Histórias de Vida - Programa Escolhas

Transcrição

Histórias de Vida - Programa Escolhas
Escolhas por entre Caminhos
Quatro Histórias de Vida pela mão da Vanessa Palma Pereira
“Os cursos de vida são caminhadas nas quais os caminhos percorridos, conforme são percorridos, se vão enrolando sobre si mesmos,
carregando-se nos dorsos dos caminhantes – de caminhos transformam-se em bagagens, em capital adquirido. O passado (tempo histórico)
não é “passado” simplesmente porque não esteja já no presente – essa seria uma denominação extrínseca - , mas porque se reporta a um
determinado conjunto de acontecimentos que passaram a um indivíduo e que este “carrega” no seu presente.
José Machado Pais, in “Culturas Juvenis”, p. 58
Os cursos de vida, vimo-los assim, tal e qual José Machado Pais os descreve. Estivemos com quatro jovens que integram ou integraram projectos “Escolhas”
e tivemos o privilégio de abrir e explorar algumas das bagagens de que fala o autor. Bagagens que se vão enchendo, multiplicando, refazendo e remexendo
a cada dia e a cada passo importante das suas vidas. São bagagens onde, atrevidamente ou de forma mais técnica, podemos dar uma arrumação,
socorrendo-nos de “etiquetas” que de forma mais imediata nos remetam para a “Infância” e para “Adolescência”, para a “Família ou para a “Escola”, para
“Lugares e Territórios” ou para o “Escolhas”. São bagagens que podemos ver separadas, mas que os nossos narradores nos oferecem sempre como um todo,
preenchidas de acontecimentos e histórias que se misturam e interligam de forma coerente. Como diz o autor acima mencionado, não é Passado aquilo
com que nos deparamos. Não; ao ouvir os nossos entrevistados, deparamo-nos com aquilo que precisamente procurávamos: Histórias. Histórias de vidas
cheias de uma singularidade que não conseguimos pressentir quando actuamos recorrendo a metodologias mais extensivas. São “histórias de vida” que
inesperadamente conseguem deixar-nos estagnados a reflectir numa designação que nos é tão familiar nesta pesquisa: “Escolhas”. São vidas carregadas de
contínuas escolhas; umas mais conscientes, outras menos. Umas feitas de forma mais autónoma, outras de forma mais automatizada. Escolhas que actuam
de forma infinita e ininterrupta levando sempre a outras tantas, mais e mais escolhas. Não são projectos de vida com fim à vista, aqueles com que nos
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deparamos. São percursos em construção e em que as tais bagagens continuam completamente abertas, mesmo que algumas das secções já estejam
simbolicamente fechadas. O conteúdo das bagagens não apresenta os mesmos pesos, os mesmos balanços, os mesmos olhares, as mesmas alegrias ou
infelicidades. São conteúdos muito ricos, ou aquilo a que chamamos comummente Passados, que nos foram generosa e genuinamente cedidos para que
pudéssemos, mediante um olhar científico, encontrar pontos-chave e particularidades que, devidamente analisados, possam contribuir para a intervenção
de quem se cruza com algumas destas vidas (ou com vidas destas). É esse o exercício que tentaremos fazer de seguida.
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A PROMESSA
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A Promessa
“Quando um filho meu um dia portar-se mal, vou contar-lhe a história da minha vida... e vou mostrar-lhe que não é esse o caminho.”
Susana
Deveria existir uma designação para a fase que se situa entre a adolescência e a idade adulta. Se existisse tal palavra seria mais fácil definirmos o momento
de vida desta menina de 17 anos. Ela já se sente adulta e tenta sempre lançar-nos “provas” disso mesmo, mas em determinadas situações temos uma típica
adolescente perante nós. Carecemos da tal designação onde pudéssemos encaixar o seu perfil etário. Muitas certezas e muitas dúvidas que coexistem e se
confrontam constantemente: eis a fórmula que define o seu momento de vida.
No primeiro encontro que temos com Susana, é-nos apresentada uma versão mais formal dos factos que marcam a sua vida. Conseguimos perceber quais
os calcanhares de Aquiles, os amigos e a família, sem que no entanto percebêssemos porque estão eles tão a descoberto. No fim do segundo encontro
reparamos que estivemos com duas Susanas diferentes: uma que nos conta quem é para percebermos quem quer ser; outra que nos conta quem foi para
percebermos quem é.
Comecemos por tentar contar a história de “Quem é e quem quer ser Susana”.
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Susana é uma menina que com um grande sorriso nos diz que terminou agora o 9º ano. Foi um “bocadinho difícil” porque o 9º ano é “mais complicado”,
mas as notas foram “muito agradáveis”. Num primeiro impacto e embora percebamos, pela idade, que deveria estar mais avançada, nada faria prever os
problemas que já teve com a escola.
É a mais velha de cinco irmãos; a mais nova tem 2 anos. Entre elas: um irmão com 15, uma irmã de 12 e outra irmã de 10. Apenas o segundo e o terceiro
foram planeados. Uma casa cheia, onde há sempre o barulho típico de muitas crianças juntas. Os pais estão ambos desempregados, mas Susana parece não
perceber o verdadeiro impacto que isso poderá ter na gestão familiar. O pai era “pizzeiro” (fazia pizzas), a mãe fazia limpezas. Agora não estão a trabalhar. E
quando falamos sobre isso, é quase desconfortável a naturalidade que apresenta ao informar-nos desse facto.
Sobre se gosta de ter assim tantos irmãos diz que “agora sim”, “mas gostava de ter menos, a idade... agora começamos a crescer e é diferente”. Dá o
exemplo do espaço onde gosta de estudar, o seu quarto, e que por vezes é invadido pelos irmãos que entram e ainda continuam a falar entre eles. No
entanto, frisa que se calhar, na idade deles também faria o mesmo. No fundo, sim, gostava de ter menos irmãos. Neste momento ela e o irmão têm um
quarto para cada um, enquanto que as outras irmãs partilham um outro entre as três. A ideia é que a mais velha das irmãs, quando crescer um pouco, vá
partilhar o quarto com ela.
Ainda sobre o contexto familiar, a família do pai é mais pequena que a família da mãe. Do lado do primeiro, apenas dois tios; do lado da mãe tem avós,
quatro tios (todos com filhos). Todos eles da área de Lisboa. A mãe nasceu em Setúbal, mas os avós eram de Lisboa e acabou por vir ainda muito pequena
para a capital. Os avós vivem muito perto de si, “um pouco mais à frente”.
Os dias típicos da sua infância eram “bons”, compostos por escola, casa, passear.
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Embora se tenha esquecido, no segundo encontro, de trazer as fotografias que pedimos, tinha-as bem vivas na sua memória. A primeira retrata
exactamente um passeio infância. Com cerca de 2 anos, ela está num carrossel da Feira Popular. Tinha ido no fim-de-semana anterior, mas conseguiu
convencer a mãe a voltar também naquele; a mãe estava grávida do irmão, o segundo filho dos pais. É, portanto, uma fotografia ainda enquanto filha única.
Não se lembra de pormenores específicos relativos àquele dia, a não ser os que lhe contaram. Mas lembra-se de ir várias vezes ao mesmo local, àquela feira,
ao longo dos tempos. Gostava muito dos carrosséis. Na foto, um carrossel amarelo, “um vestido às florzinhas e com os totozinhos que a minha mãe gostava
de me fazer”.
E a segunda fotografia escolhida por Susana, que não vimos mas sentimos, também nos remete para a infância. Susana está numa piscina com amigas, a
sorrir e muito divertidas. “Eram dias diferentes”, diz-nos relatando aqueles dias que aconteciam nas férias. Acabadas as aulas, os ATL’s ofereciam este tipo
de experiência. Ainda sabe de duas amigas dessas fotos; vivem no mesmo bairro que Susana
É uma infância que nos parece livre; livre também de preocupações: “Andava na rua... agora aos tempos também são diferentes, mas se fosse hoje estarmos
ainda lá se calhar ainda era diferente, eu acho, tenho a minha maneira de pensar”. Não passeava muito com os pais porque, segundo diz, estes não teriam
muito tempo. Mas passeava com avós, tios, primos. Desta fase da sua vida recorda, entre as coisas que gostava de fazer, o jogar à bola. Esta é uma
actividade que mantém até à adolescência.
Muito associado também à infância está o local onde residiu sensivelmente até aos seus 10 anos. Mesmo sendo um local que outros chamavam “de
barracas” (embora ela não concorde que sejam mesmo barracas), fica claro que foi muito mais feliz ali do que no território onde viveu toda a sua
adolescência. Pelo que percebemos, as famílias do antigo bairro terão sido realojadas no bairro social onde nos encontramos: “Vivia, digamos assim que
digam as barracas (risos)! Mas não eram (...). O ambiente era melhor que aqui. (...) Não me lembro muito bem, tenho uma noção, mas havia pessoas piores
que eu. Era uma casa boa, tinha as condições todas que agora tenho, mas esta, claro tem um pouco melhor, é sempre diferente. Mas se me dessem a
escolher viver aqui ou na outra, preferia na outra”.
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Quem conhecer Susana, terá como primeiro impacto uma Susana que se apresenta, no discurso que vai fazendo, com uma auto-estima elevada. Sente-se
diferente da maioria das jovens e dos jovens da sua idade e não tem problemas em dizê-lo. Considera que consegue ver o “certo e o errado” das coisas. Não
que sempre tenha sido assim, mas a sua fase de insubordinação também já está terminada. De qualquer forma, a reviravolta dá-se por volta do 8º ano: de
adolescente irreverente que se portava mal nas aulas e que terá tido “más companhias”, passamos para a menina que, de repente, fica com vontade de
fazer tudo “certo” no que respeita a aulas, comportamento e estudo.
Os amigos assumem uma importância extraordinária no seu discurso; a forma como eles surgem no mesmo é que não será tão frequente em adolescentes.
Não se trata de um discurso onde se fala do que se faz de bom ou positivo com eles; em que se fala das saídas, das festas ou dos momentos de alegria tão
associados aos tempos partilhados por amigos/grupos de pares. Entrando na sua versão mais adulta, M. fala constantemente do facto de nunca sabermos
com o que podemos contar; do facto de os amigos não terem os mesmos interesses do que ela; do facto de gostarem de ter conversas sobre terceiras
pessoas e ela não; de algumas (muitas) desilusões que já teve. Mas depois, repentinamente, já consegue outra vez demonstrar-nos que afinal os amigos são
o mais importante. No fundo, ela ainda não tomou uma decisão sobre o papel que quer dar-lhes. Vê-se que há muita mágoa, mas que ainda há alguma
esperança de encontrar o tipo de amigos que idealizou.
Embora ainda indecisa em relação ao curso que quer escolher no 10º ano, Susana sabe que no futuro quer ter uma carreira. Não conseguindo optar sobre
um curso ou área concretos, percebe-se que o importante é mesmo vir a ter aquela vida que idealiza. Só quer ter um filho. Não apenas porque veja, em casa,
que ter vários é difícil, mas também porque depois, com a vida que almeja, não lhe sobrará muito tempo para cuidar deles.
Um ponto sensível da vida de Susana, como referimos no início, é a relação com a família. Tem imensa pena de que, hoje em dia, a família mais alargada
quase não contacte. Recorda os bons tempos em que todos se juntavam e conviviam e em que as crianças faziam teatro nas festas: “Adorava... toda junta
no Natal. (...) Eu fazia teatro, fazíamos tudo. Tocava viola, fazia tudo. Não sabia tocar, mas inventava. Punha-me lá, todos riam-se. Depois era a hora de
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abrir as prendas, o meu pai vestia-se de Pai Natal e vinha. Porque prontos, eu nessa altura eu sabia, não é?... Mas os meus irmãos...olha o Pai Natal!”. É uma
saudade genuína, a que tem desses tempos.
Não parece ter esperança de que um dia as coisas mudem numa família que, por “confusões”, passou a ser desunida; a sua expressão facial é reveladora de
que já não acredita que o tempo possa voltar atrás: “Sinto-me mal porque há uns tempos atrás havia uma família unida, íamos passear, fazer piqueniques e
essas coisas e agora cada um foi para o seu lado. Apesar das pessoas crescerem, elas não têm que virar costas umas às outras”.
Em casa, junto do seu núcleo familiar, a ideia que nos passa é a de que tudo decorre com aparente normalidade ou, pelo menos, apenas com sobressaltos
que não são inesperados numa casa de cinco filhos, em que há crianças e adolescentes.
Embora o seu corpo apresente duas simbólicas tatuagens com o nome dos progenitores, refere que da infância para a adolescência, uma das coisas que
mudou foi a atenção dos pais. Diz-nos Susana: “Os meus pais davam-me mais atenção, perguntavam como é que correu a escola, essas coisas... e agora
perguntam, de vez em quando: ‘Tão? Como é que tá as notas ou isso?’ Mas nada demais! Tanto que uma vez eu tive um “Muito Bom” em Matemática,
cheguei toda contente a casa, normal, cheguei: ‘Pai, olha aqui um Muito Bom!’ e o meu pai virou-se ‘Não é mais que a tua obrigação!’. Eu sei que é a minha
obrigação, mas é também sempre bom a gente ouvir... ele anteriormente, ele nunca fazia isso, ele dizia “Parabéns” e não sei quê... E agora se for aos meus
irmãos já faz ao contrário, faz aquilo que me fazia”.
Ainda assim, mesmo com uma certa desilusão pela alteração que revelou em relação a si, nota-se a preferência pelo pai. A mãe, trata-a, segundo ela, de
forma diferente da que trata os irmãos. Ao mesmo tempo que percebemos que isso a faz sentir triste, percebemos também que tenta desculpar a mãe,
dizendo que esta não precisa de estar tão atenta a ela como tem de estar aos irmãos. Em vários momentos da entrevista, conseguimos perceber a tensão da
relação com a mãe: “O meu pai fala mais comigo. A minha mãe é muito... a minha mãe não fala muito, se calhar por ser a mais velha, não sei. Os meus pais...
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Porque a minha mãe para os meus irmãos é diferente... (...) Mas eu também já passei, na adolescência também era assim ‘Ai não me dá atenção!’, (...) agora
compreendo porque já estou a ter a noção do que é o trabalho, o trabalho, o cansaço, o chegar a casa, não ter muito tempo para ajudar a mãe como fazia.
Claro que também temos que ter consciência que temos que dar atenção às pessoas, mas o meu pai é mais: ‘Ah estuda Susana, não estejas na brincadeira,
não existe amigas...! temos as nossas amigas, podemos sair, podemos brincar, poemos fazer tudo mas há momentos e momentos!”. Ambos, pai e mãe (40 e
36 anos, respectivamente), foram pais muito cedo. A mãe deveria ter sensivelmente a idade que Susana tem agora quando engravidou. O pai, com essa
gravidez inesperada, altera a sua vida: “Foi até ao 8, mas ele tinha uma carreira na tropa. Ele é que desistiu por minha causa”. Como em relação a tudo o
que conversamos, também sobre a idade que os pais tinham quando nasceu, Susana tem uma opinião: “Os meus pais tinham que crescer muito! Acho eu,
foram pais muito novos! (...) Mas os meus pais foram pais muito novos eu acho que eles deveriam, principalmente a minha mãe devia ter crescido um pouco
mais...”. Diz que cresceram muito rápido, não tendo oportunidade de viver a juventude.
Arriscamos dizer que há uma metáfora interessante para a relação que Susana tem com os pais e que surge no episódio que vamos contar. Em relação às
tatuagens de que já falámos e em que Susana grava o nome de um numa mão e o nome do outro na outra mão (o que faz com que esteja sempre visível),
após perguntarmos sobre a reacção dos mesmos ao seu acto, diz-nos: “Acharam mais ou menos. Eles gostaram mas depois também disseram para não fazer
mais...”. A ser assim, esta não foi certamente a resposta de que Susana estaria à espera após o seu acto.
Outro desejo marcante em Susana, é o facto de querer trabalhar. Numa idade em que o que esperaríamos seria uma jovem que, tendo tido um bom
desempenho na escola, quisesse aproveitar o tempo de férias, o que temos é alguém que precisa de trabalhar para se sentir realizada. Em Susana irradia a
vontade de crescer, ocupar o tempo, sentir-se útil. Ela sente-se à vontade no papel de pessoa que se envolve em variadíssimas actividades e que não gosta
de perder qualquer tempo. Tem pressa de chegar a uma determinada “zona de conforto”, é o que achamos depois de estarmos algum tempo a falar com ela.
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Exemplo? Começou as férias há pouco tempo mas já está a fazer um estágio numa escola. Foi no Projecto do Escolhas que frequenta que acabaram por
conseguir esta oportunidade onde está a fazer uso de um Curso de Monitora que também aí conseguiu: “Tem-me ajudado. Se não fosse o ISU a pôr-me a
estagiar, não estava a trabalhar porque hoje em dia, o desemprego...”. Antes de iniciarmos a nossa conversa, a coordenadora do projecto Escolhas
entregou-lhe um livro com jogos de jardim-de-infância e ela, cheia de entusiasmo e enquanto agradece, fez um comentário sobre a utilidade do manual:
“Ah... eu agora já mando naquilo tudo!”. Mas antes do estágio conseguido numa escola a cuidar de crianças, quando decidiu trabalhar nas férias, chegou a ir
ter com a “Assistente da mãe” (Assistente Social). A ela e à mãe, a Assistente Social informou da impossibilidade de trabalhar antes dos 18 anos. Ficou muito
revoltada. A mãe estava com ela e até lhe poderia ter passado a autorização, diz-nos. Pergunta-se como é que, havendo tanta gente a querer trabalhar
negam esta possibilidade.
Com os dias de semana ocupados, restam-lhe os fins-de-semana para ir à praia ou jogar futebol. O futebol é uma actividade que pratica desde pequena.
Chegou a ser convidada para integrar uma equipa maior, o Benfica, mas diz que teve consciência de que o futebol feminino é difícil. Os nossos encontros
foram recheados de menções ao futebol e o jogar à bola. Fosse sobre brincadeiras na rua, sobre as equipas em que jogou, sobre o prazer que o mesmo lhe
dava, lá estava o “desporto rei” a surgir-nos constantemente: “Adorava jogar à bola! (...) Acordava com pica de manhã, mesmo para ir jogar à bola!”
A terceira fotografia que tencionava levar-nos era, precisamente, alusiva ao futebol. Tirada há quase dois anos. Numa festa que ela e outras colegas de
equipa reclamaram porque era constante só o fazerem para as equipas de rapazes. Queriam também festas porque só havia para os rapazes. Nesse Verão
houve mesmo! Foram campeãs no torneio desse dia.
Agora já não está ligada a nenhum clube. É preciso ter muita sorte para seguir essa carreira e Susana decide pôr os estudos em primeiro lugar.
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O namorado também era do grupo de amigos (com o qual já não se identificam) e em que as coisas correram menos bem. Tal como ela, também passou
para o 10º ano. Encontra nele algumas semelhanças de carácter; é parecido consigo e têm objectivos comuns. Ele, por exemplo, também está a trabalhar
agora nas férias e ela, fica fácil adivinhar, valoriza muito quem opta por essa via: “É como eu (...), uma pessoa que estuda, que quer ter objectivos na vida,
que trabalha no Verão, pronto, essas coisas todas, ter objectivos e não andar aqui com os amigos...” .
Entre os irmãos, há uma que se parece mais consigo: a terceira. Com essa não se preocupa, mesmo no que respeita às amizades e às más companhias, pois
sabe distinguir, tal como Susana, o “bom e o mau”. O irmão e a quarta irmã dão-lhe preocupações: “(...)são umas pessoas mais..., vão pelos amigos...”.
