A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio.

Transcrição

A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio.
Capitulo IV
A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio.
A Cultura Indiana
Nota Preliminar
E urn lugar-comum dizer que, quern se debruca sobre o estudo da civilizacao
indiana, fica assombrado corn o facto de que esta corn a sua cultura
concomitante nascida ha milhares de anos, é ainda hoje viva e pujante(1). Comecada
ja nos tempos vedicos (2000-600 A. C.) e continuada pelos rixis, filosofos, sacerdotes
e sanyasis nos vinte e cinco seculos seguintes, chegou ate os nossos dias numa tradicao
mais ou menos ininterrupta.
A historia desta civilizacao é marcada por reaccoes contra certas verdades
institucionalizadas ou mesmo pela rejeicao destas, adaptacoes as novas circunstanci as
culturais do ambiente que nasciam no decorrer dos tempos. Ela nao se provou imune
a absorcao de novos elementos e sujeicao a novas influenci as dos povos corn culturas
propri as, que vieram estabelecer-se na India, viajar pelo sub-continente, apreender dos
seus sabios, saquear as suas riquezas e conquistar a terra e dominar os seus povos.
Outras civilizacoes tao antigas como as da India, por exemplo, a egipci a, a grega,
a romana, nao sobreviveram as vicissitudes das mudancas culturais a que ficaram
expostas, para chegarem ate os nossos dias, intemeratas na sua pristina identidade (2).
" Nao se pode negar que em uns poucos seculos o espirito da unidade cultural espalhou-
(1)
Ranganathananda Swanty, The Essence nf Indian Culture, The Ramakrishnan Mission,
Calcutta, pag. 1.
(2)
Kabir, Humayun, The Indian Heritage, Asia Publishing House, Bombay, 1962, pag.56.
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-se por uma vasta extensao da terra e troncos raciais de varios niveis da cultura fi caram
impregnados numa atmosfera comum" (3) Esta unidade deu-lhe uma identidade m ui to
caracteristica.
As sucessivas invasoes e conquistas, a comecar com as dos Arianos, dos
Gregor, dos Hunos, ate as mais recertes come as (los Portuguese Ing,!ests e France.
ses , contribuiram para continuas fusoes das tradicOes antigas com novo s elementos das
culturas dos invasores.
"Hoje o que é conhecido por Indian°, seja uma i dei a, uma pal avra, uma forma
da arte, uma instituicao politica ou urn costume social, é uma amalgama de diferentes
tons e elementos" (4).
Unidade na diversidade e continuidade caracterizam o patrimonio cultural da
India. A unidade subjacente a cultura da India, proveniente de vari as fontes, formas e
tipos, e urn dos seus aspectos notaveis. El a brota do espirito que une as suas diferentes
expressoes "e liga os diferentes periodos da sua hi st6ria ern urn todo organi co" (5).
Se esta unidade nao fosse de tal natureza "nao seria possivel explicar os
sucessos e as realizacOes espirituais do Hinduismo" (6). A vitalidade e a perpetua
energia desta cultura é igualmente admiravel, pois que ela nao so sobreviveu as
vicissitudes do tempo mas, ai nda hoje, revel a "uma exuberanci a que promete fazer del a
uma das fontes mais frutiferas da futura cultura mundial" (7).
Aos filosofos da cultura devemos o esclarecimento da verdade de que nenhuma
cultura apareceu ou se desenvolveu a nab ser juntamente corn uma religiao,(8) e a
religiao 6 a chave da historia e e impossivel compreender uma cultura a nao ser que
compreendamos as suas raizes religiosas "(9).
(3)
Radhakrishnan, Servapali, The Hindu new of Life, London, Unwin Books, 1963. pag. 13.
(4)
Kabir Humayun, op.eit., pag.35.
(5)
Ibidem.
(6)
Ihidem.
(7)
Ihidem, pag.36.
(8)
T.S.Eliot, :Voles inwards the Definition nfl'ulture , Faber Ed, London,1962.
(9)
Dawson, Christopher_liedieva/ Essays, Image Books, pag.7.
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"Tesouro acumulado das verdades espirituai s descobertas pelos rixis", di sse Adi
Shankaracharia (10), "a cultura indiana tem um conteudo basicamente religioso". Esta
ela edificada sobre a sabedoria vedico-puranico-upanixadica. Elementos da
mundividenciabudista e jainista sao muito bem parte dela. Na sua experiencia religiosa
os sufis, misticos islamicos e os seguidores hindus da espiritualidade bhakti partilham
umaplataformacomum. 0 Cristianismo contribuiu corn varios el ementos do Evangelho
e do seu humanism°.
A cosmovi sap indiana exprimiu-se atraves de uma rica simbologia, um ritualism° que abrange todos os aspectos da vida social e individual, uma mitologia de
profundo significado que é "parte da cultura viva, nap apenas das massas analfabetas
mas de todos os estratos da sociedade"(11).
Uma outra caracteristica da cultura indiana é que esta nunca foi apenas
apanagio das classes ou duma elite, mas penetrou por toda a populacao do subcontinente. A lingua, "nos primordios o Sanscrito que deu origem a varias linguas
vemaculas, prakrit" , e a arte, a filosofia e a religiao, os habitos e os costumes sociais,
as instituicoes politicas e as organizacties econOmicas foram e ainda hoje sap parte da
vida e do ethos do povo indiano, embora cada regiao ou estado modern° tenha criado
urn clima cultural caracteristico corn seus cambiantes proprios.
Um estrangeiro que visite urn recanto da India ficard surpreendido corn a
abilidade de urn homem da aldeia, ainda que corn pouca ou nenhuma instrucao, ern
pensar, sentir e comportar-se dentro do quadro das premissas basicas da filosofia e da
religiao milenarias; ele observara tambem que "a diferenca entre as massas e as
classes nap é tanto de qualidade mas pode bem ser explicada ern termos de informacao
e oportunidade" (12).
Ao contrario, no Ocidente, ainda recentemente "a diferenca na qualidade entre
as massas e as classes era por vezes tao grande que ela muitas vezes abalou a fe na
democracia dos mais fervorosos democratas". (13).
(10)
(11)
(12)
(13)
Shankaracharya A., citado por N.Palkhivala em India's Priceless Heritage, Bombay
Bharatya Vidya Bhavan, 1980, pag.29.
Ions, Veronica, Indian Mythology, Paul Hamlyn,1968, pag.11.
Kabir H., op.cit.,pag.39.
Galbraith, John Kenneth, "Introducing India", em India, edited by Frank Moraes and
Edward Howe, Vikas Publishing House, Delhi, pag.3.
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Este fenomeno, em grande medida, resulta da continuidade que caracteriza a
cultura indiana. Desde os tempos vedicos e puranicos nunca houve quebras violentas
e rapidas na tradicao, mas ao contrario, um crescimento, uma expansao, uma evolucao
da cultura cujas sementes foram lancadas pelos ascetas e misticos de antanho — rixis,
sadus. sanvasis — grelaram e nermeararn entre. toeing as classes
e
cecclies da soci edq-
de cujo espirito inato de toleranoia bem as recebeu, e transmitiu de geracao em geracao
dando destarte unidade e continuidade as tradiceies patrias.
Bem se pode dizer que a cultura indiana é caldeada por varias religibes e
"penetra a vida hindu tal como ela e vivida no mundo em cada canto e recanto" (14).
Os hindus consideram a sua religiao como uma parte integral do viver• completo,
entretecido com ela. Este viver eles chamaram-no Sanatana Dharma — a maneira de
viver estabelecida, permanente e eterna" (15).
A razao por que a filosofia e a religiao tern sido intimamente associadas uma
outra é que "o objectivo final de ambas é o mesmo, a saber, ajudar o homem a realizar
o seu fim supremo que é a libertacao do Samsara (ciclo do nascimento e da morte). A
finalidade da religiao é nao apenas refinar as emocCies do homem, mas tambem sublima-las e transformar a sua vida inteira".
Por isso, diz S. Radhakrishnan, " o hinduismo nao é urn credo dogmatic°
definido mas um conjunto vasto, complexo, porem subtilmente unificado, de pensamento espiritual e realizacao humana (16).
As raz5es sociologicas deste fenomeno cultural devem encontrar-se no facto de
que antes do advento da recente urbanizacao industrial, a civilizacao hindu repousou
e floresceu sobre a estrutura social da aldeia" (17).
John K.Galbraith disse que "a aldeia indiana tern a dignidade e a estabilidade
(14)
(15)
(16)
(17)
Chowdhuri, Nirad C., Hinduism, B.I.Publications, Delhi, 1978, pag. 1.
Ibidem, pag.28.
Mahadevan, T.M.P., The Religio-Philosophic Culture of India", em: The Cultural Heritage of India, edit. by Ramakrishna Mission, Calcutta, vol.1,pag.165
Radhakrishnan, S., op.eit., pag.17.
Deleury G.A., "Popular or "Folk" Hinduism, -- Sociological Background of "Folk" Hinduism", em l?eligious Hinduism, by R.Antoine et al.,St.Paul Publications, 1964, pag.95.
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de uma velha cultura (18)". Enquanto a cidade ou a vila era o cenario do poder politico
que se alevantava, uma especie de afloramento do acampamento militar, a aldeia
permanecu sempre a manifestacao autentica da alma da sociedoade indiana. E a aldeia
que moldou a via° e a psicologia do campones que apreendeu qual é o quadro e o
modelo ritmico em tudo o que tem vida desde o nascimento ate a morte, desde a morte
ate ao nascimento
SOmente nesse ambiente cultural — a aldeia — os gurus (mestres), os rixis
(misticos), os sadhus e sanyasis (ascetas), ospurohits (sacerdotes), em intercambio
espiritual corn as montanhas, florestas, rios, animais e templos, podiam exercer a sua
accao de homens de relied° e lideres da cultura, e contribuir para o avanco religioso-cultural, atraves da tradicao da logica e da sua vida". E somente na aldeia e
principalmente atraves destes homens da religiao e lideres da cultura que "a religido e
a filosofia, a vida e o pensamento, o pratico e o teOrico formaram e ainda "formam o
eterno ritmo do espirito. E sOmente aqui que o indiano aprendeu e ainda aprende a surgir da vida ao pensamento e voltar do pensamento a vida num enriquecimento
progressivo que é o atingir de niveis cada vez mais altos da realidade" (19).
As Matrizes da Cultura Indiana
Ainda nab ha muito tempo, o patrimonio cultural das nacoes com um passado
milenario. expresso pela sua mitologia, seus rituais, seus simbolos, suas lendas era
considerado pelos estudiosos ocidentais como "episOdios imaduros ou aberracOes de
uma historia exemplar humana". Tais nacoes pertenciam ao que eles chamavam
"mundo primitivo", e as atitudes psi col Ogi cas dessas nacoes eram consideradas como
"inferiores, estranhas e desconcertantes" (20).
Foi a partir dos grander movimentos culturais deste seculo
estudos
comparados das religioes, a antropologia cultural, a etnologia, e a psicologia das
profundezas, as teorias principalmente de Freud e Jung, as descobertas do surrealismo — que a mitologia, os rituais e os simbolos comecaram a ser olhados como
(1 8)
Galbraith,
(1 9)
Radhakrishnan S., op.eit., pag. I7.
(20)
Eliade, M ircea, Alphs. Dreams and Alysteries, The Fontana Library Theology and Philosophy, pag. 10. I I.
pag.3 .
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"expressoes do genio particular" de uma nacao, "expressoes privilegiadas das situacoes
existenciais dos povos que pertencem a varios tipos da sociedade e sao impelidos por
forcas historicas que sao diferentes das que moldaram a historia do mundo ocidental" (21).
Urn estudo documentado e serio desses simbolos e mitoloaias. deve levar
eventualmente, na opiniao autorizada de Mircea Eliade, a uma "descoberta de novas
fontes de inspiracao para a meditacao filosofica".
i) India-Mae (Bharat-Mato)
Urn mito primordial da humanidade e o da Terra-Mae, Tellus Mater. Os rituais
ligados a este mito revel am como a vida nasceu de uma semente escondida num todo
"nao diferenciado", ou como ela é produzida ern consequencia da hierogamia entre o
ceu e a terra ou, ainda, como ela brotou de uma morte violenta, ern maior parte,
voluntari a. Nestes rituais a mulher é assemelhada a terra e o acto sexual ao trabalho da
lavoura (22). A mulher é o campo e o homem é o dispensador da semente", escreveu
um autor indiano (23).
Este mito primordial teve na India uma expressao concreta no culto da Deusa-Mae. 0 conceito da terra como mae é uma das facetas mais duradoiras e vitais da
cultura indiana. 0 A tharvaveda tern urn magnifico lino a Prithvi:
O Terra, teu centro e teu umbigo, todas as forcas que brotaram do teu corpo -Coloca-nos no meio dessas forcas; bafeja sobre nos. Sou filho da Terra, a Terra
e minha Mae. 0 Deus da Chuva e meu Pai; oxala ele me favoreca (24).
Nos tempos vedicos Prithvi, a terra, e Dyaus, o ceu eram representados
simbolicamente pela vaca e pelo boi, respectivamente. Adorados como deuses da
fertilidade, ambos eram considerados corm progenitores de todos os outros deuses e
de todos os homens.
(21)
Ibidem, pag.12.
(22)
Eliade, M.,op.cit.,pag.156-192. •
(23)
Citado por Eliade.
(24)
Embree,Ainslie T., The Hindu Tradition, The Modern Library, N. York, 1966, pag.45,
"Earth as motherland".
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Nas aldeias do sul da India, entre as massas nao-arianas, houve sempre culto
de divindades femininas que o processo lento de arianizacao transformou em consortes
de varios deuses e manifestacOes do seu pocler. Dal, nasceram as varias shakti. Assim,
Durga, a Mae auspiciosa que protege, perdoa, salva os seus devotos, tao compassiva
quao poderosa, e Shakti do deus Siva. Kali, simbolo da natureza inexoravel que cria e
'
destrai, pcsaai eras do sou orror :..•parontc, mao materna df... deusa que I eva os hc, ,rnons
a sua libertacao.
No decorrer dos tempos, principalmente nos alvores do despertar do sentimento
nacional no seculo XIX, pensadores, escritores literarios, politicos e religiosos,
comecaram a ver na propri a nacao indiana, Bharat, o simbolo da Mae, Matha e do Poder
Divino, Shakti, concepcoesestas personificadas pel as divindades (25). Foi a partir dos
escritos destes pensadores que se redescobriu e se reganhou a ideia de que a India é
uma Mae.
ii) 0 Espirito Supremo e Infinito
Em toda a filosofia vedico-upanixadica ha um principio fundamental, base de
todos os demais, que se filtrou ate as massas corn pouca instrucao, do continente: existe
um Espirito, supremo e imutavel que penetra e perpassa pelo universo inteiro. 0 mundo
material é apenas uma sua manifestacao. Supremo e eterno, fundamento de toda a
real idade, este espirito é conhecido por varios nomes, tais como Brahman, o primeiro
principio absoluto e transcendente; Paramatman, o ser supremo, Bhagavan, o bendito,
(25)
Eis as expressoes de alguns dos grandes pensadores da India:
Vivekananda:"A antiga Mae rejuvenecida, a conquistar o mundo pela sua espiritualidade"
(Mitra, Sisirkumar, Resurgent India, Allied Publishers Private Ltd., I963,pag.258.
Tagore:"Surgida do Coracao de Bengala
Tu apareces na tua forma maravilhosa, o Mae!
Encantadora do Universo!
0 Tu, a terra, brilhante coin os raios da paz do Sol!
Mae e Ama dos nossos antepassados" (Resurgent india,pag.280).
Aurobindo:"Cada nacao é uma shakti ou forca ou potencia do espirito que evolui na
humanidade ou vive em conformidade corn o principio que o incorpora.
India é a Bharata Shakti (Resurgent india,pag.13)
"Para Sri Aurobindo India-Mae nao é urn pedaco da terra. Ela a uma Potestade, uma
Divindade"(Palkhivala N.,op.cit.,pag.29).
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o adoravel, Ishvara, Senhor, Parameshvara, Senhor supremo que governa e domina o
universo (26).
iii) 0 Homem, manifestacao do Ser Supremo
Na concepcao indi aria, o homem "nao pole ser c,onsirlf_'rsdn
In10
separado, dP
alguma maneira, do universo; muito menos se pode dizer que ele desfruta de urn lugar
privilegiado nesse universo" (27). 0 Absoluto é o fundamento, o ponto de apoio
imutavel de tudo. A materia, as plantas, os animais, os deuses sao varias modalidades
do universo. Todos eles sdo uma especie de exposicao ou parada magica do Ser
Supremo que nao afecta a unidade serena do Absoluto (28).
0 homem é apenas "uma das muitas formas em que o Ser Supremo se manifesta
neste universo" (29). Por detras e mais ao fundo do estado da consciencia (nab moral
mas dos senti dos) do homem, como um individuo distinto dos outros, existe "um
principio imutavel que nunca fica envolvi do nos caprichos ou vicissitudes das pereepcaes, desejos e prosseguimentos mundanos de metas e objectivos.
Este principio imutavel é inteiramente diferente do que na filosofia escolastica
e conheci do como alma humana imortal, poi s que a filosofiaindi ana faz deste principio
a propria Realidade Suprema, imortal e eterna.
iv) 0 mundo é uma irrealidade, urn maya.
Este conceito é um bocado dificil de explicar em virtude de suas vari as
conotacoes. Já o Rig-veda apresenta Brahman como o iinico real e o mundo como fal
so. 0 mundo é maya, isto é, uma manifestacao de Brahman, puramente ilusori a, causada pela nescienci a transcendental (avidya, ajnana). Noutros lugares maya significa
realidade nao manifesta (30).
26)
Antoine R., et al.,op.cit.,art."God in Hinduism", pag.73.
(27)
Dandekar, R.N.,"The Role of Man in Hinduism" em The Basic Beliefs. of Hinduism,pag.115,
cit.por Antoine-Buckle, op.eil., pag.107.
(28)
Antoine, R. et al., op.cil.,pag. 107.
(29)
Dandekar, R.N.,op.cit.
(30)
Sharvananda, Swami, The Vedas and their religious teachings", em The Cultural
of India, vol.1, pag. 196.
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Maya significa ainda um poder divino que permite ao Senhor Supremo descer
e operar uma teofania entre os homens (avatar) e asstunir uma forma humana ou outra
forma qualquer visivel (31).
S. Radhaldwishnan diz que a c,onsciencia religiosa é testemunha da realidade de
alguma coisa por detras do visivel, um alem que nos deixa assombrados e nos persegue
e que, ao mesmo tempo, nos atrai e nos deixa inquietos, a luz do qual dizemos que o
mundo das mudaneas é irreal.
Para este filosofo, "a mutabilidade das coisas" — alias um tema bem versado
na literatura mundial -- é parte da eonotaedo do conceito maya. Em outras palavras, as
coisas deste mundo nao sao eternas. 0 mundo é maya, vai passando; so Deus é eterno.
Porem o conceito da irrealidade nao deve ser confundido corn o catheter ilusOrio das coisas. 0 conceito de maya implica antes o significado de empirico. "A
experiencia humana nao é, em Ultima anali se, nem real nem eompletamente ilusoria.
Apenas porque o mundo da experienci a nao é a forma perfeita da realidade, nao se segue que ele é uma ilusao ou desilusao" (32).
Maya deixa-nos ocupados com o mundo de sucessao e finitude. Maya causa-nos uma certa inquietaedo nas nossas almas, febre no nosso sangue. Ele tenta-nos a
aceitar como real as bolhas de ar que se quebrardo, teias que sera() desfeitas " (33).
v) Karma, Samsara, Moksha, Nirvana
A doutrina do Karma, Samsara, Moksha, Nirvana é um corolario da visa°
indiana da Real i dade, como o Espirito Supremo que é imanente no mundo e ao mesmo
tempo o transcende (34).
A doutrina do Karma e da transmigraedo ou reincarnaedo da alma — tao
largamente conhecida qua() mal compreendida — esta fundada no principio de que a
(31)
Antoine, R. et al., op.eit., pag.249.
(32)
Radakrishnan, S.,Eastern Religions and Western Thought, Oxford University Press.
1958,pag.84-86.
(33)
Ibidem, pag.94-95.
(34)
Mahadevan, T.M.P., op.cit,,pag.177-178.
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existencia actual é moldada e determinada pelas accoes, Karma, de uma existencia
previa que, por sua vez, foi o resultado das accoes de uma existencia anterior e assim
por di ante, numa seri e sem inicio de vidas sujeitas ao determinismo cego de retribuicao
rigorosa (35). Kama, desejo, é a fonte de Karma, accao. Samsara, significando corrente
do regato, é o termo sanscrito que significa transtnigracao ou metempsicose. A alma
torna-se vitima de samsaro pnrque, em razdo da Rua ignorancia identifica-se com
corpo.
,
A cosmovisao indianareconhece que ha possibilidade de libertacao do samsara
e esta libertaccao, moksha, é o mais alto ideal da existencia humana. A libertacao,
moksha, que pro venh a da accao sem desejo, nishkama-Karma, o que é uma contradi cap
de termos, é possivel opera-la ou pelo bhakti-marga, oupelojnana-yoga. 0 primeiro
é a via de devocao ou a realizacao de Deus no homem, e o segundo, a via do
conhecimento de si pr6prio, realizando a verdade dos livros sagrados do Vedanta sob
a orientacao dum guia espiritual (36).
Se na doutrina vedica, o moksha, é o ideal humano a ser atingido, Buda, o grande
contestatario dos Vedas, do seculo VI a.C., ensina que o nirvana é o summum bonum
da vida humana.
Nirvana, o mais alto estado emocional da espiritualidade e da bem-aventuranca
consiste "na sujeicao ao espirito altivo, o dominio perfeito da sede, a paralisia das
propri as reservas da energi a criativa, o refrear do curso de samsara no que di z respei to
ao destino do indivIduo, o raro atingir do estado de vazio, o desaparecimento do desejo,
o estado sem paixao, e a cessacao de todo o sentimento de discordancia."
Nirvana significa aniquilacao da paixao, oclio e ilusao (raga, dosa, moha). No
seu aspecto positivo nirvana equivale a iluminacao mental concebida como luz,
intuicao, estado de se sentir feliz, fresco, calmo e contente, estado de paz, seguranca e
auto-dominio. Considerado objectivamente, nirvana é a verdade, o sumo bem, a
oportunidade suprema, uma vida regulada, comunhao com o optimo (37).
(35)
Antoine, R. et al.,op.cit.,art."Hindu Ethics", pag.I08.
(36)
Mahadevan,
(37)
Law, Bimala Churn, "Nirvana" em The Cultural Heritage of India, vol. I, pag.547.
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0 Budismo nab existe na India como uma seita religiosa. Porem, o pensamento
filosofico e religioso budista filtrou-se nas reconditas profundezas da mente religiosa
dos hindus de hoje (38).
vi) Dharma
A etica indiana nab e um codigo de principios morals. Ela é antes uma praxe
determinada pelo ambiente social. 0 fim Ultimo a ser afingi do e o desenvolvimento do
individuo. Embora o imperativo da lei do karma faz com que a vida humana seja olhada
como uma responsabilidade individual, os Dharma sutras (sutras sab uma expli cacao
sistematica em formulas muito conci sas de todos os ramos do conhecimento da tradi cab
vedica que apareceu durante o periodo da reacao contra os Vedas entre os anos 600 a. C.
ate 300 A.D.) tratam do comportamento social das varias classes sociais.
Se pelo Moksha ou a liberdade espiritual, o individuo deve aprender a basear a vida
inteira sobre o poder e a verdade do espirito, se pelo Kama ele deve ganhar um equilibrio emocional; se o artha é o objectivo de obter seguranca economica e o bem-estar
material que se harmoniza com as exigenci as espirituais, o dharma, o quarto objectivo
da vida, é a "regra da pratica recta" (39), isto é, da rectidao e da justica que ensina a dar
coerenci a e direccao as varias actividades da vida, realizar os seus val ores num mundo
em que prevalecem interesses e desejos.
vii) 0 espirito da tolerancia e do respeito pela liberdade alheia
0 que di stingue, de uma maneira especial, a cut tura indiana é a continuidade de
uma tradicao de valores humanos, com um apelo profundamente espiritual. A longa
hi storia cultural da India, corn a unidade e ininterrupcao de trathcoes, nao teria sido
possivel na sociedade multiracial se nao prevalecesse o espirito de respeito pela
liberdade alheia e da tolerancia pel as culturas, conviccoes e valores dos outros. "Vive
e deixa viver" foi a maxima indiana em todas as esferas de relacoes sociais (40).
0 indiano acreditou e ainda hoje acredita que a verdade nunca pode ser o
(38)
Mookerjee, Satkari, "Buddhism in Indian Life and Thought", em The Cultural Heritage of
India,vol.1, pag.575.
(39)
Radhakrishnan. S., op.cit.,pag.353.
(40)
Kabir, Humayun, op.eit.,pag.37-39.
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monopOlio de ninguem.
A base desta conviccao esta a frase quase proverbial do Rig-
Veda: "Que de todos os lados pensamentos nobres cheguem ate nos".
Foi da doutrina de Brahman, A tman, Maya, bem como dos quatro fins ou ideais
da vida quebrotou uma i nteira mundi vi denci a, esse espirito de tol eranci a, compreensao,
paz, boa vnn tack. P ret°nhecimentr, rlla irnensa •ariedade de pelas quai pode
realizar o seu Ultimo destino (41).
0 conceito que melhor sintetiza este espirito é ahimsa ou nao-agressao: "Tudo .
oquehmfaznivrsopmtdeagosurinvdalém.0
que ele faz por motivos de desapego é born. 0 valor verdadeiro da benevolencia para
com todas as coisas", — é este o significado de ahimsa— da fil antropi a e da dedi cacao
aos pobres reside no facto de que todos eles ajudam o homem a erguer-se acima das
suas tendenci as egoisticas" (42).
0 escritor indo-portugues e a cultura indiana
Desde os tempos mais antigos em que os vates e os rixis criaram e nos legaram
os Vedas e os Upanishadas , a cultura indiana evoluiu de tal forma que "uma
continuidade quase ininterrupta de criacao poetica uma das maiores maravilhas da
historia literaria da humanidade" (43) caracterizou esse processo de evolucao. Sem
em "cada etapa desta criacao ela provou a sua excelencia, e quando atingiu o
seu auge na obra do mestre-cantor da India moderna (Rabindranath Tagore) ela
exprimiu de novo a sua alma em comformidade com a linha da vida da sua continua
evolucao cultural" (44).
Se a India mil enaria abriu a sua alma e a exprimiu ao mundo em rasgos poeticos de sabor retintamente espiritual e religioso, Goa, nao podia deixar de participar
desta di sposi cao mental col ecti va i ndi an a ; n as pesso as dos seus habitantes comuns bens
(41)
(42)
(43)
Palkhivala, N., op.cit.,pag.46.
Antoine, R. et al., op.cit.,pag.108.
Mitra, Sisirkumar, op.cii.,pag.259.
(44)
'bittern.
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como no escol dos seus pensadores, homens de experiencia religiosa, vates, mestres e
outros permifiu que o substrato e requinte da cultura ancestral — "o profundo extracto
milenario autoctone" (45) exercesse uma atraccao irresistivel sobre a sua psique.
Dado que a cultura indiana, como se disse acima, tern uma tradicao de valores
humanos que se exprime numa continua sherhira para o
"Ansia
as producoes literarias de Goa deveriam espontaneamente conter acenos ao Absoluto.
De facto, a hi storia literaria indo-portuguesa tern iniuneras expressOes de tais acenos:
anelos por Ishvara, ou hinos a Prithvi, aspiracoes da transmigracao para uma vida
eterea, excel sa, admiracao por essas figuras providenciais, aureoladas ern lenda que sao
a forca da raca indiana.
Neste campo, as producoes literari as em portugues sao, na sua quase totalidade,
da autoria de escritores cristaos. E isto parece ser estranho.
0 escritor indo-portugues cristao é uma pessoa cujos antepassados, abracando
a religido catolica, finham renunciado, nesse acto, a religido ancestral hindu. Em
seguida, ao fim de tres seculos é forcoso reconhecer que o quadro da vida social era
este, descrito sumariamente por Almeida Azevedo: "a ignorancia da lingua classica e
as preocupacOes religiosas concorrem para que em Goa se tenha por desprezo entre os
riativos cristaos, que preponderam na administracao, o estudo das instituicoes hindus" (46).
Todavi a, as matrizes da cultura indiana nao podi am ser apagadas do inconsciente do indo-portugues cristao. Algumas premissas fundamentals da filosofia etico-soci al indiana eram — assim o podemos supor com seguranca— parte do seu ethos,
tanto quanto o eram as verdades e os principios da fe e da moral ciista, apreendidos
como mais excelentes do que aquela filosofia.
(45)
Ferreira, Manuel, "A cultura de Goa e a literatura de expressao portuguesa", em Estudos
/7tramarinos,Rev.Trimestral do lnst.Sup.de Estudos Ultram., 1959,N°3, pag.151 e seg.
(46)
Azevedo, Almeida, As romunidades de Cod, Lisboa, 1890,pag.59, citado por Santana
Rodrigues, "A lnstruccao Publica em Goa", separata da Seara .Nova, 1927.
"0 publico que no seu espirito de cristianismo de fronteira ainda se mantinha isolado,
ignorando como atitude tudo o que ao hinduismo se referisse" em: Devi- Seabra, A Literatura
nclo Porl uguesa, pag.240.
-
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Foi no resurgimento do ideal oriental, no ultimo quartel do seculo XIX, que os
escritores indo-portugueses fizeram aquilo que Vicente de Braganca Cunha disse do
poeta Sanches Fernandes: "procuraram realizar a autonomia literaria da India Portuguesa pelaidealizacAo dos sentimentos indianos; procuraram atar o fio partido das suas
tradicoes do berco" (47).
Foi a partir dali que a poesia indo-portuguesa, principalmente, comecou a
revelar as influencias etnicas e politicas dos seu criadores. "A influencia oriental",
continua Braganca Cunha, "fez-se sentir sobre os indo-portugueses. Forcas hereditari as,
de que el es ndo tem a plena consciencia, actuam neles. A idade vedica, a idade
bramanica, a idade budista, a epoca muculmana aqui deixaram vestigios" (48).
Os deuses do panteao indiano nao sao pessoas. Sao tipos, simbolos corn que se
exprimiram ideias filosoficas (49), se explicaram fenomenos naturais, se reforcaram
crencas politicas e doutrinas respeitantes ao comportamento social.
0 escritor indo-portugues cristAo devia levar em si uma boa dose de saudade
cultural do seu passado, da "vasta poli cromi a que esmalta o panorama dos costumes e
das almas" (50) da sua terra. E, debatendo-se, de inicio, " entre solicitacOes indianas
e europeias"(51), devia sentir que nab havia nada de incompativel entre a homenagem
que, da parte dele como cristao, era devida a religiao ou fe catolica e o apelo e a atraccao
telitrica que as figuras simbolicas e as doutrinas filosOficas, carregadas de valor
arquetipico, da India milenaria, exerciam sobre si, filho dessa mesma India.
- JA dissemos noutro lugar que a conversao do goes ao catolicismo significou,
desde o inicio, uma separacao dele do mundo hindu e da cultura indiana. Os cristAos
de Goa estavam bem pouco familiarizados, ao nivel literario e vivencial, com o
patrimOnio cultural da India. Esta heranca cultural era ainda menos conhecida na
Europa. Porem, pelos fins do sec. XIX e inicios do seculo XX, indologos europeus
como Max Muller, Sir William Jones e outros estavam a envidar esforcos por fazer
(47)
De Braganca Cunha, Vicente, Literatura Indo-Poriuguesa,Figuras e Factos,Bornbaim,
1926,pag. 7.
(48)
Ihidem,pag.8.
(49)
Ions, Veronica, op.cit., pag.11
(50)
Lupi, Nita, .1liisica e :lima Da Indio
(51)
Ferreira, Manuel, /0c.cit.
A.G.do Ultramar, 1956, pag.61.
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conhecida na Europa a riqueza duma cultura quatro vezes milenaria que chegava viva
ate os nossos dias.
Na mente dum europeu havia urn sentido de misterio e admiracao por essa India
(52). Ao sopro do "ressurgimento do ideal oriental" (53) diante do escritor indoportugues divisava-se urn campo vasto nara ele se exprimir no idioma luso a riqueza
dessse patrimonio que era bem seu. E aqui residia a singularidade da sua contribuicao
literaria portuguesa.
Filho da india, o escritor indo-portugues, cristab ou nao, embora vivendo ern
grande familiaridade corn obras da literatura portuguesa e francesa (54), achava mais
consentaneos corn o seu temperamento, os principios da estetica literaria indiana
baseada sobre o conceito de rasa segundo o qual "o que é bem feito e perfeito é, sem
davida, a coisa mais aprazivel (55).
No decurso dos tempos, a tradicao indiana da critica literaria esteve assente
sobre o principio de que "o prazer estetico nao é uma satisfacao em um sentido
mundano"; ele é antes o "repouso do coracao" ou "o equilibrio, a paz, e a compostura
da alma, que é constantemente agitada pelas preocupacaes mundanas e que no
(52)
de Carvalho, Agosti nho, india Misteriosa, Povos e Costumes Indus, Coimbra, MCMXLVI II .
Escreveu tambem India Milenaria, Castas da India, Religioes da India.
(53)
"Em meados do seculo XIX, Tomas Ribeiro e Cunha Rivara tinham despertado interesse
pelos assuntos da India. Alguns anos mais tarde, Suriajy Ananda Rau (1830-1888), foi o
precursor de urn rnovimento que prosseguindo corn a revista Luz do Oriente, corn a Revista
da India e corn A Voz do Oriente, veio a culminar em 1928 ern Coimbra, corn a fundacao do
Instituto Indiano e do jornal India Nova, de Adeodato Barreto, Telo de Mascarenhas e Jose
Paulo Teles. Foi a epoca ern que uma geracao — ou pelo menos alguns dos seus melhores
elementos—comecou a tomar consciencia da outra parte de si proprios que nao podiam continuar a ignorar e cujas raizes iam buscar a velha civilizacao indiana" (Devi-Seabra„4
Literatura Indo-Portuguesa,pag.240.
Disse Goethe: "Que todo o que ha de arrrebatamento, de encanto, de divino e de beleza
terreal, se pode reunir num so twine que se chaina—' Xacuntala'(de `Kalidassa . ). Diz-se que
esta obra the serviu de inspi raga() no prel Udio de Fausto".
"Se me perguntarem qual é a literatura capaz de tornar a nossa vida mais compreensivel,
mais universal e, ao mesmo tempo, mais verdadei ramente humana, uma vida nao so para este
mundo, mas tambem para o outro eu indicarei a India" Max Muller em de Carvalho,
Agosti nho, India Misteriosa, pag. 23.
(54)
Costa J. A, Peregri no da,., A Expansdo do Goes pelo Alundo, Goa, 1956,pag. 19-20.
(55)
Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, published by Macmillan Press, 1975, art igo
"Indian Poetics",pag.383, por.V.R.
- 126 -
momento que passa se recupera pela experiencia artistica". 0 leitor, o apreciador em
unissono, ou em perfeita comunhAo corn o poeta e corn o poema, torna-se "um ao nivel
do coracao" (sa-hridaya).
Foi nesta linha datradicdo vedfintica, a saber, "o prazer estetico é um antegozo
da realizacAn espiritual e . toda a
rte P desta
forma, tura ajiir!a evpirit9.9 1 " ( 66), que
R.Tagore escreveu a sua poesia e prosa. Diga-se a proposito que ecos desta estetica
indiana de rasa encontram-se ern tais poetas ocidentais como Abercrombie, Richards,
Eliot (57). Dal é facil compreender que a literatura poetica indiana particularmente a
de Tagore, tem um sabor espiritual.
0 escritor indo-portugues nao ficou exposto as teoriasliterarias ocidentais. Ern
Goa era quase inexi stente uma tradicao de estetica literaria. Aqui estaria a razab por que
a literatura criativa indo-portuguesa, particularmente a poesia esti "toda ela embebida
das linhas hi storicas indianas, de lendas, de mitologia oriental corn acentos aqui e ali
da vida bucolica local" (58). Dal, os poetas, sentindo na raiz do seu ser o grito telarico,
fundamentaram a sua originalidade na forca inspiracional indiana.
" A exuberan ci a, é certo, o ornato excessivo e uma caracteri stica da sensibilidade
artistica oriental" (59). As imagens de deuses com muitas mhos e cabecas (60), a escala
musical de vinte e duas notas (61), a teoria de emocoes — oito ou nove emocoes que
uma obra literaria deve evocar — subjacente a poetica indiana, tudo isto fala da
exuberancia da sensibilidade estetica indiana.
