Livro Relatos de um Desastre - CEPED UFSC

Transcrição

Livro Relatos de um Desastre - CEPED UFSC
RELATOS DE UM DESASTRE
Narrativas Jornalísticas da Tragédia de 2008
em Santa Catarina
Ana Paula de Assis Zenatti
Soledad Yaconi Urrutia de Sousa
(Organizadoras)
RELATOS DE UM DESASTRE
Narrativas Jornalísticas da Tragédia de 2008
em Santa Catarina
Defesa Civil de Santa Catarina
RELATOS DE UM DESASTRE
NARRATIVAS JORNALÍSTICAS DA
TRAGÉDIA DE 2008 EM SANTA CATARINA
Organização e editoração
Ana Paula de Assis Zenatti
Soledad Yaconi Urrutia de Sousa
Revisão
Liane de Assis Zenatti
Projeto Gráfico e Capa
Rafael da Silva Paulo
Foto Capa
Mafalda Press
www.mafaldapress.com.br
Fotos
Arquivo Secretaria de Estado de Comunicação
Realização
Governo do Estado de Santa Catarina / Secretaria Executiva da Justiça
e Cidadania / Departamento Estadual de Defesa Civil e Universidade
Federal de Santa Catarina/ Centro Universitário de Estudo e Pesquisas
sobre Desastres (CEPED).
Apoio
Associação Catarinense de Imprensa (ACI)
Governo do Estado de Santa Catarina / Secretaria Executiva da
Justiça e Cidadania / Departamento Estadual de Defesa Civil.
Relatos de um Desastre - Narrativas Jornalísticas da Tragédia
de 2008 em Santa Catarina / Ana Paula de A. Zenatti e Soledad
Y. U. de Sousa (org.) - Florianópolis: UFSC/CEPED, 2009.
132 p.
www.defesacivil.sc.gov.br
Distribuição gratuita.
Sumário
Apresentação .............................................................................................7
Dedicatória..................................................................................................9
Introdução - Márcio Luiz Alves ....................................................................11
Prefácio - Márcia Dutra ............................................................................13
RELATOS
Associação dos Diários do Interior de Santa Catarina – ADI ...................21
Stefani Ceolla - Repórter - Diário da Cidade
Associação dos Jornais de Santa Catarina – Adjori .................................31
Kássia Dalmagro - Repórter - Jornal Metas
Alexandre Melo - Repórter - Jornal Metas
CBN Diário ................................................................................................49
Luiz Christiano - Produtor e Repórter
Jornal Diário Catarinense .........................................................................58
Diogo Vargas - Repórter
Jornal O Estado de São Paulo .................................................................65
Rodrigo Brancatelli - Repórter
Rádio Guarujá de Florianópolis AM, 1.420 kHz .......................................73
Marcelo Fernandes - Coordenador de Jornalismo
Núcleo Globo de Televisão – Santa Catarina/ RBS TV ............................81
Brígida de Poli - Coordenadora
Feliphe Abreu - Repórter Cinematográfico
Graça Vasques - Produtora e Editora
José Carlos Carmo -Editor
Kiria Meurer - Repórter
Ricardo Von Dorff - Repórter
Rede de Notícias Acaert .........................................................................102
Marco Aurélio Gomes - Coordenador
Ric Record - Blumenau ..........................................................................109
Alexandre Gonçalves - Repórter
Secretaria de Estado de Comunicação – Secom ...................................120
Vitor Hugo Louzado - Executivo de Imprensa
Patrícia Pinheiro - Executiva de Imprensa
Organização ...........................................................................................129
Apresentação
A cobertura jornalística do desastre considerado a maior tragédia de Santa Catarina
registra, além dos fatos que marcaram a história do Estado, as experiências de
pessoas que doaram muito mais do que seus conhecimentos profissionais para levar
as informações até a população. O trabalho desempenhado pelos comunicadores
revela emoções junto às dramáticas histórias de sobreviventes. Momentos difíceis,
compensados pelo sentimento de solidariedade que as imagens e notícias divulgadas
na época despertaram na população.
Os textos compilados neste livro revelam com detalhes a difícil missão dos
repórteres que estiveram nas áreas afetadas, dividindo o desgaste, o cansaço e a
inevitável emoção com as tarefas e deveres da profissão. Jornalistas experientes e
iniciantes são unânimes ao afirmar que a cobertura das enchentes de 2008 foi a mais
importante experiência profissional e pessoal de suas vidas.
Aqueles que ficaram do outro lado, nas redações e assessorias, contribuíram
tecendo o percurso das notícias, desde o local dos fatos até os olhos, ouvidos e
coração da sociedade. O leitor que acompanhou os fatos teve a verdadeira dimensão
do desastre e demonstrações de superação e amor como lições de vida.
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A capacidade de recuperação das famílias atingidas pela
tragédia superou os fatos do desastre de 2008. Este livro
é dedicado a todas as vítimas e a todos que auxiliaram no
recomeço de cerca de 80 mil desabrigados e desalojados,
por meio de doações e trabalhos voluntários, entre eles os
19 colaboradores desta obra.
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Introdução
Os danos humanos e prejuízos econômicos provocados pelas chuvas que assolaram o
estado de Santa Catarina durante a primavera de 2008 são incalculáveis. Nos registros
da Defesa Civil catarinense, 135 pessoas perderam suas vidas e duas continuam
desaparecidas. Cerca de 97% dos óbitos ocorreu por soterramento, pois o acúmulo de
água no solo provocou deslizamentos, destruindo casas, escolas, hospitais e estradas,
e enterrando histórias e sonhos de muitas famílias.
A precipitação excessiva foi registrada desde o mês de setembro e os primeiros
estragos causados pela chuva no período foram constatados no dia 18 de outubro.
No dia 22 de novembro, a chuva provocou a maior tragédia da história catarinense.
Famílias perderam tudo o que demoraram anos para conquistar. Empresas registraram
prejuízos. O turismo foi comprometido e os serviços públicos e particulares foram
paralisados. O suprimento de gás e energia elétrica em diferentes municípios foi
interrompido. Cidades inteiras ficaram isoladas durante dias.
O Porto de Itajaí, no Vale catarinense, parou de operar. O Estado perdeu R$
105 milhões na arrecadação, no período entre 22 de novembro e 31 de dezembro
de 2008. Mais de 1,5 milhão de pessoas foram diretamente afetadas. Os efeitos da
intensidade da chuva foram constatados por todas as classes sociais das cidades
atingidas. Residências de alto padrão construtivo vieram abaixo, da mesma forma que
casas simples em áreas de encostas, consideradas de risco. Famílias foram vítimas da
brutalidade deste evento adverso extremo. Um desastre que mobilizou e solidarizou
milhões de pessoas de diferentes cantos do mundo e do qual a maior perda, sem
dúvida, foram as vidas humanas e o maior exemplo foi o de solidariedade.
Quem teve a oportunidade de acompanhar de perto as ações de resgate, apoio
e atendimento às vítimas do desastre vivenciou muito mais do que o esforço de
trabalhadores e voluntários para salvar vidas e garantir a segurança da população.
Os profissionais que atuaram na resposta ao desastre adquiriram experiência e foram
contaminados pela vontade pessoal de colaborar.
Informações e o drama das vítimas puderam ser acompanhados por intermédio
da imprensa, que realizou, se não a maior, uma das mais amplas coberturas jornalísticas
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de um desastre no país, conforme testemunhado por diversos representantes de
instituições de Defesa Civil de outros estados da Federação. Minuto a minuto, dia
após dia, durante semanas, centenas de jornalistas levaram fatos do desastre até a
população. O trabalho dos meios de comunicação em divulgar este tema de interesse
público somou-se aos mecanismos de resposta ao desastre e serviu de instrumento
às instituições envolvidas, ao trazer dados diretamente dos locais onde os fatos
aconteciam.
Em muitas oportunidades, repórteres ligaram para a Defesa Civil Estadual
informando fatos que ainda não tinham sido comunicados ou solicitando auxílio às
vítimas. A imprensa, por intermédio do rádio, em sua instantaneidade, foi em diversas
ocasiões o meio mais eficaz de comunicação entre a Defesa Civil e a população.
Com o auxílio dos veículos de comunicação, o mundo conheceu a tragédia em Santa
Catarina e pode ajudar com doações em dinheiro e recursos materiais.
Durante dias, jornalistas ficaram de plantão na sede da Defesa Civil, em
Florianópolis, e no Centro de Operações Aéreas, em Navegantes, para garantir
veracidade e agilidade no repasse de informações. Trabalharam integrados com
bombeiros, policiais, Exército, Defesa Civil, médicos e outros especialistas
envolvidos nas operações de resposta. Ligações de profissionais de todo o país e
ao redor do mundo foram recebidas pela equipe de Assessoria de Comunicação do
Governo do Estado, composta por jornalistas de diversos setores do órgão catarinense,
para atender a ampla demanda por busca de informações da imprensa. Os técnicos
do Centro de Informática e Automação de Santa Catarina (Ciasc), em poucas horas,
disponibilizaram o site www.desastre.sc.gov.br, que passou a concentrar e registrar,
em tempo real, todas as notícias e comunicados sobre o episódio.
As equipes de jornalistas do Governo do Estado e dos meios de comunicação
que participaram da cobertura do desastre trabalharam integradas. Formou-se uma
rede cooperativa de comunicação, agilizando informações com credibilidade à
população, e auxiliando nas ações de resposta do governo catarinense.
Os jornalistas participantes da cobertura da tragédia tiveram uma extraordinária
experiência profissional e um relato de vida. Neste livro, estão as histórias pessoais e
a prova de que o desastre de 2008, além de danos e prejuízos, deixou inúmeras lições.
Márcio Luiz Alves
Diretor Estadual de Defesa Civil
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Prefácio
Quando me dei conta, estava chorando. Foi demais ver, bem abaixo de nós, tanta
destruição. Não percebi que o cinegrafista da TV Cultura de São Paulo registrava o
triste reencontro com a minha gente. Estávamos num helicóptero da Aeronáutica,
um dos mais modernos do mundo.
Naqueles dias, o aeroporto de Navegantes virou palco da maior operação aérea
da história brasileira. Aviões chegavam de todos os cantos do país com toneladas
de doações, água, principalmente. Oitenta e cinco pilotos e tripulantes pousavam e
decolavam a todo instante. Cinco helicópteros atendiam vítimas da força das águas
e da terra. Sim, da terra. Aquela era uma tragédia diferente. Os deslizamentos de
terra foram o grande diferencial daquele evento.
No domingo, 23 de novembro, acompanhava uma missão que levava
colchões para homens da Força Nacional de Segurança. Eles estavam nos locais mais
isolados, tentando convencer moradores a deixar suas casas, ou melhor, o que delas
sobrara. Naquele momento, éramos sete no helicóptero. Tínhamos resgatado uma
família. O senhor e sua esposa, não lembro os nomes e as idades exatas, talvez 75
ou 78 anos, nunca haviam saído dali. Saíram acompanhados do filho, da nora e dos
netos. Carregaram tudo que puderam levar: sandálias de dedo e a roupa do corpo.
Voltando ao aeroporto de Navegantes, com aquela família a meu lado,
sobrevoamos uma das áreas mais atingidas no Vale do Itajaí, o Morro do Baú, onde
morreram, pelo menos, 30 pessoas. Os olhos do casal de velhinhos permaneciam
secos, mas tristes. Com medo, dúvidas e incertezas. Sofri com eles.
Tudo isso aconteceu há um ano. Guardo aqueles momentos na cabeça. Fecho
os olhos agora e vejo as cenas. As casas já não mais existem. O que um dia foi teto,
agora é chão. Um chão irregular, com pedaços de telhados, de portas e janelas. Um
“novo chão”, que cobre de lama as histórias das pessoas que ali faziam a vida.
Minhas histórias de coberturas de chuvas e enchentes começam muito antes do
mês de novembro do ano passado. Morei em Santa Catarina durante 15 anos. Não
foram poucas as vezes que enfrentei estas situações. Lembro, como se fosse hoje, da
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enchente de 1993, em Blumenau. Na época, eu trabalhava na TV Bandeirantes. Dois
anos depois, quando trabalhava na RBS TV, a chuva forte que caiu em Florianópolis
tirou o brilho do Natal. Eu estava de plantão. Se não me falha a memória, começou a
chover na tarde do dia 23 de dezembro. Lembro-me de descer o Morro da Cruz, quase
noite. Era água que não acabava mais. Parte do Morro da Cruz ficou intransitável, as
ruas da cidade alagaram. O Departamento de Saúde, no centro da cidade, também.
Uma rua perpendicular à Avenida Mauro Ramos foi inundada. No Morro da Lagoa,
houve deslizamentos.
Como foi triste aquele Natal! Nas encostas dos morros da Ilha, o medo tomou
conta de quem morava em construções irregulares. A Defesa Civil estava lá, num
trabalho árduo, convencendo moradores a sair das áreas de risco. Minhas lembranças
de chuvas e trovoadas, no entanto, vão além, muito além. Tenho até um furacão no
currículo.
O telefone da redação tocou. Era o capitão Márcio, hoje major Márcio, diretor
estadual da Defesa Civil de Santa Catarina. Ele ligou para alertar sobre o risco de
algo inédito que poderia acontecer no Litoral do Estado. “Márcia, ainda não dá para
ter certeza do que é, mas é algo muito sério. Posso contar com você e o seu espaço
para alertar a população?”. Eram quase 16 horas de uma sexta-feira. Imediatamente,
respondi que sim, que o SBT Notícias, jornal do SBT que, à época, eu dirigia e
apresentava, estava à disposição.
Perto da hora do jornal, por volta das 18h45 - o jornal ia ao ar às 19h15
-, recebi outra ligação do capitão Márcio alertando: “É muito sério, preciso do
espaço”. Modifiquei o jornal em minutos. Agradeci ao então secretário estadual de
Cultura, Edson Machado, que esperava em nossa sala vip para uma entrevista ao
vivo, de estúdio. Ele entendeu a gravidade da situação e permaneceu na sala vip,
acompanhando as informações do capitão Márcio.
Admirei o cuidado e a prudência do capitão durante a entrevista. Preparado,
bem informado, calmo e profissional, ele sabia que precisava alertar para os riscos,
mas sem alarmar o Estado. Num primeiro momento, Florianópolis estava na rota do
que, até então, não se sabia exatamente o que era. Ou melhor, o que até então não
se podia divulgar o nome exato.
Mas o capitão Márcio sabia o nome. Assim que acabou a entrevista, ficamos
conversando no estúdio e ele me disse em off: “Márcia, é um furacão”. Dali pra
frente, além da expectativa, gastamos horas de planejamento. O governador Luiz
Henrique convocou um gabinete de crise, que permaneceu reunido durante toda a
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noite daquela sexta-feira. Pelo telefone celular, o capitão Márcio e eu nos falamos
várias vezes durante a madrugada.
O Catarina, nome dado ao primeiro furacão da história do Atlântico Sul e
do Brasil, mudou de rota. Ainda assim, deixou estragos: onze mortos e mais de um
milhão de catarinenses afetados. O litoral Norte do Rio Grande do Sul também foi
atingido. Se o Catarina não tivesse mudado de rumo e chegasse a Florianópolis, a
tragédia seria pior, muito pior.
E eu estava lá. Ao vivo, para o Domingo Legal do SBT, mostrei para todo o
Brasil o que acontecia em Santa Catarina: BR 101 interditada, casas destruídas e
vidas modificadas mais uma vez. O povo do Sul é guerreiro.
De volta as minhas lembranças das chuvas de novembro passado, vem-me à
cabeça um título do jornal Folha de São Paulo. Não me lembro a frase exatamente,
mas fiquei irritada. Era algo como: “Defesa Civil de SC não tem planejamento”.
Liguei para o major Márcio na mesma hora. Sinceramente, fiquei ofendida. Será que
ninguém podia entender que Santa Catarina enfrentara meses de chuva ininterrupta?
Será que não é óbvio não existir terreno capaz de aguentar tanta água e que este foi
o motivo dos deslizamentos? A Defesa Civil de Santa Catarina tem planejamento,
sim. Várias vezes fui testemunha disso.
Nestes anos de reportagens com chuvas e enchentes, sempre me chamaram a
atenção a força do povo de Santa Catarina e a organização dos órgãos que atuaram
na prevenção e na solução destes problemas. Lembro do trabalho dedicado da
Universidade de Blumenau no monitoramento das águas do rio Itajaí. Lembro da
organização nos abrigos. Lembro da solidariedade das pessoas que trabalhavam nas
cozinhas, preparando refeições aos que tinham perdido tudo. Lembro da Defesa Civil
sempre à frente em tecnologia, planejamento, organização e dedicação.
O convite para escrever este prefácio do livro Relatos de Um Desastre –
Narrativas Jornalísticas da Tragédia de 2008 em Santa Catarina, feito pelo major
Márcio Luiz, deixou-me muito feliz, especialmente porque hoje moro em São Paulo.
Ainda tive a oportunidade de leitura de textos de companheiros queridos com quem
trabalhei na RBS TV - Brígida Poli, Kíria Meurer e Ricardo Von Dorff. Profissionais
que levaram a todo o Brasil e ao mundo imagens do maior desastre de Santa Catarina.
Como não se orgulhar de um povo que o repórter Ricardo Von Dorff, do Núcleo
Globo, define tão bem no depoimento do senhor de 80 anos que voltou ao local de
risco para buscar o carnê de pagamento de uma moto? Ou como não se comover
com o homem que não conseguia conter o sentimento de culpa por ter pensado, pelo
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menos por alguns minutos, em soltar as mãos da mãe idosa e doente, caso tivesse
que escolher entre ela e salvar mulher e filhos?
Não dá para não parar e pensar na vida e no que queremos dela quando
acompanhamos o relato da repórter Kíria Meurer, também do Núcleo Globo, sobre
o homem que esperava encontrar os corpos da mulher e do filho para enterrá-los em
caixotes de madeira feitos por ele. Não havia como comprar caixões de verdade.
O assunto não é São Paulo. Mas, nos meus cinco anos na maior cidade do
Brasil, também já participei de coberturas de chuvas. Fiquei ilhada na TV Cultura,
às margens do rio Tietê. No dia 8 de setembro de 2009, as águas me encurralaram na
TV Brasil, às margens do rio Pinheiros. Foram 12 horas sem poder sair da emissora.
Os rios querem seu espaço de volta e a natureza cobra as ações erradas do homem.
Já participei também, com orgulho, do documentário Percepção de Risco - A
descoberta de um novo olhar, organizado pela Defesa Civil de Santa Catarina. O
documentário pretende ser um convite à reflexão, um instrumento de transformação.
É este o caminho: da responsabilidade individual. Cada dia que passa, tenho
mais certeza que, sem educação e prevenção, vamos nos destruir. É apenas uma
questão de tempo. Washington Novaes garante no filme que “o problema central
da humanidade está em mudanças climáticas e padrões insustentáveis de produção
e consumo. São estes os dois problemas que ameaçam a sobrevivência da espécie
humana”.
Tenho uma filha de 11 anos. Quando a vejo escovando os dentes com a torneira
fechada, tomando banho mais rápido para evitar desperdício e jogando o lixo no
lixo, fico com a boa impressão de que uma nova geração pode mudar esta história.
São as nossas escolhas que vão permitir, ou não, que essa geração tenha esta chance.
No final do texto, a repórter Kiria Meurer diz: “Diante daquela mobilização
gigante, vi que temos uma capacidade enorme de mudar, de melhorar a realidade
que nos cerca. Podemos fazer muito mais do que fazemos no nosso dia-a-dia”. Que
assim seja, Kiria. Que não tenhamos que viver ou morrer em outras tragédias como
esta. Que este livro seja lido, relido e repassado para o maior número possível de
leitores. Que as histórias contadas aqui fiquem nas nossas lembranças e alertem para
que o homem faça a escolha certa, a escolha da vida.
Nunca é tarde para começar. Temos é que começar.
Márcia Dutra
Jornalista e diretora do Paratodos – Revista Cultural da TV Brasil / SP
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RELATOS DE UM DESASTRE
Narrativas Jornalísticas da Tragédia de 2008
em Santa Catarina
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Marcas do desastre em Itajaí
Associação dos Diários do Interior de Santa Catarina – ADI
“
Não temos para onde ir”. Foi o lamento que mais ouvi nos dias que se
sucederam à enchente no final de novembro de 2008 entre as famílias
abrigadas, temporariamente, em mais de 80 escolas, creches e outros prédios públicos
em Itajaí. Todos haviam perdido tudo. O desespero que carregavam no rosto mostrava
o pavor sentido entre os dias 22 e 24 daquele mês, quando, após 90 dias de chuvas
incessantes e pelo menos 24 horas de um temporal constante, o leito do rio Itajaímirim transbordou. No Estado, cerca de 80 mil pessoas ficaram desabrigadas ou
desalojadas. A força da enchente levou casas inteiras e deixou marcas profundas nos
atingidos e em tudo que possuíam, ou que haviam deixado de possuir.
Na época, eu morava na pequena parte de Itajaí que não foi atingida
drasticamente pela enchente. Depois de um fim de semana inteiro sem luz, água
e telefone, fui trabalhar na segunda-feira como fazia há sete meses, na sede do
Diário da Cidade, em Balneário Camboriú. Apesar de isolada de qualquer tipo de
informação sobre o que acontecia na região, sabia que algo grave havia ocorrido.
Naquela manhã, acordei com o som de helicópteros que voavam baixo e carregavam
as cores do Exército Brasileiro. Recebi, ainda no ônibus a caminho do trabalho, as
primeiras informações sobre o que havia ocorrido. O pânico era evidente.
No trajeto entre Itajaí e Balneário Camboriú, vi caminhões do Exército e dos
bombeiros, carros das polícias e barcos de salvamento espalhados. Pessoas sujas
de lama, crianças chorando e destruição faziam parte do cenário. Eu não conseguia
assimilar a crueldade da força da natureza e a fragilidade da situação. E o pior, não
conseguia prever o que aconteceria em seguida. Até o final daquele dia, 90% do
território da cidade seria atingido pelas águas e pela força da enchente.
Fui a única repórter a trabalhar naquela manhã. Todos os outros estavam ilhados
em suas casas ou abrigados nas residências de familiares e amigos. Como não havia
forma de garantir que o jornal, impresso na cidade de Rio Negrinho, chegasse à
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região no dia seguinte, a falta de pessoal não fez diferença. Mesmo assim, trabalhei
como se estivesse sob pressão, preocupada com o deadline1 e desejando que meu
trabalho pudesse, de alguma forma, fazer diferença.
Os primeiros dados oficiais consegui com a Defesa Civil de Itajaí, na época
formada por apenas três pessoas, mas que já contava com a ajuda dos governos
estadual e federal. A calamidade havia iniciado na madrugada de sábado, 22, quando
o rio transbordou. Nos dois dias seguintes, as águas se espalharam pela cidade,
impulsionadas pela chuva e pela força da maré que nos horários de pico elevava
o leito do rio. Os bairros próximos ao Itajaí-mirim estavam literalmente embaixo
d’água. Em alguns locais, a enchente cobriu casas inteiras.
Naquela segunda-feira, o sol começou a aparecer, o que facilitou o trabalho de
resgate feito por bombeiros e demais socorristas. Como não havia forma de entrar
nos pontos onde a situação era mais grave sem o auxílio de um barco, concentrei-me
em fazer meu trabalho por telefone e internet, acompanhando a situação por rádio e
televisão e esperando por notícias tranquilizadoras.
Não foi o que ocorreu. Ainda naquela noite, fui orientada pela Defesa Civil
a deixar minha casa. Fiquei hospedada na residência de amigos por três dias, sem
ter como voltar. Enquanto eu estava fora, a enchente chegou ao meu bairro, minha
rua, e deixou marcas a menos de cinco centímetros da minha porta. Mas não entrou.
Na terça-feira, foi possível trabalhar “de verdade”, já que era provável que o
jornal fosse entregue. No entanto, ainda era difícil acompanhar in loco a situação
de Itajaí. Por isso, contamos com ajuda de leitores e assessores de imprensa das
prefeituras das cidades da região para garantir matérias completas sobre a enchente.
Somente no dia seguinte pude ir de fato ao local atingido em Itajaí pela
primeira vez. O primeiro bairro a ser visitado foi o São Vicente e a primeira imagem
aterrorizante. Em frente ao terminal rodoviário, na Avenida Adolfo Konder, onde não
havia mais água, um barco amarrado a um poste guardava os pertences de uma família.
Com o sol alto, ficava difícil imaginar que um barco de pesca havia navegado por
aquela rua como se ela fizesse parte do rio, mas o cheiro forte, o lodo e a destruição
que se espalhava por toda parte guardavam a realidade.