Especificamente no que respeita ao irmão, está a passar por uma fase que ela também já conheceu: “Eu já chumbei duas vezes e o meu irmão também
chumbou uma vez só que (...) lá está, o meu irmão teve a fase que eu tive, foi as companhias... as companhias, não...; nós é que temos a culpa...., mas
também ajudam (...)”. A quarta irmã, embora ainda com 10 anos, também revela atitudes que a preocupam: “Fui uma vez ao parque com ela (...) e a amiga
foi saltar ao escorrega, se calhar só não partia a cabeça porque não calhava, a outra fez, ela ia fazê-lo”.
Não esqueçamos que nos propusemos a apresentar quem é e quem quer ser Susana. Há aspectos da sua vida com os quais não se identifica e que, por isso,
se puder optar, certamente afastará da sua vida. O bairro onde vive é um desses aspectos. A fase da sua vida em que mais sofreu (e que abordaremos mais
à frente) está, certamente, muito relacionada com a dinâmica daquele bairro. Um bairro onde isso não é imediatamente visível a quem o visita, mas que
tem um convite aberto à marginalidade. Em conversas que foram acontecendo ao longo do trabalho de campo, uma certeza que é deixada: um bairro onde
impera o tráfico de droga, questão que se tem agravado nos últimos tempos. A nossa entrevistada assume completamente esse problema: “Eu vejo muito e
depois a minha cabeça tem uma maneira de pensar muito diferente das pessoas, em geral. Quando dou conselhos, os meus amigos, que alguns são daqui...
ah lá estás tu, com as tuas coisas! (...)”. Praticamente todos os seus amigos fumam droga, mas não sabe de nenhum que vá além do fumar. Confirma que é
uma realidade que tem piorado cada vez mais e que “(...) já jovens, de dez anos, fazem isso”. São os mais velhos, de 19 anos, como nos diz, que vão
incentivando os outros a fazer. Esta dura realidade não é uma temática que aborde muito com os pais, mas com os irmãos vai falando.
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Susana não se identifica com o espaço ou território que a envolve: “(...) sou uma pessoa que sou diferente disto tudo. Penso no bem, mas também sei pensar
no mal. Aqui, praticamente as pessoas são todas iguais: falsas umas com as outras, uns vendem droga, outros não querem saber da vida...!”. São as pessoas
que a incomodam, mas também são os comportamentos que nos descreve e que remetem para uma fraca apropriação do espaço público: “As pessoas não
sabem dar valor àquilo que têm. Falo de vandalismo; é uma das coisas que mais me irrita”.
Até o namorado a vê como diferente ou, pelo menos, como diferente do que já foi. Num dos exemplos que dá, para além da evolução no comportamento,
não enquadra o seu perfil no local onde nos encontramos: “(...) ele mudou, mas eu fui pior que ele. (...) Diz que já não pareço a mesma rapariga. Antes, eu ya,
tudo bem! A gente chateava-se eu não queria saber dele. Agora é diferente... tenho uma maneira, palavras diferentes (...). Eu numa frase digo milhares de
coisas, palavras que as pessoas num bairro social não estão habituadas – é o ya, bué – eu não, eu já digo ‘imeeeeeeenso’... numa palavra, numa frase digo
coisas muito... específicas, mais... que constroem mesmo uma frase. E essas pessoas dizem... ah... como é que se diz...? ‘Tens uma forma de falar diferente’.
No futuro quer viver fora do Bairro e dá-nos a Expo como exemplo e local onde gostava de viver pois “é um bom sítio”. Também no futuro, Susana imaginase “Com uma carreira extraordinária! (risos)”. Isto não invalida que o olhe (ao Futuro) com algum receio: “Mas por acaso eu penso mesmo bastante no
futuro. Tenho medo (...). Eu penso muito. Levo as coisas a sério, por muito que eu não queira eu sou assim. Eu tenho medo de não conseguir ter uma carreira
que possa digamos, sustentar os meus vícios (...) gosto de passear e essas coisas todas”. Tudo o que vier, sempre assente no valor que atribui ao trabalho: A
minha vida de sonho era a trabalhar, a fazer aquilo que eu gosto....”
A família que almeja não se parece com a sua no que respeita ao número de filhos. O seu número ideal é um único filho: “Eu só quero ter um filho.(...) Posso
mudar de ideias e até posso ter dois, mas de dois para cima, não mesmo!” O facto de serem 5 pesou muito na decisão dela. Mesmo que tenha muito
dinheiro só quer um “por ter noção que muitos filhos dão muito trabalho”. Se se dá o caso de trabalhar muito, já lhe sobrando pouco tempo para um único
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filho, como vai fazer se forem mais: “(...) se não tiver atenção para um vou ter para dois?”. Diríamos que neste último parágrafo fica patente, mais uma vez,
o reflexo que a sua família tem na sua própria vida: muitos filhos – pouca atenção.
Numa vida que está pensada e projectada ao milímetro há coisas que, obviamente, não entram nos planos. A gravidez na adolescência é uma delas: “Tenho
uma amiga que fez agora os 16 e que engravidou... Desculpa lá, há mais informação agora do que no tempo dos meus pais; muito mais! Tenho uma visão
muito bem assente. As amigas?! É para agarrar os namorados!”. Diz ter a certeza do que está a dizer: “Tenho a certeza!(...) Nota-se na cara (...) nota-se
porque por trás já disseram coisas (...). Conta-nos algumas situações e chegamos à conclusão que é, sim, uma realidade quase banal para ela: “Umas seis,
sete, sei lá... não me estou a lembrar muito bem”. Dessas, apenas uma amiga abortou; todas as outras foram com a gravidez até ao seu termo e, a propósito,
fecha o assunto com ironia: “Mas muitas foram para a frente. Como é que não iam pra frente? Fizeram de propósito!”. No entanto, a fórmula seguida pelas
amigas para terem o “amor da sua vida” aparece recheada de insucesso, não conhecendo nenhum caso em que tenham ficado juntos.
Da infância e mantendo-se até a admiração até à adolescência, três nomes que ganham estatuto de ídolos. Três pessoas que Susana diz terem em comum a
característica de fazerem o que fazem “por gosto”: Cristiano Ronaldo, Cláudia Vieira e Ruy de Carvalho. Este último, talvez o mais inesperado do ponto de
vista de quem ouve os ídolos de uma criança ou adolescente, proferiu umas palavras numa Gala da TVI que ecoam e marcam, até hoje, a memória de
Susana: “(...) eu nunca me esqueci destas palavras. (...) ele virou-se e disse... nunca me esqueci destas palavras... numa palavra, ele virou-se e disse: para os
jovens de hoje em dia, nunca se esqueçam dos vossos sonhos e realizem sempre, basta acreditarem e pensarem”. Palavras do homem de quem chegou a ter
muitos posters. Actualmente já não deixa textos para os seus ídolos no Hi5, mas continua a fazer-lhes dedicatórias.
Os verdadeiros (e poucos) amigos - aqueles que depois da sua apurada selecção permanecem enquanto referência – assumem, hoje, uma aura de ídolos.
Uma das pessoas mais referidas foi Sara, a pessoa que lhe dava explicações de Matemática, e que Susana adora: “Tudo o que ela fez, eu quero fazer.
Faculdade, o ter casa, pronto, essas coisas todas... ela construiu uma vida, ela pra mim é uma heroína. (...) Eu tenho ídolos na televisão, mas às vezes nós
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não temos que nos valorizar pelos ídolos... porque não os conhecemos bem. Temos que valorizar por aqueles que estão à nossa volta, esses são os nossos
ídolos (...). Depois, os meus amigos, eu se fosse preciso desenrolava uma passadeira só para eles passarem”.
Ambiciona ir para a faculdade. E já na Universidade gostava de tirar o curso de Gestão; gostava de gerir um ginásio. Referindo-se novamente à amiga Sara,
diz: “Foi ela que fez-me acreditar que eu sou capaz”. Antes da universidade virá ainda um curso profissional, se bem que à data da última entrevista ainda
não tenha decidido o curso. No primeiro encontro ainda nos falou na possibilidade do Chapitô, caso não conseguisse decidir-se entre Marketing, Gestão ou
Desporto. No segundo encontro percebemos que será uma destas três opções. A importância do curso profissional é a de ter sempre duas vias pelas quais
possa optar; se quiser trabalhar tem duas formações específicas a que pode recorrer.
Mais problemática do que a escolha do curso, é a escolha da escola onde o vai tirar “Já escolhi a escola e não escolhi. Eu gosto daquela escola, mas agora já
vi que muita gente da minha escola vai pra lá. Umas amigas minhas já me falaram e eu agora estou a pensar numa do Marquês de Pombal (...).” Não quer
que a conheçam ou reconheçam. “Apetece-me mesmo não ter ninguém. (...) Apetece-me mostrar a pessoa nova que eu sou. Porque aquelas pessoas que me
conhecem, se calhar já é diferente, depois já me conhecem...”Olha, esta aqui...!”. Eu quando era rebelde não ligava a ninguém, era menina do meu nariz (...).”
E aqui encontramo-nos com os fantasmas e Susana, com os quais só tivemos um contacto mais profundo na segunda entrevista. Uma menina que vive
assombrada com a adolescência e com o que isso significou para ela; uma menina que vive assombrada com o poder da amizade (no sentido positivo e no
sentido negativo). Susana diz que teve uma “adolescência muito má”. Não acredita em quem diga que passa impune por esta fase de vida: “Uma pessoa que
venha dizer-me ‘A minha adolescência foi brutal!’... é mentira!!!”.
Tentemos perceber melhor quem foi e quem é Susana? Foi mais difícil acedermos a quem foi, de facto. Esta jovem conseguiu, ao longo dos dois encontros,
apresentar-se sempre de duas formas: como protagonista da história que está a contar, mas também como uma espécie de narradora não participante. Ela
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conta o que fez, como fez e o que sentiu, mas constantemente avalia tudo como se da história não fizesse parte. Para além disso, há tempos que acabaram
por ficar vazios. Sabemos que chumbou duas vezes porque também o partilha, mas ao reconstituirmos toda a história só nos apercebemos do momento de
uma reprovação. Por outro lado, o período negro da sua vida em que se dá uma primeira mudança (drástica) e que ela diz durar três a quatro meses parecenos que, na realidade, terá sido mais longo. Antes de tentarmos passar ao seu registo, recorrendo às suas próprias citações, apresentamos o que nos faz
sentido, sendo que será passível de ser confirmado com a própria ou com a Coordenadora do projecto1. Não consideramos que Susana tenha tido qualquer
intenção de mentir ou omitir; simplesmente, as memórias mais dolorosas pareciam surgir em catadupa e um pouco desorganizadas em termos de
cronologia. Tentando encadear a história do percurso escolar nos factos apresentados parece-nos que os problemas terão começado no final do 7º ano e
que se terão prolongado pelo 8º ano, sendo que nesse ano reprova. Pelo que nos contou é difícil encaixar o segundo chumbo no segundo 8º ano, mas não
vemos espaço para que essa retenção exista no primeiro ou segundo ciclos do ensino básico, embora não identifiquemos outra hipótese.
É precisamente quando chumba no 8º ano que vai parar ao projecto Escolhas. “Vim falar, pediram o meu contacto se eu precisasse de alguma coisa, comecei
a falar com elas, fui evoluindo. Começaram a convidar porque eu era uma menina de casa e não sei quê, anda lá, não sei quê, tá bem pronto eu vou (...)”. É
assim que Susana chega ao projecto do Escolhas onde a encontramos e conhecemos. Na altura que foi, após ter chumbado, procurava um novo rumo para o
percurso escolar: “Eu chumbei, queria um curso, vim aqui, pronto, aconselharam-me... um amigo, a vir aqui (...). Eh não conheço aquilo...eu vou lá contigo,
depois vieram...conheci a Jaqueline, conheci a Isaura, depois comecei a ir a acampamentos, porque vim ver o curso... mas depois no fim, disse... em casa dei
tanto trabalho a eles que depois “ah não quero curso nenhum vou é fazer a escola, pelo menos até ao 9º ano” e fiz.” Os pais ficaram contentes por ter
continuado a escola.
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A escola: “Eu tive uma fase má que já não queria saber da escola (...) portava-me mal... tinha aquelas companhias (....). A partir do 4º, 5º, 6º ano, tive
aquelas fases.”
“Não queria saber da escola! Ah, escola p’ra quê? Mas agora... comecei a passar, a passar, depois tive uma fase também no 8º ano, foi quando eu chumbei,
aí (...), chumbei e também fiquei triste...! Comecei a aprender por olhar para a pauta e ver ‘não transitou’ e depois ver as minhas amigas que transitaram, lá
está... como o meu pai diz... não há amigas!” ; “O meu pai com aquele sorriso cínico, se calhar não é sorriso cínico, mas para mim é... ‘não há amigas!’ e olha
pra mim tipo a sorrir. Como quem diz, quem te sorri pela frente, por trás faz-te pior!”.
Foi na escola que começaram os problemas e a rebeldia, designação que constantemente atribui à fase que menos gostou na sua vida: “Apesar de ser
rebelde na escola, nunca fui rebelde em casa!”. É nesse espaço, onde Susana sempre havia sido uma menina considerada exemplar, responsável e
organizada - “O caderno diário se eu lhe trouxesse você dizia, ‘bem, isto n é um caderno diário, isto...” – que se dá a primeira metamorfose. Devido a
problemas em casa, que não chega a identificar-nos quais são, Susana já frequentava uma psicóloga. A profissional já tinha avisado a mãe: “Qualquer dia a
Susana não é a mesma”. Este pormenor leva-nos a acreditar que haveria indícios de que algo não estava bem, mas que terão sido camuflados por Susana
até àquele dia; o dia em que literalmente, repentinamente, se dá a transformação.
Até àquele dia em que a Professora de Ciências lhe pede para ler algo na aula e em que ela se recusa umas quatro vezes, Susana havia sido o exemplo da
menina “certinha”. A menina responsável, de cadernos cuidados farta-se, de forma instantânea e surpreendente, desse papel. Naquele dia, àquela hora,
naquele exacto momento em que se recusa a obedecer à Professora, desaparece a Susana que todos conheciam e surge uma nova pessoa. Havia
consciência ou premeditação nesta alteração? Perguntamos mais do que uma vez. Susana, vê-se n forma como reflecte, não tem a certeza absoluta. Mas,
no fundo, considera que tudo foi inconsciente, natural. Ela própria, apercebe-se de que era rebelde (expressão que utiliza para o que lhe aconteceu naquele
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instante) no momento em que não obedece à Professora. Não há um comportamento que vá evoluindo, gradualmente, num determinado sentido, até
àquele específico momento. Não. Foi uma surpresa.
Há a noção, sim, de querer ser aceite por outro grupo, por outros amigos. Queria demonstrar-lhes que não era só aquela pessoa que todos conheciam até
então. Houve pessoas que ficaram contentes com essa nova Susana: “Aí já tinha melhores amigos, até...!”. Os amigos, sempre os amigos no discurso. Os
amigos que ela tanto procurava, que encontrou e que viria a perder logo de seguida. Confirma que a mudança seria uma necessidade de chamar a atenção
em casa e ter mais amizades. A Susana “certinha” não tinha muitos amigos: “És mesmo podre. Eh uma menina betinha, estudas muito. Pronto, essas coisas”.
Sofreu bullying, muito possivelmente, embora não o tenha referido. E se sofreu, sofreu-o a um ponto que teve que deixar de ser quem era: “Eu gostava de
ser como era. Mas tive que me fazer outra pessoa, para ter amigos”.
Foi um choque. Para toda a gente. Professores, amigos, família. Começa a responder sempre a docentes e pais de uma forma que, até então, lhe era
desconhecida. A sua intenção é a provocação, o testar, o impor-se. Num dia em que está a chover e a mãe a avisa que não quer que ela vá para a rua jogar à
bola, ela espera que saia para as compras e faz isso mesmo. O amigo a quem vai pedir para ir com ela, admira-se de a mãe a ter deixado, mas ela mente-lhe
e diz que sim, que teve permissão. Uma época em que tudo se descontrola em casa e deixa de se saber lidar com Susana: “Em casa já era diferente...Mas
também me portava mal! O meu irmão, se entrasse no meu quarto, a mexer numa coisa minha... era logo: ‘Sai daqui!” e andávamos os dois à porrada. Era
sempre assim!”. A mãe seria a pessoa que lhe fazia frente e relembra que lhe batia nesses tempos: “A minha mãe batia-me muito. Nessa altura, a minha
mãe... sim, quando comecei a ser rebelde... a minha mãe, fogo....!”. Como sempre, apresenta o pai como sendo mais compreensivo com ela: “(...) Depois
bateu-me. Depois eu tinha a minha cadela que era a cocker, que era a Nucha, ela gostava muito de mim, a única que dava-me mais atenção... quando viu
que a minha mãe tava-me a bater ela ia mordendo à minha mãe se não fosse o meu pai”.
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Continua a ser uma desconhecida para si própria e parece haver sempre, da sua parte, a reminiscência de que aquela não é ela. Neste conflito sobre quem é
ou deixa de ser consegue manter a aura de um mundo desconhecido e, por isso, constantemente atractivo. Desconhecido, mas ainda algo vedado. Um
mundo para quem a vedação, e isso Susana não o sabia, estava cheia de arame farpado. Quatro intensos meses em que se magoa e se levanta sem nunca
desistir de ser essa pessoa nova: – “Foi a curiosidade das coisas. Aprender coisas más. (...) É difícil explicar isso (...) é curiosidade, mas há coisas más noutro
sentido que nós também não temos curiosidade, por exemplo drogas (...) Eu era uma menina que não me portava mal... sentir o que é que era rebelde
porque eu era uma menina que não me portava mal (...), ir àquele caminho para ver o que é que havia lá. Descobrir se na rebeldia, pronto, digamos assim, se
era bom ou mau, se podia chegar lá e aprender alguma coisa, mas não. Lá, aprendi que não aprende-se nada”.
Os comportamentos de risco mantêm-se e intensificam-se. Há momentos, intervalos, em que sente que é uma pessoa diferente dos outros que acompanha.
Não consegue “tirar o que não é seu” (não usa o verbo “roubar”) e pensa sempre nas dificuldades que as pessoas têm para conseguir as coisas. Não
consegue rir-se ou provocar uma senhora que cai em cima de um canteiro de flores e vai ajudá-la a levantar-se, ainda que isso lhe custe algum tempo de
comentários jocosos por parte dos “amigos”: “Eu sempre fui boa pessoa. Até má, eu nunca fui má para as pessoas! Eu era... eu portava-me mal na escola,
mas se eu visse uma pessoa... eu era a primeira a lá estar!”. Mesmo assim, mesmo tendo momentos em que não se revê nos que elegeu como seus pares,
ela continua. Na escola partia vidros das janelas, a jogar à bola. No primeiro encontro que tivemos, a sua rebeldia fica remetida para o “partir vidros”, mas
“sem querer” e apenas como consequência de jogar à bola; no segundo encontro, alguns desses vidros passam a ser propositadamente partidos. Também
começou a fumar, embora afirme que nunca consumiu outro tipo de drogas: “Parece que tinha algo dentro da cabeça: ah vou fazer aquilo, pra quê? (...) já
fumei cigarros mas nada de drogas e isso. (...) Cigarros tive pelo menos algum tempo, mas depois também deixei.”