A necessidade vivencial de se exprimir pela palavra escrita levou o escritor
indo-portugues a ganhar, em boa medida, excel enci a no dominio da lingua portuguesa.
Para afirmar a sua original idade, el e tinha de revel ar o mundo das suas emocoes, e a sua
experiencia estetica dentro da tradicao cultural com os seus valores e significados
prOprios, ern que nascera. Em virtude da sua tipica sensibilidade oriental, feicoes
singulares estavam destinadas a aparecer na sua obra, feicoes essas que the viriam nao
(56)
Ibidem.
(57)
(58)
(59)
Eliot, T.S.,wi.cit_pag.113.
Ferreira Manuel, /0c...cit.
(60)
(61)
Ruy Sant'Elmo, "Prefacio" a Os Deuse.s. de Renares, de Nascimento de Mendonca, Bastord,,
1940, pag.1 .
Coomaraswamy, A., The Dance of Shiva, art. "Indian Images with many arms".
'bittern, art."Indian Music", pag.105.
- 127 -
so da sua visao distinta e individual da condicao humana e da imagem social da India
mas do ethos cultural que condiciona e molda essa visao e a sustenta.
A Morta de Nascimento Mendonca (*)
A Morta é um poema construido sobre a lenda (a que certos escritores tendem
a dar foros de historia) de amor e fidelidade de Sita para com o seu marido Rama,
segundo a versa° de Romesh C. Dutt, no seu livro Ramayana — The Civilization of
India(62). Ei-la em rapidos tacos: Ravana, rei de Ceilao, ouviu a respeito da beleza de
Sita e, na ausencia de Rama, raptou-a e levou-a a Ceilao. Apes uma Tonga busca, Rama
obteve uma pinta. Aliando-se as tribos selvagens das florestas, fez a travessia e, em
seguida, cercou a capital, Lanka, com um grande exercito. Ao fim duma renhida luta,
o proprio Ravana, que é descrito como um monstro (Rakxaca) de sete cabecas, saiu e
foi morto. Sita foi recuperada por Rama que em seguida regressou a Ayodhya ou
Oudh e subiu ao trono de seu pai. Porem, o povo julgou-a asperamente e considerou-a maculada. E Rama, fraco como seu pai, cedeu ao juizo temerario do povo e
mandou a sua mulher, pura e fiel, ao exilio.
Mas nao havia nenhuma al egri a a espera de Sita. A nuvem de suspeita da parte
do seu marido tinha toldado a sua vida. e Sita desceu as entranhas da terra no sulco do
campo que the dera origem." Dal, ela é a Morta.
Sita tinha lido, de facto. fiel a Rama e fora uma temeridade da parte deste duvidar do caracter da sua esposa.
0 poema é uma descricao do estado de remorso em que se debate a alma de
Rama. E so nos aid mos versos do poema que a descricao ganha uma forma dram ail ca.
Sita aparece perante o marido como um Fantasma. E, dirigindo-se a ela, Rama diz:
Fala . . . dd-me o perdao ... Que tormentos os meus! .. .
0 ambiente oriental em que decorre a accao é todo ilusorio, fruto duma
imaginacao intensamente romantica, poetica: em Ayodhya, Rama acha-se como um
mistico, as maos cruzadas, num gesto doloroso, adorando o di vino
(*)
Vide Apendice, Documentos no fim deste capitulo
(62)
Nota final do poema ,4 Alorta, Tip. Rangel. Bastora, s. d., pag.33.
- 128 -
Si rya (sol)
morredico. No meio do jardim surge tuna Ilha de amores com um pavilhao rendilhado
de jade e de ambar, de mannore e sandalo. Choram fontes e irrompem de bosques
verdes, envoltos em perfume, minaretes, copulas, innborios que parecem feitos de
diamante . . .
Rama colhe tuna flor de lotus. comtemnla-a e dirige-se a ela nestes termos Maldita sejas tu, 6 for ardente e linda,
Taco de vinho astral que aturde e alucina
6 lotus ideal de suavidade infinda!
Entao desfolha a flor e as petalas caiem sobre a agues Em seguida, dirige-se de
novo a flor como se a dor do lotus desfolhado o consolasse de tuna dor indizivel. Num
solil &Rio que revel a ora desespero e dor, ora melancolia e nostalgia, Rama, o principe,
maharaja de Ayodhya compreende afinal:
Como o sonho de amor nos adormenta e ilude!
Traz a morte consigo o sonho loiro e lindo
Se nao ha n'alma um sol que em perfume o transmude
Amor, amor, amor! astro de oiro fulgindo!...
Passam entao urn grupo de faquires cantando louvores ao deus Kassinata; urn
rixi, que comenta sobre a transitoriedade (maya) da vida:
Tudo é mentira, mentira,
Que o coracilo envenena
S6 a Deus, a Paz aspira
O minho alma enfim serena.
Urn lindo rancho de raparigas, regressando das varzeas, cOnscias do caracter
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passageiro da vida, bem como da doufirna do Nirvana, perfilha uma posicao mail
positiva a respeito da vida, nas quadras que seguem:
Tudo é mentira: que importa?
Amar a Vida, a Beleza,
0 ceptro, a flor, terra e mar:
Nunca na esteril tristeza
A luz divina apagar.
Vem logo a morte, e a alma em pranto
Em p6 triste ha-de tornar:
Prendamo-la ao sol enquanto
Tiver may para voar
Uma bailadeira que canta ao ritmo de urn tocador de murdanga (uma especie
de tambor) e uma outra que tece umas consideraceies sobre a vida, a Lagoa, os Lotus,
o Sol, cada qual proferindo uns di zeres lapi dares sobre a vida, tao bem como asApsaras
(Sereias) que dancando nas Aguas asseguram que
S6 ao Forte, ao Vencedor
Que do a luz,
A taca do nosso amor
Nosso labio que seduz.
Sao varias personagens que povoam este ambiente de fantasia. Aparece em
seguida um Botho (sacerdote do tempi o) que, vendo o por do sol recita a gayatrt (oracao
ao sol recitado pelo hindu tres vezes ao dia) nester termos:
Stirya divino e resplendence
Swya que beijas docemente
O luz que es pea, 6 luz que es sangue!
- 130 -
Arranca o sol, dos coracoes
Toda a ruim e rasteira erva;
Enche-os de flors e de clar5es
E neles so a luz conserva.
Os Buttes, ou espiritos malignos, aparecem como vozes misteriosas num desfile
de personagens tipicas que integram a paisagem humana deste poema dramatic°.
Rama sobressaltado, continua o seu soliloquio em dezoito tercetos, em um dos
quais diz;
E minha alma—ai de mini!—e solidelo e treva,
Sangra como o escudo ardente de urn vencido,
Madheva! Madheva! Que vagalhao me leva.
E, num grito de loucura e desejo, exclama:
...Sita-bay! Sita-bay!...Quern me dera so ve-la.
Entao Rama cerra os olhos aterrorizado e, uma mao invisivel vai juntando uma
a uma as petal as do lotus desfolhado. Enquanto ressuscita diante dos seus olhos
cerrados o seu passado: a vida suave e clara no jangle do exilio, o rapto de Sita, a
destruicao de Lanka: da for de lotus surge docemente o fantasma dolorido e lindo de
Sita, atavi ada num sari branco, face pada, o cabelo ambarado e fino desfilando ate os
joelhos. Rama descerra os olhos e cruzando as maos em adoracao, continua o seu
soliloquio, exprimindo em sete tercetos, ora admiracao e entranhado amor pela sua
esposa, ora dor e queixume pelos seus actos.
E porque foi, Deva! que semeei de abrolhos
Meu caminho de seda, a Via-Lactea doce?
Porque foi que busquei os Ingremes escolhos?
Porque foi que o meu sonho em film° dissipou-se?
Enquanto uma bailadeira recorda-lhe o caracter transitorio da vida e os lotus
tam bem lhhe di rigem umas pal avras, o fantasma de Sita estremece sUbi to e vi ol en tamente.
- 131 -
Em seguida, Rama confesses
Fui eu que maculei o teu amor inocente
Eu busquei no teu corpo as nodoas do Pecado.
No teu corpo sem mricula, (-1P amhar tab fino,
E bem sei que busquei — ai a negra lembranca! —
Do tigre de Lanka o beijo viperino...
E como se uma clava do monstro Ralocaca the pesasse no coracab flagel ado,
ele exclama:
Ah! porque nab esqueco a clava de Ravana?...
E a minha dor é como smudra que nao finder.
Uma onda de ternura, de remorso, de intensa nostalgia invade o seu espirito de
no, de guerreiro de Lanka que ele foi:
Lembravas a falar as aguas solucando
Na clara fonte humilde e um ribeiro saudoso
E a voz dos moluonys, ao sol posto, expirando.
Ai que Tonga saudade o coractio me oprime!
E tremulo, dirigindo-se ao Fantasma, dolorido:
Fala...da me o perdab...Que tormentos os meus !...
-
Nesse momento, num espectaculo de luz e som — o jardim estremecendo
subitamente, a aurora despontando, o arvoredo despertando e as fibres nostalgicas
desaparecendo da superficie da agua— o fantasma de Sites volta a face, toda compaixdo
- 132 -
e piedade, para o esposo desgracado e arrependido que num grito supremo de agonia
exclama:
Ah ndo subir na luz meu coraclio a Deus!...
Quero morrer na paz de uma hora abencoada,
D6-me o perddo, Sita! O Sita-bav!...
Rama avanca como para abracar o fino e bruno perfil de Sita que aparece sobre
uma grande for de lotus. Abre os bravos avancando como que para a abracar. E ela,
dolorida e doce, desaparecendo diz:
Adeus!
Cantam os moluonys, abrem as rosas, e a grande voz harmoniosa da Vida sobe,
saudando o Sol.
A dentro do estilo e da sensibilidade poetica de Nascimento Mendonca, A
Morta é a sua primeira longa exploracao de urn tema tipicamente indiano. 0 poema,
cujo texto seguimos ca, foi impresso na Tipografi a Rangel, Bastord, sem n enhum a data.
Certamente, é anterior ao outrolongo poema do autor, Vatsala, publi cado postumamente
pelo seu filho em 1935.
A epopeia Ramayana de Valmilci, como é bem sabido, gira em volta da I enda
do amor e da fi deli dade entre Rama e Sita. 0 fun da lenda é o exilio de Rama arrependi do que duvidara injustamente da fi deli dade de Sita durante o seu (de Sita) exilio em
Lanka. Nascimento Mendonca explora aqui o tema de arrependimento de Rama e a sua
imaginacao al arga este episodio do estado da alma do heroi da epopeia num quadro de
cores variegadas e, dir-se-ia, mesmo fantasticas.
- 133 -
Em A Morta, Rama, afogado no seu pesar, di largas as suas magoas, em
soliloquios entremeados de falas de vari as personagens que discorrem filosoficamente
sobre o sentido da vida. Sita aparece nao na sua forma real mas como urn fantasma. A
Sita de Nascimento Mendonca é uma figura mitizada pelo autor (e antes dele por
Romesh Dutt no seu citado livrol.
0 poeta presume que o seu leitor sabe que el a, nascida da terra, funde-se nela,
no sulco do campo que the dera origem, depois que caiu vitima da duvida ou suspeita
da parte do seu marido. Sita é uma personagem transformada pela imaginacao do poeta.
Toda compaixao e piedade para com o esposo desgracado e arrependido, ela aparece
di ante de Rama mas somente para em breve se esvair e, finalmente desaparecer dolorida
e doce, leve como espuma no limpido azul da manha.
0 poema tern a forma de uma peca ern um acto.Uma serie de personagens
dispares — aguas do lago, bailadeiras, coro de faquires, a deusa Prakriti, um rixi,
apsaras e outros — integram a peca. Estas personagens ou simpatizam-se com o
protagonista no meio do seu drama intimo ou dirigem-lhe palavras de consolacao ou
admoestacao.
P ara Nascimento Mendonca, o inteiro epi sOclio e uma oportunidade para, no seu
idealismo romantic°, tracar urn quadro cal eidoscopico da vida e da cultura da India, e
integrar varias ideias da filosofia indiana. Assim a deusa Prakriti recorda a Rama,
"pobre alma errante", que
So o que é Belo purifica e sara
0 coracilo que a Dor lacera...
Um rixi proferindo:
Tudo é mentira, mentira
Que o coracao, envenena
So a Deus, a Paz aspira
O minha alma el-111m serener.
- 134 -
bem como uma bailadeira, a mulher desiludida no amor, recordando:
0 amor lindo, envenena
Sonho loiro, logo finda.
vem ambnc cnm n lenitivo da cinntrina
de maya.
Nas vozes dos Buths ou espiritos ha eco da doutrina de metempsicose:
E tao longa, longa a Vida
Que inda depois de morrer
Nab tern alma uma guarida
P'ra dormir, nao mais sofrer.
Vai a arder numa torrente
De fogo astral, de energia
Vai subindo eternamente
Numa ardente sinfonia.
E quando urn dia velhinha
A terra morta explodir
Ha-de ainda coitadinha
Num novo sol refulgir.
Nos solilOquios, o poeta poe na boca de Rama a sabedoria que vem da
experiencia
Amar, sofrer, lutar eis o destino
De todo o coraccro heroic° e puro
Mas amar é sentir no coracab fremente
Urn glorioso sol, urn clank., uma aurora.
corn uma densidade emocionate. 0 nosso heroi-maharaja lembra urn desses
protagonistas das grandes tragedias da literaturea universal (Otelo, Prometeu, Mac-
- 135 -
net) que, viumas ue uma mina no seu caracter soirem e como que se realmem no seu
sofrimento. Todavia, o sofrimento de Rama nao atinge as alturas do desses protagonistas. Nimbado em idealismo e simbolismo, o sofrimento de Rama leva-o nao a mode
mas ao transe. E nesse transe ou elevacao mistica muito conforme com a mundividencia da filososofia indiana que Rama acha a libertacao.
Nascimento Mendonca domina perfeitamente o idioma luso. Os seus versos
tem ritmo e cor. Porem, a primeira leitura os seu versos parecem antes frases dotadas
de urn sentimentalismo exotic() e como que extraidas de um mundo de sonho e fantasia. Mas nab. A concepcdo simbolista de que " a realidade é nao mai s que uma fachada
que encerra, ou, urn mundo de ideais e emocoes dentro do poeta, ou, urn mundo ideal
para o qual ele aspira" (63) parece estar por detras da criacao artistica de Nascimento
Mendonca.
Em 1891 Stephane Mallarme definiu a corrente simbolista como a arte de
"evocar urn objecto pouco a pouco de forma a revelar uma disposicao ou, em outras
palavras, a arte de escolher um objecto e extrair dele um 'estado da alma"(64).
Nascimento escolhe o lotus, a flor "que representa o espirito indiano da
santidade e da nobreza"(65) para the conferir atributos contrarios: "flor do Amor,
venenosa e divina", contendo "a peconha da cobra" e "o dente lacerante "que envenena.
Servindo-se deste 'objecto' o lotus, para exprimir as suas emodies, o poeta
procura "extrair dele o estado da alma, da sua personagem":
Doces flores da Dor, a Vinganca e o Pecado!...
Sobre o lar da Vida os lotus reflorindo
...Oh Flores do Desejo, a Morte e a Traicdo!...
A poesi a de Nascimento Mendonca transporta o leitor para um mundo ideal.
A
maneira dos sadhus e rixis da India, o poeta acen a a um outro-mundo fazendo com que
( 63)
Chadwick, Charles„Syntholistn, Methuen & Co.Ltd., 1971, pag.8.
( 64)
(65)
Mallarme, S.,
Oeuvres Complete.s. ,
Nair, Ramachandran,
pag.869,citado por Charles Chadwick, op.cit.,pag. 1.
Three Indo-Attglian Poets,
- 136 -
Sterling Pub., New Delhi, 1987,pag. 112.
o leitor se sinta exilado num mundo imperfeito e irreal, de maya, e aspire por partir,
deste para o parai so revel ado no poem& Destarte, Nascimento toca uma das cordas mai s
intimas do ethos racico e religioso da India.
Metempsicose de Mariano Gracias
0 dogma da transmigracao da alma adoptaram-no na antiguidade o Egipto, a
Grecia e a India. Neste Ultimo pais a crenca na transmigacao esta tao arreigada nas
mentes dos hindus que pode mesmo dizer-se que é parte da cultura tradicional. A
doutrina da metempsi co se é urn co rol ario da doutrina do moksha: o hi ndu cre que a vida
é
uma serie de transmigracoes da alma ate que o individuo atinja o moksha ou a
libertacao final, o paramapurusartha ou o supremo valor humano. Nos diversos
sistemas filosoficos o conceito vedico do moksha é conhecido por diversos nomes tais
como apavarga, nishreyasa, nirvana, mukti.(66).
Na tradicao da filosofia da India observa-se uma preocupacao muito peculiar
corn o problema da dor e do sofrimento a tal ponto que Buda adoptou como principio
basilar do seu sistema a verdade de que a vida é essencialmente sofrimento. Dal, os
pensadores da India antiga propuseram a doutrina segundo a qual moksha significa
libertacao da cadei a de nascimentos e morte, do sofrimento, do apego aos objectos do
desejo é o supremo valor humano.
No pensamento classic° indiano, moksha acha-se definido como aniquilacao
compl eta, total e final da dor e do sofrimento.
Na tradicao vedantica moksha significa antes a transcenden ci a da vida empirica
ou a transcendenci a de todos os limites impostos pela natureza e a realizacao da vida
superpessoal. Assim moksha é o regresso do eu-prOprio a vida natural apps superar o
seu proprio envolvimento animal com a natureza.
(66)
Chatterjee, Tara, art."Moksha" em : Journal ol Indian Council of Philosophical Research,
Sept-Dec.,1991.
vol.9,
- 137 -
*
*
Inspirando-se na teoria bramanica que ele cita num terceto, a guisa de uma
introducao ao poema,
O Ideal é insaciavel como o Amor; e a
Ambicd"o é incomensurdvel como o Infinito.
So a Morte é salutar, perfeita e purificadora.
Mariano Gracias abre o mundo das aspiracoes da alma humana a procura do
summum bonum.
0 poeta revel a-se aqui como urn homen que tem o seu ser radicado nas matrizes
da India-Mae. Como tal, manifesta a conviccao, ou antes, num arroubo poetic°,
exprime a fascinacdo por essa doutrina de transinigracao que ele interpreta ou refigura
como uma longa hi stori a de evolucao: uma hi stori a que comeca corn a aparicao da mai s
primitiva forma da vida sobre a face da terra — o verme; uma historia dos tempos
primevos que se perde nas brumas da Historia. Porem, a evolucao nao e a biologica
mas a transcendente e ultraterrena.
A imaginacao do poeta apresenta estas i dei as, em sete estrofes cheias de grata
e apelo mi sti co. Cada uma del as a urn estadio do ser-em-evolucao, aspirando a um nivel
superior da vida ate que afinal aquele que era o ser infimo, o verme, chega a ser a mai s
perfeita forma da vida na terra -- a alma humana:
0 verme disse urn dia..
O grande e doce Brdma,
Sendo Vos dajustica e da bondade a chama,
Destes a todo o ser sorte assim too contraria.
E a mim, urn ente igual, me fizestes um paria!
Quern me dera ser Jim; que e linda e tern olor!
- 138 -
E Brama transformou o verme numaflor
0 poema todo é em forma de uma prece dirigida ao grande e doce Brama, o
Espirito cupremo e inintrel A fIrCe em cad?. eQtrAfe contem um quein -ne de Eer-ern
-evolucao,
cheio de descontentamento com a sua propria condicao e um desejo de ser
aquilo que ele considera ser sua felicidade: o grau ou a forma superior da vida.
Brama acede a todos os pedidos em todos os estadios da evolucao. Porem,
quando chega a vez da alma humana, Brama enfrenta o seu desalento por viver "a
tortura aguda" da "dor do Pensamento" por ter de sofrer e lutar, e nao haver nada que
a conforte. A Alma roga que the conceda "a santa paz da Morte". Porem, Brama queda-se impassivel.
Mas eis que surge Buda,
0 grande pensador de largafronte calma,
E com o seu Nirvana aniquilou a Alma.
Sao os versos-chave do poema. Como tal, Mariano nab elabora o significado da
aniquilacao ou nirvana. Parece querer dizer que a Alma afinal ganhou a suprema
felicidade neste estado outorgado por Buda.
Em razao das suas ricas imagens e o seu apelo mistico,
Metempsicose
consegue atingir momentos de grande altura poetica" (67), como disse urn critico.
0 verme é uma das formas primi ti vas e menos articuladas da vida na terra. Aqui
é simbolo de urn ser nojento e desprezivel — urn paria — privado de todos os di reitos
sociais e religiosos que anela por ser uma flor "que é linda e tern olor".
A flor é linda. Porem, a sua limitacao existencial e que nao goza de liberdade,
por estar "presa ao solo". A falta de liberdade si gni fi ca vulnerabilidade aos assal to s dos
(67)
Devi-Seabra, op.cit., pag.319.
- 139 -
que queiram exercer o direito da posse sobre ela, ou mesmo destrui-la. 0 que ela deseja
é "subir ao azul, erguer voo", "librar no espaco qual alma de poeta".
A liberdade da borboleta é expressa em termos da sua capacidade de "voar de
rosa em rosa". Todavia, tal liberdade sem a faculdade de se comunicar com os outros
c.omiinirar é cantqr
uma impeTfeic5n. A maneira mnis atraente d
Uma vez ganho o poder de comunicacao, o ser-em-evolucao, agora um
passarinho que chilreia, compreende que a comunicabilidade sem a profundeza e
penetracao que vem da contemplacao é uma atrofi a. Ser uma aguia é para o passarinho
o seu ideal.
Apos a transformacao do passarinho em aguia, a felicidade e a tranquilidade
interna do nosso ser-em-evolucao a assaltada pelo desejo de se tornar um ente sidereo,
celeste, magnificente, sublime. Dal, a sua prece a Brama:
Ah! quem me dera a mim, a imperatriz do Azul,
Ser uma estrela a luzir! Oh! Que coisa tao Bela!
0 desejo da aguia é sublimado por Brama que a transforma numa estrela.
A ânsi a do infinito nao cessa aqui. A luz, a sublimidade da estrela e fracturada
pela discordancia intima de que de nada serve esta luz
sem a do Sentimento,
Sem o grande clarao do Pensamento!
0 grande Brama acede ao pedi do da Estrel a e transform a-a em Alma Humana.
Porem a luz do Sentiment° e do Pensamento longe de outorgar felicidade
Alma Humana so the da dor e sofrimento. Estamos chegados a condicao existencial
humana. 0 ser-ern-evolucao, agora o ser human°, passou pelo processo do samsara, o
processo repetido de nascimento e morte, corn a transformacao — que para Mariano
- 140-
Gracias é simbolo da transmigracao sucessiva da alma — dum ser num outro. 0 ser-ern-evolucao ganhou "a consciencia do caracter contingente de samsara, do mundo da
vida e da existencia, da experiencia amarga de que este mundo é desagradavel e
in sati sfatOrio" (68).
6 lima (las mai s belag ofrrpogici3F..s p.oeticas infie-porti.2v2 ,2sas.
Dedicada ao grande homem de letras que foi o doutor Antonio Floriano de Noronha,
ela resume em linguagem simples e fluida, rica de imaginacao e cheia de verve, um
ponto doutrinal basic() da filosofia indiana.
Metempsicose
Mariano Gracias definiu certo dia a pessoa do poeta como "um ser privilegiado
por assim dizer, impessoal e inconfundivel, vivendo num Mundo a parte, fora de
vulgaridade comum deste mundo banal e mau; é urn ser quase tocado de Deus a quem
tem o privilegio de tratar por tu, publicamente,integrando-se nas prOprias personagens
que ousadamente cria e nelas se manifesta. Nao sao de estranhar poi s as suas formas,
mutaceies ou modalidades que a prOpria fantasia criadora the impoe num arrojo de
inspiracao, retrocedendo ou avancando, nos dominios da Historia, nas manifestaceies
da Arte — da Arte sim, pao negro quotidiano, duro de roer, mas salutar e consolador"(69).
Metempsicose nasceu dentro desta vivencia e foi uma dadiva em linguagem
poetica da expressao portuguesa, dos concertos de trans migractio, samsara, nirvanae
do papel de Brama e Buda ern ajudar a alma humana a atingir a felicidade suprema.
A proposito vale a pena dizer aqui que ha mai s composicaies indo-portuguesas
sobre nirvana. Assim, Paulino Dias tern No Pals de iSlirya (70) urn longo poema
intitulado Nirvana, "autenticamente huguesco...de grandes e generosos ideai s expressos ern versos alti ssonantes — sab ao todo 4,800 — onde surgem estranhos simbo-
(68)
Birnala, Churna Law, /oc.cit., pag. 547
(69)
Costa, Caetano Francisco da, .11ariano Gracias, Notas sabre a sua vida e a sua paesiu.
Goa, 1952, pag.12.
(70)
No Pais de Surva, Nova Goa, 1935.
- 141 -
los orientais e ocidentais". "E uma arrebatadora visa° apocaliptica do mundo em que
o desanimo reina (71):
E a humanidade vem nos seculos desfeita,
viva, soluca aos sois, torce trancas nos mares,
cal nns
rpvoluciies, parte em mites limareg
p'ra novas decepcoes e novos desenganos...
E tudo cinza e pó na colera dos anon.
A dor é universal, no mundo que nab dorme
ha uma intencdo oculta, uma viagem enorme.
Mas esta composicao nab lanca nenhuma luz poetica sobre a ideia de nirvana
e outras afins da filosofia indiana.
Sob o titulo de Nihil-Nirvana, Adolfo Costa escreveu o seguinte soneto:
Desta vida os degraus eu you descendo
Pois pressinto que a morte se aproxima,
Jci nada me sorri, nada me anima,
Passo o tempo pensando e new querendo.
Cumpro no mundo a lei que vem de cima
A qual todo o mortal, mesmo descrendo,
E forcoso curvar, e you sabendo
Como a foice, bem certo, nos dizima.
Quando o frinebre pe• do esquecimento
Assentar sobre a minha sepultura
Nilo o mandem varrer que o proprio vento.
Ha-de parar na longa noite escura;
Pois nessa eterna paz do esquecimento
So o Nirvana nos beta com ternura.
(71)
Devi-Seabra, ap. cit.,pag.311-312.
- 142 -
Tambem este soneto nAo tem nada que ver com o nirvana. Ele apenas contem
uma referenda a este ponto no contexto do significado da morte.
Os Deuses de Benares de Nascimento Mendonca
Os Deuses de Benares (72) é uma novela dramatica, em primeira pessoa, em que
o protagonista é urn mow, na flor dos anos, que tendo vivido a vida convulsa da cidade
e saboreado as conquistas da Ciencia, as lucubracoes do Pensamento, sente a falta de
algo maior. No seu espirito esclarecido pelo sol lucid°, claro, limpido, radiante do
racionalismo, e na sua consciencia ha um vacuo que a Razab nab satisfaz.
Pensando, entao, em se restituir as suas antigas crencas o moco procura um Rixi
para o "ensinar a crer", e para the revelar a Verdade.
Nesta disposicao de ammo, aparece-lhe um Deussar Branco, especie de Satanas da Biblia ou MefistOfeles de Goethe que posando-se como seu amigo e mestre,
o dissuade do seu intento.
Deussar demonstra-lhe que o que o jovem procura nao é a restituicao das
crencas perdidas; mas que ele é vitima de uma ilusao do seu egoismo. 0 que o jovem
afinal pretende é "imortalidade que rap cab e dentro desse Ideal" que ele se propOe.
Jamais podera seguir nas sendas do Rixi poi s o jovem nab é capaz do heroismo espiritual deste que n Ao aspira a imortalidade mas ao nirvana. 0 Rixi é um puro crente, "cre
por crer", sem esperanca de qualquer recompensa.
Deussar convida o jovem air consigo e promete tornar a sua vida urn hino de
triunfo, riso, amor e alegria. 0 jovem recusa o convite.
Comeca entao a sua peregrinacao em companhi a do Rixi ou Mahatma, atraves
duma floresta, por entre uma paisagem tipicamente indiana — pendoes vermelhos,
el efantes batendo nos gongos, a visa() de Kali, a deusa da morte, bailadeiras —
(72)
Nascimento Mendonca,OsDeuse.s. de Benare.s., Tip.Rangel, Bastora, 1940,64 paginas, corn
urn prefacio de Ruy Sant'Elmo,pseudOnimo de Doutor Brito de Nascimento, que foi Presidente da Relac5o de Goa na decada de quarenta.
- 143 -
delineada poeticamente pelo autor. 0 inteiro drama da jornada do mancebo é
constituido de episodios das suas "hesitacOes, confiitos intimos, das visoes alucinadas
da vida, do prestigi o tentador da beleza sob os multiformes aspectos que a natureza oferece, do holocausto do Pensamento na ara sacra do seu sincero anseio de purificacao".
A certa altura anarece o Deussar, que cnm urns exprecc'an de terrivel
cnrrnenin
no seu rosto, o convida a provar o amor que, assegurao tentador, "como um imperecivel
aroma", the envolvera a alma. No meio deste conflito intimo, o jovem vem a
compreender que "o mundo e, corn certeza, a instoria natural da Dor" e pergunta-se a
si pr6prio se "o amor nao é porventura imortalidade triunfando sempre da morte".
Deussar, que se revela como o flamejante Espirito de todas as conquistas
humanas, renova-lhe o convite feito ja no seu primeiro encontro corn o jovem,
nomeadamente, de regressarem ambos juntos a Cidade.
Ao fim da sua peregrinacao o jovem chega a Kassi, a velha cidade dos tempi os
onde centenas de vozes sandam Mahadeva, o senhor da cidade, corn o estribilho: Jai,
Jai, Kassinata. Nesta cidade o peregrino encontra-se corn Brama, Vishnu, Kamadeva,
o deus do Amor, Vishvacarma, "o Deus que nao morre, que submete a propri a Morte",
Shiva, o deus dos exterminios, e outros deuses do panted() indiano.
Nenhum deles pode satisfazer a ansi a do Absoluto que ferve na alma do jovem
peregrino e explicar-lhe cabalmente como reintegrar o seu ser na Crenca dos Maiores.
Enfim, parando diante de Krishna, o jovem abre a sua alma e diz-lhe que vem
ern busca da lampada que the alumiava o caminho atraves da noite ern que se perdeu
. . .em uma palavra, reaver as Crencas dos Maiores. Apos um curto silencio, pesado,
horrivelmente frio, o nosso peregrino pergunta impulsivo e veemente:
"Quando sereis comigo, o Deuses dos Maiores?"
Entao todas as bocas das estatuas de pedra dos deuses abriram-se e gritaram:
"Nunca mais".
- 144 -
Os Deuses de Benares é uma novels drarnatica em que o autor, como artista,
revel a a sua preocupacdo seri a "em decifrar o enigma da alma humana" (73).
Uma alegoria da alma humana que, ap6s as suas realizacoes humanas sem um
correspondente enriquecimento espiritual, "se sente doente, exausta, disiludida"(74) e
parte entao a procura da harmonia espiritual.
Os Deuses de Benares traz a memoria essa obra classica da literatura inglesa
Pilgrim's Progress de John Bunyan que tem si do descrita como "uma das al egorias
mai s agradaveis da vida cristA" (75) apresentada em forma de uma narrativa simbol i ca.
Os Deuses de Benares é uma alegoria da vida hindu. India foi, desde tempos
imemoriais, um dos centros mais antigos de peregrinacOes (76). E ao Ganges, em
particular, a cidade sagrada de Benares que se dirigem os devotos pios do hinduismo
para verem a cidade, vi sitarem os templos e se purificarem do pecado nas Aguas lustrais
do rio".
A inclinacdo natural — quase o instinto — do indiano para peregrinar e urn
grande meio de conservar o hinduismo vivo entre as massas. Os proprios peregrinos
assistem aospujas (ofertas sacrificiais aos deuses) e procissOes, ouvem urn sem nirmero de preleccoes e preces e leituras das escrituras sagradas e quedam-se mirando os
seus deuses esculpi dos ern pedra. As peregrinacoes sao tentativas para chegar ao
Inatingivel (77).
(73)
(74)
(75)
Ruy de Sant'Elmo, op.cil.,pag.3.
().%. Deuses de Benares, pag.9.
(76)
Frank N.Magill,Alasterpiece.coffli'orld Literature in Digest Form, First Series, art. Pilgrim's
Progress'. pag.748.
Encyclopaedia Britannica, art.' Pilgrimage'.
(77)
Cfr. Antoine-Buckle, op.cil., pag.145 e pag.75.
- 145 -
Os Deuses de Benares é uma obra postuma do autor, publicada em 1940. Em
toda a probabilidade, Nascimento Mendonca traca, na pessoa do "morn, inflamavel e
sincero", o seu drama pessoal de um homem que cometera alguns desatinos morais, a
perda do seu "sonho juvenil", e agora, no fim da sua vida, queria expia-los a fim de se
purificar this suas maculas. E de que melhor al egoria se poctena ele servir para esse rim
do que apresentar esse seu drama intimo em forma de uma peregrinacao destinada a
reaver "as Crencas dos Maiores"? (78).
Esta novela dramatica e, como disse urn critico, " a crise da consciencia que,
tendo perdido as crencas, procura readquiri-I as. E o grito do Homem que reconhece a
inanidade do Pensamento para responder a todas as curiosidades do Espirito, resolver
todas as diividas da Inteligencia, saciar enfim a sua sede do Infinito.
" E a tortura dantesca do Homem que, sentindo-se uma fragil construcao
destinada a desaparecer, se deixa devorar pelo anseio da imortalidade. Conflito eterno
entre o destino da materia e o impul so natui( cm se
perpetuar no Tempo" (79).
Urn conto e algumas poesias selectas
A Ambrosia de Laxmanrao Sardessai
De todos os escritores criativos indo-portugueses da comunidade hindu, Laxmanrao Sardessai é, em nossa opinido, o mais notavel e prolifico. Autor de contos e poesias, Sardessai tern urn estilo ditctil, um vocabulario rico e fluido, e a sensibilidade de
urn poeta oriental.
0 conto A Ambrosia (80) da-nos o perfil de urn jovem que sai da casa em longa
(78)
Os Deuses de Benares, pag.5 e 64.
(79)
Ruy Sant'Elmo, /oc.cit., pag.2.
(80)
Vide Apendice, Documentos no fim deste capitulo
- 146 -
jornada, a procura da ambrosia, com o fim de "matar a propria morte". Fatigado da
caminhada, fica sequioso. Desfalecido e quase a beira da morte, grita, numa voz fraca, por alguem que the de agua. "Ofegante, de olhos semi-abertos, a lingua de fora, o
corpo suarento",tomba junto de um arvoredo e, entao o jovem sente um delicioso licor
perpassar pel a garganta e descer ate as entranhas, inundando o seu ser, de sabitafrescura
e vida.
Extasiado, sente que conseguira beber o mui desejado liquid°. Neste momento de
extrema felicidade, o jovem compreende que era um eremita, condoido da sorte do
jovem idealista, que estava a ministrar-lhe a agua da fonte.
Estamos perante um quadro vincadamente indiano. Os elementos que o integram:
urn jovem idealista, existencialmente insatisfeito; a ambrosia o soma dos deuses -para os efeitos de ganhar a imortalidade; o arvoredo; a agua da fonte que mata a sede
de urn viandante; o eremita (rixi) : deixam ver como a doutrina do maya, a consciencia
do caracter transitorio e curto da vida, o socorro da parte do homem de Deus, ao homo
- viator, sac) alguns dos elementos basi cos da vivencia de urn hindu.
E interessante notar que Sardessai (Id o titulo Ambrosia, urn termo da cultura greco -- latina e, em nenhuma passagem do conto usa o termo soma da vivencia indiana.
Na mitologia indiana, soma era urn licor obtido pela fermentacao do sumo da
planta soma. Era parte integral dos sacrificios vedi cos e bebido pelos sacerdotes
como sinal da sua aceitacao pelos deuses. Mais tarde tornou-se conhecido como uma
divindade primeva, todo-poderosa, que cura todas as doencas e concede riquezas.
Assim, assumiu urn significado cosmic° (81)
0 autor parece querer dizer que o homem nao precisa de demandar uma bebida
di vina para satisfazer a sede do Absoluto. A Natureza -- a agualimpida da fonte -- tern
o condao de reanimar a alma inqui eta e abatida.
(81)
Ions, Veronica, op. cit., pag. 19-20
- 147 -
1) A India Mae
Sanches Fernandes e A Lira da India (82)
Corn os olhos postos no quadro da hi stori a, cultura e mitologia indianas, o estro de
Manuel Salvador Sanches Fernandes (1886-1915) deixou, entre outros, o poema A
Lira da
As primeiras linhas sao urn apelo dirigido a si pr6prio
....Vate sonhador destas terras de Aurora
onde campeia a Luz e a Poesia se enflora
para se inspirar
nas Vis5es desses genios pujantes,
nos Deuses, Gopicas, Apsaras e Gigantes.
