PARECER SOBRE O ESTUDO DE IMPACTE

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PARECER SOBRE O ESTUDO DE IMPACTE
 Aproveitamento Hidroelétrico de Sistelo PARECER SOBRE O ESTUDO DE IMPACTE AMBIENTAL ENTIDADE RESPONSÁVEL PELO DOCUMENTO QUERCUS -­‐ Associação Nacional de Conservação da Natureza 5 Junho de 2015 No âmbito da consulta pública ao Estudo de Impacte Ambiental (EIA) do projeto Aproveitamento Hidroelétrico de Sistelo, a Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, com sede no Centro Associativo do Calhau, Bairro do Calhau, 1500-­‐045 Lisboa, contribuinte fiscal n.º 501 736 492, vem por este meio apresentar o seu parecer relativamente aos documentos colocados em consulta. 1. Descrição e antecedentes do projecto O Aproveitamento Hidroeléctrico (AHE) do Sistelo localiza-­‐se nos concelhos de Arcos de Valdevez e Monção, distrito de Viana do Castelo, sendo que o açude será implantado num troço do rio Vez, um afluente da margem direita do rio Lima. Analisando a cartografia facultada, constata-­‐se que parte do traçado da conduta, a central e o açude estão localizados em áreas da Rede Natura 2000, nomeadamente no Sítio de Importância Comunitária Peneda-­‐Gerês e Zona de Protecção Especial Serra do Gerês. Em ambos os Planos Directores Municipais – Município de Arcos de Valdevez e de Monção – não está contemplada a implementação do Aproveitamento Hidroelétrico de Sistelo. Das características do projecto, podemos sintetizar que: • Será construído um açude de gravidade com cerca de 2 m de altura acima do leito natural e cerca de 30 m de comprimento ao nível do coroamento, criando uma albufeira com cerca de 52 m de extensão e uma área inundada de 900 m2; • Prevê-­‐se uma tomada de água no rio Vez, dimensionada para derivar um caudal de 2,5 m3/s, • A partir da tomada de água colocar-­‐se-­‐á uma conduta de derivação enterrada, em tubagem de aço f1200 mm, com cerca de 290 metros de extensão; •
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Prevê-­‐se a construção de uma câmara de sedimentação de reduzido volume, em linha, semi-­‐enterrada na encosta; A partir da câmara de sedimentação será implantada em vala uma conduta forçada de aço com diâmetros de 900, 1000, 1100 e 1200 mm, com cerca de 5455 m de extensão; No final da canalização nascerá uma central hidroeléctrica equipada com um grupo turbina-­‐gerador com potência global de 10 MVA, dimensionado para um caudal máximo de 2,5 m3/s e uma queda útil de referência de 441 m. Desconhece-­‐se porque é que, nesta fase, o estudo do traçado da linha eléctrica de ligação à Rede Eléctrica Nacional -­‐ um ramal em linha aérea, a 60 kV até ao Posto de Corte Alagoa de Cima, numa extensão aproximada de 6 km -­‐ ainda não está elaborado e disponível, quando a avaliação de impacte ambiental deveria ser efectuada à totalidade do projecto. Com efeito, esta linha é um projecto conexo e inseparável deste, ou seja, faz parte deste projecto, e nele deveria ser integrada, pelo que a avaliação de impacte ambiental deveria incidir também sobre esta componente. De salientar que o projecto já foi, em 2005, objecto de Declaração de Impacte Ambiental Desfavorável, situação que obrigou à revisão dos pressupostos do projecto, nomeadamente: • deslocação do açude cerca de 70 m para montante e alteração da altura de 4 m para 2 m, gerando uma albufeira com uma extensão de 52 m e com uma área inundada de apenas 900 m2; • redução dos declives dos parâmentos do açude, em particular do de jusante; • reformulação da passagem para peixes. 2. Análise ao estudo O Estudo de Impacte Ambiental, relativamente às características ecológicas da bacia em questão, realça a existência de valores naturais que importa preservar no contexto do Sítio de Importância Comunitária Peneda-­‐Gerês. Entre estes, é de realçar a existência de um habitat de conservação prioritária, o amial ripícola [91E0 *Florestas aluviais de Alnus glutinosa e Faxinus excelsior (Alnopadion, Alnion incanae, Salicion albae)], com estatuto de proteção legal segundo a Directiva 92/43/CEE (Anexo I) e Decreto-­‐Lei n.