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Talvez existisse a dificuldade em assumir que tudo aquilo, que via e fazia agora, fora um erro. É constantemente avisada; é constantemente chamada a
prestar contas na escola. Teve imensos processos disciplinares. A Professora, a mesma de sempre, fala com ela várias vezes. Diz-lhe sempre que sabe que
ela não é assim; que aquela não é a menina que ela conhece há já vários anos. Recorda-se com exactidão de pormenores inscritos nas situações e conversas
desses tempos. Num primeiro momento diz-nos que as conversas que a Professora tinha consigo, “entravam a 100 e saíam a 200”. Tentamos perceber se
ela acha mesmo que era assim, se nada ficava registado. Sorri e dá a entender que ao longo do tempo talvez já fosse absorvendo alguma coisa. E há um
momento em que, descrevendo esses encontros com a professora, nos relata um pensamento que teve de si para si: “Afinal tinhas alguém que gostava de
ti”.
Do primeiro para o segundo encontro transportávamos algumas certezas sobre Susana. O facto de a adolescência ter sido marcante e crucial no seu
desenvolvimento, é uma dessas certezas: “Lá está, é um fase que não dá para controlar. A adolescência não dá para controlar nada. Nadinha!”; “(...) como
pessoa, parece que estamos mal com a vida, às vezes (...)”
A adolescência, onde ela já não se vê a si própria, foi a fase em que se perdeu e se reencontrou. Também já sabíamos isso, mas apenas no segundo
momento, Susana vai dissecando a amargura e o orgulho que em simultâneo sente e que estão localizados numa parca quantia de meses, de um
determinado ano de vida.
A teoria de que a mudança se deu por factores associados a rejeição, ganha força ao longo do seu discurso. Susana, mesmo que não o diga directamente,
vê-se que imputa algumas responsabilidades aos pais. Sente que tinham de falar mais com ela, explicar-lhe como foi a adolescência deles, perceber os seus
erros. Não percebemos se ela sabe de algo, mas fala do “mau caminho” que eles passaram e que não lhe foi contado. Algumas amigas queixam-se quando
as mães lhes falam sobre sexo, alertando para as doenças. Ela não percebe como podem queixar-se; ela gostava que a mãe tivesse feito isso com ela. Nada
disso acontece. E foi ela, “por ter cabeça” que evitou ainda mais problemas do que os que teve. Quando tiver filhos diz que será diferente dos pais: “A
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melhor coisa que eu vou fazer... vou ser diferente dos meus pais. (...) Quando um filho meu um dia portar-se mal, vou contar-lhe a história da minha vida... e
vou mostrar-lhe que não é esse o caminho.”
A rebeldia foi tanta que, sensivelmente ao fim de quatro meses, tem elementos de entidades como a polícia ou a CPCJ2 à sua espera. A Professora que a
mandou ler e a quem ela recusou o pedido, a que está sempre presente, chora imenso. A sua mãe, não. Como diz a entrevistada, a mãe gosta de parecer
forte; estava quase a chorar, mas não chorou. Já Susana, chora compulsivamente; não quer ser institucionalizada. É levada para uma salinha onde continua
a chorar. Lembra-se de que a polícia que estava ali também tinha as lágrimas nos olhos. A Assistente Social diz-lhe que vai ver o que pode fazer.
“A Assistente pediu para falar comigo e perguntou-me o porquê de eu fazer isto e depois pronto, fez um resumo e perguntou-me: e se a gente te desse uma
oportunidade? O que é que tu fazias? E eu... comecei a chorar e depois disse: ‘se calhar mudava tudo.’. ‘Então e se a gente fizer isso?” E eu aí já estava a ver
a esperança a levantar. Eu disse, ‘se me fizer isso eu agradecia muito e mostrava a pessoa que sou.’. E ela disse “Está bem, espera um pouco”.
Ao fim de um tempo, a assistente e a Professora perguntam se ela mudaria mesmo o seu comportamento caso se lhe fosse dada uma oportunidade. Ela diz
que sim, e a Professora diz que aquilo tem mesmo de contar como uma promessa. É uma promessa que ela fez e mantém até hoje:
“Ela ia embora (...) pronto porque só é efectiva três anos e ela já tinha sido minha professora de 5º, 6º e 7º e ela estava a chorar (...). Ela sempre no 5º e 6º
ano dizia à minha mãe que eu era uma menina que sempre lhe chamou a atenção, o meu olhar dizia-lhe tudo, dizia-lhe a pessoa que eu era, pronto, e que
nunca tinha conhecido uma pessoa assim e que era estranho, pronto (...) e depois ela à frente de toda a gente estava a chorar bastante e disse: Susana, eu
vou-me embora desta escola, não quero perder o contacto contigo e ela disse: “só espero..., promete-me aqui, que vais portar bem, que vais ser a menina
que eras e que vais mudar tudo”. E eu tava lá a chorar e disse “Prometo”. E ela disse: “Não estás a prometer por prometer, só. Disse: Não, não estou a
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prometer por prometer só” (...) ‘Se eles disserem o contrário, essa promessa, não falas mais para mim. Apesar de eu gostar muito de ti Susana, a gente vai
perder o contacto uma com a outra”. Ainda comecei mais a chorar, depois eles deram-me uma oportunidade e depois no outro ano lectivo (...) mudei tudo”.
Quase de repente, a Susana daqueles meses desviantes desaparece; num truque de magia, a outra Susana que estava relegada para uma vida de que não
gostava, foi repescada. Se calhar, afinal, até preferia essa vida que tinha rejeitado. Dava-se a nova metamorfose, e tínhamos a antiga Susana de volta. Desta
vez uma metamorfose assente numa promessa feita à professora com quem ainda hoje contacta. A promessa que contribuiu muito mais do que qualquer
castigo que a mãe lhe deu. Mãe, que mais uma vez é desculpada pela filha: “Custa um pai a ver um filho a ir para um colégio”.
A seguir ao episódio em que esteve próxima de ser institucionalizada, a mãe deixa-a um mês de castigo. Tudo, tudo lhe é retirado. Até a televisão da sala é
mudada para o quarto dos pais. A playstation onde jogava com os irmãos. O telefone, que foi o que mais lhe custou. Sabendo que ela gosta de escrever, a
mãe tirou também folhas e canetas do seu quarto. Sempre que ia a algum lado a mãe levava duas malas: a sua e uma com os pertences de Susana. Ri-se ao
recordar isso. Mais do que uma vez na entrevista Susana diz-nos que a mãe pensa que foi por causa deste castigo que ela voltou a ser a menina de antes. Diz
mesmo, convencida do sucesso da sua atitude, que foi preciso ela fazer isso para que Susana entrasse nos eixos. Susana sabe que a alteração não teve nada
a ver com isso, mas não explica à mãe porque diz que ela não entenderia: “Já estava eu a mudar eu própria, sim, porque eu prometi à minha professora
(...)!”; “Foi mesmo a promessa! Depois comecei a crescer, começou a ser diferente, comecei a vera vida de outra forma!”.
Mais do que uma vez, directa ou indirectamente, Susana deixa ficar claro que se o acompanhamento dos pais à sua vida tivesse sido outro, ela não teria tido
esses problemas. Até hoje nunca entenderam o que se passou.
Quando a escola recomeça, é a velha Susana que volta. Alguns professores quando ela entra na sala ainda lhe dizem que se ela vai para se portar mal, pode
sair. Mesmo a contar a situação ela ainda fica envergonhada. Não conseguimos imaginar como terá ficado na altura. E claro que quando regressa à escola
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também tem de suportar os antigos amigos: “Já te portas bem, já não és nossa amiga!”. O género de situações que teve de aguentar, “sempre a chorar,
sempre sozinha”, com “2 ou 3 pessoas que podiam ajudar um pouco mais”.
Não se fica com a certeza sobre se estas bruscas mudanças de personalidade que teve são um momento da sua vida que quer sempre relembrar ou se quer,
definitivamente, esquecê-lo. Relembra-o com um certo orgulho, na medida em que isto lhe prova “a pessoa que é”, a “pessoa que consegue distinguir o
certo e o errado”, a “pessoa que consegue avaliar pessoas”: “Lá está, é difícil explicar, porque eu conheço uma pessoa e eu consigo ter a noção de como é
que ela é. É estranho. As pessoas às vezes podem pensar... se eu falar... olha, esta é maluca! Mas eu tenho noção!” ;“Lá está, depois vou conhecer melhor e
perdem a graça. Depois já tenho uma adoração por elas, é estranho!”.
Parece-nos que para que este episódio negro do seu passado fique definitivamente fechado, Susana necessita de se rodear de novos amigos. Se a ouvirmos
sem saber nada da sua história, sabemos apenas que ela se refere constantemente a “amigos” e que vemos assim que muita gente está envolvida na sua
vida. Depois vemos que talvez não sejam mesmo amigos Verificamos que é muito selectiva e que raramente os leva a sua casa; frisa que é um espaço seu.
Uma constante confusão, sobre quem é quem, sobre com quem pode contar, sobre quem trai a sua confiança: “Quero conhecer pessoas novas, mas não me
quero entregar assim. Fico com o pé atrás (...)”. Tudo resquícios dos tempos negros em que deixava a escola, as aulas e passava o dia com aqueles que ela
pensava serem amigos, no Colombo ou no Vasco da Gama, faltando às aulas. Tudo resquícios dos tempos negros em que conheceu o pior de si, para depois
recuperar o melhor. Percebeu que os amigos a quem quer chegar são outros e não desiste desse sonho. Sim, para ela, ter amigos com tudo o que de bom
inclui esse conceito, é um objectivo de vida: “Os meus amigos. São a coisa que eu mais gosto. Gosto imenso. Adoro fazer amizades. (...) Sempre fui
verdadeira com os meus amigos, sempre guardei segredos, apesar de agora ter a noção de que não há. Há mas são poucos e aqueles que há temos que
valorizá-los.”. Aliás, quando recorda momentos bons da sua adolescência, os únicos são aqueles em que está (certamente, já numa fase boa da adolescência)
a conversar com as amigas, a rir, a dançar.
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Neste momento são três as amigas, perto de ídolos, que tem. Uma delas conheceu através do namorado, mas não nos dá muitos pormenores sobre ela.
Outra, de quem já falámos neste texto, era sua explicadora e é para si uma referência. Há um presente que ela dá a Susana que foi marcante, um livro:
“Depois tive uma amiga minha que, pronto, tem 20 e tal anos e no meu dia de anos, no ano passado, ofereceu-me um livro que era “A Criança Que Não
Queria Falar”. A dedicatória, de que Susana ainda se lembra, referia que “Nunca é demais saber... ou uma coisa assim e adorei (...)”. Agora está a ler “A filha
da minha melhor amiga”, livro que ela própria escolheu no Continente. Gosta de ler os resumos antes de comprar e gostou muito deste. Interessante como
os dois títulos que nos revela poderiam encaixar na história da sua vida.
Um conselho, uma vez dado por uma professora de Educação Visual, contribuiu decisivamente para o gosto pela leitura: “Para tu aprenderes Língua
Portuguesa, porque é uma disciplina que eu não gosto muito (...) e tentares compreender as coisas, tens de ler muito”; “Os Lusíadas e essas coisas todas,
deu-me cabo da cabeça”.
O projecto Escolhas, que é o que afinal nos leva até Susana tem um impacto decisivo na sua vida, mas Susana não se apercebe como. Um dos motivos é
porque é nele que está a sua terceira grande amiga. Falta-nos falar da amiga Jaqueline, a Coordenadora do Projecto do Escolhas. Diz-nos, aliás, que se
tivesse sido um dos outros técnicos a pedir para ela nos contar a sua história de vida, ela não teria acedido fazê-lo: “(...) mas como foi a Jaqueline, ela ajudame, é recompensar ela de uma forma...!”. É uma amizade que tem vindo a cimentar-se ao longo do tempo: “ (...) Tem-se tornado cada vez ... Antes... eu
sempre gostei muito dela, mas antes... começou-se a tornar mais especial! (...) quando preciso, ela está sempre lá... basta eu ligar, mandar uma mensagem,
ela... sempre!”. A figura de Jaqueline é central para que Susana continue a frequentar o projecto. Diz Susana, que “(...) deixava de vir muitas vezes cá!” se
ela deixasse de ali estar!”
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Se isolarmos Jaqueline do projecto, falando no geral e sobre o impacto que o mesmo tem na sua vida, Susana já não reconhece uma importância tão grande:
“Alguma. Não tem muita, mas tem. Ajuda quando eu preciso, tem as portas abertas para eu vir cá tirar e esclarecer”. Embora diga que o projecto “tem umas
pessoas fantásticas”, Jaqueline está noutro patamar; Jaqueline é sua amiga. E já sabemos o que isso pode significar para Susana.
A ligação e a proximidade entre técnicos e jovens não é novidade neste caso. Vimo-lo e revelámo-lo ao longo de todo o trabalho de campo, ao mesmo
tempo que sentimos que é essencial para que continuem a ser intervencionados. Esta questão remete-nos, obviamente, para a importância que deve ser
dada à estabilidade das equipas.
O projecto já é frequentado também pelo irmão de Susana. se bem que este procura uma componente mais lúdica, como os acampamentos: “(...) porque
trabalhar ou estágios, dessas coisas não gosta”. A irmã mais velha também já começa a interessar-se em conhecer o espaço. O contacto com os pais dá-se
mais quando são precisas autorizações, por exemplo. No entanto, ainda que distante, mantêm uma boa relação com o projecto: “Os meus pais não
conhecem isto. Sabem o que é que é, mas não conhecem no geral. (...) Deixam-nos vir, sabem que é uma coisa boa, que não é nada de mal. (...) vir para os
computadores, ou vir realizar alguma coisa, um projecto (...)”.
Susana reconhece que o projecto tem tido impacto no território onde está inserido, através da ajuda que tem dado a alguns jovens: Muitos jovens agora
estão em cursos e isso, não é por terem força de vontade, mas se não tivessem o apoio de fora, para levantar o ombro, para puder subir ainda se estava a
enterrar mais”. Embora considere que o público-alvo devesse ser alargado, reconhece que agora é dirigido a jovens: “(...) Os que mais precisam, não digo
financeiramente, mas de cabeça...”.
Mesmo no que respeita à sua vida reconhece uma maior importância da dimensão relativa à escola e ao percurso escolar. Foi também importante para que
não se fechasse em casa e pudesse vir mais para a rua. Vê-se que deu muita relevância ao facto de terem confiado nela para organizar um torneio de
futebol para os mais pequenos: “Ajuda bastante porque eles ajudam-nos a escolher o que é que nós queremos... ‘Vá faz lá um coisa de futebol pros putos’: És
crescida, tens capacidades, faz lá isso...!”; “Eles ajudam-nos bastante e mostram-nos que temos que ter responsabilidades” .
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O apoio do projecto é um apoio que foi dado a si, mas que sabe que se estende a quem o procure: “(...) É importante no sentido do futuro. Porque aqui nós
construímos um futuro e basta nós querermos. Temos apoio profissional e pessoal!”. Há, no entanto, a plena convicção de que esta ajuda ou utilidade,
Susana identifica-a muito mais útil para os outros do que para si. Num dos momentos em que refere a indecisão sobre o curso a escolher, perguntamos a
quem pensa pedir ajuda ou apoio; Susana responde: “A mim própria! (...) No projecto tenho, já me ajudaram, mas lá está.... eu gosto de ser mais teimosa, eu
gosto de ir por aquilo que eu quero!”. Não duvidamos de que o projecto consiga interferir ajudando no que considera ser necessário actuar, mas também
não duvidamos de que Susana pensa que faz tudo sozinha; como já dissemos anteriormente, a sua auto-estima é elevada ou, pelo menos, luta
constantemente para que seja isso o visível.
Certamente o projecto acompanha o difícil percurso que Susana tem tido na sua adolescência. Mais do que uma intervenção dirigida a si, já que dia após dia
tem conseguido um passo em frente na sua recuperação, Susana dá-nos aqui, e a qualquer projecto Escolhas, a oportunidade de reflectirmos sobre imensas
questões: bullying, drogas, sexualidade, integração no território. Lembra-nos a dificuldade de trabalhar a faixa etária que, de facto, mais associamos a estas
problemáticas: a adolescência.
Ao falar do que mudava caso fosse Directora do Escolhas, surpreendentemente, remete para a necessidade de trabalhar com os idosos. “Isto está bom,
mas se calhar fazia mais campanhas... ter mais projectos, mostrar às pessoas que escola... o essencial e a escola para os jovens. Para os idosos, fazer mais
projectos para eles saírem de casa, muitos não saem de casa. Mostrar que a vida tem valor. (...) Mostrar que os velhos, digamos assim, os idosos, agora têm
uma vida triste se for preciso porque hoje em dia um jovem passa ali, aleija o homem... ai tá bem... não têm a consciência de que... precisávamos de mostrar
(...) e também ter campanhas em... poder fazer algo por eles, pôr música para eles dançarem. Mostrar que a vida não acabou ali só por serem idosos; a vida,
mesmo que sejam idosos, continuam”. Não é o caso dos seus avós, que não encaixam desta descrição. Isto é muito do que vê na rua e não gosta: “Não é
pena. Não sei explicar. Sinto-me mal em ver aquilo!!” .
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Ao ouvirmos Susana e a sua própria história ganhamos mais força na convicção que ao longo do trabalho de campo fomos cimentando acerca da
necessidade de envolver as famílias das crianças e jovens que são destinatários. O trabalho de uma equipa Escolhas poderia ter sido decisivo, se mais
membros desta família estivessem implicados na intervenção. Ao mesmo tempo, ao ouvirmos esta sua necessidade de trabalhar os idosos, reflectimos sobre
a importância/necessidade ou não de fazer um ainda maior alargamento à comunidade. Quem sabe não poderiam ser os próprios jovens, já integrados nos
projectos, voluntários neste tipo de actividades? Susana aderiria de imediato, temos certeza disso.
Obviamente, Susana já se sente menos adolescente do que adulta: “Já tou a entrar naquela de: já não tenho paciência para isto, fogo!”. Trabalha porque
não quer que as férias sejam só idas à praia, deixando os momentos de lazer para os fins-de-semana. É uma mulher atarefada que nos chega ao encontros,
cumprindo horários e cheia de afazeres, quando estamos em tempo de férias escolares. Também partilha tarefas com a mãe e se a mãe tem de sair para
algum trabalho que não está à espera (imaginamos que de limpezas, já que era o que fazia), ela cuida dos irmãos. Já faz planeamento familiar no Centro de
Saúde, pois não confia nos conselhos das amigas. Uma menina-mulher que carrega em si muitas histórias e nos mostra, no segundo encontro, algo mais que
também carrega: tatuagens com o nome dos irmãos havíamos visto por estarem tapadas pela roupa. Em si, toda a família escrita e inscrita.
Sente-se preparada para o futuro. Brincamos com a imagem que visualiza para si nesse tempo algo distante e, bem disposta, descreve um escritório com
paredes cheias de quadros e paredes brancas, pretas e vermelhas. E ela de gravatinha e salto alto. A imagem de uma empresária de sucesso, como estamos
habituados a ver no cinema.
A sua, é uma história de vida que Susana vê como experiência. Sentiu-se bem a partilhá-la: “Apesar de me terem escolhido porque eu sou responsável e
pronto, sei conversar, digamos assim, também é bom para falar sobre aquilo que eu já fui. E é sempre bom, alguém que nunca me conheceu, eu mostrar
aquilo tudo, mostrar a verdade. E essa pessoa fica a ver que... bem isto aqui foi mesmo... experiência!”
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Terminamos esta história como certamente quereria que terminássemos: com uma imagem e uma citação que lhe dizem muito. A imagem, a foto de família
tirada há relativamente pouco tempo no baptizado dos quatro irmãos. Para além dela, mais nenhum outro tinha tido o baptismo católico. Lembrou-se que a
tinha no telemóvel e mostrou. Salta à vista o facto de todos carregarem indumentária de cerimónia, enquanto Susana enverga uns jeans. Diferente, como
ela gosta de ser.