As virtudes e as personalidades historicas e mitologicas que adornam o ceu da India milenaria desfil am di ante da sua imaginacao criadora e o poeta compreende que
Bharat-Mata é a " deusa das visoes" e instiga a si proprio a considerar a sua forca
inspiracional:
A India seja o teu deus, seja a lira o teu templo
que da bela °rag& saia de ti o exemplo .
Porem, frente ao rico patrimonio, o poeta sente-se incapaz de desempenhar a sua
funcao-missab de cantor:
Como pode cantar meu estro, tremebundo
tao ciclOpico ideal , misticismo tdo fund°,
com avalanchas d'oim e mitos sublimados,
corn reis, encarnac5es, preconceitos doirados,
com picas e was's, corn lendas e sacerdotes,
seguindo em procisscro luz de cem archotes,
ao grande ceu do Bern, ao ceu de alto Virtude.
(82)
Devi-Seabra, op. cit., Antologia, pag. 131-134
- 148 -
Esta incapacidade torna-se aguda com um problema de conscienca que se the pae:
E nem pole um cristdo , sem que da crenca muck
sublimar os avos na lei do Paganism°.
Ndo que a seita bramanica seja um abismo
Nilo! Deus é universal; so o modo é que é diverso,
por qup Ne giinrdn n fa om volta do 1 . inivorsn
A Lira da India é o preito de urn poeta deslumbrado corn a riqueza da India-Mae,
descobrindo nela as suas raizes culturais. No intimo do seu ser, ele sente a grande
necessidade de se definir e encontrar para alem de todas as circunstancias (83) o seu
vasto conceito mistico da vida".
Mariano Gracias e o Regresso ao Lar
Regresso ao Lar é um poema de 35 quintilhas, corn versos dispostos na seguinte
ordem derima: a-b- a-a-b.
A guisa de introducao escreve o autor: "No meu regresso de Portugal, apos quinze
anos de saudosa ausencia cem nostalgicos anos me pareceram eles 1 - despretenciosamente e com o entusiasmo efusivo de crianca, escrevi estes versos, simples e ligeiros..."
Comecando por descrever o seu drama intimo -- a dor pungente que sentiu ao
deixar o lar, as desilusOes que sofreu, as lutas e baixezas, desgracas e enganos a que
assistiu o poeta exclama numa atitude
Vi a mesma Dor no homem e na cousa,
Vi o mesmo pranto no cardo e na rocha,
E vejo que ainda na paz d'uma lousa
A mesma Dor funda, que nunca repousa,
Germina, fermenta, rompe e desabrocha!
Apos prestar a sua homenagem a Portugal:
Deliciosa terra de cantos e amores
Como eu to procuro e como to me queres!
Terra de guerreiros e conquistadores,
De nautas, herois, poetas e lavradores
De lindos jardins e de lindas mulheres!
(83)
Devi-Seabra, op. cit., pag.317
- 149 -
o poeta volta-sea India como alguem que, na ausencia do torrao natal, redescobriu a
sua beleza e grandeza:
Terra bem mais rica do que Portugal,
Terra da visiies, do sonho e maravilhos,
Terra de Manu, da bela Xacuntala,
terra de Vichnu, de Brahma, e Xiva-Raes.
e sente - se como uma criancinha no regaco da sua mae:
O terra da patria, doce patria minha
Por quern longos anos morri de saudade
Dá - me a luz antiga, a que eu na alma tinha,
E essa al'gria candida de criancinha
que nos olhos meus queimou a mocidade....
Dá - me essa ignorancia d'alma simples, pura,
Que inda nao mordeu, nos frutos da ciencia,
Da - me a crenca antiga d'infantil candura,
2) 0 Homem
i) 0 Rishi (84) de Adolfo Costa ou o homem - asceta.
0 heroi mais admirado do povo indiano tern lido e é, o homem de Deus. " 0 homem ideal da india", disse S. Radhalcrishnan, " nao é o homem magnanimo da Grecia,
ou o cavaleiro valeroso da Europa medieval mas o homem de espirito, possuido de
liberdade que atingiu a visa() intima da fonte universal pela disciplina rigida e pela
pratica de virtudes de desinteresse, que se libertou dos preconceitos do seu tempo e
lugar"(85)
0 seguinte soneto de Adolfo Costa é urn esboco dense homem de Deus:
(84)
(85)
Costa, Adolfo, Suryana.s. (Poernas), Tip. Sadananda, Nova-Goa, 1937, pag. 70-71
Radhakrislinan, S., Eastern Religions and Western Thought, pag. 381-382.
- 150 -
Rishi
No silencio da noite, pensativo,
Enquanto o vento geme nos juncais
E ruge o mar, feroz, nos vendavais,
E, na treva o rishi contemplativo.
Enlevado nos xastras, nobre e altivo,
Da sua alma os obscuros tremendais
Passam-lhe pela mente, e ele jamais
Curva-se ao mundo, sente-se cativo
Impassivel na dor como um heroi
Ele é no bosque a forca que constroi
E a voz que os vedas misticos proclama;
Em sua volta cantam moluonis
Passam na sombra tigres e reptis,
E ele so diz baixinho: - Rama ! Rama!
Adolfo Costa identifica quatro qualidades do homem de Deus: ele é contemplativo, nobre e altivo, impassive] na dor e piedoso em comunhao com a natureza.
A linguagem é simples e retrata com fidelidade o quadro social da India em que o
nxi vive.
ii) Viassa de Paulino Dias ou o homem-criador-artista
A origem da epopeia Mahabharata esta envolta em lenda. Segundo uma versao,
foi o sabio Viassa que o ditou ao deus Ganexa. Segundo uma outra, a propri a pessoa de
Viassa seri a filho da ninfa Satyavati seduzida pelo rixi Parasara. Viassa, uma figura com
um semblante medonho e cabelos entrancados teria levado uma vida de eremita (86).
(86)
Ions, Veronica, op. cit., pag. 119-120
- 151 -
Num soneto intitulado Viassa Paulino Dias expressa a beleza e a sublimidade da
epopeiaMahabharata exaltando o processo artistic° da sua criacio.
0 poeta esboca umatela, dir-se-ia, tridimensional: ao vigor-das-sombras-e-brilhorenihrmidtiano
n ttST.rcial ntraves do qua] Re ouvem um fragnr de guerre e
gritos de leoes: uma tela-ambiente de grandeza e pavor santo, atraves da qual revela a
sua figura ideal:
Viassa (87)
Eu tive urn sonho. Vi o topo do Himalaia.
- Picava-o o vento largo ! E era um fragor de guerra,
Choques, gritos de le5es, clarins, ondas na praia
- Em volta da Ariavarta, a milagrosa terra
Escuro. E so o monte a erguer-se de atalaia.
Mas alguem era ai corn o escopro, o malho e a serra,
Numa faria que lido abate e nao desmaia,
A cortar, a ferir os pedacos da serra.
E gritei a tremer, agitado de frio:
- Quem é al no pavor que amedronta e assombra,
A cortar e a rugir sobre um monte sombrio ? Era enteio o luar um crescents de prata.
E ouvi dizer-me alguem pelo meio da sombra:
- E Viassa a esculpir o imenso Mahilbhdrata.
Viassa debuxa o artista que qual Miguel Angelo, esse tita do cinzel afeicoando
o marmore bruto a modelacao da figura e arrancando urn Moises -- exige do "monte
sombrio" corn uma pancada do malho o "parla !" .
(87)
Apud Pope, Ethel, India in Portuguese Literature, Bastora, pag. 264.
- 152-
O Mahabharata e, na fantasia de Paulin, a figura-voz do soberbo Himalaia,
arrancada por um cinzelador, genio de uma rata.
0 soneto revelauma preocupacao, da parte do poeta, corn a beleza formal e o apuro
da linguagerh. Nota-se nele "o relevo ao concreto e espacial mas corn elegancia e
finura"(88), muito a maneira pnrnasianns.
iii) Sivaji (*) de Adeodato Barreto ou o homem-lidere
Sivaji é um poema muito singelo escrito por Adeodato Barreto em Coimbra, no ano
1928, em homenagem a este guerreiro celebre do seculo XVII conhecido popularmente
como "Napoleao hindu". Shivaji lutou encarni cadamente contra o imperador Aurangzeb.
A opressao dos hindus sob os Islamitas é descrita nos seguintes versos:
0 idolo sagrado: a Deusa Bhavani,
caiu do pedestal. Nao canta o muruoni
nos verdes mangueirais
e, nos tanques emflor das ablucaes rituals,
tenros lotus a abrir
reflexos das estrelas --
murcham de nab beijarem, os corpos das donzelas.
Shivaji venceu os mogois.
Em seguida, a India caiu de novo vitima de urn outro dominador:
E viu-se em cada canto, a espreitar, nab o "fez"
mas o "helmet" Engles ...
e dal
Hoje ha em toda a parte uma &Isla indefinida
onsia duma outra vida
Entao o poeta pergunta a deusa Bhavani:
porque nao das de novo
a India, um Sivaji ?
(88)
Ramos, Feliciano,
(*)
Barreto, Adeodato, 0
Mishit-la da Literatura Portuguesa,
Livro da Vida,
pag. 131-133
- 153 -
Livraria Cruz, Braga, 1950, pag, 587.
Ao glorificar o guerreiro marata, Adeodato Barreto exprime a sua ansia da
liberdade e da felicidade, "finsia duma outra vida".
iv) Gaudo de Laxmanrao Sardessai e A Casta de Adeodato Barreto ou o homem
- filho de Deus.
Gaudo (89)
Tu es o filho do arecal,
Filho dilecto da terra,
Filho genuino dos eras pristinas
Que a viram desbravada
Por teus antepassados
Que, pela primeira vez,
Cortaram as florestas
Aplainaram os acidentes
E a colonizaram para te legar,
Glorioso legado que, como filho dedicado,
Sabes preservar dando-lhe
0 amor que so to podes guardar
Na tua alma simples e abencoada.
E abnegado es porque o teu coracdo
Ndo conhece a recompensa monetaria,
Para ti o arecal e o amor
Florido e frutificado,
E ele, por sua vez, oferece-te
Todo o tesouro enterrado.
As arequeiras, quaffs virgens delicadas,
Abrem sobre a tua cabeca
Iniimeros guarda-sois para te resguardar
Contra os rigores do sol.
E as eirvores de chanfas,
Brancas ou amarelas,
Perfumam o ambiente da tua herdade,
E as correntes da agua,
(89)
Apud BIMB, 1976, No. 112, pag. 39.
- 154 -
Serpenteando por toda apane,
Beijam corn veneracab os teus pes.
Tu cavas e regas,
E nunca no teu espirito
Das guarida aos calculos materials;
4:8 frug° 1 nos tgiic habitos,
Como os rishis, teus avoengos,
0 teu corpo quase nu
Simboliza o esplendor da natureza
Que, a maneira duma mae,
E para ti generosa.
O irmdo
- ! Quern me dara
A ventura de, em tua companhia,
Jr cavar !
0 poema é urn preito de Sardessai ao Gaudd6. Este filho da terra, que pertencra
uma casta considerada socialmente atrasada e se cre ser de origem dravida,
escorracado pelo invasor aria, segundo reza a tradicao.
Sardessai, urn brarnane sarasvate, quica conscio da injustica feita pelos
antepassado s a este filho daterra, assume um a atitu de de simpati a e consi derac56,mijito
a maneira dos neo-realistas. Numa linguagem telfirica, rica de qualidades descritivas
Sardessai exalta-o na sua identidade de "filho dilecto da terra", "filho genuino das eras
pristinas que a viram desbravada", canta loas as suas qualidades morais e anela Por
retornar as suas autenticas raizes culturais : a agricultura.
A
Casta (90)
Quando o sol entra na choupana escura
e vaibeijar na esteira o pobre paria,
fica a sua luz, acaso, menos pura ?
(90)
Barreto, Adeodato, 0 Livro da Vida, pag. 107-108
- 155 -
Na-o faleis em costa "ordinaria",
ou "baixa" ou "alta" ou "plebeia" ou "nobre":
So é alto no mundo quem Deus cobre
com a sua grata;
SO é grande quem e filho de Deus !
Quando a Desgraca
nos bate a porta, a "nobres" e a "plebeus",
todos tragamos igualmente a taca
da Amargura;
Quando a Ventura
alegre e prazenteira nos acolhe,
entre pobres e ricos nab escolhe;
Quando na lgnea pica mortuaria
o fogo nos consome,
tido aide mats o coracdo do ',aria !
A mesma fonte nos sacia a sede,
a mesma varzea nos fecunda o plio
que mata a fome:
Dizei-me
Vas que no varnashrama acreditais,
se Deus nos fez nascer assim iguais,
como é que ainda ha castas em seu nome ?
A Casta de Adeodato Barreto, como é obvio, é uma suplica a sociedade para tratar
o paria como filho de Deus e acabar corn o si sterna de castas (varnashrama).
3) Deus
o Transcendente e o Imanente.
Brahma, a primeira pessoa da trindade hindu, é apresentado pelos misti cos do
Vishnuismo, at-raves das suas pregacoes, sob o aspect() de Ishwara, deus que ressuma
- 156 -
humanismo e miserithrdia e acede as siiplicas dos fieis.
Na poesia Fala Ishwara (91) de Adeodato Barreto, este deus misericordioso
dirige-se ao seu devoto. Este, por sua vez, procura entrar em comunhao com ele.
A di vi n darle revela-se-lhe romp n ger trangrendente e si
taneamente imanente,
que vive nao "nos espacos" mas "ao alcance dos teus bravos". Ele é sentido em toda
a parte:
Nlio me sentes na hervinha desprezada
que descuidoso, pisas ?
No gineceu
onde o perfume oculta, envergonhada,
a delicada floc
ndo me divisas ?
0 poema é uma transposicao em linguagem literaria do conceito vedico-upanixadico de Deus. Adeodato revela-se contemplativo, na linha de Rabindranath Tagore.
Quanto a forma, o poeta, fiel ao seu credo de que a "Arte moderna exige que a
supremacia da Ideia fulja sempre e que a forma viva circunscrita a sua fimcao
secundaria, instrumental" (92) exprime-se em verso livre em forma de slokas.
Eu clue° teus passos, Senhor (93) de Laxmanrao Sardessai
Eu ougo teus passos, Senhor
Na brisa suave da manha,
Vejo o esplendor do teu sorriso
(91)
Ibidem, pag. 99-102.
(92)
Ibidem, Proemio, pag.18.
(93)
Apud BIMB, No. 112, 1976, pag. 60
- 157 -
Na luz area do sol nascente.
As aves e as arvores
Acarinhadas pelo vento
Comunicam-me o teu canto missterioso,
E a chuva abundante
Liar
da tua
A tua generosidade, sinto-a, Senhor,
Nos rebentos que saiem espontcineos da terra,
E o azul celeste retrata
A tua alma universal.
Vejo isto
E me curvo reverente
Perante a tua omnipotencia,
Mas quando vejo uma velhinha
Carcomida e benta
Oferecer a um pobrezinho
0 arroz da tua tijela
Lagrimas borbulham nos meus olhos
Que retratam o infinito amor
De que palpita toda a criacdo.
Estamos diante dum poema-arroubo mistico, urn salmo, cheio de candura e
simplicidade ao descobrir o Senhor ern todos os fenomenos naturals que o poeta
apercebe serem &diva deste mesmo Senhor.
- 158 -
Apendice
Documentos
Nasciineiito Meiidonça
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`entlartnit iiiii=n114
'ZffirfatiLiiiiitittitauS/
E
no parque maravilhoso do palacio de ApSidlti' a ii hora gloriosa e tragica do sol-posto. Rama.
o heroe inveneivel de Lanka, eruza as math: n'uni
gesto doloroiio; adorn o divino Surya morrente...
Lindo na purpurea luz carieiosa o jarilim de Ayo(lhia, cercado de um alto ruurb de marntore tini4stmo de Jaipur. E' no mein d'elle utua vasty Lagoa
de jaspe e laivos de esmoralda, donde surge ridente
tuna pequeOina Ilha de Amores, corn urn pavilliao
rendilhado de jade e ambar, de marruore c sandalc...Irrompeza de busquos verdes, envoltos eat Ler fumes, minatetes, copulas. zimborios quo pareeem
feitos de diamante. no derradeire jueto de purpura quo o sot esparze apaixonadatnente sobre a cid:,
de marvilhosti. E n luz e emu() o uturnturiv dr uma
preee no serene e largo rumor das ramagens.
vasto fillchnO vein espiralando, sua -ii,ando 0 ar
um ace grito de elefaute. Chalream ehoram fon-
tes suavissimas, por toga a parte no jarditu encautado. So o just() e poderoso Maharaja c triste
no mein do esplendor divino de Ay6dhia. Envelheeido e desblado, parece aturdi-lo o brilho lace rante dos 500 brilhantes do seu collar. grander
como arecas. Entra na lagoa por uma e, , cada (le
5
4
ambar e tartaruga; colhe mud floc de 'otos; coin .
templa-a extasiado, e logo, como se um vento de
loucura the varresse de rojo o espirito vast.
lacerado:
Mhidita sejas tu, 6 Flor ardente e linda,
Tara de vinho astral que aturde e alucina,
0' LOtos ideal de suavidade infinda!
Desfolha mansarnente a flor de lotos e as petalas
firms e brancas caem uma a uma sobre a vasty agua immovel que parece beija-las angustiada. Seu
olhar é urn clarSo que confrange. Lembra o incendio de Lanky, a cidade de Ravana, dolorosa e terrivel no estertor de milhares de Rakxacas. Devera ter sido assim o seu olhar ardente e angustioso
na memoravel tarde do rapto da Esposa castissima
...E como se a dor do lotos desfolhado o consolasse
de uma dor ihdizivel :
Sohre o lingo da. Vida os !Otos refiorindo
Sao eutno sonhos de oiro eta nosso eorac•u;
Sao cutup a cobra vii cic capMo 6;10 limbo
Os lOtos ideaes em nossa alma fulgindo
Flors du Desejo, a 4orte e a Traicao !
Pousa os olhos longa, afilitivaincute sobre as
petalas da flor desfolhada. 13' um oilier de dews.
pero, de dor, de desgraca irreparavel. E
e louco :
0' brando logo azul fremente de te•nura !
0' veludo real de contactor divinos !
Nao pode macular-te a carne mail impala.
Alas de repente o seu duro semblance de guerreiro se ilumina. Urn raio de luz sobe-lhe do coracao aos olhos e se trausforma em lagrimas. Nimba-o urn suave halo de melancolia. de nostalgia
profunda :
'In es a flor do Amor, venenosa e divina,
E es a flor da Ilusao, que enfeitica e
Ah quern sonhou a dor na flor mimosa e fina
Que rompe, n'agua azul, da espuma, fen3inina,
Que saudade accendeis, o lagos cristalinos,
Como n'tun claro ceu rompe, airosa, uma estrela ?
No pobre eoracao lugubre e tempestuoso !
Lembraes-me o extinto ainor e Os soaves destinos.
Ah Twin sonhou, Deva, no perfume estonteiante
Do lotus auroral das lagoas sagradas
A peconha da cobra, amarga e fulminante,
E no pistilo de oiro o dente lacerante
Que envenena sem do as alums confiadas !...
6eios de grata e luz, tao frageis e formosos,
Calices de 1.AM), de um vinho enfeiticadu,
Quanta vez, quanta vez nos trauses dolorosus'
E logo, comp sacudindo um jugo luau e
(laud° 1, 111 paSSIldl) H1111)1(10 :
Men amor, wen a nor foi urn sot Inannoso.
Subre 0 men coracao SCLI surriso suave
• UM setestrello
ardente a voluptuoso;
Olt ! divina MitlMtt n u bs mimosa .I n c ulna
Nos nao deram a force; us estus prGeelusus
Alaii,doee quo o lung, e, cum() a Ina, punt,
—Duces dares do D6r, a Vinganca e o Pecado !...
Oh cleusa da Ilusao, inefavel, c grave...
ktVp,
7
6
B se queda alanceado e mudo...fthacauta e deslumbra, no derradeiro jacto de sol a jardim maravilhoso enlanguesceadn. Erra no ar urna musica
perfumada e languida, um fumo lasso de sandal° e
cinamomo. Um jorro de fogo. do uiro liqui lu e
fluida purpura cae sobre o marmore sumptuoso do
palaeio de Ay8dhia. Florecem laranjeiras no silencio abstrato e divino; palrneiras, nopaes, aloes. toda
a estranha e poderosa Vegetactio que etuoldura. divinamente bella, a lagoa, soluca, ratnalhanda, uma
film cangao de volupia e souho. Utna docura
penetrante e turbadora envolve o castello de marmore e oiro ; parece de aluminio liquido e de alabastro a Lagoa. Dias averiidas de jade pavoes abrern
os leques mosqueados, &um ardente adeus ao sol.
Choram nas cantimploras de fontes de tnarmore
as aquas; gorgulham, solucam languidas. Espiritualisa a paizagem a melodiosa fala de uma flauta
pastoril. Ao longe, um grupo
fakirs passa
cantando ao rythmo de pequeninos pratos de cobra
que brilham como aim.
0 que vae na frente, como um gigante. o peito
ad, enrolado no alto da cabeca, como uma torre,
cabelo aspero, untado de visco da tigueira sa ;rad a .
n'um vago, lento, suavissimo marmurio
Era de fogo e espuma, e de unbar e do9ura
Sua came lilial de lOtos inviolado,
Abrindo corm) um sol na minim desventura.
Ah nao me larg,a, nao, o coracao magnado
A lembranea fatal do seu corpo de Apsara.
seu olhnr to negro e o seio perfuwado t
Lembrava num arequeira amoravel e rara
Que o wen olhnr regava e o men desejo ardente,
Uaseata sensual de lava fluida e clara
A
Flan desejo—ai de mini !—era a soda fremente,
vern3elho sari qne a beijava e a cobria
Sundalia que a ealcava, humilde e vehemente.
0' Beleza, O Beieza, 6 rosea siufonia
n'u:n clan° que eillotiquece,
Aiuda shit() em
N'nm relampago ant de intensa nostalgia.
Um instance o luar amoroso me aquece
0 triste cornea() alueinado e rode...
0' lagrima de Luz no ceu que entenebrece !
Se forte, minim ahna,
Uma nuvem de irreparavel desengano the sob,.
aos oihos. E sucurnbido :
E limpida e calrna,
Comoiagua de prata;
Em face da morte
Se pura e se forte...
Coro de fakirs:
o souho de actor nos adormenta e flock !
Traz a merle coinsiLro o sonho loiro e lindo
nao ha n'alma 11113 so! que em perfume o transmude.
JAI, JAI, KASSINATA
COIDO
Atuor,an3or, amor I asc.ro de oiro fulgindo !...
•
E a voz do Maior mais luminosa e fine
8
9
Tao perto ja vaes
Dos Imes astraes,
E o ceu que arrebata;
Gota de luar
Has de a Deus voltar.
Coro de fakirs:
—So o (tile é Bello purifica e sara
0 coracrto que a Dor lacera...
Hosea a Ventura n'um olhar de A psara,
Na rosea luz da Primavera.
UM RIX!
sommunbalamente
JAI, JAI, KASSINATA!
E o Major languidatnente
Tado c mentira, mentira,
Que o coracao, envenena
SO a Deus, rt Paz aspira
0' minba alma enfim serena
E respirarls
0 silencio, a paz
Que as almas
Todo o ceu se refletiu
ti, pobre gota de o.gua,
E titn so instante florin,
Como um sob, a tun magna
E torna infinitas
As almas aflitas
Coro de fakirs:
Sobe agora n'um elarim
JAI, JAI, KASSINATA!
rao-se extinguindo as vozes, Ionginquas
N 'um lasso, claro perfume;
SObe a Deus meu coraeao,
Sent utn ai, sem um queixinne
JAI, JAI, KASSINATA !
A imagem de Parakriti, n'um pequenino nieho
doirado, sob a sombra de uma tigu;:ira :
Ai de ti I ai de ti I pobre alma errante,
Que buscas a Verdade na tristeza
Da Vida multiforme e allucinante
A Verdade, a Ventura é a Belleza.
Um lindo raneho de raparigas que regressa dos
varzeas, n'uma doce a luminosa
Tudo e mentira: que importa ?
amar e sonhar...
Ter n'alma ardente e absorta
lJut loiro sob e o boar.
10
Arnar a Vida, a Beleza,
0 sceptru, a fur, terra e mar;
Nunea na esteril tristeza
A lua divina apagar:
amor ilude, envenena,
Sonho loiro, logo tinda ;
Alma de cobra c de hicna
N'om eurpu de Apsara
Antes que a dor nos consul-11a
Ser urn astru, iluminar,
Ser a flor que a dor perfunia,
Fogo sant'elmo no mar,
Vern logo a inorte, e a alma em pronto
Em po triste ha de turnar ;
Prendamo-la au sol eingtianto
'fiver azas Para vOar.
N'um pagode. pent). 0 ntirriagyiteirt/ Lange win
os dodos a mitrelitllga de pelle de talagoia. e a bailadeira canta, sob us Mhos tle carbuuculos, de 11:,(11i,
a tenebrosa e sangrenta deusa da morte :
Cohr de perlas e sardonias,
Firma joia de rainlia,
prazer e dii insonias
A' alma do homem, pobrezinInt.
Sol de inn din, alboduiradu,
N'ulo ecu feito de mosaieos ;
Palacio de uiru eucantadu,
Coin !hlos baleOes areaicos.
E n'uin so din ei-lo em terra,
Negro e triste ruinaria...
Al, Como a velhiee aterra !
Que triste o sol n'agonia !...
Vein, Kalli ; sou bela e moo,
Pedra fina a refulgir...
Ye, I o so) to duce rota
Men coracao a florir
A LAGOA. Mum murniurm(pu• lembra
esuo.ralda
sol caindo Muma patella
ainor nao
Ai, cair, murrer agora,
Ao nada imenso levar
Urn roseu sopro de aurora,
0 coracao a irradiar.
Outra BAILADEIRA, em eujos labios a moeida•
de se esvae n'uin derradeirm amarissimo sorrisu:
c &Mho vao,
Nib 6 lava clue envenena.
A ma inch hut que urn \mica.°
A agna humilde c serena.
imam mellior qae as astern;
E os nayas nos arceaes,
E amain mellior que as violetas
Os Itutuirmos arruzaes.
fl.'
13
12
Sabe a espiga pequinina
Como é doce ao coragao
Vergar madura e divina.
P'r'as creanciuhas sem pao.
Os
Urros, n'um vagO solucar cheio de uma volapis baLsamica e divina
Ser flor é dar a quern soffre
Um balsamo de War ;
E' abrir um Endo cofre
P'ra logo ve-lo cantar
No fragil calice de oiro
Que forca estranha e divina.
Arranca a dor urn thesoiro,
A noite negra
Aguas dikes como plumas,
0' Lagoa clara e lassa,
0' Lna que nos perfumas,
A nossa forca, e a grata.
As APSARAS, ao longe, sobre urn penedo pie as
ondas batem apaixonadamente:
Samos brancas, de almas claras,
Como cisnes;
Lava de der, nao nos tisnes
To depressa as formas raras.
Somos a Arvore encantada
Que cui cada leiva
Sorve o sol e o volve em seiva;
Valve a seiva cm flor doirada.
0' Sol, beija os labios hurnidos
A's Apsiiras,
Mail-os seios rijos, tumidos,
Mail-as lindas forums raras.
E lancando-se no mar gloriosamente nuns:
So ao Forte, ao Vencedor
Que (la a luz,
A taco do nosso amor,
Nosso labio que seduz.
o SOL, longings° e dime, desappareeendo no tour,
n'um derradeiro clarao de sangue e oiro:
Luz, luz, luz, eterna luz,
Volve o sangue em luz, Senlior !
P'ra ve-lo correr a flux
N'tima torrente de amor.
IIM BoTHO, vendo o sol por-se no mar em logo
recita a yatiatry sublime, e humildemente:
Surya divino e resplendence !
0' sol, doirada, mistica urna !
Sejas bandito eternamente,
Surya que beijas docemente
Minh' alma, triste tier uoturua.
15
14
Vac a arder Wilma torrente
De fogo astral, de energia ;
Vae subindo eternainente
N'utna ardente sinfonia.
0' to clue a heijas e a fecundas !
0' luz Tie es pao, o luz que es saugue!
So!, que de amor e luz inrindas
As alums simples e profnndas,
ve-ine eta luz est'alina exangue.
E quando tun ilia,
A terra aorta explodir,
liade ainda,
N'uni novo sol refulgir,
Arranca, 6 Sol, dos coracOes
'l'oda a ruim c rasteira herva;
• Erigr'rialda-os de astros e
Enehe-os de flor's e de claraes,
E
so a luz conserva.
UMA voz Tie
pare::' vir .la nev rr .la lagOa:
Eu fui nos bracos do vento,
Linda amante, toda absorta ;
No coracno do Maharaja cue o rythmo d'essa ,
VUo screno c tau lento
voteslinda'u•chtremolsia.
clue estava morta.
ardentes, de doiradas arveolas de fogo Fixa o
-
-
olhar na ponta do nariz; exhala o halito pelas
narinas. Florescem entao na becca do guerreiro
invencivel at palavras onmipoteutes de urn ti/tetra, telintam corn° guisos, claugoram coon" sinto,
Espiritos da Treva, o bulks deseonsolados !
0' tragicos inahnis nos ventos ululando,
Alinas cheias de dOr, coracOe-s golpeiados,
Alt, erguei-vos do nada a minim voz de mando.
Um se:Tr° de procela perpassa no arvor6do..,
Um von voleiru secular trerne, todo se a;ita, derratm,
sobre a agua arfante e mormura our pranto perfomado de Bores.
VOZES DE BUTHS :
E' Lao longa, longa a Vida,
Quo inda depois de morrer
Nao tent a alma uwa guarida,
P'ra dormir, aao mais sotirer.
clue lino aroma exhalava
Men .corpinho todo a arder;
A terra e o ccu perfuwava
Meu cor .pinho de Mother
Mas quando o sol desponton
Sobue as ponuts das
Neil o perfume ficoa
Das lindas formas
Quo iwporta ? utn instance, ardente,
Todo o men ser irradiou ;
Fui a Luz do sol fremente,
A Flor que a Terra alegrou
UMA
ivito
vOz de
secular :
Tic ; haliffide
e three. no
ron••
17
16
Foi no :jungle
Os mogarins e as manilhas,
Quern as ama como a viuva ?
0' Surya, to nunca brilhas
Como nos mezes de chuva
0 MAHARAJA,
feliz o meu exilio obscuro.
Que lindo o sol, a lua, as agnas na Floresta !
E foi minha alma como um lago calmo e puro,
Longe, longe da pompa estonteante que a cresta...
comovido e Saild080;
Nostalgicos mahrus, 6 buttes desconsolados,
Tambem vos fere o amor, tambem vos faz soffrer ;
Tendes a dor na voz, e os sonhos desfolhados
Lembraes-me um roseo ceu que eu sonhei na Mulher.
Meu sonho dissipou-se : era nuvecu doirada
Que urn vento tuau varreu do meu ceu religioso;
Ai tao longe, too longe a suave alvorada
Que eu sonhei, que eu amei, morn rei veuturoso.
...Quando o sol do yea() escaldante enlouquece,
Ouco ainda chamar-me as Florestas augustas.
Minha morta Dual°, efemera, foresee
No haft& e o ramalhar das arvores robustas,
—.0' Amigas geniis, o Arvores tranquilas,
Claras Almas de luz, 6 Ails ideaes,
Que nostalgia abraza as nubladas pupilas,
Do exilado na pompa e os thesoiros. astraes !
Unge-vos de esperansa o sol, de paz a lua,
0' APinas que sois rythino e harumnia austera;
Na vossa seiva o amor divino e puro estua;
0' thesoiros do outono e luz da primavera L
...A vossa voz me lembra os tigres e as chitelas.
Cascatas, arecaes, 6 bulhs desconsolados !
Lembra-me o ceu Perdido, os thesoiros d'estrelas,
Lembra-ine a Flor gentil dos ineus souhos doirados.
Ai, a Flor auroral que en desfothei raivoso
A Flor que foi o sol no men escuro exilio,
E foi na minha noite o luar amoroso,
E foi no luto e a dor o men suave anxilio !
Desfolbei-a, Devd, mas n5.0 mais a caricia
De urn beijo de mulher floriu men corac5o ;
E nunca mais a flor nocturna da delieia
O Mice abrin ua minima cerracrio.
E no passa a lembranca.,4iyencivel e dura
Dissolvendo o meu ser.,g!,uma eterna
Ai "como é triste ver paco.de.unia artnadura
Desfazer-se no fogoatraz de ama fornalha
Cerra-lhe os olhos urn torment() itgrule.
A Voz DE UM broth. sareastioa :
Ai da toliuha ! al da tolinha !
Que busca urn tigre para mar.
Ai da tolinha ! ai da tolinha!
Que as joias de oiro langa ao mar.
3
19
18'
°taut voz, de maltrti, no vonvoici•
Um: tigre amour urn. lotus lindo,.
Na garra de aco o desfolhou ;
E foi rugindo, e foi rugindo,.
ninguem Babe se chorou. .
Tambem o mar os.rios ama
—Aguas de leite, aguas de melE. o seu amor, maldita. charnma,
Depressa os volve em. dor e fel.
E. ELLE mortifieado•e doido :
Or Almas inamortaes, ouvi...tende piedade,
Que eu nao•fai nunca urn. tigre, o, whaga sanguinario;.
Ea amei a. Bele,za,.adorei a B'ondade ;
Foi meu algoz o• orgulho acre e tumultuario..
Fiai o filho do Jangle, inapetuoso , e heroic°,
Que ama o Sol,. a Lua, a Beleza int:inks ;
Eta forte o men corpo , eu, coracao estoico ;
E no men sangue rugia uma lava maldita...
E'se queda n'uma reverie vagamente sensual e
vagamente dolorida.. UM A voz mysteriosa e tur•
badora.:
e
clr
Morrer, sim ! Quando a Gloria to embriaga,
Como um vinho de luz, a alma radiosa,
Morre sem vacilar ; a Morte afaga
A Alma do luctador, forte e amorosa.
:km* a Vida, a Beleza, ,o Sol divino,
Euche de luz, de sons teu sonho obscuro.;
Amar, sofrer, lutar, eis o destino
De todo o coracTro heroic() e puro
nao tem docura
A Vida a bela,
Ao coracao que desfalece e chora,
Lucta, pobre alma dolorida e impura,
E has de explodir n'uma exaltante aurora.
Sobe ao ceu, sae ao ceu ardentemente,
E quando o Sol as azas, to queimar
Has de ao nada cair serenamente
Para tornar a amar. lutar, souhar.
vouvoleiro secular, .uma voz
e grave
Abre os olhos ii luz que a terra inunda,
Se buspas a Ventura imorredoira ;
links a luz que o lamacal fecunda,
:Lipka a espiga pequinina e loira.
&be na luz,-pobre-nit.
Sobe na luz do sot, divinamente ;
Se o condor audaz, forte e fremente
Que jamais na desgraca cae vencid0.
Os LOTOS BRANCOS. nas agluts da lazoa
bracos b.
parecem de sinopla e os embaiam
veludo finissimo :
20
Rasgato-lhe o coracao os ventos a gerner
—Quo bratnidos de dor no infrene trovelinho
d'elle, Madlieva, clue nem pode tnorrer !
Sabe a espiga pequinina
Como é dote ao coracAo
Vergar, madura e divina,
P'r'as creancinhas sere pao.
UM IA5TOS VEEMELHO,
voluptuosameute :
Amor ! amor ! amor ! o Ilusao doirada,
Mimosa como renda !
Para eu nao ver a Der, hiena esforneiada,
Poe-me nos olhos a doirada vends.
E 0 MAIIAliAJA,
Vae no mar proceloso o pilot° sozinho,
},3 o pobre coracao nao para nern se esvae.
Quern the dera, Deva! um venenoso vinho ?
Quern Ihe dera, Deva ! extinguir-se n'um ai ;
N'urn adusto penedo em pedacos ficar ;
Mas a rnao de Kalli sobre o triste nao cae.
n'um sobresalto :
Has amar é sentir no wracks fremente
Um glorioso sol, urn clarao, uma aurora,
Claro Ganges de luz, irisada torrente.
Ah, trao o fere a tnorte e trao o devora o mar,
Lancou n'elle a procela abrolhos e eardaes,
Para ve-lo soffrer ; para ve-lo chorar.
amar é palpitar como a Terra sonora
Na caricia da Luz, que a Deus o p6 eleva,
Ai, amar é viver mil yugas n'uma hors.
