenvolver a capacidade de autocuidado
– que passa também por cuidar de outros em diferentes etapas do ciclo de
vida – (ii) o heterocuidado, (iii) a necessidade de articular o autocuidado e heterocuidado e, ainda, (iv) ser cuidado num contexto de perda progressiva das
capacidades que permitiram a construção da sua história no passado. No seu
fio condutor, a estas actividades de cuidar se ligam relações de poder e vulnerabilidade direccionadas para o futuro ou para o passado.
Estes pressupostos poderão contribuir para orientar os enfermeiros na avaliação das dimensões do cuidar do grupo familiar como um todo, mas, também,
das formas e possibilidades que cada elemento encontra – ponderando-se a
102
| Cuidar da Família ao longo da vida
sua etapa do ciclo de vida e as capacidades individuais – de experimentar e
desenvolver essas dimensões de forma adequada.
Kahana et al. (1994) referem-se também à importância de considerar a dimensão temporal da prestação de cuidados e o que tem sido designado por
«developmental time». Este conceito está relacionado com o impacto do timing
em que os papéis de cuidar ocorrem no desenvolvimento individual de cuidadores e receptores de cuidados.
Tomando como exemplo a problemática das crianças e jovens cuidadores
(já referida anteriormente), podemos verificar que uma responsabilização inadequada pelos cuidados a outros poderá precipitar uma necessidade de articular
tarefas de autocuidado e heterocuidado numa altura do ciclo de vida em que a
criança pode não ter um passado significativo como referência (ao qual se pode
recorrer na idade adulta), essencial para construção da narrativa e para identificar e exprimir emoções que ajudem à integração das vivências69. Por seu lado,
os pais – em situações de doença – destas crianças podem ver comprometida
a sua actividade de heterocuidado (para com os filhos/avós ou sociedade) e
necessitar de encontrar formas de permanecerem conscientemente conectados a actividades de desenvolvimento e propósito.
Compreender que o desenvolvimento da capacidade de autocuidado inclui
tarefas que vão muito para além da execução de cuidados ao corpo e que pode,
inclusive, ser potenciado pela actividade de cuidar dos outros, leva-nos também a considerar a possibilidade de que esta seja menos afectada em crianças
cujos pais apresentem doenças associadas a limitações exclusivamente físicas,
na medida em que estes continuam a ser capazes de orientar os filhos, de os
validar positivamente, e de reconhecer os seus esforços e capacidades. Na verdade, os estudos citados confirmam que as crianças mais afectadas são aquelas
Durante a exploração sobre os eventos marcantes e a competência da narrativa
tivemos oportunidade de verificar que estes poderão novamente surgir associados
a outros processos posteriores (ou, no caso particular das crianças, na idade adulta)
que despoletem as memórias do que foi vivido. Poderão ser integradas à medida que
aumentem as capacidades de narrar-se a si próprio e existam oportunidades para ser
escutado e para partilha de experiências.
Este constitui também um exemplo de como a narrativa pode ser um instrumento
terapêutico (Sakalys, 2003), inserido num paradigma de cuidar-sarar, pela abertura de
uma janela panorâmica que permite encontrar as vias que ligam os acontecimentos
do passado às circunstâncias do presente e às expectativas para o futuro. A utilização
da brincadeira, da arte, da música, da poesia e da dramatização poderá ser importante
para ultrapassar dificuldades na auto-expressão e poderá ser particularmente útil em
crianças.
69
As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |103
cujos pais têm comportamentos aditivos, perturbações emocionais ou doenças
mentais, e a análise desta narrativa revelou a importância que o reconhecimento do receptor de cuidados pode desempenhar.
A análise efectuada sobre os eventos marcantes da narrativa permitiu perceber de que forma estes têm um papel fundamental para a organização das
experiências – passíveis de serem analisadas de forma isolada e na sua transversalidade –, se tornaram o centro do relato dos episódios de cuidar da família, e
de que forma a realidade factual dos acontecimentos é usada para introduzir as
variáveis que permitem transmitir significado e simbolismo ao vivido.
