UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências Humanas Curso de Licenciatura em História Monografia “Somos o Suco do Carnaval!” A Marchinha Carnavalesca e o Cordão do Clube Social 24 de Agosto Juliana dos Santos Nunes Pelotas, 2010 Juliana dos Santos Nunes “Somos o Suco do Carnaval!” A Marchinha Carnavalesca e o Cordão do Clube Social 24 de Agosto Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Pelotas como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em História. Orientadora: Cláudia Turra Magni Pelotas, 2010 In Memorian Ao vovô José Liberato Nunes, pelas longas tardes de “mentiras”, Ao amigo Renan Martins, “como uma estrela nova e o seu barato”. Zarité “Minha primeira lembrança de felicidade, quando eu era uma pirralha magrela e desgrenhada, é a de mexer ao som dos tambores [...] A música é um vento pelos anos, pelas lembranças e pelo temor, esse animal preso que carrego dentro de mim. Com os tambores desaparece a Zarité de todos os dias e volto a ser a menina que dançava quando mal começava a andar. O mundo estremece. O ritmo nasce [...] atravessa-me como um relâmpago e segue em direção ao céu, levando minhas aflições [...] os tambores vencem o medo. Os tambores são herança de minha mãe, a força da Guiné que está no meu sangue. Quando eu ainda não sabia andar [...] ele me convidava a me perder na música como quem se perde num sonho. „dance, dance Zarité, porque escravo que dança é livre... Enquanto dança.‟ Eu sempre dancei.” Isabel Allende – A Ilha Sob o Mar AGRADECIMENTOS Quero agradecer em primeiro lugar, aos meus pais, Cláudia e Paulo, por compreenderem a importância dos livros e das artes em minha vida, obrigada pelos incentivos e por me liberarem do papel de filha e amiga, agora, meus velhos podemos dizer: Valeu! Agradeço também a minha avó Maria que com sua sabedoria, do alto dos seus 78 anos, passaram, e ainda passam, para mim aquilo que os livros não puderam desvendar: a sabedoria da vida. Obrigada vó por pentear meus cabelos sem doer! Quero agradecer a duas tias que tiveram presentes: Cláudia e Cândida. Tia Cláudia obrigada por me mostrar o mundo fantástico de Gabriel Garcia Marquez e por apontar o caminho da cultura! Tia Cândida, Candoca! Obrigada pela doçura dos conselhos, pelas noites de filmes e Amaury Jr (risos), por ler meus trabalhos e por me aturar com minhas lenga, lengas sobre Clube 24! Aos meus irmãos, Kevim, Patrick e Wellington, os quais não vi crescer, mas que sempre carrego no coração. Meu sobrinho Guilherme, safado da dinda! Devo mil agradecimentos à minha irmã Patrícia, pelo carinho, compreensão, por ouvir falar várias vezes do Cordão União da Classe, por ter ajudado nesta pesquisa e por ser uma grande companheira em todos os momentos, como diz um poeta: quero sempre ver sua risada mais gostosa, obrigada Palicha! Quero agradecer a minha segunda família, de italianos e de gente de todos os pêlos, que me fizeram rir em muitas ocasiões! Obrigada Sr. Francisco e D. Maria Angélica por me receber em sua residência, de maneira intrometida e extrovertida. Gracias pelo feijão D. Angélica que substituiu a altura o de minha avó! Seu Chico, obrigada pelos churrascos, pelos palpites na novela das nove e pela torcida nos jogos do Grêmio! Obrigada minha querida Josete, ou simplesmente Jô, por abrir meus caminhos para outros mundos, por estender a mão na hora em que mais precisei, por ser companheira de todas as horas e momentos, de risos, comilanças e alegrias, por acreditar que dava pé essa pesquisa e por ser simplesmente a mecenas de minha vida! Gracias ainda ao Jair que me mostrou o carnaval pelotense, por incentivar de maneira alegre, essa trajetória, por seus conselhos, como professor, e por sua amizade! Tem amigos que passam por nossas vidas e deixam rastros de luz, simplicidade e amizade incondicional, esse é o caso da minha querida Joice que tanto me acolhe e me quer bem, a quem eu devo parte da minha caminhada, por esses longos 11 anos de amizade e companheirismo, por ter ajudado nesta pesquisa, por ouvir meus lamentos e por compartilhar sua comida, sua vida e principalmente, por sentir bater em nosso rosto, o sol de nossa amada Jaguarão, por isso e muito mais é pouco dizer que és importante, és eterna! Obrigada! Desejo ainda agradecer a dois amigos queridos, também de longa data, mas que por percalços do tempo, e das idas e vindas, nos afastamos, mas que agora juntos novamente, compartilhamos alegrias e tristezas, Maicom e Marlize, obrigada por momentos incríveis juntos! Na trajetória acadêmica encontrei verdadeiras estrelas, amigas que quero junto para o resto de minha vida e que, na morte e no nascimento, foram braço direito e esquerdo, porto seguro, companheiras de choro, dor, alegria e sucessos: Paula e Andréia eu simplesmente amo vocês! A essas estrelinhas juntaram-se mais quatro: Sibele (nossa Lady Gaga da Baiúca) e Vanessa Devantier (nossa francesa, mestra!), gurias gracias por aturar minha vaidade excessiva e por ser amigas caras a quem devo muitas experiências! Obrigada ainda ao Marcelo, pelos chás das quatro aos domingos, pelo arroz com couve, pelo ombro que muitas vezes chorei e ri e pelas noites em que invocamos a Deusa Diana! E a Vívian, minha pessoinha adorada, que com sua meiguice me fez ser mais delicada; obrigada pelas dicas nesta pesquisa e pelas vezes em que fostes me prestigiar, é sempre bom ver um rosto amigo numa platéia de estranhos! Não poderia deixar de agradecer a Taiane, meu grande exemplo de coragem, determinação e valorização, tenho só palavras de afeto e de amor para te ofertar no fim dessa trajetória, obrigada por acreditar que eu um dia iria conseguir pegar o canudo, gracias amada pelos conselhos e pelas lágrimas de felicidade ao me ver apresentado esse trabalho de pesquisa. Ao meu amado companheiro de partido, de festa, de amizade, Júlio César (meu ébano tudo de bom!), por todos os caminhos, lágrimas, risos, vinhos, curtidas, pelo incentivo ao longo do curso e por ser sempre a minha sombra, o meu irmão, aquele que mesmo em silêncio entende as minhas palavras, obrigada ébano! Aos professores com carinho: Cláudio Martins (pelos primeiros ensinamentos em história), Cláudia Magni (por aceitar orientar esse trabalho por fazer eu me apaixonar pela antropologia), Marília Stein (pelas dicas e leituras dessa pesquisa, por seu sorriso que alegra e pela flauta doce), Mário Maia (por seu espírito livre de amarras e preconceitos, por co-orientar essa pesquisa e sempre ter acreditado nela), Caiuá Al-Alam (pelo incentivo inicial, por sua alma visionária e provocadora). Obrigada ainda, aos professores Rogério Rosa, Edgar Barbosa e Paulo Pezat. Obrigada a minha querida comunidade! Clube Social 24 de Agosto, cada suor desse trabalho é para vocês e por vocês, pela valorização do negro jaguarense e desse espaço que me recebeu de braços e coração abertos! Quero por fim agradecer, a Maria do Carmo (INSS!) por seu espírito jovem e sua alegria pelas coisas da vida e por me acompanhar na entrevista com Vado que abriu caminhos para essa pesquisa! Gracias! Às funcionárias do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, D. Nilsa e D. Isolda, obrigada por ficarem até as seis, pela companhia e pela atenção! Obrigada ainda a Antônio Vergara, pelo incentivo, por me mostrar a melhor escola para que eu pudesse lecionar e por seu sorriso intenso e maroto! A querida Andrea Lima, por ouvir conversas de “pé de página” sobre minhas pretensões carnavalescas com o União da Classe! Obrigada meus queridos, por construir mais uma História! Lista de Imagens Imagem 1 – Cordão do Clube 24 de Agosto e a Fantasia de Mexicano..........30 Imagem 2 – Cordão Carnavalesco União da Classe........................................48 Imagem 3 – Desfile do Cordão União da Classe..............................................58 Imagem 4 – Cordão União da Classe no Clube 24 de Agosto.........................63 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................9 PARTE I - A Fronteira Sul - Brasileira na Década de 1920, o Carnaval e o Clube Social 24 de Agosto.........................................................................18 1 – Entre o Passado e o Presente.............................................................18 2 – Jaguarão na década de 1920: Um contexto que justifica um carnaval uniforme......................................................................................................20 3 – Por um carnaval organizado: Abaixo ao entrudo!..................................24 4 – Clube Social 24 de Agosto: Classe Operária e Pertencimento étnico...29 PARTE II – O Cordão Carnavalesco União da Classe, a Performance na Avenida e as Marchinhas Carnavalescas......................................................40 1 – O Presente do Cordão Carnavalesco União da Classe: A inserção em Campo e a Observação Participante.............................................................40 2 – Cordas, Cordões e Comparsas: O Cordão Carnavalesco do Clube 24 de Agosto no Carnaval Jaguarense....................................................................44 2.1 – Cordas, Cordões e o Hibridismo Cultural.............................................49 3 – “Somos o Suco do Carnaval!” O Cordão União da Classe e a Marchinha Carnavalesca.................................................................................................53 Considerações Finais.....................................................................................64 Referências Bibliográficas..............................................................................68 INTRODUÇÃO Jaguarão está situada na fronteira uruguaia, ao sul do Rio Grande do Sul, uma cidade com um passado de pujança histórica e arquitetônica: as portas da Rua Quinze de Novembro, a Matriz do Divino Espírito Santo, a Ponte Internacional Mauá, o antigo hotel Susine, nítido na memória sentimental de muitos jaguarenses, as antigas charqueadas e as ruínas da enfermaria militar fascinam os que por lá vivem e aqueles que estão de passagem. Depois de um longo período de esquecimento, o contexto atual se mostra otimista no que tange à preservação dos bens arquitetônicos que ainda se encontram “vivos” e à valorização da história local. A implantação da Universidade Federal do Pampa que, dentre outros cursos, oferece a Licenciatura em História, atende uma reivindicação da própria comunidade e parece bem simbolizar essa mudança . É neste momento de transformação das mentalidades, de se voltar para a própria história, de se valorizar feitos e prédios - recentemente o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tombou todos os prédios do centro histórico da cidade - é que me encontro, enquanto aluna de um curso de história, pela Universidade Federal de Pelotas, refletindo sobre o passado da minha cidade natal, da comunidade negra e de uma das mais populares festas do Brasil: o carnaval. A escolha pelo tema carnavalesco foi decorrência de uma busca por uma história que ainda deveria ser “redescoberta” ou “relida”; foram árduos os tempos que passei imersa nos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, quando a agonia de ler jornais, que nada me contavam, tomou-me de um sentimento pessimista. Em julho de 2007, durante o XXIV Simpósio Nacional de História, realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) tive a oportunidade de prestigiar um simpósio temático de História e Música Popular, ramo de estudos que até aquele momento desconhecia. Foi quando ouvi o professor Adalberto Paranhos, um dos coordenadores do simpósio, falar sobre música popular no Estado Novo e sobre os sambas produzidos naquele período. Foi desta forma e naquele lugar que defini meu objeto de estudos: o samba! Mas que tipo de samba estudar? A quem deveria recorrer? Onde deveria ser feita a pesquisa? Esses questionamentos iniciais fizeram com que as lembranças de minha infância ficassem mais vivas e desta maneira percebi que a pesquisa só poderia ser feita em um lugar: Jaguarão. Em junho de 2008 resolvi procurar músicos de Jaguarão que pudessem contar a história do samba numa cidade de fronteira. Escolhi neste primeiro momento dois reconhecidos sambistas da cidade: Mestre Vado e Tio Paulo – com este último possuo laços de parentesco. Ambos conviveram com meu avô paterno e esse primeiro contato reavivou as lembranças das tardes musicais passadas com ele e reforçaram a ideia deste estudo. Assim é que numa tarde nublada de julho de 2008, acompanhada pela amiga Maria do Carmo (que proporcionou a entrevista) comparecemos à residência do Mestre Vado, na cidade de Jaguarão, na Rua do Cordão. Quando chegamos, este já nos esperava pronto com suas lembranças do tempo em que era “menino de calça curta” e desfilava no chamado “Cordão do 24”. Foram duas horas de conversa, uma verdadeira imersão nos carnavais antigos e músicas misturadas com candombe. Saí cheia de expectativas e de perguntas. Os questionamentos que me surgiram com a narrativa de Mestre Vado foram: como era o carnaval em Jaguarão, uma cidade de fronteira, no começo do século XX? Como eram suas organizações carnavalescas? Como era a música deste carnaval? Qual o sentido de organização e uniformização, para os negros, nos festejos carnavalescos, já que essa festa é considerada como uma “grande bagunça”? Por que escamotearam sua identidade étnica? A partir das memórias de infância de Mestre Vado, quis saber mais sobre esse carnaval recém descoberto. Sendo assim, procurei Tio Paulo, que, com sua narrativa tímida, me fez perceber que enfim havia encontrado aquele que seria o tema de minha pesquisa para a conclusão do curso de história: os cordões carnavalescos do Clube Social 24 de Agosto. O Clube Social 24 de Agosto de certa forma sempre esteve presente em minha vida, seja pela participação de meu avô ou pela minha identificação com a comunidade negra da cidade; No período em que realizei as entrevistas, o “24”, como também é chamado, vivia dias difíceis, pois o prédio que abriga a sede social do clube foi leiloado, correndo o Clube ainda hoje o risco de extinção pelo perecimento da sua sede. Movida pela curiosidade por esses cordões carnavalescos e sua forma peculiar de desfilar, tocada pelas dificuldades do clube que tanto frequentei, voltei aos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão a fim de encontrar algumas pistas sobre os antigos carnavais do Clube 24 de Agosto. Comecei minha incursão nos jornais a partir do ano de fundação do Clube, 1918, porém nada encontrei sobre os cordões carnavalescos. Neste interregno de tempo, ocorreu em Jaguarão um encontro para discutir o patrimônio cultural, histórico e arquitetônico da cidade do qual participei como ouvinte com o intuito de interagir e saber das propostas para a área da história e cultura locais. Este encontro foi importante, pois me ofereceu a oportunidade de entrar em contato com a diretoria do Clube 24 de Agosto. Foi quando de fato entrei num campo propriamente etnográfico. Conheci outros sócios e também participantes remanescentes dos cordões do Clube, o que possibilitou um aumento no número de colaboradores para a pesquisa, facilitando, ainda, um mergulho em outras fontes, tais como as atas do Círculo Operário Jaguarense e fotografias doadas por diversas pessoas, entre membros da diretoria, sócios e músicos Motivada por esses novos contatos, procurei o Senhor Nergipe Machado, apontado pela comunidade como a pessoa que mais conhecia a história do Clube e reconhecido por todos como um apaixonado pela entidade. Foi através da voz e das lembranças deste senhor de 70 anos, que desde