Na cidade, famílias começavam a voltar para suas casas. Na Rua Estefano José
1
Termo jornalístico que define o prazo final de entrega das reportagens.
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Vanolli, uma das principais do São Vicente, comerciantes começavam a limpar suas
lojas e contabilizar os prejuízos. Foi por ali que começamos a colher depoimentos
para reportagens sobre a enchente.
Eram raras as pessoas que não haviam sido atingidas pelas águas, e essas agora
ajudavam familiares e amigos vitimados pela tragédia. A mobília das residências e os
produtos comercializados nos estabelecimentos estavam do lado de fora, acumulados
junto às calçadas. Pouco podia ser salvo. Comerciantes reclamavam o prejuízo certo.
“Temos seguro, mas não contra enchente. Isso não existe”, lamentavam os mais
precavidos, que pagavam seguro contra furto. Naquele momento, porém, estavam
todos no mesmo barco: perderam tudo e sequer sabiam por onde começar.
Nas transversais daquela rua, os moradores buscavam em suas casas algo que
pudesse ser recuperado. Àquela altura, a água já tinha baixado na maioria das vias,
o que facilitava o retorno para casa. À tarde, depois de tirar a lama de dentro das
residências, homens e mulheres começavam a se desfazer de móveis, eletrodomésticos
e roupas.
Havia mobília nas mais diversas situações espalhadas ao longo das ruas da
cidade. Lojas que prestavam assistência técnica estavam cheias de televisores, fogões,
geladeiras e outros eletrodomésticos. As oficinas automotivas viraram palco de filas
de carros que, atingidos e, em alguns casos, cobertos pelas águas, esperavam por
reparos. O que não faltava, após a enchente baixar, era trabalho a ser feito.
Nos poucos mercados abertos, não havia mais produtos de limpeza para serem
comercializados. Temendo a proliferação de doenças graves e tentando tirar de vez o
mau cheiro trazido pela água do rio, moradores das casas atingidas usavam todos os
materiais possíveis para recuperar suas casas. Mesmo assim, as marcas do lodo e o
forte odor teimavam em fazer parte do cenário. Nas residências afetadas gravemente
pelas águas, a mobília úmida escondia coisas ainda piores. Nas proximidades do
rio que transbordou, animais mortos eram encontrados em todos os locais. Cercas
penduravam cachorros mortos. Dentro das residências, gatos, ratos e uma série de
outros animais entravam em decomposição.
Na área rural, a situação era ainda pior. Milhares de cabeças de gado, fonte
de renda de centenas de famílias, haviam morrido. O consolo veio em forma de
promessas do governo de que os pecuaristas seriam reembolsados. A possibilidade
de um recomeço não apagava a dor do momento.
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Se entre lojas e casas que continuavam em pé a destruição deixada pela enchente
era triste, nas áreas mais pobres, localizadas nas margens do rio, a sensação de
impotência era ainda maior. No Promorar, dentro do bairro São Vicente, centenas de
famílias choravam o fato de nem ao menos ter uma casa para voltar. Na área ocupada
irregularmente a menos de dez metros do Itajaí-mirim, casas inteiras foram carregadas.
Dalila Schmit vivia com a família em um pequeno barraco na beira do
rio. Quando a água subiu, não viu outra solução que não implicasse deixar
tudo para trás e salvar sua vida. Sobre a ponte que cruza o leito, viu a casa ser
engolida pelas águas. Sem ter para onde ir, passou dois dias dormindo sob o
viaduto na BR 101 que dá acesso a Itajaí pela avenida Contorno Sul. Quando
finalmente pode retornar, encontrou a casa completamente destruída, parte dela
dentro do rio. Seu meio de trabalho, uma carroça para coleta de lixo, estava
sob os destroços. A única coisa que encontrou intacta foi uma dúzia de copos.
A recuperação não parecia ser possível para ela e outras dezenas de famílias
que um dia viveram ali. A maioria vinha de fora e não tinha parentes em Itajaí. Eles
buscavam ajuda nos abrigos. Mesmo sabendo do perigo iminente que significava
viver nas margens do rio, não viam outra saída a não ser tentar recomeçar ali,
num local devastado pela força das águas. “Vou esperar ajuda da prefeitura, mas
até lá, vou reerguer minha casa e continuar aqui”, afirmava Dalila. O discurso era
comungado por vizinhos. Todos queriam, mas não tinham como ir para outro local.
Insegurança
No decorrer dos dias, a tragédia foi tomando novas formas. Poucos eram os
supermercados abertos. Naqueles que conseguiam manter o trabalho, pessoas se
aglomeravam em filas para comprar alimentos básicos, como pão, raro naqueles dias.
Era difícil acreditar que em meio a tanta tristeza, ainda havia oportunistas: aqueles que
viram na necessidade da população uma possibilidade de ganhar dinheiro.
As denúncias de crimes registrados durante aqueles dias giravam em
torno de dois tipos de criminosos. Os saqueadores agiam em estabelecimentos
comerciais e residências, roubando o pouco que a enchente deixou. Os oportunistas
tiravam proveito do difícil acesso a produtos básicos e de extrema necessidade.
Enquanto o caos aumentava, alguns vendiam galões de 20 litros de água,
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comercializados a R$ 5 normalmente, a R$ 20. O preço do gás chegou a R$ 100.
Após 10 dias, autoridades puderam agir para que esses crimes fossem combatidos.
Contra saqueadores, policiais vieram de todos os estados do Brasil.
A cavalo, carro, helicóptero e a pé, faziam vigília nas casas que ainda não
haviam recebido de volta seus moradores. Na semana que sucedeu a enchente,
a Polícia Militar instituiu toque de recolher para facilitar o combate ao crime.
Contra os comerciantes que praticaram preços abusivos, o Procon passou a
agir, após denúncias. Situações absurdas, como roubo de donativos, foram
registradas. Infelizmente, o cenário era apenas parte do caos generalizado.
Na área rural de Itajaí, a imagem era outra, mas igualmente assustadora. O
motivo do pavor era principalmente o isolamento. A maior parte das estradas de chão
batido que davam acesso a locais como a Colônia Japonesa, no bairro Rio Novo,
estava danificada. Pontes inteiras foram carregadas pela força das águas. A rede
elétrica e telefônica fora destruída, o que impedia pedidos de socorro. Não havia
água potável e o que pode ser salvo foi consumido pelas famílias por mais de uma
semana. Para tentar salvar vidas e garantir mantimentos, barcos conduzidos por
socorristas percorriam as comunidades rurais. Porém, alguns locais estavam de tal
forma destruídos que nem todos receberam ajuda antes da recuperação de estradas.
Dias após a água baixar, o agricultor Katao Funai, de 75 anos, contabilizava
os prejuízos. Cabisbaixo, o imigrante japonês, que mal falava o idioma praticado
no Brasil, mostrava a destruição em sua pequena propriedade. Com a lavoura de
hortaliças, vendidas para mercados e restaurantes, Katao sustentava a mulher e
um filho. Com a enchente, toda a plantação foi perdida. Ele avaliava os prejuízos,
até aquele momento, em R$ 3 mil. Admitia a possibilidade de voltar a plantar
em quatro meses, quando o terreno fosse recuperado. Assolado pela idade e
aterrorizado pela tragédia, da casa de onde podia ver o rio que devastou a cidade,
pensava em uma outra possibilidade: desistir. “Acho que não vou mais plantar.
O investimento não compensa o risco de uma nova enchente”, lamentava.
As histórias dos que perderam todos os bens materiais eram igualmente
tristes. Não se comparavam com as de quem viu familiares perderem a vida
durante a tragédia. No total, foram registradas 135 mortes no Estado, duas
delas em Itajaí. Com os óbitos, o cenário de guerra estava de fato consolidado.
Nada marcou tanto quanto o cheiro que pairava em Itajaí nos dias após
25
a tragédia. Em alguns locais, era mais forte, em outros nem tanto. Mas ele,
aquele cheiro que misturava tudo que havia de errado e carregava sensações
inesquecíveis, estava em todas as partes. Não deixava ninguém esquecer o
sentimento comungado por todos: estar de mãos atadas frente à força da natureza.
Era difícil descrever aquele odor. Com certeza, misturava o cheiro de animais
mortos, de móveis podres, de umidade, mofo e esgoto com o tradicional cheiro de
peixe constantemente sentido em Itajaí. O cheiro carregava a lembrança de tudo
que havia sido perdido e também o medo, principalmente de doenças. Sentindo,
era possível imaginar a que tipo de enfermidades todos estavam expostos. Para
garantir que nenhuma doença se alastrasse e causasse um número ainda maior de
mortes, o Exército Brasileiro instalou um Hospital de Campanha nas proximidades
da BR 101, em Itajaí, num trecho de fácil acesso a outros municípios cruelmente
atingidos, como Ilhota e Luiz Alves.
Doenças como a leptospirose, causada pela urina de ratos e facilmente
transmitida a pessoas que tiveram contato com as águas da enchente, foram tratadas
no local. Felizmente, nenhuma epidemia causada pela enchente foi identificada.
Mesmo assim, os trabalhos no Hospital de Campanha continuaram durante o mês
de dezembro, até que hospitais e postos de saúde, também danificados pela força
das águas, pudessem voltar a atender à população.
Além da saúde, outros serviços básicos oferecidos, como educação, foram
interrompidos naqueles dias. Na maioria das escolas públicas, o ano letivo foi
encerrado como estava, com algumas semanas de antecedência. Quase todos
os estudantes foram aprovados. O caos na educação, assim como na saúde, era
inevitável.
Em Itajaí, escolas inteiras foram destruídas e as intactas serviam de abrigo.
Creches também foram destinadas a receber desabrigados, assim como vários outros
prédios públicos. Foi essa a solução provisória encontrada pelas autoridades para
tentar controlar a situação. Tristeza, frustração e desespero eram, sem dúvida, os
sentimentos mais comuns. Deles, surgiram outros, no entanto. Sensações até então
desconhecidas por muitos.
Apesar da dor, a mobilização social foi a grande marca da tragédia. Após
visitar os locais gravemente atingidos pela enchente, conhecer famílias que
perderam tudo que haviam conquistado em uma vida inteira de trabalho, passar
26
tardes em abrigos conhecendo a realidade de quem agora dividia espaço com
centenas de pessoas, vivendo na incerteza de voltar a ter um lar, concentrei-me
em buscar algo que pudesse ser, no mínimo, considerado “bom” dentro daquela
catástrofe.
Encontrei as histórias em locais onde donativos chegavam sem parar e ao
conhecer voluntários que atuavam tanto nos abrigos quanto nos centros de coleta.
Uma das pessoas que mostrou o lado positivo do ocorrido estava mais próxima do que
esperava. O também jornalista do Diário da Cidade, João Pedro, foi o personagem
principal e a primeira pessoa que conheci, naqueles dias, capaz de fazer a diferença.
Ele morava com a família em uma residência do bairro Ressacada. Na noite de
sexta-feira, antes de o Itajaí-mirim transbordar, despediu-se dos pais, que analisando
a tragédia como iminente, foram buscar abrigo na casa de parentes, e permaneceu
em casa com o irmão para tentar salvar o que fosse possível. Juntos, eles ergueram
móveis e colocaram eletrodomésticos e outros produtos de maior valor nos pontos
mais altos da residência. Entre o que deixaram para trás, estava a coleção completa
de obras de Machado de Assis que João conseguiu adquirir após meses de trabalho.
Quando finalmente saiu de casa, naquela madrugada, com a água do rio já
alcançando cerca de um metro de altura, levou apenas sacolas de plástico com roupas
e documentos pessoais e seu notebook, que carregava com os braços erguidos, sobre
a cabeça. Assim andou pela rua em que viveu a maior parte da vida, sem saber como
encontraria tudo que sua família possuía quando voltasse. Se voltasse.
Naquela noite, andou até encontrar um local seguro e, apenas no dia seguinte,
conseguiu contato com os pais. Depois de se encontrarem na casa de familiares,
seguiram para um abrigo montado no Morro da Cruz, ponto mais alto da cidade. A
missão lá era outra: ajudar os desabrigados. Nos dias que se seguiram, sem poder
voltar para casa, João, a família e mais dezenas de voluntários cozinharam e coletaram
donativos para as vítimas da enchente. Pessoas que, como eles, naquele momento
não tinham para onde voltar. Isso, porém, não pareceu fazer diferença.
Três dias depois, João voltou para casa. A situação em que tudo foi encontrado
era chocante. A residência estava em pé, mas carregava nas paredes a marca de mais
de um metro e meio de água, deixada pelo lodo do fundo do rio. Móveis, roupas
e eletrodomésticos foram atingidos. Pouca coisa foi salva. Felizmente, as obras de
Machado de Assis faziam parte desse grupo.
27
A solidariedade que conheci de perto era a mesma de outras milhares de pessoas.
Autoridades políticas se mobilizaram naqueles dias. Prefeitos que atuavam em seus
últimos dias de mandato e os que haviam sido eleitos em outubro último se uniram
pela causa. O governador, deputados e senadores, até mesmo de outros Estados,
fizeram-se presentes. O presidente da República também visitou a região e anunciou
recur­sos. Mas nada se comparava ao trabalho dos voluntários.
Nos abrigos, pessoas que haviam perdido tudo agora cozinhavam para outras
vítimas. Quem não havia sido atingido, de porta em porta, coletava donativos para os
afetados. Cestas básicas, água, produtos de limpeza e roupas não paravam de chegar
à central montada no Parque da Marejada. As doações vinham de todo o mundo.
Equipes do Exército e policiais faziam a entrega dos donativos para as vítimas.
Acompanhei um dia de entrega e conheci outras histórias incríveis. Vi sorrisos que
mostravam que nada valia mais à pena do que ajudar naquele momento.
“A diferença quem faz somos nós”, dizia o pescador Eron Carolina, ao entregar
mantimentos nas mãos de moradores do loteamento Portal, no bairro Espinheiros,
localidade que, durante a cheia, foi inundada por quase dois metros de água. Eron
morava com a família na cidade de Navegantes e não teve a casa afetada pelas chuvas.
Apesar de pobre e de estar com o braço quebrado, viu na tragédia uma oportunidade:
a de fazer o bem. E nada o impediu de fazer.
Como se nada tivesse acontecido às casas e bens materiais, voluntários
trabalharam incansavelmente por outras vítimas. A enchente jamais foi vista por
eles como uma tragédia particular. Com o tempo, as pessoas começaram a mostrar
também seu lado mais forte, sua capacidade de recomeçar e, de certa forma, de
esquecer a catástrofe. As ruas, cobertas pela água, receberam obras. Pontes, casas,
escolas, tudo que havia de essencial foi reconstruído. Meses depois, era como se
nada daquilo tivesse acontecido. Mas marcas ficaram.
Sei de casos de famílias que ainda dormem com dificuldade em noites de chuva
forte, temendo uma nova enchente. Sei de pessoas que, ajudadas pela solidariedade
de quem sequer conheciam, passaram a fazer o mesmo, como forma de retribuir.
Sei de gente que voltou a sua vida normal e não perdeu a vontade de vencer, apesar
de perder todo o resto.
No entanto, sei também daqueles que jamais superaram. Nesse grupo,
encaixam-se, especialmente, os trabalhadores portuários, que ainda não recuperaram
28
seus postos e seus empregos devido à lentidão nas obras de recuperação do Porto de
Itajaí. Aquelas centenas de homens ainda carregam nos olhos o pânico vivido naquele
final de novembro. Ainda temem não conseguir recomeçar, não poder sustentar suas
famílias e recuperar, acima de tudo, sua dignidade. A tragédia passou, isso é fato.
Mas muito ainda tem que ser feito por vítimas que sobreviveram, mas ainda não
conseguiram voltar a viver.
Por Stefani Ceolla
Repórter
Diário da Cidade, Itajaí – ADI/SC
29
Na linha de frente
Associação dos Diários do Interior de Santa Catarina – ADI
T
rês meses diplomada jornalista e lá estava eu diante de uma grande
cobertura jornalística. É tudo o que espera uma foca 1 recém saída da
universidade. Na verdade, e ainda não sabia, estava no olho do furacão de uma das
maiores tragédias naturais da história do Vale do Itajaí. Passadas algumas semanas
pude dimensionar a importância daquele trabalho jornalístico para a vida e para o
futuro de milhares de pessoas em Gaspar e Ilhota. Integrante de uma equipe de sete
pessoas, entre jornalistas, fotógrafos e diagramadores, conheci e vivi intensamente a
adrenalina da profissão. Um desafio que marcará para sempre minha vida. Apesar do
estresse físico e emocional, não deixei me abater, assim como meus colegas. Havia
a convicção da importância do trabalho informativo para as comunidades das duas
cidades, que naquele momento estavam desorientadas. Com medo, procuravam,
desesperadamente, por notícias de familiares e amigos. Era nosso dever profissional
relatar aquele momento de angústia e sofrimento. O telefone da redação do Jornal
Metas não parava de tocar. O desafio começou ainda na manhã de sexta-feira, dia 21 de novembro de
2008. Muito próximo da sede do Jornal Metas, uma parte do morro da Avenida
das Comunidades, no Centro de Gaspar, desabou e uma das pistas foi interditada,
tornando o trânsito, normalmente lento e confuso, um caos. Naquele momento,
ninguém jamais imaginou que aquele fato isolado era apenas o começo da catástrofe
que se consumaria 48 horas depois na região do Vale.
A chuva não dava trégua – como, aliás, vinha ocorrendo há quase três meses –,
mas todos diziam tratar-se apenas de um momento de instabilidade influenciado por
eventos climáticos, como o “El Niño”. No sábado, dia 22, e na madrugada seguinte,
a chuva continuou com pequenos intervalos. A sensação era que alguma coisa de
muito ruim estava para acontecer. Minhas suspeitas se confirmaram na manhã de
1
jornalista recém-formado
31
domingo, dia 23, por volta das 6 horas, quando minha mãe me despertou assustada.
Ela dizia que vários bairros de Gaspar estavam alagados e que havia muitas pessoas
desabrigadas e desalojadas. Em Blumenau, a situação também era trágica. A notícia
estava sendo transmitida pela Rádio Sentinela do Vale, que havia permanecido as
últimas 24 horas no ar.
A rádio passou a ser o principal meio de comunicação entre a comunidade
e as equipes da Defesa Civil. Fiquei sintonizada na Sentinela durante toda a tarde
de domingo e o que ouvia era desesperador. Milhares de pessoas pediam socorro,
precisavam ser resgatadas e a Defesa Civil não conseguia atender a todos os chamados.
Outras imploravam por botes ou canoas e por notícias de amigos e familiares. Na
internet, as informações e imagens começavam a circular. A tragédia atingia várias
cidades do Vale do Itajaí. Comecei a ficar inquieta com a situação e sabia que, como
jornalista, precisava ir para a “frente de batalha”. Liguei para o diretor do jornal, José
Roberto Deschamps, para saber se podíamos ir até a redação e auxiliar a comunidade
na busca por informações. Porém, ele estava “ilhado” em casa e me informou que
não havia como chegar à sede do jornal. Enfim, estava de mãos e pés atados.
Os pedidos de socorro na rádio se misturavam aos pedidos de doações. Muitas
pessoas foram resgatadas e levadas para o Salão Cristo Rei, ao lado da igreja Matriz,
apenas com a roupa do corpo. Sensibilizada com a situação, separei algumas das
minhas roupas, além de cobertores, para levar até lá. Na verdade, essa minha decisão
não foi apenas um ato de solidariedade. Foi uma forma de tranquilizar minha família
e sair em busca de notícias em meio ao caos que havia se instalado na cidade. Minha
mãe me acompanhou até a Conferência Vicentina (entidade assistencial do município
mantida pela Igreja Católica), que estava organizando os trabalhos no abrigo. Não
retornei com minha mãe. Fiquei no local para ajudar a separar as doações e conversar
um pouco com os desabrigados. Na verdade, eles foram minhas primeiras fontes em
relação ao que estava acontecendo. Falavam pouco, mas pude ver nos olhos de cada
um, crianças, adultos e idosos, o quanto aquele momento estava sendo sofrido. A
dor daquelas pessoas se misturava à revolta.
Eu não precisava de mais informações para saber que uma grande tragédia
havia atingido a cidade de Gaspar e o Vale do Itajaí. A segunda-feira, dia 24, também
foi de muita dificuldade e o acesso à redação do jornal permaneceu interrompido.
Nesta altura, sabia que, pela primeira vez, nos últimos dez anos, o Jornal Metas não
circularia na quarta-feira. As notícias da tragédia continuavam sendo transmitidas
32
pela imprensa local, regional, nacional e internacional. Além de Gaspar e Blumenau,
Ilhota, Luiz Alves, Itajaí e outras cidades estavam em situação de calamidade pública.
O número de mortos, desabrigados e desalojados não parava de crescer – já passava de
100 mil. No complexo do Morro do Baú, em Ilhota, se falava em mais de 20 mortos.
Em Gaspar, sabia das duas explosões do gasoduto e da morte de sete pessoas
de uma mesma família no bairro Sertão Verde, um dos mais castigados pelos
deslizamentos de terra. Em um apelo comovente, o governador do Estado, Luiz
Henrique da Silveira, pedia ajuda aos catarinenses de regiões não afetadas e aos
brasileiros de outros estados. “Os morros do Vale do Itajaí derretem igual a sorvetes”,
afirmava o governador em meio à emoção e ao inacreditável.
A volta
Apenas na terça-feira, dia 24, o diretor do Jornal Metas conseguiu sair de
casa, com um barco emprestado de um vizinho e uma mochila nas costas. Ele
aproveitou o percurso até o jornal para registrar as nossas primeiras cenas de
destruição em Gaspar. A equipe, enfim, se reunia na redação, mas nem toda ela
porque os dois diagramadores permaneciam impossibilitados de saírem de suas
casas. As dificuldades de trabalho estavam apenas começando. Não tínhamos como
nos locomover e parte de Gaspar permanecia alagada, sem energia elétrica e sem
água. Decidimos que a nossa ferramenta de informação seria o site. Tudo deveria ser
feito por telefone. Como nossos diagramadores (também encarregados do site) não
estavam, aprendi na “marra” a atualizar o site. A cidade de Gaspar estava silenciosa,
a sempre movimentada Avenida das Comunidades estava interrompida. As sinaleiras
da cidade piscavam no sinal amarelo. O único som vinha do céu. Era o vai e vem de
helicópteros do Exército e da Defesa Civil. Na quarta-feira, dia 25, conseguimos um carro emprestado e começamos o
trabalho pelos bairros da cidade. Até aquele momento, a minha visão da tragédia
era alimentada pelo relato das vítimas, bombeiros, soldados e voluntários. Portanto,
a minha expectativa de ir para o front era enorme, mas estava pronta para o desafio
e para as cenas que daquele dia em diante nunca mais sairiam da minha memória.
O primeiro destino foi o bairro Belchior, famoso por suas belezas naturais e rota de
turismo em Gaspar. Não pude acreditar no que vi. A destruição era tanta que imaginei
estar numa área duramente bombardeada. A estrada havia cedido em alguns pontos
33
e a passagem, devido a grande quantidade de lama, só era possível com veículos
especiais. Mesmo assim, o risco era enorme. A terra estava encharcada e, em vários
pontos, havia ameaças de novos deslizamentos. Estacionamos o carro e continuamos
a nossa jornada a pé. Gentilmente, um integrante de um Jeep Club se ofereceu para
nos levar até o ponto mais destruído do bairro.
Com dificuldades e lama, conseguimos avançar. Por todo o trajeto, havia muita
destruição e casas abandonadas. Uma das cenas que mais me impressionou foi a de
um senhor idoso, que caminhava com dificuldade e que trazia em uma das mãos
um pequeno pote com um ovo de galinha dentro. Paramos para conversar com ele.
Emocionalmente abalado, não conseguia pronunciar muitas palavras. Ele contou que
o ovo era a única coisa que ele havia conseguido salvar. A casa, que morou a vida
inteira no Belchior, havia sido soterrada por um deslizamento de terra. Confesso que,
muitas vezes, durante a cobertura da tragédia, o emocional superou o profissional.
De volta à redação, as notícias da tragédia continuavam a chegar. Veio a
confirmação de que sete pessoas de uma mesma família haviam morrido soterradas
no bairro Sertão Verde. O fotógrafo Ivan foi até o local e registrou o momento em
que os soldados do Corpo de Bombeiros retiravam os corpos do meio da lama e
dos destroços. Também decidimos, em reunião, que a edição de sábado (28/11) - o
Jornal Metas é bissemanal - seria especial sobre a tragédia no Vale. E não poderia
ser diferente. Era preciso correr contra o tempo e superar as adversidades para buscar
a melhor cobertura. Meu colega de redação, jornalista Carlos Erbs, concentrou seu
trabalho em Gaspar. Eu fui para Ilhota.