A citação, uma citação proferida pelo Director da escola no fecho do ano lectivo. Ela e um colega foram escolhidos para serem os apresentadores:
“(...) e o stôr por alto, à frente de toda a gente, estava cheio... estava pais, mães, tava tudo... tava o pavilhão cheio, enorme... eu tinha apresentado e estava
quase no fim (...) e no fim ele pediu o microfone e disse por alto, eu chorei, ele disse por alto: ‘Eu só queria dizer que este ano foi... os alunos, pronto por as
razões... e depois no fim disse, e também queria muitos dos jovens e muitas mães aqui... e se a mãe e o pai estiverem presentes, da Susana, queria-vos dizer
que estão de Parabéns, mas quem está mais de Parabéns é ela por mostrar a pessoa que é... e depois disse, já estava quase a chorar... e disse: Susana,
acredita! Tenho muito orgulho em ti por seres uma menina assim! Depois toda a gente bateu palmas, e eu estava a chorar estava corada, sei lá não sabia...
mas ele falou muito!”
“O meu pai estava a trabalhar e a minha mãe tinha a minha irmã! (...) Claro é sempre bom os meus pais estarem lá e ouvirem mas também é sempre bom as
outras pessoas verem que eu sou um exemplo para alguém: estava bem, fui para mal e agora fiquei muito melhor! ”
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QUEM MOSTRA’ BÔ ESS CAMINHO LONGE
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“Quem mostra’ bo ess caminho longe?”
São 28 anos de seis vidas. Seis vidas dentro de uma vida ainda tão curta; seis momentos de vida interligados mas independentes dos outros. É assim com
este homem que ainda pode parecer um menino para muitos, principalmente porque mantém colada a si a imagem de “filho mais novo” e de “irmão mais
novo”. Rui, um menino-homem que respira África, mas já transpira Portugal por todos os poros. Ele, que já tem dupla nacionalidade, nem se apercebe de
como já é, efectivamente, filho dos dois países; tirássemos um deles da sua história e Rui não seria o mesmo.
A sua vida pauta-se por um “incompletar” de situações. Uma infância “incompleta” pela ausência marcante do pai; uma adolescência “incompleta” pela
ausência da mãe; uma transição para a vida adulta “incompleta” pelos cursos que frequentou e abandonou, pelos estudos que não conseguiu terminar e
pelo emprego que teve de deixar. Ele é quem diz que já se pergunta se será que nunca consegue acabar as coisas. No entanto, nas entrelinhas do seu
discurso emerge a força com que encara as adversidades e que advém de quem, desde novo, está habituado a enfrentá-las. O seu suporte, sempre, terá
sido a ligação com a mãe e irmãos; “somos muito unidos”, afirma ele várias vezes. A percepção do sentido de família que sempre existiu acentuou-se ainda
mais com o nascimento da filha há cerca de um mês.
É um menino quem se nos apresenta quando pedimos uma viagem, pelas memórias, até à infância. A saudade, genuína, com que fala do seu país de origem
emociona qualquer um, muito embora ele o faça de forma tímida. Quando damos por nós, corremos com ele naquelas ruas, naquela avenida larga,
tomamos banho no rio e rimos na rua; vamos às fontes buscar água porque, como diz, “não havia torneiras como aqui”. Uma infância feliz, tanto aos olhos
de outrora, como aos olhos de hoje. A sombra que podia pairar naqueles dias vagarosos de África seria a da ausência do pai. Um pai que, embora ainda
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casado/relacionado com a mãe, tinha partido para Angola. Ele próprio, vê-se, não sabe bem definir qual era a relação dos pais. Sabia e sempre soube que
tinha pai, muito embora alguns amigos parecessem duvidar da questão. Involuntariamente, mais do que uma vez enquanto estivemos juntos, repete o
gesto que deve ter feito tantas e tantas vezes naqueles tempos: na palma das duas mãos, segura uma fotografia imaginária, do pai, e olha como que
certificando-se que sim, que tinha pai; ele tinha provas e mostra as mãos como se eu o pudesse comprovar ali mesmo, neste ano de 2012. A referência
masculina pecava pela ausência, mas a mãe tinha amor suficiente para ele e para os seus três irmãos: um menino e duas meninas. Ele, como benjamim do
grupo, usufruía ainda dos cuidados atentos das manas que assumiam responsabilidades relativamente a si, quando a mãe estava a trabalhar. Relembra,
rindo, o episódio em que a irmã lhe deu banho, tratou dele como a mãe exigia e que acabou em confusão e choro. Ele foi para a rua, e já depois de estar
“impecável”, sujou-se todo; quando a mãe viu aquilo zangou-se e bateu na irmã. Depois chorou a mãe, quando descobriu que a filha era inocente. Ainda
hoje a irmã lhe fala nesse episódio, mas dando um tom divertido ao acontecimento.
Nas ruas, na vizinhança, entre os mais próximos, havia um sentimento de solidariedade que Rui não encontrou cá, em Portugal. Os vizinhos davam e
trocavam tudo entre si: da farinha até à possibilidade de assistir à televisão que não tinha em casa.
Um irmão da mãe, militar e que era uma referência para Rui, ajudava também na educação dos sobrinhos. Rui assume a pobreza que sabe que tinha e
assume-o com olhar envergonhado. Um olhar envergonhado que parece temer avaliações e interpretações erradas a uma realidade que sabe não
percebemos, nem conhecemos. Mas de si para si, digamos assim, essa vergonha não existe; ele foi tão, mas tão feliz naqueles primeiros tempos da sua vida
que não há pobreza que os assombre.
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Nos seus dias de infância a escola surge como parte da rotina diária. Era, não só um local de aprendizagem, mas também o local de trabalho da mãe,
cozinheira. Esse trabalho na cozinha da escola acabava por resultar num reforço a uma parca e fraca alimentação.
Escola, amigos, vizinhos. Esta era a sua rede na infância. Uma rede que parece forte e constituída pela partilha de maus e bons momentos. Recorda-se de
quando via o futebol que dava a seguir às notícias, em casa de vizinhos. O futebol era a sua fonte de ídolos. Figo, João Pinto, Sá Pinto. Mais tarde o C.
Ronaldo. Sempre a relação com o Sporting, diz: “todos eles têm algo a ver com o Sporting”. Sorri quando lhe digo que reparei numa fotografia, exposta no
projecto em que ele e alguns miúdos estão com o Sá Pinto. Sorri perante a minha descoberta. E fala-me ainda do Eusébio que nunca viu jogar, mas que
também foi importante. Sabia o que ele significava e valorizava-o muito. Nestes momentos, em que fala dos jogadores de Portugal, encaixando-os na rotina
de São Tomé, como que sentimos a existência de um cordão umbilical que, descolonização à parte, nunca terá sido quebrado. É com naturalidade que
somos transportados para um cenário em que, de longe, se observa o que se passa na “pátria” que não sendo de sangue, sempre esteve na alma.
A infância que parece ser uma fase que decorre envolta numa simplicidade feliz, é marcada por três momentos: o momento em que a avó materna parte
para Cabo Verde; o momento em que conhece o pai; a partida do irmão, que é levado pelo pai.
Na vida de Rui tudo se vai conjugando para que ele fique sozinho. Acabam todos por partir em busca de uma vida melhor. A mãe, pensando que o protege,
deixa-o em São Tomé. Para que ele não fique sozinho na casa que é deles, arranjam-se as coisas de forma a que um tio, irmão da mãe, acabado de casar, vá
viver com ele. A mãe de Rui, pensa que está a ajudar o irmão retirando-lhe o peso da renda mensal de uma casa e consegue companhia para o filho.
Inesperada e surpreendentemente, dá-se início à fase mais difícil da vida de Rui e este, com um altruísmo que não percebemos onde foi buscar, esconde da
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mãe a tortura que está a passar; não considera justo que ela tenha vindo para lhes dar melhores condições e que agora tenha preocupações com ele. O tio
apodera-se da casa e também do dinheiro que mensalmente a mãe de Rui envia para sustento e educação do filho: 50 mil escudos ou “50 contos”. O
dinheiro era tanto que chega a ser suficiente para que o tio arranje uma segunda mulher e a mantenha também. Desse dinheiro, Rui não vê sequer a cor. O
tio e a mulher deste, que Rui não tem pudor em caracterizar como má, comem bem. Mas quando ele chega dão-lhe um pão velho de uma farinha já
estragada. Passa fome, vai para a escola com fome. Perde muito peso nessa altura, ele, que era gordinho. Vai buscar água a locais muito mais distantes de
casa e é obrigado a trazê-la em recipientes muito maiores. Não bastando tudo isto, o tio talvez com sentimento de culpa e tentando arranjar um bode
expiatório para justificar os actos vis em relação ao sobrinho, queixa-se ao irmão mais velho do comportamento que ele vem tendo em relação à escola. E
Rui recorda o dia em que por causa de um caderno e por denúncias não verdadeiras que põem em causa a sua comparência às aulas, o tio mais velho está
em casa também para lhe bater. Esse outro tio obrigava-o ainda a trabalhos que chamaremos, certamente com realidade, de “forçados”. Aos fins-desemana, Rui tinha que acordar de madrugada para trabalhar na fazenda, nas plantações. Vê-se a mágoa que o seu olhar transporta ao recordar esses
tempos.
A libertação das torturas de que vem sendo alvo acontece num dia em que, fugindo do tio, entra em casa de uma vizinha. O tio, possuído pela loucura, rasga
à facada uma rede mosquiteira da casa dessa vizinha, tentando atingi-lo. E naquele momento, Rui que ainda não sabe disso, passará novamente a ser
amado. Rasga-se a rede mosquiteira e rasga-se aquele capítulo da sua adolescência. “Uma outra mãe que eu tenho, essa senhora”, não tem problemas em
dizê-lo enquanto me vai relatando a história e mexendo afirmativamente a cabeça. A vizinha diz que dali ele não sairá mais, depois de assistir ao que assistiu.
É essa mulher que Rui tanto admira que informa a mãe de tudo o que se está a passar. Imediatamente, a progenitora de Rui que é confrontada com uma
realidade que desconhecia totalmente, refere que o dinheiro passará a ser enviado para ela. Ela recusa e diz que não será por dinheiro que o acolherá. É
verdade que também vivia bem; era deputada e uma pessoa influente. Com ela, Rui “frequentou sítios e aprendeu coisas que nunca teria aprendido de
outra forma”, diz-me ele; sentou-se com o “Presidente da Assembleia” à mesa. Ainda hoje, esse homem, quando vem a Portugal, pergunta a essa senhora
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(que agora também cá vive) como é que está o Rui. Impossível traduzir para escrito os gestos, o constante acenar de cabeça que Rui faz quando fala dela. Há
um reconhecimento profundíssimo do impacto que ela teve na vida dele. Numa vida que, embora de saúde corresse bem, estava a ser salva pela primeira
vez. Torna-se num irmão protector de uma filha da senhora que o acolhe. Não a deixa frequentar certos sítios sozinha, vigia-a, vai com ela à discoteca. Está
completamente integrado na rotina familiar.
Os seus estudos prosseguiram; não pararam, mesmo na fase má que passa com o tio. Embora as notas piorem, claro. Impossível que não piorassem, numa
altura em que sentiu fome. Na altura, não pensava seguir a universidade. Em São Tomé nem sequer existia e os que a seguiam iam para outros países. Havia
bolsas e falava-se, essencialmente, de ir para Cuba. E de ir para “engenharias”. Mas não era nisso que ele pensava. Ele queria ser militar; sempre o quisera e
agora ainda mais. Nele foi crescendo a ideia de que essa profissão e o poder que daí adviria, poderia seria usado contra o tio que o maltratou. A um mês de
poder seguir esse percurso, recebe um telefonema dizendo que o visto estava tratado e que podia vir para Portugal. Ficou feliz e ficou triste. Queria vir, mas
queria muito ser militar. Veio e resignou-se, enfrentando uma nova realidade. Começava mais uma vida.
Transversalmente a tantas memórias menos boas, concentradas na sua adolescência, Rui tem ainda recordações que o fazem rir bastante. E que,
inevitavelmente fazem sentir bem quem escuta. Impossível não sorrir ao ver aquele menino, com os amigos, sentados no passeio a ouvir música e a ler
livros enquanto viam as raparigas passar a caminho da fonte. Dos livros, retiravam umas palavras mais eruditas que serviam como algo a usar no momento
da conquista. Iam ter com a moça e voltavam para junto dos outros rapazes: “Então, conseguiste?”, “Ela diz que vai pensar”! E como ele ri a lembrar disto.
Era o menino a quem uma tia ensinou a tocar e dançar segundo as tradições. O menino que jogava muito à bola e que ia à caça de passarinhos, com os
amigos. O menino que apanhava camarões no rio e comia, regando tudo com umas bebidas típicas de São Tomé. O menino tímido que, quando ia à
discoteca ficava a observar como se dançavam certas músicas e que agarrava na vassoura para treinar quando a mesma melodia passava na Rádio Nacional.
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Uma adolescência livre e ausente de vícios, drogas e tentações tão comuns a quem cresce na realidade para onde, pouco tempo depois, seria transportado.
Até o acesso a um cigarro era complicado e por isso, nem sequer questionado.
Quando relembra a vida afectiva e amorosa, o que sobressai também é motivo para rir. Demonstra que seria um rapaz tímido, e assim ficou na posição
confortável de namorar a menina que disse que iria namorar quando a mesma nasceu. Pelos vistos, “era assim”; ele disse-o e isso foi aceite pela família. Até
ao dia em que se apaixona por uma “mulata” da escola que, por ser “mulata” era mais atraente. Uma semana depois de conseguir começar a namorar a tal
“mulata”, ela decide acabar a relação. Resultado: já não tinha a primeira, nem a segunda namorada.
A adolescência é marcada pela situação familiar/maus tratos por parte do tio e depois, pelo acolhimento que a vizinha lhe faz, permitindo que a sua vida
volte a ter um decurso normal.
Rui vem para Portugal e vai viver para o Montijo. Numa primeira fase, a mãe, viveu no Porto, mas o pai, entretanto, vai buscá-la. Alega que são marido e
mulher que têm filhos em comum, pelo que deverão viver juntos. Vêm para o Montijo, onde ele tem casa. Rui não sabe o que se passou, até hoje a mãe não
quer falar muito sobre isso, mas há um dia em que o pai os expulsa a todos de casa e diz que vai casar com uma mulher cabo-verdiana. A mãe sai, com os
filhos e vão viver para uma casa que entretanto uma das filhas começa a comprar. Há aqui uma incógnita que incomoda Rui; não percebe como é que pôde
acontecer isto tudo “quando achava que voltariam a ser uma família”. Antes deste reencontro com a mãe e com a família, que volta a não correr bem, o pai
de Rui já tinha um filho de uma outra relação. Do novo casamento nascem mais dois. Rui diz que se dá bem com os irmãos; “isso não tem nada a ver”.
Quando chega a Portugal, Rui tem o equivalente ao 9º ano. Vai para uma escola no Montijo onde se sente bem integrado. Faz referência ao facto de
existirem muitos africanos. Recorda dois colegas, não africanos, que o ajudaram imenso: “foram mesmo “the best”, mesmo”. Naquela escola, no entanto,
começava a tentação por enveredar por outros caminhos. Era todo um mundo novo que se abriu para Rui e com o qual nunca tinha tido contacto; a
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quantidade de cigarros que fumavam e a que se tinha acesso era uma coisa que lhe fazia confusão. As coisas não correram bem e a mãe considera que é
melhor ele sair daquela escola. Vai para um curso profissional, na área da Informática, no Seixal. Permanece durante quase 2 anos, mas não o acaba. E aqui
faz referência ao facto de mais uma vez não conseguir terminar algo que iniciou. Ele até estava a gostar do curso, mas a falta de dinheiro, a distância, o que
se gastava ao transporte ditou o abandono do mesmo.
Aqui inicia-se mais um “período negro” da vida de Rui. Passa os dias em casa, no computador e angustia-se porque afinal, veio para Portugal e não está a
fazer nada. Sente que tem que mudar, mas não vê como fazê-lo. Há um dia em que um amigo o convida para ir até ao “KERER”. Ele resistiu, não sabia bem o
que ia lá fazer. Lembra-se de que levava vestido um fato-de-treino que nunca queria despir; passava os dias com aquela roupa e ri-se ao justificar que era só
porque era da Lacoste. Esse dia, em que a disposição não era muito boa e em que a resistência à novidade era palavra de ordem, foi apenas o primeiro dia
de uma ligação que jamais se quebraria. Gostou da visita ao projecto que decorria “ainda ali em baixo”, nas antigas instalações: Recorda e enumera-me os
dias da semana em que voltou a ir; nessa semana foi ainda uma “quarta” e depois uma “sexta”. Quis voltar sempre e sempre. Uma técnica, L., falou muito
com ele. Quis saber de onde vinha, porque estava cá, o que queria fazer na vida.
Com 20 anos, Rui começa a vir à tona da água onde tinha submergido. Algo ou alguém está a ajudá-lo nesse processo. Começa a interessar-se pelo projecto,
a participar em algumas actividades até ao ponto de, conjuntamente com as técnicas, perceber que poderia estudar algo relacionado com a intervenção
social. Começa a tirar um curso de “Animador Sociocultural”, onde uma das técnicas é também professora. Ri-se ao lembrar que ela era exigente com ele.
A luz que víamos brilhar nos olhos de Rui ao recordar a infância, reaparece ao relembrar esta época. A época em que descobriu que gostava mesmo daquilo
que estava a fazer, a aprender. Vem a oportunidade de ser dinamizador do próprio projecto e isso, é fulcral neste menino/homem. Há aqui, ao falar disto
uma dupla sensação de reconhecimento: o orgulho no reconhecimento que a equipa, os técnicos e o projecto tiveram nele e o reconhecimento que ele tem
por terem apostado nele. Trabalhar com crianças é algo que descobre que lhe dá uma satisfação imensa, muito embora já o soubesse do contacto diário
que tinha com as mesmas. Há coisas que na altura o surpreenderam e marcaram, como o momento em que a coordenadora lhe diz que vão pôr uma
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secretária para ele poder trabalhar e em que ele diz que não é preciso, quer continuar a ser o mesmo. Havia quase uma dificuldade em perceber que tinha
dado um salto no seu percurso.
A mãe de Rui e a equipa do projecto foram, desde que ele começou a frequentá-lo, mantendo algum contacto relevante. A cozinheira de São Tomé vai
mesmo ao Projecto participar em algumas atividades relacionadas com a cozinha, colaborando com a sua arte. Ela gosta mesmo de cozinhar. Gosta ao
ponto de Rui considerar que hoje em dia ela não trabalha, “tem um café com uma amiga”.
Com o Projecto passou a fazer coisas que anteriormente lhe estavam, de alguma forma, vedadas. “Já ia a Lisboa”, por exemplo. Ia a sítios novos, conhecia
novas realidades. O projecto dá-lhe uma rotina feliz; já lhe dava enquanto era só destinatário e continua a dar enquanto técnico. É, sem dúvida, salvo do
marasmo em que se encontrava. Torna-se numa referência para as crianças e jovens. Ou melhor, referência já o era. Já era o amigo mais velho que ajudava
e participava sempre. Agora apenas tem a acrescentar-lhes “Estão a ver? Um dia pode acontecer-vos o mesmo que ao Rui e trabalhar aqui.” Lê-se, sem
dificuldades de interpretação, que estamos naquele campo dos sonhos tornados realidade.