Os eventos marcantes relacionados com os episódios de cuidar incidiram,
como tivemos oportunidade de ver, em acontecimentos que colocaram em
risco a segurança e que criaram circunstâncias inesperadas, que precipitaram
escolhas ou vivências emocionais intensas, indutoras de diferentes tipos de
mudanças, visíveis e invisíveis. No entanto, a particularidade que parece estar
na base da construção destes mesmos eventos – e que se torna mais evidente
na recta final desta análise – é o facto de todos se relacionarem com conjunturas que provocaram alterações das relações de cuidar previstas no ciclo de
vida quando tomamos como modelo o ideal de cuidar intergeracional já explorado e que corresponde ao culturalmente enquadrado. Na verdade, cuidar do
pai em criança, cuidar da mãe (com necessidade de ajuda da filha) até à sua
morte prematura, cuidar da avó, dar apoio à filha (a quem foi diagnosticada
doença oncológica) e, ainda, a consciencialização da missão de vida (que redireccionou os cuidados) constituem situações não previsíveis e que alteram as
relações da família muito para além das tapas de transição inerentes às etapas
de desenvolvimento. De salientar, por exemplo, que apesar das transições importantes que decorrem do nascimento e cuidar de filhos, nenhum aspecto foi
considerado marcante relativamente a estes cuidados, referidos como inquestionáveis, previsíveis e socialmente contextualizados.
Kahana et al. (1994b) exploram ideias que se encaixam nesta perspectiva,
e apontam para autores que salientam que as experiências de cuidar podem
ser mais ou menos intensas para os cuidadores, consoante a sua normalidade
relativamente à idade e género70 e estão (ou não) on time relativamente à se-
70
Questões relacionadas com o género têm sido amplamente exploradas no âmbito da
sua relação com o cuidar. Por exemplo, Achterberg (1991) e Collière (1999) exploram
a história da mulher e de que forma ela tem estado ligada a práticas de cuidar e sarar.
Gilligan (1993) realiza uma abordagem psicológica ao desenvolvimento da mulher e
explica de que forma esta se orienta para uma ética baseada no cuidar.
104
| Cuidar da Família ao longo da vida
quência e duração culturalmente prescrita. Os mesmos autores explicam que
o cuidar que se desenrola nas suas formas previsíveis ao longo do ciclo de vida
tem maior probabilidade de encontrar recursos sociais de apoio adequado e de
causar menos impactos negativos nos cuidadores. Poderíamos, talvez, acrescentar que a previsibilidade também se poderá constituir como factor atenuante, porque permite ao indivíduo criar mecanismos antecipatórios e de apoio
progressivo mediante as necessidades de ajuda que vão surgindo.
Os relatos dos episódios de cuidar revelam que paralelamente a uma vivência de sofrimento do receptor de cuidados decorre uma vivência de sofrimento
do cuidador. O resultado é uma afectação mútua e perda de controlo sobre a
satisfação das necessidades de ambos. Aqui se percebe que o compromisso com
o cuidar do Outro implica colocar-se disponível para ser afectado.
No relato do cuidar da avó, percebemos a ocorrência de um isolamento
subjectivo que contribui para uma circunstância que designamos globalmente
por solidão no compromisso de cuidar e que pode estar associado a situações de
sensação de desamparo, nomeadamente em momentos de maior instabilidade
e vulnerabilidade da saúde do familiar. Este é o contexto onde a necessidade
da narrativa se torna emergente. C1 encontrou nos profissionais de saúde que
a acompanharam uma possibilidade de se expressar e ser ouvida.
Esta situação poderá ter ainda mais impacto quando o cuidar ocorre em
situações fora da norma, na medida em que o cuidador vivencia contextos familiares díspares e muitas vezes não compreendidos pelos que partilham a sua
rede social de amigos e etapas do ciclo vital. Isto pode ser particularmente
importante nas crianças e jovens cuidadores e contribui para compreender o
aparecimento de sentimentos de ser diferente ou actos de bullying (Earley et al.,
2007; Cree, 2003). Os jovens adolescentes, por exemplo, poderão experimentar sentimentos profundos de solidão numa altura da vida em que a rede social
e o grupo começam a ter cada vez mais relevância.