Corrente humana
No município vizinho, a situação era ainda mais desesperadora. A região dos
Baús foi uma das mais castigadas pela fúria da natureza. Além dos alagamentos,
registrou o maior número de deslizamentos de terra e também liderou a lista de
mortes (45). O acesso permaneceu obstruído por vários dias e até semanas nos mais
distantes. O único meio de transporte era por helicópteros. No centro de Ilhota, o
campo de futebol municipal foi transformado em pista de pouso para as aeronaves
que traziam desabrigados, mas principalmente alimentos e água. Eram mais de 20
helicópteros, em uma verdadeira operação de guerra e, ao mesmo tempo, uma enorme
corrente de solidariedade.
34
As aeronaves eram descarregadas por meio de uma corrente humana. De mão
em mão, as doações eram passadas e armazenadas no ginásio que fica ao lado do
campo de futebol. Do outro lado, os desabrigados faziam fila e imploravam por
uma cesta básica. Entrevistei alguns deles e me comovi com os relatos de quem viu
a morte muito próxima. Informei ao coordenador de Defesa Civil de Ilhota, Paulo
Drum, que tinha interesse em ir até a região dos Baús para acompanhar de perto o
trabalho de resgate. Ele confirmou que só era possível chegar até lá de helicóptero.
Pedi que me colocasse em um. Estava anoitecendo e ele me informou que nenhuma
aeronave voltaria para a região dos Baús naquela hora, mas que se eu estivesse ali
no outro dia pela manhã bem cedo, talvez conseguisse embarcar em um helicóptero.
Quase não consegui dormir à noite, tamanha era a minha ansiedade.
Na primeira hora da manhã de quinta-feira (26), retornei à Ilhota na esperança
de conseguir um lugar em alguma aeronave. Sabia que não seria fácil fazer a cobertura
jornalística de uma das áreas mais atingidas pela catástrofe. Na verdade, nunca havia
participado de nada parecido e todo o meu conhecimento teórico seria colocado à prova.
Havia uma aeronave da Força Aérea Brasileira pousada no campo de futebol. Perguntei
ao Paulo Drum se aquela era a minha chance. Ele me disse para correr. Quando dei
por mim já estava dentro do helicóptero com apenas uma caderneta e uma caneta nas
mãos. O repórter fotográfico Marco Gamborgi, um dos sete membros da nossa equipe,
acompanhou-me na aventura. Senti um frio na barriga quando a aeronave decolou,
muito mais pelo que me aguardava nos Baús do que pelo medo de voar pela primeira
vez em um helicóptero.
Na região dos Baús
Do alto, o cenário era de completa destruição. A região dos Baús, antes ocupada
por residências, lavouras, belas cachoeiras, floresta atlântica e povo alegre e trabalhador
havia se transformado, da noite para o dia, em uma enorme montanha de lama. Lá
embaixo, a intensa movimentação das equipes de resgate dava a exata dimensão da
tragédia que se abateu sobre a localidade. Nos olhares tristes e perdidos dos moradores
que acompanhavam os trabalhos dos bombeiros, a quase incredulidade diante da fúria da
natureza. Quem foi testemunha garante que o morro se abriu, formando grandes valas.
As ruas do Baú não existiam mais e o curso do ribeirão que passava pelo local
mudou completamente. Várias casas foram soterradas por uma terra que não é possível
35
saber exatamente de onde veio ou, talvez sim, de todos os lados do morro. As poucas
residências que permaneceram em pé guardavam apenas vestígios e lembranças de
algumas famílias que nasceram e viveram no Baú. Permanecer por muito tempo na
área, sem o devido preparo técnico e de segurança, era um risco iminente. Mesmo
assim, permanecemos na localidade até o fim da tarde, sempre orientados pelas
equipes de resgate.
Durante o tempo em que passamos lá, acompanhamos as diversas incursões
dos bombeiros na tentativa de resgatar os últimos moradores que ainda insistiam
em permanecer em suas casas. Eles só deixaram a região após muita insistência.
Entre os resgatados estava uma senhora de idade, com uma perna amputada, que
se locomovia em uma cadeira de rodas. Após retirarem os últimos moradores do
Alto Baú, a mais castigada, as equipes concentraram o trabalho na localização dos
corpos de algumas pessoas que haviam sido soterradas. Havia bombeiros de várias
regiões do Brasil, especializados neste tipo de trabalho. Eles estavam divididos em
dois grupos e vasculhavam os escombros na esperança de encontrar os corpos. O
trabalho tinha ainda o auxílio de cães farejadores e os corpos foram encontrados com
a chegada de soldados da Força Nacional de Segurança. Quando a nossa equipe se
preparava para deixar o local, foram localizados os corpos do jovem Paulo Hostins,
17 anos, e de João Pedro da Silva, 2 anos. Retornamos para Ilhota por volta das 17
horas, trazendo na aeronave os dois corpos e a sensação do dever cumprido.
De Ilhota a Gaspar, pegamos carona em uma ambulância do município e
chegamos à redação quando já começava a anoitecer. Havia muito trabalho pela frente
e corríamos contra o tempo, pois precisávamos fechar a edição até as 12 horas do dia
seguinte. Esta foi, sem dúvida, a noite mais desgastante para a nossa equipe, mas ao
mesmo tempo a mais importante do trabalho de cobertura da tragédia. Diante de uma
situação nunca antes vivida, a união da equipe foi fundamental. Mesmo trabalhando
desde as primeiras horas de quinta-feira ninguém pensava em ir para casa. Tínhamos
a responsabilidade de dar o nosso melhor, para melhor informar os leitores.
Foram mais de 24 horas de trabalho ininterruptos e de decisões importantes.
No estado de calamidade em que se encontrava a região do Vale do Itajaí muitas
informações desencontradas chegavam à redação. Infelizmente, algumas pessoas se
aproveitavam do momento para relatos fantasiosos. Por isso, precisávamos checar as
informações oficiais e decidir o que era ou não importante publicar naquele momento.
Por volta das 14 horas de sexta-feira, a edição especial da tragédia foi fechada. Todos
36
estavam exaustos e abalados emocionalmente. Foi uma noite de sono já pensando
no dia seguinte.
Caminhada no Belchior Baixo
No sábado, meu trabalho continuou. Um representante da Defesa Civil do
Estado estava em Gaspar para coordenar os trabalhos e o primeiro passo foi a
instalação de uma central de atendimento, montada na prefeitura. No local, reuniamse representantes do poder público, bombeiros e policiais civis e militares. Esta
atitude facilitou muito o nosso trabalho, pois ficou mais fácil obter as informações
e dados sobre a situação em que se encontrava o município. Havia muitos abrigos
provisórios e as pessoas estavam sendo cadastradas e recebendo roupas e alimentos.
Na segunda-feira (1º/12), a chuva deu lugar ao sol e as operações de salvamento
continuaram na tentativa de localizar mais corpos. Havia um casal de idosos que
tinha sido soterrado no Belchior Baixo. Eles voltaram para casa alguns dias depois
da tragédia e acabaram sendo atingidos por uma nova avalanche de terra. Fui até
próximo ao local em uma moto acompanhar a busca pelos corpos. De um trecho
em diante, pude seguir somente a pé, pois a estrada estava interditada devido ao
deslizamento de terra. Foram aproximadamente 30 minutos andando embaixo de um
sol forte. Por onde eu passava, o rastro de destruição era evidente. Casas arrastadas
e carros amassados evidenciavam um cenário de guerra.
O bairro foi duramente castigado pela enchente e deslizamentos de terra. As
casas que haviam resistido estavam em áreas de risco. A recomendação da Defesa
Civil era para que ninguém permanecesse no local, em razão da possibilidade de
novos deslizamentos. As famílias obedeceram, mas antes carregaram tudo o que
podiam. Por um pasto, uma corrente humana se formava. Geladeiras, fogões, sofás
e outros móveis e eletrodomésticos eram transportados pelas pessoas. Os moradores
mais otimistas diziam que o retorno seria em breve, outros não alimentavam nenhuma
esperança e afirmavam que nunca mais voltariam a morar no Belchior Baixo.
Após a longa caminhada, cheguei até o local onde as equipes da Defesa Civil
trabalhavam. Eles procuravam os corpos em uma área de aproximadamente um
quilômetro. Angustiados, os familiares acompanhavam de perto. Mesmo com a
presença do sol, a terra ainda estava muito encharcada e isso dificultava ainda mais
a operação. Percebi que o casal de idosos não seria encontrado naquele momento e
37
decidi retornar à redação, pois novamente nosso deadline não nos permitia passar
muito tempo em campo. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e
ministros visitaram Santa Catarina e prometeram a liberação imediata de recursos para
socorrer os municípios atingidos. As equipes de resgate continuavam trabalhando,
agora juntamente com as máquinas e funcionários da Secretaria de Obras e de
empresas contratadas para reabrir estradas e desassorear ribeirões.
Doações
A situação na redação também se normalizou e o trabalho ganhou um novo
rumo. Não havia mais espaço para falar dos estragos provocados pela tragédia.
Passamos a nos dedicar na cobertura das ações de recuperação. As doações, de
todos os cantos do país, continuavam a chegar em caminhões. A cidade não estava
preparada para receber tantos donativos e surgiram os primeiros problemas de
logística. A redação passou a receber inúmeras denúncias de desvios de donativos.
Era dezembro e um novo ano se aproximava. Com ele, a esperança de milhares de
pessoas que permaneciam em casas de amigos e parentes ou nos abrigos provisórios.
Hoje, passado um ano da tragédia, percebo o quanto foi importante a
participação da imprensa naquele momento de crise. O cansaço, o estresse, a
pressão emocional, tudo foi recompensado. Superamos dificuldades e desafios, e
cumprimos com a nossa missão de bem informar os leitores. Não poderia ter sido
melhor essa experiência, pois me descobri ainda mais apaixonada pelo jornalismo.
Cresci profissionalmente e cresci como pessoa. Aprendi a dar valor às pequenas e
simples coisas da vida. Sempre é possível recomeçar, independente do tamanho do
obstáculo que possa estar a sua frente. Por Kássia Dalmagro
Repórter
Jornal Metas, Gaspar - Adjori/SC
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Marcas que permanecem 60 dias depois
Associação dos Diários do Interior de Santa Catarina – ADI
S
ó consegui chegar à redação do Jornal Metas na quinta-feira (27/11), cinco
dias depois da tragédia no Vale do Itajaí. Explico: moro em Balneário Camboriú,
distante 37 quilômetros de Gaspar. A orientação da Defesa Civil era para que ninguém
se deslocasse para a região porque as estradas estavam interrompidas em função das
quedas de barreiras. No entanto, como jornalista, inquietava-me o fato de estar distante
da notícia. Nos três últimos dias, havia trabalhado na reportagem e edição do Jornal
de Balneário Camboriú sobre os estragos da enchente na cidade, mas nada comparado
ao que estava vendo, ouvindo e lendo pela imprensa regional sobre a situação no Vale.
Como editor do suplemento Metas nos Bairros, semanalmente encartado no Jornal
Metas, preocupava-me muito a situação nos bairros.
Muitas das regiões descritas pela imprensa como “completamente arrasadas” eu
conhecia bem. Duas semanas antes, havia estado no Belchior para uma reportagem
especial sobre a temporada nos parques aquáticos. Lá, ouvi de Nelson José Theis,
proprietário do parque Recanto Verde, uma frase que sequer inclui na matéria, mas
que depois de 23 de novembro se tornaria, pra mim, profética. “Nunca vi chover tanto
como este ano. Se não parar de chover em duas semanas, a coisa vai complicar”. E
complicou.
Na quinta-feira, pela manhã, decidi ir para Gaspar, imaginando o grau de
dificuldade que estaria enfrentando a equipe de redação do Jornal Metas na cobertura
da tragédia, além do fato que a minha curiosidade jornalística estava exposta ao
máximo. A minha chegada, inesperada, à redação foi comemorada como mais um
reforço para o time que, nas 24 horas seguintes, deveria produzir o especial da
tragédia. Permaneci com a equipe e auxiliei na pauta e na edição. Bem, o restante
da história a jornalista Kássia Dalmagro já contou na primeira parte deste relato.
A mim cabe descrever um outro momento marcante na cobertura do Jornal
Metas da tragédia no Vale. No início de fevereiro, a redação decidiu produzir um
especial sobre os 60 dias da catástrofe em Gaspar e Ilhota. O objetivo era mostrar
40
o trabalho de reconstrução nas duas áreas mais castigadas dos dois municípios. Era a
oportunidade que estava aguardando para, finalmente, colocar os pés na região mais
atingida pelas avalanches de terras: o complexo dos Baús. Uma outra equipe foi para
a região do Arraial e Belchior, em Gaspar. O meu trabalho seria feito em dois dias,
acompanhado do repórter fotográfico Marco Gamborgi.
No primeiro dia, um mau sinal: tempo nublado e ameaça de chuva. Nosso
deslocamento foi em um carro comum de passeio. Na entrada, da região conhecida
como Baú Baixo, o cenário ainda era de muita destruição. As lavouras de arroz estavam
sufocadas por grandes volumes de terra. Uma semana antes havia chovido forte e os
ribeirões voltaram a transbordar, obrigando muitas famílias a deixar novamente suas
casas às pressas. Nossa primeira parada foi no abrigo do Salão Paroquial Baú Baixo.
Um senhor de mais ou menos 70 anos estava sentado em uma das mesas do
refeitório concentrado na edição do Jornal Metas. Perguntei se ele estava no abrigo,
ele respondeu que não, mas que estava provisoriamente na casa da filha a poucos
metros de distância. José Altino Richartz, nossa primeira fonte, era um homem triste
e com pouca vontade de viver. Ele perdeu a esposa, a filha, o irmão, a cunhada e os
cinco sobrinhos. O relato foi dramático, interrompido várias vezes pela emoção. Dali
para frente, tive a certeza que mesmo passados quase 60 dias da tragédia o trabalho
de reportagem seria emocionalmente estressante.
As marcas de destruição estavam por todo o complexo dos Baús, e difícil era
observar um morro que não tivesse sinais de deslizamento de terras. Em uma rua, no
Braço do Baú, praticamente todas as casas estavam abandonadas, com as portas e janelas
abertas. Em uma delas, uma cena impressionou: os pratos do jantar ainda estavam sobre
a mesa, o que revela que seus moradores abandonaram a moradia às pressas, como
de fato aconteceu com a maioria. Muitas residências estavam parcialmente soterradas
pelo barro e com enormes rachaduras. Em alguns pontos, a lama cobria quase na altura
dos nossos joelhos. Foi preciso se equilibrar sobre uma fina tábua, improvisada, para
atravessar o ribeirão de forte correnteza e chegar a uma das poucas casas habitadas
na rua. Ouvimos o relato impressionante da fúria da natureza. Nas ruas, um caminhão
circulava distribuindo cestas básicas. Observei nos olhos de alguns moradores certa
vergonha em ser fotografado recebendo uma cesta básica. No complexo dos Baús
não existe miséria. Por isso, a situação era atípica. “Nunca imaginei passar por uma
situação dessas, aqui no Baú havia trabalho e todos viviam financeiramente muito
bem”, contou-me uma moradora.
41
No primeiro dia, avançamos até o Alto Braço do Baú. Alvorina Tolardo e o marido
Alfredo estavam abrigados na capela Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Ela
relatou os momentos dramáticos vividos naquele final de semana trágico e a perda de
quatro membros da sua família, entre eles três sobrinhos (o mais velho de 12 anos), que
ela fez questão de mostrar em fotos. Emocionei-me. Fomos aconselhados a não seguir
em frente em carro de passeio, pois a estrada estava com vários trechos muito ruins.
A chuva voltou a cair, dificultando ainda mais o percurso. Ligamos para o
dono do jornal e informamos que o trabalho somente poderia continuar no dia
seguinte se tivéssemos um veículo com tração nas quatro rodas. Na manhã do dia
seguinte, o veículo estava a nossa disposição e o proprietário do Jornal Metas fez
questão de nos acompanhar à região dos Baús, juntamente com o proprietário da
pick-up. Além do veículo, levamos junto duas motos trail1 . Confesso que sou um
habitante urbano e qualquer estrada de interior muitas vezes me assusta pela falta
de segurança, mas os 15 quilômetros até o Morro do Baú, Baú Seco e, por fim, Alto
Baú foi um dos mais desafiadores que enfrentei na minha vida, embora o domingo
tenha amanhecido ensolarado e secado um pouco o barro da estrada. Por diversas
vezes, pensei que teria sido melhor seguir a pé ou na carona de uma das motos que
estava na carroceria da pick-up.
Vencido o desafio da sinuosa estrada, o cenário que se mostrou à reportagem
era desolador. Já na sede da reserva do Morro do Baú, tantas vezes visitada e estudada
por ambientalistas, biólogos e comunidade em geral, uma placa anunciava que era
proibido ingressar na trilha. O camping à frente simplesmente desapareceu sob o
monte de terra que desceu do morro. Um quilômetro à frente, ouvi o relato do morador
que conseguiu segurar o filho e correr para um lugar seguro enquanto a terra descia
do morro e soterrava seus dois aviários.
No Baú Seco, um outro morador contou-me o drama de perder seis pessoas
da mesma família e ter de enterrá-las em duas covas. Ele ainda conseguiu fazer um
caixão de madeira para o pai, mas o restante dos familiares foram sepultados em sacos
plásticos. No Baú Seco, as duas motos foram utilizadas para que pudéssemos saber
como estava a estrada até o Alto Baú, nosso último destino. Minutos depois uma das
motos retornou com o pneu furado. Desistimos dos “batedores” e encaramos a pequena
distância entre uma localidade e outra na pick-up.
1
Motos para utilização em terrenos rurais ou montanhosos.
42
Ribeirão fora de curso
O cenário do Alto Baú confirmou tudo o que havia lido e ouvido sobre a região
mais castigada pela tragédia no Vale do Itajaí. Admito que fiquei de cinco a dez minutos
observando. Era inacreditável! Não havia um morro sem as marcas de deslizamentos
de terras. O ribeirão simplesmente mudou o seu curso natural, empurrado por esta
mesma terra que desceu dos morros. Havia árvores, móveis, eletrodomésticos, roupas,
portas, janelas, canos, carros retorcidos, tratores parcialmente soterrados entre outros
objetos espalhados por toda a localidade. Dezenas de casas estavam condenadas pela
Defesa Civil. Não havia água nem energia elétrica. Das 400 famílias que viviam no
Alto Baú, apenas dez haviam retornado para suas casas sem a autorização da Defesa
Civil.
Como era domingo, algumas famílias visitavam suas próprias casas porque havia
a informação de que estavam ocorrendo saques, o que acabou confirmado pela própria
Polícia Militar Ambiental de Santa Catarina. Naquela semana, o órgão montou um
posto avançado na localidade. Nossa equipe foi autorizada a circular na rua principal
somente a pé. Nas casas, havia cartazes informando que a residência ainda tinha dono.
Mais adiante, deparamo-nos com duas famílias que visitavam o cemitério ou o que
sobrou dele. Dos mais de 40 túmulos, restaram pouco mais de 10. Permanecemos por
cerca de duas horas na localidade, o suficiente para ouvir relatos emocionados, críticas
ao trabalho de recuperação da região dos Baús, acusações ao gasoduto que explodiu
durante as chuvas e, principalmente, exemplos de solidariedade.
“Quem conheceu isto aqui, não acredita no que vê agora”, resumiu uma senhora
com os olhos marejados. Foi com esse sentimento que deixamos para trás o Alto Baú.
Caminhamos em silêncio até o carro e em silêncio pegamos novamente a estrada.
Um ano depois da tragédia estou voltando ao complexo dos Baús, desta vez atrás de
sorrisos, de vida e da certeza de que é possível recomeçar.
Números da tragédia
Em Ilhota, oficialmente morreram 47 pessoas e uma continua desaparecida no
Alto Baú. Aproximadamente 3,5 mil pessoas de um total de 12 mil habitantes ficaram
desalojadas ou desabrigadas durante a tragédia.
43
Em Gaspar, oficialmente morreram 21 pessoas e uma continua desaparecida no
Belchior Baixo. Aproximadamente 7.153 pessoas foram desalojadas de suas casas
e 4.305 permaneceram desabrigadas. Hoje, em Gaspar, ainda existe uma moradia
provisória onde vivem 130 pessoas. (Fonte: Defesa Civil de Gaspar e Ilhota)
Por Alexandre Melo
Repórter
Jornal Metas, Gaspar - Adjori/SC
44
“Para aqueles que entraram nos mesmos rios, diferente e
sempre diferente a água corre”
Heráclito, filósofo pré-socrático
FOTO 2
FOTO 2
O rio turvo da notícia
CBN Diário
E
quipes da Defesa Civil andavam por um descampado, no Vale do Itajaí,
quando se depararam com uma cerca retorcida, em razão da forte chuva. No
caminho, as estradas estavam intransitáveis, não havia onde não tivesse lama, casas
vulneráveis ou uma porção de natureza devastada. Ao se aproximarem, a triste
constatação: os fios de arame farpado prendiam o corpo franzino de uma criança.
Por uma prerrogativa básica da profissão, o jornalista se permite reprimir
reações emotivas quando emite uma notícia. Isso, porém, não anula o fato de que,
durante a produção jornalística, algo abale essa aparente frieza e objetividade
profissional. Diante de uma notícia como essa, anos de estudo e trabalho na área
significam pouco.
Depois da tragédia, muito se ouviu falar em quebra de paradigmas. Ou seja,
processos e padrões de conduta tinham que se modificar a partir de um fato sui
generis. Aquele final de 2008 virou referência nacional em matéria de socorro e
prevenção a desastres.
No jornalismo, a notícia citada acima pode ser considerada uma referência à
quebra de paradigma. Como noticiar algo assim, jornalisticamente, sem parecer frio
ou sensacionalista? Era necessário noticiar tal fato?
Esse questionamento era repetido a cada nova e dura informação. Atingidos
se recusam a deixar casas. Pessoas saqueiam supermercado. Ilhado, prefeito de Luiz
Alves vai de barco até Itajaí. Voluntários desviam donativos. Recursos demoram a
chegar. Itajaí amanhece com 80% de sua área tomada pela água. Trinta mil estão
isolados em Blumenau. Maré prejudica escoamento da água. Polícia alerta sobre
falsos socorristas. Hacker tenta invadir página na internet da Defesa Civil para mudar
número da conta que recebe doações.
Durante a cobertura do desastre, a CBN Diário virou parceira de rádios em todo
o Estado, transformando sua abrangência e alcançando praticamente todo o território
catarinense. Isso sem contar o fato de que ouvintes de todo o país – via Rede CBN –
49
tiveram conhecimento sobre um fenômeno que, fisicamente, não se parece, mas, em
volume e característica de destruição, assemelha-se a grandes hecatombes vistas antes
somente pela TV. Pessoas de diversas partes de Santa Catarina e do Brasil – além de
ouvinternautas em todo o mundo – ficaram sabendo sobre como lidar com a tragédia,
como evitar novas incertezas e como ajudar quem não poderia mais se ajudar.
A CBN Diário já tinha vivenciado cobertura de grande evento quando do
Apagão que deixou a área insular de Florianópolis 55 horas sem energia elétrica, em
outubro de 2003. A rádio funcionou como o principal veículo de comunicação da
cidade. E foi responsável por um dos melhores trabalhos já realizados pelo grupo.
O grande destaque foi o espírito de equipe. Houve entrega total dos jornalistas, que
entenderam que o objetivo de informar e ajudar socialmente a população da cidade
estava acima de qualquer interesse pessoal.
Logo depois, em março de 2004, outro momento delicado que renovou esse
espírito foi a cobertura sobre o Furacão Catarina, que varreu o Sul do Estado.
“Este tipo de cobertura, com integração total da equipe e a formação de cadeia
de propagação com outros veículos, deu suporte e experiência para jornalistas de
nosso time, facilitando o trabalho em mais uma tragédia”, aponta o coordenador de
jornalismo da CBN Diário, Carlos Alberto Ferreira.
A equipe, em benefício de uma grande cobertura, facilitou todo tipo de trabalho.
Todos estavam preparados para participar da festa de confraternização de fim de
ano. Mas a tragédia das cheias em Santa Catarina mudou a previsão do grupo. O
churrasco e a cerveja ficaram de lado e todos voltaram seus esforços para o espírito
profissional de entrega total. Repórteres, produtores e âncoras se apresentaram para
o trabalho, entendendo a importância de seu empenho para a comunidade. A partir
daí, o planejamento foi todo facilitado. “Tivemos o cuidado de separar bem o time
e atuar em cima das escalas para priorizar a cobertura. Afinal, todos precisavam
descansar ao seu tempo, sem deixar o microfone silenciar”, revive Carlos Alberto.