os 10 frequenta os salões agostinianos, que vi se desvelar a trajetória dos cordões, me dando de presente o Cordão Carnavalesco União da Classe, que pertenceu ao Clube 24 de Agosto, no começo do século XX. Com aquelas lembranças e com um documento escrito pelo próprio Nergipe, identifiquei a composição do Cordão, os nomes dos músicos que fizeram parte da orquestra e o ano de sua fundação, 1928. Retornei à pesquisa documental no Instituto Histórico e Geográfico, utilizando como fonte o jornal “A Situação”. O universo da pesquisa, portanto, é o carnaval jaguarense no início do século XX, a partir das memórias de músicos e de alguns integrantes do cordão carnavalesco União da Classe, juntamente com as reportagens retiradas do jornal “A Situação” e duas fotografias que foram doadas por pessoas que participaram da agremiação. Cabe lembrar que se trata de um fragmento da história carnavalesca da cidade, pois o ponto de partida para esse estudo diz respeito a um cordão carnavalesco apenas, o União da Classe, que pertenceu ao Clube 24 de Agosto, sendo que na cidade, para o período em questão, existiam, ao menos, cinco cordões carnavalescos ligados a outros clubes sociais e também agremiações independentes, como o famoso bloco Troveja Mas não Chove. O estudo deste tipo de estrutura carnavalesca ainda é problemático e as fontes bibliográficas não trazem algo elucidativo no que diz respeito à formação desse jeito de pular o carnaval, suas origens e performance; os temas mais abordados em relação aos cordões são a musicalidade, a partir das marchas carnavalescas , e como organizações negras de resistência com a formação de Clubes Sociais étnicos. Neste trabalho em especial, com um recorte temporal pequeno ou até mesmo inexistente, serão utilizados para o estudo dos cordões carnavalescos, as obras de José Ramos Tinhorão (1979), que traz uma visão geral da prática, apontando para uma possível origem; Olga Von Sinsom (2005), que trabalha sobre o carnaval afro-brasileiro de São Paulo, onde ela aborda a formação de cordões carnavalescos; Iris Germano (1999) e Marcus Rosa (2008), que trazem em suas dissertações de mestrado o contexto do carnaval gaúcho. Especificamente sobre o cordão União da Classe ainda se deve levantar questões como: pertencimento étnico e etnia, tal como utilizados por Fredrik Barth (1998), Roberto Cardoso de Oliveira (1976) e Maria Catarina Zanini em estudo sobre imigrantes italianos (2008). A partir do contexto de fronteira, onde as trocas culturais com Uruguai puderam ser percebidas, comparo os termos cordas e comparsas que aparecem nos festejos carnavalescos daquele país. Para desenvolver esse tema e situar o carnaval jaguarense próximo do carnaval uruguaio, utilizei os estudos de Milita Alfaro (2008) e Liliane Guterres (2003), que mostram como a origem das comparsas e do candombe são similares à origem de alguns folguedos brasileiros, no caso de Jaguarão, os cordões carnavalescos. Para contextualizar o carnaval nacionalmente, desde o aparecimento do entrudo até sua condenação, no final do século XIX, passando pela introdução de práticas carnavalescas européias e os bailes de salão, optei pelo estudo de Marlene Pinheiro (1995) que faz uma abordagem psicológica do festejo, desde o surgimento no mundo, sua mitologia, até o aparecimento das escolas de samba do Rio de Janeiro. Além de Pinheiro, também se fará uso do trabalho de Roberto DaMatta (1997) que, por sua vez, aborda o festejo sob o viés da sociologia, fazendo uma comparação com outras festividades consideradas por ele como dramas sociais. Cabe ainda contar como era a prática momesca no Rio Grande do Sul; para isso me socorri da pesquisa de Álvaro Barreto (2003) sobre o carnaval na cidade de Pelotas, em que o autor mostra as formas de pular o folguedo desde os fins do século XIX a meados do século XX, e os estudos de Beatriz Loner (2007) sobre os Clubes Carnavalescos de Pelotas, complementados pelas referidas dissertações de mestrado de Marcus Rosa (2008) e Íris Germano (1999). Para que se possa interpretar a prática carnavalesca dos cordões é importante que se compreenda dois pontos de partida: por um lado, o tempo presente, em que a valorização histórica e patrimonial leva com que o Clube Social 24 de Agosto – um clube étnico – passe da invisibilidade à visibilidade, sendo pauta das discussões do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) sobre patrimônio afro-brasileiro em Jaguarão, além do dilema vivenciado pela comunidade agostiniana, de perda desse espaço por conta do leilão do prédio onde funciona a sede do Clube. E, por outro lado, o passado longínquo, que nos reporta para o início da República brasileira, onde se estabelecem o capitalismo incipiente e o primado do trabalho, baseados na doutrina positivista de Auguste Comte, quando a ordem e o progresso tornamse lema de um país moderno e civilizado. Neste contexto de “revolução” urbanística, do fim da escravidão e surgimento da nova ética do trabalho fez-se necessário compreender a nova rotina trabalhista, com a separação entre o trabalhador e seus instrumentos de trabalho, tal como foi pesquisado por Sidney Chalhoub (2001). Contamos ainda com o auxílio dos estudos de Sandra Pesavento (1990), que retrata o cotidiano gaúcho durante o primeiro período republicano. Esse contexto será abordado na primeira parte desse estudo, para que depois se possa compreender o sentido das organizações carnavalescas em formato de corda. Em termos metodológicos, questionava-me que rumos poderiam ser dados para esta pesquisa e o que resultaria dessa mistura entre métodos de ciências ditas diferentes. Por um tempo isso causou certa inquietação, mas com o trabalho de campo, o convívio com os colaboradores e à medida que se estreitavam estes laços de amizade, percebi que o método da história oral havia ficado insuficiente para dar conta de conversas paralelas nas ruas, quando encontrava com algum de meus informantes ou no final de algumas entrevistas concedidas. Portanto, optei por utilizar metodologia etnográfica, que permite transitar com facilidade entre o passado e o presente, flexibilizando, assim, o recorte temporal, que se apresenta como campo desta pesquisa. Este processo foi possível, pois me envolvi, durante a graduação, em diversos grupos de pesquisas relacionados à área da antropologia1. As contribuições de 1 O primeiro grupo de estudos com ênfase nos trabalhos de Marcel Mauss (2006-2007), coordenado pelo professor Edgar Barbosa Neto; o segundo grupo foi em antropologia da performance (2008 até o presente), coordenado pela professora Cláudia Magni e o último Malinowski (1976), assim como as de Foote-White (1975), sobre o trabalho de campo e observação participante, foram fundamentais em termos do desenvolvimento da metodologia. Ainda se fez necessário o trabalho de Anthony Seeger (1992) sobre as etnografias musicais, para dar conta da interpretação das marchinhas carnavalescas do Cordão União da Classe e sua performance musical na avenida, considerando o caráter étnico e político que possuem. Sobre os primeiros sons produzidos pelos negros no Brasil, Tinhorão (2008) aparece novamente como a grande referência, trazendo as influências de gêneros musicais que darão origem a outros na primeira metade do século XX. Isso será abordado na segunda parte desse trabalho, assim como a origem das marchinhas carnavalescas e os primeiros gêneros musicais ligados ao carnaval, como polcas, mazurcas e valsas, até a consolidação das marchas carnavalescas. Para compreender a estrutura performática dos cordões carnavalescos, os estudos da antropologia da performance se fizeram necessários, tomandose os conceitos de Victor Turner a partir da leitura de John Dawsey (2005 e 2006), que permitem tratar o carnaval como um evento liminar e regenerador da sociedade, além de mostrar a inversão e suspensão dos papéis durante o tríduo momesco. Além desses autores, o conceito de unidades mínimas ideológicas de Gilberto Velho (1982), para poder analisar a canção carnavalesca que se propôs neste trabalho, foi fundamental, na medida em que consolida o pensamento de que o carnaval pode ser visto como um instrumento político por parte da comunidade negra de Jaguarão. Os conceitos de etnia e raça serão brevemente abordados a partir de autores como Renato Ortiz (1982), Peter Fry (2005) Fredrik Barth (1998) Patrice Schuch (2002) e Roberto Cardoso de Oliveira (1976), ajudando a grupo de estudos sobre a questão dos quilombolas no Rio Grande do Sul, coordenado pelo professor Rogério Rosa (2008). compreender as teorias raciais do século XIX e servindo como aporte à escolha do conceito de etnia. O objetivo desse trabalho, portanto, é mostrar o contexto histórico dos negros na cidade de Jaguarão, como eram suas relações com a elite local e principalmente, como esses negros utilizaram o carnaval de maneira ideológica e política, fazendo do mundo das inversões um trampolim para mostrar sua boa conduta, sem perder sua identidade étnica (neste momento, forjada na identidade operária). Isso será mais especificamente focado na marcha carnavalesca composta pelos integrantes do Cordão União da Classe, pertencentes a uma sociedade que, em vários aspectos, os excluía. De forma mais abrangente, pretendo situar o carnaval de fronteira considerando as especificidades do país vizinho, Uruguai, seja pela formação das comparsas carnavalescas jaguarenses, seja pela formação das próprias cordas carnavalescas, com uma performance procissional similar ao candombe. Na primeira parte será situado o campo de estudos, trazendo os contextos de 2008 (quando começo a pesquisa de campo) e de 1924 (ano de fundação do Cordão União da Classe). Nesta parte, abordarei o contexto histórico da república velha e como estava situada a cidade de Jaguarão dentro desse cenário maior. O carnaval, partindo do mito de fundação do festejo, até as primeiras manifestações brasileiras, abordando seu caráter liminar e de suspensão e inversão da sociedade no perído dedicado às festividades momescas. E por fim a história do Clube Social 24 de Agosto, o contexto de sua fundação, a questão do grupo étnico e seu pertencimento àquele espaço. Na segunda parte deste trabalho, serão abordados os temas referentes ao Cordão Carnavalesco União da Classe, como e por que se deu sua fundação, os motivos que levaram seus membros a tratar o carnaval como um evento político, desfilando de maneira uniforme e com distinção. Dentro desse sistema, a performance desenvolvida na avenida era rigorosamente ensaiada, sendo foco também desse estudo. Além disso, se levantará a questão da origem dessas cordas carnavalescas, suas influências culturais na estrutura performática e a situação do carnaval jaguarense dentro do contexto de fronteira, ou seja, um carnaval que carrega características do país vizinho, Uruguai. Por fim, se fará um breve histórico sobre os primeiros sons dos negros no Brasil, posteriormente, dos primeiros gêneros musicais ligados ao carnaval brasileiro até as primeiras marchinhas carnavalescas e a popularização destas no carnaval do início do século XX, ligadas aos primeiros blocos e cordões. Assim até chegar ao foco principal: a marchinha carnavalesca do Cordão União da Classe, publicada no jornal “A Situação” em 1924 e que causou enorme sucesso entre os populares e a elite local. A análise dessa composição terá ênfase em pequenas “unidades ideológicas” para ratificar a ideia de que o carnaval era visto pela comunidade negra jaguarense como uma oportunidade política de mostrar sua imagem de trabalhadores honestos a uma sociedade que os excluía. Essa marchinha ainda mostra elementos da identidade étnica, o sentido de união dentro de sua classe e o favoritismo carnavalesco dessa agremiação nos festejos da cidade. PARTE I – A FRONTEIRA SUL-BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1920, O CARNAVAL E O CLUBE SOCIAL 24 DE AGOSTO Nada de procissão brilhante, a cuja aproximação o povo deva orar e admirar-se: aqui, limitam-se a dar um sinal que anuncia que cada um pode mostrar-se tão louco e extravagante quanto quiser, e que com exceção dos golpes de punhal quase tudo é permitido. Goethe – Viagens à Suíssa e à Itália2 1- Entre o Presente e o Passado O Clube Social 24 de Agosto, situado na cidade de Jaguarão, na fronteira do Rio Grande do Sul com Uruguai, não possui documentos “oficiais”. A fim de conhecer a sua história me dirigi, numa tarde de abril de 2009, juntamente com o ex-presidente, Sr. Pedro Ivo, à casa do Sr. Nergipe Machado para que ele me contasse sobre essa história. Foi nessa tarde que através da narrativa apaixonada de Nergipe percebi noventa anos de história passando diante dos meus olhos. Ao chegar à sua residência, Nergipe (72 anos) começa a nos contar sobre sua trajetória individual dentro do clube, desde os tempos de garoto até sua vida adulta, exaltando dentre tantas figuras, a de Theodoro Rodrigues, como um dos “antigos” responsáveis por sua formação social. Percebendo meu interesse especial pelos cordões carnavalescos do Clube, Nergipe trouxe um documento, redigido por ele mesmo, que mostrava o ano de fundação de um dos cordões do Clube 243, bem como o número de músicos da orquestra e o instrumento que cada um tocava. A data de referência deste documento, 1928, serviu como ponto de partida para a pesquisa documental no jornal “A Situação”, único periódico 2 Goethe apud Pinheiro. Viagens a Suíssa e à Itália, Paris, Hachette, 1862. 3 Doravante, usarei essa designação êmica, que suprime o nome completo do Clube. encontrado na cidade que abarca a primeira metade do século XX 4. Portanto, foi este documento, juntamente com lembrança de Nergipe, que remeteram meu foco para o ano de 1928 a fim de investigar o Cordão Carnavalesco União da Classe. Ele trazia consigo um fascínio e um mistério jamais encontrado em pesquisas anteriores que realizei no acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão. Retornando àquele acervo, fui diretamente aos jornais do ano de 1928, nos quais encontrei diversas referências sobre o “popular cordão União da Classe”, conforme consta em algumas reportagens; surpreendi-me ao verificar que este cordão possuía certa notoriedade perante a comunidade jaguarense, o que me fez buscar referências sobre o ano de fundação do Clube 24 de Agosto: 1918. Como não identifiquei qualquer menção de imprensa sobre esta agremiação, passei a pesquisar um período posterior, tendo, então, a encontrado. Naquele carnaval de 1924 foi veiculada uma reportagem no jornal “A Situação”, em 18 de fevereiro: “O Club local 24 de Agosto realisou interessante annuncio de carnaval”. A partir deste anúncio, o cordão parecia estar mais perto do “desvelamento” e assim descobri que em 22 de fevereiro de 1924 o Clube formou uma comparsa com o intuito de pular o carnaval. Em 23 de fevereiro de 1924, o mesmo jornal publica a formação de seu cordão carnavalesco, denominado União da Classe. Para compreender a formação deste tipo de organização carnavalesca, antes é preciso “revisitar” a história da cidade de Jaguarão e a década de 1920 na qual estiveram inseridos o Clube 24 de Agosto e o seu Cordão Carnavalesco União da Classe. 4 Para uma cidade de fronteira que vivia um momento de apogeu político, econômico, social e cultural, é difícil crer que existisse apenas este veículo de informação, sendo necessário verificar a possibilidade destes acervos terem sido transferidos para a capital. 