O curso de animador sociocultural corre bem. É trabalhoso, mas corre bem. Mais do que uma vez, na entrevista, pergunto o porquê de não estar terminado.
Não é porque tenha deixado de gostar. É porque “faltam uns testes”. Mas isso não foi, não é e não seria motivo para dificultar a sua continuidade num lugar
que parecia desenhado para si. A nuvem que paira ameaçando que ele não “complete” as coisas de que gosta, sobrevoa agora também a sua vida
profissional. E o motivo deixa-o magoado, percebe-se. Os seus olhos mostram uma certa incredulidade com o motivo que provocou que saísse do emprego
para onde voltaria “na hora” caso se garantisse que não ocorreria mais. Os “atrasos no pagamento” que acontecem no seio Pagamento. A incerteza que isso
gerava não era compatível com a vida que queria “certinha” e com a garantia de poder ajudar, financeiramente, a família. Foi o que correu mal naquele
sonho. E ele, ao mesmo tempo, ia sabendo de um local de oportunidades onde a sua irmã já estava estabelecida e para onde a sua namorada também já
partira.
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Ele vai. E já vai para a sua 6ª vida. E o menino que cresce no ambiente acolhedor e tropical de São Tomé e Príncipe, vê-se agora num país onde o frio lhe
tolda os movimentos. Quase que nós próprios, a ouvir, sentimos o frio e a dor causada pelas botas que calça para enfrentar a neve. Foi uma adaptação difícil.
Mesmo o facto de a namorada, que vivia já nesse país mas noutra cidade, ir viver com ele, ajuda. Há trabalho com horários muito prolongados, tem
empregos que passam por tarefas que nunca desempenhou (ajudante de cozinha e funcionário de limpezas em escritórios), tem dificuldade na língua, tem
saudades. Só o nascimento da filha vem dar uma tonalidade mais alegre ao cinzento que pauta os seus dias. Agora, enquanto está cá a passar umas
pequenas férias, a saudade que sente é da filha. A filha que, pelo menos durante uns tempos, tudo leva a crer que crescerá naquele país que parece a Rui
apresentar algumas oportunidades. Pouco a pouco a adaptação vai-se fazendo e rindo, diz que até já consegue ir ao mercado comprar as suas coisas,
usando o a língua que não é a sua. Ele e a namorada/mulher pensam prosseguir os estudos. Tanto um como o outro já planeiam entrar na universidade.
Para isso apenas será necessário fazerem um exame de Inglês e Matemática; refere-me que isso é assim para todos os interessados em ingressar na
Universidade, independentemente do curso que queiram seguir. Aparentemente não haverá problema de não ter completado totalmente o curso de
Animação Sociocultural. O pai da namorada preocupa-se por ela ser tão nova e já não estar a estudar, mas ele já lhe disse que “fique descansado... a filha irá
estudar”. Ele próprio já lhe disse que, uma vez que não está a trabalhar, não deve esperar mais; já domina o Inglês, pelo que não tem motivos para adiar.
Não há informações suficientes que possibilitem avançar “certezas” acerca do impacto que esta mulher teve/tem na vida do nosso entrevistado. Sabemos
que já namoram há uns anos e sabemos que ela engravidou sem que isso estivesse nos planos, na última viagem que fez a Portugal, quando Rui ainda cá
residia. De qualquer forma, a partir do momento em que a filha nasce ficamos com a sensação de que ali começa uma nova e verdadeira família; uma
companheira que está ao lado de Rui, disposta a acompanhá-lo para onde ele quiser ir. Mesmo que ele insista em realizar o sonho que tem há muito tempo,
ela acompanhá-lo-á; os dois irão juntos para São Tomé. Ela, guineense, não se importa desde que fique ao lado dele. “Ela vai comigo para São Tomé, diz que
fica onde eu estiver.”; conta Rui
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Quando me fala desse sonho, os olhos de Rui mostram o mesmo que mostravam quando falava da sua infância. Quer comprar um terreno e mandar
construir uma casa. Isto, depois de conseguir tirar o seu curso de Engenharia Agrónoma. Talvez concretizando este sonho, Rui abandone a sensação de que
nada fica completo. Há tempo, o irmão, de visita a São Tomé viu um terreno que disse que era o ideal para ambos construírem uma casa, lado a lado. Rui
ficou entusiasmado. Esse irmão acabou por casar com a filha da mulher que acolheu Rui na fase mais triste da sua vida. O seus três sobrinhos são, ao
mesmo tempo, netos daquela “mãe”. No fundo são sobrinhos por lado de pai e por lado de mãe. Tento perceber se a ligação entre eles começa porque Rui
foi viver com ela e com a mãe dela, mas não. Eles já tinham uma “paixão” de criança e quando ela veio para Portugal, Rui avisou o irmão.
Em relação a esses sobrinhos, Rui tentou sempre colmatar a ausência do irmão, emigrado noutro país europeu. Enquanto ainda vivia em Portugal, embora
não o diga claramente, tenta que os sobrinhos não sofram a ausência do pai como ele sofreu. É a figura masculina de referência.
Tanto ele como os irmãos, estão relacionados com indivíduos de origem africana. No primeiro encontro acabamos por falar sobre isso e ele diz que embora
tenha namorado portuguesas, há “qualquer coisa” com África. Ri-se. Falamos e chega-se à conclusão de que independentemente do país de origem (São
Tomé, Angola, Guiné...), o continente, África, sobrepõe-se.
No país onde vive agora é visto pelos outros como “português”, que afinal também é, mas os contactos que tem extra-trabalho são mais com angolanos. A
irmã mais velha é casada com um angolano e através dele conhece outros. Na maior parte dos casos, este menino sempre ávido de aprender e progredir,
sente que não aprende muito com aquelas pessoas que já estão “conformadas” a um determinado estilo de vida. Mas há um ou dois que sobressaem, que
lhe dão dicas que dizem como deve fazer, “onde se inscrever”, “o que solicitar”. Há quem se surpreenda com as ideias que ele, Rui ainda tão novo, já tem.
Diz que o contacto dele e da namorada com as filhas da irmã mais velha, ainda muito pequeninas, tem sido muito útil para que elas saibam falar o
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português. Diz que o pai delas já não fala muito bem a língua e que às vezes, quando eles vêm o noticiário, não percebe mesmo nada do que estão a dizer.
Com as informações que nos vai dando, apercebemo-nos de que ele não se apercebe da importância que está a ter na vida dele, a rede social que tem no
país que o acolhe neste momento.
A vida no novo país decorre entre a adaptação que vai correndo cada vez melhor e a saudade de Portugal, da família que cá está e do projecto do Escolhas.
Tem pena de ter deixado o projecto pelo motivo que deixou, o facto de poder estar sem receber durante muito tempo, mas não guarda mágoa. O projecto é
inalienável da sua vida; de certa forma, não se desliga. Continua a fazer parte do projecto. Os outros, que cá estão, também sentem isso. Muitas são as
vezes em que, ao deitar-se, pensa nas palavras da coordenadora do Projecto; as palavras que lhe disse quando ele decidiu emigrar. A força que lhe
transmitiu, os conselhos que lhe deu. Não esquece nada disso.
No Facebook vai falando com os jovens do projecto. Olha para quem o entrevista com ar inquisidor e repete várias vezes algo que preocupa os jovens. “Será
que o projecto vai acabar?”. Será que a crise vai afectar a continuação do projecto? São dúvidas que ele tem. Vai sempre dizendo aos jovens para que não se
preocupem. Mas vemos que ele, Rui, está preocupado com isso. Muitas vezes, ao jantar, o tema de conversa com a namorada acaba por ser os jovens do
projecto e aquilo que vai falando com eles. Vamo-nos apercebendo de que o projecto continua dia-a-dia, hora a hora na sua vida. O projecto salvou-o numa
fase de total anomia e ele jamais o esquecerá. A energia que sente que tem e que os outros lhe apontam ele refere ser a “Energia Escolhas”. Di-lo mais do
que uma vez, olhando para mim: “Esta energia? É a energia do Escolhas! É a energia do Escolhas!”
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Tudo o que diz sobre o Projecto é positivo. Está bem pensado, é excelente, não mudava nada. Nada parece ter ficado por concretizar, mesmo tendo
chegado já “tarde”, com 20 anos. Num curto espaço de tempo, deu-lhe imenso. E vê-se adivinha-se o amor que Rui dedicou às crianças e jovens daquele
bairro onde ele também pertence.
No segundo e último encontro que temos Rui leva quatro fotografias marcantes para ele. Três tiradas em São Tomé; uma tirada em Portugal. Todas elas
com amigos. De repente, ao olharmos para elas, revimos tanto do que nos foi dito. Fala das pessoas que ali estão, diz-me por onde andam. Poucos em São
Tomé. Todos à procura de uma vida melhor. A fotografia tirada em Portugal apresenta um dos amigos verdadeiros que fez cá. Um amigo da primeira escola,
um dos que o acolheu quando chegou a Portugal. Está agora desempregado, esse amigo. As fotografias de São Tomé, que deixam antever o verde e as ruas
que nos deixam com vontade de acompanhar Rui numa próxima visita. E se um dia fizermos essa visita, muito provavelmente seremos recebidos com
honras de Estado. Rui não categoriza desta forma as recepções que tem, mas sabe que é diferente. O irmão, quando foi com ele também não acreditava. As
pessoas com quem viveu, a vida que teve a partir daí deram-lhe um estatuto, na escala social, que de outra forma jamais teria conquistado. Tempo ainda
para perguntar se já foi a Príncipe. Nunca foi. Quando for, quer ir de avião. Poderia ter ido de barco, mas é muito perigoso. Não há segurança; nunca quis
arriscar. Agora sim, já poderia ir de avião. E há-de ir. Lembro-me de a certa altura perguntar se já leu o Equador, de Miguel Sousa Tavares. Mostra-se logo
muito entusiasmado; diz que viu o filme. Não vi o filme e pergunto-lhe se faz jus à sua terra e diz-me que sim. Digo-lhe que tem que ler o livro e ele sorri
como que feliz por ver que se sabem coisas, independentemente de que coisas são essas, sobre a sua terra.
Neste último encontro, acabamos por falar de alguém que Rui não sabe como não surgiu na primeira entrevista: o avô, pai da mãe. A admiração que tinha
por ele, fica fácil de ver, era imensa. Lamenta profundamente, e vê-se que é algo em que já pensou várias vezes, que o avô já não esteja vivo, agora que
podia ajudá-lo. Agora tem dinheiro para tornar a sua vida melhor e já não pode fazê-lo. Muitas pessoas dizem que é ele o familiar igual ao avô. Ele sente-se,
vemos, como que um substituto. A dor da perda do avô já permite aqueles momentos em que, embora infelizes, mantemos o sorriso sempre que falamos
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daquela pessoa. Não resiste a contar uma história sobre esta pessoa especial. Houve um dia em que depois de fazer os seus giros, o avô acaba por
alcoolizar-se. Por esse motivo passa a noite em casa da mãe de Rui que se chateia com o pai por ele chegar naquele estado. Nessa noite, o quintal de Rui é
assaltado e quando acorda, a sua mãe vê que as galinhas e os outros animais tinham sido todos roubados. A mãe zanga-se então com o avô! Como é que é
possível que, precisamente na noite em que ele ali dormiu, sendo militar e por isso podendo estar sempre armado, tenham sido assaltados. O avô dizia que
não tinha mesmo ouvido nada. Ri-se ao recordar a história.
Ouvindo falar tanto e tão bem do avô, impõe-se que se pergunte como é que esse avô não se apercebeu do mau momento que ele passou com o tio. Ele,
mais uma vez, tentou proteger os outros e não contou ao avô, tal como não havia contado à sua mãe. E esse avô não era pai desse tio, o que ainda tornaria
as coisas mais difíceis.
A envolver os dois encontros que tivemos pairará sempre a memória do feliz reencontro que teve com os colegas e com os jovens. Assisti ao reencontro
com três colegas. Dois no primeiro dia e um no segundo. O entusiasmo, a emoção eram imensas. Uma alegria sincera, uma intensa vontade de revê-lo.
Crianças, a saltar para o seu colo e ele, certamente, a esconder a emoção. Não sei, e penso que essa dúvida é positiva, se o projecto se estava a reencontrar
com um técnico ou com um destinatário. Se há projectos em que, pelo menos a quem vê de fora, o que se apresenta é uma família, este é um deles. E Rui, o
menino-homem que diz não completar as coisas, tem tido uma constante na vida; uma fonte de energia e amor que chega no momento em que mais
precisa. Já houve o momento em que uma vizinha, que viria a ser muito mais do que isso, o salva. Já houve o momento em que o nascimento da filha tem
esse impacto. Já houve o dia em que foi o Escolhas. A energia Escolhas que ele recebeu, aprendeu a utilizar e guardará para sempre.
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NO PALCO DA VIDA CONTRACENANDO COM O TEMPO
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No palco da Vida, contracenando com o Tempo
Sinopse de “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago.
Uma cidade é devastada por uma epidemia instantânea de "cegueira branca". Face a este surto misterioso, os primeiros indivíduos a serem
infectados são colocados pelas autoridades governamentais em quarentena, num hospital abandonado. Cada dia que passa aparecem mais
pacientes, e esta recém-criada "sociedade de cegos" entra em colapso. Tudo piora quando um grupo de criminosos, mais poderoso
fisicamente, se sobrepõe aos fracos, racionando-lhes a comida e cometendo actos horríveis. Há, porém, uma testemunha ocular a este
pesadelo: uma mulher, cuja visão não foi afectada por esta praga, que acompanha o seu marido cego para o asilo. Ali, mantendo o seu
segredo, ela guia sete desconhecidos que se tornam, na sua essência, numa família. Ela leva-os para fora da quarentena em direcção às ruas
deprimentes da cidade, que viram todos os vestígios de uma civilização entrar em colapso. A viagem destes é plena de perigos, mas a mulher
guia-os numa luta contra os piores desejos e fraquezas da raça humana, abrindo-lhes a porta para um novo mundo de esperança, onde a sua
sobrevivência e redenção final reflectem a tenacidade do espírito humano.”
* Sinopse de apresentação da obra “Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago”
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Esta história, começamo-la pelo fim; pelo fim da segunda entrevista. Desde o início desse encontro que à nossa vista saltou o facto de Daniel trazer consigo
o “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. Esse facto acabou por causar uma estranha inquietação que o entrevistado estava longe de poder imaginar
existir. Quase a fechar uma importante etapa do trabalho de campo, repentinamente, algo se tornava claro. Parecia encontrar-se todo um sentido naquele
acaso do destino. Lendo a sinopse acima citada é impossível que, como tão bem Saramago fazia, não pensemos nós numa alegoria; desta vez, entre a
história que se conta no livro e o impacto que o Escolhas pode ter nas vidas que procurámos conhecer melhor. “Uma viagem plena de perigos”; alguém que
“guia”; uma “luta” que, no fundo, é contra a própria sociedade; “a tenacidade do espírito humano”. Desde o anterior encontro que sabíamos estar perante
mais um exemplo de tenacidade. Impossível não pensarmos que Daniel, como outros que foram ou poderiam ter sido entrevistados, têm uma característica
dessa ordem que os afasta de uma qualquer cegueira. Os momentos que passámos com eles estão preenchidos de lutas dessas, ao ponto de nos levarem a
reflectir, em alguns momentos, sobre a possibilidade de vivermos num mundo de heróis que desconhecíamos por completo.
Sobre o livro que está a ler e sendo questionado sobre se está a gostar do mesmo, já na nossa despedida, Daniel responde afirmativamente. Também já viu
o filme, mas considera que o livro é muito mais impressionante – “Estou na parte em que eles estão a tentar dividir a comida e não sabem se hão-de confiar,
em quem...”. A confiança. Uma palavra que também ganha estatuto de palavra-chave nesta pesquisa. Muito do trabalho que é feito entre equipas Escolhas
e jovens é baseado nisso mesmo, na confiança e nos laços que entre eles se vão criando; essa é uma certeza irrefutável que ganhamos nestas nossas
incursões e que remetem para a importância da maior estabilidade que se conseguir nas equipas.
O livro, ainda o livro de que falamos, foi-lhe emprestado por um colega de trabalho que já lhe dera a conhecer outras obras. Gosta de ler e sentimos que
essa tem sido uma agradável e surpreendente descoberta, ainda que o mundo dos livros não seja novidade total: naquele que considera ser mesmo o seu
grupo de amigos, os amigos da escola secundária, todos lêem também.
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Agora as apresentações. Dezanove anos. Estuda, mas também já trabalha como actor e bailarino. Gosta muito do que faz, mas não há a certeza se é isso que
quer mesmo fazer no futuro, fruto das poucas oportunidades existentes em Portugal. Sente-se realizado quando está a actuar: “Estou a fazer uma das coisas
que mais gosto... é quase como se não me ocupasse tempo, não é? Não sinto falta de outra coisa porque estou a realizar um desejo meu.” Talvez devamos
apresenta-lo também como um “fazedor e concretizador de sonhos”, sim, se tivermos em conta tudo o que já conquistou. É também empreendedor; é
membro da Associação de Estudantes, formou o grupo de dança onde actua. No que à dança diz respeito, procuram, desde há dois anos quando se
juntaram na escola secundária, fazer espectáculos onde tentam abranger uma variedade de espectadores, dos mais novos aos mais velhos. Ainda assim, o
público-alvo é o que ronda a sua faixa etária ou a faixa um pouco mais abaixo. Conta-nos algumas curiosidades/brincadeiras em torno do nome do grupo. O
tempo dedicado a cada uma das artes, teatro e dança, é “fifty-fifty”. No teatro aufere algum dinheiro, na dança não. Nesta última, para além do grupo achar
que ainda não deve “pedir nada”, conta o gosto pessoal em dançar.
Ao seu jeito, doce e calmo, vai-nos contando a história da sua vida; história à qual ficamos, inevitavelmente, presos. Uma das constatações que rapidamente
fazemos, é a de que não é apenas hoje, enquanto alterna entre mundos criados por Lewis Carroll e Shakespeare, que este menino, sabe o que é mudar
constantemente de cenário. É um bom contador de histórias e nós vamos percebendo que o teatro talvez tenha sido a arte que se viu obrigado a interiorizar
desde a mais tenra infância, ainda que de forma inconsciente e pouco confortável. Vê-se ainda que muito do que nos conta traz já um selo de reflexão.
Daniel, é pessoa que certamente se detém, de vez em quando, a pensar na sua vida; algumas das coisas que partilha já terão sido “passadas a limpo” a sós
consigo próprio.
A infância de Daniel, que ele ainda consegue passar-nos envolta em adereços felizes, tem, indiscutivelmente, muitos contratempos associados, sendo que
uns foram-lhe mais dolorosos que outros. Daniel foi um menino que mudou de casa várias vezes; as vezes que muitos não mudam, numa vida inteira. Mas
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isso não o cansou da forma que imaginamos que podia ter “cansado”. Angustiamo-nos mais nós, a ouvir a cronologia das diferentes moradas, do que
alguma vez ele parece ter-se cansado ao andar de casa em casa. Os tempos, os lugares, a forma como passou de residência para residência, estão bem
memorizados. Um percurso confuso em termos de território: “Foi por isso também que não consegui, se calhar, crescer de uma forma mais linear, de uma
forma mais habituada a uma rotina”, diz-nos. Nasce em Setúbal, vai para Queluz ainda bebé, de Queluz para Santo António dos Cavaleiros, seguem-se o
“Lumiar” e o Algueirão e, finalmente, o Bairro do Polana. Talvez por toda esta instabilidade associada à residência, não sintamos que Daniel “pertence”, de
facto a algum dos lugares por onde passou. Há, no entanto, três lugares-chave: Queluz, Santo António dos Cavaleiros e o Bairro do Polana e que são os que
correspondem aos momentos mais felizes.