E e muda a sua dor ; os seus olhos jamais
Ulna lagema os turvou de desgraca c sandarle,
Nunca o viram brewer hienas e chacaes.
E minha alma—ai de mini
solidao e treva,
Sangra como o escudo ardente de um veucido,
—Madheva ! Madheva! que vagalhao me leva.
Nunca soube uinguem se em seu peito a bondade
De penedo a penedo, o wrack, partido ?—
Eu sou como urn pilot° a uaufragar no abismo
Levado no tufa°, altivo e dolorido.
Rebrame em volta o mar freweute de cinismo
liugem os vagalhOes como le6es a arder
N'uma jaula de bronze : o negro cataclismo.
Como um lotus astral, compassivo se abria,
Ou se era sO de fel sua alma e de rualdade.
E estendendo rnaos n'um gest° august iusu
Quern sabe, Madheva, minha cterna agonia ?
Confrauge a sua face torva. lc do luro i o pavor de quern vae morrer n'uni cadafalso. Favor.
misteriosa de novo se ouve fatigada :
23
22
Ai de quern soffre e nao Babe
A mac do lieu penar.
Ai de quem soffre e nao sabe
Que a marte o ha de socegar.
E
Seus olhos desoLados parecem atnaldicaar o formoso marmore do seu palacio, e um grito de desgraca irreparavel explue de sea eoracao flagelado:
0' niurte, o 'none, o luz da minha clesventura
ELLS:
:Tao esquece o Passado a minim alma sonambula
S6 meus olhos cerrei a Esperanga doirada,
De um amrila de luz a enfeitigada anabula.
En fui a braza, o sol, a lava ensanguentada
Que um vento de loucura indomavel fustiga,
E as fibres cresta na orbita desordenada.
Em vacs, em vao busquei, como uma souibra awiga„.
Na pompa o esquecimento e a ventura trauquila
Dos lagosao luar, que nao ha quem rnaldiga.
Ai no esplendor e o fausto a minha alma vacila,
Ccmo palmeira a arder n'um areial muldito,
Sob o sopro do sol e o sitnaun que sibila.
NOD cite do meu castelo o rutilo granito
&bre o meu coragao que uunca pars exhausto,
E nao Babe esperar, anaar, ser infinito.
0' sol, o sol, o sol, 6 divino holocaust°,
Nunca mais, nunca mais heide ver-te, radios()
Toda a Terra florit, e sorver-te n'um hausto.
Quando to caes no mar, sangrante e voluptuoso,
Uma nuvem cruel de fogo e de amargura
Tolda-me o coragao sedento e proceloso.
E e VOZ MYSTERIOSG, de uma 'event de funo
aromatico, brotando das aguas, compadecida :
Temos thesoiros e prazeres
N'arn cofre feito de ma estrela
triste, dine o que to queres.
E
ELLE
n'um grito de loucura e desejo
! Sita-bay !...Quei• me dera s° ve•la
Ouve-se de repente no Tago, que é uma, lhama de
oiro, urn murmurio profunclo ; exhalam as aguas
um fino perfume de zaios morrentes. Boiam conchas luciolantes a for terra os olhos
aterrorisado,.As petalas do lotos desfolhado, zna0
invisivel as vae juntando, lima a WM—. Deante dos
olhos cerrados do Maharaja todo o seu Passado resurcita : a viola suave e clara no jangle do exilio :
0 rapto de Sita ; a destruicao de Lanka. Levzira.
por Ella. a seu bravo robust() a morte e ❑ desolacao a cidade dos vergeis diVinos. Por Ell. cairam
siespedagados as Rakxacas, e ardeu. Lanka. desde 0
sumptuosa palacio de Havana ate o mai humildc
tecto de corm°. Uma nuvem de fogo the toldara
desde entaao esr irito de ago...
E da for de lotos surge docemonte. n'um dilu-•
vio de tremulo fulgor, o fantasma dolorido
lindo, emaciado e franzino, de sita ...E' o mesmo
-rani branco, que the eingia o eorpo trigueiro e ervelto quando i'rithivi, a Terra eternamcmc Torniosa e compassiva, the abrira o sciu pizza a reeeber
E' o amain° olhar supplicame a mesma fact: pal-
24
25
Ma. Desce-lhe ate os joelhos o cabelo ambarado
e flno...E o sari alvo, da maviosa alvura dos mogaum saimpb, parece feito de perfumes
rins,
raros, concentrados, que aturdem....
at
E ELLE, descerrando os olhos, cruz.ando
naps eol adoragao :
E n'nm intimo, piofundo queixume :
Porque foi que o meu sonho em Nino dissipou-Se ?
Num pagode, perte, a bailadeira canta:
Tao &ace rompe a luz na nlinba noite escura.
Ai o astro a despontar, o lindo plenilunio !
Domina-me, enternece um sonho de venturaDescanca o teu olhar no men negro infortunio,
0' Sitd, o Sitat, 6 meiga sensitiva !
Men doido coragito ten olhar illumine-o.
FOste no men verso a sombra compassiva,
No meu inverno triste_ a luz qne me embalava,
0' pallida Devi de fronte pensativa
Tudo passa, tudo passa,
Amor's, sonhos de oiro e gemmas,
E a lembranga, toda graga,
Das loiras horas supremas.
0' coragllo, tine vergonha !
'N'utn so instante olvidar
Tudo quanto a mente sonha.
Extingne-se a voz n'um acre telintar de ironia :
s6 o homem sabe amar
Tu eras o luar, eu o sol. que escaldava.
Meu amor, meu atnoT, a lugubre lembranca
Cresta-me o coracO'n'um sOpro acre de lava.
Den-me na terra, um con tun alma de creanga,
Mimosa e linda como a flew do tamarindo,
Como a agua de uma fonte, enamorada e mansa,
,
Foi-me a vida comtigo um jardim reftorind°
No luar amoroso e pure dos tens olhos,
Quo no men coracao era unaa estrela abrindo.
Os lotus, na lagoa, venenosamente :
A mar a came dote e nua,
E a boca linda que sorria ;
Cuspir na face a branca Lua...
E n'um grito`mordaz que risen, como um reboil pago, o amplo e calado luar que enternece :
(
Cuspir se a lava ja, esfria...
Treme o Fantasma, torce as maos, parece sacudir
uma lembranca ma que se the enrolasse no corp.
como um wzg ha . No nacar verde-pallido da Lagoa
milhures de lotus abrem as corolas lindas...E
vendo o Fantasma estremecer subita e violentamente :
porque foi, Deva ! que semeei de abrolhos
Men caminho de seda, a Via-Lactea done ?
Porque foi que buscinei os ingremes escolhos
4
27 •
26.
Eu bem sei, Sita-bay, meu lugubre passado.
eu que maculei teu amor inocente
Eu busquei no teu corpo as nodoas do Pecado.
Ai, a febre, o horror da minlm came ardente !
Era .como tun clam de ioncura e vinganga
Rugindo no meu se; u'uma amarga torrente.
B no ten corpo bruno, 6 suave Creanga,
No tea corpo sew macula, de ambar tao fino,
Eu bem sei que bnsquei—ai a negra lembranca !—
Do Tigre de Lanka o beijo viperino...
E na fina voz da bailadeira perpassa uui sopro
acre de angustia e de peconha:
Mata6-me o coragao.
Cerra os olhos maguadds o Fantasma suavissimo...E o Maharaja, come se tuna clays. de Rakxaca the pesasse no wrack, fiagels.do:
Ali, porque nao esquego a clava de Ravana?...
Eu te vejo, Rahnim; ai ! eu te vejo ainda
No lugubre pain da rags deshumana.
Eu te vejo, chorar tao desolada e linda
Sob o olhar do Rakxaga apaixonado e lasso,
E a minha dor a como um smudrz que nac finda.
Longa, cants a bailadeira ao rytheio doiradollo
#arangui, oheia de ironia malevola a voz finissima :
A came, a came–. e basta
Que seja Linda e para.
E quando a came a casta,
Que importa a alma impura ?
li
Ii
1;
E utu instante commovida:
, 7",,„;
E' de desgraca irreparavel o olhar de Sita. titn
arripio a percorre toda; estremece. Dir-se-ia quo
urn animal viscoso the tocara a pelle do seio: gotuma pedra caindo turvara um instante o placid()
espelho de um lago. Mae volta-Die logo a dove
serenidade angustiosa, euvolve-a como um glacido
clarao de ternura e melancolia...E elle, lone° :
Ai a lernbranga ma de lava fluida e de ago !
Como um nagha se enrosca a minha alma augustiada.
Alucina-me, aperta o venenoso lago.
Quando um dia, velhinha,
Men cabello branqueiar,
Quern vita, coitadinha,
Minha Wm. beijar ?
Sonho ver-te em Lanka, o flOr amargurada,
Que loucura, que horror assalta-me a lembra-lo !
Antes me abrisse o peito o fio de uma espada.
No tristes areiaes
Ninguem langa um so gran,
Soprae rijos, terraes
Arde-me em lava a fronte e n'um irttimo abalo,
N'um sobresalto agudo a minha alma naufraga.
Nimba-te a minha dor de urn ensanguentado halo.
"•-•
29
Que bracair de.tiovao. ! aLque Yragor de vaga !
Men pensamento é fel e a palavra
. , peconha,
Como um silvo de cobra e um ingido que esinaga.
Nunca mais, nunca mais meu desejo sedento
Florin na clara luz de uma caricia pura,
Nanca um astro fulgia no men duro torment°.
E' pedra o coracao qne nao ama e nao Sopha...
0' incerteza, o' duvida, o' lugubre hiena,
Nao cessa o ten uivar na cerracao medonha.
Sou oacod'armadura
Eu nunca mais amei
Solire o peito sem luz, de urn gigante derrotado,
Que se desfaz na der de ama lernbranca obscura
E n'um grito de ameaca:
E eras tu, Sita-bay, men amor inviolado,
Porque me assaltas tu a rir na Minim pens ?
A bailadeira bate os guisos e canta, no pagode, corn tao dorido modo, que confrange:
Meru olhos tristes e ardentes,
N'urd halo triste e violace6,
Vao em bases, doidamente,
1)e um encantado palacio.
Mas a ventara perdida;
Nanca, nunca a encontrarei;
New se um dia, comovida,
n'um leito de rei.
E o Maharaja, numa'onda de ternura. de rernorso
de intensa nostalgia
No men acre verao a smnbra de ama palma,
Nos areiaes da Vida o men sonho doirado.
So tu eras, Sita, a Esposa da minha alma.
Depois, semicerrando os olhos, humildementc.
n'uma inestinguivel sede de amor:
Mas fala, en to imploro, 6 Lotus dolorido !
Tu que nunca tiveste a rude voz de [nand°,
Tinhas na voz o mel de um luar condoido.
Lembravas a falar as aguas solugando
Na tiara fonte hurnilde,-4a um ribeiro saudoso
E a voz dos moluonys, ao sol-posto, expirando.
E tu foste em Lanka, 6 fine sor tao : pure,
Como um sopro de fiiz, do divino Surya
Na treva que confrangee o lamacal impuro.
Poisa no coracao ardente e proceloso,
Como a sombra no estio, o ten sorriso lindo.
Se no men ceu de inverno urn astro Imninoso.
Mas o meu coracao foi ccomo gm mar em furia,
Foi de pedra,,Deva men noragao violento,
E nao mais vi sorrir bus .boca,purparea.
Tristes olhos ideaes, co:no urn luar caindo
Na noite de pavor, na minha dOr ungi-me
...Como d (lace morrer na mao de Deus sorriudo.
'30
31
E se queda somnambulo... trma tristeza larga e
dime illumina-lhe o olhar.
E o Guerreiro de Lanka treme: nunca o virtu»
tremer assim no fragor do mais sangrento combat:.
Rasos de agua os seus olhos. a uunca o viram chorar no deserto vasto e arido das suas sem existeucias. Ao longs, um paltari, velhinho d'olhos serenos e claros, de fronte ampla e iluminada, prostra-se extasiado e humilde deante de um nichu
de Parakriti, a Deusa Natureza, e docemente :
Gemem no ar vozes de rixia recitando uma press.' Parece repfti-la a divina e podercsia vegetacao
do jardim maravilhoso...E elle :
Ai que longa saudade o comp me oprime !
0' Arvores gentis, 6 Rixis triunfantes,
Lembraes-me o Lar, a Paz, o sonho que redime.
So to nunca mentes,
0' Parakiiti,
1)e seius, albentes
E ea busco em vao, em vao nos marmores faiscantes,
No fausto, a pompa e a luz da grandeza que escalda'
A esperanca que escuda os heroicos gigantes.
E claro sari...
'l'u es a Roulade,
'ru es a Belleza,
A Luz, a Verdade,
0' Mae Natureza !
Embalde busco a luz, o sonho que engrinalda
Vossas almas remit, suaves como arminhos...
E' de fogo, Rixis, meu sceptro d'esmeralda.
E volta-lhe n'um instance a eterna obsessao
morosa, a lembranga da alma feminina que se the
partin maguada da sua dureza, e que the vae
transformando e dissolvendo o espirito de no. E
dirigindo-se ao Fantasma dolorido
Quero sonhar primaveras e ninhos
Na luz da tua voz suave e maguada.
Ai, deixa-me esquecer amarguras, espinhos.
Por isso to entrego
0 meu coracao,
Assim como um cego
Entrega o bordao.
1)ispersa-o na terra,
No eel] e no mar,
Nos robles da serra,
No sol e o loan
Quero ainda lernbrar na noite macerada
Que eu um dia sonhei imaculados ceus,
Que eu mu dia fui puro, o Rahniin desolada.
E enplicante, n'uma onda de remorso
e o desejo immortal e dolorido :
Falla...da-me o perdao...Que tormentos os ineus !...
Todo o jardim estreusece subitameute, ti ado
de uma luz finissima, ehuia de volupia e perfunits
turbadores...Derrama, como um balsam°, sobre a
terra, uma longa, lenta, rossa caricia. a aurora...
inteir=o Sente-se
arvors..,do despertando ; u fulhageln
densa, verde, suavissima palpita; 'I7retne U vonvoleiro secular ; desaparecem da superficic da higoa
as fibres nostalg,icas. E 4 fautasma de Sita, vend°
tremular nos olhos do 31abaraja a sua film imagem
6
32
como uma estrela, perdida n'um mar de tempestsde, volts a face, toda compaixao e piedade, para o
Esposodesgracadoe arrependido. Estremece. parece
evanuir-se nes pritheiras caricias da aurora...
N'um grito supremo de agonia elle :
nao subir na luz men coracio a Deus
Nota final
I
Quernmoapzdhrsbenoa.
Da.-me o perdito, Sitt ! 6 Sita-bay
E' profundo o lago onde o fino e brain° pertil
heraldico de Sitis apparece sobre urna grande for
de lottu3...Elle avanca como para abraci-la; abre
tkos brawls macerados nas duras penitencias...E ella.
dolorida e dote, leve como espurna no limpido azu I
da manhfi elysea desaparecendo :
Adeus
Canto= os moluonye. Abram as rosas. Ingenua e
linda a face do Ceu parece sorrir. E a grande yes
harmoniosa da Vida sobe, suave e balbuciante ; como uma nu vete de incenso, saudando o Sol.
...Ravana. King of Ceylon, heard of the beauty
of Sita, and in the absence of Rama carried her
off... and took her to Ceylon. llama, after a long
search, obtained clue of her. lfe made alliance' ,
witheldrbsofw,cedvrto
Ceylon and laid. seize to the capital town, Lanka,
with a huge army
At last, Ravana himself,
who is described as a monster (13,41xaca) with ten
heads, came out and was slain, and Sita recovered
by Rama
and Rama returned to Ayodhya or
Oudh and ascended his father's throne. Hut the
People judged Sita harshly and considered her
tainted. And Rama, weak as his father, yielded
sent his pure and faithful wifO to exile
But there was no joy in store for Sita. The
breath of suspicion had clouded her life and Sita
s ank into the earth, the field-furrow, which had
given her birth.
•
(Rama ye
iNDIA—Romesh
0
01 VI /.1 CA TI ON OF
C. Putt).
;,
— - —
2, — ama divindadn hindti, de GOa, e OM',o trine
•de DtirgalkSerern,"..
Vech.ca
. ; a iatureza, Fisposa d,q• Brahxn Parakriii é a personi8.eacao da foY9a.
.
:
Rahnim—Rainha.
cabecas.
Ravana— Rei de Lanka, nakzara (Monstro)
da
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METEMPSVCOSE
AO DR : ANTONIO DE NORON ti A
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0 Ideal é insaciavel como o Amor: e a
Ambicao incomensuravel como o Intintto.
S6 a Morte é salutar, perieita e puriticarlora.
(Theoria brahmannica)
0 verme disse um dia:—.6 grande e doce Brahma,
Sendo Vos da justica e da bondade a chamma,
Df-sies a tod9 o ser sorte assim tao contraria
E a mim, um cute igual, me fizestes um parial
Quern me dera ser flor, que é linda e tern olorl.
• E Brahma transformou o verme n'uma flor.
tt—ttilf
•
ivfARIANO ORACIAS
TERRA DE RAJAHS
A flor
—NAcham-me finds, sim, mas presa ao solo estou!
Quem me der' subir to azul, erguer v8o
Qual love borboleta l... 6 Brahma viedoso,
Dae-me o sumo prazer, o suprassumo gozo
De no espaco librar, qual alma de poeta I....
E &llama transformou a flor em borboleta.
A iguia entao falou, ironica e magoada:
—•Vejo diante de mitp a abobada estreladal...
Ah! quem me dera a mini, a imperatriz do Azul,
Ser uma estrela assim, do Cruzeiro do Suit
Uma ware a luzirl Oh! que coisa tAo
E Brahma t
ormou a iguia n'tima estrela.
A estrela
E disse a borboleta arisca e atnbiciosa:
—•Triste destino o meu voar de rosa em rosa
E, eternamente muda, ouvir os passarinhos
lempre a cantar, talvez saudades dos seus ninhos...
.Quem me dery cantar assim meiga e suave!.
E Brahma transformou a borboleta em ave.
E suspirott a estrela, a estrela a mais luzente:
—6 poderoso Brahma! 6 Brahma complacentel
De que serve esta luz sem a do Sentimento,
Sem o grande clarao da luz do Pensamentot...
Dae-me, pois, essa luz que s6 de V6s diurana•.
E Brahma transformou a estrela em Alma Humana.
•
E o passarinho dine, em cima da palmeira:
-.•Mais alto do que eu voa a iguia ligeira.
Ohl como doe ser sublime e grandioso
Contemplar, la do espaco, a terra e o mar tormoso
Brahma, atendei a qualm, e o Vosso Seio afague-a•.
E Brilhhma transformou o passarinho em agnia.
A Alma
Falou por fim a Alma, em triste desalento:
—•Mas que iguda tortura a dor do Pensamento!...
Antes eu fosse um verme, um simples infusorio,
E da D8r nao subira 0 grande promontoriol...
Sofri, lutei... NA° ha nada que me confortel
Hoje s6 ambiciono a santa paz da Morte.
35
MARIANO ORACIAS
Ah! pudesse eu dormir na funda treva mudat.
Brahma nio
se moveu.
Mas eis que.sdrge Buddha,
0 grande pensador de larga ironic calma,
•£ corn o seu Nirviinna aniquilou a Alma.
•
zwirstsa=zrallIENIMI.a.111111•2117510":•10167140eL
Naselmento Zifendoncit
AISE/S
DE) BENAREs
1940
TIPOO It A Fr A RANGEL,
fi
1, t. or
Os Douses de Benares
Ternerario e format juizo sobre uma obra inedita deixada por urn
escritor.
De urn modo geral, a obra nao satisfaz o autor. Eta esta perfeita
na sua mente; mas, na execugao, pareceu-lhe que falhararn os seus meios
de expressio.
ngelo, ante a estitua de Moises, significa
0 " parla I " de Miguel A
que esse titan do cinzel nao se deu por satisfeito ao completar a sua obra.
Afeigoando o mirmore bruto a modelagao da figura, nao the transmitiu o
sopro de vida corn que na sua concepcio ele a via animada.
Ao contririo; a obra publicada pelo autor pressupoe que eta chegou
iquele ponto em que a auto-censura do escritor, bem ou mat, the deu o
seu imprimatur.
Por esta razao, temeraria e a critica de uma obra inedita, encontrada
no espolio de urn escritor.
Que prodigio de beneditina paciencia nao operaria o autor, corrigindo,
ampliando, refundindo, retocando a sua obra ?
Está neste easo "Os Deuses de Benares'' de Nascimento Mendonga.
A obra nao foi publicada em vida do autor, e dela existe apenas uma
copia, onde se notam atgumas falhas. Pelo talhe da letra, si:nplicidade
de alguns erros, troca de caracteres, mews descuidos, parece ter side uma
crianga o copista. De quern chegou a perfeigio do poema—Vatsali-na propria base do poets o seu " ultimo canto do Cisne", havia a esperar
que alguns desbastes fizesse no original antes de o dar a lume.
A exuberincia, é certo, o ornato excessivo, e uma caracteristica da
sensibilidade artistica oriental.
A•pesar, porern, do que podemos notar de excessiao—que é afloat
urn defeito das suas q ualidades—estao patentes na obra inedita " Os
Deuses de Benares" os aspectos marcantes da inconfundivel personalidade
o riginalidade, profundeza, emotividade.
literiria do autor
0 "caso literario—Nascimento Mendonga", é de-veras surpreer.dente.
OS D USES DE BENARES
OS 'DEUSES DE 'BEN A RES
Nascimento Mendonca era, sem citivida, urn escritor, um escritor-artista double de urn pensador.
Nao s6 a forma de que se servia, a sua maneira, a das mais belas ;
rnas, o fundo das suas obras e sempre alguma coisa de apreciayel.
As suas irnageas sao quasi sempre ineditas. imprevistas, bizarras.
Pouco ha de vulgar . comum. A facilidade, prontidao, viveza, corn que
e!as the acudiam, é ainda uma manifestasao da sua pujante sensibilidade
artistica.
Prosa ritmica ; plasticidade de expressao; frescura de tintas ; estilo
1: MOS°.
Naseimento Mendonsa tinha, em vez de nervos, feixes convulses de
fi electricos. Foi corn eles, vibrando na intensidade maxima dos seus
ar.-)xismos de artista, que escreveu as suas obras.
Surpreendente, na verdade, esta organizacao artistica, que tanta
Beteza procluziu, pela &woo do talento, nurn mein em que todos os
estimulos the falharam.
Como os pelicanos, arrancou, fibra a fibra, do pr6prio peito, a carne
palpitante da sua obra ; irrigou-a, nas crises agudas da febre de criar, corn
o seu proptio sangue a escaldar ; transmitiu•lhe o fremito dos seus nervos
convulsos; deu-lhe o alento vital da sua pr6pria alma. Foi, transfundindo
ra sua obra a propria vida, que ele se consumiu, como uma fogueira se
consome para dar calor e brilho a chama. E' por isso que a sua " alma
de artista resplandt ce na Luz eterna da Beleza imortal que criou.
4
" Os Deuses de Benares e a crise da consciencia que, tendo
perdido as creugas, procura readquiri-las. E o grito do Hornem que
-.•conhece a inanidade do Pensamento,para . responder a todas as curiosidaJez, do Espirito. resclver todas as clavidis da Ivteligencia saciar enfim a
sale de lnfinito
E a tortura daritesca do Hornern que, sentindo-se uma fragil
c..-nlstrusAo destinada desaparecer, se deixa dev3rar polo anseio de'
i,nortalidade. Conflito eterno entre o destino da materia e o impulso
espontineo, irreprimivel. do ser em se perpetuar no Tempo.
,
*.
Urn inoso, e,n Ilor, tendo vivido a vida convulsa da cidade, asso-
nhoreando-se das conquistas da Ciencia, das lucubragoes do Pensamento,
sentiu urn dia essa crise de consciencia. 0 seu espirito, esclarecido polo
sol claro, limpido, radiante do racionalisrno, sente a falta de alguma coisa
mais. Ha tun vacuo na sua consciencia que a Razao nao preenche.
E entao que ele pensa em se restituir as sum antigas crencas.
Procura urn Rixi para o " ensinar a crer para the revelar a Verdade.
Nesta disposigao de animo aparece-the urn Deussar, especie de
Mefistaeles de Goethe, que o dissuade do seu intento.
Deussar demonstra-Ihe que o que ele procura, nao é a restituigso das
crencas perdidas ; mas, que 6 vitima de uma ilusAo do seu egoism% 0
que ele, afinal, pretende é a—imortalidade, a arnbigao louca de se
perpetuar. Jamais podera ser como Rixi, porque o Rix! nAo deseja nada.
Ele é o puro crente, " cre por crer " sem esperansa em recompensa alguma ; pois, sabe que o espera o aniquilamento total do err na absorg.ao
nirvanica do Todo.
Deussar incita-o a voltar para a cidade. Serao intheis todos os seus
esforcos para se reintegrar na crenga dos seus maiores.
As hesitagoes do mancebo, os seus conflitos intimos, as visaes
alucinadas da vida, o prestigio tentador da Beleza sob os multiformes
aspectos que a natureza oferece, o holocausto do Pensamento na ara sacra
do seu sincero anseio de purificagao ; e, por outro lado, os comentarios
satinicos de Deussar, as suas aliciantes solicitagoes para the dar urn sentido
super-realista da vida, sao os epis6dios do Drama, conduzidos por mao de
urn verdadeiro artista, preocupado seriamente em decifrar o enigma da
alma human.
"Os Deuses de Benares" nao destoa do profundo, belo, original poema
Vatsall, coroa de gloria do admiravel poeta que foi Nascimento Mendonga.
0 Instituto Vasco da Gama, publicando " Os Deuses de Benares"
pratica urn acto de benemerencia. urn born servigo prestado as letras.
A obra fica arquivada definitivamente no seu Boletim, para recreio
espiritual, estudo, incitamento das gerasoes vindouras. Bern haja, pois, a
ilustre Direcgao.
guy •ntettr4
6. 1.-
OS DEUSES DE BENARES
I
E o Rixi fixou em mim os seus grandes olhos luminosos...
Ulna leve aragem the acariciava a pele bruna. Na lonjura uma
rOla arrulhava amorosa e nostalgica. Sabre a nossa carne era
uma leve soda escura a sombra da figueira sagrada. E eu disseihe suplicante
—Serei teu discipulo, Mahatma; ( 1) levarei pelas povoacbes
a tua escudela de pedinte; mendigarei poi - ti. Queres ?
Pareceu•me hesitar...Urn compassivo sorriso tremulou um
instante nos .seus olhos. E eu continuei, fervoroso, suplicando :
Aceita.me, nao tens ninguem que peca por ti. Precisas
de um discipulo; todos os velhos Mahatmas o tem. E eu preciso
um Mestre que ensine a verdade a minha alma cativa de enganos. A sede encheu de areia ardente a minha garganta. E
teu sorriso a Agua da fonte nas cumieiras aridas. Serei teu
chelii, teu servo, teu discipulo". E eram de piedade os seus
olhos. Mas a sua bOca estava muda. Como num claro lago se ye
o. seixo pequenino, nos olhos via-se-lhe o coracao virgem e forte.
Mas em vao procurava neles resposta as rninhas stiplicas.
IJm
silbito vapor de enternecimento, e talvez de ironia, embaciava
o vidro transparente. E eu:
—Tu estas vent° e possucs a verdade.
A verdade fez-te
inabal:ivel, perfeito, sereno. E's como um cristal raro; betn te
vejo a alma. Parece um veludo azul desdobrado sObre urn
im.rrnore liso. Nem uma ruga, nem um vinco. As ventanias
da vida, que sao Dor, Desengano, Davida, Negacto nao te acabrunham nevi confundern. Ern volta do lago ha muralhas altas,
colinas verdes. Nao rota a sua tranqiiila superficic a asa dos tufOes. Defende•a um basalto sagrado. E' a verdade. A fora do
jangle de longe a espreita e loge. A ambicao, quando de ti se
aproxitna, a como o tigre que esconde a unha aguda, terra os
(I) Asceta, super-homem
4,
OS DEU SES DE BENARES
dentes, Ora a respiracao ao enlacar o clomador nos circos de
Deli...Ensina aos homens a tua Lei.
Estas velho, Maharaj I
Entrega-ma. Eu heide levy-la, corno urn archote, pelas noites
cerradas.
Ele interrompeu-me, num murmtirio de folhagem nova e
redolentc:
— eMas quern entregaria uma tocha a urn incendiario ?
E eu, impertubavel:.
—0 teu poder espiritual, a tua lei nao é o fogo dos extermfnios. Se o fosse, nao me enganava. A tua alma seria uma agua
turva, como a do sabio que, buscando um electuario, encontrasse
um veneno subtilissimo e irreparave1; como de urn rei que tivesse
em uma jaula bem fragil, tigres sanguinarios:
—Vens da Cidade. Ha vapores maus, condensados, d- entro
de ti.
—Mas sou mom inflamavel, sincero. A tua palavra sera a
asa para o meu vex); sera a agua para a minha sede. Mal te oico,
meu coraca'o ergue-se em sobressalto. E' como o elefante seden-,
to quando ouve, longfnqua e macia, a voz das cascatelas. Desperto de urn sono de chumbo, meus sentidos carrilhonam alacres
numa esperanca.
--Tens sentidos teem comilhos e teem venenos.
—Purifica-me. No jangle, ha paharis (1) que dorninam o
nagha
Teem o mantra (3) que the embota o dente. E tu que
subiste o Himalaia, abriste a , alma os sois da Pureza, encontraste a
verdade, nao poderas tu, o' servo de Brahmadeva, curar urn
doente ?...Na cidade, os garopeiros faziam (Ungar, de capelo
aberto, as cobras que sao a Morte; enrolavarn nas nos bravos,
num cestinho de bambd as fecharam. E tu, Mahatma, 1 nao
podes arrancar - me da carne uma pequena vibora desdentada, para impedir que a sua baba me tolde os sentidos ?...
Has•de deixar que se envenene dentro de mim, com o desejo de viver, a Esperanca do resgate ?...Venho cheio de fadiga;
—
t
-
Montanh6s•
(2) Cobra de capelo.
($) Palavras de feitico•
(I)
tr
OS DEUSES DE BENARES
OS DEUSES DE BENARES
tenho chagas nos yds. Mas que importa ? Hei. de subir contigo a Grande Via; comtigo irei a Kassi, a Pandarpura, ao Tibet.
Nos parans onde o vatsura cozinha e o gado rutnina e o pathan
espreita, hei.de lavar-te os pas, compor-te o leite, encher•te a escudela. Pelo caminho, a teu lado, a minha mocidade transfigurar-se-a. Hei de aprender a amar, a crar, a esperar. Mais aces que as cantigas das raparigas de Patiala sera() para mim os
murmurios da folhagem nova, das ervas altas calcadas pelos yeados. Mais do que a dos mogareiros do Guzerate, ha-de penetrarA minha ttinica
-me e cativar a docura do gado das caravanas.
sera leve como espuma, mesmo no frio Dezembro. Irei descalco,
e as pedras nao morderao meus pas. 0 sol nao chamuscara a
minha pele. E quando, findo o dia torrido, seatir a asa da aragem sObre o peito sera como a Imao das mais, perfuinada nos
unguentos das noivas, untando-me a pele de Oleos aromatiaos.
Eis o meu sonho
—Crianca I Pobre louco ! b Pensaste acaso no amargor do
desengano ? E os olhos do Mahatma penetraram-me a alma, como um amigo condoido num palacio em ruina. Mas a sua piedade parecia nao ter braces para abracar a minha miseria. Debrucara-seide tao alto sabre o coracao que implorava, como uma
princesa aria, dos seus varandins de jade sabre urn mendigo secriyado de lepra.
Eu vinha da Cidade adusta e sumptuosa, da luta sem nome,
do incendio sem fim, 0 homem ali, era a maquina impelida
pela fome, era o ferro sempre em brasa ; era a carne comida de
tilceras, 56b tuna pelucia divinamente suave 1 Ali haviam-me
assaltado a luxtiria, a ambicao, o orgulho, a dtivida. 4 Que me
restava da alma limpida e imponderavel ? Uma fera sedenta,
fechada numa jaula diante de um veio de agua. Era toda gumes
a forca que em mim havia sido fecundante e acolhedora. De
grandes forjas yinham-me, todos os dias, para os meus instintos,
freios, cadeias, grilhetas. A minha liberdade ajoelhava humilhada
entre as ayes cativas e as (eras acoimadas do Maharaja de
Kapurtala. Agora, g quern me trazia, quern, no jangle secular,
por ignorados trilhos ? Havia caminhado coin os fiats e os
pan jabis, os pastores e os parias, cozinhando nos parents, som-
bra dos tamarindos, o meu arroz. Tada essa rude gente, porta•
dora de urn desejo vivaz e fremente, possuia uma alma virgern,
macia como o peito das rotas simples, mtirmura, elastica. A sua
linguagem era como a das aguias da floresta. Falavam de to da a
sua familia, os filhos, o gado, os arrozais. E a sua voz era para
mim uma caricia de densa ::.amponesa afagando um veado.
Como seria doce gozar a sua intimidade feito discipulo do
Mahatma!
Era aqui a Beleza, a Grata, o rtibido fervor da vida. A
terra, que eu via, que o Mahatma docemente me ensinava a ver,
era, na verdade, o parafso sonhado.
Aqui tudo rebrilhava e cantava, lembrando o sonho que eu
acabara de sonhar no berco e que nunca mais 2ara mim voltara,
batendo as asas de oiro atraves do Ioiro ar da minha terra, a hora
inefavel em que o gado recolhe as povoaceies sossegadas. E o
que mais embalava a minha alma cheia de feridas, o meu corpo •
coberto de sangue e p6, o meu pensamento lacerado e roxo, era
a certeza de que, nesta ebriedade da vida, ensopacia em lux,
polvilhada de ritmos, a alma do homem ainda se conservava candida e simples, transformando a pobreza e a miseria em abun.
dancia e contentamento. Eu via os regatos pela primeira vez ;
eu via a igua beijando a terra, fecundando o seu veutre de
misterio e de magia, resplandendo nas explosael de luz, humilde
e divina,—leite correndo de uma teta sagrada para os cardos e as
rosas, para o tigre e a pomba. Eis o milagre:--eu recobrava a
vista ; a minha alma tinha olhos. E agora, coin° as povoacoes
do jangle, eu poderia falar corn os Deuses e dii.er-lhes as minhas
penas.
E seria completo o meu resgate. A vida do homem era
como limpido sulco das correntes, dos pequenos e placidos
veios de agua deslizando atraves da verde pluinagem das ervas
nascentes.
Para ser como essas gentes calmas eu vinha da cidade,
zendo na minha carne dolorida o desejo de me reintegrar na
crenca dos Maiores.
1. E ter-se-ia transformado aqui este desejo em proposito
espiritual, em resolucao disciplinada, reflectida e integrada, como
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urn sangue vivo, na minha substancia ? Na.c. sei. A magia da
vida penetrava-me tao suavemente, que eu preferia sonhar a ter
de responder as minazes e ervadas interrogacoes do meu espirito.
Aqui cu encontrava Oda a grata do Paraiso correndo a
convidar o sol ao primeiro gorgeiar das ayes, trespassando o meu
ser e deixando a raiz da minha substancia urn fulvo rastro de luz
doirada. 0 meu desejo transfigurava-se talvez. Era agora a
ovelha rnansa bebendo a beira dos regatos ; e logo ei-lo mudado
em novilho rolando o corpo forte e fremente nas ervas orvalhadas das lezirias. Eu renascia, e haviam de renascer comigo as
minhas faculdades, que, de tanto exaltadas, iluminadas, engrandecidas, eu s6 as lograva trazer para o jangle crepusculares e
morrentes.
Acampando a noite, a sombra das mangueiras, ou dormindo
nos plums, eu lembrava as vaias fumegantes e mas, com que
haviamos afugentado os Deuses da Cidade, pondo em seu logar
ideas, simbolos, aspiracO'es, constantemente, eternamente renovadas por nab poderem encher-nos o vicuo corn normas de consciencia c regras de conduta.
Criamos a liberdade, inventamos UM ceu na terra. E a
terra havia visto desfeitas milhares de creacoes da nossa vontade
cativa, da nossa imaginacao dolorida.
E eu disse ao Mahatma :
Duvidas, Mestre, duvidas da minha pureza, da pureza
da minha alma ? Ves a minha face A minha palavra a para
ti como a bailadeira, enjoiada para as festal no pagode. 0 seu
sorriso é mentira ; o rubor dos seus labios, deu-lhos o betle.
Mas tens a vista forte ; has-de ver-me o coracao se quizeres.
Z O sol descia em poente incomparavel. Na terra ardente de
Hind ajoelhar-se-iam agora milhares de criaturas, recitando a
gaiatri sublime.