2- JAGUARÃO NA DÉCADA DE 1920: UM CONTEXTO QUE JUSTIFICA UM CARNAVAL UNIFORME Considerada a cidade heróica da zona sul, Jaguarão faz fronteira com a cidade uruguaia de Rio Branco de modo que as recíprocas influências econômicas, políticas, sociais e culturais são notórias em ambas as cidades. Sobre as interações culturais na região, o historiador Sérgio da Costa Franco diz que: “o primeiro fato cultural denunciador de uma profunda interação na área em estudo foi o surgimento de falares regionais característicos, com certa adulteração do Castelhano [...] e do Português” (Franco 2001, p. 27). A intensa transitividade de pessoas na região de fronteira traz consigo características dos países hermanos, fato importante para delinear uma paisagem de interação e integração das regiões. Estas interações regionais estavam na contramão do projeto nacionalista das elites intelectuais e políticas do resto do Brasil, que não podem ser desconsideradas para entender o período histórico em que se deu a fundação, tanto do Clube 24, quanto do seu Cordão, ou seja, os primeiros anos da república brasileira que buscava seu referencial cultural nacional. Esta primeira fase da República foi marcada pelas obras de modernização urbanística, pela belle époque, pela implantação do Estado capitalista industrial e, principalmente, pela formação social baseada na ordem e no progresso; é também um período de insatisfação da classe operária que se via massacrada pelo capitalismo, ao mesmo tempo em que a ideologia do trabalho era fomentada pela elite política. Este contexto republicano estudado pelo historiador Sidney Chalhoub (2001) trouxe um novo modus vivendi, no qual as cidades emergiram pujantes com uma nova configuração baseada na moral e nos bons costumes e na nova ética do trabalho. A República tentava deixar relegada ao passado a sociedade escravista de outrora, mudando assim o corpus social que a compunha e, se tornando, a partir deste momento, o centro das atividades econômicas, políticas, sociais e culturais. A nova ética do trabalho, exposta por Chalhoub em Trabalho, Lar e Botequim, tinha por base a moralização da sociedade - em especial, da população negra saída da escravidão - através do trabalho: Era preciso incutir nos cidadãos o hábito do trabalho, pois essa era a única forma de regenerar a sociedade, protegendo-a dos efeitos nocivos trazidos por centenas de milhares de libertos – indivíduos sem nenhum senso de moralidade. (CHALHOUB, 2001, p. 71) Neste sentido, o novo regime governamental condenava a vadiagem e aquilo que significasse aversão ao trabalho. Este era o agente regenerador dessa nova sociedade que nascia sob o manto da liberdade – cujo sentido de liberdade, levando em consideração a Lei de 13 de maio de 1888, muda a estratigrafia do trabalho na sociedade brasileira, culminando [...] “com a separação entre trabalhador e sua força de trabalho” (Chalhoub, 2001, p.65) Com esse contingente de negros libertos vindos das grandes fazendas para os centros urbanos em busca de condições melhores de vida – deixando para trás os resquícios da escravidão – acentuou-se ainda mais essa noção da moral, pois, segundo Sandra Pesavento “a República Velha se instalara sob o signo do trabalho livre e a condenação do ócio e da vagabundagem” (Pesavento, 1990, p.62). É sobre a população negra liberta que recaiu essa vigilância do Estado moralista, o qual elaborou alguns projetos coercitivos e doutrinários com o intuito de eliminar qualquer possibilidade de vadiagem que se acreditava ser inerente às populações afro-brasileiras. Trata-se de um período fortemente vigilante quanto aos desvios de conduta, pois quando foi necessário, de acordo com o pensamento da época, o Estado fez uso da força através da polícia. Entretanto, não se pode pensar que toda a sociedade vivia uniformizada dentro de um padrão moral comum, para cada contexto existe uma exceção e, pensando especificamente nas populações negras desse período, devemos levar em conta que estas já vinham se organizando antes mesmo da abolição da escravidão, seja política ou intelectualmente, através de sociedades abolicionistas ou simplesmente com expressões carnavalescas, que por sua vez, não deixam de trazer consigo um teor político reivindicatório proporcionado pela situação social da época. É a esta nova ordem social, ainda que incipiente, da Velha República brasileira, em que as classes sociais começam a se organizar, que os negros tiveram que se adequar, sujeitos aos percalços do preconceito étnico/racial, aprofundado ainda mais pelas políticas raciais do início do século XX, particularmente pela entrada de imigrantes europeus, tidos como verdadeiros símbolos do progresso e civilização, capazes de tornar o Brasil rico e próspero, segundo moldes europeus. Portanto, é neste contexto mais amplo que, em 24 de agosto de 1918, quatro amigos negros se reuniram na noite - e aqui flano no tempo, imaginando esse turno livre como propício para os trabalhadores se encontrarem – e, nas palavras do Senhor Nergipe Machado, “resolveram por bem fundar o Clube 24”, pois não tinham a possibilidade de ingressar como sócios nos clubes da cidade. Fui tomada de surpresa ao saber que o local de encontro desses membros fundadores do Clube 24 de Agosto, visando criar uma sociedade bailante para suas famílias, fora o Círculo Operário Jaguarense, pois ainda não havia pensado no contexto histórico que unia aqueles atores sociais a esta instituição de classe de caráter político, muito embora ligada à Igreja Católica. Considerando as políticas educacionais que se intentaram a favor dos libertos – este era o sentido do período – é perfeitamente compreensível a entrada daqueles negros fundadores do Clube 24 de Agosto numa instituição como um Círculo Operário que disponibilizava, dentre outras atividades, o ensino das letras, pois “a transformação do liberto em trabalhador não podia se dar apenas através da repressão, da violência explícita [...] era necessário educar os libertos” (Chalhoub 2001, p. 69) É por isso que se encontra boa parte dos integrantes deste clube associada ao Círculo Operário Jaguarense, com destaque à figura de Theodoro Rodrigues. Além de ser considerado um dos seus principais fundadores, ele possuía estreitos laços de amizade e compadrio com membros da elite branca jaguarense, que mais tarde, representada pela pessoa do Coronel Gabriel Gonçalves da Silva, irão financiar boa parte das vestimentas, alegorias e adereços do cordão União da Classe. Ademais, durante 70 anos, a sede em que funcionou o Clube 24 foi emprestada pelo Coronel Gabriel sem qualquer custo para a agremiação. Sem tirar o mérito de Theodoro Rodrigues, é relevante lembrar que neste contexto histórico de uma sociedade em busca de regramento e moralização, essas relações de amizade e compadrio eram fundamentais. De acordo com o explicitado acima, pode-se dizer que a República Velha, particularmente na cidade de Jaguarão, não se distinguia das demais localizações do Brasil: ela passava por um processo de invisibilidade da comunidade negra local e forjava a disciplinarização e higienização do operariado dos meios urbano, social e cultural, visando abrir a cidade para receber o progresso e as transformações radicais de todos os setores da sociedade. Portanto, a configuração política e social da época mostra um quadro de intensa vigilância, tanto para as comunidades negras, como para as camadas sociais baixas e até mesmo para as mais elevadas, não importando qual colocação cada um possuía dentro dessa nova estrutura. É de acordo com a ideologia e a moralização propagadas nesse período, que emerge um novo modo de se fazer o carnaval, diferente do incivilizado entrudo, que lembrava a colônia e a escravidão – tempos de um Brasil que deveria ser esquecido, em favor de uma nova sociedade livre e assalariada. Esse novo carnaval caracteriza-se pela uniformização, pelo regramento, com a constituição de agremiações para festejar o tríduo momesco - expressão utilizada, no início do século XX, pelos jornalistas quando se referiam aos três dias de folia carnavalesca. 3 – POR UM CARNAVAL ORGANIZADO: ABAIXO AO ENTRUDO! Ao pensar no carnaval e na sua grande loucura, veio-me à cabeça o trecho de uma canção de Chico Buarque de Hollanda : “carnaval, desengano deixei a dor em casa me esperando e brinquei e gritei e fui vestido de rei, quarta-feira sempre desce o pano. Era uma canção, um só cordão, e uma vontade, de tomar a mão de cada irmão pela cidade” (Chico Buarque de Hollanda, Sonho de Carnaval). Essa vontade de pegar na mão de cada irmão e de todos terem a sensação de fazer parte de uma mesma família, dentro daquele amontoado de gente pulando e cantando músicas carnavalescas, faz parte do mundo das inversões (Roberto DaMatta, 1997) propiciado pelos dias de momo, fazendo com que a sociedade se reinvente para suportar as penas impostas durante o restante do ano. Retomando sua origem histórica, podemos situar o carnaval tanto nas antigas festas greco-romanas, quanto no período do medievo europeu momento em que a Igreja Católica dominava o festejo, impondo-lhe restrições típicas da época. Ainda podemos reportá-lo ao mito fundador do folguedo, o país da Cocanha, e a ideia de fartura proporcionada para os moradores deste lugar. Considerando a atmosfera de cada momento, seja ele mítico ou histórico, é impossível pensar exclusivamente no carnaval “espetáculo” dos dias atuais, deixando de lado uma tradição que ultrapassa os limites do tempo, das fábulas, dos mitos. O período mítico remete ao país da Cocanha, onde existia uma abundância de alimentos, de bebidas, onde as pessoas não precisavam trabalhar para ter seu sustento garantido e onde todas as fantasias e diversões eram permitidas. Neste momento surge a expressão carne que vale, deixando transparecer essa atmosfera de alegria e fartura. O tempo deste mito é baseado nas quatro estações do ano, sendo o começo do período de abundância marcado pela entrada da primavera (o entrudo) e o ápice, pela colheita dos frutos, quando ocorre a loucura da inversão do mundo, em que tudo é permitido. O sentido da carne que vale é aproveitar o momento de fartura de alimentos, pois posteriormente a população sofreria com a restrição alimentar; colocando este mito no contexto histórico da sociedade medieval, altamente hierarquizada e com um senso religioso exacerbado, pode-se concluir que o período de fartura, de abundância e loucura, é nosso carnevale, melhor referindo, é o tempo da carne que vale. Qualquer semelhança com os termos reais do carnaval faz parte de uma cosmologia carnavalesca, pois este festejo, como bem refere DaMatta (1997) pertence ao plano do divino e do sagrado, não possuindo um tempo histórico determinado e sim um tempo cósmico e cíclico. Portanto o período da carne que vale retratado pelo mito acima, tem o sentido de suspensão (Turner apud Dawsey, 2006, p. 18) das atividades do mundo terreno, sendo também marcado pela inversão dos papéis sociais. Parte da mitologia carnavalesca é transferida para o Brasil durante a colonização, na forma do entrudo, que significa a “entrada” da primavera, tido como o começo do período de abundância e suspensão das atividades cotidianas. Este sentimento também fez parte das festividades dedicadas ao Deus folião durante período colonial, imperial e republicano brasileiros. Para situar a prática do entrudo no tempo e mostrar suas características, José Ramos Tinhorão diz: O entrudo, do qual se tem notícia desde o inicio do século XVII, era uma reminiscência das festas pagãs Greco-romanas realizadas a 17 de dezembro (saturnais) e 15 de fevereiro (lupercais), que tinha origem na comemoração das colheitas, quando se permitia liberdade aos escravos, usavam-se máscaras, vestiam-se fantasias, e se comia e bebia desbragadamente. (TINHORÃO, 1975, P. 111) Remetendo ao tempo mitológico, tem-se novamente a ideia da fartura: as lupercais e saturnais eram feitas em comemoração às colheitas, surgindo novamente o mundo suspenso com a concessão de liberdade aos escravos, podendo-se comer e beber com exagero. Esse tipo de festividade foi introduzido no Brasil pelos portugueses e logo se popularizou entre os escravos e brancos das camadas mais baixas. As famílias mais abastadas também participavam do festejo, só que dentro de suas casas e por vezes acompanhando das sacadas de suas residências a loucura que imperava nas ruas. Ainda segundo Tinhorão o folguedo consistia em: “correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho [...] enquanto as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando pelas janelas tinas de água suja sobre os passantes” (Tinhorão, 1975, p. 111). O autor supracitado ainda levanta que a participação dos escravos nas festividades estaria condicionada à origem do festejo, ou seja, às antigas festas pagãs Greco-romanas, quando a figura do escravo emerge da sua condição de não-cidadão e passa ser ativa naquela sociedade também hierarquizada. Mas tomando como base a suspensão dos mundos e as inversões sociais, arrisco dizer que o fato de os escravos brasileiros participarem do entrudo não está somente condicionado à origem do folguedo, mas ao sentido suspensivo que a festa representa. Não cabe aqui fazer esta discussão aprofundada, pois o foco deste subcapítulo é a repressão deste folguedo no período da belle epoque republicana, pois o entrudo ia de encontro aos propósitos das elites políticas desejosas de modernidade e progresso. Faço aqui somente uma pequena observação quanto às interpretações anteriores para que possa ser levantada a questão de que a suspensão dos papéis sociais é que dita as regras do festejo, considerado regenerador. O entrudo, como exposto anteriormente, vigorou como uma das principais atividades carnavalescas brasileiras. Vale ressaltar que não existia nenhum tipo de gênero musical vinculado a este tipo de fazer carnaval (Tinhorão, 1975), pois se tratava de uma loucura - jogar-se água suja, por vezes urina, lama, avançando para os limões de cheiro, feitos de cera, que muito machucavam a população. Por causa disso foi considerado violento e incivilizado, para finalmente dotar-se de caráter europeu, com a entrada do confete e da serpentina (Álvaro Barreto, 2003). Esse brinquedo se popularizou por todo o país chegando ao sul do Brasil onde os jogos de águas de cheiro também foram dedicados ao Deus fanfarrão: para exemplificar este fato, trago o estudo de Barreto (2003) sobre o carnaval de Pelotas, o qual faz inúmeras referências ao entrudo na região, sendo o festejo realizado na praça principal da cidade. O autor destaca que o entrudo na região de Pelotas possuía, inicialmente, uma característica familiar e comunitário, pois se tratava de uma cidade pequena. Entretanto: “[...] Esse entrudo saudoso também está perdido porque a cidade cresceu e tornou-se cosmopolita, e o livre jogo de água ficou inadmissível, pois descamba para a violência e para o abuso.” (Barreto, 2003, p. 21) A partir deste período, a nova ideologia da ordem e do progresso e do embelezamento das cidades influenciou de maneira significativa na configuração do festejo, passando de apreciado a violento e incivilizado. Ainda devo lembrar que o entrudo contava com a participação de negros escravizados e, com o advento da república e da nova ética do trabalho, qualquer menção ao escravismo e ao colonialismo deveria ser relegada ao passado. Neste sentido a prática do entrudo começa a sofrer alterações, principalmente com a entrada do teatro italiano, a partir de 1840 quando: “uma trupe italiana, falida na corte, resolveu se virar e organizou no teatro São Januário „um carnaval veneziano de máscaras‟”. (Luis Felipe de Alencastro, 1997, p. 52). Depois desse baile, o carnaval