Com o desastre ao fim de 2008, os profissionais da CBN Diário mantiveram
uma base fixa na sede da Defesa Civil, de onde radiavam as informações. Um dos
plantonistas foi Leandro Lessa, repórter que vive em Santa Catarina desde 2005. “O
primeiro momento em que percebi a dimensão do desastre – principalmente fora do
Estado – foi quando parentes e amigos entraram em contato comigo, de várias partes,
querendo saber como eu estava, e se a situação era realmente crítica”, rememora,
ouvindo novamente a voz do apresentador do programa CBN Brasil, Carlos Alberto
50
Sardenberg, ressaltar que várias pessoas já estavam tentando saber como podiam
ajudar.
Ao fim de seu boletim ao vivo, para todo o país, Lessa informou pela
primeira vez os contatos oficiais para doação. Para um repórter fluminense radicado
no Estado, aquele gesto representou muito mais que simplesmente transmitir uma
notícia. “Comprovando que ainda há bons seres humanos, os centros de triagem
estavam cheios de donativos e de voluntários para o trabalho de organização, antes
de os materiais serem repassados às vítimas. A partir daquele momento, percebi que
um pedaço do coração dos brasileiros passou a ser catarinense”, emociona-se.
Dimensões do desastre
Assim como o repórter Leandro Lessa, todos os profissionais envolvidos na
cobertura viveram momentos em que perceberam estar envolvidos em uma história que
não cabia dentro de uma notícia. Veteranos da imprensa ficaram com a voz embargada.
Os homens de ferro do poder sucumbiram e choraram. Alguns microfones emudeceram.
Recém-chegado a Florianópolis, vindo da Serra Gaúcha, o repórter Rômulo
Balbinotti não esperava um teste tão grande no início da carreira. Ele também foi
um dos plantonistas na sede da Defesa Civil. Aparentemente, quem ficava na base
sabia do desastre a distância. Mas os detalhes chegavam por lá e, em um momento,
a tragédia resolveu se mostrar mais próxima do repórter. Numa certa noite, entre
boletins e anotações, Balbinotti viu surgir na porta de entrada do órgão uma família
vinda de Palhoça, na Grande Florianópolis, que estava sem chão. Eram mãe, filha e
duas ou três crianças pequenas que resolveram aparecer na sede da Defesa Civil em
busca de alimentos. As crianças choravam de fome porque estavam há mais de um dia
sem comer. “Eles pegaram uma carona e bateram na porta do órgão para pedir uma
cesta básica. Estavam todos encharcados, sujos e debilitados”, recorda Balbinotti. O
mínimo, naquela situação, era tudo. A família foi atendida, alimentada e encaminhada
a um abrigo.
Por mais que fosse político, desabou
O desastre de novembro marcou também quebras de protocolo. Em entrevista a
Luiz Carlos Prates, no Notícia na Tarde, o prefeito de Ilhota chorou. Talvez tomando
51
como empréstimo as lágrimas dos mais afetados, Ademar Felisky ilustrava com as
suas o capítulo mais triste da história da cidade. Com a voz embargada, palavra
truncada, lamentava e somente era compreendido pelo contexto. “Ele falava sobre
como as famílias estavam fazendo para armazenar os corpos. O homem não aguentou
e, por mais que fosse político, desabou”, lembra Antônio Neto, repórter e produtor,
atestando a sensação de impotência e de não saber como recomeçar.
Pela programação da CBN Diário, Santa Catarina conheceu a força de quem
acabara de perder tudo – de amigos e parentes até moradia – e seguiu lutando. O
relato veio pelo coronel José Cordeiro Neto, subcomandante do Corpo de Bombeiros.
Mas não foi único. Companheiros de trabalho, principalmente do Jornal de Santa
Catarina, tão acostumados a relatar o alheio, viraram personagens – muitas vezes
velados – de suas próprias reportagens.
A repórter Letícia da Silva, do Santa, virou uma espécie de correspondente
da rádio no Vale do Itajaí. Antes de entrar no ar, contava sobre os dias quase sem
dormir: amigos precisando de ajuda, a falta de luz, de água, de telefone, de estradas
e dos colegas de trabalho impedidos de chegar à redação, isolados.
Era contra isso – o isolamento – que a equipe da CBN Diário contribuía, ao
estabelecer parceria com emissoras de todo o Estado, durante a cobertura. Estreitando
a informação entre socorristas e socorridos, questionando das autoridades ações de
urgência, reportando a notícia considerada nem boa nem ruim – apenas notícia.
E ela se multiplicava. Novamente, Ilhota era o foco. Um decreto autorizava
bombeiros a retirar à força quem se recusava a deixar o lar ameaçado. Muitos haviam
morrido em razão da recusa. Difícil era a missão de levar esse esclarecimento, tanto
quanto a de não compreender a resistência de quem não quer sair.
E não foi somente um político que desabou. Um veterano comunicador também
sucumbiu. Escalado para cobrir a tragédia em Blumenau, Mário Motta reportou direto
do local da tragédia à CBN. Mas foi na RBSTV que mostrou a dificuldade de quem
lida com a informação diante de uma situação tão adversa. Na tela, um bombeiro
se movimentava com dificuldade em meio à lama, com um saco branco em mãos.
Dentro, o corpo de uma criança de três anos, esclarece o repórter. Termina a matéria
e é a vez do âncora voltar ao ar. A experiência não faz com que se contorne essa
situação com facilidade. “Senti um nó enorme na garganta. Em minha cabeça, só a
imagem dos meus pequenos filhos (hoje adultos), e como a vida nos prega peças e
nos testa a cada instante...Quase desabei e não consegui disfarçar”, recorda, citando
52
o apoio recebido de ouvintes e telespectadores, solidários àquele momento. “Muita
gente ‘chorou’ comigo por alguns segundos”, diz, mostrando ainda os e-mails e
bilhetes que recebeu por ter sido meramente humano.
Essa sensibilidade inspiradora forçava a equipe a despertar para algo elementar.
Não bastava relacionar números de mortes, danos, prejuízos. Era necessário mais.
Contar histórias sem pieguismo, sem sensacionalismo ou desrespeito. Tudo muito
delicado. E foi assim que foram conhecidas histórias peculiares, pelos caminhos do
rádio. De Zulmira, incrédula diante da tristeza batendo à sua porta, quando acreditava
que aquilo era coisa de filme. De Maria Tereza, que ignorou a adversidade e decorou
o abrigo para o Natal, na companhia dos filhos. De João Paulo, aliviado ao ver a
desobstrução das ruas da cidade que administra e suas luzes para o período de festas.
Quando a redação vira dormitório
A repórter do Jornal de Santa Catarina, Letícia da Silva, acostumada à palavra
escrita, encarou a missão única de reportar para rádio. Na CBN Diário e na Atlântida
Blumenau. Vale abrir parênteses e recordar de que a emissora foi a única na região a
manter a programação, uma vez que sua antena era distante das antenas das demais
estações, que foram abaladas pelos temporais. Assim, a Atlântida se tornou uma rádio
informativa e jornalística. Foi necessário o peso dos jornalistas do Santa justamente
para garantir um padrão noticiário. “Todo mundo virou radialista”, recorda Letícia.
E, de perto, o que Letícia viu? Gente morrendo, casas caindo, morros se
desfazendo, um volume enorme de telefonemas para a redação, enquanto a telefonia
aguentou. No sábado em que o temporal começou a complicar, havia somente uma
equipe de plantão. “Cheguei a dormir na redação de sábado até segunda-feira”, lembra.
Letícia estava entre a CBN Diário, a Atlântida e o Santa. Domingo à tarde,
acabou o diesel que mantinha a rádio no ar, já que não havia energia elétrica na região.
Segunda-feira, de manhã, um técnico de rádio subiu o Morro do Cachorro – onde fica
a antena – com um galão do combustível. Intransitável, não subiu de carro. Foi a pé,
com o produto na mão e a responsabilidade de voltar a tornar a comunicação possível.
À noite, ao contrário da CBN, a Atlântida tocava música. Mas até nisso tinha
que se tomar cuidado. Não era de bom grado colocar no ar versos como “Nada ficou
no lugar”, de Adriana Calcanhotto, ou “Se você não passa no morro”, dos Tribalistas.
Triste ironia. Na dita pauleira de tanto trabalhar – voltando para casa depois de
53
dormir dois dias no local de trabalho – assim como o prefeito e o veterano jornalista,
Letícia também sucumbiu. “Na primeira vez em que fui para casa, vi um tanque de
guerra na rua. Cheguei, abri a porta e vi meu pai no sofá, sem luz, chorando”. Assim,
ela volta, por um instante, ao momento em que a realidade apareceu mais intensa. A
família Silva, ao contrário de muitos outros silvas, não tinha sofrido consideravelmente
com as chuvas. Era aquela apenas uma reação comum, em meio a uma tragédia que
insistia em não terminar.
O que restou: o nome limpo
Quem não esteve na região talvez precise de um grande esforço para imaginar
a dimensão de uma tragédia como a que atingiu o Vale do Itajaí, no fim de 2008. As
ruas que marcaram a história de quem lá vive estavam tortas, esburacadas, entulhadas.
Não havia amigo, parente ou vizinho que não derramasse uma lágrima por ter sofrido
diretamente com a entrada de água pelo teto, de lama pelo chão, de uma mudança
forçada em sua vida.
Documentos pessoais, fotografias, a camisa preferida, um bilhete de alguém, uma
lembrança da infância. Para muitas pessoas, tudo isso o temporal levou. E mesmo o
que restava estava ameaçado, ora por uma nova tempestade, ora pelo risco de furtos.
Essa notícia marcou Renato Igor, repórter e apresentador da CBN Diário. “Lembro de
entrevistarmos autoridades e líderes comunitários em Blumenau, que, às escuras, sem
energia elétrica, com a casa interditada ou parcialmente destruída, resistiam em deixar
seus imóveis pelo risco da onda de furtos”, reconta. Pessoas conscientes da realidade,
mas que ainda tinham seus apegos e sabiam que, mesmo diante do pior, há quem se
encarregue de tornar as coisas mais difíceis.
Outros, diante dos riscos, retornavam para casa com objetivos diferentes. Poderia
ser para salvar as fotos, camisas, bilhetes, lembranças. Mas um homem diferenciado
– cuja história veio à tona na rádio – retornou à precária residência e esgavaratou os
escombros. “Buscava o carnê de uma conta para não atrasar o pagamento e manter o
nome limpo no comércio”, lembra Igor, “já que foi a única coisa que restou”.
No mesmo barco
As notícias se repetem para quem vive o jornalismo. Alguns fatos são correlatos.
54
Outros se parecem. Isso cria um certo padrão de abordagem, ainda que haja a constante
tentativa de repensá-lo. A quebra de paradigma, refletida em linhas anteriores, teve
outra conotação para quem se dedicou a cobrir o período em que Santa Catarina se
reconhecia em emergência.
Com programação dia e noite no ar, a CBN Diário fez uma cobertura
diferenciada nos primeiros dias de desastre, que incluía não desligar o microfone
mesmo de madrugada. Assim como durante o chamado apagão energético na Capital,
anos antes, a rádio realizou uma parceria com a TVCOM dia e noite, o que propagava
mais as informações.
Em uma das noites de cobertura em rádio e TV, Felipe Reis sucedeu Mário
Motta e adentrou a madrugada em companhia dos ouvintes. Quem acompanha seu
trabalho sabe que Reis tem um trato objetivo e responsável com suas reportagens. “A
nós, não cabe muito mais do que informar e auxiliar como for possível, e o jornalista
que cobre uma situação como esta, eventualmente, está longe o suficiente do caso
para se sentir seguro e não contabilizar-se também como uma das vítimas”, reflete.
Situações graves fazem parte do cotidiano do jornalista. Acidentes, grandes
operações policiais e crimes são rotineiros, ainda que assuntos diferenciados. Porém,
há sempre uma situação em que isso muda. Numa das noites em que as águas que
caíam do céu com força tal que produziam o som de pedras caindo sobre um telhado
de metal, Reis foi convocado a substituir Motta, em cadeia até as 3 horas da manhã.
Recebeu uma surpreendente quantidade de ligações de vários pontos do Estado –
levando em consideração o horário.
Ouvintes e colegas de reportagem queriam contar o que viam. As ruas dos
bairros das cidades onde moravam estavam tomadas de água, havia a dificuldade
de obtenção de alimentos e os entraves com comunicações. “Assim como eu, eles
começavam a se dar conta de que, nessa história, poderiam deixar a posição de
narradores para assumir o papel dos personagens, sentindo na pele o que estava
acontecendo”, lembra.
Até então, Reis mantinha a distância típica de todas as coberturas. Mas algo
mudou quando precisou sair de casa, em Palhoça, e vir ao trabalho. As ruas do bairro
onde mora tinham mais de 30 centímetros de água. Carros quebrados e cheios de
lama começaram a fazer parte do cenário. Aos poucos, percebeu que o que estava
acompanhando a uma “distância segura”, nos últimos dias, começava a atingi-lo
também.
55
Vendo a tragédia mais próxima, o repórter lembrou que, na proposta da CBN
Diário, não se luta em causa própria. O que se busca são pessoas que exemplifiquem
situações que devem ser noticiadas. “Porém, na cobertura das chuvas do mês de
novembro de 2008, tudo isso foi diferente e estávamos, com o perdão do trocadilho,
todos no mesmo barco”, reflete.
A sensação de Felipe Reis exemplifica a linha tênue que se rompeu entre
o noticiador e o objeto noticiado, durante aquele período. O trabalho seguia com
profissionalismo indiscutível, mas, internamente, aos poucos, a equipe da CBN
Diário mantinha suas preocupações com as informações e discutia o que deveria
ou não reportar, diante de tantos detalhes terríveis que caracterizavam o momento,
concorrendo com a sensibilidade das pessoas. Além do dito “produto externo”,
tinha que se lidar ao mesmo tempo com amigos e parentes pedindo ajuda e com a
possibilidade real de que o impacto daqueles fenômenos que atingiam o Estado se
estendesse e rompesse a aparente distância.
A lição trazida pelo período de forte chuva foi dura. Cruel para quem sofreu
com enormes perdas. Paradigmática para quem lidou com o socorro e com a mais que
necessária prevenção a desastres. E reflexiva aos profissionais da imprensa, que se
viram diante do desafio de noticiar o que eles mesmos estavam vivendo. Na mesma
medida do exemplo do Heráclito, a notícia se tornou o rio em que mais uma vez o
jornalista entrou, mas não podia prever sua turbidez, nem para onde ela o levaria.
Por Luiz Christiano
Produtor e Repórter
Rádio CBN Diário, Florianópolis
56
Memórias do Baú
Jornal Diário Catarinense
A
s roupas ficaram no varal. Panelas na mesa. Geladeiras cheias. Carros
nas garagens. Cachorros na coleira. Pássaros nas gaiolas. Em volta, a natureza,
cheia de vida, pequenos riachos. De repente, no início da noite de sábado, tudo
começou a vir abaixo. A chuva desabou de vez.
O trecho acima tirei da reportagem As memórias do Baú. Pelos extremos que
vivenciei e a transformação que aconteceu de uma hora para outra, talvez esse seja o
testemunho mais fiel que tentei passar de algo que jamais sairá da memória de quem
viu de perto a enchente de novembro de 2008, em Santa Catarina. Mais ainda de
quem esteve em Ilhota, no Vale do Itajaí. Por longos dias, a cidade sepultou o clima
pacato até então marca registrada da região rural do Morro do Baú, o seu principal
distrito. E foi assim em grande parte das cidades catarinenses afetadas pela chuvarada
que durante mais de dois meses foi ganhando volume.
Se a população do local ficou refém às dificuldades geradas pelo tempo, quem
veio de fora sentiu mais ainda. Nos primeiros dias, Ilhota ficou isolada. Conseguimos
chegar à cidade com muito custo, depois de esperar a água baixar e na carona de
um jipe 4x4.
A bordo de um helicóptero Puma do Exército, em uma manhã nublada,
desembarcamos numa das regiões do Baú em que houve deslizamentos e famílias
soterradas. Com o fotógrafo Guto Kuerten como companheiro de equipe e testemunha
de aflição, vivi horas que não gosto de lembrar. Hoje, penso que não há trabalho que
mereça desafiar a fúria da natureza. Na ânsia de chegar mais perto do cenário e de ser
o mais fiel na narrativa jornalística, acompanhamos a pé os bombeiros em busca de
sobreviventes. Foi mais que um teste ao limite físico e psicológico. Foram horas de
caminhada em meio à imensidão de paredes barrentas cercadas de árvores ao chão.
O barro parecia areia movediça. Ficávamos a todo instante com a sensação que
iríamos afundar ou ser engolidos por um deslizamento. Mesmo assim, resolvemos
seguir no rastro dos bombeiros e policiais, a pé, no trecho assombroso em que virou
58
o lugar considerado paraíso ecológico. Difícil esquecer as casas cheias de objetos e
pertences pessoais, mas sem vida, a não ser dos animais em desespero. Eles pareciam
querer mostrar a revolta pelo que se passava.
A cada passo, pontes rompidas, estradas sem traçado, postes caídos. Pelo rádio,
um policial recebe o comunicado de helicópteros que sobrevoam a área. Era o aviso
para não irmos adiante e voltar para um lugar seguro o mais rápido possível, pois
a previsão de mais chuva indicava que novos deslizamentos iriam acontecer. Em
meio ao desgaste do corpo, a cabeça já sinalizava com a preocupação maior: a de
também virar vítima. Era inevitável não pensar nisso. O medo insistia em rondar o
pensamento. Afinal, estávamos em pontos extremamente vulneráveis. Pouco depois,
quando soube, já longe dali, que ocorreram mesmo outros deslizamentos exatamente
na área em que andamos, pensei a loucura que tinha feito. Quem é jornalista talvez
compreenda ou diria que faria o mesmo. Mas isso não significa que o procedimento
seja visto como exemplo.
O primeiro depoimento que ouvimos em Ilhota foi o da funcionária pública
Terezinha Martendal, 38 anos, em uma sala da Apae, seu novo abrigo, do marido
e da filha de quatro anos. A família havia sido resgatada do Baú por bombeiros de
helicóptero, único meio de acesso ao local em que moravam. “Foi muito desespero.
Eu nunca tinha visto nada parecido na vida. É pior do que uma guerra. Eu prefiro
correr de uma enchente, de um incêndio, mas nunca correr da terra. A terra estava
puxando a gente. Parece que soltaram uma bomba”, dizia Terezinha, a nossa primeira
entrevistada, em tom de ansiedade e tristeza sem conter o choro.
Sabíamos que marcas ficariam para sempre naquela comunidade. Vidas tinham
sido levadas. Era o que todos temiam. A chuva tinha trazido mortes. Terezinha
sabia que não veria mais alguns familiares, pois a enxurrada e a terra foram tão
avassaladoras sobre as casas que não deu tempo de escapar. Um povo humilde,
trabalhador, sendo castigado pela chuva. Foi dramático e revoltante. Vítimas que
não tiveram direito nem ao velório para a última despedida.
O drama não atingiu apenas Ilhota. Mas Blumenau, Gaspar, Itajaí, Jaraguá
do Sul e tantas outras cidades. O Estado registrou mais de 70 mil pessoas fora de
suas casas em razão de inundações e soterramentos. Em Itajaí, havia dias em que
era possível ver, da BR-101, apenas o topo do telhado das casas. Contêineres do
porto tinham sido removidos de lugar pela força da água, configurando imagem
impressionante que despertou interesse de agências e revistas internacionais.
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Como dizem que é na dor e no momento difícil que se conhecem as pessoas,
nada como o trabalho voluntário para superar. Foi impressionante a quantidade de
pessoas dispostas a ajudar de alguma forma. Desde uma corda para socorrer um
carro atolado, um colchão para quem não tinha onde dormir, uma garrafa de água
na cidade desabastecida, um abraço de conforto a quem perdeu os familiares, um
aperto de mão a quem procurava o consolo, até as cargas de doações vindas de todo
o país. Pessoas de diferentes lugares prontas para socorrer e amparar. E não só de
Santa Catarina. Estudantes do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Sul e outros estados
desistiram das férias para ajudar na triagem de roupas doadas aos desabrigados.
Os catarinenses foram exemplos de esperança e otimismo na reconstrução. Cada
momento de enfrentamento tornou-se único. Cenas que ninguém deseja presenciar
novamente.
Por Diogo Vargas
Repórter
Diário Catarinense, Florianópolis
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“Aqui é um lugar bom, de pessoas boas. Não é porque
houve uma tragédia que tudo acaba”
FOTO 3
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Convívio no abrigo Barroso
Jornal O Estado de São Paulo
F
oi ali que realmente entendi a tragédia. Ali, percebi a real dimensão
daquele desastre. A dificuldade da sobrevivência, o medo, a tristeza. E,
principalmente, a imensa solidariedade das pessoas, mesmo em meio a tanto caos.
Era uma da manhã e o sono teimava em não aparecer nas dependências do abrigo
Barroso, no centro de Itajaí, uma das cidades mais afetadas pela catástrofe que deixou
135 mortos e milhares de desabrigados. As lágrimas, sim...Essas eram abundantes.
Celso Roberto Bartelti, um senhor franzino de 57 anos que, aparentemente, odiava
fazer a barba e estava sempre coçando a cabeça grisalha, chamou-me para tomar
um café na cozinha improvisada do lugar, um café ralo e gelado que havia sobrado
do lanche da tarde. Lembro que ele falava pouco, bem pouco, mas sobre coisas
extremamente pessoais.
”Nunca tive um filho, sabe. Acho que não levo jeito para esse negócio de
fraldas e choradeiras e coisas do gênero”. Mesmo assim, enquanto passeava com
suas pantufas coloridas de peixinho no meio das 250 pessoas que dormiam no chão
do Clube Esportivo Barroso, no centro de Itajaí, absolutamente todos ali o chamavam
de pai. “Boa noite, pai”, acenava uma garotinha de 7 anos de idade, que se encolhe
de frio em um colchonete fino que mais parece um lençol. “Dorme bem, minha
criança”, respondeu, “que amanhã tem mais diversão e brincadeira”.
Verdade seja dita, não havia nada assim muito divertido no abrigo Barroso,
que por três semanas serviu de casa improvisada para centenas de desalojados pelas
chuvas que destruíram boa parte do Vale do Itajaí. Trata-se de um prédio de concreto
com um grande e simples salão de bailes, decorado de forma igualmente muito
simples para dois bailes e um casamento que estavam previstos para ocorrer alguns
dias antes. Difícil acreditar em algum tipo de organização, sanidade ou civilidade por
ali – muitas e muitas crianças, mais de cem delas, gritavam e corriam para todos os
lados. Elas não conseguiam dormir, ficavam até as 3 horas da manhã conversando
e chorando.
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“Tenho medo de dormir porque não conheço ninguém aqui”, contou Marina,
uma menina de 5 anos que não sabia dizer direito o próprio sobrenome (“Esqueci...”,
alegava), mas com maturidade suficiente para entender o sentimento geral no abrigo.
Microcosmo
Mandado a Santa Catarina pela editora do caderno Metrópole do jornal O
Estado de S. Paulo para ajudar na cobertura sobre as chuvas que devastaram a região,
cheguei no dia 27 de novembro, justamente quando ocorreram diversos desabamentos.
Na correria, a emoção era a última a aparecer, confesso. Fiz matérias sobre acidentes
trágicos, resgates heróicos e de momentos de tristeza e de alívio. Para fazer uma
reportagem especial sobre os desabrigados, que naquela semana superavam os 20
mil, resolvi passar a noite de quinta para sexta-feira no abrigo Barroso. O cenário
era desalentador. Famílias de até cinco pessoas cabiam inexplicavelmente em um
colchão de casal. Poucos sacos de roupas pareciam ser tudo o que havia sobrado para
a maioria deles. Dois adultos se xingavam para saber quem ia tomar banho primeiro
(um senhor chegou a ser expulso por tentar se aproveitar de uma garota; ele acabou
conhecido como o “taradão da madrugada”). Uma mulher tropeçou em uma cadeira
e quase quebrou o nariz. Ninguém ajudou. Ela começou a chorar. Ninguém ouviu.