Eu disse entdo, como um gemido :-Se como o sol, Mahatma ; purifica-me
Ele sorriu, estendeu a mao bruna e magra, e entregou-me
o seu coco de rner vasio.
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II
Quando todo o parau dormia, na docura de tan luar esplandido, maravilhosamente branco e suave, veio sentar-se a meu lado
urn Deussar Branco, urn formoso Diabo, de longos e fulvos
cabelos, os olhos negros e penetrantes, a b6ca en6rgica e fina.
" 1 Que yens fazer aqui, Mohanlal ? preguntou-me. Deixaste a
Cidade de luz e tomaste o caminho do jangle E' o que devias
ter feito ha muito tempo : a tua energia morrente exigiam-no.
Mas que 6 que vais fazer no jangle em companhia deste pobre
velho que dorme a teu lado ?
" Venho em busca dos Deuses dos Maiores, respondi. Nao
me voltara a satide e a alegria sem que primeiro eu rehaja a
crenca que perdi.
" Ah I E's um vencido I Essi crenca que procuras rehaver,
e a ave azul para sempre moita. Para ti ela nao ressuscitara.
Criaste o espirito numa atmosfera de escarneo, do zombaria, de
desddm e de 6dio para todos os Deuses. Has de •rtr agora--e 6
bem tarde—que essa atitude 6 indigna de todo ' o homem que
pensa...
" Sim, admito-o, atalhei inflamado. E arrepeado-me."
" Nao te exaltes, continuou ale. Escuta Eu nao digrique
as supersticaes religiosas encerram a Verdade Absoluta. 0. que
te digo e que elas nao merecem ao homem que pensa esse desdem rancoroso que foi a caracteristica da tua aqitude. Sebre
essas supersticoes paira ainda a sombra da Verdade. Mas nao 6
por causa delas que segues Mahatma. Estas doente, exiusto,
desiludido. Procuravas na Cidade, corn a realizacao dos teus
ideiais, pao para todas as fomes, agua para todas as sedes. Pura
ilusao I Quem te havia de outorgar a imortalidad• ? Quem havia
de reintegrar-te no sagrado amor a Terra se te endoidava o
horror da Morte ?
"Ve o Mahatma, disse sinceramente, querc' ser como 61e.
Manso e puro como urn veio de agua.
" Perdes o tempo. Nessa guerra aos Deuses, nao obedeceste
a urn espontaneo movimento da tua alma, ou da tua consciencia.
Submeteste-te as manhas ruins da tua vaidade. Findo o corn-
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to
1! -
OS DEUSES DE BENARES
bate, procu rl aste em Budha, na sua divina doutrina, normas de
consciencia e regras de conduta. Os teus legionarios fizerarn o
mesmo. Depois, incapazes de compreender Budha, derrubaste-o.
E nao contente coin isso, nao contente coin o ideal em cujo nome
havias lancado o grito de guerra, pedes a imortalidade, que nao
cabe dentro desse Ideal, e que a tua propria Razao repugna. z E
enlouqueces de horror a morte ?... Deixa essa cobardia ; vern
comigo ; iremos pelo jangle juntos, adoras a Terra formosissima
que nao conheces, e depois regressaremos juntos Cidade...
" Eu
Nunca ! bradei.
" Estas louco. Rehaver os Deuses... procurar uma moeda
de cobre que se perdeu num areal... A possibilidade de encontrar a moeda,nao deshonra talvez o raciocinio de urn mendigo
corn fome ",
" Mas eu...
" Sim, tu... Se te contentas corn precaver-te contra a possibilidade da existencia dos Deuses ; ou que been duro pode ser
o... teu castigo, isto, pobre doente, nao a recuperar a crenca
perdida, nao e crer ; 6 traficar... E nao estas velho, nao estas
cad uco. "
" Deixa-me, clamei corn rancor. Quern es tu ?... Vai-te I
" Sou teu amigo e teu Mestre. Se fOsses capaz de ser um
crente, como aquele pobre Mahatma, que nao aspira a imortali3ade mas ao nirvana, porque ama a Terra, a Vida, a Beleza dos
'nuncios, se fosses capaz de tanto heroism° espiritual, deixava-te.
Mas tu vais ser, se ja o n5o 6s, press de enganos. A tua Vida, que
podia ser bela, vai ser uma alucinacao, urn delirio. E se a sadde
da alma te nab voltar, ai de ti !, sera a Noite eterna em tua
consciencia. E's urn renegado ; e assim que te consideraram na
Cidade Santa. Agora es quasi urn renegado da Cidade de Luz.
Calcaste as crencas dos Maiores ; ser-te-a impossivel abrir para
elas, comp um templo, a tua Consciencia ".
" Mas deixa-me, deixa•me, insisti furioso. Eu sei o que
procuro. Errei, emendarei o meu erro. Irei corn o Mahatma
para todos os lugares Sagrados de Hind. Esquecerei a gelatina
pelasgica, as Hipoteses Maravilhosas, o pretnio de consolacao
que se chama a Cdlula Itnortal. Esquecerei tudo. A tudo
hei•de preferir a heranca dos Maiores, os tesoiros da minha Raca.
E' urn dever de consciencia. "
" A tua consciencia cambaleia ; as tuas faculdades dimi- •
nuem. Escuta! E's urn vencido ; urn perdido. Nao podes
salvar-te. E 6 meu dever ajudar.te no born caminho.
Nao obedeces a urn movimento do teu espirito; es UO33
vitima da fraqueza da tua carne. Mas essa fraqueza 6 acidental,
temporaria. Vern comigo. A vida vai ser para ti um hino de
tritinfo ; riso, amor, alegria. Vem 1"
" Nunca I Nunca 1 gritei aturdido."
" Virds, viras.... Se foges agora ao raciocfnio, has-de submeter.te ao meu sarcasmo, a minha zombaria. " ,
E desapareceu. •
III
Ao nascer do sol partimos, o Mahatma e eu. Todo o parau
havia despertado. Chiavam carros, mahars praguejavarn ;
bandos de lavradores passavam falando alto, seguilos de MUille•
res silenciosas.
Tomamos o caminho do jangle. Anis de Mahatma eu iria,
moco thela de 25 anos, a Pandarpura e a Benares, a todos os
Logares Sagrados de Hind. Eu era na verdade urn vencido.
Todos os meus sonhos haviam desabado miseravrAmente. Morrera em mim o Desejo que fecunda. E do ser escolhido, que
sonhara criar na Terra a estirpe dos triunfadores, insensiveis
Dor, ao Tedio, 56 restava urn naufrago exausto que o mais leve
arfar de agua dcsviava do caminho.
De olhos abertos, andando devagar, ao lado do Mahatma, eu
sonhava agora o meu novo sonho de resgate, evocando rapida.
mente, em bruscos parentesis de loucura a minha obscura e
ensanguentada tragedia.
Passavatn perto as boiadas enchendo o ar corn a voz ingenua
e divina dos chocalhos.
Cantava heroismos de pandavas, os epicos guerreiros de eras
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OS DEUSES DE BENARES
OS DEUSES DE • BENARES
longinquas. ?mores de Krishna, idflios de Apsaras, ao som de
pequenos pratos que brilhavam como oiro. E na sua cancfto
como num dace chalrar de fonte, finas almas amorosas se erguiam
para engrinaldar o aco marcial de gloriosas armaduras. Mas
ningut:tu parava a escuta-lo. NTAo era essa coin certeza a
hora propicia para a evocacdo dos herois. Boeiros gritavam ;
havia alvorocados gorgeios no arvoredo. A luz nascente, como
LIMA CalICAO de ave no primeiro voo, na silva tutelar e fecunda,
enchia, alagava, ensopava a Vida no desejo sagrado das mais
radiosas transfiguracaes, na esperanca e na certeza indomavel de
todas as supremas possibilidades. A Dor de ontetn radiava,
fundia-se na Alegria da manila. Alas todos os sons se adelgacayarn para chegarem aos !netts ouvidos. Eu sonhava e recordava.
A minha recordacao, porem, era urn fantastic° resumo de sonhos mortos, • de antigas dOres inolvidaveis, de lutas, nevroses,
delirios. Que procurava cu na terra, meu Deus ? Armara-me para derribar as oligarquias celestes. Mas, buscando trofeus,
encontrara cinzas. Aguas de mar profundo, ventos, vulcoes,
tudo quis submetido e passivo diante do meu desejo, desnudando aos meus olhos o seu Intimo segredo.
Sonhava... delirava... Eu era outra vez na Cidade de Luz
corn os lutadores de armaduras invenciveis. Passavam na
frente corn gritos de triunfo, entre halalis e fibres. Tom.
varn-me corn a ponta das lancas clamando ;—" Luta ou Passa ".
Detinham-me no caminho zoinbeteiros :—Luta e goza. V amos
conquistar o Sol ; sera no ver5o torrid() como um luar virgem e
suavissimo e ha de aquecer os parias no inverno, como uma pelicara. Vem connosco ou mata-te. Por Coda a parte se suprime o
fraco, o molesto, o covarde; o desagradavel. E' a Lei.
A caca ao homem corn todos os requintes da astdcia e da
destreza, embebcdava os fortes. E o meu delirio flamejava como
uma grande asa de fogo, faticlica e cruel. Os meus olhos
abriam-se dentro da minha alma. E viam corn horror o desenrolar
da tragedia. Viatn passar, gladios faiscando ao sol, a legilio dos
eleitos. Os pendoes vermelhos como sangue acenavam irresistivelmente :—Vamos imortalizar a Cidade da Luz. AR tudo sera
harmonia e claridade.—E as turbas apertavam-se-llies em volta,
.
rotas e famintas, abrindo o coracAo lacerado as grandes promessas
dos que iam conquistar o Sol, submeter Siirya a omnipotencia da
sua Vontade. Eu via-os nitidamente, corn os &hos bem ahertos,
ouvia o tintinar das suas armas. Todos os olhos fusilavam de
ansia, os coracbes batiam alto na esperanca do Milagre.
Do rude
basalto jorraria a agua para a nossa inominavel Ude ; a laterite
que os nossos p6s calcavam transformar se-ia em pao. 'Eu seguia-os de alma aberta, predestinado para a Luta. Nunca mais
o terror prenderia as almas, nas suas malhas de peconha. Nunca
mais... Queimaram - se na praca as veihos Livros Sagrados, entre
pragas e sarcasmos. Derretiam-se as Imagens de aim nas Caias
de Moeda. Incendiarios passavam agitando archotes, furiosamente, como soldados arias entrando numa Cidade conquis.
tada.
Era uma febre de glAria. Os elefantes sagrados
batiam nos gongs o sinal do alarme. E eu via canfusamente
como k luz de tochas moribundas Sacerdotes de longas vestes
arrancando os cabelos e logo, como aturdidos de bangue, seguindo os legionarios. 0 camartela dos iconoclastas* destruia corn
uma ftiria divina, cheia de ritmos e de faiscas, todos os altares.
As supersticoes seculares, doiradas pela piedade dos humildes,
brunidas pela tristeza e esperanca dos submissos, envOlvidas
em sedas hieraticas pela Acre e Riqueza, volviam em p6' sob as
sandalias dos Lutadores, que as pisavam no mais rtibido fervor
da Liberdade e da Vitoria. Ah, coma seria born, extintos todos
os ecos da Luta, respirar este ar limpo do p6, que, subindo no
ardor dos combates, o turvava e escurecia 1
Deuses... Nunca mais seriam levados nas procissOes come
rajas paralfticos, em palanquins de prata. Naa mais viriam, nas
longas noites tragicas, roubar os filhos as mais e apagar o riso nas
bocas j uven is.
So a face imovel de Budha resplandecia sabre os novas
altares. Milhares de coracaes se embalavam rla serena - luz do
seu olhar.
Foi um instante de pacificacio. Surpresos e fatigados, os
demolidores paravam a fitar o Budha. Empalidcceram, sorriram.
E logo o ruido de urn martelo assaltando o jade toldou o ar. E
viu-se entao erguido' sabre a populaca espavorida urn bronze
-
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OS DEUSES DE BENARES
negro corn olhos de carbtinculos. Era Kali, a Morte. E um
grito, que encerrava uma tragedia, subiu ao cett. Os fracos e os
pequenos haviam visto a Morte negra, torva, sarcastica, quando
o Shimo legionario acabava de derrubar o ultimo Budha de
jade. - A loucura contagiosa e soturna, tomava•nos a todos ern
seus bravos e no desgrenhava os cabelos. Esse grito longo,
ululado, sem esperanca, ensanguentava o horisonte, turvava a voz
ardente das fanfarras, como as enxurradas invadindo uma fonte,
Embalde os misticas, os feiticeiros, os panditas, velhos sabios de
fronte vincada, cobriam corn preciosas rendas a negra face da
Deusa. Todos a viam, eram forcados a ve-la, com o s:at solar
de cranios brancos e cabecas decepadas ainda sangrando, a sua
vermelha lingua pendente, como urn coagulo de sangue... Eu
mesmo tomava urn archote. E seguia os incendiarios.
Legiao admiravel de predestinados Frontes, bravos, arcaboucos de herois pandavas. Gladios chispavam sob a chapada
fulva do sol. Tocavam a sitt(1 do Fitn e da Vinganca. Ressoayarn sinistras gargalhadas. E havia chagas em todos os coracoes.
- Em que pensas, cheld ? o Mahatma perguntou-me como
sobressaltado.
Hesitei, Urn calafrio percorreu a minha carne... Sonito ou
delfrio, deveria eu dize-lo aquele que havia de ser o redimidor
do meu espirito? Era mais tacit a mentira. E eu menti
—Pensava nos Devas de Benares, respond'.
—4Cuidas to acaso que, se nos arrancztm os olhos, recobramos a vista ?
—Alt, MahMtna exclarnei sucumbido. Quero ouvir da
tua bOca a palavra de esperanca.
—E escondts-me os teus pensamentos. Assim as bailadei ras escondem corn sedas perfumadas os dolorosos sinais do
pecado.
Foi entao que the contei o meu sonho tragic° e humilhante. Era como r,e the narrasse todo o meu Intimo passado,
arrancando, palavra por palavra do coracao angustiado, os sinais
das dares que sabre ele tinham passado, conservando-os ate
agora, como o 16do de um charco, gretado pelo sol, conserva
no verao os sinais das tiltimas patas que o calcaram ainda
,
OS D SES DE BENARES
vs
mido e mole. Falava doridamente, como se me toldasse a voz
urn vapor de agonia. E a marcha triunfal dos incendiarios pas.
sava ante os seus olhos, corn os archotes fiamejantes. Crescia a
Arvore do Milagre, plantada por nossas maos impuras e molhadas de sangue, num solo maldito. Medrava,* crescia, frutificava,
E era o fruto de amargura, que a Rua° aceitava, mas o sentiment° contra ele se erguia numa ululante e ensanguenta,da
onda, protestando. Afinal n6s nao haviamos encontrado para
a rtibida embriaguez dionisiaca o freio apolineo... A minha
palavra doida fazia desfilar diante do Mahatma todos o legionarios, brandindo ferros agudos, corn o peito nu, seguidos de feiticeiros e Cantadeiras.
—0' Mahatma! Mahatma! eu vejo tudo com os olhos
ben abertos.
Ele ouvia assombrado a narracao fantastica e tumuituosa
do levantamento universal na Cidade de Luz. Sonho ou delfrio,
era decerto a imagem do conflito que anarquizara as almas,
reflectida na d6r esteril de urn coracao cobarde.
Os homens I... Haviam visto o seu logar de parias no
tmiverso ; haviam palpado corn macs avidas a Natureza impudica, indiferente a sua d6r. A Maya era a lei im.utivel e
suprema 1 Desvenclara-se,.. a verdade. E o sentido do relativo
'acabava por esmagar a nocao abstrata. Todos os Deuses haviam caido no p6 obscuro do esquecimento, que as monies de
Junho nao fecundam em nova e radiosa primavera espiritual.
Profanados os altares, derribadas as Imagens Sagradas,
como a sede de agua nos longos areais de Jesailmir, a
sede do divino, supliciava o pequeno e infinito ser humano. Dos maquinismos formidaveis, rugindo sabre a Ci_
dade o seu alucinado desejo, a sua imensa fome de oiro, nao
brotava, como o 16tus do 16do das lagoas, o princfpio fraternizador dos coracoes, no dever e na rentincia. Descontente da
desgracada posicio zoolOgica a que se havia reduzido, o homem,
levantava a fronte rebelde, e estrangulado pela ansia de nao
acabar ..como o sapo e o verme, partia em busca de uma garantia da prolongacao do eu para alem da Morte.
Almas vulgares, varria-as de r6jo um yenta de loucura. E
iH
a
OS DEUSES DE BENARES
16
OS DEUSES DE BENARES
eu, t que buscava eu agora, atras de que inestimavel Mentira
corria atraves dos jangles do meu pats ? Um longo atavismo
me prendia ao Mahatma. A seus pes me inclinavam, pesando
como chumbo, inumeraveis residuos ancestrais, hibernando a
raiz da minha substancia. Sentia-me impelido, num branco
sonho de pacificacao para a sombra sagrada dos templos de
bassi. Era a mao dos meus AvOs, e de todos os Maiores arrastando-rne para o Templo de Oiro, para todos os templos de
Benares... t Incoerencia, delfrio, loucura ?... Nao havia em
mim heroismo ou resistencia. A Razao havia trabalhado o meu
coracao, como urn tigre estracinhando urn veado. E agora,
surpreso e humilde, quasi me sentia renascer, lentamente tocado
da magia da vida no bafo aromatic° da floresta. Sim, era pela
mao da Dor que o homem entrava nos templos para rezar. Em
minha volta a Vida gorgulhava alacre, numa espuma de gorgeios e perfumes. Dos fetos as figueiras a seiva corria, como
urn sangue feliz e omnipotente. Da raiz a flor, o desejo de
river se transformara em harmonia, aroma e beleza. Manso, porem como tuna centopeia, trepava-me a alma a interrogacao
do Mahatma Cuidas to que, se nos arrancam os olhos, recobrarnos jamais a vista ?
Eu vinha, Bhtimia ! das terras do materialismo e da secle.
Ali ficara no p6 da ruinaria, esquecido entre parasitas, como urn
esqueleto num covil de tigre, o meu sonho-de-Beleza.
Embalde haviamos tentado imp& a idea etica a Natureza
improba e bronca.
Heroismo, audacia, sacrificios... afinal para que ? Do
verme e dos Rishis o destino era o mesmo. 0 Mahatma olhou.
-me com piedade, arrancou-me docemente dos meus sombrios
pensamentos.
Uma indomavel, misteriosa kap, fazia circular a vida em
volta de um centro dnico, que, se chama Dor...
Andas como urn cego num palacio encantado. Descem,
descem, descem as Aguas do rio e nao perguntam o seu destino.
E porque haviam de pergunta•lo ? Z Acaso lucrariam em se
revoltar ? Bem sabem como apodrecem as suas irmas do charco
a beira dos juncais... Segue o teu caminho, porque o teu
caminho é breve e lindo.
—Perdi-o, respondi ; por isso to sigo.
Rudemente batido pelas ventanias da villa, fustigado pela
Razao, o meu sonho vinha encontrar no jangle no ./as seivas e
rubidos estimulos, e, a. semelhanca de folhagem nova irrompen.
do no halali de urn ramo desfolhado, eu ja encontrava nesse
pobre sonho transido e triste o primeiro, alvorocado frnpeto de
reverdecimento. Lembrava-me as hervas apontando numa
fina penugem verde, por entre o capim morto, aos primeir0s
beijos da chuva. Seria uma transfiguracao, uma ressurreiclo.
Educar-se-ia no exemplo de humilde simplicidade e calma acei.
tack, que me dava o homem no jangle. Esqueceria 0 fragor
das lutas e a embriaguez das abordagens. Deixaria de ser o
argonauta para se debrucar sobte o arado. Ao nascer do sol,
cotovia alegre enchendo de cristalinos ritmos a luz nascente ;
ao vir da noite chama do lar aquecendo uma familia de aldeoes.
IV
0 Pensamento, eis o inimigo. Para eviti-lo arriscar-me-fa
a passar a mao pelo fulvo lombo das feras, ao vir da noite, quando um Sopro escuro sobe das florestas e cobre o sol. Tria
cuspir no mosaico precioso de uma mesquita na presenca de
rajas moiros ; fora eu, moiro, beberia vinho ; sendo bramane
banhar-me-ia no sangue de uma vaca.
Obsediava-me o desejo de nao ver, de estreitar, como um
paria, o horisonte a. minha consciencia cada vez inquieta e
ansiosa, quanto mais iluminada e definida.
Detestava as fulguracoes alucinantes do Pensamento gravessado pela ddvida, fosforecendo de angdstia, faiscando, ful.
gurando, flamulando na dor e na saticlade, atraves da vida,
como um aguaceiro trespassado 'por uma lista de, sol. Eu
abdicara, por isso ; desertara das trigicas e divinas legides da
cidade de Luz. Mas aqui, ao lado do Mahatma, que soubera
IS
4
OS DEUSES DE I3ENARES .
aceitar a vida corn um heroismo sereno e inviolavel, ondulava
em mini, jorrava e tintinibulava urn instante sabre a minha
alma um vago, ritmico lampejo de longinquas energias ascencionais. Sonhos de infante batiam as azas de oiro aos meus
ouvidos. Definia-se o meu ser, livre ja das tutelar dogmaticas
e obesas disciplinas o sentidci da vida hi muito pervertido,
palpitava e se intensificava no ardor feliz de uma ressurreicao,
como a semente depositada pelo vento na heraia fecundada pelo sol. E p se me abriam os olhos. Eu via, eu queria
ver a Terra, iqUeria sentir a vida ardorosa e multiforme, queria
reintegrar•me na crenca redimidora e simples dos Maiores.
E, em verdade, as Aguas do charco, opacas e doentes, nao
reproduzem, como olhosmortos, a Arvore bela que floresce e
inclina sabre elas... 0 lOdo nao te reflete, a Beleza da Vida?
E a beleza que é ?I como havia eu de sabe-lo 1 Os que se diziam
seus Sacerdotes na Cidade so haviam logrado envolve-la em
nuvens impenetraveis, vapor de venenos subtilissimos, poluindo-a, na sua dor cobarde, proclamando-se, em nome da Verdade, destruidores do Sonho, da divina Ilusao que fecunda nas
almas a semente de todos os heroismos. Nuvens de ansia, de
desengano, de 6dio, de cobicas e calculos torpes corriam a face
do ceu. z E donde havia de vir, meu Deus, pela Graca e pela
Bondade, o vento que as varresse, como os herois vinham, altos
e rijos, pela Rainha formosissima, dobrai o arco de Shiva ?
Para amar a Beleza—ensinava o Mahatma—era preciso
conhece-la, viva e palpitante, cheia de divinas veernencias e de
sobrehumanos estirnulos. Para arnar a vida necessario se tornara
aspira-la, possui•la corn' todos os sentidos purificados e
vivazes, como o sol aspira as Aguas e os aromas da Terra. Era
necessario fecundar todo o sofrimento na esperanya das supremas
possibilidades. E os meus sentidos despertavam. Eu ja comeova a t , jr. Nao raciocinava, nao pensava. Queria, porem, numa
resolucao violenta, mas dulcissima, rehaver para o meu ser a infantilidade que exalta. Abdicando, sem vergonha einquanto outros
ainda lutavam, do'oridos, mas imperterritos, eu apenas desejava a
cura detinitiva dcs ineus sentidos. Fora o recruta na linha de
Rgo, que, sentindo-se ferido, e perdida a esperanya no triunfo,
OS DEUSLS DE BENAREs
•r-
19-
dos primeiros a debandar. Na- o sabia de que lado havia de voltar
a face.
Urna invisivel mao me impelia corn docura para os
jangles da minha terra e para os templos dos Maiores.
Ha quantos anos eu nao via uma arvore, nao aspirava o perfume de uma flOr, nao ouvia a fala pastoril e amorosa de uma
fonte I Deixara de sonhar mas tambem deixara de vim'. Da
sementeira e da colheita ignorava a alegria. Ao despedir•nos da
nossa breve infancia, esquecemos todas as grandes cenas
familiares : ceifeiras cursando-se a cantar a desgarrada sabre os
arrozais loiros, begarins trigueiros, robustos e risonhos calcando
feixes de arroz nas eiras; rebanhos bebendo ao sol posto nos
rigueiros, as radiosas festas agricolas, todas as alegrias simples da
vida. Iamos em busca da Verdade. E eu havia esperado, a
arder ern febre, que bravos poderosos arrombassem as portas
casa da Verdade sonhada, nao para me embalar, para me erguer
mais alto, mas para confirmar a minha fraqueza. Eis-rne emficti
calcado, atribulado, exausto, fugindo a Luz, fugindo ao Raciocinio,
fugindo ao Pensamento. Eu tinha ja a certeza de que para as
almas atentas seria impossivel, finda a Luta dos Gig -antes, marcar
o valor aos trofeus apOs cada conquista, tao angustiados
tinha
visto no regresso os Conquistadores, uma tragica nuvem pairando
sempre sabre a sua auclacia.
Eis-me, por isso, ao lado do Mahatma, feito discipulo do
Mahatma, corn ele vagueando pelas povoacOes montanhezas e
betn dizendo, quasi sem saber porque, o ardor da resolucdo fell;
que me trouxera, ern busca dos Deuses perdidos, atraves da
Beleza e da Docura. Uma stibita revelacao, como uma flar abrindo ao vir do inverno num chao maldito, mos restituiria de certo,
apagando na minha carne a tatuagem dos ideais rebeldes que
urn dia me haviam exalcado ate ao ceu.
Eu pedia agora o que havia arremessado para bem longe
como uma grilheta que nos envergonha e urn Orr° que nos
diminue.
E ansioso, como urn exilado que regressa ao torrao natal e
ye distante a curva dos seus montes, eu suplicava :—Vamos
a
Benares, o' Mahatma! 2 Porque e que te demoras aqui, a dois
passos da Cidade Santa?
6
-
711°'
OS
OS DEUSES DE BENARES
20
V
Entramos no .Jangle. Em pleno Jangle. Entro pela primeira vez no tempto, onde tudo e sagrado e extasiante e belo.
Do gest°, da atitudc!,, da desinvoltura das bailadeiras vegetais,
nansica dos ventos, dos casebres de barro e de col no as florinhas
silvestres, tudo 6 grande e casto e voluptuoso e frernente.
E' pela priweira vez que as minims maos nuas, ainda ardentes e tremulas, tocatn a carne viva e divina da Terra, o tneu
peito encosta-se ao seu, como uma ave frienta no calor do ninho•
Despe-se, desenfeita-se, desagrilh6a-se a minha alma para se
lavar, para se purificar na agua lustral da vida, neste claro,
lumiaoso rio em que as impurezas e as imperfeicOes se transfiguram, se transforman em rittnos, em notas do hino universal.
Na longa, 1evc e cariciosa sornbra do Jangle sinto.me ressurgir de mim proprio, como a herva surge do ehao ao vir das prinieiras chuvas de lunho.
Vivo num templo onde tudo é Beleza e Harrnonia. Esqueci
as casas da Cidade, onde habitam os setins e os vicios, a ambicao
e a rnisdria, e onde ao desengonco das formas, a desenvoltura rnais
ardente tAnta vez zmpresta um brilho capitoso de seducao e de
embriaguez.
Aqui revive o cobarde, que veio exangue e lasso das lutas
sem nome para entregar a alma a excelsa, esplendida e religiosa
poesia da Vida, como aos bravos maternos uma crianca doente.
Nao sei se perto de milli esta o Mahatma. Sei apenas que
estou mais perto do ceu, quarto mais da Terra me aproxitno. E
é no seu halito, seu bafo nupcial e arotnatico, na agreste e
divina docura da silva sagrada, que se ernbebe e se subtiliza a
minha dor. Os aieus sentidos sao como cordas de oiro, abertos
de par em par, para receber o Genio escultural da Beleza.
Situ, a Beleza da vida 6 feita das coisas pequeninas, de fealdades, de sacrificios e sofrimentos. As sornbras, os elaroes,
as tintas da grande tela jorrarn de t6da a parte do 16clo e do p6, dos
4spinhos e ate do gel°. Fluem e jorrarn da mesma fonte, Aguas
ao nnesmo rio, codas, espumas do mesmo mar. Reconheco,
Saitamente reacordado para a perc.epcao do simples e do vcr,
EUSES DE BENARES
4
at
dadeiro, que sdo as miserias, criadoras da Piedade e da Ternura,
que embelezam a Vida. Sinto-o agora, e nao sei porque, choro.
De urna tao grande, esplendorosa e palpitante realidade
fisica 6 tao facil A nossa alma, nela encarnada, reavivada ji em nos
o sangue dos Maiores e charnados ao reconhecimento da mais
sagrada das tradicoes; sim, 6 tao facil a nossa alma a ascencao as
grandes realidades morais. Abrem-se entao suavemente as asas
na luz loira, divinal e docemente emotiva e criadora, diante cia
Beleza fisica para o voo esplendido da Beleza moral !
Vou subindo, sinto que e uma ascencao redentora, na luz
fulva, nesta luz ainda humida e marmura que ernbala as almas e
fecunda o chao. 0 sol atravessa, trespassa, alaga o arvoredo ;
estende-se cariciosamente sObre os basaltos, como se houvesse de
pedir-lhes perdao de os ter crestado e endurecido no verso sera
piedade.
E se tudo é assombroso, tremenda, formidavelmente colossal
e soberbo e ritmico na vida da Floresta, eu nao sinto, comtudo, a
enorme e esmagadOra, misteriosa docura da Terra. Os seus con tactos tem a feminilidade voluptuosa e casta das airosas noivas
de Hind. As suas palavras, sao grandes e ternas como as de urna
mai c as de uma Virgem. E' o estimulo para as lutas quo ennobrecem ; 6 a licao do sonho magnffico e imortal que exalta os
coracoes, é a sugestdo da perfeicao espiritual que me veem das
hervas e dos robles, das pedras e das Aguas.
Entrego me a Terra, e sinto que ela se oEerta a mim, viva e
veemente, corno o seio amoroso e imaculado—tao nobre e perfeita
na sua grandeza, na sua emotiva docura e no seu inesgotivel
amor, que nao conhece tedio, saciedade ou fadiga.
Ah, parar, morrer aqui num extase ; fundir-se, diluir-se,
renascer atraves de,sse infinito esplendor da Formal
E vivem aqui os tigres e os capelos, formosos e terriveis
Sacerdotes de Kali, a Deusa da Morte. E a Terra acolhe-os corn
os mesmos bravos, estende-lhes as mesmas maos cheias de &divas, leva.lhes talvez a mesma sugestao do Belo....
Nao, nao, o' Pritivi, to nao es impiedosa e cega I Sou eu qug
nao desvendo o misterio, sou eu que o torno cada vez mais 'maccessivel, mais denso e escuro e alucinante, o' Terra adoravel !
-
—
4
t2
OS DEUSES
BENARES
U. Mahatma adivinhou os meus pensa.
...E caminhamos.
mentos, ou ele proprio se deixou enlevar nesta ebriedade de
Vida. E nao Pala....
Da Terra eu so ouvia as grandes palavras de perclio para
quern a esquecera nos anos radiosos da sua vida. Todo o meu
ser, comovido e surpreso, reclinava enleado no presentiment°,
quasi na certeza de que eram para o men sofrimento de hotnem e
para as minhas feridas de vencido as consolaciies supremas e o
supremo electuario da Forma inumeravel e da Harmonia imaculada.
Vinha-me na voz religiosa no vento, erguendo-se como urn
cantle° nas naves de um templo, a promessa de uma ressurreicab
espiritual, que jarnais tentara esbocar can a tinta da mais palida
esperanca no meu sonho alquebrado e morrente.
Eu vejo ria Arvore urn corpo que levemente, ritmicamente
ondula numa dansa que é urn poema na maravilhosa euritmia da
sua forma adolescente e perfeita ; o veio de aqua transforma-se,
ante os meus olhos, ern flama de grata, em perfume de cancao
sonhadora e exaltante, em licao da rnais elevada e pura harmonia.
Esqueco, sob o gracioso baloicar do arvoredo, o anacronico delei.
to dos bailados nas festas dos pagocies da minha Cidade, e
ressurjo, numa era distante, em que, da pantera as pairneiras, c do
gado ao homem, se sentia correr, como utna divina chama de
amor e uma hiptiOtica cancao de adolescencia, o mesmo sangue
vermelho e forte que tudo unifteava e fundia, numa suprerna,
lirial c apoteOtica melodia subindo, subindo sempre, como a voz
de um Deus ink° c apaixonado e cotno aroma de urn jarditn
fl orido.
Eleva-se aqui, deste solo abericoado, uma voz potente e, ao
mesmo tempo, fetninina e dOce. E' a magestosa, opulenta, so.
berba expressao da Forca e da Grata, embalando c exaltando,
como a voz de uma Apsara e de um Poeta.
Beijar aqui a Terra, ou ajoelhar-roc para
meu
desejo. E e utu desejo vivo, alacre, veemente, que me trespassa
o coracao, corm um elarao de luz nascente atravessando urn rubi
facetado, e sabre o imp coracao floresce, cotno uma bka flebil e
Formosa de noiva rajputi, num grande beijo de amor e de volapia.
OS DEUSES DE BENARES
33
VI
Sob o luar macio, naquela primeira noite de iniciaclo, no
jangle, eu sentia meu coracao vibrar num sobressalto agudo. A
ponta de uma saudade o despertava como urn lino gume rocando
a carne dolorida de um vencido.
Na Cidade, que deixara, alguma coisa ficava a preader-me
ainda o Desejo. Interrogava-me. Rebuscava a minha alma coal.
paharis que revolvem as ruinas de urn muro onde se oards
lhes esconde, mal ferida, uma cobra de capelo.
Meu Deus 1 quando seria completo o olvido na minha almal.
—Nao dormes, chela ? perguntou-me o Mahatma.
Estendi-me no chao sabre uma esteira de ; unco, a seu lado,
sob as mangueiras altas. Da floresta vinhatn murmurios de
beijos, aromas de divinas virgindades alvorogadas na esperanca
de urn noivado.
Paisagem de magia e voluptuosidade no kite lunar. Suavemente rocada por uma transhicida aza de sortilegio, rumorejava,
fremia no folhedo a alma vegetal num extaiie amoroso. Urn
marulho de cascatelas distantes envolvia tudo num tenue vet' de
perfumes.
Cerrei os olhos, embalado na docura de vozes macias, que
diziam o sonho fecundo da silva tutelar e sagrada.
Erguiam-se lentas as minhas lembrancas, como os feridos
ap6s uma batalha, corn nocloas negras de sangue e de vergonha. S6
uma dentre todas sugeria o vulto esguio de uma princeza no meio
de urn bando de parias. Dir-se-ia, ao ve-la el.tremecer, que the
tocava a pele unida e perfeita o aspero dorso de urn crocodiloVulto familiar de idolatria e loucura, L como poderia esquece-lo ?
A sua presenca havia tanta vez levantado ate as nuvens a minha
alma abatida, alas ao tocar aquela carne feita de llamas e de
langores uma interrogacao havia invadido todos os recantos do
meu ser, como um leopardo entrando, ao vir da noite, numa
cabana de pastores desarmados.—Perpetuar a Dor, perpetuar a
Sede, a Revolta g que mais fazia o amor de urn homem e de uma
mu lher ? E nao seria satanico dar a luz, crear na paixio, que
enleva, almas filhas da nossa, para tragedias sem fim e sem none ?
W5 IMAJ5E5 4E lam' N AKE'S
Mas a Apar.c:'o inclinava agura paramim a taca de sortildgio ;
vestia as minhas in:. 'as de urn alvor de alvorada.
eu invocava todas as tragedias,
E de lembranca en,
amor.
todas as lamas, t3dos os es`asmos
Noites de Lscivia sem fim ! Recordava•as como o paria que,
doido de sede, bebe sem horror a Agua mortifera de urn pantano.
Aquela hoia o Bairro Branco, na cidade, era urn dihivio de
luz. Abrian• se as doiradas portas das bailadeiras ; ardiam resinas raras nos pivetes. Calicoes subiam ao ar,, como dos charcos
maus sobem espessos vapores plenos de miasmas. Havia languidos apelos na voz das murdangas, solicitacoes a carne sublex'acla por uma rajada de cdu. Entrava-se, absorvia-se a podridio
como UM perfume. Bailadeiras de carne rija, que se entregavain a pastores .sabre a herva, traziam para a cidade filhas ao
despontar dos seios, na rubra esperanca das riquezas perenes. E
todo o Bairro Branco era uma primavera, em que se penetrava
corno num pal6cio cheio de perfumadas inaciezas narcotizantes.