passou a ser separado entre o entrudo e o carnaval, este no sentido europeu, sendo preferível o festejo italiano por ser mais civilizado. Portanto, desde meados do século XIX o entrudo começou a ser hostilizado pela alta sociedade brasileira, criando uma dicotomia entre o carnaval de rua, o entrudo, e o carnaval de salão, o veneziano ou europeu. Com isso, de acordo com Alencastro, houve uma privatização do divertimento, pois somente sócios dos clubes e aqueles que possuíam recursos poderiam adquirir ingressos e ter acesso aos carnavais de salão. Como se percebe, essa dicotomia não se dava somente no campo do puro divertimento, mas sim na separação entre a grande massa, o povo e a elite social e econômica. Ainda sob a influência dos carnavais italianos, tentou-se dar um ar de civilidade ao entrudo, afim de que fosse aceito pela sociedade, substituindo-se, como já foi referido, os limões de cheiros por artigos carnavalescos novos e europeus - o confete e a serpentina, que, segundo Barreto: “dá um toque de refinamento de que o Entrudo necessita para continuar sendo uma manifestação aceitável, ao aproximá-lo do carnaval” (Barreto, 2003, p. 22). Por causa desses artifícios novos, o entrudo terá uma sobrevivência acima das expectativas da elite, que contava com um fim breve, mas ainda tem-se notícia do entrudo por volta da década de 1930 quando então se consolida outro jeito de brincar o carnaval: cordões, blocos e ranchos carnavalescos, que organizam a folia incivilizada do entrudo. Entretanto não se constituíam novidade aqueles modos de se brincar o carnaval, pois os primeiros cordões e blocos datam de meados do século XIX. A mudança, portanto, está na mentalidade política e social do período pré-republicano e republicano brasileiros. Esse carnaval moderno e civilizado tinha na ideologia republicana uma justificativa para desejar o brinquedo mais ordenado, dentro da lógica da moral e dos bons costumes, significa dizer, o entrudo deveria ser posto abaixo, assim como o foi a monarquia, para que uma nova ordem carnavalesca fosse posta em prática, assim como foi feito com a república. Portanto, em meados do século XIX e início do século XX, vê-se a emergência de modos de brincar o carnaval de maneira organizada e ordenada, com a condenação do entrudo e a privatização do divertimento por parte da elite social, dando origem aos carnavais de salão promovidos pelos clubes sociais. Esse entrudo foi dado como “morto” para que se pudesse “limpar” o carnaval, mostrando para a civilização européia, que o Brasil da república mantinha seu país na linha reta do progresso. 4 – CLUBE SOCIAL 24 DE AGOSTO: CLASSE SOCIAL OPERÁRIA E PERTENCIMENTO ÉTNICO Clube Social 24 de Agosto - depois de tanto tempo, o reencontro em outro contexto, de outra maneira e com outro olhar. Este tradicional clube jaguarense fez parte da história de meu avô paterno, José Liberato Nunes, a quem devo parte do impulso desta pesquisa, as histórias fantásticas que sempre contara em longas tardes que juntos passávamos plantando, lembranças que ficaram em minha memória desde os tempos dos morangos escondidos nas abóboras. Esse reencontro se deu ao receber a notícia de que a sede do clube havia sido leiloada, por conta de dívidas, para uma rede de supermercados, e que dentro em breve o espaço seria demolido para a construção de um depósito. Nesse momento já era acadêmica do curso de história e ao ter noção da gravidade da situação do clube decidi elaborar um projeto de pesquisa para “guardar” a memória daquela instituição. Os caminhos foram vários até a chegada definitiva na comunidade agostiniana. Foram tempos em que percorri os prazerosos labirintos da história do samba e do negro no Brasil. Após um ano de pesquisas sem alcançar maiores objetivos, passei a entrevistar alguns músicos a fim de que me contassem sobre o samba em Jaguarão. Em uma dessas entrevistas fui presenteada com a história dos cordões carnavalescos do Clube 24 e esse era o ponto que perseguia sem perceber. Esse presente foi me dado por um senhor de 86 anos, chamado Osvaldo Emílio Medeiros, mais conhecido por Mestre Vado, morador da rua do cordão, berço da negritude jaguarense após o fim da escravidão. Neste mesmo tempo, resolvi procurar meu tio, irmão de meu avô, músico que tocou nos cordões do clube 24, para saber mais sobre esses antigos carnavais. Tio Paulo, 78 anos, de uma timidez sem precedentes, faloume da fantasia de mexicanos do Cordão do 24 e do sucesso que aquela indumentária fizera no carnaval de 1950. Ao contar-me sobre esse desfile, pediu para parar a gravação da entrevista e se ausentou por um instante. Ao retornar para sala, Tio Paulo conduzia nas mãos uma foto, mostrando os mexicanos do Clube 24, e ele no meio tocando cavaquinho. Imagem 1: Cordão do 24 e a fantasia de mexicano. No detalhe, Tio Paulo. Essa imagem quase apagada pelo tempo, assim como a história do Clube 24 e seus carnavais, faz rememorar a trajetória de uma agremiação que passa por dificuldades no presente, porém mantém viva a lembrança daqueles que fundaram a instituição, dos períodos de “ouro”, da sede atrás da Matriz do Divino Espírito Santo, das festas nas casas de família antes do Clube 24, enfim uma história da comunidade negra jaguarense. Em abril de 2009, com Nergipe Machado – freqüentador do clube desde os dez anos de idade, já tendo sido seu presidente - pude ter acesso à história do Clube Social 24 de Agosto, embora até o presente não tenha encontrado as atas de sua fundação, nem da dos cordões carnavalescos. Diante das lacunas documentais mais remotas e da profusão de informantes, ainda vivos, que se deparam com a iminência de ver esse patrimônio popular jaguarense sepultado sob a lage de um depósito de supermercados, optei por trabalhar com o conceito de etnografia da duração, desenvolvido por Ana Luíza Carvalho da Rocha e Cornélia Eckert (2000). Essas antropólogas servem-se desta noção para tratar das lembranças do passado ou “reminiscências de um tempo vivido” a partir do tempo presente, sofrendo “ondulações rítmicas” (Carvalho & Eckert, 2000, p. 12), que posso interpretar como as idas e vindas da lembrança quando, a partir de desafios atuais, em que se incluem os riscos do desaparecimento futuro, a pessoa rememora algum episódio em outros termos. Trata-se de uma etnografia diacrônica e sincrônica, pois os elementos que se deseja lembrar estão no presente, no ato de contar a história, mas se voltam ao passado quando se aciona, por razões afetivas, políticas ou econômicas, aquela recordação vivida. Neste sentido, quando Nergipe conta sobre a história do clube 24, em 2009, e retorna ao passado para trazer de suas lembranças de menino a história daqueles amigos negros que se reuniram para fundar a instituição, está-se tratando do fenômeno da duração da lembrança, ativada a partir de dois contextos: o primeiro, de ordem econômica e política, relacionado ao leilão da sede do Clube, e o segundo, de ordem afetiva e patrimonial, relacionado à necessidade de valorizar a história da comunidade agostiniana, a fim de sensibilizar os meios públicos da cidade para intercederem em favor do Clube 24. A etnografia da duração, portanto: “persegue esta obra de recordar, que parte de uma intenção presente, „nenhuma imagem surge sem razão, sem associação de ideias‟(BACHELARD. 1989:51), ou seja, sem que ali estejam presentes estruturas espaço - temporais através das quais a memória se configura como construção de um ato de duração.” (CARVALHO & ECKERT, 2000, P. 13) A história do Clube 24 de Agosto, através da lembrança de Nergipe e de alguns recortes jornalísticos da década de 1920, relembram o contexto político, social, econômico e cultural da época da sua fundação. Nas primeiras décadas do século XX, temos, como visto, a incipiente República Velha, a nova ordem do trabalho, baseada agora na mão-de-obra livre e assalariada e mais: as políticas raciais com o intuito homogeneizar a população brasileira em uma única “raça”. Essa noção viria a reforçar e dar eco ao contexto das políticas de invisibilidade da comunidade negra brasileira, pois, como diz a antropóloga Patrice Schuch “a raça funciona como um elemento estruturador de hierarquias” (Schuch, 2002, p. 9). Neste panorama de construção de uma identidade nacional, muitos intelectuais brasileiros debruçaram-se sobre a questão do atraso da nossa sociedade, sendo pioneiros nesses estudos, autores como Silvio Romero e Nina Rodrigues. Sobre a influência do evolucionismo, positivismo e darwinismo social, fundamentaram suas teorias raciológicas do século XIX (Ortiz, 1982) tomando, segundo Ortiz, como “parâmetro epistemológico” para o atraso brasileiro, o meio e a raça, ou seja, o ambiente geográfico interferindo na constituição intelectual e física dos homens e a raça como categoria de superioridade, em que a branca seria o ideal a ser alcançado, no futuro, para que o Brasil se tornasse evoluído como os países europeus. “Essas teorias [raciológicas] são demandas a partir das necessidades internas brasileiras.” (Ortiz, 1982, p. 30). Ainda tem-se o clássico de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, que foi “um exercício de construção da nação” (Fry, 2005, p. 214) ao propor a teoria de um Brasil mestiço onde “a miscigenação e a mistura de culturas não eram a danação do Brasil, mas sim a salvação.” (Fry, 2005, p. 213). Com o estudo de Freyre tem-se a ideia de uma “democracia racial” no Brasil, pelas relações supostamente harmoniosas entre senhores e seus escravos, apresentados na obra do autor. Esses conceitos ficaram arraigados em nossa estrutura social, tanto que ainda se discute a questão de raça e etnia a partir desses autores. Mas, muito além das discussões acadêmicas, essas teorias raciais serviram como base para o processo de branqueamento e exclusão dos componentes culturais dos negros e índios, numa tentativa de fazer com que o Brasil progredisse na escala evolutiva, onde a utopia de uma nação branca e civilizada ficaria para um futuro próximo. Assim, entendo o conceito de raça como uma permanência do programa das elites intelectuais conservadoras do início do século passado, visando o embranquecimento da população negra a fim de que a sociedade brasileira passasse pelo mesmo processo de evolução dos países desenvolvidos: “o uso da categoria raça leva a [...] que se construa uma escala evolutiva entre as diferentes formas culturais de vida existente” (Sérgio Costa, 2002, p. 40). A raça seria vista, portanto, como uma categoria que compõem a constituição do conceito de etnia, que, por conseguinte, é formada por outros elementos, como por exemplo: língua, raça, cultura, etc. Para o caso em estudo, portanto, o conceito de etnia é útil na medida em que faz uma abertura conceitual, no que diz respeito ao seu sentido de coletividade – mesmo sabendo que a palavra etnia sirva para designar uma gama de povos diferentes, e que as populações negras vindas para o Brasil, como escravas, fossem compostas das mais variadas etnias, e que, passado o tempo, essas populações acreditavam pertencer a uma mesma origem étnica. Assim, Weber acredita que “as identidades étnicas são crenças na „afinidade de origem‟, ou seja, num sentimento comum de pertencimento e não necessariamente no fato de terem uma origem historicamente comprovada.” (Weber apud Zanini, 2008, p. 143) Para Roberto Cardoso de Oliveira, “a categoria étnica, por conseguinte, tem significação enquanto existe como uma representação coletiva” (Oliveira, 1982, p. 89). Neste sentido, penso no conceito de etnia para o contexto social do Clube 24, pois se trata de um grupo que se auto-identifica como pertencente a uma classe, (operários, associados a uma sociedade operária), guardando nessa identificação, suas características étnicas – quando o cordão carnavalesco União da Classe compõem canções que trazem elementos de festividades afro-brasileiras. Além do que, ser de classe, como bem refere Frigerio (1993), contém o sentido de coletividade do grupo, ser de classe, significa ser negro. Essa afirmação partiu de estudos que o autor realizou, no Uruguai e Argentina, em comunidades negras ligadas ao candombe, antes e depois do processo de “invisibilidade” histórica por que passou os afrouruguaios e afro-argentinos. Não se pode deixar de mencionar que essa identidade étnica é relacional, ideológica e flexível (Oliveira, 1982). Portanto, de acordo com o contexto histórico vivido pela comunidade negra de Jaguarão foi necessário vincular-se a uma categoria de classe, operários, trabalhadores, como forma de integrar-se na sociedade de classes – quando, na segunda metade do século XX, começou um movimento de retomada à valorização da cultura afrobrasileira, o cordão do Clube 24 mudou de nome, passando a chamar-se Bataclan, vestindo suas rainhas com fantasias étnicas, com roupas de baianas. Para Weber “o étnico só tem sentido enquanto base para a ação coletiva: a consciência étnica é produtora de ação social; a consciência de pertencimento é eminentemente política” (Weber apud Schuch, 2002, p. 7). Portanto, a união de alguns amigos na intenção de fundar uma sociedade para o divertimento da comunidade negra mostra que esse pertencimento e essa identidade étnica não estavam despossuídos de pretensões políticas – cabe lembrar que Theodoro Rodrigues, um dos fundadores do Clube 24, posteriormente foi presidente do Círculo Operário de Jaguarão – e ideológicas, pois vincular-se à ideia de operários trazia consigo uma série de condutas moralmente aceitas pela sociedade branca, e foi dessa maneira que o grupo foi identificado, de acordo com Barth: “desde que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela identidade básica, isso implica igualmente que se reconheça o direito de ser julgado e de julgar-se pelos padrões relevantes para aquela identidade.” (Barth, 1998, p. 194). No contexto, de entrada da comunidade negra liberta e das políticas de invisibilidade e branqueamento desse grupo étnico, que surge o Clube Social 24 de Agosto. Optei por utilizar a designação oficial da instituição – Clube Social, e não Clube Negro5 - pois esta é uma definição etic cunhada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Ministério da Cultura e não uma designação da própria comunidade, que vem fazendo um 5 Essa expressão, Clubes Negros, vem de iniciativas de valorização do patrimônio material e imaterial desses espaços, cunhada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). esforço de valorização de sua história, estando, portanto, o “social”, localizado dentro de uma categoria êmica e não somente institucional. Mais do que isso, o termo Clubes Negros, sem que se questionasse o sentido, é uma expressão estatal que serve para dar visibilidade às políticas públicas de apoio a essas instituições, em outras palavras, é uma expressão cunhada de cima para baixo e que está se popularizando sem uma investigação detalhada e crítica. A fundação de clubes étnicos para o divertimento de parte da comunidade negra, que possuía, no início do século XX, parcas possibilidades de espaços para a sociabilidade, foi um fenômeno que atingiu dimensões nacionais, sendo que o clube considerado mais antigo do país – o Clube Floresta Aurora de Porto Alegre - data de um perído anterior à própria abolição da escravidão. No Rio Grande do Sul clubes étnicos surgiram mesmo em localidades de forte colonização européia, como atestam várias pesquisas, é o caso do Clube Gaúcho de Caxias do Sul, pesquisado por Fabrício Gomes (2008). Tem-se também a fundação desses clubes no interior do Estado, como em Pelotas, com