Mais do que pautada por objectivos específicos, foram contingências económicas as que ditaram esta vida quase nómada, na infância. Uma contínua
mudança de palco, de cenários e de actores que provocam, por exemplo, o chumbo no 4º ano: mudou-se antes de a escola terminar e não conseguiu
acabar o ano. Não há mágoas nem ressentimentos desses tempos em que os imaginamos, constantemente carregados e atarefados: ele, a família e as
mobílias: “Não me fez confusão mudar várias vezes de casa, não me fez confusão estar sempre a conhecer mais pessoas mais novas... se calhar é por isso
que sempre que estou numa escola nova ou sempre que vou a algum sítio quero conhecer pessoas, gosto de conhecer pessoas, por isso acho que só aprendi
com isso. Lá está, mais uma vez foi não ver as coisas pela pior forma, mas sim tomar um bom partido delas e eu acho que tive uma infância feliz. Atribulada,
um bocadinho difícil, mas feliz, eu acho”.
A parte mais triste da sua infância não se cinge àqueles anos. É um capítulo ainda aberto e que, mesmo que venha um dia a fechar-se, nunca será
totalmente selado. A personagem que o ensombra é o pai. Daniel nasceu numa família grande, sendo o sexto dos nove filhos que a sua mãe deu à luz. É o
sexto filho de uma angolana que já tinha deixado outros cinco descendentes no seu país natal, sendo que nem todos eram do mesmo relacionamento; ele é
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o primeiro em terras lusas e o primeiro daquele homem que é seu pai. A seguir a ele, e ainda do mesmo pai, nasceram ainda mais duas crianças. No entanto,
a mãe estaria condenada a que ainda não fosse este o seu último companheiro, já que ele os abandona. Não sabemos em que termos, mas para Daniel é ,
efectivamente, um abandono. Há como que uma necessidade constante de afirmar e frisar, várias vezes ao longo da entrevista que nunca sentiu
necessidade de estar com ele. A mãe, sua heroína, juntamente com outros familiares, conseguiu colmatar aquela ausência: “Nem a pré-primária
acompanhou, sequer. Desde muito cedo que nos abandonou”; “Sinceramente e parece estranho, nunca senti falta. Acho que a minha mãe conseguiu... a
minha mãe e as minhas irmãs, os meus primos sempre conseguiram completar-nos e dar o afecto que se calhar nós precisávamos e portanto, nunca, desde
que me recordo, não me lembro nunca de ter chamado pelo meu pai ou de ter perguntado sequer onde é que ele estava”.
A ausência física e afectiva do pai, por si só, já seria um capítulo não desejado. Mas há ainda algo de mais doloroso e que causa uma ferida sempre aberta. O
pai nunca ajuda Daniel e os irmãos na legalização enquanto portugueses. Até hoje, o que Daniel tem é uma cédula de nascimento. É necessário uma
assinatura, uma confirmação, uma autorização. E o pai recusou-se sempre. Umas vezes por uns motivos, outras vezes por outros. E esta necessidade não
deixa Daniel conviver serenamente com a sua ausência porque, no fundo, precisa dele. Continuará a precisar se agora que os papéis parecem estar bem
encaminhados (finalmente!), alguma coisa correr mal. À partida, já terá os comprovativos suficientes de que vive cá há pelo menos 10 anos. Espantamo-nos
de como são necessárias essas provas relativamente a uma pessoa que frequenta o sistema de ensino desde o jardim-de-infância, mas aparentemente não
é suficiente saber-se que sempre se inscreveu na escola e sempre teve tudo regularizado nesse campo.
O pai, agora residente em Angola, teve outra relação marital em Portugal. Daniel sabe que tem mais três irmãs. Um dia, um primo, numa saída conhece uma
das suas filhas e através dela consegue o contacto do pai do nosso entrevistado. Daniel realça que o contacto foi para o primo, ele só o usou para, mais uma,
vez tentar convencê-lo a dar entrada nos papéis. Diz-nos isto como que alertando que ele, Daniel, nunca teria desejado saber o pardeiro do pai. Ainda que
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tenha aproveitado o contacto para nova tentativa, mais uma vez não conseguiu. Há, nesta ausência, uma tonalidade de desprezo a pintar todo o quadro
familiar. É um pai que “não quer saber” de Daniel e dos outros dois irmãos que são filhos dele. Numa certa altura o pai refere que não trata da
documentação porque a actual mulher complica a situação: “Mentiras, porque um filho é sempre um filho e não é qualquer mulher que vem cá dizer ‘Olha
não faças isso ou faz aquilo’ que ia afectar alguma coisa. Por isso, são só desculpas”. Arriscamo-nos a perguntar se os outros parceiros/maridos que a mãe
teve e que são pais dos outros irmãos têm o mesmo tipo de comportamento, mas Daniel diz que não. O pai dele é diferente dos outros.
A escola e o projecto do Programa Escolhas tiveram um papel muito importante na tentativa de resolução deste conflito, ainda que sem sucesso: “E quando
cá cheguei à escola, o Programa Escolhas, inclusive, foi quem tentou com que nós tivéssemos os documentos. Neste momento eu tenho 19 anos e não tenho
documentos porque ele nunca nos quis registar”. O Coordenador do Projecto revelou sempre muito empenho na tentativa de ajudar Daniel: “(...) inventava
histórias cá mesmo à escola de que gostaria de estar connosco mas a minha mãe não deixava. O que não é verdade. A minha mãe simplesmente nunca lhe
pediu ajuda. Porque se ele quisesse dar ajuda não é preciso a minha mãe pedir; ele podia dar de livre e espontânea vontade e nunca o fez. E depois, quando a
Segurança Social foi falar com ele, ele dizia essas coisas que não se percebia muito bem porquê. Porque a escola sabia que não era verdade. O Professor
Daniel sempre esteve a par de tudo e sempre foi um grande padrinho... foi quem me apadrinhou cá nesta escola (...)”.
Estamos perante um pai que, segundo Daniel, simplesmente não quer saber dele. Uma história que extravasa o âmbito familiar e chega mesmo à escola. O
pai, não deixa que Daniel ganhe asas e voe livremente. No entanto, ele não aterra nessa impossibilidade e é como um ilegal que mais parece “legalmente
ilegal” que vai fazendo o seu trajecto. A figura do pai, a quem ele não quer reencontrar, surge a cada contrariedade ligada a esta ilegalidade. Daniel tem
receio do encontro: “Sou muito calmo até, mas causa-me uma revolta muito grande quando tenho às vezes que pensar se ele me aparecesse... se ele me
aparecesse, sinceramente não lhe falava... não lhe falava e até evitava falar com ele porque só ia haver chatices.” Irónica e indirectamente, apercebemo-nos
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nós ao trabalhar esta história, é o pai que o empurra para o teatro. O teatro, agora central na sua vida, que acaba por funcionar como um refúgio à
constante impossibilidade de jogar futebol. Daniel sempre gostou de jogar à bola, mas nunca podia inscrever-se nos clubes; pedia constantemente que, ao
menos, o deixassem treinar. Mas sabia que não podia ir mais longe do que isso. E um dia, já na escola secundária, o teatro surge e abre-se todo um novo
mundo. Teatro, certo. Aguardemos o momento certo de o deixar entrar na história, agora que já tocámos delineámos o enredo.
Voltemos, então, ao 1º acto, a infância: “A minha infância não foi a mais... .... a mais impressionante, mas considero que tive uma infância feliz. Nunca
precisei também, nem nunca senti necessidade de ter grandes brinquedos e essas coisas todas. Tenho oito irmãos, comigo somos nove. E por isso também
não sentia necessidade de ter brinquedos. Divertíamo-nos muito uns com os outros”.
A citação que acima apresentamos, é algo que Daniel refere muito inicialmente, na entrevista. Mas tudo se confirma. A família, sim, retirou grande parte da
amargura que podia ter surgido em várias situações. A mãe, não sendo muito permissiva, deixava que brincassem na rua e convivessem com amigos que já
conheciam. Se estavam em segurança, era-lhes permitido ficar na rua até bastante tarde. Aliás, era mesmo assim o dia típico da sua infância: a bola, os
amigos e brincadeira infinita se não havia aulas no dia seguinte. Nas memórias, surge sempre a imagem de uma casa cheia, embora nunca tivessem vivido
os nove irmãos sob o mesmo tecto. É verdade que os nascidos em Angola foram vindo, mas o máximo de irmãos que conseguimos encontrar juntos, seja em
que momento for, são seis.
Vamo-nos apercebendo que é uma infância muito marcada pelas dificuldades económicas que, ao longo do discurso, Daniel vai admitindo e referindo
sempre. Relembra até a ajuda, essencial, que no infantário lhe davam com a entrega de alguns bens (roupas, por exemplo) para ele e para os irmãos. As
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mudanças de casa vão sendo motivadas por uma crise financeira que nos parece constante. A suportar todas as dificuldades temos uma mãe que é um
exemplo para Daniel; é mesmo o seu ídolo da infância. Uma mãe que nos parece ter sido sempre muito ausente em trabalho, mas muito presente em afecto.
A certa altura tinha dois empregos para conseguir fazer face às despesas: empregada doméstica e empregada num bar, à noite. “E então, às vezes, não tinha
aquele tempo que ela gostaria de ter para nós”. Sofria muito com isso. A acumulação de dois trabalhos dava-lhe pouco tempo para os filhos e a primeira
mudança de casa dá-se quando tenta alterar essa situação; foi o preço a pagar pelo tempo que queria dar aos filhos. Daniel recorda que a mãe tentou
sempre que eles tivessem uma vida confortável, dando o melhor que podia e escondendo até algumas carências: “Vi-a sempre como exemplo e com a garra
que tinha... porque se calhar mesmo sabendo das dificuldades, se calhar muitos pais entravam em stress, como ouço e como já vivi também, que é ‘olha tem
cuidado com a luz e fecha a água...’ e a minha mãe tentava sempre... neste momento, eu se calhar, repreendia-a por fazer isso, mas na altura ela nunca nos
chegou a dizer isso; nunca nos disse para desligar a luz ou... tentava sempre ocultar as dificuldades que tinha e dar-nos sempre o melhor que podia. E foi
para mim sempre uma grande referência, aprendi muito com isso, foi uma grande leitura que fiz da minha infância”.
Daniel também se revê nos valores e conduta que a mãe lhes passou:“(...) a boa educação, como estar na escola... se tenho uma boa educação, e se... não
gabando, não é?... mas se todos os professores cá desta escola e mesmo do secundário gostam de mim... que gostam mesmo muito e sei que não foi por
outro motivo, tenho que agradecer é à minha mãe, os valores... os princípios e os valores que ela me passou, a boa educação, o como tratar as pessoas, o
como saber estar e o como saber agradar para que nos possam agradar também”.
Em Santo António dos Cavaleiros, mais uma vez lutando contra as dificuldades financeiras, aluga uma casa muito grande e dentro dela, aluga quartos. Nessa
casa, o que para Daniel funciona como um retrato da mãe, ela recebe mais familiares que estão a precisar de apoio e suporte: “A minha mãe mais uma vez
mostrando a força que ela tem foi quando, mesmo tendo a dificuldade que tem – que tinha e tem ainda – o meu tio precisava que os filhos dele viessem cá
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para Portugal e foi em nossa casa que eles ficaram”. É neste local que Daniel nos diz que a sua infância “começou a abrir-se e a ser tudo mais feliz”. Um
cenário espaçoso nesta casa de 2 andares onde viviam, para além dele, da mãe e de alguns dos seus irmãos: a avó, a tia-avó, três primos e ainda os
inquilinos de 3 quartos que alugavam. Daniel não consegue dizer ou ter ideia de quantos eram ou chegaram a ser. Não importa; foram, sim, dois anos e
meio de uma alegria e felicidade puras, no local onde teve a “maior diversão” da infância. Segundo ele, a escola desse local era muito boa e os amigos
também. Isto tudo, numa época em que ainda havia preconceito e racismo.
Em Santo António dos Cavaleiros, houve também uma grande proximidade à Igreja Evangélica. Tal como fez com o coordenador do Projecto Escolhas ao
referir-se ao mesmo, utilizou o termo “apadrinhar” para demonstrar a importância de Amélia, uma senhora brasileira que pertencia a essa Igreja. Faziam
muitas actividades - teatro, acampamentos, ... – e juntavam-se os membros de várias igrejas evangélicas. Os acampamentos era o momento por que todos
mais esperavam. Hoje, já não tem contacto com essas pessoas; tão pouco frequenta a Igreja.
Santo António dos Cavaleiros é muito importante no percurso desta criança. Tão importante que Daniel diz não conseguir referir três momentos
importantes na infância, preferindo referir-se àquele que é o momento: a residência e permanência neste local.
O sonho que Daniel parecia estar a viver em Santo António dos Cavaleiros é interrompido por mais umas mudanças de casa. Entretanto, quando está a
aproximar-se a idade de entrar no 5º ano e porque tencionam que frequente especificamente aquela escola, Daniel vai viver com a irmã que reside próximo
do estabelecimento de ensino. Falamos de uma irmã que tem mais 11 anos que Daniel e que, segundo ele, sempre foi o seu “porto de abrigo” e que é uma
“grande figura”. Falamos da irmã que o acolhe desde essa altura até hoje.
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Permanecerá com a irmã até hoje porque depois de ganhar uma residência estável, vê a mãe partir para Angola. Mais uma vez, em busca de uma vida
melhor. O filho mais novo está em Londres com o pai (um exemplo que Daniel nos dá de que os outros pais estão em contacto com os filhos), mas Daniel e
os outros dois irmãos (filhos do mesmo pai) ficam a viver com a irmã, o cunhado e os dois filhos do casal. Parece-nos que será por aqui que,
cronologicamente começa a adolescência. É o segundo acto desta peça.
Apenas o mais novo dos três irmãos que ficam à guarda da irmã mais velha, acaba por ir para Angola. Daniel considera que embora o irmão não o admita, as
alterações de comportamento que começou a ter e que ditaram o afastamento de Portugal, estiveram relacionadas com a ida da mãe para longe. A ideia
até era, inicialmente, a de que todos fossem. Os planos não se concretizam, mas Daniel não sofre com isso: “Porque sinto que tenho cá uma vida, sinto que é
cá que eu tenho os meus projectos, a minha ambição de vida está cá. E não me sinto a ir para Angola agora, não sem pelo menos concluir o que quero, tudo
cá”.
Considera que a irmã, na ausência da mãe, foi quem desempenhou esse papel; o cunhado, o papel de pai. Nos relatos de Daniel, sobre a irmã e a família
desta, sentimos que tudo se desenrola com muita naturalidade. Tanta naturalidade que perguntamos mesmo se, em relação aos sobrinhos, ele se considera
mais irmão ou tio. Diz que ele e o irmão já foram mais irmãos dos sobrinhos, mas agora são mais pais, na medida em que assumem algumas
responsabilidades com os sobrinhos. É um ambiente feliz e aqui, parece haver um importante papel do cunhado que pressentimos ter recebido muito bem a
família da sua mulher. Daniel dá-se bem com este último, mas acha que ainda podiam ser mais ligados. Considera, no entanto, que o facto de não ter tido
uma figura masculina na sua vida fez com que não conseguisse aproximar-se mais.
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Muitas reflexões vão surgindo em paralelo à análise desta histórias. Pensamos na nesta família de seis que descrevemos acima e temos vontade de saber:
Daniel tem uma família desestruturada ou uma família estruturada? Que outros elementos desta numerosa família, que outros personagens poderiam, caso
esta não o seja, oferecer a Daniel uma estrutura familiar? Um casal que rondará os 30 anos e quatro rapazes com idades entre os 19 e os 10 anos, em que
dois são filhos e dois não são, podem ser uma família estruturada?
Existem responsabilidades que já quer assumir e por isso contribui para as despesas da casa, embora ainda não se sinta totalmente adulto. Ao mesmo
tempo, há a noção clara de que ainda não é assim que o vêem: “Nunca fui forçado a trabalhar, embora tenha dificuldades... o meu cunhado e a minha irmã
sempre quiseram também suportar esses custos para que eu possa formar-me... então, sinto-me ainda jovem. Também tenho as minhas responsabilidades,
obviamente, mas ainda me sinto jovem também.” Existe, inegavelmente, uma grande solidariedade neste núcleo. O cunhado, a par da irmã quer suportar a
sua formação, quando sabemos que está desempregado (a fazer um curso, neste momento). São também pessoas presentes na sua vida; laços que vão
além do verbo sustentar. Acompanham o seu trabalho: “Ela, o meu cunhado e os meus sobrinhos gostam muito de me ver e têm sempre visto o meu
trabalho” .
A irmã passa-lhe valores semelhantes aos que a mãe também já passara. Várias são as vezes em que refere que ela, a irmã, trabalha muito também. Tem
um curso de cozinha. Ficamos com uma ideia próxima da que tínhamos da mãe de Daniel e perguntamo-nos, a certa altura, se tal como a mãe ela não
poderá esconder algumas das dificuldades, na medida em que há um desempregado e quatro dependentes sem que pareçam existir dificuldades de maior.
Pais separados, mas ambos em Angola. A mãe esteve cá há relativamente pouco tempo. Deveria ficar apenas por um mês, mas as saudades eram tantas que
prolongou um pouco a estadia. Quando voltou, pelo atraso no regresso, teve problemas na manutenção do emprego. Sentimos e ouvimos, como foi um
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reencontro emocionante. Assistiu ao trabalho de Daniel e, como se adivinha, foi também esse, um momento emocionante também. Foi, aliás, uma visita de
emoções. Na altura, qual coincidência do destino, a mãe de Daniel estava, ela própria, a participar num casting para uma novela. Brincamos sobre o facto de
a representação, pelos vistos, ser uma constante na família. Infelizmente, Daniel não tem a certeza se a mãe foi escolhida. Diz-nos que não têm falado muito
porque as ligações são muito caras.
No momento que considerámos corresponder ao segundo acto e que é coincidente com a fase final da infância/início da adolescência verificamos que,
ainda que com mudanças profundas na estrutura familiar, a ligação e os laços familiares mantêm-se muitíssimo fortes. Neste novo acto ganha-se a
estabilidade residencial. Ganha-se uma nova escola. Entra em cena um novo suporte: o projecto do Escolhas, quando Daniel vai para o 6º ano.