Um outro aspecto particularmente relevante que resultou da análise
efectuada foi a necessidade de ponderarmos a possibilidade de atenuação
de experiências consideradas marcantes no passado, pela vivência posterior
de momentos onde as circunstâncias que rodeiam os acontecimentos são
semelhantes, mas onde o indivíduo se situa em níveis diferentes de responsabilidade e controlo sobre elas. Estas coincidências poderão permitir uma
conexão entre dois momentos distintos no tempo que permite um novo olhar
sobre os acontecimentos e uma nova integração, agora mais abrangente, das
experiências ocorridas. É este o processo que parece estar na base da metáfora que a cuidadora utiliza para explicar o seu processo de transformação,
As dimensões do cuidar ao longo do ciclo de vida |105
visível no modo como vai realizando leituras diferentes dos acontecimentos
ao longo da vida.
Os relatos de C1 dos cuidados ao pai e à mãe são um exemplo desta possibilidade. Quando C1 prestou os cuidados ao pai situava-se na dimensão temporal do futuro do ciclo familiar (criança), depois, já na dimensão do presente,
depara-se com a inevitabilidade da participação da filha nos cuidados à mãe.
Uma perspectiva que poderá contribuir para uma melhor visão sobre estes
aspectos da análise é o desenvolvimento de ideias que King e Wynne (2004) fazem sobre a emergência da integridade familiar na segunda metade do ciclo vital
e de que forma esta está relacionada com o conceito de mutualidade. Definem
mutualidade como a capacidade de manter um compromisso a longo termo com as
relações familiares e reinventá-las através do tempo em face das transições do ciclo de
vida. A mutualidade está, então, relacionada com funções relacionais básicas
que, considerando a sua descrição, se podem considerar de cuidar71. Para estes
autores, é esta capacidade que irá permitir aos adultos crescer no suporte dado
aos seus pais na velhice. Estes, reciprocamente, continuam a oferecer várias
formas de suporte e assistência aos seus filhos e netos, ao mesmo tempo que se
vão tornando cada vez mais capazes e dispostos a aceitar as ideias e ajuda dos
filhos e a serem cuidados. King e Wynne (2004) explicam que a transformação
para esta etapa da relação familiar (que designam de mutualidade filial) depende da capacidade da família renegociar hierarquias de poder intergeracional e
obter relações de adulto-para-adulto entre pais e filhos adultos.
As perspectivas destes autores salientam aspectos que despertam para a
necessidade de investigar de que forma é que as variações das capacidades e limites do corpo ao longo do ciclo de vida interferem com as relações familiares.
Isto pode ser particularmente relevante nas situações de doença na família,
pelo seu carácter não normativo.
Na medida em que o cuidar se desenrola num jogo entre os limites/necessidades e as capacidades das pessoas, ele é também uma busca contínua de um
equilíbrio ou, pelo que resulta da análise, uma tentativa de estabelecer a relação
entre poder e vulnerabilidade (fig. 5).
71
Os autores consideram como funções relacionais básicas: o afecto ou prestação de
cuidados, a comunicação e a partilha de resolução de problemas. Nesta análise foram
todas consideradas como parte integrante do cuidar tendo em conta referenciais já
abordados.
Conclusão
A análise revelou uma história de vários episódios anteriores de cuidar da
família que apresentaram, em relação ao processo de tomada de decisão, três
momentos distintos ao longo do tempo: o cuidar por obrigação, o cuidar por
escolha e o cuidar como missão de vida. Além de acompanharmos uma série
de relatos de cuidar ao longo do ciclo de vida, foi possível observar uma evolução dos sentidos atribuídos ao cuidar, que se revelaram condicionais e se
foram completando no tempo. O tempo e as experiências interagem permanentemente, e o resultado, que se prevê não definitivo, não pode também ser
circunscrito ao episódio de cuidar que esteve na base da pergunta generativa.