O abrigo Barroso se transformou em uma espécie de microcosmo da região,
um exemplo feito de concreto, colchonetes e muitas tristezas sobre o que era viver
naquele momento no Vale do Itajaí. Não deixava de ser também uma valiosa lição
de vida. Ao mesmo tempo em que havia brigas pelo chuveiro, crianças sem controle,
denúncias de furtos, taradões da madrugada e todo o tipo de picuinha, havia um
número muito maior de exemplos de solidariedade, de ajuda, de humanidade. Havia
Giovana Luz da Silva, uma menina de 9 anos que acordava com os irmãos Pedro e
André, às 7 horas, para ajudar no café da manhã dos seus colegas desabrigados. Havia
Leoni Pegorario de Andrade, de 42 anos, que estava sempre de olho na segurança das
crianças e não descansava antes de boa parte delas adormecer. E havia, entre tantos
outros personagens, o franzino Celso Roberto Bartelti, o “pai”, que abriu as portas
do Barroso para os desalojados e não dormia havia dias para garantir a tranquilidade
deles. “Eu vi pela televisão que centenas de pessoas desabrigadas pela chuva estavam
se amontoando em uma escola aqui do bairro”, disse Bartelti, presidente do clube
social e esportivo Barroso. “Peguei as chaves do portão do Barroso, abri o clube e
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comecei a receber as pessoas que estavam vagando pelas ruas. Em poucas horas,
já tinha inscrito 470 desalojados, sendo 250 crianças e 22 grávidas. Não pensei
nas consequências nem planejei o que fazer depois de abrir os portões. Foi aí que
eu me tornei o pai para todos eles”.
O ponto crítico da curta história do Barroso aconteceu numa terça-feira.
Dezenas de pessoas do abrigo apareceram com sacos de arroz, caixas de cerveja,
eletrodomésticos e até uma televisão de plasma, roubados de um supermercado
do bairro – caso que foi noticiado pelo Estadão e demais veículos que cobriam o
desastre. Bartelti simplesmente não deixou eles entrarem. Confiscou a comida e
os eletrodomésticos, quebrou as garrafas de bebida alcoólica na calçada e abriu as
latinhas de dez caixas de cerveja. “Uma a uma”, contou, rindo alto. A partir daí, o
abrigo começou a ter regras mais rígidas e virou uma espécie de pequena comunidade.
A primeira medida foi estabelecer horários. O café da manhã era servido das 7 às
9 horas, o almoço estava na mesa às 12 horas e o jantar às 19 horas. Cada morador
temporário do local também tinha direito a uma muda de roupa por dia, que vinha
de doação.
“Quando a rotina apareceu, acho que as pessoas perceberam que era preciso
respeitar o próximo como se fosse um familiar, mesmo que fosse um familiar tampão”,
disse à reportagem Leoni Pegorario de Andrade, chorando, tanto por tristeza quanto
por cansaço. Ela chegou com o marido e dois filhos na segunda-feira, depois que a
água na sua casa, em um bairro afastado de Itajaí, chegou à altura da boca. “As noites
continuam sendo difíceis, porque as pessoas têm de ficar mais quietas e têm de pensar
na realidade. É aí que cai a ficha. Só melhora de manhã, quando aparece a luz do
dia e volta a esperança de podermos retornar para casa e continuar nossas vidas.”
Resgate
Não foi a única noite que passei acompanhando as histórias dos desabrigados
e das vítimas da tragédia. Ao todo, fiquei quase um mês em Santa Catarina – a
previsão era que eu passasse três ou quatro dias, então minha mala se resumia a uma
calça, um tênis e algumas camisetas. No primeiro dia, tinha perdido a calça e o tênis
para o lamaçal. Outros momentos marcantes se sucederam nesse mês de cobertura
do Estadão, seja de boas notícias e resgates bem sucedidos ou seja daquelas tristes
histórias que ninguém queria ter de contar, mas que se repetiam diariamente na região.
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Um dos capítulos mais nervosos da cobertura foi quando tive de ser resgatado de
uma região onde os desmoronamentos eram constantes – bem como as mortes. A
chamada no Estadão foi “Reportagem do ‘Estado’ é resgatada do Morro do Baú,
em Ilhota, juntamente com equipe da Força Nacional”. Minha mãe quase infartou
quando leu isso, aposto.
Meu relato, que pela pressa e pelo medo saiu um tanto dramático, foi publicado
assim no jornal, no dia 29 de novembro de 2008:
A região do Morro do Baú tem cerca de 100 quilômetros quadrados e está
encravada no meio de dois vales, o que dificultou o acesso durante a semana e
potencializou a catástrofe. A equipe da Força Nacional de Segurança (FNS) chegou
ao local por volta das 9h30 de ontem, na tentativa de ajudar os moradores e resgatar os
corpos que ainda estão soterrados na região. Num voo de pouco mais de dez minutos,
Madonna, um labrador marrom de 2 anos e meio de idade que veio de São Paulo para
ajudar nas operações, parecia bem mais calma do que os 11 homens que se espremiam
no helicóptero da Força Aérea Brasileira (FAB). “A gente fica até mais nervoso do que
os cachorros porque a adrenalina fica a mil”, disfarçou o cabo Felipe Valter Lopes, de
43 anos – apenas há 40 dias usando a farda cinza da Força Nacional. “Preciso pitar
(fumar) pra me acalmar”.
Uma vez no solo lamacento do Baú, os seis cães farejadores – Preta, Morena,
Xangô, Mel e Zion, além de Madonna – se revezavam no meio dos tijolos, telhas retorcidas
e móveis quebrados para tentar sentir o cheiro das vítimas. O odor forte de fezes parecia
não atrapalhá-los. No local onde eram feitas as buscas, totalmente devastado pelos
desmoronamentos que ocorreram no fim de semana passado, três pessoas ainda estavam
soterradas – um adulto, um jovem de 20 anos e um bebê de 7 meses.
“Atenção todo mundo. Essas pessoas aqui enterradas estão mortas. O risco agora
é da equipe, é só nosso, a gente que está vivo”, disse o capitão Romeu Rodrigues da
Cruz Neto, responsável pela operação. “Se a bota ficar presa na lama, pede ajuda para
o colega do lado. Se afundar na altura do umbigo, cuidado porque não dá pra respirar,
morre. Não quero perder ninguém, quero voltar com todos vocês”.
Essa operação, no entanto, não durou nem duas horas. Por volta das 10h45, chegou
a informação de que existia muita água represada nas encostas e um desmoronamento
havia acabado de acontecer no morro logo ao lado – quatro pessoas estavam soterradas.
“Vamos parar tudo por um tempo, porque se essa água descer vai levar tudo aqui”,
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disse o capitão Romeu Rodrigues da Cruz Neto, que subiu em um helicóptero da Polícia
Militar para checar as condições do terreno. “Lembrem-se do que eu falei, não quero
perder ninguém”.
Os homens então se abrigaram em uma casa abandonada, amarraram os
cachorros e começaram a conversar enquanto novas ordens não chegavam. “O pior é
essa espera”, reclamou o cabo Edmílson Vieira, que tentava passar o tempo contando
histórias de sua terra natal, Goiânia. A maioria dos homens da Força Nacional
na operação era de calouros, que estavam há pouco mais de um mês no serviço.
“Estamos loucos para ajudar, mas mal dá para se movimentar nesse lamaçal”.
Poucos minutos depois, o sargento Marcelo Dias gritava pelo rádio. “Vamos
precisar evacuar, acabaram de me dizer que a água está vindo para cima da gente”,
disse. Neste momento, todos perceberam que um fio de água que corria perto da
equipe já havia se transformado num pequeno rio. “Quem ficar vai morrer, a lama
vai vir e vai cobrir tudo aqui”.
Os próprios homens da Força Nacional correram na direção de um campo de
futebol nas imediações para serem resgatados pelos helicópteros, que começaram a
sobrevoar a área como mosquitos. Uma equipe de televisão da rede Al-Jazira, que
também acompanhava os trabalhos, subiu desesperada para um pequeno morro,
na tentativa de ficar em uma área mais alta. Três cabos da FNS também correram
para o mesmo local, sem saber o que fazer.
Alguns vizinhos das imediações, que já limpavam suas casas e tentavam
retomar as vidas depois da tragédia desta semana, também seguiram para o
campinho de futebol alagado quando viram a correria. A reportagem do Estado e
dois moradores foram os primeiros resgatados, em um helicóptero da Marinha que
chegou em dois minutos à região. Um helicóptero da Polícia Militar estava logo
atrás para evacuar outros três moradores e uma aeronave da Força Aérea aguardava
a poucos segundos dali para resgatar os 11 homens da Força Nacional.
Madonna continuava calma, sem latir, mas os outros cães pareciam apavorados
com o barulho das hélices. No helicóptero, Josias Maciel dos Santos, de 37 anos,
gritava para o piloto da Marinha, dizendo que outras pessoas da sua família estavam
dormindo em sua casa e corriam risco de serem soterradas. O piloto não ouviu,
mas outros dez helicópteros se dirigiam naquele momento para o Baú para resgatar
“absolutamente todas as pessoas, mesmo na marra”. “Não pode acontecer tudo de
novo, já sofremos demais, já perdemos quase tudo”, disse Josias, que passou todo
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o trajeto com a cabeça baixa e os olhos fechados, como se estivesse rezando. “Não
vai dar tempo de tirar todas as pessoas dali”.
Essa aeronave da Marinha desceu em Ilhota, a três minutos do Baú, em um
outro campo de futebol. Um bombeiro já estava de prontidão para anotar em um
papel sulfite todas as pessoas que estavam sendo resgatadas. Até as 16 horas de
ontem, já haviam sido 25 – 12 homens, 7 mulheres e 6 crianças. Outras pessoas
foram levadas para Gaspar, município vizinho. Além desses números e das histórias
dos resgatados, pouco se sabe – não há informações de quantas pessoas podem ter
morrido nesses novos desmoronamentos, quantas já estavam soterradas, como está
a condição geológica dos morros ou mesmo quando as equipes poderão voltar a
trabalhar na área.
“Estamos em uma catástrofe de várias etapas”, disse na tarde de ontem o
tenente coronel Milton Kern Pinto, coordenador-geral das operações aéreas da
Defesa Civil. “Agora temos mais desabrigados, mais mortos e mais deslizamentos,
mas não conseguimos ainda saber quantos são. Evacuamos até a Força Nacional,
a Polícia Ambiental e os Bombeiros. Esperamos agora uma perícia dos geólogos
e geógrafos para descobrir a dimensão do problema. Estamos todos assim, presos,
sem ter muito o que fazer neste momento”.
Tijolo por tijolo
Quatro meses depois da cobertura do Estadão, voltei para Santa Catarina na
tentativa de reencontrar personagens da tragédia. Encontrei os mesmos ingredientes
da minha noite no abrigo Barroso – claramente ainda há muita dor, muito esforço,
muita superação e muita perseverança. Percorri 845 quilômetros entre as cidades de
Navegantes, Itajaí, Ilhota, Gaspar, Blumenau e Luiz Alves, para encontrar histórias de
superação. Pequenos milagres em meio à burocracia oficial. Foi possível reencontrar
pessoas que continuavam dependendo de abrigos para morar, famílias que precisavam
de um auxílio das prefeituras para sobreviver, regiões que permaneciam devastadas
e abandonadas.
Até hoje, é palpável o sentimento que a catástrofe que começou no dia 22 de
novembro do ano passado simplesmente teima em não passar para muitas famílias
catarinenses. A lama secou, o mato cresceu, as câmeras de TV se foram e o comércio
retomou suas atividades. Meses depois, há pessoas morando em abrigos, outras
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vivendo de aluguel ou de favor na casa de parentes e de amigos. O dinheiro do
governo federal para a reconstrução das residências não é e nunca será suficiente
para reconstruir tantas vidas. As famílias de Larissa Schawanbach, de 11 meses, e
de Erna Cypriano, de 79, não puderam nem mesmo fazer um funeral e enterrá-las,
pois os bombeiros abandonaram as buscas sem encontrar os corpos. São famílias e
mais famílias paralisadas no tempo, que buscam em pequenas coisas do dia a dia a
força necessária para reerguer seus tetos e suas vidas.
Aprendi no abrigo Barroso e pelas ruas do Vale do Itajaí que há, sim, muito
espaço para o otimismo e a solidariedade. Anísio Mairing, um senhor com cerca de
40 anos que decidiu comprar e reformar um bar em uma das áreas mais afetadas do
Morro do Baú, justamente onde eu havia sido resgatado junto com a Força Nacional,
resumiu bem essa lição pessoal. “Vamos levantar o Vale do Itajaí”, disse, enquanto
pintava a fachada do estabelecimento. “Aqui é um lugar bom, de pessoas boas. Não
é porque houve uma tragédia que tudo acaba”.
Por Rodrigo Brancatelli
Repórter
Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo
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Sofrimento e emoção, na lama e no ar
Rádio Guarujá de Florianópolis AM, 1.420 kHz
C
hovia muito em novembro de 2008. Um mês chuvoso, como estávamos
acostumados a ver todos os anos na pré-temporada de verão. A chuva não parava
e parecia ganhar força a cada dia que avançava. A Capital e toda região metropolitana
mostravam uma exaustão de suas infraestruturas.
A primeira consequência era o sofrimento da população carente que vive em
áreas invadidas, sem água e luz, sem ruas, sem esgoto, sem quase nada. O clima
cinzento e chuvoso se alastrava às regiões Norte e Vale do Itajaí. Os milímetros
de precipitação, calculados pela Defesa Civil Estadual e pela Epagri/Ciram,
acumulavam-se. A preocupação e a tensão eram de todos. No final de novembro, o
período de chuvas constantes iria se transformar numa tragédia, jamais vista pela
população catarinense.
O sábado amanheceu barulhento, de águas, trovões e raios. Os ventos pareciam
trazer um recado da natureza, um alerta frio e cruel de quem estava com a paciência
esgotada de tanto desrespeito, violações e exageros. A velha natureza responderia
a todos os nossos desaforos e o aviso começava a chegar de forma mais violenta
naquele sábado. Os sinais de transbordamento de rios e esgotamento dos precários
sistemas pluviais eram vistos em cada informe da Defesa Civil do Estado.
A Rádio Guarujá AM, de Florianópolis, há 66 anos, fala de futebol e esporte nos
finais de semana. Naquele sábado, a história começava diferente. Carlos Damião, na
época coordenador de Jornalismo, iniciou uma cobertura acanhada ao convocar parte
dos repórteres e dar espaço às informações no programa que apresentava, o Revista
Guarujá, pela manhã. À noite, o experiente Damião - de tantas coberturas do gênero
pelo jornal O Estado e outros tantos veículos que passou – convocou a equipe de
jornalismo para prevenir que, no domingo, o trabalho seria duro. Não deu outra.
Nas primeiras horas do dia 23, Carlos Damião comandava o time inteiro: Marcelo
Fernandes, Polidoro Júnior, Cléber Pedra, Fábia Haffermann, Raquel Santi, Carol
Gonzaga, Hívan Tonsic, Júlio Castro, Iuri Grechi e os técnicos Edson Garcia, Luiz
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Carlos Silva, Smaley Cúrsio, Andrey Silva, Paulo Renato, além dos técnicos Jorge,
Valvito, Francisco, Darci e Rogério, que não param dia e noite.
O domingo amanheceu com clima de dificuldades. Usamos o Estúdio B de
gravações, ao invés do tradicional do “Ar”, que estava alagado por conta das chuvas.
Parte do telhado do Edifício Tiradentes foi atingida por fortes rajadas de ventos. Como
manda o bom jornalismo nestas ocasiões, a produção teve de ser engrossada para
trazer informações e encontrar as pessoas certas e colocá-las no ar. As entrevistas
foram alternadas com as intervenções dos repórteres espalhados por toda a região.
Em frente ao Estúdio B, para trabalhar melhor, improvisamos a mesa da
recepção, onde foram instalados computadores e telefones e, assim, a produção
ganhou mais mobilidade e contato direto com os âncoras. Deste fim de semana em
diante, foram cerca de 30 dias de cobertura especial, compatibilizando a programação
normal com o trabalho incansável de toda equipe do jornalismo.
Fizemos o que a Guarujá sempre fez há quase sete décadas, mas de forma
concentrada. Prestamos serviços, ajudamos comunidades, cobramos a ação das
autoridades e fomos parceiros de todas as iniciativas possíveis de solidariedade aos
atingidos daquela enchente. Colocamos no ar os frequentes alertas e os comandos
da Defesa Civil e praticamente transformamos a sua sede em estúdio avançado
de nossa programação. No programa Jornal da Noite, eu e o repórter Júlio Castro
fazíamos um rescaldo das notícias do dia, com matérias e entrevistas ao vivo. Uma
delas foi inesquecível.
Por volta das onze da noite, o bravo major Márcio Luiz Alves, chefe da Defesa
Civil do Estado, atendia-nos pelo telefone, na sede do órgão. Com evidente cansaço
de vários dias mal dormidos e sem ir para casa, o major não conseguiu esconder a
emoção ao relatar o que via no comando daquela catástrofe:
Marcelo, o que estamos vendo é algo que nunca experimentamos. A todo
momento, famílias inteiras são destroçadas, perdendo seus entes queridos, crianças
perdidas, mulheres e idosos desesperados pelas perdas humanas e materiais. É
um cenário de guerra. Precisamos ter muita força, muita concentração, muito
profissionalismo para não nos envolvermos no drama de cada um. Temos que ser
fortes. Talvez sejamos a única esperança para estas pessoas atingidas pelas chuvas.
Eu queria aproveitar este momento, tarde da noite, para mandar um recado para a
minha família, a minha esposa e meus filhos, que não me enxergam há dias, que me
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perdoem pela ausência, mas sei que eles vão entender a situação que passamos. Eles
sabem que essas pessoas que foram vítimas deste desastre terrível estão precisando
do nosso trabalho e do nosso apoio. A nossa missão, para eles, é uma questão de
vida ou morte. Por isso, eu peço desculpas pela ausência em casa, mas queria dizer
aqui pela Guarujá que, a cada minuto deste nosso trabalho difícil, nos inspiramos
na família, no sorriso deles, no amor deles e na confiança que eles têm em nós.
Após o relato, Alves precisou interromper a ligação, chorando, para recompor
sua emoção incontida.
Sabíamos que nossa cobertura na Grande Florianópolis registrava um
sofrimento intenso da comunidade com aquelas enchentes de novembro e dezembro
de 2008, mas não era a história mais dramática. Não muito longe, na região do Vale
do Itajaí, Blumenau, Luiz Alves, Gaspar e Ilhota tiveram morros inteiros, como o
do Baú, que “derretiam como sorvete”. Assim relatava em nosso microfone um dos
soldados do exército em operação no local.
Num desses momentos agudos na região do Vale, transmitimos o depoimento
de um oficial de resgate da Força Nacional, que trabalhava de helicóptero, içando
famílias inteiras do olho daquela terra movediça:
É um cenário terrível, muito duro pra todos nós. É uma verdadeira prova
de fogo ver tanto sofrimento. Mas é importante que as pessoas atendam nossas
orientações para que se evitem mais tragédias. Eu estou frustrado neste momento,
abalado mesmo. Agora pouco vi uma família inteira ser soterrada lá no Baú. Ontem
eu tinha tirado todos eles de lá, eles não queriam sair de casa, tiramos eles a força.
Foi uma situação de muito desespero. Tiramos todos ontem com grande dificuldade.
Agora, estávamos lá resgatando mais pessoas, com essa chuva toda, com ventos
fortes, pouca visão, perigo de mais deslizamentos e avistamos a mesma família de
ontem. Eles resolveram voltar para casa, contrariando nossa orientação e vimos
eles serem sugados pela lama, sem poder fazer nada. Nós estamos chocados, muito
tristes, é muito difícil ver tudo isso.
No estúdio da Guarujá, a emoção foi geral e ninguém arriscou dizer uma
palavra. Pedi o intervalo comercial do jeito que pude e sai para tomar uma água.
Em Florianópolis, a anti-vedete daquele show de horrores era a subida do morro
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do Cacupé, às margens da SC 401, numa curva onde um espetacular deslizamento
engoliu a estrada, um caminhão e a vida de seu motorista. Dias depois do evento
quase indescritível no rádio - a cena é crível só com imagens -, as máquinas tentavam
recompor a via, mas o cenário devastador transformava os robustos caminhões das
empreiteiras em carrinhos de brinquedo.
Resolvi ir até o local e vi a impressionante revolta da natureza. Quando cheguei
à redação da Guarujá, contei a cena no ar e escrevi no blog, sob o título Medo na
encosta. Postei assim:
Estive na terça à tarde (28) ali na SC 401, na altura do Cacupé, onde
desmoronou aquele monte de terra sobre a estrada. É espantoso o volume e
assustadora a cena. Parece que ali houve um bombardeio. Fiquei impressionado.
Ao chegar, encostei minha moto logo ao pé da encosta que sobrou. Olhei bem no
alto, inclinando o olhar em 180 graus, respeitando aquele morro rebelde, bravo e
bêbado d’água. Ele parecia falar “não me aguento mais de pé”. Olhei e tive medo.
Peguei a moto e saí de perto, como me afastando de um alien exausto, sonolento e
fora de controle. Estacionei mais longe e fiquei sobressaltado na cena, observando
o movimento das máquinas trabalhando nos escombros. Notei que o motorista da
retroescavadeira avançava sobre as terras e pedras revoltas, como quem cutuca
uma onça com vara curta. Um olho na caçamba, outro na enorme encosta trêmula,
drogada. Pensei ali na “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius, cantada pelos Secos &
Molhados, “...rotas alteradas; pensem nas feridas; como rosas cálidas...”.
Escrevo este pequeno relato sobre as enchentes e o desastre que sofremos no
final daquele 2008 com atraso. Conto com a compreensão dos editores desta obra
e entrego meu material em cima da hora. Coincidência ou não, escrevo aqui com a
atenção e a preocupação voltadas para uma nova cobertura da Guarujá sobre cheias,
novamente em todo o Estado, quase um ano depois. A Epagri/Ciram prevê que vamos
ter mais chuvas nas próximas semanas. Torço não precisar escrever novo relato.
Por Marcelo Fernandes
Coordenador de Jornalismo
Rádio Guarujá de Florianópolis AM, 1.420 kHz, Florianópolis
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“Eu queria que Deus me desse pelo menos a oportunidade de
salvar um para ficar de consolo. A minha esposa estava grávida,
já tinha planos para o filhinho que ia vir, se fosse menina já tinha
até nome, se fosse menino já tinha até nome. Eles encontraram a
minha mulher segurando a minha menina”
FOTO 4
FOTO 4
A maior experiência da minha vida
Núcleo Globo – Santa Catarina
O
Núcleo Globo SC - grupo de jornalistas da afiliada RBSTV
Florianópolis voltado ao atendimento à Rede Globo - tem a atual formação
há dez anos. Somos quatro produtores/editores com duas equipes completas de
reportagem: dois repórteres, dois cinegrafistas e dois motoristas.
No decorrer de uma década, tivemos a oportunidade de mostrar ao resto do
país muitas facetas da rica cultura catarinense e suas belezas naturais. Desde a
tradição germânica e suas festas de outubro, a pesca da tainha tão importante para
os pescadores artesanais, a neve que encanta e atrai turistas para a Serra até o verão
agitado numa das regiões litorâneas mais belas do Brasil. Mas também divulgamos
muitas tragédias: acidentes de trânsito que ceifaram dezenas de vidas nas BR-470
e na BR-282; o furacão Catarina; enchentes em algumas regiões e seca em outras.
Nada disso foi comparável ao que enfrentamos em novembro de 2008. Tudo
começou durante meu plantão de sábado, dia 22. Comigo estava a repórter Kiria
Meurer, que fechou matérias para o Jornal Hoje, Jornal Nacional e boletim para o
Globo Notícia. Percebemos que a chuva ainda iria longe e, no domingo, Kiria fechou
mais um VT para o Fantástico. Só não contávamos que iria tão longe.
A situação piorava a cada dia em Blumenau, Ilhota, Gaspar e outros municípios
do Vale do Itajaí. Mandamos a equipe do repórter Ricardo Von Dorff para Blumenau.
Na sequência, a chuva inundou Itajaí e deslocamos a equipe para lá. A equipe da
Kiria, então, foi transferida para Blumenau.
A cobertura nacional foi tomando tal proporção que precisamos contar com a
ajuda preciosa de uma equipe de reportagem do Rio Grande do Sul, Guacira Merlin
e Jefferson Pacheco, e também da repórter do local, Adriana Krauss. Esse grupo
ficava encarregado de abastecer o Jornal Nacional: quatro reportagens e quatro
entradas ao vivo em média por dia. O Jornal Hoje e o Bom Dia Brasil recebiam a
mesma atenção das equipes locais de Blumenau. O Jornal da Globo contava com o
trabalho da repórter Giovana Perine. A demanda era tão grande que toda a redação
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de Florianópolis colaborou com a cobertura para a Globo. Diante da dimensão da
tragédia, o apresentador e editor-chefe do Jornal Nacional, William Bonner, ancorou o
jornal diretamente de Blumenau, durante dois dias. Um caso bastante raro na história
do telejornal, que completa 40 anos em 2009.