inúmeras agremiações, dando destaque para os Clubes Carnavalescos “Chove e Não Molha” e “Fica Ahí para ir Dizendo”, pesquisados pelas historiadoras Beatriz Loner e Lorena Gill (2007), sendo aquele último, objeto de estudos também de Fernanda Oliveira (2008). Temos o exemplo do Clube 13 de Maio, de Santa Maria, pesquisado pro Giane Escobar (2010), onde hoje funciona o Museu 13 de Maio. Mais ao sul, temos o Clube Guarani de Arroio Grande, cujo levantamento de dados foi realizado por membros da própria comunidade, e integra o acervo do clube. Trago somente exemplos de clubes étnicos do Rio Grande do Sul, sendo que os citados representam apenas uma parte dos existentes. O Clube 24 de Agosto foi fundado em 24 de agosto de 1918 por iniciativa de dois amigos: Malaquia de Oliveira e Theodoro Rodrigues. Na fundação do clube participaram mais onze pessoas, entretanto os nomes mais citados nas entrevistas realizadas são os de Malaquia e Theodoro, sendo que este último é tido como a figura principal pela empreitada de fundação de uma instituição para o divertimento e sociabilidade dos negros em Jaguarão. Antes disso, a comunidade negra jaguarense possuía dois tipos de divertimento: a festa nas casas das famílias, como nos afirma Nergipe Machado: “eles só tinham as casas de família que formavam brincadeiras e assim se divertiam” e o Clube O Gaúcho, primeiro clube étnico de Jaguarão que, de acordo com Mestre Vado, era considerado violento. Ainda existia outro espaço para sociabilidade, aprendizado e divertimento para esses negros fundadores do 24 de Agosto: o Círculo Operário Jaguarense. Essa instituição foi fundada em 1911 por membros da comunidade católica da cidade e, aparentemente, por parte da elite branca local. Entretanto, ao consultar as atas da sociedade operária, encontrei os nomes de Theodoro Rodrigues e Malaquia de Oliveira, sendo que o primeiro chegou ao cargo de presidente, como citado anteriormente. Retomando o panorama histórico do período, vimos que o Cordão União da Classe, fundado pelo Clube 24 de Agosto, a ele vinculado, inserem-se no contexto de estruturação da nova sociedade, moderna e civilizada, desejosa de novos avanços - tecnológicos e sociais - atentando ainda para as políticas raciais do início do século XX, que pretendia a uniformização da população em uma única “raça”, a fim de que o Brasil se transformasse num país “europeu”, no qual os negros ficariam relegados a um esquecimento intencional ou atrelados a um processo de doutrinação moralista, sendo que para isso uma instituição de base católica, como o Círculo Operário, propôs-se bem ao papel de “educadora” da comunidade negra recém liberta. Neste sentido, compreendem-se os motivos que levaram os negros fundadores do Clube 24 de Agosto ao Círculo Operário Jaguarense, pois este proporcionava uma suposta integração dessa comunidade à sociedade branca, além de escamotear a etnicidade dos libertos como desejavam as elites intelectuais da época, através, por exemplo, do ensino de artes e ofícios, da elevação desses indivíduos a “cidadãos de bem”, incutindo-lhes novos valores morais e retirando, dessa forma, os estigmas da escravidão que caíam sobre os negros do início do século XX. Cabe ainda dizer que o Círculo Operário Jaguarense, foi um espaço não somente para o aprendizado de artes e ofícios, mas que também proporcionava a sociabilidade e descontração de seus associados, promovendo jogos de cartas, dentre outras atividades. Neste contexto, entre as atividades de ensino e lazer, foi fundado o Clube 24. Não quero dizer que o espaço da sociedade operária agiu como um salvador e que suas atitudes fossem isentas de intenções, muito pelo contrário, pois como visto, essas instituições estavam indo ao encontro de um projeto político-pedagógico nacional para fomentar a “educação” dos libertos, ao passo que promovia sua invisibilidade. Sendo assim, a entrada de parte dos negros jaguarenses na sociedade operária, fez com que estes fossem vistos como pertencentes a este estatuto social – de operários -, um grupo que pertencia a uma determinada categoria de classe e não a um grupo étnico. Há indícios desse pertencimento à classe operária nas reportagens vinculadas no jornal “A Situação” sobre o carnaval no Clube 24, como mostra o trecho a seguir: “Esse appreciado Club, composto de ellemento operário, festejou também magistralmente o carnaval, tendo effectuado animados bailes.” (“A Situação”, 23 de fevereiro de 1928) Aqui o elemento operário deixa para segundo plano a questão étnica, pois esta era uma pretensão, também, da comunidade negra a fim de que não recaísse sobre si uma imagem negativa, atrelada ao seu pertencimento étnico, lembrado pelos tempos da escravidão, e aos estigmas que isto trazia para uma população que visava sua entrada numa sociedade hierarquizada. Serem vistos como operários mostrava à sociedade uma imagem positiva de sua comunidade, pois o “trabalho é o elemento ordenador da sociedade” (Chalhoub, 2001, p. 70). Numa relação entre moral e trabalho é compreensível que os negros jaguarenses tenham construído essa imagem de trabalhadores, pois “as características que são levadas em conta são somente aquelas que interessam aos próprios atores sociais – a atribuição é o traço fundamental dos grupos étnicos – o que faz com que os atributos sejam variáveis” (Schuch, 2002, p. 8). Ainda de acordo com Schuch (2002, p.8) “a identidade é relacional [...] processual e flexível, com que é constituída em contextos específicos.” Pode-se dizer, para o caso específico de Jaguarão, que foi necessária essa auto-identificação dos negros com a classe social operária a fim de que sua integração se desse sem os estigmas negativos que caía sobre sua etnicidade, após a lei de 13 de maio. O pertencimento étnico, vinculado à classe social, que de acordo com Weber (Weber apud Schuch, 2002, p.13) “está diretamente relacionado com a noção de poder, já que classe é um fenômeno de distribuição de poder do tipo econômico”, mostra que essa noção pode ser vista de maneira significativa nos libertos ligados à sociedade operária jaguarense e ainda mais “tanto a noção de etnia quanto a noção de classe social é uma categoria política” (Schuch, 2002, p. 27). Colocando isso dentro da ideologia do período, observamos o fenômeno de “forjamento” da etnia negra em classe social operária, mostrando dessa maneira que a etnicidade existia, muito embora com outro sentido, ou seja, os negros jaguarenses desejavam ser identificados pela sociedade como operários na tentativa de retirar a vigilância e negatividade a que estavam sujeitados. Neste sentido, o pertencimento étnico pode ser relativizado de acordo não só com o contexto, mas levando em consideração, também, a localidade. Essa relação entre classe social, etnicidade e pertencimento étnico será abordada com mais profundidade na segunda parte deste trabalho, onde se explorará a nomenclatura do cordão carnavalesco do Clube 24, estando este relacionado diretamente às questões da negritude, etnicidade, coletividade e classe social; para o momento ficamos com essa hipótese levantada. A importância do Clube Social 24 de Agosto para os negros, tanto à época de sua fundação, como no presente, pode ser exemplificada pelas palavras do Senhor Nergipe Machado ao falar de sua entrada na sociedade e do significado que isso teve: Eu ali me formei um cidadão social, porque eu não tive raízes sociais, então eu me fiz sozinho na sociedade [...] eu agradeço a esses velhos que ainda existiam e que me ensinaram a ser um cidadão social, e assim eu me criei ali dentro, me formei moço, me casei, criei filho, criei neto, já tô agora criando bisneto, dentro do 24. (entrevista concedida por Nergipe Machado) A ideia de ser “um cidadão social” está sempre presente na narrativa de Nergipe, isso mostra o quanto os descendentes dos antigos escravos perseguiam essa identificação, a fim de que não fossem mais estigmatizados pela sua origem étnica a qual os ligava a uma condição de “selvagens” e “incivilizados”, nos termos da ideologia evolucionista da época. Assim, nesta primeira parte contextualizou-se o presente, quando da minha entrada em campo, e os motivos pessoais que impulsionaram esta pesquisa, além dos problemas financeiros que culminaram com o leilão da sede do Clube 24 de Agosto. Também ressaltei o contexto histórico das políticas ordenadas do início do século XX, quando a adoção da ideologia positivista, baseada na ordem e no progresso, influenciou a maneira como deveriam ser vistos e tratados os negros recém libertos. Vimos como esse mesmo ideal atingiu as formas de organizações carnavalescas, dando origem ao que chamamos de carnaval veneziano, evoluindo para o carnaval privatizado dos clubes e logo em seguida, uniformizando e organizando o carnaval de rua, com o aparecimento de inúmeros cordões carnavalescos, blocos e ranchos, que visavam abolir o “incivilizado” entrudo, cujo fim decretado não foi definitivo, na medida em que ainda apresenta resquícios no carnaval contemporâneo. E por fim, se contou parte da história do Clube Social 24 de Agosto e a relação dessa instituição com Círculo Operário Jaguarense, mostrando a importância da identificação dos negros como operários para que fosse retirado o estigma da escravidão que assombrava a comunidade. Na continuidade do trabalho, serão abordados os temas referentes ao cordão carnavalesco, foco principal do presente estudo, trazendo as questões do pertencimento étnico e de classe sócio-econômica, além da abordagem sobre a coletividade e as relações performáticas. Portanto, estas linhas apenas são um pequeno fragmento das lembranças dessa comunidade que tanto tem para ensinar àqueles que desejam contar outras histórias desses descendentes dos antigos escravos jaguarenses vindos de algum rincão da África e que hoje, num contexto de liberdade, tem buscado a valorização de sua negritude e etnicidade. PARTE II – O CORDÃO CARNAVALESCO UNIÃO DA CLASSE, A PERFORMANCE NA AVENIDA E AS MARCHINHAS CARNAVALESCAS [...] Mas é carnaval não me diga mais quem é você amanhã tudo volta ao normal deixe a festa acabar deixe o barco correr deixe o dia raiar que hoje eu sou da maneira que você me quer o que você pedir eu lhe dou, seja você quem for, seja o que Deus quiser. (Chico Buarque) 1- O Presente do Cordão Carnavalesco União da Classe: A inserção em Campo e a Observação Participante. Em 2009 recebi do Senhor Nergipe Machado um documento, redigido de forma simples, contendo parte da história de um cordão carnavalesco do Clube 24: O Cordão União da Classe. Quando o li pela primeira vez o que mais me interessou foi a composição da orquestra do folguedo, pois trazia o nome de cada músico e o instrumento musical que cada um tocava durante os desfiles. Ao entrevistar Mestre Vado e Tio Paulo, ambos fizeram referências apenas a um cordão carnavalesco do Clube 24, pois não lembravam o nome da agremiação. Questionando Nergipe sobre esse cordão, ele logo disse se tratar do União da Classe, fundado para pular o carnaval no ano de 1928, e Vado aparecendo como um dos componentes daquela orquestra. Neste instante, lembrei-me da tarde em que Vado contou sobre sua trajetória musical e participação no cordão do Clube 24, quando ainda era menino de calça curta: [...] Com 13 anos eu já tocava um pouquinho, então vivia por dentro do 24. Quando Theodoro veio falar com meu pai para sair num cordão do 24, eu estava até jogando bola ali de calça curta. Quando vieram me chamar, e fiquei louco de contente porque ia sair no cordão do 24 e todo mundo ia ver o cordão do 24, porque tinha um guri que tocava.(entrevista concedida por MESTRE VADO) Agora sabia que se tratava do Cordão União da Classe e também sabia quem era o Theodoro Rodrigues, que além de ter sido um dos fundadores do Clube 24, também foi sócio-fundador de uma forma de divertimento, no âmbito do carnaval, para sócios e membros daquela instituição. Aguçada a curiosidade, resolvi investigar mais sobre o Cordão União da Classe no acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, pesquisando no Jornal “A Situação”, tendo por referência o documento de Nergipe, que indicava 1928 como ano de fundação do folguedo. Ao folhar os jornais daquele ano, percebi que o cordão já era considerado popular e sendo assim recuei quatro anos, chegando ao ano de 1924, onde encontrei o anúncio da sua fundação e inúmeras reportagens sobre a agremiação do Clube 24 de Agosto. Ao levantar essas notícias a respeito do cordão União da Classe, fui levando-as aos membros sócios e diretores do Clube 24, e, para minha surpresa, poucos conheciam aquele folguedo e mesmo desconheciam a história de fundação da própria instituição que o abrigava, ou seja, o Clube. Comecei então a apresentar parte dessa pesquisa em eventos da própria Universidade Federal de Pelotas e em dois eventos locais, na cidade Jaguarão - Seminário Internacional Bioma Pampa e I Semana da consciência Negra de Jaguarão - que deram boa visibilidade para o Clube e para a pesquisa. Nestes eventos houve a oportunidade dos próprios integrantes do Clube e simpatizantes conhecerem um pouco dessa história. Foi desta e de outras maneiras, como nas conversas informais com os colaboradores deste trabalho, que ressurgiu parte da história do 24 de Agosto – aqui devo esclarecer que essa pesquisa não se deve a um esforço puramente solitário do pesquisador e seu campo/objeto de estudos, mas sim a uma gama de pessoas que, de maneira direta ou indireta, são parte integrante que deu andamento ao estudo sobre o cordão União da Classe e fundação do Clube 24. Sendo assim, o diálogo entre passado e presente foi uma constante durante o processo de levantamento dos dados nos arquivos da cidade e a entrega dessas informações para a comunidade, de modo a estabelecer um contato entre uma “etnografia do passado” ou dos arquivos, que “pode iluminar uma outra temporalidade dos documentos, para além daquela que remete ao evento ou à atividade que registram” (Heymann, 2008, p. 8) e a “etnografia do presente”. Enquanto a primeira estava sendo realizada de maneira solitária entre os jornais, a segunda me permitia uma partilha de informações com meus colaboradores, a respeito das reportagens encontradas sobre o cordão carnavalesco do Clube. Entretanto, essa etnografia não se deu de forma tão intensa de acordo com os ensinamentos de Malinowski que exaltava a necessidade de: “[...] permanecer em contato tão estreito quanto possível com os nativos, o que na realidade só pode ser alcançado pela residência efetiva em suas aldeias” (Malinowski, 1978, p. 43) – devido à distância espacial existente entre a cidade que resido atualmente e aquela onde está situado o campo de atuação e os colaboradores da pesquisa. Mas se não estive presente de maneira intensa, em termos de convivência contínua no mesmo espaço físico, pude fazer uma “observação participante” (Foote-Whyte, 1975) sem prejudicar a continuidade da pesquisa e sem prejudicar minha relação com os colaboradores. Essa observação participante foi se dando na medida em que trazia alguns dados da pesquisa documental, facilitando, assim, minha aceitação dentro do grupo, que me considerava da família por causa do meu avô paterno. Porém, a relação que se estabeleceu sempre foi de alteridade, ou seja, sempre fui o diferente naquele grupo, o que não significou um distanciamento brutal nas relações. Assim, mesmo tentando ser membro da comunidade pesquisada, dando um mergulho total no campo, isso não ocorreu e não ocorrerá, pois de acordo com Foote-Whyte: “aprendi que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas. Na