A escola era uma escola desejada. Como nos disse, ir para aquele lugar era o sonho de muitos. Daniel estava a entrar numa escola de gente fixe: “Ainda que
a escola em termos estruturais não seja a melhor, mas em termos de pessoal... bem, até na altura tinha uma fama um bocadinho má... porque havia muitos
roubos, na altura... mas sabíamos que era a escola das pessoas fixes, na altura nós éramos mais novos e só queríamos estar com os mais velhos e vir cá para
esta escola era uma coisa de outro mundo, era o máximo vir conviver com os mais velhos... e eu sempre também me dei muito com pessoas mais velhas”. O
dia típico de Daniel neste final de infância e início de adolescência perpetuou-se durante muito tempo. Era um dia que abarcava, quase na totalidade, o
espaço da escola: jogar à bola, jogar ao berlinde, uma turma muito unida. Uma escola que podia ser vista como algo dura, mas que Daniel parece ver como
uma espécie de laboratório de lições de vida: “Acho que nesta escola aprendemos, o seu valor educativo e a parte educativa, obviamente, mas aprendemos
muito a ser pessoas. Aprendemos muito o que é a vida. Se calhar também por isso também é que eu também não gosto muito de colégios. Porque é tudo
muito bonito, tem-se óptimos recursos, exacto. Só que depois falta outra parte; eu acho. Na minha opinião temos sempre que aprender um bocado com a
vida. E acho que esta escola faz-nos aprender com isso. (...) é mau, estar a dizer desta forma, mas as lutas que haviam cá na escola, os problemas que
haviam cá na escola, as rixas por assim dizer, os grupos que vinham juntar-se cá na escola para lutar... era mau, mas eu acho que fez sempre uma pessoa
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aprender de uma outra forma porque... uma pessoa que tenha saído de um colégio e é abordada na rua por um assaltante, se calhar reagirá de uma forma
se calhar pior do que uma pessoa que tenha crescido cá nesta escola porque já tá mais habituado, na altura estava mais habituado, a esses confrontos. Por
isso eu acho que nesta escola aprendemos muito a ser... mais pessoas, eu acho.” Este excerto pode dar-nos várias indicações, abrir-nos várias perspectivas
para futuras pesquisas, mas a que queremos aqui realçar prende-se com a pertinência de inserir o projecto no seio da escola. De forma célere, Daniel
consegue identificar o território escolar como um território de risco. Ali, entre paredes e muros de aspecto velho e degradado urge (urgia) algo mais do que
a intervenção urbanística (que acontecerá apenas neste próximo ano lectivo). Naquele espaço, como Daniel tão bem relata, existiam tensões, rixas e toda
uma “aprendizagem para a vida” que podia ser vista no sentido positivo que lhe quer dar quando fala da preparação que “não se consegue nos colégios
particulares” ou, por outro lado, de sentido negativo, sendo que ele próprio nos faz também essa análise: “Se calhar se não tivesse... sendo que, na altura,
isto era um clima muito pesado cá na zona, se calhar se não tivesse o programa Escolhas podia ter enveredado por outro lado e foi um abrigo estar cá
porque passava mesmo cá tardes inteiras, divertia-me, distraia-me...”. Conhecendo a escola e o território exterior parece-nos quase lógico aquele modelo
de intervenção. Daniel é quem o diz também: não há impacto no território, mas sim na escola. Quem já percorreu ou conhece o território em questão, sabe
como fica claro aos nossos olhos, a dificuldade de intervir no anonimato que se sente ao percorremos a freguesia mais populosa da Europa. Imaginamos que,
localizando-se no bairro ou na zona, o projecto não teria, possivelmente, conseguido o alcance que assim atingiu. Seria mais difícil de captar e fidelizar os
jovens, seu público-alvo. Daniel, conseguiu definir a sensação que o projecto transmite a quem observa aquelas rotinas: “É uma casa dentro de outra casa, é
uma casa que temos cá (...) que sabe muito bem acarinhar e apoiar as pessoas. Não só pelos projectos que têm cá, pelas actividades, mas pelos professores
que cá estão também.”
A imagem que tem e com que ficou do Escolhas é, como o próprio refere, excelente. Os dois irmãos também frequentaram o projecto, mas foi ele quem
ficou e quem sempre esteve mais ligado ao mesmo: “No primeiro ano quando isto cá apareceu, e posso dizer de boca cheia, não havia uma pessoa que
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frequentasse cá mais o espaço do que eu!” . O projecto arrancou com uma actividade muito inovadora que implicava o trabalho em oficina e alguma
dedicação. Cremos que isso terá contribuído para que os alunos/destinatários conseguissem uma ligação mais rápida e mais intensa ao projecto.
A imagem excelente, apercebemo-nos, foi sendo construída em várias frentes. O papel que o projecto teve na vida de Daniel, obriga-nos a pensar no tipo de
intervenção ou intervenções que se pretende no Programa. Daniel não era um aluno que tivesse “problemas” com a escola. Não faltava às aulas, não era
mau aluno. Gostava das turmas, gostava de conhecer pessoas novas. Gostava dos professores. O seu método de estudo passava por estudar apenas quando
era mesmo necessário, mas parecia suficiente. Não era rapaz de que desse preocupação à mãe com as saídas; nem se lembra sequer de pensar ir à praia nos
tempos livres e acha que, provavelmente, a mãe não deixaria. Era casa-escola – casa. Era dinâmico, interessado, participativo. Tudo corria bem, ainda que
não fosse “o melhor”: “Nunca fui um aluno de óptimas notas, mas fui sempre um aluno de referência para eles em termos de influência nas turmas. Em
termos de notas não era o melhor, mas sempre fui influente. A escola não era um peso que os familiares de Daniel carregassem em relação a ele: “Nunca fui
o melhor porque também não conseguia, porque não estudava muito, mas nunca dei preocupações, muito pelo contrário.” Na vida de Daniel, o projecto
parece ter actuado na parte mais sensível do seu ser; onde parece que tinha mesmo de actuar. Não há indicadores que meçam isso e a sua participação nas
actividades foi, muito provavelmente, aferida de outra forma. Mas, o projecto foi central enquanto refúgio, enquanto local para estar e passar o tempo. Foi
central enquanto apoio à difícil situação vivida com o pai: houve contactos, houve tentativas de resolução das questões burocráticas; houve tentativas de
que Daniel, independentemente da situação de ilegalidade, pudesse ir para a escola secundária que desejava. Foi central no apoio à obtenção de algum
material, devido às questões financeiras existentes. Foi central na mostra de um mundo exterior à escola e à rotina: O Programa Escolhas também fez-me
ver um bocado como é que era o mundo exterior porque antes era muito fechado cá para a escola e só queria ver as coisas cá da escola e o Programa
Escolhas foi quem me fez também ver como é que era o mundo exterior. Foi quem também me preparou, para além da escola, me preparou para o mundo
exterior, neste caso, para o secundário. Em todo este apoio contínuo e inequívoco e que é constantemente reconhecido pelo entrevistado, temos a figura
do Coordenador do Projecto, embora os outros professores que foram passando no mesmo, também sejam valorizados. Aqui não há técnicos, há
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professores e, embora existentes, as fronteiras entre o projecto e a escola aparecem muitas vezes diluídas numa proximidade confortável e acolhedora.
Daniel diz-nos que o facto de tantos alunos procurarem o projecto nas férias já indicia o quanto é acolhedor.
A verdade é que Daniel, que era um menino que parecia não correr grandes riscos, tinha-os bem próximos dele: mo território da escola. Um exemplo de
intervenção que se baseia muito na prevenção e na estruturação da parte mais frágil do seu ser, mas no lugar/local correcto. Uma intervenção que ofereceu
doses de resiliência, mascaradas de afecto e carinho. Um projecto que permitiu, acima de tudo, o continuar do sonho: “Sempre, sempre e até agora tive
ambição de ser alguém na vida e ser a pessoa que um dia ainda vai sustentar a família toda. Sempre tive essa ambição. E portanto sempre estudei. “
O segundo acto da peça que temos vindo a apresentar termina com o baile de finalistas do 9º ano. Vemos uma foto desse dia. A escola há muito que
deixara de ter esse evento, mas a turma de Daniel gostou tanto desse ano lectivo que pensou em assinalar dessa forma o seu fecho. Pediram autorização e a
ideia, para além de aceite, estendeu-se a toda escola. Nessa foto, Daniel aparece com uma amiga da turma com quem ainda mantém algum contacto,
embora pouco regular; sabe que já está na faculdade, mas não sabe sequer em que curso. Esta foto assinala muito mais do que dois amigos fotografados no
baile de finalistas do 9º ano; uma época, precisamente de escolhas: “Quando houve a transição não só física, não é? Como psicológica também. Foi mais ou
menos nessa altura que a minha mãe tinha ido viver para Angola, já estava habituado a viver com a minha irmã, mas foi na altura em que ela foi para
Angola. Foi na altura em que pronto... a mãe vai-se embora, a irmã fica com mais responsabilidades”. (...) Onde houve a complicação de se eu ia estudar ou
não, onde teve de se fazer várias escolhas... foi mais ou menos difícil... não difícil... foi um bocado complicado e... stressante, um bocado stressante”. (...)
para onde é que eu queria ir, mas independentemente disso tinha que aceitar a escola que me aceitasse a mim... e eu não queria ir para uma escola
profissional, mas era o mais provável que ia acontecer e eu falei algumas vezes com o Prof. Daniel e ele também disse-me que se calhar o mais provável era
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que eu fosse para a Gustavo Eiffel, na Amadora... só que, nada contra, mas sempre gostei da escola, do ensino regular... embora tenha ido para o ensino
profissional, mas gostava de ficar numa escola...”.
Sim, Daniel foi para o ensino profissional, mas numa escola que tem oferta de todo o tipo. Conseguiu ultrapassar mais este obstáculo. Um curso profissional
de Informática (que era mesmo o que queria) que está integrando no plano de uma Escola Secundária e não numa Escola Profissional. Uma escola que tem
a oferta da actividade de teatro. Teatro, sim, e não Expressão Dramática. Escola com Teatro que, como orgulhosamente diz, é dado por um encenador
profissional (situação pouco comum). Muito acarinhado pelo encenador que se torna em mais um professor que é ídolo. Foi através desse encenador que
foi para o grupo onde está hoje. Fez quatro anos de figuração e a partir daí conheceu muitas pessoas. Cola-se-lhe a imagem de pessoa activa, sempre com o
tempo preenchido. Quase não consegue ter tempo para estar em casa, como nos conta. Gere o trabalho de actor, um grupo de dança criado por si e, ainda,
a participação num outro grupo de dança da escola.
A escola secundária é onde passa de menino sem sorte nos amores, sempre rejeitado e com tendência para gostar sempre de quem nunca gostava dele,
para menino que começa a ter um sucesso que até lhe dá problemas. Diz-nos que é uma pessoa que gosta de afectos e que isso já criou equívocos em
algumas situações, julgando-se que o interesse dele era maior do que era na verdade. Neste campo, sente que a reviravolta se deu quando percebeu que
tinha de gostar dele próprio como é. Teve a primeira namorada no 11º ano e até agora foram três aquelas que estiveram nessa condição. Sabemos que a
última é um namoro recente, de poucas semanas e que está imensamente apaixonado. Eram grandes amigos e tornaram-se namorados. Na viagem de
finalistas, da qual também vemos uma foto e que é muito recente, é interessante quando perguntamos se está ali a namorada e ele diz que não. E corrige
depois. Não, a namorada da altura (que ficamos a saber também ser filha de uma professora da escola), mas a actual, ainda como amiga. Valoriza-a muito,
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vê-se que há uma cumplicidade enorme. O seu sorriso abre-se quando fala da carreira que ela quer seguir, investigação, e diz: “É uma croma! Tem óptimas
notas!”. Não dissemos ainda, mas fica claro de adivinhar que esta ida para o ensino secundário é o terceiro acto.
Um terceiro acto que ainda não terminou. Tem uns módulos que precisam ser completados para que o 12º ano fique concluído. Não se vêem razões para
que arraste isto há já algum tempo. Inconscientemente, talvez a dúvida e a hesitação sobre o curso a seguir: Informática ou Teatro/Dança? O coração
parece apontar mais para o segundo, mas receia o mercado de trabalho. Entre os colegas do teatro não há consenso: uns dizem-lhe para seguir uma via
mais segura, outros dizem que siga o que mais gosta. Está mais inclinado para a escolha do teatro, mas parece ainda em processo de autoconvencimento:
“Isto da empregabilidade, a minha opinião é que: somos bons, temos trabalho. Se batalharmos para sermos bons temos trabalho, se batalharmos para
sermos medianos as hipóteses são mais reduzidas”.
Daniel está de bem com a vida, emana boas energias. A viagem de finalistas foi uma das últimas situações positivas que lhe aconteceram. Uma viagem que a
ele, marcou muito mais (ou de forma muito diferente) do que marcará a maioria das jovens que se lançam nessa aventura: “Foi a primeira vez que não me
foi posto um obstáculo”. Foi a primeira vez que pôde sair do país. Pôde faze-lo só com a cédula e uma autorização do Encarregado de Educação. Foi com os
amigos, com os pares, aqueles com quem se identifica e que têm projectos de vida parecidos aos seus. Sentiu-se igual aos outros; ele, que na foto onde
contamos 22 jovens, é o único de tez diferente.
A realidade projectada para o futuro é próxima desta que vive agora. Quer ter também uma família, claro: “Desde muito pequeno também devido ao meu
passado que eu sempre quis ter até mais do que se calhar ser rico como outras crianças se calhar pensavam , era mais ter uma família e não fazer um filho
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meu passar o que eu passei que é, fazer uma travessia grande, sem ter uma figura masculina”. Sempre o pai, a remexer na sua tranquilidade. Pensamos que
mais do que ter filhos, este menino quer ser um pai diferente daquele que teve: “Parecido com ele só mesmo pelo aspecto, porque tudo o que tenho dentro
é da minha mãe”.
Olhando para as três fotos que, cronologicamente se iniciam com uma foto típica de escola, de lápis na mão e com material escolar como cenário, até à foto
de grupo na piscina, sente que sim, que houve mudança mas que, como diz, “não foi facial”. Questionamo-nos se terá havido uma mudança assim tão
significativa. A personalidade revela-se sempre a mesma em todas as épocas. É o próprio Daniel que, ao olhar para a primeira foto onde, no máximo terá 6
anos, diz que marca uma época de responsabilidade, pois por vezes já ficava ele a cuidar dos irmãos. Sempre, em todas as épocas, o gosto pelas relações
sociais, como diz; o gosto por conhecer pessoas e pessoas novas. E o que lhe possa ter sido retirado na infância, está a ser-lhe dado agora: tempo para si,
estabilidade na residência, escolhas e opções, uma vida pela frente e cheia de ganhos: “(...) o meu lema de vida até agora tem sido deixar as coisas
acontecer. Ter um objectivo e não dar um passo antes de dar outro. E, por acaso, desde muito pequeno cresci com isso. Ter que mudar várias vezes de casa,
obrigou-me a que isto fosse mesmo o meu lema de vida porque ter que mudar de casa obriga-nos a muitas coisas como estava a dizer há bocado que é
reorganizarmo-nos fazer novos amigos, fazer novas amizades, adaptarmo-nos bem onde estamos e com quem estamos e por isso tive, cada vez mais, a
facilidade de fazer isso. E cada vez mais, tive em mente que não valia a pena dar um passo maior que a perna porque senão o tombo podia ser muito grande
e sair um bocado magoado.”
Da infância até agora os seus ídolos e heróis: a mãe, a irmã, o cunhado e os professores. Um mundo muito dele. Um mundo que parece muito aberto, mas
que pode ser enganador porque no fundo é fechado sobre quem ele mais ama. Não chega a sentir-se fechado, julgamos, porque pode extravasar toda a
energia que tem e toda a sua paixão pela vida, no teatro e na dança. Fechamos o nosso encontro falando de literatura. Do que está a ler, do que leu há
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pouco tempo. Da primeira vez que nos vimos, despede-se carregado de antigas cassetes VHS. Ia ver filmes com a namorada. Desta vez, vai com livros. Tudo
encaixa. Despedimo-nos dele pensando que, sim, é um artista de corpo e de alma.
Já o pano tinha fechado e quisemos nós entrar na história também. Fomos vê-lo no palco e, anonimamente, assistimos a uma peça sua. Diríamos que tinha
sido dos melhores em cena, não tivéssemos o receio de estarmos a ser injustos, pelo facto da nossa atenção estava exclusivamente centrada no seu
desempenho. No fim, ficou feliz por saber que tinha estado a ser visto por alguém que o conhecia. Feliz, como fica qualquer actor que se sente reconhecido.
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«Quando estamos com um amigo, nem estamos sós nem somos dois»
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«Quando estamos com um amigo, nem estamos sós nem somos
dois.»3
Já tinham sido várias as visitas àquele bairro, mas apenas no dia da nossa primeira entrevista aquele muro nos mostra aquilo em que nunca tínhamos
reparado: escrito em letras grandes e bem visíveis, o nome do nosso entrevistado. Inquestionavelmente aquele bairro é dele e ele é daquele bairro. Sendo
portador de um nome nada comum, está decidido que temos que confirmar se é ele que ali está “a receber” quem entra no bairro. No primeiro encontro, a
pergunta acaba por não se proporcionar. No segundo, ele diz-nos que sim: é ele. Mas, di-lo com olhar tímido, como quem pede desculpa por ter escrito
aquilo e como quem já não se identifica com aquela exposição. Uma pintura que, segundo nos parece, lhe lembra o que foi em vez do que quer ser.
E a história deste jovem não pode passar ao lado de toda a carga emocional e física deste bairro. Um bairro onde, houvesse uma banda sonora associada, e
ouviríamos uma multiplicidade de acordes que nos remeteriam para culturas tão distintas como a cigana, a africana, a indiana e a “portuguesa”. Um bairro
onde os membros destas distintas culturas convivem diariamente e nem sempre de forma fácil. Ainda que tudo isto já tenha sido pior, percebemos nós pelo
que vamos ouvindo nas nossas incursões ao local. Para além da constante necessidade de adaptação e tolerância para com o próximo, este bairro é ainda
suis generis no que respeita ao Ordenamento do Território e à sua “legalidade”. Temos dois lados/duas zonas que são conhecidos pela designação da cor
que domina ora num dos lados, ora no outro, as paredes dos prédios. De um lado temos os prédios “legais” construídos pela Câmara Municipal e habitados
por famílias que necessitavam daquelas casas; do outro lado temos prédios construídos por uma Cooperativa que faliu nos anos 70 e que foram ilegalmente
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Auguste Marseille Barthélémy
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ocupados. Das histórias que ouvimos, adivinha-se a muita dor que já devem ter causado. Histórias que estão recheadas de sobreposições de ocupações
ilegais: alguém que ocupa a casa que por sua vez já tinha sido anteriormente invadida. A casa dos pais de Josué, ocupada há mais de trinta anos, é um
destes casos. A história contada de forma leve é a de que, se quem habita um dos apartamentos se distrai e sai em viagem, quando volta não tem casa.
Josué utiliza uma expressão para se referir às ocupações: “pôr o pé à porta”. Hoje em dia essa situação não será tão comum como já foi em tempos, mas
ainda assim, mantém-se o fantasma dessa possibilidade. Josué explica-nos que só havendo mesmo a certeza de que já não vive ninguém ou de que já foram
mesmo embora, alguém arrisca a sorte. Dizem-nos que a Câmara não dá muita importância a esta situação. Fica a vontade de investigar e apurar até que
ponto é assim. Resumindo e indo ao que importa para a história de quem entrevistámos, interessa realçar que este não é um território fácil. Nunca parámos
de nos surpreender com a lógica e coerência aparentemente encontradas para regular a ocupação das habitações, baseadas numa legislação que é invisível
aos nossos olhos. No entanto, a aparente normalidade atingida não retira tensão às paredes e muros invisíveis que se sobrepõem aos que já existem. Um
território minado de armadilhas que nem sabemos quais são, mas em que sentimos perigo eminente. Os habitantes, se por um lado muito bem saberão que
minas e armadilhas são essas que não se declaram abertamente aos forasteiros, mantêm, ao mesmo tempo, uma doce ingenuidade em relação a toda a
inconformidade da situação. A própria organização do bairro acaba por promover uma certa reclusão das pessoas que ali habitam. Entra-se por um lado, saise por outro. Não há hipóteses, alternativas de caminhos para além destes. Não é fácil que alguém que ande perdido em busca de uma qualquer rua, ali vá
dar. Aquelas pessoas, ainda que vivendo paredes meias com a agitação de uma grande cidade, ali estão, remetidas a um espaço enclausurado.