º 49/2005 (Anexo B-­‐1), o qual será destruído com a construção do açude, numa extensão com algum significado. Para além dos habitats, ao nível da ictiofauna, é de referir a existência de endemismos ibéricos, como o Barbo-­‐comum (Luciobarbus bocagei), a Boga-­‐do-­‐Norte (Pseudochondrostoma duriense) e o Escalo-­‐do-­‐Norte (Squalius carolitertii), cujo principal factor de ameaça à sua sobrevivência prende-­‐se precisamente com a instalação de estruturas transversais que provocam descontinuidade do curso de água. Não obstante o que referimos, no local onde será instalado o açude, o troço é já marcadamente salmonícola, sendo dominado pela Truta-­‐de-­‐rio (Salmo trutta), espécie que, para além de ser muito sensível às flutuações de caudal, também é susceptível à perturbação da continuidade fluvial provocada pelo paredão do açude, em particular aquando dos movimentos migratórios que antecedem a reprodução. Também em relação aos peixes, a Enguia-­‐europeia (Anguilla anguilla), um migrador catádromo, ocorre ao longo de todo o troço, sendo este um corredor de grande relevância para os objectivos de conservação da espécie. Considerando que apenas 3,8% da extensão total dos sistemas aquáticos portugueses continuam de livre acesso à Enguia-­‐europeia, a construção de mais este represamento numa bacia hidrográfica já irreversivelmente constrangida constituirá um factor adicional de incumprimento do Plano de Gestão da Enguia-­‐europeia por parte do Estado Português junto da União Europeia. Por outro lado, o rio Vez é de elevada importância como habitat e corredor ecológico para a Toupeira-­‐de-­‐água (Galemys pyrenaicus), cujo estado de conservação é considerado Vulnerável, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados. Esta é uma espécie particularmente sensível à fragmentação do habitat provocada, não só pela presença de obstáculos, mas também pela substituição de ambientes lóticos por ambientes lênticos, situação que nos parece inaceitável, considerado não só os objectivos de conservação da espécie, mas também porque fica em causa a coerência ecológica e a própria conectividade da Rede Natura 2000. Mesmo abstendo-­‐nos de comentar de forma pormenorizada o despropósito de utilizar o rio Vez para estabelecer os limites do Sítio de Importância Comunitária Peneda-­‐Gerês, algo que deverá ser objecto de revisão num futuro próximo, não nos parece justificável que se comprometam os objectivos de conservação de dois Sítios de Importância Comunitária contíguos -­‐ Peneda-­‐Gerês e rio Lima -­‐ permitido a artificialização de mais uma área da Rede Natura 2000. Relativamente ao cálculo dos caudais ecológicos, e sendo compreensível as reservas apontadas aos resultados obtidos pelo método do INAG, dada a sua grande variabilidade, não é perceptível porque foi tomada a opção apresentada, dado que não é identificado qual o método científico alternativo em que se baseou. Sendo salutar a garantia de um caudal mínimo ao longo de todo o ano (no caso presente, 10%, equivalente a 73 l/s), o que não acontecia com o Método do INAG, em que surgiam meses com caudal ecológico de 0 l/s, seria desejável terem sido efectuados mais cálculos, recorrendo a métodos científicos alternativos e comparáveis. Em particular, sugerimos que sejam efectuados os cálculos recorrendo ao Método do Caudal Base, método este que apresenta um elevado grau de sensibilidade ao tipo de rio e ao respectivo regime hidrológico. Ainda, sendo considerado um caudal mínimo de reserva de 30 l/s ao longo de todo o ano, com um acréscimo para os 70 l/s nos meses de Verão, é necessário clarificar as características funcionais do aproveitamento (capítulo 5.7), nomeadamente qual o caudal mínimo total libertado para jusante e não apenas o caudal ecológico, já que o primeiro deverá ser uma soma do segundo com os caudais reservados. Eventualmente, poderá incluir-­‐se nos caudais reservados uma componente para combate a incêndios e não apenas para rega, uma vez que esta questão poderá ser relevante na região. O relatório refere que, na fase de RECAPE, se irá aferir os caudais ecológicos, recorrendo ao Método IFIM. Este método, sendo dos mais adequados para se avaliar a exequibilidade dos caudais ecológicos para a manutenção das comunidades ribeirinhas, é um método muito exigente em termos de recursos financeiros, humanos e científicos. Deverá ser dada uma garantia de que o promotor tem capacidade para realizar essa avaliação e fazer as alterações eventualmente necessárias, em conformidade. Com base nos elementos apresentados e em função da variabilidade das condições atmosféricas amplificada pela evolução climática em curso, ocorrem-­‐