Pequeninas, casavam-nas, pobres sacerdotisas do pecado,
corn arbustos fibres alvissirnas, o tulosse ;segrado, os hibiscus,
3s mogareiros. E eram lindas essas ntipcias infantes corn arbustos e fibres. Depois quando, ao vir da adolescencia, o seu
corpo era um nacar entreaberto sob o sari alvissimo, uma Lei
antiga e inviolavel fazia delas um filtro erotdgeno para coracaes
nodosos como cepos, mocidades enrugadas como ameixas.
De rocar nossa carne esfregada corn essencias preciosas vinha
desbotada a minha vontade, transido o meu desejo.
Para all eu havia levado o coracao, como os bandaris levam
a Benares os fiihinhos doentes. E embalde sonhara corno urn
gato em Dezembro, alapardar-me ao borralho das lascivias felinas
e adormecer.
Oh ! esplendor da pele morena ! oh, cheiro de femea tentando e aturdindo ! Todas as asperezas, que uma vida sem esperanca acumulara no meu espfrito, coma as panteras amontoam
no covil os ossarios das presas, eu as julgara amaciarem-se na
radiacao de juventudes requintadas, ebrias de amor.
Sim ; era bem certo, a luxdria desenvolvia a, personalidade,
era como um escultor trabalhando em marmore informe. Todo
RDEUSES
EUSES DE BENARES
o Bairro Branco parecia dizer-mo.
Nevroses, fraquezas, torpezas, tomavam aqui uma forma
tentadora. Mas o Tedio toldava o ar, caia do ceu como unaa fina
poalha de vidro nas alms urn instante erguidas sabre a asa do
delirio.
Eu sentia-me feliz na evocagao do Pecado.
—Amor I Amor !... dizia-me o Deussar Branco votando a
sentar-se ao meu lado. Z Ja o provaste? Ri, maldize, blasferaa...
Ern teda a parte, como um imperecivel aroma, te envolverA a alma.
E' a tua fatalidade fisica, o teu destino. 0 lotus, para atingir
fiorindo a forma bela que assombra, ha•de mergulhar a raiz no
lado das lagoas. Assim o homem, para beber na Taca da Vida o
vinho dos supremos extasis, ha-de enlouquecer de amor...
Maldize, blasfema. Tira do fundo da tua alma as palavras de
como urn cao levanta pilhancas da lama das sargetas...
Aquele velho tonto, que to segues, quando ve passar urn cortejo
de baths, todo se exalta e remora. E' como se um bando de
ayes poisasse de repente sabre uma velha figueira moribunda e
solitaria ... Se o visses ! Rishis, Ascetas! Vos outros charaailhes
santos, inacessiveis as daces solicitagoes do Pecado. Ai, pobres
doentes I e Que faz urn tigre sem dentes e sem garras no meib de
urn bando de veadinhos e chitelas ? E' como um . sao que nao
morde, born companheiro do gado manso... Deixa-os clamar que
o amor é mentira ; deixa-os falar. Tu bem sabes que, misoginos
ou feministas so encontram na mulher um delicioso instrumento
para perpetuar a especie. E gritam depois que perpetuam a
Chaga, a Lepra, o Suplicio... E' verdade, d bem verdade... Mas
que remedio? De ouvi.lo, o terrivel Deussar Branco, vivo e
Macre, como as Aguas de uma cascata, cada vez se enraizava em
mim a certeza de que havia verdades que nunca deveram ter
sido conhecida :,
Era ten-Is/el o sarcasmo no seu riso. Parecia urn vergaiho
de arames avermelhados num fOrno aceso. Falava e ria. E
palavra e riso, jorrarido em uma alucinante desordem, vergastayarn-me o coracao arrancando-ihe finas tiras sangrentas.
—Bern te vejo, cobarde, eu bem te vejo a alma. E's como
um paria atravessando urn deserto imenso e ardente. NI° yes a
a6
r
OS REUSES DE BENARES
sombra de uma palma. Nao ouves o murmario de uma fonte.
A agua que bebes é a sangue de tuas veias ; a sombra a que te
acolhes e a sombra ma da tua dor.
Quedava urn instante, como o narrador que sabe graduar os
efeitos. A monstruosa masica do seu riso feria e maguava :
—Amor I Arnor !...0 amor para ti ë agora mentira, e foi a
concupiscencia insaciavel de urn tisico. Pobre vencido I d Se
regressasses a Vida, remergulhasses na alegria da Luta ?...
E ria alto, passando do pensamento ao caos, velando a lin.
guagem em uivo sarcistico e sangrento.
—Oh, como a bcm ter a flexibilidade muscular dos jaguares,
o sangue vivo dos leopardos I... Os santos sao a Lepra da Terra
...Anda, vem comigo.
E ria, dir-se-ia que a sua boca vasava sabre a minha carne
urn fio de metal derretido :
—A Luta divina, que volapia Ergue-te ; retoma os teus
punhais. Tu nao ve5 as lutas que se travam em volta de ti.
Sores invisfveis baterh-se a teu lado corn o heroism° feroz dos
pandavas. Tudo luta. 0 ardor dos combates mais dace que
o mel.
E logo mais docemente
Que queres ? Aonde te leva esse desejo cobarde de
pada sem brio ? Para a vida simples e natural dos teus av6s,
boeiros, pastores de ovelhas, lavradores, boiraguis? E' tarde,
meu filho, a bem Lard:. As brasas da lareira extinguem-se ; a
familia é urn organisrao ern dissolucao, 6 urn torrao de acucar
numa pOca infects... A mulher... mas tu esqueces, tu nao sabes
o valor da cantarida magica. E procuras a deusa ingenua, que
cura fericlas ao s:u boeiro amanha e engrinalda a dor
ao seu artista... T5.o )onge estas dessas velharias, dessa alforreca
que dava pelo pomposo nome de moral. 0 contentamento, a
alegria, o prazer nao sao agora, como antigarnente, virgens sem
pecado, de candida face. Sao uma taca de vinho capitoso
e espumante. Enche a tua taca... Vamos...Ergue•te.
Ergui-me desvairado. 0 luar manava s6bre as arvores coma
uma fluids soda de (1 , .tsejo e de afago. Era como se urn deus
soltasse a sua noiva o sari de luz na noite de noivado. E o sari
1.
F
OS DEUSES DE BENARES
27'
cilia -sabre a Terra, maravilhosamente branco, ensopado num sua•
vissimo perfume de sonho amoroso adolescente, entre nuvens de
sandal°. Havia solucos, queixumes, langores de comibios
conceicOes na floresta. A voz da folhagem aveludava-se na
docura de urn epitalamio, tremula e suplicante.
Mas a minha mem6ria era como uma selva escura onde,
no tragic° silencio da noite, feras rugiam e se dilaceravam. Tbda
a cidade de Luz surgia aos meus olhos. Marmores, jades, maraviIhas que faziam da Terra urn paraiso. Mas sob a fulguracao da
opulencia radiavam, como num mar maldito, ondas de carne
lacerada e sangrenta, vindas de nao sei que ao arvoroso lugar de
Parias e herois mostravam nos olhos todo o terror das lutas
sem esperanca e a angustia das vitorias sem proveito. Alguma
No
coisa faltava aqui aos homens; todos os sores sofriam.
Maw das fanfarras havia gemidos entre gargalhadas t
a Dtir do solucearm.SObosftinaFme
vivas
sabre
homem poisavam a sombra viscosa lembrando chagas
e branca de uma deusa. Os risos vestiam amargu.
a pele
ras, como urn musgo efemero veste a aspereza dos basaltos.
E sob as palavras mais daces passava, longo e surdo, um rumor de raiva impotente e represada, todo o ardor da rebeldia e da
carnagem. A Miseria e a Opulencia, a Abundancia e a Fome
bebiam na mesma taca o veneno das lutas e dolorosas agonias.
Atravessavam o deserto envoltos em seda ou cobertos de andrajos;
mas pelo mesmo vento mau varadas sob a ardencia mortal do
mesmo sol de peconha.
Caravanas de dor corn elefantes de xaireis preciosos, levando
na cauda, acaimada e faminta, uma dolorida matilha de 'Arias, o
seu caminho era uma fina poeira de vidro candente, que lacerava
os pes rids, e, calcada corn raiva, enchia o ar tornando-o
irrespiravel. E embalde sonhavam urn oasis. A Miseria, a
Fadiga, a Ansiedade alucinavam. A uns despedagavam-os de
Fome as entranhas de outros o coracao era uma chaga avivada
eternamente pela garra vidade urn tigre. A Fome do corpo, a
Fome da alma, a Dor do Pensamento
0 mundo era, corn certeza, a hisiaria natural da DOS. Eis a
7
28 =
yOS DEUSES DB, BENttRES
'OS D USES. DE BENARES
verdade, que a todas as almas se impunha, nenhum coracao
repelia e em todos os corpos se proclamava. e E a Conquista
Final da Omnipotencia humana onde estaria ? Na destruicao do
planeta, no aniquilaraento dos seus habitantes? 0 bravo redentor
seria talvez o que encaminhase o homem ja atingido o cume, a
este fim inglorio, como urn mddico piedoso subtraindo a Vida
uma adolescencia comida de lepra.
Dos maquinismos formidaveis transfigurando a Matdria nao
vinha, nao viria jamais o supremo electuario do resgate.
E o Amor ? z Nao seria o oasis sonhado ? z 0 Amor nao era
porventura a imortalidade, triunfando sempre da Morte ?
Acudiam-me as palavras que os Poetas the diziarn, e eram
como resinas raras queimadas em pivetes de oiro nuns altar ;
relembrava as palavras dos sabios serenas e fortes. Ah, como
nao havia'de ser exaltante e redentora a certeza de que havia em
nos um atom, um gra°, uma celula capaz de evitar o desaparecirnento total do nosso set.' ! E uma rosea neblina subia das misteriosas raises da minha substancia, vestia a minha fraqueza l
cobriandelvtugmcobardiqeulvmnha
carne.
Mas o Deussar Branco voltava a sentar.se a meu lado e mais
uma vez soltava ao meu ouvido um assobio agudo.—Ah! Ah!
A cOlula imortal ! Vamos, falemos nisso. E' a minha especialidade, sabes ? 0 germen imortal. A imortalidade Sim ; ha
sores imortais e nao sao Deuses. Crescem, evoluern, dividem•se
e nao morrem. Acabatn de subir, subir e param no tam
dividem•se retomam a forma inicial e logo rnultiplicados,
recomecam a marcha ascendente. Tornam a crescer e tornam a
dividir-se.
Uma vez, dims vezes, milhares de vezes, infinitamente.
Eu...sei isto...E tu ? Ignorava-lo ? creio, nao. Tambdm
o sabes. Ha sores imortais, mas nao sao Rishis, nao sao Mahatmas,
nao sao chelas de Mahatmas. Que pena. Sao as algas e os cogumelos...unicelulares. Protofitas e protozoarios, lembras-te ?
Criaturas de nomes exquisitos, simplissimas e humildes, inferiores
a ti, homem cobarde, que te nao aguentas corn a heranca dos
.Maiores, doido sonhador do Absoluto, inferiores a rnim, Deussar
L a9
herOico, tnensageiro da Luz, demolidor dos idolos, eterno criado
de Novo. Tendes o vosso estatuto especifico um tanto inclemente,
como se fosse ditado por um Deus bebido. Nao vos permite a
subida ao cume para vos dividirdes entre evohes e flores.
Nao podeis deixar uma parte do vosso ser, multiplicada miraculosamente a colonizar ao vosso lado, sob o mesmo tecto, emquan
to a outra, o vosso prOprio ser, recomeca a evolucao, rehabilitando-se e transbordanclo como uma tags sob uma torneira aberta.
Nao o sabias tu ? Ah ! Ah 1 Ah !
Eu cerrava os othos corn raiva. Nada queria ouvir. Mas tat
como os personagens implacaveis de urn delirio de alcoolico o
Deussar falava sempre mais claro, grave como urn Doutor, sereno
como urn puroito. Eu via-the o gesto largo, a bOca cheia de
sarcasmo. Parava urn instante e tamborilava com os dedos
sabre o ventre nti, assobiando uma cancao sangreuta. A sua
ironia, que era como uma lamina de aco, logo se desfazia em sorrisos como pedrarias, em urn fino granizo glacido e irisado..
---L Mas tu tnaldizes a Morte ?
E' por causa da Morte
que segues o velho tonto que dorme ai sabre o chp coin
as boiadas ? Af esta porque te fizeram ;Abio; e te
ram a Rae° e te vestiram e cobriram de luz. a nudez
da tua alma. Ai esta. Um poltrao com ulna armadura de gigante... Mas ve ; a Morte honra-te, eleva-te acima do organismo
rudimentar, dotado de perenidade, mas incapaz de lapidar uma
frase ou de dancar urn valsa. A Mode ! Se tu the visses a face
bela, de estacao florida ou de outono cheio de frutos, face da
terra beijada pelas primeiras chuvas da moncao nos oiteiros
adustos ou na silva tutelar e arnorosa... A causa da Morte d a
evolucao das especies
E pensavas no Amor... Coras ? Eu
bem te vejo. 0 Amor, mesmo acaimado e preso, apertado nos
tentaculos do artificio, com regulamentos, etiquetas, grilhetas,
disciplinas, o amor para ti d ainda esperanca da embriaguez feliz e
fecunda. Mas, 6 filho de Sabi°
com a reproduclo sexual
que apareceu a Morte. Dessa atraccao a que deves extases,
arroubos, delirios, a Morte é irma gdmea. Nao confere, a imortalidade a tua carne, nao. Mas por ela sentes at ao deliquio a docura
da Vida, A lascivia centuplica o dinamismo das tuas faculdades. A
30
OS DEUSES DE BENARES
carne viva dilue-se, funde-se em aroma, harmonia; imortaliza-se em
luz na posse efdmera de Oda a Beleza do sol as hervas, ofertadas a
ti numa taca de feitico, a boca da Mulher.
Eu, como uma estatua sentia-me pros° ao chao ; nao
queria ouvir, e a voz fina e fundente entrava-me na alma
num largo sOpro de loucura, e logo transformado em uma
oracao de sapiencia esteril e dura ou uma rdstea de sol,
viva e ritmica, a beira de um agonizante. Dir-se-ia que um
doido proclamava alto, alucinadamente, o Grao-de-Oiro que'
juntava em dias lticidos no cdrebro doente, vibrando-lhe na voz
a espacos a vida alacre e rumorosa dos jangles de Hind. E de
quando em quando o seu Pensamento lembrava a barra de oiro
a que houvessem aplicado, nas Casas de Moeda, a marca do contraste, para logo se perder sob nuvens de palavras rebeldes e
desgrenhadas, irrompendo em jactos de fogo, que cegavam.
Era, urn instante, a lOgica tenaz dos espiritos curtos caindo, como
uma pedra de urn andaime alto sabre a cabeca de uma crianca.
Logo, porem, a loucura silvava na voz grave, fazia-se lava, desfazia-se em pó. Ele trazia para mim uma idea ja feita aflicao e
ansiedade, punha-a diante de mim como um bacilo virulento
diante de came ainda viva mas sem o divino dom de resistencia.
E eu sentia como que a refraccao das atmosferas altas.
— Volta comigo a Cidade, volta, pedia corn docura. Aquele
pobre velho, o teu Mahatma, é um vencido. E tu chama•lo
Aiestre. Porque ? Vai restituir-te os Deuses ? E' tarde, meu filho.
Nao poderzis retroceder. Nos levamos seculos para chegarmos
a estas alturas, onde nao ha Rishis nem Deuses. Seculos de
Dtivida, de Lutas e de Triunfos... E a tua vida sao quatro dias.
Ali, Dc'ras de Benares I Devas de Pandarpura 1 A certeza de que
existem é como a tua pele mesma ; ninguem a arranca sem
te causar a. morte.... E o Mahatma ? Tanto como eu ele sabe a
vadade. Alas d urn cobarde, que mente ; usufrtie a escravidao
das alums. E' manso por hipocrisia ; a mansidao atrai os fracos,
e os feridos. Vive na sombra para que the nao vejam a ironia
nos labios, neon o desesp6ro nos °tilos. Abdicou, mas conserva
o amor das vassalagens, o desejo de mando, a Vaidade vestida de
camponesa. Vern comigo,
OS DEUSES DE BEWARES
—Nunca! respondi.
--Como se eu te nao conhecesse I Has-de ser meui hi;
.de passar-te a nuvem. Eu quero fazer de ti urn homem, renovar
a tua actividade cambaleante, limpar o teu c6rebro enfarruscado
nas minas da metaffsica, monda•lo das daninhas ervas ancestrais.`
0 teu novo sangue sera todo audacia e fiama.
• Has-de amar depois. Serb o criador. Tu ja esqUeceste,
tdoja repudiaste o C6u. E--corn que Pena to digo I nao
podes ver, nao sabes Or a Terra. Vern comigo,
• —Eu ?I Nao 6 por tua causa que hei-de perder Dhelli.
Nao medra o trigo Ware os basaltos de Rajputana.
—Has-de- ver, disse imperativo e amoravel. Nao podes
amputar-te, arrancar da tua •substancia o teu pensamento. Seria •
corn se tentasses arrancar a tua pele por causa de uma sarna .
Vem.fatigado, cheio do p6 da jornada, maguado e sangrando,.teu.
pobre desejo. Amesquinha-se, humilha-se, torna-se infinitamente
pequeno para corn pouco se contentar. E' uma Hugo, meg
filho, uma Pura ilusao. Da-lhe, a esse desejo eangado de tentar
a conquista do coil, di-the tu 6sse pouco. Uma jornada serena
e dOce ate Benares, o arroz e o caril nos parans, visitas aos
templos, encantamentos do jangle ... E;logo te pedira, - te
exigira coisas novas, nos alvorocos requintes. 0 teu desejo
nao descanca ; restaura.se, apaga os vestigios d fadiga e avancaE cuidas tu que o espirito do homem, a ambicao do homem, a
vaidade do homem, o desejo do homem %do transformame eni
pastoras vestidas de saris grosseiros levando as fontes, ao,p6r do
sol, os rebanhos mansos ?
Tiniram ao longe campainhas de oiro, a voz de uma singa
enrubesceu a lua. E, stibito, no azulado c6u nocturno eu senti
deslumbrado passar uma grande asa de piirpura relumbrao.clo
como a flamea reverberacao de urn desejo. E o silaneio se fez,
profundo e como fluido. Esqueci tudo. Uma esponja ensopada
em perfumes passou sabre a minha alma, levando t6das `as
minhas lembrancas. Pareceu-me que deslisava num sonho para
a Morte, envolto em urn sopro de auroras boreais, como sabre um
soalho de tartaruga. Devia ser assim a more nas rendas do,
berco, embalada pela voz dulcissima do Amor.
• 32
OS DEUSES DE BINARES
l
Todo o sangue me afluia ao coragao vivaz e odorante. A
voz da singa era mais fervorosa e turbadora. Eu esperava,
como nos circos as criangas ante a jaula dos leiies, que algu ► na
coisa grave sucedesse. Ia ver talvez os Deuses dos Maiores nas
suas armaduras de logo.
Onde estava eu ? Femininos aromas, exalagoes de jardins,
bafos de primavera envolviam-me como sedas suavissimas. Na
relva tumida de veios de agua cram os vagalumes como uma
chuva de pingos de luz irisada e palpitante. Dir-se-ia que a.
passagem de uma ranim pandava haviarn espalhado orvalhos de
pedrarias, E lentamente um vulto esguio, envolto num sari
transhicido de mini se aproxima.
Os guisos nos seus pes tilintavam como cristais. Era a
beleza infinita da forma encerrando todo o esplendor da Vida. E
os pes salad° nus do sari branco sugeriatn petalas de flores. 0
donaire, a leveza, a risonha fragilidade do seu ser penetravam.me
tai como o Mitt) enfeitigado de um rosal ern flor. Diante dela
nem um desejo .de posse fisica turbaria o coragao do Homem.
Como uma palheta de sol rogando um rubim, a seus labios
assomou um sorriso ; a sua voz, de uma tenue magia, iluminou
a penumbra dke e silente :—Vem comigo, dizia. Buscas o
Alem ; a Terra a-te hostil. Ao meu lado has-de sentir que a
Vida tao efemera a si mesma basta. Seras como urn ago a quern
uma Deusa houvesse dado a vista num jardim vedico. z Quern
te impede de sentir a docura da Vida, a carfcia longa e apaixonada e redentora da Natureza ? A D3r do Pensamento ? A
Dor é tua creagko de Artista esfomeado e motto de sade. Mas no
(undo de sua substancia ha germens de heroism°, alegrias, aspiragoes, desejos, que arrebatam. HA um jou° da energia, que
transfigure. Os Maiores fizerarn de ti urn tesoiro enorme. Tu
nao es apenas um artefact° ; es um cofre, um escrinio, urn
celeiro. Mas ao lado das joias raras, dos rubis e dos berilos,
estao as facas, os machados, as langas, os punhais. E conservas os trofeus .mais belos de tantas lutas espirituais, as
perfeigoes do ser ao lado dos vicios imundos. So te recordas
da vohipia das abordagens. Transformas o Desejo em cobiga,
e multiplicas, doida, desesperada, alucinadamente, como urn
Deus que perdeir o tino, as tuas Necessidades. A Terra nao te
OS D USES DE BENARES
33
basta, a ti so I Quererias amassar o teu pao num sangue solar. E
cis-te esquecido de ti mesmo. E os teus triunfos sao vergonhosas derrotas. As tuas conquistas, coroas de espinhos. E eis-te
rebelde a maldito, armado ate aos dentes, transformado em tigre
assanhado que, mais do que a carne da presa, saboreia a voldpia de
matar... Ern tOdas as almas, do paria ao bramane, ha urn sonho
de triunfo, uma Oro criadora. So the pode faltar a luz que a
fecunde, a mao que limpe de herva daninha o solo onde hi-de
medrar a boa semente.... Vein comigo. Eu sou a mulher, a Graca,
a Perpetuadora das estirpes altas. A minha palavra sera senipre
o fruto ardente da boa vitoria, o filtro das supremas conversOes...
Ve-me ;
Porque baixas os olhos ? e Nao es acaso o Homem
abre bem esses olhos...
Eu nao sei como os meus olhos se ergueram ate ela. Via-a,
0 peito inflexivel, cingido por urn chole macio arfava levemente.
0 sari exalava um perfume de indizivel suavidade. E ao fita-la,
altos pensamentos redentores se escalonavam no meu espirito,
como guerreiros pcindavas, como broqueis feitos de blocos de
301. A enigmatica maravilha da Forma, eu a tinha, pela primeira
vez diante dos meus olhos bem abertos, magnifica no seu involucro de luz. Era a primeira vez. E aqui se operava o milagre.
Na Cidade nem lograra sorver longamente, como a Terra absorve
as primeiras chuvas da moncao, o encanto fisico da Beleza.
Fora urn ago palpando pedrarias, tiaras de rainhas, joias de
deusas. E agora devassava, num so pequeno ser delicado, o seu
misterio rial, no seu aspecto fisico e na essencia da sua alma.
E Ela :—Ah ; ves ?...E exalta-te, vem sentar-te a meu lado.
Eu sou a criadora. 0 meu sangue, a minha came, a minha alma
sacs a pureza, que nada macula. Eu criei os Deuses da Terra...
0 Amor. 0 Amar nao é porventura a garantia da perpetuaclo da
Vida ? Nao d a forca misteriosa que enflora a Terra ?
E era uma divina miisica o seu sorriso, poisando na minha
alma corn a graca de uma asa branca e leveira. Fazia agitar dentro
do meu cranio um sonho de gloria e de mando.
E como se lesse no mais recondito da minha alma, agora
rejuvenescido e palpitante :
—Vem comigo...Regressaremos juntos a Cidade.
—A' Cidade ! exclamei desalentado.
OS DEVSES DE BEARDS
E o meu pensamento desceu saitamente da luz dos seus
olhos a minha alma coberta de andrajos. g Quem era Eta, meu
Deus ?...Eu tinha visto a Mulher, tinha quasi sentido nas minhas
rnaos, como uma andorinha, a sua alma ntia e dolorida. Nao ;
nunca mais iria atras das ilusoes que, ao contacto das nossas
maos, volvern, em cinza e pa. E numa resolucao violenta cerrei
os olhos.
—Ah, to it'd() queres ver-me ? murmurou Ela numa voz
quasi extinta. Mas sei que has-de voltar. Entao...serei tua. 0
desejo de viver hi-de salvar-te.
E, passando leve como neblina, espalhava no ar um perfume
de grata. Para mim era Ela uma formosa arvore que podia produzir o fruto maldito. Mas o seu claro sorriso deixara a raiz da
minha substancia, sem que eu soubesse, urn largo raio de sol.
Sentia-o vivo e nnirmuro, chamando-me a vida, obrigando-me a
bemdizer a docura, a beleza, a harmonia que me haviam invadido.
Aquela virgindade, cheia de aromas e de divinos ritmos era feita
talvez para armar o. braco aos Conquistadores de outras eras, mais
inflexiveis que o aco dos seus escudos. Mas a minha existencia
estava irreparivelmente sujeita a Dor. Oh, se eu pudesse possui-la sem esforco, lzvadas todas as nodoas da minha carne 1
Ela era ao mesmo tempo uma ancao e uma epopeia. Havia
na sua voz uma n6voa aromatica, como na das Aguas atr vessando
urn jardim florido. E na sua palavra eu tinha visto ful ei r a mais
radiosa imagem da Vida, como Lacximi, a doadora d ventura,
no fragil e lino calice do lotus. Dir-se-ia que o seu pequeno
coracao de ave palpitava submerso no sol. E para e•rirnir a
minha emocao diante dela embalde eu procurava a pa avra nas
profundezas do meu ser, comp urn mendigo busca uma ► oeda de
oiro perdida num areal. E contudo, numa resolucao vi lenta, eu
queria apagar da minha mental -la a lembranca do seu perfil de
medalha.
—Seria a Tentacao ? Seria o Pecado ? 0 que diri o Mahatma se o soubesse ? Via, de olhos fechados, a Terra for osissi ma
que me dery a esperanca suprema. A reconstrucao do
eu corpo
comecara ali ; eu ')ern a sentia. Uma rajada enrijav os meus
mtisculos, elasticis.tva o meu ser, punha na minha alm energias
imprevistas. E eu, cobarde e ingrato, cedo me deixav prender
OS DEMISES BE BENARE5
1 35
pelo Pecado. Quantas vezes, na selva augusta, a voz do Mahatma me dizia, erguendo-se no silencio, tremula e humilde :
—Os elefantes rasgam-se quando atravessam espinheiros ;
as chitelas passam incolumes. Assim 6 a Vida. Para os humildes
humilde e suave. Eles sao a folha leve sObre as Aguas do rio.
Sd o seixo mergulha e se enterra no lado.
E a Deusa de sari branco nao seria, porventura o orgulho, a
Vaidade que abate ?
E o Deusar branco tornou a falar-me :
—Tu tens medo ?
—Medo de que ?
—Tens medo de mint ?
—Medo 1 de ti !...Aqui a meu lado dorme o Mahatma.
—Ah ! tu pertences-me ! Eu sou o Mestre, o disciplinador
do teu espirito. E' das minhas veias que corre para a tua alma
o sangue que a nutre. Sou o rutilante, o flamejante Espirito de
todas as Conquistas humanas ; o Deusar Branco que chameja
sebre todas as sagradas revoluc'Oes, como o sol inextingufvel. Eu
sou o Espirito da Luz, o Espirito sempre novo, o demolidor de
todas as mentiras ruins e de todas as estereis ilusaes...Vens arrastado por uma aspiracao do divino...Mas a onde vais tu ? Nao yes
que tomaste o caminho das cobardias malsas, das energias morrentes, das facuiclades crepusculares ?
Mas'eu so pensava no Mahatma. Ao romper da manta partiriamos para Kassi. Esqueceria tudo. Junto do Mestre o meu
coracao embalado pela sua palavra seria como um ninho de bulbul na ponta de urn ramo subindo e descendo ao sabor de urn
vento suave.
Relembrava a palsagem imortal, o:arvoredo sagrado, que nos
tinha dado a sua amorosa sombra. Haviamos descido a povoacao,
o Mahatma e eu, por urn atalho, entre colgaduras de cipas. Ali
eu sentira Oda a magia da Beleza que assombra. Eu vira Parakriti, a Natureza, vestida para urn durbar de triunfo, impassfvel
como os marmores de Jaipur. t Que era o homem ai, sob as At .vores seculares e as rendas de trepadciras gigantes, pontilhadas
de flores como astros ? Que era eu? E o Mahatma Entre os
hornens, nessa estrada, que atravessa o coracao de Hind, rio trans•
$
36
OS DEUSES DEv BEN RES
bordando eternamente, era isle a figura de um dominador, alta,
bruna, serena, inatingivel.
E era humano o jangle, as arvores tinliam sorrisos para
o vencido ; as pedras se amaciavam sob os seus pes. E haviatnos
deslisado desse jangle amoravel para as florestas da Vida que 6
Luta, da Luta que é ou triunfo ou morte.
0 Mahatma emniudecera, e diante dole o meu pensamento
era como lampada de: argila em face do sol.
Erguiam-se do chao gigantes vegetais, como torres, suanclo
de forca e de desejo. Pequeninas plantas pandas, de folliagem
exangue, lhes beijavam os pes, desmaiadas nesse longo esforco de
florir para o triunfador. As grande trepadeiras lhes subiam pelo
tronco, lestas como bailadeiras, em vibracoes de voldpia, para
engrinaldar o que nRo sucumbe na luta. Sd tiles criam na
alegria como os Deuses...Quando os grandes ventos das monsoes
viessem, como deusares invisiveis, dobra-los e acoita-los, encontra•los-iam transbordando do divino desejo de resistir. As chuvas
6speras, vergastando 9s seus bracos, chegar-lhes-iam a raiz solucando de amor, humildes e doces como as Noivas dos Herois.
E descemos de vagar, por urn trilho estreito, silenciosamente. Manha de gloria e docura. Transformavam-se as nevois
em oiro vermelho, no oriente, ao contacto apaixonado do
sol. Despertavam rubles e arbustos, silvados, e bambuais num
alvorocado desejo de medrar e florir que vibrava claro ao meu
ouvido. E sob esta vibraclio de voldpia passava, lento e macio,
como a voz de urn murdanga longinquo, urn profundo, amoroso
zumbido.
Era mudo o Mahatma a meu lado, e pequeno como eu, Ele
e eu eramos coma) a nevoa que a brisa leva na sua pequena asa
de seda, sem destine. Ao longe, a longa e tranquila linha dos
Himalaias enrubescia e ardia no oiro fluido da manila. Alta e
solitaria regiao de meditacao e beatitude. A'quela hora os montes
altos, reis da solidao augusta, fosforeciam de urn quimdrico escarlate. As neves cintilavam corm pedrarias, reflectindo a paixao do
sol. Lembravam noivas das dinastias siderais, esbeltas e lindas
pondo as suas joias para receber o Noivo que chegava com os
trofeus das vitorias. E fora entao que uma suave magia me pa-
OS DE SES DE BENARES
37
recera soltar a voz a esta divina Terra de Hind :—Vive, deseja a
Vida, a Vida sempre mais bela e ardorosa, a vida sempre mais
perfeita e profunda. E' no raid° fervor da Vida que te has-de
redimir...Aceita a tua Vida corn um premio e uma gloriacacao.
Por 'Dais humilde que Ela seja, por mais pobre que Ela te pareca.., E' a Virgern, 6 a noiva, é a Barra-de oiro, que as teas macs
de artista hao-de traballiar e a tua alma de homem divinizar no
Amor. E' o bloco de marmore donde has-de chamar a luz do
mundo as grandes figuras imortais que nele dormem ; a argila
informe, em que has-de moldar as Horas de Oiro.
E aquela voz na minha alma vazada, num grande jOrro luminoso, sugeria uma fina mao de princesa estendendo urn veludo
suave sabre urn solo afrontado pela urze maldita.
-
VII
Eis-nos emfim em Kassi, na velha Cidade dos templos no
meio de urn bando de sadus e peregrinos.
Desde que de longe a avistamos, centenas de vozes se er•
guem alto, numa monodia que tern um nao sei que de piedoso e
de pitoresco, saidando Mahadeva, o Senhor da Cidade :—Jei, jei
Kassinata 1 Jei, Jei, Kassinala 1 E as vozes sobem chatuando,
acompanhados de pequeninos pratos de cobre, que brilham como
oiro, finos e tintinantes :—txin-txin-txin•txin I
0 sol vai alto. E sob a chapada fulva da luz brilha,,
num deslumbramento imprevisto, a cdpula do Templo de Oiro,
consagrado ao Senhor da Cidade. Milhares de templos se erguem da terra, perpetuando a crenca, simples e fervorosa, dos
Maiores. Milhares de hornens param, a porta dos pagodes, gritando alto as suas angdstias e as suas dificuldades, oferecendo
&divas, regateando, fazendo ou discutindo corn os sacerdotes
estranhas propostas pela cura de um filho ou de uma vaca, chamando, protestando, gemendo e assim transformando a Cidade
num vasto hospital de almas.
Ha sadlius que dormem sabre facas agudas, imoveis e
serenos outros, sentados sobre uma pele de leopardo ou de
veado parecem como mortos, indiferentes a todo esse turbilhao.
OS , DEUSES DE BE ARES
n.
humano, clamoroso e febril.
No meio dee; ha os que traficam corn as coisas do cdu,
escrevem mantras milagrosos, exaltam o pavez dos seus amuletos,
ensinam os lintnem% a totnarern o banho sagrado no Ganges, que
aquela hora d uma grande lamina de prata flamejando.
Eu sentara.me fatigado a porta de urn pagode e adormeeera.
0 Deussar Branco volta para mim a sua face zombeteira,
sorri, pisca os olhos cheio de uma luz viva e cantante, luz de
triunfo e de alegria; e, me diz
—0' cheld, 6 discipulo do Mahatma I olha em volta. Ha
tantos Santos em Benares ! E o teu é dos piores ; nein sabe
ganhar a vida, adorna-la sequer de imprevistas necessidades.
Urn punhado de arroz, uma collier de caril, tarnarindo salgado,
agua, eis o que satisfaz o seu estoinago. De noite, depois de ter
andado ldguas, dorme—nao d verclade sombra de uma arvore,
como o gado das boiadas, melhor do que num palaeio, onde ha
estofos raros e me vets de arte e a' nossa alma se ensopa docemente na graca da puffier ? .
Que procuras aqui ? Elasticizar o teu clesejo, engrinaldar o
teu sonho ? Pobre louco I V8 como em tua volta se juntam, numa
horrivel promiscuidade, todas as misdrias da carne, tOdas as
lepras da alma. Disseram-te que entre as Cidades, Benares, é
como a gatatri entn: os hinos vddicos...Mas olha em volta. Aqui
todos traficam. Vendern-se os bens do C6u e as alegrias da Terra.
E' um grande mera.do de cobardias. Por Oda a parte se grita :—
DA-nos vacas, o . Senhor dos Mundos ; dar-to-emos Manteiga !
A palavra faz-se gcmido ou grito de fome ou de cobica. Nao
flamula aqui a asa irizada de uma ironia ; nOo faisca o verbo
ardente das paixOes radiosas nesta Cidade caduca. E' o Passado
que aqui finge viver, como as mtimias, como os museus e as
estatuas mal feitas. E to yens para aqui impelido por tddas as miserias como urn cadaver arrastado pela corrente. E's um irnpotente ; nOo conhecet; o divino prazer da resistiThcia. NO° sentes
a docura infinita de querer, de querer sempre, de querer como
()nth altiva derrubar os penedos seculares. Apraz-te mais a maciez das penugens, a passividade das hervas, a impotdneia dos
manipansos. E' dsce o mein que escolhes para a tua vontade
RES
OS REUSES DE BEWARES
A,
39
combalida e doente...Ergue-te ; deixa o Mahatma. 0 homem é
a onda que bate eternamente no penedo do Destino. 0 hotnem
o tigre que tent os olhos maiores do que o seu estOrnago...
Vamos ; procura as tuas armas e segue-me. E a voz morreu no
ar, numa nota de cIarim de guerra, rubida c fremente. NO° sei
se o compreendi, mas a sua voz era como o deo de um hino ressoando longa, rubra e ardentemente nas cavernas do meu ser.
E contudo eu seguiria o Mahatma atraves das estreitas ruas da
Cidade Santa, entre fakirs e peregrinos, parando a porta dos templos e comprando folhas de betle cortadas em tridente de Siva.
A essa hora: o espeetaculo a margem do Ganges d de unit
pitoresco imprevisto. Milhares de peregrinos, de tOclas as condigoes sociais, riquezas, misdrias, doencas, juventudes, enchem os
gaths para o banho sagrado. Ha piras ardendo para a incineracOo dos que rriorrem. SO o cadaver do varioloso naO é dado ao
fogo. A varioila d a deusa Sitala.