realidade estavam interessadas em mim e satisfeitas comigo porque viam que eu era diferente. Abandonei, portanto, meus esforços de imersão total” (Foote-Whyte apud Valladares, 2007, p. 154). Portanto, a metodologia baseada na observação participante, no contexto presente, foi o caminho encontrado para as conversas paralelas trazendo a subjetividade dos interlocutores, seus sentimentos, etc; como por exemplo, no dia em que encontrei por acaso o Senhor Nergipe e a Senhora Aldaci numa esquina e começaram a lembrar dos tempos em que a sede do Clube 24 ficava situada atrás da Matriz do Divino Espírito Santo, rememorando os antigos carnavais e festas do Clube a partir de algumas fotos que a Senhora Aldaci havia me emprestado; neste dia a emoção daquelas pessoas era evidente ao se sentirem projetadas naquele tempo passado novamente, suas histórias de juventude e suas trajetórias individuais carregaram aquele encontro de nostalgia e passei a denominar aquele lugar de a “esquina da saudade”, pois todo encontro se deu entre as ruas Barbosa Neto e Quinze de Novembro, na cidade de Jaguarão. Por vezes pensei que estava virando membro da comunidade, como se fosse parte efetiva do quadro de sócios do Clube, chegando a pensar que deveria fazer algo mais pela instituição no que concerne à questão patrimonial (através da mobilização de um número suficiente de pessoas para manter intacta a sede do Clube), assim como à questão financeira. Mas percebi que meus colaboradores já haviam determinado qual seria a minha tarefa: mostrar para a sociedade jaguarense, de certa forma, mesmo que simples, que alguém se importava com a história daquela instituição e com a história de parte da comunidade negra da cidade. E foi assim, “nos limites de passar da observação participante [...] para uma participação observante” (Prass, 2004, p. 28) que dei continuidade à pesquisa jornalística sobre o cordão União da Classe, mantendo atualizada a comunidade agostiniana, mesmo correndo o risco de “se perder enquanto sujeito teórico.” (Prass, 2008). Foi desta forma que consegui me inserir dentro do Clube, conquistando a amizade e a confiança necessárias para seguir com meu trabalho; essa inserção se deu quando, em um churrasco, fui convidada para falar, expondo minha pesquisa e meus estudos para os diretores do 24 de Agosto. Desde então fiquei conhecida como “a Jú” ou simplesmente “a guria que pesquisa o 24”. 2- Cordas, Cordões e Comparsas: O Cordão Carnavalesco do Clube 24 de Agosto no Carnaval Jaguarense. O carnaval jaguarense do início do século XX teve inúmeras agremiações em estilo bloco, cordão ou ranchos carnavalescos, com destaque para o Troveja Mas Não Chove que alegrou os carnavais da cidade até meados da década de 1940. Outro bloco, de nome muito interessante, tido pelo jornal “A Situação” como impagável, foi o Bloco da Ignácia ou Família Carrapatosa que desfilou no carnaval de 1928 – sobre essa agremiação não foi encontrado nenhuma outra referência nos anos pesquisados, mas pela descrição parece ser um bloco humorístico (com encenação de pequenas peças teatrais cômicas ao longo do desfile) e não burlesco (evolução na avenida sem encenação teatral) – assim como o cordão dos Sempre Vivas. Além desses grupos, animou as ruas da cidade um bloco chamado de Minas, que aparece na narrativa de Mestre Vado como um bloco formado por negras vestidas com indumentárias africanas, com turbantes e roupas brancas. O interessante desse grupo de Minas é o nome que mostra sua pertença à determinada etnia em um período fortemente “branqueador” 6 da cultura africana e afro-brasileira. Tem-se, ainda, a notícia de que saía às ruas de Jaguarão o “alegre Zé Pereira” referendado pelo mesmo periódico supracitado, assaltando diversos clubes do centro da cidade. Cabe dar destaque ao cordão dos Misturados e ao Cordão Bando da Lua fundado em 1936, talvez sob a influência do famoso conjunto vocal, de mesmo nome, que tanto fez sucesso ao lado de diversos artistas brasileiros, em especial Carmem Miranda. A tradicional Batalha das Flores (similar ao corso só que os componentes que desfilam em cima dos carros são tomados por uma chuva de flores, daí o nome batalha das flores) não foi mencionada pelo jornal nos anos pesquisados. Já as festividades do Corso (pessoas fantasiadas em cima de carros de passeio) possuem notícias vinculadas à imprensa. Há que se dizer que havia um cordão carnavalesco chamado Fica Ahí, de designação igual ao Clube 6 Ver Domingues (2004). Carnavalesco pelotense; entretanto nada foi encontrado para que se pudesse confirmar uma ligação de compadrio entre ambas as instituições. No meio dessas inúmeras manifestações carnavalescas, a que mais ganhou destaque, através da imprensa, no carnaval jaguarense foi o Cordão União da Classe. Diferente de outras agremiações, o Cordão União da Classe foi fundado dentro do Clube 24 de Agosto, para o carnaval de 1924. Embora haja indícios de que o cordão carnavalesco possuía atas de sua fundação e de doações, até o presente nada foi encontrado. O que se tem sobre essa manifestação diz respeito às reportagens veiculadas no jornal “A Situação” e as narrativas dos colaboradores da pesquisa. É interessante o termo comparsa formada por militares – a maioria dos negros que fundaram tanto o Clube 24 como o cordão faziam parte do exército, pois a entrada de negros nessa instituição era comum para o início do século XX 7 – antes do tríduo momesco, como contou D. Tereza de Los Angeles. O Cordão União da Classe surgiu, ao que tudo indica, a partir de uma comparsa organizada pelo Clube 24, que percorreu as ruas anunciando uma novidade para o carnaval de 1924. Essa passeata foi noticiada e recebida com alegria pelos transeuntes que se encontravam no trajeto. Abaixo, trecho da reportagem: “Uma comparsa do Club 24 de Agosto percorreu hontem algumas ruas da cidade, puchada por excellente orchestra que mereceu elogios de quantos ouviram.” (A Situação, 22 de Fevereiro de 1924). Esse termo comparsa não é recorrente em outros estudos sobre cordões carnavalescos, sendo que para o presente foram consultados os trabalhos de Germano (1999), Rosa (2008) e Loner & Gill (2007) e ainda a pesquisa de Simson (2007) sobre o carnaval paulistano, e nenhum faz menção à formação de comparsas antes do desfile oficial do folguedo. A performance em formato de passeata aparece para os estudos de cordões no Rio Grande do Sul, com o nome de muamba (uma grande “bagunça” que consiste em sair às ruas da cidade, sem organização e sem fantasias, com intuito de arrecadar dinheiro para o carnaval) . 7 Sobre esse assunto ver Loner (1996). Entretanto, a proximidade com o Uruguai proporcionada pela intensa transitividade de pessoas na região de fronteira, em especial, a transitividade de músicos de ambos os países, leva a pensar que a comparsa seja influência do país vizinho, pois esse termo designa a forma de desfile do Candombe, manifestação carnavalesca afro-uruguaia que se desenvolve ao som percussivo de três tambores, percorrendo as avenidas principais da cidade de Montevidéu, com a participação de personagens típicos. Esse termo comparsa, de acordo com Alfaro (2008), foi apropriado pelas agrupaciones de negros, ainda no século XIX, colocando nesse modo de desfilar a tradição dos tambores de Candombe. Ao que tudo indica essas comparsas uruguaias são similares aos cordões carnavalescos brasileiros, pois possuíam nomes engraçados, estimulando o riso durante as festividades, além de realizarem crítica social, como diz Alfaro: “la Comparsa Fomentista [...] em medio de las carcajadas generales, la comparsa parodiaba la fiebre especulativa de aquellos días al mejor postor cuanto caía em sus manos” (Alfaro, 2008, p. 17). O episódio narrado pela autora diz respeito à especulação imobiliária que ocorreu na segunda metade do século XIX na cidade de Montevidéu, sendo paródia da comparsa acima citada, realizada através de uma canção que ficou famosa naqueles dias de Momo. Outra semelhança existente entre essas manifestações carnavalescas é o repertório musical que, no final do século XIX e início do XX, era composto por polcas, mazurcas e valsas, notadamente influenciado pelo estilo europeu. Além disso, essas comparsas uruguaias, à similaridade dos cordões jaguarenses, foram formadas a partir das Sociedades afrouruguaias e “tais sociedades, nos dias de carnaval, constituíam-se em comparsas. Em 1870, os jornais [...] apontavam para a existência de três comparsas [...] todas organizadas a partir de Sociedades Filarmônicas.” (Guterres, 2003, p. 81). Esse fato indica que a comparsa jaguarense está mais voltada ao carnaval afrouruguaio, do que ao carnaval brasileiro. Depois do anúncio da comparsa, o Cordão União da Classe fez sua primeira aparição numa terça-feira gorda do carnaval de 1924: O traço mais frisante de originalidade foi dado pelo bem organisado cordão União da Classe. Composto por elementos do club 24 de Agosto, nada deixou a desejar. Primou tanto pela uniformidade de trajes como pelas composições vocalisadas com o melhor gosto de precisão. A curiosidade que despertou em nosso público foi enorme, seguindo-o, através das ruas da cidade, uma grande multidão de phantasiados e curiosos. (Jornal A Situação, 5 de Março de 1924) Nota-se que a expectativa quanto ao desfile do cordão foi superada ao mostrar na avenida o bom preparo, tanto de suas fantasias como de suas canções compostas especialmente para o carnaval daquele ano. O que chama atenção nesse texto é a exaltação que o jornal faz ao cordão “composto por elementos do club 24 de Agosto” (grifo meu), pois não se pode deixar de lado que esse veículo de comunicação pertencia à elite branca da cidade. Porém, todos esses preparativos em torno das fantasias, das músicas, da evolução e o primado pela uniformidade durante os desfiles eram para passar, através da imprensa, uma imagem positiva de sua comunidade para os “outros”. Isso também ocorreu com os cordões populares em Porto Alegre: “valores como ordem, disciplina, organização, associados aos blocos e cordões populares também eram exaltados pela imprensa, que funcionava como legitimadora e normatizadora de padrões de comportamento.” (Íris Germano, 1999, p. 141). Mestre Vado lembra: Eram moças e rapazes, então era bem ensaiado e a gente saía a cantar nas casas, mandavam um ofício e a pessoa esperava e depois davam um envelope ali com um dinheiro e saía de um e ia a outro. Saía de tarde e voltava de noite e depois de noite tinha o baile que ia até um pedaço e naquele tempo era lindo. (entrevista concedida por Mestre Vado) Ainda sobre essa questão, Marcus Rosa em estudo recente sobre cordões carnavalescos populares da capital, diz que: “as preocupações [...] giravam em torno de dois elementos principais: os instrumentistas e os trajes festivos. Ambos denunciam a importância que os próprios foliões atribuíam à sua auto-imagem pública e ao desempenho carnavalesco durante os desfiles.” (Rosa, 2008, p. 62). Isso implica em um desfile altamente organizado e com impecável precisão nas “composições vocalisadas com melhor gosto”, pois desta forma estariam evitando as “caracterizações depreciativas que sobre eles pesavam em suas vidas cotidianas.” (Rosa, 2008, p. 54). O contexto prova essa depreciação a partir do escamoteamento do negro na nova sociedade de classe. Portanto, o cotidiano carnavalesco aparece aqui não só como um momento de suspensão dos papeis sociais, mas como um legitimador da “boa imagem” para o período pós-carnaval, objetivo que os negros almejavam ao se apresentarem de maneira organizada, com fantasias impecáveis e um bom gosto musical impresso nas suas orquestras. Para ilustração desse tipo de agremiação carnavalesca, abaixo reproduzo uma fotografia do Cordão Carnavalesco União da Classe, que apesar de não estar datado, permite afirmar que se tratava do início do século XX, pelo estilo de disposição dos seus integrantes, pelas fantasias iguais a todos e pela orquestra com ausência de instrumentação percussiva. Imagem 2: Cordão Carnavalesco União da Classe. Essa imagem é muito significativa e só vem ratificar a ideia de que a comunidade negra aproveitava o momento liminar (Turner apud Dawsey), ou seja, de inversões e suspensão dos papeis sociais, do carnaval para produzir uma imagem diversa daquela que lhe era imposta no restante do ano. Isso pode ser percebido, dentre outras coisas, pelo estilo de fantasia utilizado pelos integrantes do Cordão União da Classe que: “revela mais que oculta, já que uma fantasia, representando um desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os que gostaria de desempenhar.” (DaMatta, 1997, p. 61). Por isso que, ao se encontrarem em dificuldades financeiras – como ocorreu com o União da Classe no carnaval de 1930 -, os cordões carnavalescos ligados à comunidade negra não desfilavam, pois o carnaval não era visto como um folguedo só para o divertimento, mas como uma forma de tentar construir uma boa imagem diante de uma sociedade que os excluía, tentando ficar distantes dos estigmas do cotidiano. Daí o sentido da uniformização dos trajes, correção de postura durante os desfiles e principalmente: vocalidades impecáveis, instrumentistas bem ensaiados e preferencialmente canções feitas pelo próprio grupo. Há que se dizer ainda, que o carnaval representa uma quebra na estrutura social, pois é um momento em que o tempo lógico é suspenso em favor de um tempo cósmico, é o “extraordinário construído pela e para a sociedade” (DaMatta, 1997, p. 47), sendo a partir dessa quebra, desse extraordinário necessário, que os negros viram a oportunidade de retirar-lhes os elementos depreciativos, como por exemplo, a malandragem. Portanto, pode-se afirmar que o festejo carnavalesco possuía um sentido político muito forte, pois, ao servir como construtor de um padrão social de conduta, deixa de lado, por alguns instantes, sua característica de “suspensão” para ser encarado com seriedade por parte da comunidade negra. 