nos sérias dúvidas que esteja definida ou acautelada uma hierarquia de prioridades em relação aos diferentes usos em presença, designadamente a utilização da água para rega e para abastecimento a algumas aldeias, e o usufruto das praias fluviais. 3. Conclusões Em plena recta final da preparação do Planos Gestão das Regiões Hidrográficas e da discussão do Quadro Estratégico para a Política Climática, este é mais um exemplo da ausência de estratégia e da insuficiente integração das políticas públicas em relação às orientações que terão que ser dadas aos investidores do sector privado. Prefere-­‐se uma lógica de caso a caso, discricionária e discriminatória face ao conflitos de escolha que permanentemente são colocados aos decisores políticos. Neste contexto, e somente a título de exemplo, até porque alguns dos argumentos do promotor são que o aproveitamento “evitará a necessidade de importação anual de cerca de 6000 t do combustível fóssil – fuelóleo – necessário para uma produção térmica equivalente” ou que “[é] um projecto sustentado em razões de interesse nacional”, não se percebe porque é que as metas de produção de energia com recurso a renováveis têm que se sobrepor às metas da Directiva Quadro da Água (DQA) ou aos objectivos da Directiva Habitats (DH). Numa altura em alguns países estão a proceder à remoção e ao desmantelamento de constrangimentos transversais nos cursos de água, de forma a repor a continuidade fluvial em diversas bacias hidrográficas para dar cumprimento às metas da DQA e da DH, em Portugal, numa lógica de verdadeiro contra-­‐ciclo, esta opção continua sem fazer parte da equação das políticas públicas de gestão dos recursos hídricos e da biodiversidade. Nesta matéria, a Quercus tem vindo a afirmar, de forma reiterada, a necessidade de que a aposta nas energias renováveis se concretize sem comprometer a integridade e a coerência ecológica da Rede Natura 2000. Não é aceitável que a artificialização do solo e das massas de água nos espaços classificados seja permitida, quando a regra deveria ser afectar essas áreas à conservação da biodiversidade e à maximização do fornecimento de serviços dos ecossistemas. As áreas incluídas na Rede Natura 2000 deverão, sem excepção, ser entendidas como áreas no-­‐go, até para garantir que estamos em linha com o compromisso europeu "No Net Loss" (ausência de perda líquida) de biodiversidade e serviços dos ecossistemas. Por último, é importante referir que própria ausência de alternativas de localização, incluindo a opção de não concretizar o projecto, obrigatória face ao quadro legal de AIA, é omitida deliberadamente neste EIA sem que nos seja apresentada uma justificação para tal facto. Este é aliás mais um exemplo de que a hierarquia da mitigação é sistematicamente desvalorizada e a sua não ponderação tem vindo a ser a regra entre os decisores. Mesmo ao nível das alternativas, parece-­‐nos cada vez mais injustificável que estes projectos que visem a produção de energia renovável, para alem da opção zero e das alternativas de localização, não apresentem diferentes opções de concepção de projecto, como a eólica, a solar e a hídrica ou investimento em eficiência energética. Atendendo a estas considerações e que o projecto: • implicará a destruição de um habitat prioritário [91E0* Florestas aluviais de Alnus glutinosa e Faxinus excelsior (Alnopadion, Alnion incanae, Salicion albae)]; • criará uma barreira moderada à continuidade fluvial, a qual impedirá o fluxo genético de jusante para montante, com particular significado na ictiofauna e na população de Toupeira-­‐de-­‐água; • afectará as condições hidrológicas e ecológicas do rio Vez, operando uma homogeneização da massa de água, isto é, transformando um sistema natural, heterogéneo, de características lóticas, num sistema artificial, de características lênticas, situação que alterará significativamente as comunidades presentes; • não dá garantias quanto ao cumprimento dos caudais ecológicos nem quanto à utilização da água para os diferentes usos existentes na sub-­‐
bacia; • não houve qualquer estudo do traçado da linha eléctrica de ligação à Rede Eléctrica Nacional, pelo que não é possível analisar as perturbações sobre a avifauna, devido à eventual sobreposição entre os corredores de passagem e a zona de implantação do ramal em linha aérea de 6 km para distribuição da energia produzida; • impede um futuro ajuste dos limites do SIC Peneda-­‐Gerês, com vista à integração da totalidade dos valores naturais do vale do Vez em estado de conservação favorável como espaço classificado; • viola os Planos Directores Municipais de Arcos de Valdevez e Monção. A Quercus manifesta a sua oposição a este projecto, pelo que insta a que a APA – Agencia Portuguesa do Ambiente – autoridade nacional em matéria de avaliação de impacte ambiental e também em matéria de recursos hídricos – se pronuncie desfavoravelmente em relação ao mesmo e remeta o processo ao Senhor Secretario de Estado do Ambiente, Paulo Lemos, para que seja emitida Declaração de Impacte Ambiental Desfavorável. Lisboa, 5 de Junho de 2015 Grupo de Trabalho da Água da Quercus e Núcleo Regional de Viana do Castelo da Quercus -­‐ ANCN