0 Mahatma, vendo-me parar diante de um nicho consagrado
a Kamadeva, o deus do amor, olha-me corn docura, como se
quizesse sondar a minha alma e diz-me
—Que procuras to ? Porque perguntas os nomes das Imagens Sagradas ? Ha um Deus dnico, e Lyle nOo tern . none, • nab
tern forma. Em toda a parte o encontras. E' o ar que respiras,
a agua que bebes, o trigo que comes. E' o Milagre que encontras
em tddas as coisas, e que faz do mundo o bravo que to serve. Se
procuras reintegrar-te na crenca dos Maiores, esquece os milhares
de nomes de Deuses, que estas ouvindo.
Eu escutava-o embalado pela sua voz tdo mansa e profunda,
no meio do clamor perturbante que envolvia a Cidade.
V II I
A minha primeira noite na.Cidade dos templos foi uma noite
de trageclia.
No templo de oiro ardiam palidamente os candelabros dos
santuarios. Graves sacerdotes de longas barbas recitavam oracoes. Um zumbido, ondulando, subia, trespassava o tecto, levava
49-
OS, DEUSES DE BEIARES'
aos Sete Swargas o aroma das alms castas florindo na ansia das
nitpcias divinas.
Era a minha primeira noite no claustro, e eu sentia-me major
que cs Prfncipes, mais poderoso que Rama, filho de. Dacarata,
filho de Ikxavaku, neto de Surya.
Vinha em bu3ca dos Deuses, que havia ultrajado e perdido
nos transes mais rubros dos combates na Cidade de luz. E
agora, ao fitar as Imagens Sagradas e brunidas pela patina dos
seculos, eu era como um naufrago, com a boca cheia de agua,
sem poder dizer a Agueles de quern esperava o supremo auxflio
uma palavra de humilde e fervorosa piedade. Onde estaria o
Mahatma ? Nao o sabia. Deixara.me depois de fixar urn instante
os olhos nos meus, corn urn olhar que me havia penetrado ate as
rafzes obscuras do meu ser, como urn raio de sol penctra sem
esfOrco at ao fundo um lago tranquilo.
Longe, ainda tangiarn os murdangas de pele de talagoia.
Era a danca nas casas de Prazer. Eram as bailadeiras cingidas
de panos ralos, tac . ralos, meu Deus I apertados scholes modelando
o busto, as manillas tinindo num riso de voltipia.•Torciam-se
de certo nas dart as felinas lascivias, um esfusiamento de brasas
nos corpos adoles:entes, quebrados em meneios, que eram ritmo,
aroma, seducao infinita. E os guizos—txin—txin 1—desparzin•
do-se nos tornozelos em orvalhos, de cores irisadas e mordentes.
Enchiam o ar de urn zumbido divinamente d6ce e escal.
dante. Mas de records-lo sob o tecto sagrado cu sentia rastos
de lesmas sobre a tninha carne envilecida. Cruzei as pernas,
numa btidica atiticle, a um canto da cela munnurei uma prece,
cerrei os olhos. As horas passavam lentas, como elefantes
ajaezados e solenes num Durbar Imperial. De quando em quando
os servidores do templo soltavam aos gongs,a voz fluida, cheia de
solucos, anunciando a passagem das horas. Cessara ja o clamor
das dores humildcs, que bate todos os dias, a porta dos templos
de Kassi, como as ondas nos tragicos rochedos da costa do
Malabar.
De repente, oomo se Bramadeva, tivesse ouvido a stiplica da
minha angtistia, eu senti.me envolvido numa nuvem macia e
branca, que me erguia ao ceu.
OS I1EUSE5 DE BEN4RES
VP,
,t
41
E a nuvem foi subindo. Eu pairava sobre o abismo de olhos
abertos, tnas incapaz de pensar, de racicionar, de vet -. Ao longe,
as risonhas cidades Himalaias de Darjelim ; perto, sabre a minha
cabeca, como urn lago de prata fluida, a lua. Aos meus pes era
uma alta montanha corn figuras colossais, parenteses de jangle,
basaltos negros. A' sombra de arvores sagradas, serenos e trigueiros, Rixis, pareciam sonhar, os olhos fixos na ponta do aariz,
exalando o ar pelas narinas. Tigres de Bengala, formosos e terriveis, vagueavam•lhes ao redor corn a mansidao de veados, jaguares lambiam os pes a Bicskus de face adunca, e eu passava entre
ales como uma asa, embalado na maciez da nuvem. Ia subindo,
transfigurado, at que a nuvem milagrosa me poisou docernente
sobre tryn basalto liso e brilhante, sob a copa de um pipal. A
noite era toda sortilegio e carfcia.
E numa aureola ofuscante vi descer da lua, Brama, o Deus
\
da criacao inumeravel, com a ponta do pe na boca, envolto em
grosso burel. Deslumbrava, e era a pi-6pda face do sol que eu
via. E contudo eu tinha os olhos postos nele como se uma
invisivel mao me tivesse arrancado as palpebras para os conservar
beta abertos.
E ele aproximou-se, como urn elefantc, parou diante de mire
e assim falou :
—Homem ! Que buscas tu ? Procuras os Deuses, os Gramedevas, Binimia, as Apsaras ? Donde yens, que to sobra o animo para tudo esqueceres ? Que fizeste, dize, dos Livros Sagrados ?
Buscas Purxotoma, o mais alto Espirito, Jivabuta, o Priacipio
da Vida ? Abre bem esses olhos. Que yes ? Quern 6 que esti
diante de ti, criatura insaciada e louca, que partiste o vaso em
que bebias a dogura de misteriosas e embaladoras Superstigeies ?
Sera Prajapati, o senhor das Criaturas, aquele que da sua vita.
lidade superior tirou os Deuses, e criou os hornens e fez a Mode,
destruidora das Criaturas ? Ve bem... Serei o Adidaiva, a Divindade Suprema, o que nao tem principio, Ascendente dos Deuses?
Dize, Pala. Serei teu Deus, teu Irma°, teu Filho, teu Escravo,
ou simplesmente uma ficcao para divertir os teus &los ? Represento e realizo Eu a Perfeigao Suprema ? Ou seras tu, o fragil, o
vulneravel, que me has criado a tua imagem, mais vulnerivel,
PS DEUSES> DE IENARES
mais fragil, e pelo naenos, tao imperfeito como tu t Dize, anda
Estou como quem espera ansioso uma revelacao ou urn
milagre. Dos meus labios, porem, nao saia uma palavra. Nao
germinava no men cerebro a semente estelar de uma idea. Eu
era como um charco, onde, sob a chapada fulva do sol morre no
verso inclemente, a agua maternal e fecunda.
E Ele sacudindo o burel que o envolvia
--Vd, disse, ironic° e imperativo. E vi surgir diante dos
meus olhos Brama Maya, Oda refulgente nas suas vestes de luz,
o busto cingido por urn sch6le estrelado de pedrarias. Segurava
na mao direita uma enfiada de perolas, na esquerda a pont&
de uma larga faixa de seda coin ayes e feras bordadas a oiro.
—Conheces ? inquiriu Brama. E' a Ilustre, e a Vida. Sim,
a vida imensa, radiosa, esplendorosa, quer tu nao .sabes viver...
E agora, aqui tens Brama- Sakti...
Era uma incrivel figura humana, corn os braeos levantados
no desejo de enlacar o busto de mulher semi-nua que the fica
defronte, sentada a seus pes. SObre as pontas de urn branco
debaixo &les, que estao suspensas no ar, uma cobra, que
rnorta, enrosca-se em volta de urn ovo, grande como
inn cocoa Urn instante os vejo diante de mim e logo se
fundem no ar, como uma tenue neblina sabre a qual o nosso
sonho houvesse desenhado figuras sobrenaturais.
—Viste ?...Agora dize Que sou Eu ? Lembras-te acaso de
me teres visto sabre urn estrado de sindalo, sob um docel de
verdura, tendo a meu lado Sarasvati, timida e linda, oferecendome o betle nurna .salva de oiro ? Oh, como te havias de lembrar ?
Tu esqueceste tudo. 0 orgulho encheu-te de trevas a memoninguem se lembra de Brama. A sua obra a feita. Eu
sou uma remota divindade aquem ninguem sacrifica. Nao Ihes
sentem o ruiraculoso contacto das maos sempre abertas. Adoram
Shiva, o destruidor, porque o temem. Visnum, o protector,
porque &le esperam. Eu sou pobre, coitado I Urn deus que
nao castiga, nao causa dano ou desgOsto, que, na sua bondade de
impotente nao sabe fazer o mal. E' preciso que os Deuses
vos deem o pa° e o vinho ; a sadde e a riqueza, filhos e gado,
para que sejam lembrados, os; que tudo vos tiram. Adoram a
,
,
DEUSmS DE BEWARES
OS REUSES
43
ameixeira por causa de ameixa, a aurora por causa da silva.
Mas os velhos Deuses vao-se, apagam-se nas distancias, do os
tristes reclusos da Historia. Encontraste-os nos Livros, pesados
sombrios, como velhas moedas de cobre num canto ignorado
dos museus.....Ah, meu pobre amigo ! Os Deuses sao como esies ricagos decaidos de fortuna, que vein fugir-lhes, corn a Ultiinoeda de oiro, o ultimo dos seus amigos. Apeam-nos do
pedestal .de oiro entre gargalhadas e assobios ; como ladroes
ignobeis levam-nos escoltados de ironias. ja nao veem us ricos
mercadores corn os presentes, admiraveis, as mulheres nao
'-ientram nos templos ao sol- posto corn as suas joias mais ricas e o
Sari mais precioso pedir-nos urn filho ou a fidelidade do marido.
Que somos nos ? Velhas alfaias dos templos, divinos filhos do
meda,/visoes talvez da apavorada criatura humana ? ...E quern
its tu ? Dritirastra, espOso de Gandari, filho de Subula, rei de
.Gemlarva ? Qu Pandu, que desposou Kunti, filho do Sol Quern
(Ss tu ? Sells o Puruxa, o Criador ?
escutava aturdido e palido. A sombra, caia da
divina na minha alma, como areia escura, sufocando•a.
Encontrava mais uma vez o Deussar Branco falando na voz del;
rindo no seu riso, chispando no seu olhar, e a mesrna formidavel
altivez feita de sarcasmos e loucura.
E Ele :
—Ah, nao me conheces, pobre amigo. Nem te conheces a
ti.' Toca-me ao menos corn a ponta dos teus dedos. .Anda.
Ajoelhei-me e os meus dedos tocaram aquele corpo enorme..
Era ern mim quasi o medo e a repugnancia corn que se tO-ca o
dorso escamoso de urn crocodilo ou a viscosa rnoleza de uma
alforreca. E stibito, sem que nada mo fizesse prever, vi desfeito
em cinza, aos meus p6s, a Sagrada figura, que era grande e forte
como um elefante.
Nao sei como o conte...Senti a terra fender-se a rude voz de
urn cataclismo. Oh, o horror de tocar corn os pes esse pas
divino !,
E logo surgem do chao, como dorsos de formidaveis MODStros, enormes rochcdos brancos, vestidos, aqui c ali, de urn fino
musgo verde. Estende-se em volta ;a terra Inimida e urn vasto
9
.
44
Os DEUSES DE BENARES
lencol de agua se forma, sem uma ruga, como urn lago de leite.
Manso e manso a agua vibra num arrepio, e rompem, de repente
a superficie, as sete cabecas de Ananta, a sagrada serpente, formando urn docel sobre a cabeca de Vishnu. Aos pas do Deva
Loeximitn, a Doadora de Ventura, formosissinta e semi-nua.
Ela é a forte e risonha adolescencia, num nimbo de amOr.
Do seu umbigo nasce o lotus onde poisa o Deus de quatro faces.
sorri, prende-me num olhar que c uma Barra de voltipia :
—Ah, zogui 1 Tu es um vencido. Tu, Madua-Rau, feito
chela daquele relit° Mahatma ? Vens buscar-me ? Trazes o
palanquin de oiro ? Eu sou Rama, eu sou Krishna, eu sou
Naraiena e sou Hari. Bastava morrer coin meu none nos labios
para se ganhar o ceu. Rama Rama, Satya Nanza
gemiarn
os moribundos e morriam consolados, morriam felizes. Ainda chamam por mim os que esti.° a tnorrer, nas povoac6es do jangle, nos
lugarejos humildes ,nas cabanas dos pastores...Os meses de assvin
e cartic sao ainda os meses do meu sono. anquanto durmo,
os Deussares erram pelo mundo, assolam-no, semeiam-no da tragica semente do Pecado. Entao sao as festas propiciatOrias, as
festas estrondosas, as luminosas festas. No primeiro dia do tneu
descanco as mulheres fazem ainda corn bosta;solare a porta da sua
casa, os sinais misticos, que vedam a entrada aos espfritos maus.
o jejum duraate o dia, e sao os dices' ao vir da noite. Ai dos
noivos que casam emquanto eu durrno 1 AI do que cobre de
cohno a sua cabana ! Findo o meu sono, espreguico•tne um
instante na tepicia maciez do meu leito, e 6 entao Oda a alegria
da coiheita nos canaviais.
Como finas maos de virgent, tremulas de amor, vem despertar-me as palavras do mantra inolvidavel :
—As nuvens dispersaram-se ; a lua cheia aparece em todo
o seu esplendor, marivilliosamente branca. Traz para ti a
esperanca de putificacao. Para ti vireos corn frescos fruitos da
estaglo adoravel! Acorda do teu long°, Longo sono. Acorda, Senhor
dos mundos, acorda...E o Sacerdote, nos lugarejos humildes, na
orla do jangle, nas povoacOes de pastures, anuncia entIo o momento auspicioso. Tangent os gongs no pagode, e os murdangas
de pale de talagoia. Acordo, e a colheita comeca. As canas
-
-
---c)1USES DE BEN4RES
st
4S
dularam-se sob as maos das ceifeiras. Vida a aldeia esti em
festa. No ar loiro ha ecos, ritmos, aromas de canc6es. 0 cana,
via1 caindo so fala de abundancia e de paz. A sua vida, fina e
formosa coino poucas, é finda. E ao cair sob as foices insensiveis, ei-lo a transformar-se em doador de paz e contentamento...
Mas que te importa isso, Madua-Rau, que te importa isso ? Tu
procuras urn electuario, urn remedio para as (ires que criaste,
para as feridas que abriste na tua carne. Alt, se soubesses amar !
0 am& é uma harmonia. E' o desejo da carne feito cancio, o
ritmo volvido em Luz. E é mais doce que urn aguaceiro de
Setembro trespassaclo pelo sol...Mas que procuras to aqui ?
Os Devas dos Maiores ? Pobre louco ! 0 espfrito, que
Tu?
é Luz, transforma-se crn cinza nos Ascetas. E a cinza desdoira
a humanidade. E' o que te ensinaram ; é o que nao soubeste
compreender...Ves aquela que esti junto de rnim ? E' urn
nacar entreaberto sob o sari diafano. E' a que me salva. Os
homens ainda se voltam para mim por causa dela. Como 6 born
acariciar corn os dedos abrasados uma pale unida e perfeita 1...
E é Vic) doce a lemAh, o beijo, o beijo, numa boca bemfeita
branca de um beijo l.... Mas que te digo eu ? Aproxima•se a
minha noite. A minha Noite, a Noite imensa e negra.
como uma mulher horrivel, uma mulher paria, cheia de lepra
ardente, de chagas de fogo. E negra, terrfvelmente negra.
seu riso espalha a escuridao. E' escuro o pano que cobre a
lepra abrasadora. Ela toca-me com as suas maos impuras. Sao
Quern sabe se a
os homens que a mandaram para me matar.
trouxeste em tua companhia ?... Foge, Madua-Rau, foge. Eu ji
, nao pertenco as Cidades de Luz. Seria necessario arrancar-te a
pele para que te pudessem vestir a ttinica dos Maiores. Foge.
Nunca mais me encontrards.
E vi Ananta, a serpente sagrada, erguer-se sObre a cauda,
sacudir o duva moribund°, ensaiar um voo e cair morto aos
meus peso
E 4as palavras de Vishnu faiscavam na minha alma.—E tuck)
minha vontade desbotada no servico
era cinza e p(5.
dos prazeres, putrefeita ao contacto de sensualidades torpes co
dizia...
V
46
OS DEUSES DE BENARES
OS DEUSES DE BENARES
Murrnurei baixo corn medo de nao sei que misterioso inimigo, que me parecia as vezes habitar a minha alma, fundir-se na
minha carne, transformar-se em meu sangue para me alimentar
o cerebro :
—" Aqueles que sao livres da luxuria e do 6dio sao mansos
e submissos e conhecem a beleza da Alma. Estao perto do
nirvana em Brahma ."
E como se as palavras do sloka o invocassern apareceu
diante de mitn, Kamadeva, o Deus do Amor, desfraldando o sett ,
pendosavrlh,tendoibra ,un
peixe monstruoso, o Makara que Varuna montava nas profundidades sumptuosas do Indico. Vinha Kamadeva montado em
um papagaio. E con ele Apsanis formosissimas, o cuao, e o
zAtig.io e as brisas plenas de urn aromatic° ar silvestre. Cin•
co ROI- es pequeninas escondiam a ponta dos seas dardos, que
atraves dos cinco sentidos, trespassam os corn 6
- es. 0 seu arco
e de cana coin uma corda de abelbas. Sorriu e disse-me :
—Pobre louco ! E's um Rixi, urn puroito, urn Sadhu ?
Ha tantos que envenenain o solo sagrado de Hind ! Sao como
o escarro de um paria no mosaico dos pagodes. A castidade da
sua carne 6 como a fade dos camaleoes. Sao velhas arvores
intiteis Ovendo da cal de uma parede nova. Bocas que a force
abre. passam uivando nomes de Deuses, para que o viandante
as tape corn urn punhado de arroz. Donde yens tu ?..Asceta ?...
Sei ! Bicsu que maldiz a came ? Abraeaste•a, desnuclaste-a
um dia. E cobriste•a de sodas e joias, para te despertar os
instintos arnortecidos. 0 teu desejo foi urn doido pescando perolas nos pauis infectos. Cobarde ! Morreu afogado no ludo. E
as perolas ? ! Ah! As perolas !...Que sabes tu da
voluptuosidade multiplice, da exaltacao do desejo criado e
forte ? Quern es tu ?...E sabes acaso quem sou eu ?...Chamam-me o Destruidor da paz, o Feiticeiro, a Lampada da Primavera,
a Brasa crepitante, o Mestre dos Mundos, o que tudo vence, o
que todas as almas embriaga. Eu feri Shiva na carne insensivel
da sua alma. E Shiva deixou as cinzas de Asceta, amou Parvoti.
E entAo estalou em chamas o terceiro olho do senhor de Kassi,
c clestruiu•me, abrasou-me, queimouque, reduziu-me a po. Mas
47
ele estava ferido no coracao. JA nao havia pa::, ji nao havia
descanco para a sua alma em brasa. Lancou.se as Aguas de
Kalinda mas o rio secou. E quando as madres se abrirarn de
novo as suas Aguas eram negras como tinta. Pobre Shiva
Errou por florestas e ererniterios, e as mulheres dos eremitas
seguiam-no, corn as maldicoes dos maridos abandonados, que
tornavam o pobre Shiva impotente e fragil. E por fim vencido
de paixao s6 regressou para desposar Parvoti. E eu, quando
renasci, num milagre de amor, era filho de Krishna, desposei
Rati, Ievei a--tentacao ao pr6prio Budha. Estava o Asceta
incomparavel sentado a sombra de uma grande c nobre figueira.
Meditava, pensava no sublime Jataka. E quando me aproxiraei
do seu retiro na pompa e no esplendor das minhas j6ias, iam
comigo, ern luminosos ranchos, ao som de flautas invisiveis, as Ap.
saris mais lindas. E cantavam de amor e mocidade. A noite
emmudecia; a lua, as estrelas, as brisasquedavam.se a escuti-las....
E agora quern sou eu ? 0 Deus que nao morre, qae subrnet&
a pr6pria Morte, que cria, fecunda, ilumina, ekalta. E tu pro- .
outros Deuses? Se querias ve-los porque 6 que te arran-' curas
caste os olhos ? Por Oda a parte s6 a mim me encontraras.
E eis Visvacarma diante de mim. Fala-me corn uma dace
•
ironia :
—" Queres um Deus ? Porque nao conservaste os que
havias herdado? Ah bem sei, bem sei. Foi a tua razao que os
destrocou ; foi o tigre entrando no redil humilde e sossegado dos
teus sonhos de timida crianca. Ah esses Deuses que eu vi,
saindo dos templos em palanquins de oiro, como usurArios parallticos. Tinham alguns o coracao feito de todas as tuas fraquezas,
cheio de todas as vaidades e• ambicoes, que fazem da tua alma
uma cisterna corn sapos e escorpioes. Outros eram a Bondade
Suprema. E tanto valiam estes como aqueles diante da
tua razao indornavel. Andaram nas maos de- fakirs como bolas
ern ma-os de criancas. Os Deuses ! Nao lhes obedece o raio
que destroi os pagodes.... Que desejas ? A ete•nidade ? Islao
te basta sentir a Energia organizadora ; nao te basta sentir a
vida ? Queres saber donde yens ? Mas em verdade, nunca o
saberAs. Ern vdo buscaras nas Escrituras a face do criador da
US IA:USES DE BENAKES
•8
gelatina pelasgica, o artista da forma humana.
Quern te criou
egga 111112 geinpre i nquieta, prdsa de impereciveis aspiracOes ?
Paraste no caminho, meio-morto de fadiga, o olhar avido e penetrants, a ouvir da t , oca de styes, dos descrentes, dos cepticos a
palavra da verdade, e Que te disseram eles ? Que o arroz do
teu jantar se faz ern ti sonho e verbo e pensamento ?... Vai teu
caminho, vai. Busca a origeni das origens, a raiz de todo o ser,
do visivel e do sonhado. o teu destino. 0 desejo de viver,
de perpetuar-se, de fugir a morte fez-se em ti ansia de imortalidade. 0 vapor de agua transformou-se em nuvem, a faisca fez-se
incendio. Que remedio ?...Mas os Deuses dos Maiores, deixa-os
atras de ti como despojos indteis, velhos escudos e arnezes que
servem para entreter os teus Ocios, mas nao te ajudarn a sair
vitorioso dos combates.
E a voz de Visvacarma, nova e ardente, como urn veio de
agua, que, de repente, irrompesse do'seio da Terra a beira de
urn ‘monte subia•me a cabeca. Era urn aroma capitoso e violen.
to, sabor de vinhCantigo e docura de luar dancando nas Aguas,
fustigando, como urn beijo, ao mesmo tempo suave e escaldante, as energias dormentes.
Quis falar•lhe ; nao sci se the disse o nome. Mas a sombra
fundiu-se na noite, como ulna nuvem batida de vento. Ele
havia-me lembrado -0 Deussar Branco e as criacoes do meu
sonho adolescente. que, na Cidade, vinham, noite alta, embalar
o meu sono.
Mas logo me prende os olhos uma visao, sangrenta e magestosa, o Deus dos F xterminios, Shiva, o Bislieshvar, o senhor de
tudo, a quern Oda a cidade, que poisa na ponta do seu tridente,
consagrada. Todos os Idolos, colocados ao longo do. Vanchseus tchonquidores e guardas.
coshi
E Shiva assirn me falou :
—" Ah, tu n.Io sabes que es Hari, o Homem, o eterno
Punish; brilhando como o oiro ou como sol, que rompe num ceu
sem nuvens. Tens dez bravos e es a fOrca que destroi os inimigos dos Deuses. No teu- ventre nasceu Brarna e nasceu Madeva,
e nasci eu da tua cabeca. Dos cabelos da tua cabeca vieram as
estrilas, dos cabelos do teu corpo os outros Deuses e os Assuras ;
.
OS DEUgES DE BE! ARES
49
Rixis e mundos imortais nasceram da tua came. Os Deuses
adoram•te. E tu realizas sObre a Terra todo o divino sonho de
grandeza, de triunfo, de imortalidade. Quem te ye, ha-de ver o
Deuses, todos os Swargas sao visiveis em tua alma. Tu es o
Criador do verbo poderoso e magnifico ; da Palavra que enche
e ilumina todo o vacuo, que resume em sons ritmicos e doirados,
suavissimos -ou terriveis, mundos infinitos, sonhos do Absoluto e
do Inextinguivel, docuras, esplendores, maguas que sat) o trigo da
tua alma. Para as dores sem remedio, para a dor do Pensamento, eq ue buscas tu aqui pobre vencido ? 0 verbo, eis o teu
Deva ; verbo sempre novo e rebrilhante, taca de sonho e de
verdade. Se emmudecesses, o mundo seria urn cemiterio de
almas, e os Swargas, os Sete ceus, se despovoariam.
Eu bebia a sua voz como um filtro, mas nada percebia.
A meu lado o Deussar Branco is dizendo confusamente
coisas incriveis e irnprevistas naquele ambiente sagrado :
" Os asteroides, ensina ele, podem aglomerar-se em sois ;
os sois transformar-se em faunas e floras ; as floras converter-se
em gazes, e, no emtanto, a energia em circulagao permanccera
ilesa...Numes antropomorficos, enlacados pelo Desejo e Sonho
do homem, nunca the imporao as suas leis e os seus ditames.
*Al), que procuras tu, Madua-Rau ? A chave da Verdade ?
Nunca a encontraras I Conheces, acaso, na sua essencia, a
pedra que pisas, o ar que respiras I Cdr, extensao, forma, sabor,
aroma, propriedades, virtudes, eis o que apreendemos. E'•te
inacessivel a Realidade velada pela Aparencia, como um vaso
de vidro escuro oculta a cristalina limpidez da agua. Contentemo.nos corn palavras ; abencoemos. a palavra, que tao admiravelmente veste a nossa ignorancia. Nao sao porventura
meros sfmbolos as leis do universo ? Que dizem elas ? Resumem
apenas miriades de factos contestes ; fundem em pequenas armas
de combate a experiencia amarga ou triunfante dos teus sentidos. sao como uma fusao de metals em uma joia ou uma grilheta, uma lanca ou um arado. Mas nunca entrevemos, atraves
delas, a Verdade Absoluta. z Qual a causa da atracCao universal?
...A Materia e as Farcas organizam•se para amar, desejar, lutar.
zQue sabes mais, dize ? E buscas os Devas e o Criador dos
vo iergwirr-
OS bEUSES DBENtTrWv.
Divas, a origem dos origens. Ensinar pavOes a ca.ntar seria
mais Wit do que buscar a Suprema Causa. Que 6 do teu saber?
Que valem os teus conhecimentos ? Exprimem relacoes, nada
inais. Essa pedra que arrernessada ao ceu obedece, caindo, a
uma lei indomavel, colocada a uma certa distancia da Terra
perderia o peso e ficaria suspensa no espago. Nao te ensinaram
isto os Mestres ? ! mas rub te disseram a... radio, a causa,
a .•. verdade Sonha, meu filho Mas faze do teu sonho urn
orvalho de perolas para embelezar a tua Dar. Mas sera o Nirvana o teu sonho derradeiro ? Sonhards acaso no regresso ao estado
primitivo, na extincdo da Forma ? Queres tu, o Puruxa implacave', sossobrar no Oceano das coisas ? Que importa ? A humanidade e uma grande e gloriosa figueira. 0 sol, o vento, as
brisas the varrem r=s fOlhas mortas. Tu es uma _delas. E todos
os dias fOlhas novas a cobrern, novas roupager:s - a vestem."‘
sei se enlouquecia de ouvi-lo. Essa °raga() de sapiencia irritava-me. Parecia que se dirigia a um estudante inhabit.
E mansamente, receioso de esquecer os mantras seculares, eu
dizia as palavras sagradas. E Bhiami aparecia, obedecendo
invocacXo dos Maiores. Eu via-o ao canto do lar e escutava
a sua voz amoravel e pura.
" Fui eu o Deus do Lar. Ainda me adoram os humildes
nos campos e nas montanhas. Dao-me do seu arroz, alta noite,
sombra da figueira, leite, c6co, fibres. Mas tu ! d Que queres tu
de mim? Vai-te. Na cidade os Divas do Lar sao como os leprosos. Mas estao vingados. A Familia dissolve-se. Os coragaes
endurecem. Pen;erte-se o sentido da vida, etnquanto os sabios
sondam os abismos. As multidoes enlouquecem de orgulho,
esquecem a Terra, sangram na esperanca de criar um ceu•
Madua-Rau, pobre louco ! Quantos peixes havera no Mar ?
Poderas dizer-me, 6 sabio, o rainier° dos graozinhos de areia das
praias do Mar ? Estamos vingados, os pobres Divas do Lar.
Trazemos fechadas na mao as alegrias simples e profundas.
Conhece-Las ? Ate arias de viver, tao aces, tao finis, tab esbeltas I
Mocinhas de Rajputana, cujos ollios sao baladas e os- labios
cangOes, o bust° e os seios ram°, grata, encanto. Tornozelos
manilhados, sari laNnfeito, o pail' c os mogarins no cabao.
r. cozwi
gens sem pecado, colhendo flores para o Noivo que vai chegar.
Onde estao elas ? Conhece las ? "
-
E desapareceu no ar, como se urn vento rnzu o levasse.
E logo Locximim, colhendo urn lotus me disse :
" Fala, dize o teu sonho ... A minha alma é urn cristal
em que, ao vir da tarde, o desejo rota como a asa de urna falena
...Quero espalhar-me como urn fumo, ou suave brisa cheia de
amorosos queixumes 0 hibiscus e o helianto, nelumbos e
nenufares sao os meus servos. Eu sou a Doadora 1e Docura
paz ...IMas que hei de dar-te ? A ambicao levou a tua alma
como urn tigre leva, ao seu covil, a presa ensanguentada Foste
em busca da Celula primordial; procuras agora os Ascetas que
sabem as palavras de ressurreigao Que hei de dar-te ? Ergues
para mim os olhos cheios de stiplicas. Bebes extasiado o ar que
se encheu de perfumes mal cheguei. Bern sei o meu passado.
Quando Vishnu vinha ao mundo, coin° filho de Adytia, eu nascia
de urn lotus e fui Paclma. Quando die se encarnava em Rama,
eu fui Sita, a esposa admiravel. Ao lado de Krishna eu fui
Rucuminim, a amoravel, a pura. Sou a Doadora da Beleza,
'da Ventura. Sou o lume, a grac,:a, a paz do Lar. De
ver me extasiavam-se os Sabios. Os coristas cantavatn
meus louvores. 0 Ganges seguia-me fecundando o. solo rnais
pobre. E os elefantes celestes derramavam sabre os meus cabe•
los corn as trombas enormes, as Aguas sagradas. Mas que hei de
dar te ? Para ti as minhas maos sera° sempre vazias
E logo diante de mim Surya, o Deus Sol, aparece, olhos de
oiro, maos de oiro, lingua de oiro, num deslumbramento que
cega. 0 seu carro a tirado por sete eguas. Para, olha-me corn
bondosa ironia, fala :
—" Corn Agni e Vayu fui eu da Trindade mais antiga. Chamaram.me Prajapati, o Senhor das criaturas, o Senhor da Vida.
Lembras te do Ramayana, de Sajana, filha de Visvacarma, e
minha Esposa ? Como o tempo passa ; como tudo morre e se
esquece 0 meu esplendor cegava a minha doce companheira_
E Ela abandonou-me. Mas em seu Lugar deixou•me Xaia, a
Sombra, que me deu dois filhos, o Creplisculo da Manila e o
Creptisculo da Tarde. Visvacarma cortou corn uma (aria.
-
-
-
indomita uma porcao da minha came. E as febres lurninosas
cairatu chamejando solace a Terra. 4 No te lembras, d Discipulo
do Santo ? Nunca !este o Poema? Riste ? Foi dessa came viva e
ardente que Visvacarma fez o disco de Vishnu, o tridente de
Shiva e as armas que os outros Devas ensanguentaram em coinbates de atnor e cobra.... E a minha paternidade, investigaste-a
tu algum dia ? Em verdade, as Vidas tido te satisfazem. Sou
filho de Drays, logo • filho de Adytia. Ushas é minha ra[ii e
tambdtu minim mulher. Puchan, uesses tempos diitantes, de
terror e de esperanca, era tneu mensageiro, e os setts navios de
°fro velejavam docemente no ar ".
E fixando em mini o seu olhar de lava :
z Sou eu acaso o Centro do Universo, 6 Discfpulo de
Santo ? Ah, tu pro( lamaste a minha mediocridade de pequena
estrela ; mediste a minha velocidade. A minha comitiva e o
comentario da minha existencia, levou-te a investigar a minha
na caotiea Nuvem Primitiva. Quern sou eu ? Uma
monstruosa gota de !?rata derretida chamejando no espaco, urn
Deus ? Tu é que pciclias responder-me."
E a face do sol, desse divino DadOr de todas as radiosas
energias velou-se, manso e manso, como ao vir da noite, quando
Xaia, a Sombra, sua. EspOsa, o enlaca nos seus bravos. 4 Quem
viria agora, meu Dens ? 0 teu mensageiro talvez para responder
as interrogacaes da minha alma ? E ei-lo af, diante de urn
pobre cheld, falando grave e magestoso
—" Do meu corpo, dizia Indra, nasceram meu Pai e minha
Mai. Onde esta.o tiles ? Onde os meus cavalos amarelos ? E
o meu carro ? E o meu raio ? E o meu arco-iris ?...Ah, tenho
cede. Dal-me a minha Taca de Soma. No dia em que eu
nasci duas coisas fiz, que ficaram imortais : empunhei o meu
raio e bebi a minha taca. Dai-me a minha Tap.. Eu sou como
um peregrino num deserto sem agua. Quero o Soma. Eu s6
pedirei o Soma, a ambr6sia • dos Deuses. Impele-me, como
violentas ventanias, e, quando o bebo, as raps humanas parecem.me como uma formiga. Emborco a minha taca e os dois
xnundos valem a metade do meu corpo. Sou o Deus, bebedor. Bebo como um toiro sedento. Na festa de Trikadruka
bebi o soma e matei Ali, o Dem6nio. Bebo o soma e eis-me
erguendo o vasto Ceti no espaco. 0 soma que bebo b como
dois ligeiros cavalos puxando um carro e uma coluna sustentando urn tecto. 0 hino dos meus adoradores van entao como
uma vaca vai para o seu bezerro... Ah, a embriaguez do swim.
a embriaguez da Formosura
Bebei o divino soma. Eis o remedio, o supremo electuario.
0 meu elefante branco... Nao ouvi mais. 0 Deussar Branco
gritava outra vez como urn possesso :
—" Escuta-me, dizia I A minha palavra é como o vinho,
embora te negue as antigas IlusOes. Bern sei que a d6ce descancar a alma no seio da mentira, da crenca ingenua e suave, a
que os sufis chamam o Erro Antropocentrico. Julgas seres, Homunculo sem nome, a Causa Final de t6da a criacao ? Mas contenta-te corn saber que a Aparencia é a Sombra da Realidade,
corn ver, como a ave noturna, a presa na noite cerrada
Esquece os Muses Nao te basta a escudela cheia, o laroma
dos jasmins, a Forma Bela, os contactos de veludo, a' embriaguez dos combates ? Que buscas mais ? Ha tanto fruto dOce
e ardente, que amadura para a tua Fome. A vida e um festim
para os teus cinco sentidos. E a DOr, pobre cego, a Der, a
Magoa, o Sofrimento, urn aperitivo necessario para as tuas
faculdades de homem. Ah, nao sabes comb a d6c,e beber as
magoas ern tap de cristal e ametistas, finas e fulgidas ao luar
dos sonhos ingenuos ou her6icos sob a caricia escaldante do
Desejo e•da Esperanca. Que mais queres tu ? Ve: Quem te
procura ? Olha E' Ganga, a Agua Sagrada, a Deusa incomparavel, o Ganges. Escuta a sua palavra fluida e e mbaladora,
cheia de ditames e maternais carfcias, ritmos e impetos de
epopeia. As coisas que diz 1 A seducao da sua voz, que penetra o stir 1 Escuta ! "
E a voz de Ganga, esbelta e formosfssima, se soltou no ar :
—" Ah discfputo de Santo Tu yens porventura diner -me
primeira aparicao da agua, recordar•me os tempos em que flutuava no seio da atmosfera ? Foi por Ela que apareceram na Terra
os primeiros organismos ? Eu sou a Criadora das ayes e dos
homens, das feras, das plantas. Eu fecundo os arrozais e
frt
OS.-/DE L SES fiE BENAREfj
CS DEUSES DE BENARE
destruo implacavel as povoacoes imiteis. Tambem sou a Morte.