Para nós, integrantes do Núcleo Globo, foram dezessete dias de trabalho
ininterrupto, com jornada de 14 a 16 horas diárias. Ao cansaço físico juntava-se a
exaustão emocional de estarmos lidando com a dor das pessoas, de vermos lugares
que tanto admiramos virem abaixo. O número de mortes aumentava a cada dia e,
com ele, as dramáticas histórias que os repórteres precisavam contar ao resto do país.
Nosso maior desafio era como fazer isso sem desrespeitar o drama de cada família,
mostrar a dor sem apelar para a emoção rasteira. Olhando para trás, podemos nos
orgulhar de termos conseguido o tom certo. Fomos respeitosos e conseguimos tocar
o coração de milhões de brasileiros.
As doações e os voluntários chegaram de todas as partes. Choramos muito
sobre a mesa de trabalho naqueles dias, mas conseguimos encontrar gratificação na
certeza de que a nossa atividade ajudou a atrair solidariedade para tantos necessitados.
Tive dúvidas também, claro. Houve momentos que acreditei ser mais útil cozinhar
para os bombeiros, como mostramos em algumas reportagens, do que coordenar a
cobertura dos fatos. Mas, cada qual tem a sua habilidade e a sua parte a cumprir
diante de uma realidade tão dura.
Posso dizer que aprendi muito durante o episódio. Revisei a importância que
se dá a pequenos percalços. O que era isso diante de uma tragédia de tal dimensão?
Renovei minha admiração por profissionais como os bombeiros, pessoal da Defesa
Civil, soldados, enfim, a quem se dedica a salvar. Profissionalmente, foi a maior
experiência da minha vida, sem dúvida. No início, não sabia se seria capaz de dar
conta de algo tão grandioso. Ao final, descobri que sim, eu era capaz.
A certeza maior que me restou foi a de que só fui capaz pela qualidade da
equipe que trabalha diretamente comigo (repórteres, produtores/editores, cinegrafistas
e motoristas); pela união de esforços de colegas de outras áreas; e pela confiança
que recebemos dos profissionais do Jornal Nacional. O apoio e a competência dos
editores e produtores do JN na outra ponta do processo foram fundamentais para o
sucesso de um trabalho que resultou em cerca de duzentas reportagens e entradas
ao vivo na Globo.
Mais que isso, a compreensão e a solidariedade que recebemos deles. Um dia,
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quase ao final daquele período tão triste, chegou à redação um lindo vaso de flores,
coloridas, lembrando que a vida prosseguia e um cartão que guardo até hoje:
Querida equipe de Floripa,
nós, produtores e editores do Jornal Nacional, gostaríamos de agradecer o
carinho e a competência de vocês, nesse momento tão difícil para Santa Catarina.
O trabalho da equipe foi primoroso e comoveu o Brasil inteiro. Graças a vocês,
donativos foram recolhidos do Sul ao Norte do país.
Parabéns – e que tenhamos dias mais leves pela frente!
Beijos e muito obrigada.
Jornal Nacional
Uma delicadeza que, como diz o famoso anúncio, não tem preço.
Fator fundamental para o bom resultado foi o investimento que a RBSTV fez
no episódio. Contamos com dois up-links (equipamentos que permitem a geração,
via satélite, do material e a entrada ao vivo de qualquer lugar) e dois helicópteros,
que serviram para agilizar a produção. Todos os recursos humanos internos foram
colocados à disposição pelo chefe de Redação, Anselmo Prada.
Bem, hoje, energias recompostas, vamos seguindo o cotidiano jornalístico,
rezando e torcendo para que nossa querida Santa Catarina nunca mais passe por
isso novamente. E sonhando em mandar boas notícias dessa terra abençoada para o
restante do país.
Por Brígida de Poli
Coordenadora
Núcleo Globo SC – RBSTV, Florianópolis
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Um cenário de guerra
Núcleo Globo – Santa Catarina
E
mbora não seja uma boa lembrança para se recordar, a enchente que
atingiu o Vale do Itajaí em 2008 é impossível de ser esquecida. Neste meu
depoimento, tentarei transmitir um pouco do que vivi e as emoções que senti nos
quase 20 dias em que estive lá, por ocasião da cobertura jornalística da RBS TV.
A responsabilidade de registrar aquelas imagens fortes, chocantes, tristes,
reveladoras, que falavam por si, não me isentou de redobrar o cuidado na seleção das
cenas a serem gravadas. Para capturar a realidade, foi necessário um esforço físico
para superar as dificuldades em meio à lama, água e risco de doenças, e controle
emocional para não me envolver com o desespero e tristeza daquele povo. Percebi,
com o passar dos dias, que isso seria quase impossível.
A chegada da nossa equipe de reportagem se deu à noite. Havia movimento
nas ruas que já estavam alagadas. As pessoas pareciam perdidas e visivelmente
preocupadas com a previsão do tempo. Perguntavam umas às outras e olhavam
para o céu, tentando encontrar respostas para aquela situação. A primeira impressão
que tive foi assustadora. Minutos depois, no alto de um morro, acompanhamos
a explosão de um gasoduto, que causou um clarão no céu. Sem exageros, aquilo
parecia um cenário de guerra. Tentando rapidamente me recompor, comecei a gravar
as primeiras imagens.
Apesar do impacto das situações que me deram boas-vindas, só no dia seguinte,
com a claridade, pude dimensionar as proporções daquele desastre. Como na noite
anterior, o movimento se repetia. As pessoas circulavam por toda parte. Entravam e
saíam de suas casas tentando salvar seus pertences. As cenas se repetiram por dias.
Em pouco tempo, tivemos certeza de que a situação era mesmo dramática. A ajuda
veio da força aérea, dos governos e de voluntários. Soldados do Exército, bombeiros,
policiais, médicos, enfermeiros e dezenas de aparatos, como aviões, tanques de
guerra, carros anfíbios, cães, botes e instrumentos de resgate. Tudo o que se pudesse
imaginar, em termos de assistência, estava lá.
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Trabalhamos apenas com hora para acordar. Não era possível saber quando
iríamos dormir, comer ou tomar banho. O cansaço veio, os dias eram exaustivos e
o estresse começou a se manifestar. A carga emocional negativa era tamanha que
o envolvimento foi inevitável. Em um momento de desespero, fui obrigado a fazer
uma pausa no meu trabalho. Sentei, coincidentemente em frente à porta de uma
igreja, e chorei. Depois de alguns minutos, o colega e repórter Ricardo Von Dorff
se aproximou e, com muito respeito, perguntou-me se eu queria desistir de tudo e
voltar à emissora. Respondi que não, porque éramos uma das poucas equipes de
TV que estava na região e deveríamos ir até o fim. Tínhamos um compromisso
com a sociedade. Muitas pessoas tinham parentes naquelas cidades e aguardavam
desesperadamente por notícias. Outros trabalhavam, visitavam ou conheciam a região.
Alguns nunca tinham ouvido falar. Mas para todos nós, éramos, de alguma forma,
fonte de notícias e informações.
A dramaticidade nos depoimentos das pessoas não tinha fim. Um entrevistado
dizia ter perdido a casa. Outro contava que perdeu a casa e o terreno. E um terceiro
desabafava que não lhe restava nem casa, nem terreno e nem familiares. A cada
morador que encontrávamos, conhecíamos uma história impressionante e marcante
de vidas que foram interrompidas pelas enchentes de novembro.
Embora não tenhamos ajudado diretamente, a nossa mensagem chegou ao Brasil
inteiro. Tudo foi acompanhado e registrado por nós: as proporções do desastre; o
sofrimento das pessoas; as casas destruídas; o trabalho árduo de resgate de vítimas;
a chegada aos pontos de difícil acesso para retirada dos sobreviventes; a realidade
dos abrigos temporários; a solidariedade do Brasil, que enviou toneladas de doações;
a garra e força das pessoas que, sem nenhuma referência inicial, pensavam em
recomeçar suas vidas. Era um recomeço.
Com a situação quase normalizada, pudemos voltar pra casa. Para mim, o alívio
foi imenso. Estar de volta foi a minha recompensa. Desde então, tenho colocado em
prática as lições que aprendi com essa experiência profissional difícil, mas importante,
não só para a minha carreira, mas para a minha vida.
Por Feliphe Abreu
Repórter cinematográfico
Núcleo Globo SC - RBS TV, Florianópolis
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Um desafio na carreira
Núcleo Globo – Santa Catarina
T
inha sido um semestre chuvoso. Há muito tempo chovia e parava, até que,
numa sexta-feira, a chuva veio mais intensa.
Na redação da RBSTV, sou produtora e editora nacional, e faço o horário
noturno. Naquele dia, fiquei com minhas equipes na rua até de madrugada cobrindo
os efeitos da chuva, cuja água já invadia ruas e casas em Florianópolis e região
metropolitana. Mandei cenas para os telejornais da Rede Globo e Globo News, além
de uma matéria para o Jornal do Almoço.
O pior ainda estava por vir. Ao contrário das outras vezes em que a chuva vinha
e ia embora, sem maiores consequências, desta vez, ela ia mudar para sempre a vida
de milhares de pessoas. Por volta de 3 horas da tarde de sábado, o chefe de Redação,
Anselmo Prada, ligou para minha casa e disse para vir à TV, pois a situação era grave.
Senti um frio na espinha. Este não seria mais um desafio em minha vida profissional.
Seria, sim, um dos mais difíceis desafios da minha carreira.
A chuva não dava trégua. A força das águas isolava comunidades e provocava
deslizamentos nas rodovias. Na noite de domingo para segunda, Florianópolis estava
inundada e os números da tragédia começavam a triplicar. As 10 mortes de ontem,
eram 40 hoje, 70 amanhã e assim por diante. Danos materiais, então, perdi a conta
de quantos. Bastava abrir uma janela que um desmoronamento poderia acontecer a
qualquer hora do dia. Uma moradora inclusive gravou um destes flagrantes.
A força da água não destruía apenas uma casa. Levava ruas inteiras, bairros
inteiros. Nas regiões mais atingidas, nossas equipes eram incansáveis ao mostrar a
dimensão da tragédia. Na redação, minha missão era transmitir os efeitos da destruição,
respeitando a dor de quem já tinha perdido tudo.
Cada relato de pessoa que tinha perdido seus filhos, seus pais, sua família,
meu coração parava e, em casa, eram noites sem dormir. Numa quinta-feira, caí
num choro compulsivo na redação. Doações ajudaram famílias a substituir bens
materiais perdidos na enxurrada. Mas e a impotência diante da morte? Diante da
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força da natureza? Todos os dias era um exercício sobre-humano ouvir os relatos
dos sobreviventes buscando de abrigo em abrigo familiares na esperança de que
ainda estivessem vivos. Participei de outras coberturas de catástrofes ambientais, mas nenhuma
comparada a esta. As imagens eram devastadoras. Uma que me marcou foi a de uma
equipe de resgate trazendo num saco plástico o corpo frágil de uma criança morta.
Exemplos de solidariedade me emocionaram e renovaram minha fé nas
pessoas. Pessoas dividindo suas casas com desabrigados ou aquela família que, ao
encontrar num casaco doado R$ 20 mil, devolveu o dinheiro. Eles tinham perdido
tudo e estavam morando numa casa emprestada por um vizinho e, mesmo assim,
preferiram a honestidade e devolveram o dinheiro.
Quando a chuva passou, mais uma vez, o povo me deu mais uma lição de vida
e de fibra. Reergueram-se e foram limpar o que restou de suas casas. Mais uma vez, a
solidariedade falou mais forte. Se, durante a chuva, brasileiros mandaram donativos,
agora, eram os profissionais liberais, engenheiros, arquitetos, médicos e pedreiros
que vinham de todos os lugares ajudar na limpeza e reconstrução.
Enfim, depois desta cobertura cresci como profissional e amadureci como
pessoa. Por Graça Vasques
Produtora e editora
Núcleo Globo SC – RBSTV, Florianópolis
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Emoção inevitável
Núcleo Globo – Santa Catarina
F
ui chamado para trabalhar na cobertura da tragédia num dia de folga.
Era uma manhã chuvosa de domingo. Foram praticamente duas semanas dentro
da redação, com algumas curtas noites de sono. Estava morando em Santa Catarina
há apenas seis meses. Mudei para cá para trabalhar na RBS TV Florianópolis e, como
vim de uma região do país onde o sol predomina na maior parte do ano - o Nordeste,
de início não assimilei as proporções que aquela chuva intensa poderia tomar.
Cada matéria que ia ao ar, cada telefonema às equipes que estavam nos
locais mais atingidos pelas enxurradas e cada boletim divulgado pela Defesa Civil,
deixavam-me perplexo. Confesso que me assustei com a rapidez que cresciam os
números de desabrigados, desalojados e cidades atingidas pela chuva. Quando
aconteceram os primeiros deslizamentos de terra e, consequentemente, as primeiras
mortes, cheguei a acreditar que o problema poderia estar terminando. Imaginava que
pior do que estava não poderia ficar. Mas, a cada momento, aparecia um novo fato
que agravava ainda mais a situação.
As fitas que chegavam da rua à redação com material para ser editado eram um
desafio. Pelo curto espaço de tempo para entregar a matéria pronta e porque, para
concluir minha tarefa de editor, precisava assistir as aquelas cenas de horror e ouvir
depoimentos fortes de pessoas que viram tudo o que possuíam ir por água abaixo.
A emoção era inevitável.
Foram muitos os momentos em que as lágrimas vieram aos meus olhos, seja
na ilha de edição, quando fazia o meu trabalho, seja quando assistia aos telejornais.
Há cenas que ficaram marcadas para sempre na minha mente. Com certeza, jamais
conseguirei esquecê-las. Entre tantas, não posso deixar de citar algumas que mais me
tocaram, como a história de um homem, na região do Morro do Baú, que construiu
o caixão da própria filha e esperava o corpo aparecer entre escombros e lama para
fazer o enterro.
A imagem captada pelo celular de um cinegrafista amador, em Blumenau, que
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mostrava o exato momento em que uma casa inteira veio abaixo foi, para mim, uma
das mais fortes de toda tragédia. Os gritos desesperados dos vizinhos que assistiam
à cena voltam agora nitidamente aos meus ouvidos. Mas, em meio a tudo isso,
acontecimentos que posso chamar de recompensas.
As doações que chegavam de toda parte do Brasil eram fruto de um trabalho de
divulgação, do qual eu também fazia parte. Ajudar, de alguma maneira, as vítimas
não teve preço. Outra situação recompensadora foi o privilégio de ver e divulgar
atitudes de pessoas que, mesmo passando por toda aquela situação, davam exemplos
de solidariedade, resignação e força. Um pouco de alívio para alguém que, como
eu, nunca tinha passado por momento parecido. Cito a história de um empresário
que, mesmo tendo perdido sua fábrica, foi a um a abrigo pagar o décimo terceiro
salário dos seus funcionários. O caso de um homem que devolveu o dinheiro que
encontrou no bolso de um casaco que lhe foi doado. O relato de um senhor que ao ser
perguntado sobre o que tinha lhe restado disse com um largo sorriso: “o meu cachorro
e o meu gato de estimação”.
Fatos como esses me fizeram deixar o cansaço e a tristeza de lado e seguir
adiante sem dar importância às coisas pequenas e mesquinhas que também marcaram
o período. Prefiro pensar que as pessoas que roubaram donativos para vendê-los e
vândalos que se aproveitaram das inundações para saquear um supermercado em
Itajaí já receberam o perdão de corações generosos que enfrentaram com dignidade
o desastre e que, a cada dia, ajudam a reconstruir uma Santa Catarina melhor.
Por José Carlos Carmo
Editor
Núcleo Globo SC – RBSTV, Florianópolis
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Tragédia sem precedentes
Núcleo Globo – Santa Catarina
30 de novembro de 2008
Um homem de olhar perdido espera sentado sobre dois caixotes de madeira,
no pé do Morro do Baú, em Ilhota.
Kíria Meurer: o que o senhor está fazendo aqui?
Zaíro Zaber: estou esperando que encontrem os corpos da minha mulher e
do meu filho. Não há como comprar caixões no meio deste caos, então eu mesmo
construí estes dois aqui para que eles não fiquem no barro. Não vou conseguir
andar de cabeça erguida enquanto não souber onde eles estão.
De tudo que vi naqueles dias, esta é uma cena que não consigo esquecer.
22 de novembro de 2008
Sou repórter do Núcleo da Rede Globo, na RBS TV de Santa Catarina, há 9
anos. A maior e mais importante cobertura que fiz durante minha carreira começou
no dia 22 de novembro de 2008. Era um sábado e estava de plantão.
Naquele dia, o Jornal Nacional exibiu a primeira reportagem sobre a enchente
e não imaginava que começava ali uma tragédia sem precedentes. Chovia sem parar
há quase dois meses em Santa Catarina. Naquele fim de semana, choveu, só em
Florianópolis, o equivalente a um mês inteiro. A chuva que caiu no Vale do Itajaí foi
o equivalente a quatro meses. No sábado, mostramos pontos de alagamentos, quedas
de muros e postes em diversas cidades do Estado, inclusive na Ilha. Demos a notícia
da primeira vida perdida por causa da chuva: uma menina que morreu soterrada em
Blumenau.
Eram as primeiras informações do maior desastre natural da história de Santa
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Catarina: uma enchente onde as pessoas morreram soterradas. Foram 135 vítimas
que perderam a vida nos dias seguintes por causa dos deslizamentos de terra.
Domingo, no Fantástico, eu já falava em três mil desabrigados. Os números
não paravam de crescer. Nos dias que viriam, a sensação era de que aquela história
não teria fim. Novas vítimas. Novos soterramentos. Casas desabando. A terra que
se desmanchava e descia feito “sorvete derretido”, no Morro do Baú, em Ilhota. Em
uma das minhas primeiras reportagens, fui atrás de uma explicação para o desastre.
Lembro da entrevista com o major Márcio Alves, coordenador da Defesa Civil, que
disse: “Áreas que não eram nem consideradas pelos geólogos de risco desmancharam
pela quantidade de chuva”.
Difícil acreditar no que estava acontecendo. Falei com o geólogo João Carlos
Rocha, que disse: “Com o peso da água praticamente dobrando o peso da camada
do solo, ele desce por gravidade, levando tudo que encontra pela frente: prédios,
árvores”!
Naquela semana, fui para a região do Vale do Itajaí e conheci o cenário de uma
catástrofe. A primeira vez que sobrevoei a região do Morro do Baú fiquei atônita.
Não encontrava palavras para descrever. Como repórter de televisão, sabia que o
“olho” da câmera não conseguiria mostrar o que estávamos vendo: um complexo
de morros recortados por imensas rachaduras que engoliram casas, pessoas, vidas.
Montanhas que desceram em forma de avalanche e mudaram a geografia do lugar.
Foi através dos olhos de um pai de família que senti, pela primeira vez, a
possibilidade de dar dimensão àquela tragédia. Em televisão, enfrentamos um desafio:
o tempo. Temos um, dois, em casos excepcionais três minutos, para contar uma
história. Naquele dia, o depoimento de André Oliveira ocuparia um tempo enorme
do Jornal Nacional. Lembro da conversa que tive com a editora Ângela Garambone
e ela concordou comigo: André entraria falando tudo, praticamente sem cortes.
Reproduzo aqui parte desta história dramática:
“No momento em que eu vi aquela tragédia, eu não acreditei. Subi em cima
da primeira avalanche que deu, que derrubou tudo, eu escutei o chorinho da minha
menina e fui tentar salvá-la, mas não consegui”.
Vieram mais dois desmoronamentos e seis pessoas da família dele foram
soterradas.
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“Eu queria que Deus me desse pelo menos a oportunidade de salvar um para
ficar de consolo. A minha esposa estava grávida, já tinha planos para o filhinho que
ia vir, se fosse menina já tinha até nome, se fosse menino já tinha até nome. Eles
encontraram a minha mulher segurando a minha menina”. Meses depois, o capitão da Polícia Militar Ambiental de Santa Catarina,
Geraldo Rodrigues de Menezes, contou a história de uma pessoa de São Paulo que
viu a reportagem e, logo depois, seguiu de carro até Blumenau para dar um abraço
em André. O capitão gravou a cena do encontro e pude ver este abraço. Prova de
que nosso trabalho como jornalistas vale a pena. Naqueles dias de tanta tristeza,
conseguimos despertar a compaixão de milhares de brasileiros. Muitos gestos de
solidariedade e montanhas de doações que chegaram de todos os cantos do país.
Diante daquela mobilização gigante, vi que temos uma capacidade enorme de mudar,
de melhorar a realidade que nos cerca. Podemos fazer muito mais do que fazemos
no nosso dia-a-dia. Esta tragédia mostrou que nossa capacidade de ajudar os outros
é maior do que imaginamos.
Por vezes, tive o privilégio de contar as histórias dos voluntários e também de
gente que demonstrou uma força imensa para enfrentar a perda. Gente que encontrou
um motivo para não desistir, como o aposentado Floriano. Falei com ele num abrigo
de Blumenau e, quando perguntei se tinha perdido tudo, seu Floriano me disse:
- não minha filha, eu não perdi tudo, eu ainda tenho um cachorro e um gato
para cuidar.
Por Kiria Meurer
Repórter
Núcleo Globo SC – RBSTV, Florianópolis
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Enxurrada trancada no peito
Núcleo Globo – Santa Catarina
A
barreira da Polícia Militar Ambiental impedia o acesso dos moradores ao
Braço do Baú, a maior das comunidades do Morro do Baú, em Ilhota.
Considerada zona vermelha, área de risco, sujeita a novos desmoronamentos. Paradas
no bloqueio, as pessoas pediam passagem. Queriam ver suas casas, salvar seus
pertences, iniciar a reconstrução do pouco que ficara de pé. Mas ainda chovia, muita
água descia do vale e o terreno era traiçoeiro. Na barreira, os policiais se esforçavam
para controlar a dor, a ansiedade e a frustração das vítimas da catástrofe.
Emocionado, um major da Polícia Ambiental me relatou que, numa exceção,
havia cedido aos apelos insistentes de um senhor de oitenta anos. O velhinho implorara
para resgatar algo muito importante nos destroços de sua casa. Acompanhado do
major, depois de algum tempo, o idoso emergiu com um carnê de prestações de uma
motocicleta.
-Este senhor havia perdido tudo. Não queria perder sua dignidade. Na cabeça
dele, atrasar o pagamento não era decente, disse-me o major.
Ingressamos na zona vermelha do Braço do Baú com o consentimento e a
escolta da Polícia Ambiental. Como repórter da RBS TV, cobri desastres climáticos
como enchentes e o furacão Catarina. Mas aquilo que vi na localidade do Mata
Pasto era sem par. A natureza, em sua fúria destrutiva, havia alterado completamente
a paisagem. Dos dois lados do vale, as encostas vieram abaixo. Uma quantidade
incalculável de lama, pedras e árvores desceu veloz dos morros e soterrou tudo
o que havia no caminho. Neste cenário, encontrei seu Jorge Raulino. Ele fitava a
montanha de pedras que cobria o que fora seu galpão de marcenaria. Sua casa também
desaparecera. Seu Jorge começou a chorar compulsivamente. Levei um tempo até
compreender que as lágrimas não eram por suas perdas materiais.
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Quando o mundo desabou na noite do dia 23 de novembro de 2008, seu Jorge
enfrentou um verdadeiro teste de sobrevivência. Por dramáticos instantes – com a
casa em colapso e em meio à escuridão – ele precisou de todas as forças para salvar
a mulher, os dois filhos e a mãe. Naqueles momentos de desespero e de completo
desamparo, seu Jorge pensou em soltar a mão de sua mãe, uma senhora com mais
de oitenta anos, obesa e dificuldade de locomoção. Pensou em deixar para trás a
mãe para salvar os filhos. Agora, havia entendido a razão do choro descontrolado de
seu Jorge. Chorava por culpa. Por uma injusta, mas irremovível sensação de culpa.
-Qual filho pensa em abandonar a própria mãe? Que tipo de homem sou eu
que pensou em deixar a mãe morrer?
O desabafo de seu Jorge me deixou engasgado. Tentei consolá-lo. Disse que
qualquer pessoa, no lugar dele, teria a mesma dúvida. E que, afinal, ele não desistiu
da mãe e salvou a todos. Tudo em vão. Católico fervoroso, ele não conseguia se
perdoar. Talvez o tempo, só o tempo, lhe traga paz de espírito.
Passei dezessete dias na cobertura da tragédia que assolou o Vale do Itajaí. Estive
em Blumenau, Itajaí e no Morro do Baú, em Ilhota, na companhia do cinegrafista
Feliphe Abreu e do motorista e auxiliar Geovânio Wollinger. Um trabalho físico e
mental extenuante. Por muitas vezes, marejei os olhos e tive a voz embargada diante
da amplitude da destruição e da dor imensurável pelas vidas perdidas.