Por outro lado, o relato de C1 foi revelando circunstâncias e dinâmicas de
interacção que podem fornecer pistas importantes para compreendermos de
que forma o cuidar do outro, apesar de exigente, poderá ser transformador.
Numa perspectiva de desenvolvimento podemos pensar que o processo
transaccional é, ao longo da vida, um processo contínuo e inevitável, desencadeado, quer pelas mudanças do corpo – associadas ao crescimento e envelhecimento – quer pelos ganhos e perdas que resultam de relações que se criam e
se rompem – pelo nascimento e morte.
Todos estes processos ocorrem naturalmente no seio da família e representam, na sua essência, períodos em que existem necessidades aumentadas de
cuidados, dirigidos para o próprio ou para os outros. Poderão despoletar crises
mais ou menos intensas, consoante (i) os recursos de superação existentes,
(ii) ocorram dentro das etapas previstas do desenvolvimento do indivíduo ou,
como tivemos oportunidade de analisar, (iii) estejam mais ou menos socialmente enquadrados.
A análise efectuada revelou que situações ou contextos que criaram riscos de compromisso da segurança despoletaram uma necessidade de alterar
padrões de relacionamento (aproximação ou distanciamento) na família.
Ao mesmo tempo, tornaram evidente o nível de confiança das relações já estabelecidas (fig. 5).
A existência de necessidades (individuais ou familiares) não controladas
pode ser desencadeadora de mal-estar – mais ou menos intenso, mediante a
avaliação que o indivíduo faz dos seus limites e capacidades para superar as
dificuldades.
De notar que esta avaliação não se faz considerando apenas a realidade
do presente. Esta tem carácter tridimensional no tempo. O indivíduo pode
108
| Cuidar da Família ao longo da vida
recuperar situações idênticas no passado e compará-las relativamente às circunstâncias que as rodearam, às capacidades e limites existentes na altura e
às estratégias de resolução encontradas. Depois, poderá antecipar o processo
reflexivo e de tomada de decisão no futuro, tendo em conta as expectativas
a atingir e a ponderação antecipada dos encargos que consegue prever e dos
recursos que se irão (ou não) manter (fig. 5).
Há ainda a considerar que as relações de confiança que se estabelecem com
os outros podem significar uma parcela a contabilizar na soma dos recursos
disponíveis para a superação de situações de instabilidade e risco. Nesta perspectiva, a família assume especial importância.
No rol das relações existentes inclui-se, com especial importância, a relação de confiança que o indivíduo consegue manter consigo próprio, nomeadamente, procurando alcançar um sentido de coerência interna relativamente às
decisões que irão orientar a sua acção. Este processo constitui-se como um mecanismo importante para o autocuidado. Assim, a pessoa poderá necessitar de
repensar a sua hierarquia de valores, prioridades e crenças para conseguir dar
resposta à situação de crise/transição. Poderá, por exemplo, procurar formas de
isolamento que lhe permitam processos de conversão a si (meditação, reflexão),
concretizando uma mudança no padrão da relação consigo próprio (fig. 5).
As várias dimensões de cuidar que coexistem na família estão também ilustradas na figura 5, mais especificamente: a forma como se organizam numa
perspectiva que considera ganhos e perdas de capacidades previsíveis ao longo
do ciclo de vida, a forma como predominantemente se orientam simbolicamente para o passado e para o futuro ou, ainda, para os conteúdos simbólicos
da vida e da morte.