2.1 – Cordas, Cordões e o Hibridismo Cultural São escassos os estudos sobre o surgimento desse tipo de organização carnavalesca, seja pelo formato peculiar como se apresentava às ruas, em fila indiana, representando uma espécie de corda, seja sobre o sentido de “profanação” dos ritos católicos do século XVIII, há muito estudado por pesquisadores do tema. Esses questionamentos são importantes na medida em que se observa a questão da performance desses cordões (em estilo procissional com os integrantes de mãos dadas, ou em fila indiana) durante a evolução na avenida - seria reducionista afirmar que os cordões são um derivado das procissões católicas do Brasil colônia, pois dessa maneira está-se excluindo uma gama de trocas culturais vinculadas a esses folguedos. A primeira notícia sobre os cordões carnavalescos remonta à segunda metade do século XIX, com a repressão ao entrudo, como visto anteriormente, e de acordo com Tinhorão: O povo lembrou-se de paganizar a estrutura das procissões e no correr da segunda metade do século XIX apareceram os cordões. Os cordões [...] constituíam uma sobrevivência das alas de certas procissões, como a de Nossa Senhora do Rosário – em que se permitiam cantos e danças de caráter dramático. (Tinhorão, 1975, p. 113). Como se vê, Tinhorão levantou a hipótese de profanação dos ritos católicos, ao passo que, fazendo isso, excluiu as mesclas (Néstor Canclini, 2003) culturais entre brancos e negros, comuns numa sociedade colonizada, como é o caso da brasileira. Mas, levando em consideração que este tipo de manifestação carnavalesca surgiu em todo Brasil, não faz sentido concluir que os cordões carnavalescos surgiram de um ato de profanação de determinado culto religioso. Para Olga Von Simson o folguedo carnavalesco em estilo corda teria sido originado a partir de outras festas afro-brasileiras: “destacam-se duas influências culturais. A primeira, mais antiga e negra, diz respeito às festas de caráter profano-religioso – como a congada, moçambique e o próprio samba de Pirapora.” (Simson, 2007, p. 115). Essa autora ainda coloca outras influências para o surgimento dessas organizações, como por exemplo, a partir de outros folguedos, o cinema e o teatro de revista, dentre outros. Tomando ainda como referência o contexto geográfico da cidade de Jaguarão, pode-se dizer que essas organizações também tiveram influências culturais do país vizinho, Uruguai, pois, desde os tempos coloniais, já se tem notícias dos primeiros folguedos afrouruguaios, tendo o candombe - que possui uma forma procissional de desfile, podendo apresentar-se, também, parado, nos chamados tablados e em teatros, formando cordas de tambores - se originado a partir das coroações de reis Congos, uma das vertentes culturais que compõem a estrutura dos cordões brasileiros: Sin perjuicio de tales antecedentes, la década de 1890 marca un antes y um después en la articulación del carnaval montevideano com el candombe, cerimônia ritual de origen africano em la cual, desde los tiempos de la colônia, los negros recreaban la coronación de los reyes congos. (Alfaro, 2008, p. 18) A autora supracitada, assim como Simson, abre outro caminho para o surgimento dos cordões carnavalescos, a partir, no caso da fronteira jaguarense, do candombe, substituindo os tambores pelas vozes femininas do União da Classe. Trata-se, portanto de uma manifestação com várias estruturas, podendo ser considerada dentro das chamadas culturas híbridas. A hibridação “aparece hoy como el concepto que permite lecturas abiertas y plurales de las mezclas históricas [...] contribuye a identificar y explicar múltiples alianzas fecundas.” (Canclini, 2003, p. 3). Mestre Vado traz outra possível vertente cultural de influência na formação dessas cordas de carnaval, ao se lembrar dos cordões funerários africanos, realizados pelos antigos escravos jaguarenses, radicados à rua do cordão após o fim da escravidão – apontando, também, para a fundação da umbanda na cidade – conhecidos por cordão da mão dada, que consistia em: Tinha um costume, lá da terra deles, a África, que batiam tambor e choravam nos enterros, faziam preces e aquelas tradições deles, na volta de uma mesa de mão dada, uma espécie de um cordão assim e rodavam e giravam e rezavam e daí tiraram a umbanda [...] era costume lá da África, que eles traziam tradição, de chorar nos enterros e tudo. (entrevista concedida por Mestre Vado) Portanto, esse ritual funerário também aparece como referência para a formação dos cordões carnavalescos. Trajano Filho, numa pesquisa realizada sobre carnaval de São Tomé e Príncipe ratifica essa ideia e ainda faz a seguinte proposição: “carnaval em formato de cordão pode ser resultante de uma fusão do antigo teatro medieval português com práticas funerárias africanas, onde se homenageava o falecido visitando a casa dos parentes, para contar histórias de forma cantada” (Trajano Filho, 1992, p. 9). Neste sentido, percebe-se que existem três estruturas na formação das cordas carnavalescas: as antigas festas de coroação dos reis congos, as procissões religiosas do século XVIII e os cordões funerários africanos. Dessa forma, os cordões carnavalescos são um híbrido, pois “a mera qualificação de uma forma estética como híbrida implica a existência de outras que certamente não são híbridas.” (José Jorge de Carvalho, 2000, p. 6) e essas outras formas estéticas foram identificadas, estando presentes em três estruturas. Portanto, essa manifestação carnavalesca com um jeito de desfilar regrado, de mãos dadas ou até mesmo em fila indiana (como ocorreu nos cordões da década de 1950) de forma procissional, como se estivessem levando um corpo já morto, remetendo às visitações que realizavam na residência de pessoas mais próximas, pode ser considerada um híbrido proveniente das mais variadas culturas, tanto portuguesas, à época do Brasil colonial, como africanas e, para Jaguarão, uruguaias. Esse fato mostra que existiram múltiplos processos de trocas e até mesmo negociações culturais, entre brancos e negros, criando organizações, que, ao mesmo tempo pertenciam à ordem moralista da sociedade branca, que condenava os folguedos africanos, e à ordem social dos afro-brasileiros, que por utilizar a estrutura performática das procissões, puderem manter alguns resquícios da sua cultura de origem. 3 – “Somos o Suco do Carnaval!” O Cordão União da Classe e a Marchinha Carnavalesca O cordão União da Classe; O cordão da mocidade; Vem hoje mostrar-se alegre; Ao povo desta cidade. Nesta cidade querida; Não tem, nem teve rival; É o sucesso do dia; O suco do carnaval. (Jornal “A Situação” 5 de Março de 1924) Quando pesamos em carnaval, atualmente, logo vem à mente os grandes desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, suas grandes alegorias, fantasias enormes, ornadas com plumas e lantejoulas e, principalmente, na sua grande bateria, o chamado coração de cada escola. A música de carnaval que hoje toma conta dos bailes, festividades e desfiles são de dois tipos: samba enredo e axé music, sendo que esta última vem ocupando um espaço significativo nos últimos dez anos. O que não passa pela nossa cabeça é que, até chegar ao tipo de música que escutamos hoje, seja em festividades distintas do período carnavalesco, ou nos dias dedicados a Momo, passaram-se vários séculos de trocas culturais, recebendo influências diversificadas que deram origem a esse caldeirão de ritmos característicos do Brasil. Esse trabalho, evidentemente, não tratará de todos os gêneros musicais que existiram no Brasil, desde a sua descoberta até o período recente de nossa história, e sim fará um recorte sobre os sons produzidos pelos negros, desde os tempos da colonização até o apogeu das músicas feitas para carnaval, com ênfase às marchinhas carnavalescas que tanto sucesso fizeram. Apesar de escassas as notícias sobre os primeiros sons produzidos pelos negros no Brasil, há indícios desde o século XVII quando um senhor de engenho chamado Baltazar de Aragão, ostentava “uma banda integrada por 20 ou 30 escravos, dirigidos por um vizinho de Marselha.” (Tinhorão, 2008, p. 32). Não se pode pensar, entretanto, que o Brasil passou mais de cem anos em silêncio, os primeiros sons reproduzidos em terras brasileiras vinham de dentro das igrejas, como relatado pelo padre José de Anchieta em 1584, quando meninos indígenas “fizeram suas danças à portuguesa, com tamboris e violas, com muita graça, como se fossem meninos portugueses.” (Tinhorão, 2008, p.32). Existem os registros de pintores, que retratam o cotidiano da colônia portuguesa, nos quais podem ser encontrados escravos com seus instrumentos ou ainda em posição de dança. Em 1645, escravos pernambucanos entoavam cânticos de guerra na luta contra a expulsão dos holandeses: “levantaram logo todos os circunstantes as vozes... e banhados de alegria, aclamaram por três vezes a vitória, e a celebraram ao som de charamelas, caixas e trombetas.” (Frei Manuel Calado apud Tinhorão, 2008, p.34). Mas, os sons que ficaram marcados como tipicamente africanos, dizem respeito aos “batuques”, descritos de forma genérica pelos colonizadores, como provenientes dos cultos afro-religiosos, executados pelos escravos nas fazendas. Porém, deve-se olhar com desconfiança essas generalizações, pois, nem todos os toques de tambor são de origem religiosa, embora os mais significativos para o período e que mereceram algumas páginas nos relatos dos viajantes, fossem os sons dos calundus ou calundu, que Tinhorão descreve como uma “cerimônia religiosa de escravos”. Os registros mais antigos dessas manifestações dos escravos ficaram a cargo do famoso e debochado poeta Gregório de Matos Guerra. Em seus poemas, ele traz representações de escravas possuídas por algumas divindades, as quais davam o nome de calundus. De acordo com Tinhorão, tratava-se de “cerimônias religiosas que, por incluírem a invocação das entidades chamadas calundus [...] acabariam passando esse nome aos sons de seus batuques.” (Tinhorão, 2008, p. 37) Sobre as composições de Gregório, o autor supracitado diz se tratar de dois poemas “da sua fase na Bahia”: a primeira, um romance, sempre trazendo a mulher negra como sedutora e possuidora dos calundus; a segunda narra um relacionamento sexual entre um frei franciscano e uma escrava que estava possuída pelos lundus durante o ato sexual.8 O importante de reter sobre essas manifestações religiosas e sua musicalidade, ocorridas no tempo da colonização, é que a partir delas, possivelmente, originaram-se dois gêneros musicais brasileiros – os quais são, na verdade, uma mescla de ritmos portugueses, afro-brasileiros e africanos – o lundu (umbigada) e o samba. O surgimento do samba ainda é um mistério, pois há, em sua estrutura rítmica, inúmeras vertentes culturais, e autores como José Bittencourt, apontam para os tambores do jongo como uma dessas vertentes. Já José Tinhorão aponta para o lundu, que virou canção em meados do século XIX, mesclandose com outros gêneros musicas, como a polca, na virada de um século para outro, como outra vertente para o surgimento do samba. Essa discussão é longa, e ainda não se tem uma definição concluída de quais estruturas originaram o samba; o que se percebe é que se trata, novamente, de uma estrutura híbrida, pois possui mais de duas influências culturais não mescladas. É sobre esse gênero musical que se sustentará o carnaval a partir da década de 1940, com o aparecimento dos primeiros sambas-enredo para as escolas de samba. Entretanto, antes do samba tornar-se música, digamos, “oficial” do carnaval, outros gêneros tomaram conta das ruas e dos salões. Cabe ainda destacar que o entrudo, considerado o ancestral do carnaval, não possuía animação através de sons, como visto na primeira parte desse trabalho, apenas constituía-se numa grande loucura de jogos de limões de cheiro e água suja. Os primeiros gêneros musicais para o carnaval apareceram com o surgimento dos bailes públicos de salão à moda européia, promovidos por uma trupe de teatro italiana radicada na corte, introduzindo artigos carnavalescos como o confete, a serpentina e a polca. Para Tinhorão, esse foi o primeiro ritmo 8 Sobre esse assunto ver Tinhorão (2008). musical vinculado ao carnaval. A polca surgiu em 1844 e consistia em: “dança de par enlaçado européia” (Tinhorão, 1975, p. 112). Além da polca, existiam outros dois gêneros musicais ligados ao carnaval: as valsas e as mazurcas. Embora esses últimos ritmos tenham feito sucesso no Brasil, a polca, para o carnaval, fazia mais sucesso devido ao seu andamento acelerado em compasso binário. Essas primeiras músicas incorporadas ao carnaval podem ser consideradas carnavalizadas, ou seja, gêneros musicais que fizeram parte dos festejos carnavalescos, na segunda metade do século XIX, mas que não foram compostas para aquele tipo de festividade. O sentido de carnavalizado diz respeito à simbologia carnavalesca que amplia o conceito do carnaval, dando características carnavalescas para músicas não carnavalescas.9 Entretanto, as primeiras músicas dedicadas ao carnaval não demoraram a surgir. Dentre essas, destacamos as marchinhas carnavalescas que, segundo Tinhorão, apareceram com os primeiros cordões carnavalescos, sendo a primeira marcha - composta em 1899 a pedido do cordão Rosa de Ouro - intitulada “Ó Abre Alas”, da maestrina Chiquinha Gonzaga, fazendo “sucesso entre os foliões na primeira década do século XX e até hoje símbolo de referência do carnaval carioca” (Dicionário Houaiss Ilustrado da Música Popular Brasileira, 2006, p. 326). Antes da marcinha tem-se uma canção feita especialmente para carnaval, do cordão Flor de São Lourenço, de 1885. As marchinhas carnavalescas, de compasso binário, com letras jocosas, por vezes críticas, possuíam uma cadencia que Tinhorão afirma ser: “[...] típica de compositores da classe média da década de 20, a marcha carnavalesca representava mais o resultado do impacto de marchas portuguesas divulgadas no Brasil por companhias de teatro musicado nos primeiros anos do século.” (Tinhorão, 1975, p. 126). 9 Para melhor compreender o conceito de carnavalizado em outros contextos, ver Bakhtin (2008). Além dessa influência portuguesa, as marchinhas carnavalescas têm muito do ritmo da marcha militar com “andamento acelerado, melodias simples e comunicativas” (André Diniz, 2006, p. 93). Esse andamento acelerado é considerado por Tinhorão como facilitador do andamento na avenida e, lembrando as estruturas dos cordões carnavalescos e sua performance na avenida, pode-se constatar que essa afirmação faz sentido ao pensar que o andamento daquela forma de organização carnavalesca deveria ser mais embalada pela sua característica procissional. Essas canções não foram um gênero musical somente dos grandes centros do Brasil. No Rio Grande do Sul, figuraram muitos compositores desse estilo musical, dando destaque aqui a Lupicínio Rodrigues, que começou sua carreira musical como compositor de marchas carnavalescas para ranchos de Porto Alegre. Neste sentido, esse tipo de música se espalhou pelo país, chegando dessa forma, ao carnaval jaguarense e ao Cordão União da Classe. Mestre Vado, com sua lembrança musical, relata que algumas dessas marchinhas carnavalescas eram compradas pelo Quartel Militar da cidade (3º Regimento de Cavalaria General Osório) e vinham pelo correio. Essas canções eram de compositores famosos como Lamartine Babo, Noel Rosa e Ari Barroso e, de acordo com Vado, eram executadas de surpresa pelos componentes da orquestra do Cordão União da Classe: Então naquele tempo não havia rádio, ninguém conhecia essas músicas, então quando o cordão entrava numa casa ele apresentava de surpresa; então eles não davam nem o nome das músicas, apitava ali, o apitador era o Teodoro Rodrigues, e diziam, samba número um, e a orquestra tocava e entrava cantando [...] só que os sambas de antes não eram uns sambas enfezados como os de hoje, eram tudo de mão dada, com aqueles passos certos, não requebravam, e faziam uma roda assim, e a orquestra no centro tocando. (entrevista concedida por Mestre Vado) Esse samba a que se refere Vado, com andar mais lento, diferente dos sambas enredo de hoje, em tom mais acelerado; são as marchas carnavalescas, genericamente chamadas de samba, que serviam para a performance de mãos dadas do cordão, sem as danças requebradas das passistas da atualidade. O interessante dessa narrativa de Mestre Vado é o fato de a orquestra ocupar o centro da performance musical, rodeada por pessoas de mãos dadas, lembrando as celebrações funerárias dos antigos escravos jaguarenses, que,desse modo levavam o falecido, no centro da roda, até o sepultamento. Na imagem do cordão fica evidente o estilo performático narrado por Vado. Imagem 3: Cordão União da Classe em desfile na avenida 27 de Janeiro. Ao fundo a orquestra. Essa performance em cortejo é facilitada pelo andamento rítmico das marchas carnavalescas, como bem refere Tinhorão. O Cordão União da Classe compôs, para o carnaval de 1924, seus primeiros sambas e marchinhas carnavalescas. Essas composições (trata-se de dois sambas e duas marchas) foram publicadas pelo jornal “A Situação”. Entretanto, o que se