Reportar com precisão e clareza, sem recorrer à emoção rasteira, dando voz às
vítimas, foi nosso desafio. Lá pelas tantas, estava realmente cansado. Um cansaço
de testemunhar tanto sofrimento e me sentir impotente. Cheguei a duvidar de
nossa utilidade. Por e-mail, revelei essa angústia a minha chefe, Brígida Poli, que
coordenava a cobertura em Florianópolis. A resposta dela foi um sopro de ânimo.
Ela sabia que, por uma questão de tempo, eu não tinha como acompanhar a cobertura
pela TV. Nem as reportagens que estava fazendo, nem as matérias realizadas por
outras equipes. Não enxergava a floresta, só a árvore. No meu caso, a maior parte
do tempo, o Morro do Baú.
No e-mail de resposta e em uma ligação, Brígida me fez ver que o resultado
do nosso trabalho era uma imensa onda de solidariedade que mobilizara o Brasil.
Toneladas de donativos chegavam todos os dias. Milhares de pessoas se apresentavam
como voluntárias. Acordei com o espírito renovado para mais um dia de trabalho.
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Este foi o papel da imprensa na tragédia. Informar bem. Bem informado, o povo
brasileiro arregaçou as mangas e tratou de ajudar.
Depois da catástrofe, voltei outras três vezes ao Morro do Baú. Percorri de carro
todo o complexo. Ainda é difícil acreditar como montanhas que pareciam tão sólidas
derreteram como se fossem sorvete ao sol. A paisagem continua desoladora. Famílias
voltaram e recomeçaram suas vidas. Continuam precisando de apoio e recursos. O
papel da imprensa, agora, é não deixá-las esquecidas. Cobrar das autoridades a ajuda
que elas tanto necessitam.
Não posso, neste relato, deixar de testemunhar o esforço incansável e
destemido daqueles que trabalharam, por terra e pelo ar, no resgate às vítimas da
tragédia. Primeiro, priorizando o socorro às vidas, a remoção de milhares das áreas
de risco. Depois, na busca dos corpos e na distribuição dos suprimentos e remédios
às famílias desabrigadas. Envolvidos em missões complexas e arriscadas, por muitas
vezes, tiveram a generosidade de nos guiar aos locais mais remotos. Também nos
embarcaram em voos para que nossas câmeras pudessem dimensionar a escala da
tragédia e buscar os depoimentos dos sobreviventes. A todos vocês, muito obrigado.
Voltei para casa, em Florianópolis, dezessete dias depois. Abracei minha mulher
e, exausto, dormi. No dia seguinte, chorei. Tinha uma enxurrada trancada no peito.
Por Ricardo Von Dorff
Repórter
Núcleo Globo SC - RBS TV, Florianópolis
100
Sempre alerta
Rede de Notícias Acaert – RNA/SC
D
esde julho de 2007, a RNA – Rede de Notícias Acaert produz conteúdo
jornalístico para as emissoras de rádio, associadas à entidade. Diariamente,
são disponibilizadas matérias factuais que valorizam a programação jornalística
regional. O material é fornecido por meio do site da Rede. As emissoras de rádio
têm seu login e senha para fazer downloads. Desta forma, é possível saber quantas
emissoras aproveitaram os boletins.
Como não se trata ainda de um serviço ao vivo, nossa preocupação é veicular,
o mais rápido possível, matérias factuais, com um plantão permanente da equipe. No
caso específico das enchentes do final do ano de 2008, a primeira matéria produzida
foi no dia 13 de novembro, portanto, nove dias antes da tragédia. “Chuva não para
em SC. Defesa Civil registra problemas e continua em alerta”. Era o prenúncio do
que aconteceria no Estado. A partir daí, foram produzidas 90 matérias com um total
de quatro mil downloads.
Naquele final de semana, o plantão era do coordenador da RNA, jornalista
diplomado Marco Aurélio Gomes:
No dia 22 de novembro, um sábado, a chuva não parava. Não conseguia dormir,
preocupado com a situação no Estado. Quando soube pela internet que o nível do
Rio Itajaí-açú subia, não tive dúvidas. Troquei de roupa o mais rápido possível e
fui para a redação da RNA, que fica no centro da Capital.
A primeira matéria foi colocada no site à 1h30 de domingo, dia 23, com o
número de desabrigados, desalojados e vítimas fatais. Minha maior angústia era saber
que a maioria das emissoras de rádio estava transmitindo sua programação normal
da madrugada, geralmente, musical. Sabia que poucas estavam ao vivo. Isso não
impediu que eu continuasse a apurar os fatos. No boletim das 7h40, anunciávamos que
várias ruas de Blumenau estavam inundadas e parte da cidade sem energia elétrica.
102
Depois disso, seguiram as manchetes: Acafe cancela vestibular. Prefeito de
Blumenau pode decretar estado de calamidade pública. Suspensas as competições do
JASC. Enchente em Santa Catarina mobiliza outros estados. Forças Armadas ajudam
no atendimento aos desabrigados. Governo do Estado pede ajuda aos estados vizinhos
e ao presidente Lula. Vinte pessoas já morreram, a maioria vítima de soterramento.
Quatro municípios isolados: Rio do Cedros, Pomerode, Itapoá e Benedito Novo.
Confesso que foi o domingo mais longo da minha vida. O difícil, numa situação
como essa, é obter e confirmar as informações por vários objetivos. Primeiro, que as
dimensões da tragédia não podem ser medidas rapidamente, o que agrava a ansiedade
de qualquer repórter em querer dar a notícia. Comunicação interrompida, municípios
isolados e falta de pessoas treinadas nas prefeituras para diagnosticar o tamanho do
problema foram dificuldades enfrentadas, principalmente, pela Defesa Civil para
construir um quadro real da situação.
Nestas circunstâncias, a paciência na apuração dos dados é elemento
fundamental da reportagem. Entendo que uma informação apressada atrapalha o
trabalho de todos que estão no meio de uma tragédia. Sem dúvida, o meio rádio
sempre teve um papel fundamental nessas horas, sendo um inestimável prestador
de serviço.
Lembro que, na ocasião da enchente de 2008, tentei contato com as emissoras
locais. Muitas foram atingidas pelas águas. As rádios Atlântida FM e FURB não
saíram do ar. Com o transmissor atingido, a Rádio Clube mandou sua programação
via internet. Tenho a convicção que o desempenho responsável e profissional dos
veículos de comunicação catarinenses foi decisivo pela imensa repercussão solidária
que se alastrou por todo o país, tirando algumas exceções, como a entrada cômica da
apresentadora Ana Maria Braga, vestida com roupa camuflada do Exército e óculos
escuros de grife, direto da margem do rio.
Para mim, o grande desafio do jornalista é “segurar” a dramatização de um
cenário catastrófico. Na ansiedade de transmitir o que está vendo, é perfeitamente
possível cair na tentação de aumentar ainda mais o quadro da tragédia. Apesar dos
acontecimentos, cabeça fria e responsabilidade não fazem mal a ninguém. Foi desta
forma que a RNA se portou durante toda a cobertura dos fatos. Nosso primeiro objetivo
foi se tornar um elemento prestador de utilidade pública por meio das emissoras da
Rede. Acredito que conseguimos alcançar o objetivo.
Com tanta informação que recebíamos, foi necessário utilizar o site da Acaert
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para as atualizações. Precisamos registrar o trabalho de atendimento à imprensa do
Governo do Estado, que montou uma estrutura na Defesa Civil, para que pudéssemos
realizar nosso trabalho. Méritos também dos majores Márcio e Emerson, que dividiam
seu tempo atendendo aos municípios, à imprensa e administrando egos de pessoas
que, lamentavelmente, pretendiam tirar proveito da situação. Trabalho impecável da
colega Soledad Urrutia que deixou as férias para mergulhar de cabeça no trabalho.
A sensação que ficou é que todos nós corríamos contra o tempo. Ao mesmo
tempo em que lutávamos contra o relógio para dar a notícia precisa e a informação
que salva, torcíamos para que a chuva desse uma trégua, para que as pessoas atingidas
fossem atendidas e que as medidas emergenciais pudessem chegar a tempo. Lembro
que passamos 15 dias em função da cobertura das enchentes. Engraçado é como
as condições humanas se revelam na hora da dor. Impossível ficar indiferente à
tragédia. Na equipe, a jornalista diplomata, repórter Patrícia Gomes revela o que
sentiu durante a cobertura:
Com o passar dos dias, a chuva não cessava e cada vez mais a tragédia se
agigantava em números: casas indo ao chão, milhares de desabrigados, mortes
- muitas mortes - a dor das famílias catarinenses, entrevistas com prefeitos de
municípios atingidos, o acompanhamento diário da catástrofe feito diretamente da
sede da Defesa Civil em Florianópolis. A sensação de impotência e a angústia por
não saber quanto tempo mais seríamos submetidos a essa situação de sofrimento,
nos traz um sentimento aniquilante. Não há como não se envolver emocionalmente
durante a cobertura de uma catástrofe como essa. O coração doía e não aguentava
mais tanta desgraça. Fiquei psicologicamente abalada, como várias vezes comentei
aqui na redação da RNA.
A repórter ainda destaca o trabalho que acompanhou da equipe da Defesa Civil:
Organização, comprometimento e muita seriedade. Impressionante como eles
lidam com uma situação de desastre. A forma de atuação da Defesa Civil catarinense
chegou a ser elogiada, durante uma entrevista que fiz com o tenente-coronel da
Defesa Civil do Distrito Federal, Reginaldo Souza, que trouxe uma equipe do DF
para auxiliar Santa Catarina, assim como tantas outras equipes vieram nos prestar
socorro.
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A experiência conta muito no trabalho de cobertura tão grande. O coordenador
de produção da RNA, radialista Silvio Loddi, conta sua impressão da tragédia:
Em eventos desta natureza é que o rádio mostra a efetiva força que tem. Pelas
características peculiares de sua portabilidade, o rádio, na maioria das vezes, é o
único elo que liga as fontes de informação e as pessoas envolvidas na tragédia –
as que mais necessitam se comunicar. Trabalhar num projeto como o da RNA, que
produz conteúdos exclusivamente para emissoras de rádio, aumenta ainda mais
nossa responsabilidade. Uma das minhas reportagens sobre a tragédia foi no final
da tarde do sábado, dia 22 de novembro. Estava de plantão e a RNA foi convocada
para uma coletiva de imprensa no Centro Administrativo do Governo do Estado.
Após uma longa reunião com secretários, diretores de estatais e comandantes
militares, o governador Luiz Henrique da Silveira decide decretar situação de
emergência. As perguntas dos jornalistas se concentravam nas ações administrativas
e nos recursos que o chefe do governo catarinense iria buscar em Brasília no dia
seguinte.
Nossa intervenção teve o foco do rádio. “Qual a recomendação que o governador
faz para a população atingida?” E Luiz Henrique disse: “Ah, isso é muito importante.
É preciso que você que está me ouvindo agora, se possível, fique dentro da sua casa.
Não deixe as crianças circularem pelas áreas alagadas, evitando a contaminação e
picadas de animais peçonhentos. As águas vão baixar e, em breve, chegaremos com
o socorro”. O rádio cumpria sua missão.
Por Marco Aurélio Gomes
Coordenador
Rede de Notícias Acaert – RNA, Florianópolis
105
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Dor e indignação
Rede Independente de Comunicação – Ric Record
E
ram quase 5 horas da manhã do dia 22 de novembro de 2008, um sábado,
quando meu celular tocou. Chovia no Vale do Itajaí desde o final de agosto. Não
me lembro quem estava do outro lado da linha, mas falava de uma explosão na BR
470, entre Blumenau e Gaspar. Sem vítimas. Preguiçoso e de plantão na TV no final
de semana que começava, virei para o lado na cama e cochilei mais alguns minutos.
Em seguida, recebi a ligação do colega Caio Santos, repórter cinematográfico da Ric
Record Blumenau, que acompanhava a explosão de uma tubulação da SCGás, na
rodovia federal, ocorrida menos de duas horas antes. Relatou a gravidade da situação.
Aqueles dois telefonemas, antes mesmo de amanhecer, foram o prenúncio dos
dias que estavam por vir. A escala de plantão me colocava para fechar o Jornal Meio
Dia daquele sábado (carro chefe da Ric Record Blumenau, líder de audiência na faixa
horária do meio-dia na região). Como sempre acontece nos finais de semana de plantão,
jornalistas torcem para que nada aconteça para poder curtir com a família, amigos ou
com quem quer que seja. Mas aquele não era um final de semana normal. Foi quando
começou a maior catástrofe climática de Santa Catarina.
O plantão preguiçoso deu lugar à preocupação. Chovia muito e os problemas
começavam a pipocar. A escala reduzida do final de semana, como em todos os
veículos de imprensa, começava a não dar conta da demanda de informações. Mesmo
assim, fizemos um jornal com bastante conteúdo naquele sábado, sem nunca imaginar
a proporção do que estava por vir. Os alertas foram dados, apesar das autoridades
buscarem tranquilizar a população. Não as condeno. Hoje percebo que não havia como
perceber uma tragédia desta proporção, mesmo com toda a tecnologia. Quem imaginaria
que morros inteiros viriam abaixo?
A água invadia várias ruas da cidade, entre elas a Rua Das Missões, onde está
localizada a Ric Record, em Blumenau. Terminado o Jornal Meio Dia, discutíamos
o que faríamos. O diretor regional Roberto Bertolin, o âncora Alexandre José e eu,
109
coordenador de jornalismo. A emissora não tem telejornal à noite no sábado e, em
tese, só teríamos jornalismo na segunda-feira no começo da manhã, no SC NO AR.
Percebendo a gravidade da situação climática, a direção da Ric Record decide exibir um
telejornal especial na faixa horária das 19 horas. Era o momento de tentar arregimentar
a equipe para as notícias que viriam por aí, mas as dificuldades eram muitas em meio
ao caos que começava a se instaurar na cidade.
O grupo estava reduzido, disperso e, para piorar, os colegas Emerson Luis e Caio
Santos partiram no início da tarde para a cobertura dos Jogos Abertos, que começaria
naquele final de semana em Timbó, Indaial e Pomerode. Ao entrar em contato com
os colegas que estavam de stand by (na reserva, jargão para explicar o profissional
que não trabalha naquele dia, mas em caso de um fato excepcional é chamado.) e de
folga, descobrimos que muitos viviam dramas particulares ou estavam empenhados
em ajudar familiares, amigos e desconhecidos atingidos pela força da água. Alguns
colegas estavam ilhados. Restava, naquele começo de tragédia, poucos profissionais
para começar a cobertura de um desastre climático de proporção nunca vista antes.
O telefone da emissora começou a tocar mais seguidamente naquele sábado
à tarde. De plantão, o vigilante Sérgio Veras atendia as ligações e repassava para
o jornalismo. Eram relatos de problemas em diferentes bairros da região e cidades
vizinhas. A BR 470 estava interrompida, por conta da explosão do gasoduto, no trecho
de Gaspar. Os dramas aumentavam e, com eles, as notícias. Cabia a nós, jornalistas,
buscá-las e passar às pessoas.
O plantão tranquilo ficou na saudade. Com a equipe desfalcada, restou para mim
a tarefa de verificar de perto o que as pessoas não paravam de dizer ao telefone para
Sérgio. Com o cinegrafista Demian Lenine, fui para a região da Rua Pedro Krauss
Senior. O cenário era desolador. Era só o primeiro dia. Muita coisa estava por vir e não
demorou muito. Olhando os estragos na região, uma das mais carentes e violentas da
cidade, veio a informação da primeira morte registrada na cidade, a poucos quilômetros
de onde estávamos. Eu e Demian saímos voando.
Ao chegar numa transversal da Rua Araranguá, o clima era de dor e indignação.
Assim, fomos recebidos pelos moradores da comunidade, carente de infraestrutura
básica, mas localizada próximo à região central de Blumenau. Familiares, vizinhos
e curiosos haviam acabado de acompanhar a retirada do corpo da menina Luana, de
três anos, e olhavam os escombros da casa onde ela morava com a família. Enquanto
110
Demian registrava tudo, eu não acreditava no que via e buscava informações com
moradores e curiosos. Estava impressionado, mas era apenas o começo.
Às 19 horas, fizemos um bom telejornal, estadualizado e com participação ao
vivo das praças. Contamos como foi o sábado de muita chuva, falamos da explosão
do gasoduto e da morte da pequena Luana. A palavra de ordem das autoridades era
ainda tranquilidade. O rio Itajaí-açu, eterno vilão das tragédias em Blumenau, estava
aumentando de nível, mas longe de provocar uma enchente. Não imaginávamos que
a tragédia viria dos morros e encostas da cidade. Fui para casa.
Pensei que talvez fosse hora de relaxar e aproveitar a folga que restava no final
de semana. Como de costume, a culinária seria o passatempo da noite de sábado. Nem
me lembro o cardápio daquela janta, mas recordo que terminamos a gastronomia sem
iluminação, assim como boa parte da cidade. A chuva insistia em cair, cada vez mais
ameaçadora. Barulhos ouvidos ao longe, mas era impossível imaginar que morros e
árvores começavam a vir abaixo. Hora de descansar o corpo cansado e tentar sonhar
com um domingo daqueles rotineiros, quando apenas a equipe de reportagem que estava
de plantão teria que cobrir os estragos causados por mais uma das tantas chuvas que
Blumenau está acostumada. Mas aquela era diferente, jamais vista. Sem saber ainda,
tentei dormir.
Na madrugada de domingo, novamente fui acordado por uma chamada inesperada.
Em vez de um telefonema, a campainha. O síndico do prédio onde moro com minha
esposa alertava para a necessidade de tirarmos os carros da garagem. A água do Ribeirão
da Velha, que divide o edifício e o Clube Vasto Verde, estava tomando conta do pátio.
Dezenas de homens e mulheres com cara de sono levavam os seus veículos para uma
rua lateral, mais alta. O clima era de apreensão. O medo só viria na noite seguinte.
Domingo pela manhã, não tinha jeito. Assim que acordei fui à emissora para
saber o que estava acontecendo, entender a dimensão dos estragos. Sem energia elétrica,
estava ilhado em casa e havia a possibilidade de ficar sem celular, porque a bateria
estava acabando, o que me deixaria ainda mais “desplugado”. Na rua onde moro, a
água barrenta atingia o térreo do bloco vizinho e chegava perto da nossa entrada. No
caminho do Bairro Velha a Ponta Aguda, sede da Ric Record, a confusão era grande,
por conta dos inúmeros alagamentos. Motoristas eram obrigados a fazer manobras
arriscadas e desconhecidas. Ruas inteiras estavam alagadas e famílias foram resgatadas
de suas casas.
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Na chegada à emissora, outro sinal. Para trafegar pela Rua das Missões, onde
estamos localizados, somente no sentido bairro-centro. A partir do nosso prédio, a
água tomava conta das duas pistas, um dos caminhos para se chegar à rodoviária. Os poucos e mesmos colegas que estavam na TV mostravam-se preocupados. O
telefone não parava com novas informações de tragédias. Desabrigados passavam a
ser contados às dezenas e tudo parecia fugir de controle.
Tentamos recrutar os colegas disponíveis, quem estava por perto e tinha
condições de chegar. Angélica Sattler e Roberta Koki juntaram-se a mim, a Alexandre
José, André Santos e Luis Deluca. A equipe escalada para cobrir os Jogos Abertos,
Emerson Luis e Caio Santos, já voltava de Timbó, revezando-se entre registrar as
tragédias que viam pelo caminho e se preocupar com familiares em Blumenau. O
diretor regional Roberto Bertolin e o vigilante Sérgio também estavam juntos, assim
como Henrique Zanotto. A Ric Record abriu espaço na programação nacional da rede e começou a
transmitir programação ao vivo para todo Estado. Por volta do meio-dia, oito mortes
já estavam confirmadas na cidade. A água ameaçava invadir a emissora e chegava
perto do gerador de energia. A situação ficava mais perigosa. No começo da tarde, o
governador Luiz Henrique estava na cidade, acompanhando os estragos e conhecendo
o QG montado na Prefeitura. Jornalisticamente, a palavra dele era importante e
conseguimos garantir a sua presença no nosso estúdio. Por volta das 15 horas, Luiz
Henrique entrou na sede com água pouco abaixo da canela. Em rede estadual, deu
sua visão sobre a tragédia que se desenhava.
Foi a última transmissão da emissora de Blumenau até a noite de terça-feira.
Naquele momento, depois da fala do governador, uma decisão drástica foi tomada.
Era preciso subir os equipamentos para o segundo andar, pois a água ameaçava entrar
pela lateral do prédio, muito próximo de onde está localizada a área operacional e de
jornalismo. Um mutirão foi feito para carregar computadores, câmeras, fitas, armários,
ilhas de edição, televisores, mesas de som e monitores. Numa das subidas, espatifeime no chão molhado com um monitor destes, que não quebrou, mas nunca voltou a
funcionar. Para piorar, fiquei com dor nas costas por alguns dias.
Final da tarde de domingo, era hora de voltar para casa. Minha esposa estava
comigo na TV e saímos de lá com água, agora sim, batendo nas canelas. Sabíamos
que não havia luz em casa e não tínhamos nem lanterna e nem vela. Impossível achar
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estabelecimento comercial aberto em meio ao caos. Como um dos únicos caminhos
possíveis para voltar para casa era o Morro Petrópolis, onde Priscila se criou, nós
paramos na casa de uma vizinha e conseguimos duas velas. O sistema de trânsito
não existia mais e era muito arriscado dirigir. A subida do morro foi uma aventura
perigosa, com muita água descendo. Para chegar em casa, foi preciso trafegar um
trecho grande da Rua João Pessoa em contramão, com água por todos os lados. As
ruas estavam alagadas e intransitáveis. Em frente ao nosso prédio, água no hall de
entrada. Deixamos o carro novamente na rua ao lado, mais alta.
Cansados e com medo, acompanhamos a noite na escuridão, com sons
muito fortes. Eram estrondos que ainda não sabíamos identificar: barulhos que
pareciam indicar árvores caindo e os ruídos das corredeiras que o ribeirão da Velha
proporcionava. Em um determinado momento da noite, ele parecia um rio volumoso,
tamanha a força. O Clube Vasto Verde, o pátio e a entrada do nosso prédio e a rua
eram uma coisa só, um grande e furioso rio. Para piorar, o estrondo de uma explosão
e labaredas ao longe. Era mais uma tubulação de gás que explodia, desta vez na
região do Belchior. Sem vítimas. O medo só aumentava.
Preocupada, minha esposa Priscila questionava o que fazer e falei que
deveríamos esperar o dia amanhecer. Nada poderia ser feito durante a madrugada.
Brinquei que o único risco que corríamos era o prédio cair, pois tínhamos estoque
de mantimentos para, pelo menos, uma semana, em caso de ficarmos ilhados se as
águas não baixarem. Fomos dormir, mas com olhos abertos. Os barulhos de coisas
vindo abaixo dominaram a madrugada escura.
Ao acordar na segunda-feira, vi que a água deu uma ligeira trégua em frente
ao meu prédio. Peguei o carro e fui para a emissora ver o que era possível fazer com
os equipamentos desmontados. No caminho, mais confuso ainda, as consequências
daqueles sons todos da madrugada. Árvores, placas, postes e morros caídos. Casas,
lojas, estabelecimentos e carros soterrados, barro por tudo. Pessoas desesperadas,
nervosas, desamparadas. Felizmente, a água não invadiu a emissora e, na manhã do dia 24, estava
menos ameaçadora. De forma absolutamente improvisada, começamos a remontar
minimamente a televisão para que ela voltasse a funcionar. Quem estava lá era escalado
para ir às ruas e mostrar a dimensão da tragédia que acontecia. As pautas estavam em
cada esquina. A cada minuto, novo relato de desmoronamento, de tragédia, de mortes.
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Muitos destes relatos não se concretizavam na mesma proporção, felizmente. Por outro
lado, muitas das histórias superavam o que se poderia esperar.
Alertei a coordenação de jornalismo da Ric Record, em Florianópolis, para a
dimensão e a precariedade que nos encontrávamos. Assim como em vários setores, pedi
socorro para reforçar as equipes de trabalho. Enquanto tentávamos nos dividir entre
a remontagem da emissora e a cobertura da tragédia, a ajuda a familiares, amigos e
vizinhos e os problemas individuais faziam parte da nossa rotina. Mais colaboradores
foram chegando. No horário do almoço, saímos eu e as colegas Angélica e Roberta
para encontrar alimentação a quem estava trabalhando. Lama, entulhos, móveis e muita
sujeira era o cenário das ruas. Pessoas com vassoura, mangueira e pás nas mãos. Muita
gente consternada pelas calçadas. Destruição por todos os lados.