E por isso me renegas. 0 teu amor a vida enlouquece•te. Nao
ves que se kisses eterno, devorarias os teus irmaos, os teus
filhos ou serias por tiles devorado ? Nao te ficaria uma nesga
de espaco nem um gran de trigo. Mas deixa-me fugir, deixa-me
ir na minha radiosa eureka. Deixa-me ir abracando, beijando
por tOda a parte o junco e o nelumbo, as pedras e as plantas.
Como e doce sentir a luz dancando no meu seio ! A luz, bailadeira de quimera em um pafs de sonho. Deixa-me ir atraves
da terra, tal como leite atraves de uma teta enorme e ttirgida.
Ha. tanta bOca dizendo a sua ..fome e o seu desejo de beber ! E
nao serei eu acaso o leite de Prithivi, Noiva do Sol ? Leite de
piedade e de ternura, bebe-lo e tao depressa o esqueces ! Deixa•me ir. Nao quero ver os teus olhos suplicantes, como dois
mendigos a porta de urn avarento. Nao yes quern cliega ? E'
Agni, o Fogo. Deixa-me fugir. c Que faro eu aqui ? Estdo of
as varzeas de Hind, e os lavradores a minha espera. Irei dizerllies os mantras da fertilidade ".
E logo Agiai, grarde e magnifico, aproximou-se de mim.
Sou na Terra o Fogo que te aquece, na atmosfera o raio, o Sol
no ceu. Os proprios Deuses devem-me o seu esplendor, de mim
receberam a Dadiva Suprerna da imortalidade. 0 meu divino
influx° é em todas as coisas. Eu posso dar a vida aos mortos.
Mas a Razao tolhe-me o bract:). Enrosca-se em volta de mim
como uma serpente... Fui o Nurne domestic°, madrugador e
alegre. Mal acendiam a chama do lar na luz indecisa das
manhas de dezembro, tOda a familia se juntava em volta de
cheia de amor e tie assombro...Fui o Nume e o Amigo
do Homem, visfvel e familiar. Hospede do bramane e do paria,
testemunha da sua accao, sou Conselheiro e Metre. Fui o
medianeiro entre os homens e os deuses, o guaida da Lei
Etema ".
E esvaiu-se no ar.
Diante de mim erguiam-se as duas cabecas de Agni-Naralen, quasi que me tocavam as suas sete maces.
—.` Sou ainda, disse-me, nas bodas de Hind o Xecundivo,
a lampada de born agouro. A Noiva ainda anda em roda do
aFh
11, SY
Fogo Sagrado. Os mortos sao me entregues e os vivos ainda
me oferecem manteiga. Filho do Ceti e da Terra, Irmao gemeo
de Indra, vem para mim como noivas saudosas as oracoes dos
agnivotras, os sacerdotes do Fogo. Mas o Fogo tambem leva a
Morte atraves da vida. Nao viste o Deus corpulento e verm.elho, o Deus corn tres pes e sete cabecas, montado em um carneiro ? Da sua bOca sum linguas de fogo. Suas duas faces representam o Fogo da Terra e o Fogo do Ceti, o calor que é a vida
o fogo que destroe. Todos os Deuses, meus Irmaos, sao assim.
A Morte é tao sagrada como a Vida. E' preciso saber morrer ;
mas é muito dificil aprender a viver, a ter os olhos abertos, os
cinco sentidos transformados em escrinios para recolherem
todos os tesoiros. Senta-te ao IA de mim em dezembro, ao vir
da noite, em urn logarejo do jangle, em qualquer recOncavo
Himalaia, e escuta-me. Hei de dizer-te as coisas misteriosas e
profundas...Adeus, meu amigo ! La vem Krishna para falar-te
do Amor e da Mulher ".
E Krishna, poisando-me a mao no ombro :
—" Ah, mulheres, mulheres ! dizia-me. Ouve-me, pobr
vencido. Se vejo as castas, as virtuosas, as imaculadas, nelas
vejo a Mai divina, vestida de virtude, vestida de luz.., Na
prostituta da Cidade, sentada na sua varanda cheia de fiores,
capitosa e linda, como uma taca de vinho, tambem nela eu vejo
a divina Mai que perdeu o seu caminho, tao longe, ai Lao
ionge I do seu lar... Mulheres ! Como esquecer as Gopis adoraveis, corn as bilhas cheias de leite, a bAca vermelha de betle,
os artelhos cheios de guisos 1 Que lindos ranchos de ayes, nas
dancas de ritmo le de luz, ao som da minha flauta plena de
sortilegio !..,Lembras-te do que dizia Suka, o Sacerdote ?.—
" Como ao fogo, que tudo consome, se nao lanca a culpa de urn
incendio assim bias corn os Seres Superiores, que transgridem
amando, que pecam bebendo na Taca dos prazeres...Mas eu
enganei os maridos do Vraj. Suas mulheres ao vir da noite,
partiam do meu leito sem vontade para os seus lares. De
caminho para Matura, nao querendo ir mal vestido para dar
a morte ao rei de Canca, matei, a beira do rio, o lavadeiro que me ao dava de sua roupa, e levamos, eu e meu
•
OS DEUSES DE BENARES
irmao—lembras-te ainda do Balarama ?—levamos colares e
joias a urn joalheiro. Ensinei a mentira e a fraude aos filhos
de Pandu. Fui eu que proclamei sem pecado o que mentisse
para contratar urn casamento, seduzir uma mulher, salvar a
vida ou a fazenda em perigo, ou por causa de urn bramane. Eu
seduzi Rada, mulher de Agariagocha, e quando o marido enganado passava junto de n6s, transformei-rne em Kali. E o pobre
do marido e a mull er, minha amante, adoraram•me de joelhos,
beijaram-me os pes. Fui eu que encontrei no meu carninho
aquela mulher corcunda e mal apessoada. Tinha ela o feio
nome de Kobja, que lembra uma pedra caindo num pogo profundo. Enterneci-me, compadeci-me da fealdade, que é mais
dura de sofrer do que a vergonha de uma addltera. Levantando a sua cabega corn o polegar e o indicador, pisando os seus
pes com os mews curei-a, e ela ficou direita, ai tao
direita, como uma palmeira. Salvei-lhe o corpo e nao
venci o desejo de possui-lo. Eu furtei o sari as raparigas
do Vraj, quando entravam no lago nuas. Depois...dancei
com alas na famosa, luminosa ronda. Eu ergui sobre
urn dedo o monte Govardana para salvar da tempestade
a b6a gente do Vraj. Eu venci, num famoso combate,
reptil invencivel•; e as suas mulheres, que eram tristes, conheceram a dogura do riso e a dogura do ritmo e a dogura da
atitude Bela, dangando ao som da minha flauta. Subjuguei o
rei Bhuma , o Naral:a, o poderoso demonio ; e as suas dez mil e
cem vidvas, foram ininhas, mais as suas oito rainhas. Fui pai de
cento e oitenta mil filhos, e destrui•os todos na memoravel orgia de Pribasha. Lembra-te de que sou o Tempo,
que tudo devora„ ate os pr6prios filhos. A minha
lenda erotica é alucinante I Lembras•te dela ? Ah, sim,
nada esqueceste. Mas percebe-la ? Es tu o seu criador,
tu que ainda nao sabes o que é o Tempo. E e. tua
alma pOe ao lado dessa lenda radiosa e escura Oda a
grandeza espiritual do meu Guita, o poema sublime e divino
que o Tempo ainda nao devorou. E's como o avarento que
guarda no mesmo cofre o oiro de lei e a moeda falsa.
E desapareceu como se tocado pela ponta de uma langa.
a
OS
EUSES
DE BENARES
Lt
L
.‘,87
0 Deussar Branco acabara de soltar uma gargalhacia e falavame como um velho Gun's a um discipulo impertinente.
—" 1 Que yes tu, Madua-Rau, atraves dessa lenda ? E' o
sonho que se agita em todas as caveiras, mais ou menos perfeito, mais ou menos escuro, mais ou menos torpe, mais ou menos
barbaro. Transformado, aperfeigoado, purificado ou escurecido, 6 o sangue da tua alma e o mel dos teus sentidos. o
mesmo sonho que tu, Madua-Rau, e o 'Aria e o montanhez das
aldeias Himalaias levais atraves da Vida. Mas repara Nos
bois de charrua e nos leopardos do jangle, sonho de vida foi
sempre urn desejo vivaz e limpido, sede que busca a fonte, fome
que procura a herva ou a presa. Mas em ti tudo se aumenta
e se acirra. E' uma sede que nao quere beber a fonte, uma
fome que se ergue hostil e tremenda diante do Tempo e o Espago para os devorar. z Mas que te darn esse vinho de imortalidade, que entorpece e paraliza a energia criadora da Forma
inumerivel ? Quem te diz que o marmore das estatuas nao
foi herva do monte, ou agua de ribeira ? Quem pode dizer-te
que nao es pai e filho de ti mesmo, pai e filho de hervas e
arbustos ? z L6do e agua, poeiras e ruinarias nao
se
fazem em ti verbo e pensamento 1... Escuta•me ; sou o Deussar Branco, o demolidor ;dos idolos. Criei-os urn dia em
bronze e em barro. Dei-lhes uma alma. Fartei.me de
adorn-los. Levei-os pela mao atraves da Historic do
Homem, sempre mais brunidos e mais perfeitos. Dei-lhes
dia a dia, ano a ano, a minha pr6pria perfeigao, e por pontifires
a Paz e a Guerra,.a Fome e a Abundincia. Eles foram atraves
da vida do Homem como os rios que dao de beber ao Trigo e
ao Cardo. E destrui-os, cancado de adorni-los, envergonhado,
de cair de joelhos diante da sua imobilidade sumptuosa e
esteril. Era a propria essencia do teu ser, de meu set -, de todo
o ser rialte visivel, procurando novas atitudes, formas novas,
estimulos e mentiras mais e mais ageis e vivas. E diante de
um Passado,lque era a suprema esperanga, e de um Futuro,
que seria a luta mais gigantesca, muito recruta fugju da linha
de fogo, procurou refugio num sonho, fOra do tempo e do
espago.; ali onde a vida nao é luta, onde nunca se ouviria
58
OS DOUSES DE
-
BEN RES
corn a voz doirada dos singos, os ecos dos combates. Sai dessa
jaula, a que das o nome de Templo e vem comigo. Ouviste a
voz do Passado, como se o sangue dos teus Maiores estivesse a
clamar nas tuas veiaa. Ouve agora a voz do Presente, a minha
voz, que deixara. de ser ironica ou zombeteira, quando deixares
de ser cobarde ou poderas jamais contentar-te corn
o sonho que gelou corn a cinza dos Maiores. Nao o esqueCeras,
nao deves esquece•lo. Mas vem comigo.
E fomos subindo, o Deussar Branco e eu, o discipulO do
Mahatma, eu que lam urn dia o agitador das multidoes e dniolidor dos idolos, agora cativo de todos os sonhos do au a' que
o homem, como urn gato ao borralho, se alaparda para adorinecer as suas rebeldes energias espirituais. Foinos subindo as
cordilheiras mais altas.
Toda a vida esta'ia diante de mini, numa faria indizivel.
Os jangles e as cidades, as lezirias e os mares, tudo passava
diante dos meus olhos. Mas a minha alma voltava•se ainda
angustiada e saudosa, para os Templos de Kassi. Eu havia de
voltar corn o Mahatma; purificado e redimido, para as povoacoes
do jangle. Recobrado ja o divino dom da vista, embora o
Mahatma me houvesse dito centenas de vezes, que me tinharn
arrancado os olhos. Mas is seguindo. o Deussar Branco, que me
prendia e perturbava.
Que novas torturas, eram ainda destinadas para a minha
imaginacao doente ?
Eu sonhava a reintegracao integral do meu set . na Crenca
dos Maiores. Urn vatb panteismo, uma vaga crenca supersticiosa no satisfaziam o ,neu espirito. Torturava-o, a mingua de
recursos sentimentais, corn as tenazes de uma logica estreita e
dura. Era a vergonha, o esmagamento da minha carne. Vagamente, timidamente, ou supersticiosamente crente, ja eu spnhava antes de chegar a Benares, mesmo na Cidade de L\vg. vpi
Subimos o pincaro mais alto e ali paramos.. Eram de urn
lado milhares de imagens sagradas, doutro estatuas de Herois,
Sabios Pensadores, Poetas, Fildsofos. Pareciarn tocadas de urn
sopro de vida. Muitos dosses vultos eram para mim familiares,
outros inteirarnente desconhecidos. 0 Deussar Branco is-me
GS D SES ADE BENARES
r,
dizendo apressadamente nomes sonoros ou misteriosos, as suas
virtudes, os seus defeitos, os seus vicios. Fazia repovoar o ceu
de coisas e criaturas, incriveis, lastimosamente impotentes ou
inexcedivelniente odiosos.
E ernquanto a sua palavra era um cantico, quando dizia a
beleza da Terra e da Vida, palpitante e rumorosa, mesmo ao
referir-se as dores que rasgam as nossas alrnas, essa palavra
amoravel e fina transformava-se em vergalho quando evocava os
habitantes do ceu.
Eu ja nao encontrava nele sequer um resto do pedante moderno que me alucinara e me torturara durante a minha jornada,
corn as suas palestras de sabio feito em cartilhas baratas de propaganda, o que me fazia lembrar o meu prOprio espirito, quando,
na cidade, sonhava a cleificacio do homem.
Era o Deussar Branco, que me falava agora na beleza da
vida natural e simples, da ruina inesgotavel de todos os grandes
sonhos de conquista da Verdade absoluta, da necessidade de transformar a Cidade de Luz ensinando-a a amar a Terra, e colocando-a
diante da Natureza. Era ele que se ria do industrialismo revolucionario de tudo quanto concorrera para tornar insaciaveis a
Forne e a Ude do Homem.
Seduzia-me. Era de-certo a tentacao. lira talvez'que a sua
zombaria, a sua fraseologia oca, a sua ciencia a retalho, o seu
estilo so logravam afastar-me
Olhou-me fixamente e disse :
Que pensas meu amigo ? Sonhas ainda a reintegraco
total do teu Espirito nas SupersticOes dos Maiores ? t Nao te
basta apenas para o teu ser, como ambiente de Vida e de Beleza, a
espiritualidade que te cerca ? Queres ser imortal ? Nao o conseguiras. Foste dos primeiros a combate•las. Ninguern te convidou... Num movimento espontaneo da tua Rua() ou da tua
vaidade saiste a guerrea-los. E's urn renegado. 4 Como é que
pretendes rehave-las agora ? Criaste o teu espirito num ambiente
hostil as crencas antigas ; aos sonhos dos avos. Agora dez vezes,
cern vezes, mil vezes, se quizeres regressar aos ternplos de Kassi,
e mil vezes submeter-te aos ditames das ideas que te parecein
supremas, mil vezes as tuas ideas erguer-se-ao, diante dosses
II
OS DEUSES
•
BEN1rRES
deuses, transfiguradas ou rebeis, para te infligirem os suplicios
da Dtivida, para te conduzirem pela mdo da ironia, ou do Raciocinio, da Negacao Absoluta.
E eu escutava, enlouquecia e deixava que Ele me torturasse
....Aceitava o suplicio sem um protesto, sem uma palavra, sem um
gesto Mas punha os olhos suplicantes nas Imagens Sagradas,
delas esperando all mesmo o remodio a minha tortura.
E o Deussar continuava
—Nem sabes o que ha de belo na Religiao dos Maiores.
Dias sabes perfeitamente que eu estou na verdade. E' por
isso que emmudeces acabrunhado. Porque é que me tfoges ?
Eu quero que a tua Religiao nova seja Alegria, 'Beleza, tsorca,
Orgulho. Nao te quero feito Rishi porque nao podes se-lo.
Os Ascetas, os Grandes, os verdadeiros Ascetas nascem. Eles
sentem ate ao deliquio, na solidao das paisagens, nas monta.
nhas altas, que se crguem como templos sabre os casais de lavradores e pegureiros, que as alimentam, sim, eles sentem Oda
a docura da Terra; das EstacOes, do ceu estrelado. Eles amam
a Terra, a Vida, e tao profundamente, tao divinamente, numa
aspiracao suavissima, que resumem Oda a sua vida no Nirva
na, a reintegracao na vida universal, na Beleza dos mundos.
Tu fugirias do teu Iti:ahatma se por urn luar magnifico, o tivesses visto abandonar a sua esteira de junco e it sentar•se a beira
dos regatos a beijar a agua ou a beijar o chao. Eis porque
Ele se contenta corn o arroz das esmolas. Mas tu I zQueres
tu imita-lo,ifilho de Cidade ? Que idea! Estas doente ; os teus
nervos lembram mendigos desmaiando de fome. Volta para o
Jangle ; iremos depois para a Cidade.
Mas eu continuava corn os olhos postos nas Imagens Sagradas, condoidas telvez_da minha! tortura, do meu inenarravel
suplicio.
—"I Mas porque nao falas pobre amigo ? preguntou-me o
Deussar Branco com piedade.
—"Nao pass°, nao devo, nao quero falar. Preciso conZentrar-me...Para mim o recolhimento é a contricao, respondi
como doido.
Ah I mas nao lograris jamais dessas bOcas de pedra a
OS DEUSgS DE BENLARES
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reposta que procuras para as interrogacoes da tua alma doente.
Os Deuses que te falam sao as criacOes do teu delirio. Consulta, se quizeres, esses idolos de pedra. E Os habitos do
teu espirito arredam de ti a possibilidade de te reclinares na
docura inefavel da crenca ingenua e simples... Z Queres ?...
Perde-te, embete-te na adoracao dos Deuses para que eles te
outorguem a imortalidade bemaventurada.
—" Basta, clamei aturdido. Tu es o mensageiro do Mal...
—" Pois bem, faze a tua consults aquelas Pedras Seculares. Experimenta...
Nao hesitei. Levantei-me angustiado e dirigi.me, suplicante mas resoluto, para as Imagens Sagradas. Aproximei-me
da primeira delas. Era urn meco e formoso Deus, que parecia
sorrir-me corn uma bondade infinita. Parei, ajoelhei a
seus pes e fui murmurando as oracoes, os shlocas, os anintras
que sabia, truncadamente, confusamente, aturdidamente, mas
corn uma esperanca alta e viva a ensopar numa emocao suavissima a minha alma supliciada.
Durante horas, tempo esquecido, Ia fiquei num extase.
Esperava... Mas que esperava eu ? Que essa esbelta e
forte estatua me falasse e me dissesse as graudes, as supremas
palavras de resgate. Mas esperava ernbalde... 0 Deussar Branco
estava a rneu lado, sorrindo piedosamente, enternecidamente,
compassivamente, e logo me disse :
—" Que esperas tu desta pedra ? Fe-la tao formosa e forte,
tao heroica e nobre a mao do Homem para perpetuar o seu
sonho de Vida radiosa, Desejo fecundo, Agitacao infinita
das almas ern ascencao. Esse glorioso Sonho dos Maiores,
batendo nas penedias, ao embate das ondas revoltas, ei-lo quasi
desfeito, moribundo, exangue a estrebuchar na tua came incapaz de se enrijar num movimento de raiva ou de elasticizar-se
num arremesso de lidador, a hora fervorosa e nibida dos cornbates. Vamos, vamos...Vem comigo...
Mas eu fitava a estatua suplicante. Parecia•me que os
seus olhos de pedra se animavam, que o Deus forraoso e forte,
como o desejo ineco, transfigurado em sol de primavera, ia.
falar-me.
.
62
OS DEUSES DE BENARES
—" Senhor ! aqui me tens, a teus pes, transido e desamparado...suplico-te..."
—" Homem ! porque me afliges ? Ai tens todos os Deuses
dos teus Maiores, todos os Deuses da Humanidade ; alegorias
gloriosas, que te veera prosternado diante de mim. Vai seguindo, pede-lhes que te respondam ".
E emmudeceu. 0 Deussar Branco, porem, parecia cada vez
mais senhor de si. Como um guerreiro entrando em urn pais
conquistado, o seu olhar penetrava•me, abalando a minha
pobre fe que germinava em chao quasi esteril.
—" Vai seguindo, se quiseres, dizia. Os teus pes chagados,
cobertos do p6 das estradas, nao podem descan,;ar aqui. Era
mais natural, mas o teu destino nao e o repouso, a paz, a
docura do sono nas alfombras a beira dos regatos. Ah, como
nao seria inefavelmente suave parar aqui, entrar nas aguas
espelhantes, que correm a beira do teu caminho e deixar-se
acariciar, abracar amprosamente pelas limpidas linfas, com os
seus longos bravos de veludo fluido, perfumado pelo junquilho
e nendfares. Braces de virgem noivando, apagariam na
tua came Oda, a fadiga da jornada num grande, amoroso, fundente abraco. Mas tu vais como urn cego, pela mao do seu
Destino ainda mais cego do que tu. Vai ; acompanhar-te ei ".
—" Deixa-me it sbzinho, deixa", bradei ja perdido o tino.
E segui... Milhares, milhoes de Imagens Sagradas, misteriosas,
fantasticas, formosas ou feias, estavam alinhadas diante de
mica, como urn exercito numa parada diante de urn general.
Ah, se de uma dessas becas me viesse a palavra redentora E
o Deussar, como se me houvesse adivinhado o pensamento.
" Interroga-as, meu filho. g Quern te proibe ?• 0 medo, o
receio, a ddvida, a certeza talvez da.desilusao que te espera ?
Bern no fundo da tua alma esta a dolorosa verdade. A fe larga
e simples, luminosa e serena dos Maiores ja nao pode viver
nesta atmosfera maldita. Que importa ! Bastava-te a ti,
no descalabro dos valores espirituais, comecar por criar o amor
da Terra, que foi teu berg() e é o teu lar e sera a tua sepultura.
Os Rishis, que aspiram a Deus, einbebem-se, perdem-se na
adoracao de Prithivi, a Terra multiforme e bela. Eis porque
OS DEUSES DE BENARES
1;
63
Eles sao serenos e fortes, e a Davida e a Dor os nao tortura, e
Deus vem falhar-lhes, s6b os luares magnificos, nas solidOes
augustas, pela boca das hervas, das arvores, dos ventos, das
flores...Ainda na voz poderosa e ululante das tempestades, Eles
encontram a palavra da Beleza e da Perfeicao Suprema. Aguas
de regatos mansos ou de torrentes caudalosas dizern-lhes tAda a
poesia e todo o encanto da Vida, divino sortilegio a que desejas
fugir, nitro indomavel que me exalta ate ao Ceu g Mas tu
queres interrogar essas pedras, pedir-lhes a restituicao das
antigas crencas que ajudaste a destruir, entregar-lhes a tua
alma, como uma taca vasia, para que te encham de fe ? Vai,
pobre amigo, vai...Af estao essas pedras sagradas diante dos
teus olhos: Interroga-as..."
E eu, desesperado, numa irritac.ao sem nome, pondo dois
dedos nos ouvidos :
—" Deixa-me, deixa•me..."
E parei diante de Krishna, que me pareceu voltar a face
sorrindo, corn uma ironia ma. Cal prosternado a beijar o p6.
De repente, como se urn largo sopro de vida Macre e forte
passasse atra yes de t6das essas imagens, pareceu•me
moverem•se, abrirem grandes olhos surpresos, cheios de crispac6es de lume, e urn longo, lascivo, zombeteiro riso ondular,
gorgulhar, estrondear no ar, caindo sabre a came da minha
alma, nda e transida, como um graniso sabre a came de uma
virgem ou de uma crianca. Ia-se-me tudo escurecendo . aos
poucos ; os meus olhos apagavarn•se como duas tochas ' levadas
atraves de uma chuvosa noite de Junho. Nesse riso, que era
agora uma grande, grosseira gargalhada havia uivos de chacais
e silvos de capelos, como facas agudas riscando corn voltipia
meu peito. Nem sequer ouvia agora a voz do Deussar Branco,
nem a do Mahatma, tao acolhedura e profunda. A onde iria
eu, meu Deus ? g Para onde fugir ? Nao sei...Mas se daqui a
Mr-9a quizessem levar-me arrancando•me do chao a que me
prendera como uma talagoia, eu nao iria de certo emquanto
nao tivesse ouvido a Palavra Sagrada, a Suprema Palavra que
me havia de sarar e purificar.
Ja o Deussar Branco me aconselhara : era preciso, era
411111PIPIE
64
OS DEUSES DE BENARES
indispensavel, para a tranqiiilidade da minha alma, que interrogasse as imagens sagradas, agora animadas -,de uma vida
talvez efemera, mas potente e profunda, cheia embora de uma
impiedosa alacridade, que se desentranhava em zombarias e
sarcasmos.
E, numa resolucao inquebrantavel, ergui-me do chao', fixei
um instante as imagens, que ainda se agitavam, banhadas no
esplendor de um ocaso glorioso, exclamei :
—" 0' Davas dos Maiores 1 Senhores do Universo, que
protegestes Rama, criaste a Beleza e a Forca 6 Deuses que
eu esqueci na fadiga dolorosa da minhajornada, nos ardentes
caminhos da Cidade, nos pantanos onde estagnava o meu
desejo adolescente, o meu sonho juvenil ! eu procuro-vos, venho
em busca da Jampada que me alumiava atraves da minha Noite
em que me perdi..."
—" Homem ! que queres to de nos ? Dize, fala mas dine
depressa.Deixa para depois as grandes falas solenes que aprendeste na Cidade..." '
—" Deuses 1 eu quero rehaver as crencas dos Maiores..."
E quedei de medroso...Um curto silancio, pesado, horrivelmente frio, como se um lencol de gal° envolvesse tudo urn
instante...
Mas eu, impulsivo, irresistfvel e veemente :
—" Quando sereis comigo, 6 Deuses dos Maiores ?
E todas essas Incas de pedra se abriram, todos asses olhos
chisparam lume, mais vivamente se agitaram as imagens, e a
sua voz forte e fremente, como um breve relampago de peconha
varou a atmosfera .2undido num Longo, longinquo e alucinante
grito:
—" Nunca mais ! "
A AMBROSIA
(C ON TO)
pelo Prof. Laxmatiroo Sardessai
S6cio Efectivo do tusliluto Menexes Braganca
um dia, ere saiu da case, em Tonga jornada, cm busts da
J
ambrosia que nos Ultimos anos tinha sido o seu ideal e
sua obcessao.
Irritava-se quando os amigos !he lancassem Sorrisos maiiclosos, ou disscssern que a ainb;6sia nao passava dunes convencao
poetics. Outros mdavam do pobre jovem que. cm sua opiniao,
vivid no reino de utopias, e em vez de procurer Lima bela noiva c
abracar uma profissao rendosa, falava, dia e noire, daarobrOsia.
E argumentava apaixonado, em favor dense bem =upremo que
p
havia de livrar a humanidade do maior flagelo quo a atornienta.
desde tempos imemoriais : a More. SO e ambrosia rodera propera felicidade integral, habilitando-a a fruir todas
de:icias
~da
da vida mundana, perenemente, -sem - nenhum estorvo, SCM .nenhurna
sombra de medo, e em Bozos continuos. Seria a ambrosia tuna
convencao, urn conceito ilusOrio ? No podia ser Entao sao
falsos os Vedas e es Puranas e os poemas epicos que cantam
gloria desde licor divino, extraido do seio dos mares pelos proprios deuses?
0 Pamayana raid do 'Puspak ., aeroplane (Ivo hole e urna
realidade. A radio, a televisao, a bomba atomica, c outras armas
nucleares que mais nao sac sena° a materializacao dos ideals e
ilusoes ou utopias poetizadas nos livros sagrados de eras remolds ?
Sim, so a ideia e real, porque dela nasce o 'nuncio concreto,.
palpavel. A ideia gera milagres, cria misterios. do que o mundo
esta cheio e que representam o progress° humane. Vio, a ambrosia,
tao falada nos Vedas, tae querida dos deuses, porque hies days
a imortalidade, nao pod' scr Lima ilusao uma uropla Pensava
. L discuriar, certeza da SUd
assim
,
yorojpw"..
1
326
BOLETI M DO INSTITUTO MEN EZ ES BRAGANcA
Corno 6 curia e efemera a vida humana! A morte empolga ludo
corn facilidade e destreza assombrosas. Ninguern pode dete-la.
A beleza, a force, a opulencia, nada disso pode evitar a sua
temerosa garra, garra fatal, que Lorna o bolo corpo human° denrro
de instances, urn farrapo que o logo devora ou a terra decompere.
A terra esta semeada de belezas. Fla-as no mar, calm° ou proceloso, e no ceu azul ou nublado. As nuvens do firmament°, as
ondas do mar, a aqua dos lagos e as flores qua neles desabrocham
e baloucam, tecidos de mil cambiantes de cor, perfumes embriagantes, faces de virgens, o canto des eves, tudo isso a tap bolo! Mai
a vida humana a infinitarnente curia e fragil para sentir, prover,
abracar todas essas delicias, corn que a natureza dotou essa
maravilhosa terra. Mas, to esta a .rnorte hedionda, de fauces
escancaradas, a vigiar, e espiar cada movirnento conscience ou
inconsciente, de entes humanos, e se ela a astute nos seus designios
e feroz na sua execucao. Coma mesina calma e insensibilidade
arrebata uma crianca dos bravos da sua mae ou apaga o sopro
da vida duin filosofo que procura decifrar os mist6rio da vida, da
morte, de Deus. E ela surpreende-nos, colhe-nos a quaiquer
moment°. 0 automOvel na corrida vertiginosa atropela a crianca
que, despreocupada e alegre, atravessa a estrada, e la esta a torte
toda poderosa, a extinguir tium relance a chama da vida tenra.
Ele tinha presenciado, corn infinite tnagoa, tantas mortes dos
seus amigos, vizinhos, parentes, alguns dos quais jovens, corn
grandes ambicties e sonhos da vida, colhidos instantaneamente pela
E para ctImulo da desgraca, urn dia.
garra da morte soberana.
quando entrara ern casa, 2ncontrara a sua mae e os seus dois
a Desde aquele momento rinha
irmSos varados por urn raio do Cu.
encetado uma batalha feroz contra a rnorte que desapiedadamente
acabava de roubar os seus entes mais queridos. Sim, ele queria
mater a prtipria morte!
Safu, por isso, de casa ern longa jornada, em busca da
ambrosia que, estava certo, algum dia, apanharia ern alguma parte,
e depois todos os homens gozariam es delicias eternas da vida!
' E 36 o homem, porque bavia de morrer ? Perguntava a sl
prOprio. Passam milOnios e o c6u, a terra e 0 mar, estao eternamente a mover-se. Os rios, os monies, os astros, tudo. ludo
animado do movimenro e vida, desconhprp n horror da mom.,
e o homem que e a criacho sublime de Deus, feito a sua semelhanca, o Inventor de descobertas, so ele, porque hd-de ser a vitima
4
A AMBROSIA
327
dos caprichos da morte que nenhuma lei regula ? 0 homem quis
controls-le e descobriu a ambrosia, licor divino que expLIsa da
face da terra esse espectro ttrico. Sucracharla era possuidor do
do mantra " Sanjivani "que fazia ressuscitar os demonios mortos
nas batalhas pelos deuses. E os deuses possuiam a ambrOsia.
E agora ele marchava a p0, descalco, arrostando os rigores
do Sol, fixando-se urn ou dois dias, ern cads aldeia, interrogando
os seuvhabitantes sobre 0 paradeiro da ambrosia. Uns condoidos procuravam dissuadi-lo dessa tarefa ingloria e fatal. Outros
trocavam, vendo nele urn louco que, urn belo dia, havia de sucumbir
ao excesso de fadigas ou a inanicao ou arremessado como um
farrapo pela ventdnia dos desertos.,
Uma noire, urn bramane, bone e compassivo, hospedou-o em
sus casa, e ofereceu-lhe urn copo de leite puro, e em palavras
meigas falou assim : " Jovem amigo !. 0 leite que hebes é a
ambrosia deste mundo. Porque vais arriscar a tua vidd por uma
coisa imaginaria ?
E o iovem magoado saiu da case sem tocar naquela behida
fresca, rindo - se dd ignor3ncia do bran-lane. E prosse,:rulu 11 -1 sus
jornada.
Nadel o detinha, nada o desanimaya. Percorreria longas distancias, atravessaria montes e deserlos, e chegaria um dia do tic dos
Himalaias onde qualquer " yogui - ou eremita hdvia de apornar-lhe
o segredo da ambrosia, corn que havid de redimir a hurnaniddde
do flagelo da morte.
Decorriam meses e a sus Iona jornada cominuava,
de mil perigos, e nao hdvid noticia certa dd ambrosia.
Penetrou locais de mail dificil dcesso. Visitou erem:terios
onde os Faquires e os Yoguis faziain penitencia. Einrou nos
antros de (eras, devdssou vetustos montimentos, conversou corn
pessoas que, abstrdindo-se de todd d mdteridlidadi:
viviam, quaffs sombras no mundo esniritual do Nirvana 0,1 Brdaad
Elas confortavarn-no contanto histOrias dcerca
que
nunca iinham visto, mas que devia existir ern qualquer lugar
secret°, guardadd pelas maos dos deuses.
Perdia o medo da morte que dances temid. Dotninava o sett
coracAo e os seus instintos
Tinha-se identificado Innin corn
ambrOsia
que
nrlo
se imnortava corn os snfrwRmos
seu ideal, d
0 seu corpo eSidVd magro, siin, mas riio como dS necirds. Amevia
32s
130LETIM DO INSTITUTO MENEZES 1312AGANcit
a humanidade, rejuvenescida, imortal coma sua ambrOsia idealizada
Assim errou durance iris meses. Urn dia, chegou as faldat.
duma montanha onde viu num covil, urn eremita absorto em meditacao. Curvou-se reverente perante o velho singular. 0 homem
abriu os olhos, viu o jovem a quern abencoou murmurando:
" Seras imortal, meu filho."
"Como posso ser imortal, sem a ambrosia que procuro ?
" A tua infinita fe fara que enconlres a ambrosia."
" Sera isto possivel ?"
" Porque nao ? Se o hornem coma sua fé pode alcancar
prOprio Deus, porque nao alcancara a atnbrOsia, que é a sua cria
E meditando por alguns minutos, o eremita .assim pros
seguiu : " Marcha em direccao do norte. Ap6s urn dia de cami
nhada encontraras urn deserto. Atravessa-o. No extremo, encon
iraras, esculpido numa macica pedra, um pequeno tempi°. Est,
sera o terrno da tug viagem e teras a ambrosia que desejas."
?
'4
"
0 iovem reanimado por essas palavras do santo eremite
marchou na direccao do norte, ansioso por chegar, quanto ante
ao templo indicado e alcancar a ambrOsia.
Depois duma jornada de dez leguas entrava no deserto.
sua decisao e a sua esperanca davam-lhe agora novas forcas qu
impeliam pars diante o seu corpo cansado. 0 sol queimava-r
Nao havia sombra onde se acolhesse. As nuvens de areia turva
vam a atmosfera asflxiante. Em redor nenhuma criatura human,
nem ayes. So miragens de agua e muito longe urn arvoredo na
faldas do monte a desenhar-se no horizonte turvo.
E o iovem marchava agora, lento, corn urn passo pesado
tremulo. Eslava sequioso. Lima labareda a arder nas entranhv
0 vento qual ferro ern brasa Iambic o seu corpo esqueletico, preste.
a ceder, perante a rajada do vento e a procela da areia escaldantt
Mas is-se aproximando do arvoredo onde havia de descobri
o tesouro de infinita felicidade : a ambrOsia.
Agua! Agua! Clarnava todo o seu ser. Tremia, balouca•,
como embriagado mas endireitava•se logo, sacudindo corn esforcr
o torpor que perpassava pelos membros. Parecia-lhe agora que i.
cair e dormir pars sernpre o sono da eternidade.
•
•
..1:NA
)S1A
329
Mas a lembranca
da ambrosia era tao forte que, sob:'essaltado,
arremessava para
diante corn impulso poderoso, o seu
corpo tao
ligeiro outrora, mas
to pesado agora.
"Meu Deus! Vou rnorrer! " gritou
numa voz fracas " Quern
me thud um pouco de cigua ?"
A cinquenta passos pOde lobrigar
o arvoredo.
Perdia a noc5o das coisas. Tudo se
confundia no nevoeiro
denso, is perder a
consci&icia,
os
sentidos
ja nao podia arrastar-se. Ofegante, de olhos semi-abertos,
a Ifngua de for& o corpo
suarento. E neste
estado
tombou
precisamente,
guard° corn um
exiremo esforco, queria
dicancar o arvoredo.
Decorreram alguns moinentos. 0 jovem sentiu, emao, urn
delicioso !icor perpassar pela garganta e descer
ate as entranhas,
inundando o seu ser, de stibita frescura e vide).
Abriu os olhos, extasiado. Neste moment° de extrema felicidade, balbuciou : " ArnbrOsia!"
Eque urn eremita condoido da sorte do iovem idealista
estava a ministrar-lhe a agua da fonte

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