possui dessas canções são apenas os textos poético-carnavalescos; os sons são baseados em audições e análises de marchinhas carnavalescas produzidas à época das marchas do União da Classe. Nessas músicas, percebe-se elementos étnicos, de coletividade e unidade, da uniformidade e maestria do cordão, vitorioso em suas competições carnavalescas. A marchinha escolhida para análise nesse estudo foi a de número 2, publicada em 5 de março de 1924, causando surpresa aos transeuntes que acompanhavam a peregrinação carnavalesca do União da Classe. Marcha nº 2 Avante oh brincar; companheiros, vamos Não encontra competidor Dizem, eu não afirmo; Com alegria, unidos, vamos saudar; Mas aqui a voz é geral Nosso rei da folia sejamos bem unidos; Se não sahisse esse cordão; Não haveria carnaval; Para nosso cordão honrar; CORO Pela entrada do carnaval; Saudando o povo em geral; CORO Ao nobre povo agradecemos; Grupo há por toda parte; É fácil coisa de fazer; Ao nobre povo agradecemos; Mas como o nosso não há, não há; Do fundo d‟alma e do coração; Os applausos que são tributados; A este modesto cordão; 2 Sigamos para frente Despreocupados e sem temor; Inda é preciso nascer; Nosso cordão é batuta; Rapaziada destemida; Quem não goza o carnaval; Não tem prazer nesta vida. (grifos meus) Que este bloco no mundo; As palavras em destaque são apenas ilustrativas do discurso que os integrantes do cordão desejavam passar. Longe de se propor uma análise de discurso, a marchinha aqui é vista como um modo legitimador do comportamento da comunidade negra jaguarense, como afirma Germano, ou seja, mostravam-se humildes e organizados, comprometidos com aquele mundo inverso do carnaval, como explicitado antes, sendo o carnaval uma oportunidade de retirada dos estigmas negativos que recaíam sobre os recém libertos. Dessa canção nos restou esse texto. O sentimento durante a audição dessa música, a performance durante a execução e a emoção que causava no público somente pode-se imaginar. Entretanto, além do descrito acima, é possível perceber elementos que indicam como se apresentavam na avenida, suas reverências ao povo e o gosto deste por suas canções. Como afirma Ruth Finnegan: “tomar a canção e a poesia [...] não como texto, mas como performance” (Finnegan, 2008, p. 18). Assim, essa marcha carnavalesca faz parte da performance que ela integra: o texto poético carnavalesco, a evolução na avenida e o som que outrora foi produzido durante as apresentações. Essa proposta que Finnegan traz, se deu por conta da importância que os primeiros estudos sobre música davam à palavra escrita. O sentido da canção pode ser encontrado muitas vezes em uma conjunção entre o texto, a música e a execução da performance. Não se pode deixar de lado o contexto da produção desse som e do texto carnavalesco, por quem ele foi produzido e para quem. A marcha, enquanto ritmo carnavalesco, mal havia se consolidado no cenário musical, e o samba ainda era incipiente criação - o primeiro samba gravado data de 1917. Portanto, as letras dessas canções do União da Classe tinham um público em específico e serviam para um determinado fim. Lembre-se novamente que essas composições datam do início do século XX, numa cidade de fronteira, recém saída da escravidão, assim como o resto do país, motivo pelo qual suas letras têm o peso de conseguir transmitir a boa conduta desses novos cidadãos, incorporados à sociedade por uma simples assinatura de libertação. O primeiro verso da canção interpela os “companheiros”, convidando os membros do cordão União da Classe para brincar10 no carnaval. A ideia dessa expressão é a de coesão dentro de sua classe, ratificada pela palavra “unidos” do próximo verso. De acordo com Alejandro Frigerio, essa unidade demonstra a coletividade do grupo, reiterada pela nomenclatura do cordão, o que, desde o 10 Brincar ou ser brincante no carnaval diz respeito à forma lúdica que cada pessoa incorpora seu personagem. Sobre esse assunto ver Leão e Freitas (2008). princípio, transmite a ideia de unidade dos seus integrantes, não só enquanto organização carnavalesca, mas também enquanto organização clubística. Ser de uma classe, para o caso dos afro-uruguaios e afro-argentinos pesquisados por Frigerio, significava ser negro e pertencente a uma classe, também no sentido de coletividade: “a expressão classe quer dizer negro, de cor, e a classe implica a coletividade em seu conjunto” (Carmona apud Frigerio, 1993, p. 4). Pode-se dizer que esse mesmo sentido ocorre com o Cordão União da Classe, pois não somente nessa canção transparece a ideia da unidade e da coletividade, mas também numa reportagem sobre o batismo de seu estandarte, em que o cordão: “concitou os seus companheiros a serem sempre unidos, fazendo da denominação desse cordão um verdadeiro lema.” (Jornal “A Situação, Fevereiro de 1933). Logo a seguir, a canção pede para saudar o “nosso rei da folia”. Essa frase parece remeter à identidade étnica do grupo, isto porque, no começo do século XX era costume invocar ao Deus Momo, ou ao Deus Fanfarrão para fazer parte dos préstitos carnavalescos, e não saudar um rei. Como já referendado, uma das vertentes estruturais de formação das cordas carnavalescas provém da cultura afro-brasileira e africana, mais especificamente, das coroações dos reis congos, podendo-se pensar que a prática de saudar ao rei da folia seria influência dessa estrutura longínqua. As palavras neste contexto constituem “unidades mínimas ideológicas [...] de análise e a partir delas, de suas combinações e sistematizações que é possível reconstruir não só um sistema de classificação [...] mas formulações de caráter ideológico do universo estudado.” (Gilberto Velho, 1982, p 66). As unidades mínimas ideológicas - como unidade, classe, companheiros e rei da folia - servem para mostrar a coesão de um grupo étnico e construir uma boa imagem, em oposição àquela produzida pela sociedade branca que os vigiava e ditava padrões morais, pois os dias dedicados a Momo tinham um significado político para os integrantes do cordão e para os associados e frequentadores do Clube 24 de Agosto. Portanto, o carnaval, como um fenômeno liminar, capaz de suspender as atividades do mundo lógico e racional, propício para construção ideológica da boa imagem dos negros na sociedade jaguarense, serve também para: “revitalizar estruturas sociais e contribuir para o bom funcionamento dos sistemas, reduzindo as tensões e ruídos” (Dawsey, 2005, p. 168). Neste caso, a música serve como um agenciador e até mesmo facilitador dessa construção, ao trazer em suas estrofes elementos que valorizam a comunidade negra de Jaguarão, em especial aqueles ligados ao Clube 24. Como bem afirma Nettl: “em cada cultura a música funcionará para expressar, de forma particular, uma série de valores” (Nettl apud Seeger, 1992, p. 17). “Agradecer ao nobre povo”, ser “batuta” e “rapaziada destemida”, só corrobora a ideia de que a música é agenciadora desse processo de integração do negro e de construção de sua nova ética social, de trabalhador honesto, livre dos vícios e da malandragem. Claro que não se pode pensar que a letra dessa canção tenha a força de apagar estigmas perpetuados sobre os negros durantes séculos, mas contribui para a legitimação do processo e dos componentes envolvidos na composição e representação da marchinha, da música e de seus elementos, como: o ritmo, a melodia, a harmonia das vozes, a letra e a performance uniformes na avenida, além do público (audiência, como refere Anthony Seeger (1992), que possuía certa expectativa. Portanto, a canção carnavalesca do União da Classe, além de ajudá-lo em sua evolução e performance ao longo do desfile nas ruas jaguarenses, também transmitia, a partir da letra, o sentido que possuía o carnaval para os negros daquelas organizações, ou seja, de que defendiam o caráter da identidade do grupo em “forma musical” (Seeger, 1992). Se o som executado pelo Cordão União da Classe pudesse ser reproduzido em conjunto com sua performance e letra, teríamos o panorama completo, tanto musical, como das técnicas corporais de seus integrantes; mas para o presente estudo, a imaginação deixará que esse “modesto cordão” desperte, em outros carnavais, sua performance e sonoridade, há tempos adormecida. Fragmento de Samba em Homenagem ao Cordão União da Classe. União da Classe é luta! União da Classe, batuta! União da Classe, alegria geral O suco do Carnaval!11 Imagem 4: Cordão União da Classe no Clube Social 24 de Agosto. 11 Samba composto pela autora da monografia em parceria com Josete Vignolle. Considerações Finais Essa pesquisa mostrou possibilidades de se trabalhar com a etnografia do passado ou da duração em conjunto com o método histórico, trazendo conteúdos de fontes secundárias de jornais produzidos no início do século XX e narrativas de integrantes dos antigos carnavais do Clube Social 24 de Agosto. A análise temática enfocou os carnavais realizados por esse Clube, demonstrando sua relevância política e ideológica através de suas manifestações coletivas e canções, que colocam em evidência os ideais de unidade dentro da classe, com sentido étnico implícito: ser de classe é ser negro, ser unido em classe é ser unido dentro de seu grupo étnico. A necessidade de estabelecer um foco analítico remeteu para segundo plano outros aspectos importantes para compreensão de outras dimensões da música carnavalesca representada pelas marchinhas, e que são igualmente relevantes para a comunidade negra de Jaguarão, representada aqui pelo Cordão União da Classe e pelo Clube Social 24 de Agosto. Procurei discutir a transitividade entre passado e presente, numa relação diacrônica e sincrônica, servindo-me da etnografia da duração como aporte teórico fundamental para pensar a relação entre documentos escritos, que eu levava aos meus colaboradores de pesquisa, e, por outro lado, a ativação de suas lembranças, no relato de seus feitos como integrantes do Cordão União da Classe. Buscando entender o contexto histórico e social em que ele se situava, servi-me da contribuição de historiadores que demonstraram como a nova ética do trabalho, imposta logo após o fim da escravidão, fundamentou-se em teorias raciais, ao mesmo tempo em que as nutriu, escamoteando a condição do negro enquanto sujeito histórico, ser pensante e produtor de conhecimento. O predomínio destes estudos raciológicos que diagnosticam o atraso da sociedade brasileira pela presença de “raças inferiores à branca”, justificou a opção pelo caminho da modernidade e civilização através do branqueamento e disciplinamento da população. Já o contexto carnavalesco foi considerado a partir do mito de fundação do festejo, abordando, dessa maneira, mais de uma dimensão do folguedo. Isso foi necessário para mostrar o mundo suspensivo produzido pela festa e pelas inversões dos papéis sociais – afinal o rei é gordo! Reportei a origem do folguedo para o mito do país da cocanha e para o medievo europeu, mostrando o sentido da “carne que vale” durante os dias de folgança, porque depois viriam dias sombrios da quaresma, com restrições alimentares e sexuais. Tratei igualmente das primeiras manifestações carnavalescas brasileiras, como o entrudo, prática trazida pelos colonos portugueses e que se popularizou, até mesmo entre os escravos, que eram liberados para participar da festa. Assim, com o advento da república e os ideias de ordem e progresso incutidos no pensamento dos intelectuais e da elite brasileira, a prática do entrudo começou a ser severamente condenada, mas não extinta! Percebemos, ainda, nos dias atuais, os resquícios do divertido, porém, violento entrudo. Com essa condenação, novas formas carnavalescas foram surgindo, dentre elas, os cordões. Aqui procurei mostrar o caráter híbrido dessas organizações, colocando, para o caso do carnaval jaguarense, os cordões com forte influência de três vertentes culturais: uruguaias, a partir do candombe; portuguesas, pelas procissões católicas e africanas, por conta dos cordões funerários. Com apoio de outras pesquisas, argumentei que a fundação do clube Social 24 de Agosto estava relacionada à questão da etnia e da constituição da classe operária, como estratégia política de aceitabilidade e inserção na comunidade branca e na nova ética trabalhista dos novos anos pós-abolição. A unidade dentro da classe sempre o foi lema do cordão carnavalesco e da própria comunidade agostiniana. Entretanto, essa unidade de classe constituíase como identidade étnica do grupo, que não deixou de existir, embora forjada pela identidade do “operário”. Em se tratando do carnaval, este foi tido como um elemento de quebra da estrutura social, um período extraordinário, feito pela sociedade e para a sociedade, na tentativa de amenização do cotidiano, buscando-se enfrentar as adversidades da vida ao longo do ano. É nesse momento de quebra social que a comunidade negra do Clube 24 viu a oportunidade de se mostrar publicamente como constituída por boas pessoas e figuras trabalhadoras, de respeito. Dessa forma, o carnaval foi percebido em sua dimensão política e não apenas no sentido de divertimento. Relatei o panorama dos primeiros sons dos negros no Brasil, até a elevação do samba como música de carnaval, embora essa temática não tenha sido amplamente debatida neste trabalho, na medida em que não se constituía em seu problema central. Nesse contexto, mostrei as músicas carnavalizadas do começou do carnaval de salão, com a introdução de gêneros musicais para animar os bailes públicos da alta sociedade. As marchinhas carnavalescas, centro da pesquisa, foram tratadas desde suas possíveis origens, até a sua incorporação como música própria de carnaval - neste caso trata-se de canções feitas especialmente para o carnaval -, chegando-se à particularidade desses gêneros musicais na fronteira sul brasileira. Na marcha carnavalesca do Cordão União da Classe destaquei a performance de evolução na avenida, devido ao andamento da música e das influências culturais na estrutura que deu origem a essa prática carnavalesca. Além disso, apesar da falta do componente sonoro (aqui o som da marcha do União da Classe foi baseado na audição de marchinhas carnavalesca do início do século XX, portanto, contemporâneas em estética sonora), foi possível perceber essa característica peculiar de desfile: em “corda”, de mãos dada ou em fila indiana. Na canção em que me detive para o encerramento deste capítulo, analisei as “unidades mínimas ideológicas” contidas na letra da marchinha, que deixam transparecer o ideal de unidade na classe, de pertencimento étnico (saudando o rei da folia), deixando implícitas as intenções políticas que essa música transmitia ao tratar os integrantes do cordão como humildes e destemidos. Ainda há muito a dizer sobre o Cordão União da Classe e sobre as suas canções - foram encontradas duas marchas e dois sambas, assim como sobre a performance de evolução e suas influências culturais, mas isso se dará em outros carnavais, pois “todo carnaval tem seu fim” e desse sobrou apenas os confetes e as serpentinas no chão! Referências Bibliográficas ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado da Música Popular Brasileira. Editora Paracatu, Rio de Janeiro, 2006. ALFARO, Milita. Memorias de La Bacanal. Vida y milagros Del carnaval montevideano (1850-1950). Ediciones de La banda oriental, Montevideo, 2008. 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Tereza e expresidente do Clube Getúlio (in Memorian) Site sobre candombe – www.candombe.com – visitado em janeiro e outubro de 2010. Diários de Campo de 2009 e 2010.