Sem transporte coletivo, a cidade estava literalmente “fechada”. Com a maioria
dos funcionários “ilhados”, poucos estabelecimentos abriram as portas. Os que
abriram apresentavam longas filas. Conseguimos comprar alguns lanches em um posto
de combustível, perto da minha casa. Aproveitei para ver como estava a situação,
pois sem luz e telefone, minha esposa estava incomunicável. Ao chegar próximo de
onde moro, susto. Vizinhos carregavam mobílias e pertences. A orientação da Defesa
Civil era que evacuássemos o prédio. A boba brincadeira da noite anterior acabou
se revelando uma premonição.
A força da água comeu boa parte do terreno e, mais um pouco, atingiria um
dos alicerces do prédio. A chuva dava uma trégua e o ribeirão baixara bastante, o
que me deu certa tranquilidade. Era só não chover mais. Reservamos uma vaga do
Hotel Viena, do amigo Luciano Monteiro, que recebia dezenas de desabrigados, mas
decidimos esperar para ver a evolução das coisas e, no final das contas, acabamos
ficando no apartamento, depois que a energia elétrica foi restabelecida na região.
Desmontar uma emissora de televisão em situação de emergência foi fácil,
mas remontá-la em uma situação também de emergência era muito complicado.
Isto consumiu toda segunda-feira. O sinal da Ric Record, que os telespectadores de
Blumenau e região recebiam em suas casas, era de Florianópolis e não de Blumenau.
De forma muito precária, conseguimos fazer participações ao vivo nos telejornais
em rede estadual e assim passar informação do que estava acontecendo. Apesar
desta condição operacional, pelo menos quatro equipes de reportagem tentavam
dar conta do que vinha acontecendo nas ruas. Outras pessoas ficavam na redação
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recebendo, monitorando e repassando as informações que, naquele momento, eram
contraditórias, alarmantes e trágicas.
Conseguimos, finalmente, fazer o primeiro jornal ao vivo de Blumenau na
terça-feira (25) à noite, no espaço do Ric Notícias. Registramos mais de 50 mortes
na região. Entre tantas, teve a morte de uma senhora na Rua Martin Luther, a poucos
metros da Prefeitura, na região central de Blumenau, e a de uma família inteira em
Gaspar. Registramos também os primeiros resgates no Morro do Baú, a situação de
milhares de desabrigados e os donativos que começavam a chegar. Mostramos os
atendimentos médicos e a verdadeira Força-tarefa do Exército Brasileiro, que estava
sendo montada em Blumenau.
Aliás, aqui é importante fazer uma referência ao Exército Brasileiro. Se
o cenário e o clima eram de guerra, o trabalho dos militares foi fundamental na
defesa da vida, salvando dezenas delas por meio de helicópteros, carros anfíbios e,
principalmente, homens que arriscaram suas vidas em um terreno ameaçador para
salvar pessoas e fazer chegar alimentos e agasalhos a outras. O que eles fizeram foi
digno de orgulho e reconhecimento eterno por parte do povo blumenauense e do
Vale do Itajaí.
Os dias que se seguiram foram de mais trabalho ainda, com jornais de mais
duas horas de duração no horário do meio-dia, apresentado por Alexandre José.
Demoramos dois dias para conseguir nos reestruturar em termos de transmissão de
sinal de programação da região de Blumenau. Assim que começamos, fizemos uma
cobertura ampla, com muita informação, imagens e, principalmente, serviço. A partir
de quarta-feira (26), o Jornal Meio Dia, carro-chefe da programação local da Ric
Record, voltou a ser exibido regionalmente e prestou um importante serviço, com
mais de duas horas de duração. A chuva dava uma pausa, mas os relatos da tragédia
não. Havia muita informação desencontrada e não confirmada.
A mídia nacional despertou para a grandeza da tragédia de terça para quartafeira, quando as redes de TV nacionais mandaram seus principais profissionais para
cá. Em um primeiro momento, a cobertura ficou muito focada em Itajaí, por conta da
força das imagens da cidade embaixo d´água, da dificuldade de comunicação e de se
chegar a Blumenau. Os jornalistas William Bonner, Datena, Caco Barcellos, Brito Jr
e Roberto Cabrini passaram por aqui e presenciaram cenas de guerra, de desolação.
Tive a oportunidade de conhecer e dar suporte ao trabalho de Roberto Cabrini. 115
A colega Angélica Sattler virou o rosto da informação sobre a tragédia para todo
o país naqueles dias. Instalada no QG montado na Prefeitura para ajuda às vítimas,
ela entrou ao vivo para vários programas e telejornais nacionais da Rede Record,
assim como para afiliadas locais e ainda Record News. Em apenas um dia, foram 17
participações ao vivo em telejornais de todo o Brasil.
A falta de profissionais dos dois primeiros dias deu lugar à fartura. De tanto
recrutar gente e equipamentos, chegamos a ter cinco equipes pela manhã e outras cinco
à tarde. Colegas vieram de Florianópolis. Os que ficaram ilhados estavam de volta
e muitos foram contratados em caráter de emergência, principalmente cinegrafistas
e editores. Na redação da Ric, ainda improvisada, era cada vez maior o número de
colaboradores que eu nunca havia visto antes.
Ouviam-se histórias de “corpos sendo enterrados no fundo do terreno onde
moravam”, “de valas comuns”. O Morro do Baú, em Ilhota, “teria mais de uma
centena de vítimas fatais e elas seriam enterradas lá mesmo”. Aquele trágico caminhão
frigorífico, trazido para cá para receber os corpos que começavam a abarrotar o
IGP, antigo IML, piorava as histórias e mexia com o imaginário de uma população
apavorada. O medo dominava. Autoridades e imprensa se uniam em tentar acalmar
os moradores.
Quando ouvi que a ponte da “Moellman”, a mais conhecida de Blumenau,
que dá acesso ao centro, estava caindo, pensei por alguns segundos que era o fim.
Não recordo se foi na terça ou quarta-feira, acho que foi terça, mas imaginei o “fim
do mundo”, apesar de não acreditar muito nestas coisas. Foi rápido. Imediatamente
contatamos uma das tantas equipes que estavam nas ruas e veio a notícia. O que
cedeu foi uma das cabeceiras da ponte e, em princípio, não havia risco da estrutura
vir abaixo. Ufa, um problema a menos!
Houve excessos da imprensa e políticos buscaram tirar algum tipo de proveito
eleitoral na tragédia. Mas o bom senso imperou nos primeiros dias e tanto os veículos
de comunicação como as autoridades desempenharam o papel que se esperava deles em
um momento de tragédia como aquele: informar, orientar, prestar o serviço e acalmar
as pessoas. Foi impossível, porém, não registrar as mortes, a dor da perda humana
ou a de um patrimônio construído ao longo de uma vida indo parar embaixo da terra.
As imagens da tragédia, em Blumenau, corriam o mundo e sensibilizaram
a opinião pública. A cobertura jornalística, naqueles dias sequentes, mostrou o
116
trabalho de resgate, atendimento e abrigo de milhares de atingidos, e provocou um
verdadeiro mutirão comunitário. Pessoas de várias partes do planeta se mobilizaram
para ajudar de diversas formas. Doações começaram a chegar e muita gente foi ao
Vale do Itajaí para dar sua contribuição, seja carregando mantimentos, amparando
pessoas, limpando ruas e casas, ou tantas coisas mais. Diga-se de passagem, se há
algo de positivo a registrar nesta situação toda, é a força do povo blumenauense e a
solidariedade do brasileiro. Foram comoventes!
Infelizmente, esta mobilização toda durou apenas o tempo da comoção de
uma tragédia até surgir a próxima. Ou seja, não mais de três meses. Um ano depois,
a situação é precária na região, em especial Blumenau, a principal cidade, onde
1.120 pessoas estão vivendo em moradias provisórias e o cadastro aponta que há um
déficit de moradia de cinco mil unidades. Até o momento que escrevo este artigo, nos
últimos dias de setembro, não há nenhuma moradia destinada às famílias atingidas
sendo construída. O projeto Minha Casa, Minha Vida, da Caixa Econômica Federal,
ainda transita nos labirintos da burocracia, expressão usada pelas autoridades para
justificar a demora. Há promessa que, ainda este ano, comece, mas dificilmente
alguém receberá moradia antes do primeiro trimestre de 2010.
Algumas campanhas da sociedade civil, instituições e governos estrangeiros
viabilizaram milhões de reais para serem destinados à construção de moradias.
Dinheiro que, na maioria dos casos, veio de doações. Exceção é para os recursos
do Governo da Arábia, cerca de R$ 6 milhões. Conforme amplamente noticiado, os
recursos já estariam disponíveis. Mesmo assim, nenhuma casa foi construída em Santa
Catarina. Situação semelhante acontece com a campanha promovida pelo Instituto
Ressoar, braço social da Rede Record de Televisão, na qual R$ 10 milhões foram
destinados para erguer 630 casas no Estado e poucas delas foram construídas. Em
Blumenau, por exemplo, onde existem recursos para 100 casas, não há nenhuma.
Nem perspectiva.
Pouco mais de 24 ruas, sete pontes e quatro passarelas estão sendo construídas
e recuperadas, numa engenharia cujo dinheiro é do Governo Federal e quem executa
é o Governo do Estado, por meio do Deinfra. O município, principal interessado,
assiste às obras de mãos atadas. Três pontes já foram entregues e o cronograma prevê
que todo serviço esteja concluído. Apesar disso, obras fundamentais para a cidade,
as de macrodrenagem, ainda estão no projeto. Em algumas vias principais, como a
117
Rua Itajaí (entrada da cidade, nas proximidades do Complexo do Sesi) e na Dois de
Setembro, os buracos abertos dão dimensão da força da natureza e da inércia para
enfrentá-la.
Apesar da reestruturação da estrutura pública, principalmente no caso da
Defesa Civil de Blumenau, ela é infinitamente menor que a demanda criada a partir
de novembro de 2008. O pequeno número de fiscais impede o trabalho preventivo de
ocupação de áreas irregulares e de risco. Para piorar, as crateras expostas nos morros
e os alertas da meteorologia preocupam. Os problemas e os riscos são grandes. Não
estamos preparados, apesar de todo know how macabro que a tragédia trouxe.
Por Alexandre Gonçalves
Repórter
Rede Independente de Comunicação –
Ric Record, Blumenau
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Víveres!
Secretaria de Estado de Comunicação / SECOM
P
ilotos, tripulantes, bombeiros e policiais militares, geólogos, voluntários,
jornalistas, cinegrafistas, repórteres e apresentadores de TV “tomaram de
assalto” uma pequena área do Aeroporto Internacional de Navegantes, num vai-evem frenético diário. Este foi o cenário no centro de comando da maior operação
de Defesa Civil já realizada no Brasil por mais de 15 dias.
Parte do estacionamento para aviões de carreira cedeu lugar a helicópteros.
O gramado, entre a pista e o estacionamento, passou a ser utilizado como área
para decolagem dos helicópteros. A sala de desembarque virou refeitório; as
esteiras para transporte de bagagem, poltronas; os corredores, salas de embarque
e desembarque das equipes de jornal e televisão; o auditório, sala de reuniões e
gestão. Cinco salinhas disponíveis foram utilizadas para comando, controle de
voo e assessoria de imprensa.
Na assessoria de imprensa, o drama era virtual. Ficávamos sabendo da
situação enfrentada pelos moradores da região através de relatos dos militares
envolvidos na operação, sob o comando do comandante do Batalhão de Aviação
da Polícia Militar de Santa Catarina, tenente-coronel Milton Kern Pinto, e
dos repórteres, entre eles a repórter fotográfica da Secretaria de Estado da
Comunicação, Neiva Daltrozo.
Acredito que nenhuma tragédia brasileira tenha sido tão documentada
quanto esta. O material fotográfico disponibilizado pela Secretaria de Estado da
Comunicação circulou, além do Brasil, em várias partes do mundo: Alemanha,
Canadá, Dinamarca, Espanha, Inglaterra, China, Suécia e Portugal.
Na medida do possível, tentamos atender a todos os profissionais de
imprensa, sem privilégios. No nosso balcão de check-in, a espera pela hora do
embarque obedecia a ordem de chegada. O preço da passagem, a paciência.
Não recebemos uma reclamação sequer por atrasos de embarque. Alguns,
120
superiores a 5 horas. Nos dias mais críticos, o transporte foi suspenso. A prioridade
sempre foi o atendimento à população e a entrega de VÍVERES.
Por Vitor Hugo Louzado
Executivo de Imprensa
Secretaria de Estado de Comunicação / SC
121
Dinâmica da assessoria de Imprensa
Secretaria de Estado de Comunicação / SECOM
D
ia 22 de novembro de 2008, sábado, final da tarde. Estou voltando de Rio
Negrinho, Norte do Estado, onde fui comprar um sofá pra minha casa nova.
A região conta com muitas fábricas de móveis de qualidade e preços convidativos.
Enfim, consegui adquirir o meu lindo, grande e confortável sofá - não aguentava
mais aquele sofá-cama de promoção que afundava a cada vez que eu me sentava.
Eu e meu marido voltávamos de carro de Rio Negrinho para Florianópolis
quando, ao passar pela Serra Dona Francisca, recebemos um telefonema da minha
sogra. Ela estava com um tom na voz de preocupação e queria saber onde estávamos,
se estava tudo bem, porque, segundo ela, o mundo estava se acabando no Estado
por causa das chuvas e o jornal local já estava dando a notícia. Eu respondi a minha
sogra que estava tudo bem, que não pegamos chuva em Rio Negrinho, pelo contrário,
o sol apareceu durante quase todo o dia naquela região e a estrada estava tranquila,
com tempo seco. Apesar dela não ter acreditado muito em mim, pediu-me para que
tomássemos cuidado durante a viagem.
Bom, não sei se foi pelo aviso da minha sogra, ou se foi a Lei de Murphy
mesmo, só sei que assim que desliguei o telefone, a chuva caiu com tudo. Naquele
momento, estávamos saindo da SC 301, entrando na BR 101. Meu Deus, que chuva
era aquela! Não dava pra enxergar quase nada na estrada. O vento estava super
forte e pedaços de árvores atingiam as encostas da BR. E o pior é que não dava pra
parar em lugar nenhum para esperar a chuva passar, porque, como eu já disse, não
enxergávamos quase nada, nem o acostamento, muito menos um posto de gasolina
ou algo parecido. Enfim, viemos em fila indiana, a 30 km por hora, como tantos
outros carros que deviam conter pessoas tão assustadas quanto nós. Após o episódio,
conseguimos chegar com segurança em Florianópolis.
Entrei em casa, liguei a TV e vieram as notícias: “Chuvas fortes atingem o Norte
do Estado”, “Santa Catarina é atingida por fortes chuvas e vendaval”, “Defesa Civil
alerta para novos temporais”. Imediatamente telefonei para o diretor de imprensa da
123
Secom, José Augusto Gayoso, meu chefe. Ele informou-me na ocasião que a Defesa
Civil estava em alerta e que, qualquer emergência, convocaria toda a equipe de
imprensa do Governo de Santa Catarina para auxiliar a assessoria da Defesa Civil.
Desliguei o telefone e rezei para que a situação não se agravasse, principalmente
em Blumenau e Itajaí, locais em que o nível dos rios começava a subir acima da
normalidade.
O domingo chegou e ninguém me ligou. Como faço todos os domingos, entrei
no sistema de notícias do Governo do Estado para editar as matérias e baixá-las no
site www.sc.gov.br/webimprensa. Naquele momento, aparentemente, os estragos que
a chuva havia causado em algumas regiões do Estado estavam sendo monitorados,
como de costume, pela equipe da Defesa Civil Estadual e Epagri/Ciram, responsável
pelo acompanhamento da meteorologia de Santa Catarina.
Durante todo o dia da segunda-feira, a chuva tinha dado uma trégua, o que
parecia uma sinalização de melhora do tempo. Mas no período da noite, a situação
era outra. Chovia sem parar em Florianópolis e as notícias na TV eram de fortes
chuvas em outras localidades do Estado, principalmente na região Norte, onde ficam
Blumenau, Itajaí, Ilhota, etc. Mesmo com o quadro de tempestades que se formava
em Santa Catarina naquele momento, não imaginei que pudesse evoluir da forma
como aconteceu.
Na terça-feira, dia 25 de novembro, ao chegar no meu local de trabalho, a
Secretaria da Comunicação do Centro Administrativo do Governo do Estado, recebi
um recado de Gayoso para entrar em contato com Soledad Urrutia, assessora de
imprensa da Defesa Civil naquela ocasião, e auxiliá-la no que fosse preciso. Telefonei
para ela em seguida e Sol, como os colegas a chamam, estava exausta, pois tinha
passada a noite anterior em claro na Defesa Civil atendendo à demanda da imprensa
local e nacional, que procuravam saber qual a real situação do Estado em relação às
chuvas. Desliguei o telefone e, acompanhada da minha colega Juliana Gomes, fui
para a Defesa Civil substituir Soledad na assessoria de imprensa daquele dia, para
que ela pudesse ir para casa descansar. Na Defesa Civil, fomos aos poucos tomando
par da situação, para que tivéssemos aptas a repassar as informações corretas à
imprensa de todo o país.
O primeiro telefonema que atendi naquela ocasião me pegou um pouco de
surpresa, pois os aparelhos celulares que nos deram eram para somente atender à
imprensa, pois esses números constavam no site www.defesacivil.sc.gov.br como
124
assessoria de imprensa. Mas a pessoa do outro lado da linha não era nenhum colega
da imprensa e, sim, um parente desesperado. Agora não me lembro o nome do rapaz,
mas ele dizia que era de Recife e que tinha recebido uma ligação de Blumenau
afirmando que seu irmão, que morava a pouco tempo na cidade, havia morrido em
decorrência de um desabamento. Essa era a única informação que ele tinha, pois a
ligação tinha caído. Ele não sabia quem havia ligado e não conseguia contatar o irmão
pelo celular. O rapaz queria saber se isso poderia ser verdade, se Blumenau estava
debaixo de água e como ele iria achar o seu irmão, porque sua mãe estava em estado
de choque. Na hora, eu não sabia o que responder e procurei rapidamente alguém
para atender àquela ligação. Todos estavam ocupados nos telefones, coordenando
alguma equipe ou tomando decisões, quando o diretor da Defesa Civil, major Márcio
Luiz Alves, passou na minha frente. Não tive dúvida, perguntei se ele podia atender
aquele telefonema e ele, entre uma ligação e alguma decisão importante, prontamente
atendeu o rapaz de Recife. Não me recordo exatamente o que eles conversarem, mas
me lembro que o major Márcio conseguiu acalmar o rapaz e sua mãe. Não sei o final
dessa história, se o irmão daquele rapaz realmente havia morrido ou não, mas acredito
que naquele momento ele tenha encontrado uma palavra de alguém preparado para
aquela situação, que pudesse confortá-lo e à mãe.
Após um dia de atendimento à imprensa, o diretor da Secom ligou para pedir
que eu, Juliana e a fotógrafa Sabryna Sartott continuássemos na Defesa Civil.
Gayoso informou-me que os colegas da Secom, os repórteres Vitor Hugo Louzado
e Ana Paula Zenatti (hoje assessora da Defesa Civil) e as fotógrafas Neiva Daltrozo
e Jaqueline Nocetti estavam a caminho de Navegantes para instalar uma estrutura
de assessoria de imprensa naquela região, pois agora, não só a imprensa nacional
como também a imprensa mundial estava vindo ao Estado para cobrir a tragédia em
Santa Catarina. Além da estrutura em Navegantes, Gayoso informava-me que seria
montado um esquema também na Defesa Civil. Pediu que eu ligasse para Vitor Hugo
e decidíssemos como fazer essa estrutura. Liguei para Vitor e ele informou-me que
os técnicos do Centro de Informática e Automação do Estado de Santa Catarina,
o Ciasc, já estavam a par da situação e que iriam para a Defesa Civil instalar uma
sala de imprensa toda equipada com computadores e acesso à internet, e telefones,
para a imprensa que ali chegasse pudesse trabalhar. Imprensa essa que não parava
de chegar à Defesa Civil.
Como a sala de imprensa do local não estava preparada para tanta demanda de
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jornalistas, a estrutura era realmente necessária. Além da sala de imprensa, vários
assessores que trabalhavam no Governo foram requisitados para nos auxiliar no
atendimento à imprensa, pois passamos a atendê-los 24 horas por dia. E Soledad,
aquela que disse que ia pra casa dormir, apareceu para também nos ajudar 4 horas
depois que ela tinha saído dali. Como Sol era a pessoa responsável pela imprensa
da Defesa Civil, ela se sentia na obrigação de estar ali para coordenar a situação,
trabalho que fez com eficiência.
Os dias se passaram e a situação não melhorava. A chuva era constante,
causando desabamentos e alagamentos (principalmente no Norte do Estado), e as
mortes idem, o que nos entretecia bastante. Tínhamos um quadro que era atualizado a
todo o momento por técnicos da Defesa Civil. Os dados desse quadro eram repassados
para o site do Governo e para o da Defesa Civil, além do site www.desastre.sc.gov.br
, criado na ocasião para divulgar as notícias relacionadas à situação de emergência
em que Santa Catarina se encontrava. Lembro-me que toda vez que algum técnico
me passava os dados para incluir no quadro, eu tentava não pensar naqueles números
de óbitos como pessoas mortas. A tensão era grande e o trabalho incessante. Não
conseguia parar o trabalho e me emocionar a cada óbito registrado. Pode até parecer
frieza falar dessa forma, mas a melhor maneira que eu e meus colegas podíamos
ajudar aquelas pessoas que estavam perdendo suas casas, e pior, seus familiares,
seria continuar repassando à imprensa dados precisos para suprir a necessidade de
informações de todos envolvidos naquela situação. A cada final de expediente, ao
chegar em casa, o sono não vinha e o choro tomava lugar à razão. Depois de um
tempo eu adormecia e me lembrava que no outro dia teria que ir novamente para a
Defesa Civil fazer o meu trabalho da melhor forma possível.
Passaram-se umas três semanas até que a situação das chuvas se acalmasse
e a Defesa Civil pudesse trabalhar em cima do que já havia acontecido no Estado,
não do que estava acontecendo. Aos poucos, a imprensa nacional e internacional ia
se dispersando, voltando para suas regiões com reportagens prontas e consistentes
sobre as enchentes. Todos os assessores de imprensa do Governo, que até aquele
momento estavam à disposição da Defesa Civil, também voltavam a seus postos de
trabalho. Soledad passou a tocar sozinha a assessoria da Defesa Civil.
Eu voltei para a Secom e para a edição do site do Governo, mas a experiência
que passei naquelas semanas me acompanha até hoje. Foram momentos tristes,
inseguros, cansativos e doloridos, mas também foram momentos de solidariedade,
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companheirismo e altruísmo. O que presenciei naquele momento de tragédia foram
inúmeras demonstrações de brasileiros doando de tudo um pouco e, principalmente,
doando seu tempo e também suas casas para receber pessoas que nunca tinham
visto na vida. Isso realmente me comoveu. Infelizmente ou felizmente, são nesses
momentos que percebemos que o mundo não é composto somente por atos de
interesses ou de violência, como cansamos de presenciar, assistir ou ler nos noticiários.
É bom saber que existem pessoas interessadas no bem-estar do próximo e que
notícias negativas, como as de violências urbanas, religiosas ou roubalheiras políticas,
que assolam o mundo atual, não fazem parte da essência da maioria dos indivíduos. Por Patrícia Pinheiro
Executiva de Imprensa
Secretaria de Estado de Comunicação / SC
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Organização
Relatos de um Desastre apresenta as Narrativas Jornalísticas da Tragédia de 2008
em Santa Catarina, contadas por profissionais de 10 veículos de comunicação, que
participaram da cobertura do desastre considerado a maior tragédia do Estado. Eles
aceitaram o convite do Governo do Estado, por meio da Defesa Civil Estadual, e da
Universidade Federal de Santa Catarina, por meio do Centro de Estudos e Pesquisas
sobre Desastres, para participar de forma voluntária desta obra.
Alguns veículos envolvidos dividiram a tarefa de narrar seus relatos entre
jornalistas do grupo, outros optaram por um único relato. Os textos sofreram apenas
pequenas edições e correções, garantindo ao máximo sua forma original. Ao todo,
15 empresas de comunicação catarinenses e de cobertura nacional foram convidadas
a participar.
A produção deste livro integra um projeto de conscientização da Defesa Civil
catarinense e alerta a população sobre a necessidade de reduzir o risco de desastres.
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Este livro foi lançado e publicado um ano após o desastre de 2008, em 23 de
novembro de 2009, pelo Governo do Estado de Santa Catarina - Secretaria
Executiva da Justiça e Cidadania / Departamento Estadual de Defesa Civil;
e a Universidade Federal de Santa Catarina - Centro Universitário de Estudo
e Pesquisas sobre Desastres (CEPED).

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