Conclusão
|109
Figura 5. Circuito relacional: o ajuste das relações no processo de transição –
as dimensões de cuidar (individual e familiar) no tempo
BEM-ESTAR
(Controlo sobre as necessidades)
Situação de compromisso
da segurança
Sentidos e percepção
Mal-ESTAR
(necessidades não
controladas)
Recuperação de situações de
crises anteriores: capacidades e
limites existentes e estratégias
encontradas (ou não)
(PASSADO)
Avaliação das expectativas
e antecipação dos recursos
e encargos previsíveis
(FUTURO)
Avaliação dos limites
e capacidades existentes
(PRESENTE)
INSTABILIDADE/RISCO
Escolhas/Decisões
PROCESSO DE TRANSIÇÃO E CUIDAR
– Garantir condições para manutenção da vida/gestão do risco
– Proporcionar condições para a narrativa/partilha de histórias de vida – partilha de significados e rituais
Imersão
Imersão
Reavaliação das relações existentes para garantir satisfação das necessidades
Meditação
Reflexão
Comunicação
M
O
R
T
E
Com os outros
HETEROCUIDADO
Gerir perdas
SER CUIDADO
Conflito nas relações
Desorganização
VULNERABILIDADE
Confiança
Mudança do padrão de
relações existente
(tempo/espaço)
Consigo próprio
AUTOCUIDADO
Gerir ganhos
SER CUIDADO
Coerência nas relações
Organização
PODER
V
I
D
A
110
| Cuidar da Família ao longo da vida
Este trabalho poderá contribuir não só para orientar a intervenção dos
enfermeiros em famílias que apresentam contextos de cuidar de doentes
em fim de vida, como, também, oferecer uma perspectiva global sobre o
cuidar familiar, as suas dinâmicas e evolução no tempo. Estes aspectos são
particularmente importantes para o enquadramento e definição da intervenção do enfermeiro de família no que concerne ao seu campo específico
de acção.
A relação simbólica das dimensões do tempo linear com as gerações presentes no ciclo de vida familiar pode ser particularmente útil para situar a direcção
das dimensões de cuidar (autocuidado, heterocuidado e ser cuidado), assim
como diferentes combinações de poder e vulnerabilidade, graus de liberdade
e responsabilidade e, ainda, imaginá-las em interacção com os processos cognitivos individuais. Esta conexão poderá também permitir localizar processos
emocionais importantes na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros: família, sociedade, vida, etc.
Pensar no cuidar como o elemento aglutinador do que se entende por família e considerar as suas dinâmicas do ponto de vista geracional (onde os vários
intervenientes que interagem se situam em diferentes etapas de desenvolvimento/níveis de capacidade e com distintas relações com o tempo), poderá ser
uma via para a compreensão mais alargada dos processos relacionais que ocorrem entre as pessoas que em determinado momento apresentam mais capacidade e as que apresentam mais vulnerabilidade. Além disso, esta perspectiva
parece ser mais abrangente e inclusiva, na medida em que estes referenciais
não estão restringidos por questões estruturais, sendo válidos para famílias que
obedecem a uma estrutura tradicional ou não.
Este estudo de caso forneceu também exemplos de não normatividade relativamente à cadência geracional previsível de cuidadores, designadamente: os
episódios de cuidar do pai e da avó.
Considerando a realidade social actual e o papel determinante que a família
desempenha nos processos de desenvolvimento individual e das sociedades,
torna-se evidente a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre as situações excepcionais do cuidar familiar que poderão constituir situações de risco
e comprometer a integridade do sistema familiar. A problemática dos jovens
cuidadores é disto um exemplo possível.
Além do estudo das narrativas de cuidadores, a analise efectuada mostrou
que poderá ser importante estudar as narrativas de quem está a ser cuidado
por outros. A exploração do que significa ser cuidado poderá esclarecer, entre
outros aspectos, os factores associados ao SPB (self-perceived burden).
Conclusão
|111
A importância de compreender as experiências vividas que podem contribuir para o processo contínuo de construção de sentido para cuidar não se
limita às possibilidades que se podem abrir no domínio da intervenção que os
enfermeiros dirigem para os outros, mas abre caminho para uma intervenção
dirigida para si próprios: a construção das narrativas pessoais que dão sentido
ao exercício profissional.
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