Na entrevista, quando Josué fala do local onde foi tirada a segunda das fotografias que queria trazer mas que não encontrou, soa-me a algo fisicamente
muito distante. Aquele sítio onde ocorre o disparo que origina a fotografia que não vimos, mas que segundo ele é um local onde o pai costumava levá-lo a
ele e aos irmãos, parece geograficamente remoto. Aquele sítio onde ele se lembra que enverga uma “camisa de ganga e calça preta” e onde aparece em
cima de um muro é, afinal, logo ali. Acabada a entrevista, o carro desliza para fora daqueles prédios e daquele espaço e deparamo-nos com o facto de que
aquele bairro baralha, efectivamente, as distâncias. No meio dos seus prédios, conseguimos alhear-nos do resto do mundo.
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A divisão existente em termos de propriedade divide também o espaço público. Josué pertence ao lado (ainda) menos agradável. Paredes sujas, pintadas e
velhas. Um cenário que de tão irreal parece quase propositadamente construído para um filme. Construções que em tempos terão sido boas, mas que hoje
precisariam, inquestionavelmente, de uma requalificação. As entradas e os espaços comuns dos prédios têm um aspecto que inibe a aproximação aos
mesmos. Do outro lado, do lado da zona que é gerida por uma empresa da Câmara Municipal, o espaço público acaba por ser um pouco mais convidativo e
é aí que todos os moradores se cruzam. Quotidianamente, numa curta observação que seja, apercebemo-nos de que há um local que serve quase como
“ponto de encontro” e que fica “paredes meias” com o Projecto Escolhas: a mercearia do bairro. Num bairro que parece fechado para o mundo, a mercearia
reproduz o mesmo comportamento. Numa primeira impressão ou olhar seremos levados a dizer que está fechada. Persianas corridas e porta que parece
encostada. Alertados para o facto de “ser mesmo assim”, entramos e mais do que uma vez damo-nos conta de que é um local escuro e quase sombrio. No
entanto, muito movimentado. Durante todo o dia passam mulheres e crianças a caminho do estabelecimento comercial; do que nos foi dado a ver, uma
menor percentagem de homens faz aquele percurso. Muitas ciganas. Ciganas que empurram carrinhos de bebé e trazem mais uns filhos ou outros familiares
com elas. No caminho conversam umas com as outras como que a segredar; as vozes ouvem-se mais altas, no momento de chamar uma criança que lhes
desobedece. Uma ou outra indiana passa mais timidamente, no outro lado do passeio. Africanas e africanos, menos. Muitos dos que passam, carregam
sacos cheios de pão fresco e somos levados a imaginar que aquele saco, tão farto, alimenta famílias que são muito grandes. Crianças dali saem, várias vezes,
carregando refrigerantes e outros alimentos que qualquer nutricionista ou médico reservaria apenas para um “de vez em quando”: batatas fritas, croissants,
etc.; foram vários os momentos em que nos saltou à vista este tipo de consumo por parte da população infantil.
Sim, até aqui pouco ainda da história de vida do jovem de quem aqui devemos falar. Mas a exposição anterior teve a intenção de partilhar a sensação com
que ficámos: pessoas e bairro são indissociáveis. Difícil perceber a história de vida de algum dos seus moradores se não percebermos um pouco da vida do
bairro, é a convicção com que ficamos.
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Voltemos ao início do texto. Ao momento em que se escrevia que aquele bairro tinha uma banda sonora feita de acordes muito distintos. É preciso escolher,
agora, a banda sonora para esta história de vida. O nosso jovem é cigano, a opção pareceria fácil. A sua banda sonora, no entanto, nem sempre é a mais
óbvia.
O principal critério para escolher Josué, enquanto entrevistado, foi o facto de pertencer à etnia cigana. Quando o conhecemos, numa fase prévia a esta fase
do trabalho de campo, não percebemos imediatamente que era cigano. Não foi o único a surpreender-nos com a revelação de que pertence a uma cultura
que nos habituou à identificação rápida dos seus membros, enquanto usamos critérios que são operacionalizados à luz do que sempre imaginámos ver
associado a qualquer membro dessa cultura. Naquele bairro “falhámos” muitas vezes esse “jogo. Em Josué houve, no entanto, uma característica distintiva
que o demarcou de outros: o recente regresso à escola: com 22 anos, está agora a completar o 4º ano. Passados todos estes anos sobre o tempo de fazer a
escolaridade obrigatória, é agora que decide, por livre e espontânea vontade, completar o 1º ciclo. E aqui deixamos espaço para uma reflexão que nos
parece interessante: Josué não voltou à escola porque foi obrigado ou porque é obrigatório; Josué voltou à escola porque sentiu que a ausência de
escolaridade atrapalhava algumas decisões/sonhos tão simples como o poder trabalhar naquilo que queria trabalhar: vendedor numa loja e roupa que seria,
de preferência, a Zara. Mas a sua história trazia-nos revelações ainda inesperadas como o facto de, no seu dia-a-dia, constantemente testar ou provocar a
cultura cigana. No dia em que nos encontrámos para o primeiro momento da entrevista, estava de calções. E isso, descobrimo-lo, não é bem visto na sua
comunidade.
No entanto, este testar de limites constante que identificamos em Josué, não está relacionado, ao que nos parece, com qualquer tentativa de renegar a sua
origem ou cultura. Não se pressente qualquer hesitação ou vergonha, mesmo em relação aos aspectos que vai dizendo não gostar ou com os quais não
concorda; a estratégia? Simplesmente não faz, não cumpre e não se importa. Josué, faz a sua própria avaliação em relação ao que considera estar bem e em
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relação ao que considera estar mal, agindo única e exclusivamente de acordo com a sua consciência. Claro que é criticado, claro que é chamado à atenção,
“claro que já devia estar casado”, “claro que já devia ter dois filhos”, mas como diz a certa altura em relação a tudo isto, “entra-lhe a 100 e sai-lhe a 200”.
Impossível não percebermos a sua mãe quando ele abre o seu magnífico sorriso e diz que às vezes, quando estão a desacordo, basta dar-lhe uns abraços e
uns beijinhos e ela acede. Os seus olhos brilham a contar a cena que o diverte; mas os seus olhos brilham sempre, dando uma leveza surpreendente a temas
que poderiam ser profundamente fracturantes.
É uma figura cativante e que parece “de bem com a vida”. É bem disposto, alegre e simpático. Está impecavelmente vestido em todas as situações em que o
vimos. Tudo, na sua indumentária, foi pensado ao pormenor. No primeiro dia de entrevista, destaca-se o relógio dourado D&G que, contra a luz, quase
ofusca quando vai falando e mexendo os braços. Diz-nos, a certa altura que não gosta de roupas de marca falsa. Mas os pais, vendedores em feiras,
comercializam algumas coisas (óculos, relógios, etc.) que não são verdadeiros. Quando nos diz isto, o brilho do relógio volta atira-nos com a dúvida, mas
pensamos ser melhor que a mesma permaneça em nós.
Desde que o conhecemos que a escola já fazia parte da sua vida. Não sabemos que semblante carregava antes desse retorno. Torna-se impossível não
pensar que esse regresso contribuiu, em muito, para o ar feliz que ostenta. Está muito entusiasmado com o facto de poder completar o quarto ano num
programa específico para adultos. Aqui, recordamos a mentira logo desfeita no dia em que o conhecemos. No momento em que falámos pela primeira vez,
por vergonha, disse-nos que frequentava o 8º ano. Teve, certamente, receio da avaliação que seria feita ao facto de não ter completado qualquer ciclo de
escolaridade. Mas agora, foi com toda a naturalidade que nos contou apenas e tão só a verdade.
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Tentamos perceber, a fundo, os motivos que o levaram a não ter frequentado a escola no “tempo certo”. Sabemos que temos perante nós, um menino cuja
infância foi feliz e passada na rua. E um menino que não gostava de ir à escola. Obviamente que muitos seriam os que estavam nesta situação e que, ainda
assim, foram à escola. Portanto, falta aqui uma peça. Uma peça do puzzle que instintivamente associamos ao absentismo escolar e que é tão frequente na
comunidade cigana. Hipótese não confirmada. Parece não haver consciência de que o facto de os pais quererem que ele fosse à escola e o facto de em
paralelo, ele continuar a não ir, demonstra permissividade para esse comportamento. A justificação que temos é, basicamente, a de que era melhor ficar na
rua a brincar. Os pais insistiam, sim, para ir à escola. Mas ficamos com a sensação que é quase certeza deixada umas vezes nas entrelinhas e outras vezes
assumidas de que não terá sido uma pressão muito exigente: “(...) Era o que a gente quisesse fazer, a gente fazia!” Talvez Josué, no conflito permanente que
deve sentir entre as culturas que transporta, consiga ver nos pais o desejo de que tivesse ido à escola. Se por um lado o deixavam estar na rua todo o dia,
também é verdade que queriam o melhor para ele. E se o melhor era ter ido à escola, então os pais deveriam concordar: “Sempre quiserem que fossemos
até ao mais possível. Mas não foi possível porque a minha cabeça estava noutro ligar! Mas pronto, eu... sabe como é que é os pais... eles querem o melhor
para os filhos... e o melhor era eu ter seguido a escola!”. Os factos são que, nem ele, nem nenhum dos irmãos optou por ir muito longe na escolaridade.
Certeza, a de que a escola não seria um local muito convidativo para Josué. Um dos momentos que recorda como marcante na infância, são mesmo os
problemas em que se envolve, com amigos, na escola. “Amigos ciganos?”. “Não”, responde com naturalidade. Esses amigos eram “ciganos, negros,
chineses”. Pelo menos de forma assumida, nunca há uma relação exclusiva entre os comportamentos desviantes ligados à escola e a cultura de pertença. A
certa altura diz que não tem “nada a ver mesmo” com a cultura cigana, este absentismo.
Ainda que hoje reconheça que teria sido importante frequentar a escola, não parece haver mágoa pela forma como esteve afastado da mesma, na infância.
Era uma liberdade natural e, arriscaríamos dizer, total. Uma liberdade que enche as medidas de uma criança: “A minha infância foi andar aí na rua, jogar à
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bola aí na rua”; “A minha infância foi: jogar berlindes, tazos e etc.”. Uma liberdade que, ainda mais naquele bairro, fazia todo o sentido. Os seus dias típicos,
na infância eram assim a “(...) jogar à bola de dia e de noite”. Não havia condicionamentos. Se o próprio bairro desafia constantemente a lei e a legalidade,
que moralidade para impor que se deixe de brincar e se vá à escola? Nos momentos em que faz críticas às leis ciganas, em momento algum o seu
afastamento da escola foi alvo de crítica directa. De repente o que nos é tão estranho, quase nos vai parecendo óbvio, dada a simplicidade com que tudo
nos vai sendo relatado. No fundo, qual a criança que não se sentiria feliz por “fazer o que queria”? Parece-nos que é de algo deste género que temos estado
a ouvir falar. E até aqui e pela infância fora, a banda sonora desta vida é sempre e ainda, a da música cigana.
Há uma força invisível, ou uma consciência colectiva ao estilo de Durkheim, que se nos apresenta naquele bairro e que permite esta conduta de ausência à
escola, de ausência de objectivos de trabalho. Até aqui, Josué não estudou, nem trabalhou. Enviou um ou outro curriculum, mas sabendo de antemão que
não tinha hipóteses. Mas ele próprio não sabe explicar o porquê de ter deixado que esta situação ocorresse; para ele, tudo seria normal: “Era a minha
infância. Só porque um não ia, os outros também não iam e pronto, ficávamos aqui a jogar até às tantas”; “Esquecia-me da escola, completamente!”.
Quando era criança, o comum era os pais receberem uma carta avisando da falta de comparência: “(...) nós não queríamos saber, ficávamos aqui no bairro”.
E porquê este regresso à escola? O impulso deu-se por sugestão de uma Assistente Social. Não me consegue dizer de que instituição, mas apenas que é
“Assistente Social” de todos ali. Tento informar-me com o técnico presente no Projecto nesse dia, mas ele também não sabe. Havemos de averiguar. De
qualquer forma, esta sugestão dá-se já numa altura em que, muito claramente, os acordes da kizomba e do R&B se sobrepõem à música cigana. Ou, pelo
menos, lutam pelo lugar no Top. De um lado a força da família, do outro a força dos amigos. Duas bandas sonoras, mas Josué vai “tocando bem” todas as
músicas.
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A escola tem sido um mar de “momentos recordados”. Gosta mais de Português e o seu fraco é a Matemática. Diz que fazem “coisas básicas”: “leituras,
ditados, contas”. A partir do 6º ano pode tirar um curso; perspectiva o ingresso nas Novas Oportunidades. Está tudo a correr bem. A reacção dos pais ao
regresso à escola foi positiva. Apenas dois dos 6 irmãos não estão a par do regresso. Quem sabe, diz-lhe que continue. Os amigos também o apoiam.
O seu futuro, se pudesse escolher, estaria ligado à venda de roupas. Não como vendedor ambulante, que é a profissão de ambos os progenitores, mas numa
loja de roupa, como já referimos. Mas há outras áreas que o atraem e descobrimo-lo quando nos diz quem são os seus ídolos: Mariana Monteiro, actriz de
quem sempre gostou e que considera bonita, e Messi, jogador de futebol. Depois de questionado diz que o trabalho destas pessoas até é feito em áreas de
que gosta. Brincamos sobre o poder tentar o futebol, mas diz que não: “(...) Eu acho que isso é um dom, já nasce com a pessoa!”. Perguntamos para que
terá ele nascido; ri-se muito e, remetendo para a vida “sem ocupação”, responde-nos: “Eu nasci para andar aqui! Eu acho que, pronto... não tenho assim
dons nenhuns! Que eu saiba!”.
Algo que está sempre presente e bem patente no discurso do nosso entrevistado é a importância da família. O sentido de família e a união da mesma é,
aliás o que Josué mais valoriza na cultura cigana. A certa altura diz-nos mesmo que não vê os ciganos, jamais, a conseguirem mal tratar uma criança. O olhar
que nos lança quando desenvolve a ideia de que um cigano nunca teria atitudes que vê os não ciganos a terem, é um olhar de surpresa e incredulidade. Um
olhar de “como é possível que vocês façam isso?” Um vocês que é, obviamente, subentendido, mas que nós entendemos. As crianças assumem o papel
primordial e principal nas famílias ciganas. A cultura cigana é muito forte no “valor aos filhos”; “gostam muito dos filhos”: “(...) Aqueles casos em que...
vendem os filhos, raptam os filhos, matam os filhos... acho que isso é uma coisa muito má! Eu acho que os ciganos não fazem isso! Eu penso nisso. Eu às
vezes penso nisso. Os ciganos dão as suas próprias vidas pelos filhos! E isso é uma coisa muito importante! Eu nunca imaginei um cigano fazer esse papel de
matar o filho ou dar maus tratos aos filhos, eu acho que não!”
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É muito interessante verificar que Josué não se perde quando enumera o nome dos onze sobrinhos que o irmão e as quatro irmãs já lhe deram. A grande
prole já existente é uma das provas de que apenas Josué foge à regra. Como os irmãos, já deveria estar casado e com filhos. Mas, já avisou a mãe de que
com ele não vai ser assim. Josué vai casar com quem lhe apetecer, com a mulher por quem se apaixonar: “A minha mãe ainda exige um bocado! (...) para eu
casar, etc.. A minha mãe e o meu pai, pronto, dão-me aquela pressão. Só que... eu ‘tou farto de dizer isso... eu caso com quem eu gostar! Seja cigana, seja
negra ou seja branca! Eu caso com que eu gostar. Porque a vida é minha, sou eu que vou ser feliz, não são eles! E pronto, eu penso nisso. Tanto, que até
agora estou assim. Eu não penso nisso, eu quero mesmo é curtir a vida. Eu acho que sou novo.”
Para além da opinião bem formada que tem acerca da questão dos casamentos, não teme consequências pelos seus actos. Tem, aliás, a convicção de que
“com o tempo tudo passa”. Partilha a história do irmão que casou com uma prima cigana da qual, entretanto, já se separou. Agora é casado com uma
branca. Devido à rigidez da mãe, a cunhada não ia a casa deles; agora, passados meses, já vai. Prevê que se casar com uma branca lhe vá acontecer o
mesmo, pois no início “tudo custa”. Acrescenta com optimismo que se habituarão com o tempo. Interessante que uma das fotos que queria levar-nos era,
precisamente, do casamento do irmão: uma foto com a primeira mulher e em que surgem com os noivos, 2 irmãos dela, mais um primo e Josué.
Estas contradições que vai encontrando na comunidade em que nasceu e na sua vida não são suficientes para que a sua voz perca o tom de orgulho ao
recordar e descrever os momentos felizes em que a grande família cigana se junta. Gosta de recordar os Natais que, adianta desde logo, duram mais do que
os nossos. Explica-nos que não é tão importante abrir os presentes à uma hora certa, mas sim o estar em família: “Oferecem, dão, podem abrir! Agora as
outras etnias, não! Tem que passar mesmo a meia-noite!”. Não consegue ter noção de quantos seriam nos tempos em que toda a família se juntava em
Benfica, em casa da avó: mais de cinquenta, “um balúrdio”.
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Também recorda, vê-se que com emoção, as visitas que fazia aos avós que moravam entre Alfragide e Benfica. Os dois avôs, já falecidos, são figuras que
foram muito importantes na sua vida. Diz-nos que a relação “avô-neto” é muito chegada, “como se sabe”. Na infância “ora estava na casa de um, ora na
casa de outro”. Foi marcante o tempo que passava com eles: “Nas barracas de Benfica, isso aí recordo-me mesmo perfeitamente. De estar lá com os meus
primos e irmos lá para a Praça de Benfica... ficávamos lá enquanto não estavam lá os vendedores. Brincávamos lá, fazíamos lenha... eh pá, eram coisas
bonitas. Isso aí recordo-me!”
Embora com aquilo a que chamaríamos uma vida social intensa, Josué acaba por passar muito tempo em casa, com os pais. Até na rua costumam estar
juntos. Às vezes, embora goste mais de o fazer com amigos, vai com a mãe às compras à Zara ou à Pull&Bear. Agora vive três, pais e Josué, numa casa que já
foi de nove. Gosta de ter um quarto só para ele: “(...) andar todos ali ao monte, acho que não é confortável!”.
O seu grupo de amigos é um grupo de jovens do bairro. Enumera alguns desses amigos e um deles é também nosso conhecido. Já participou noutra fase do
trabalho de campo e na altura contou-nos muito sobre a sua vida. Trata-se de um jovem com objectivos bem definidos e bem traçados que estudou e tem
planos. Já teve vários empregos regulares, mas que foi perdendo fruto da crise económica; quando chegava a altura em que o contrato não podia mais ser
renovado, exigindo a lei uma integração no quadro, o resultado era o desemprego. Este, trata-se de um jovem descendente de africanos, um jovem negro.
No curto período que passámos naquele bairro houve o tempo suficiente, até através de conversas com outros ciganos, para perceber que a grande
“rivalidade” se assim se pode chamar é, como dizem, entre “ciganos” e “pretos”. Portanto, a amizade, cumplicidade e companheirismo que Josué evidencia
com os seus amigos chega a parecer-nos surpreendente. Símbolos de barreiras que, se existiram antes entre eles, nunca mais surgirão. Porque nos fomos
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apercebendo da existência de tensões importantes entre populações do bairro, este grupo de amigos que Josué nos apresenta como sendo tão unido surgenos como pista de investigação importante. Para além do mesmo não nos ter sido relatado, dado o facto de ainda se tratar de um projecto jovem, parecenos que o projecto não terá tido contributo significativo na aproximação destes jovens. Talvez a utilização comum do espaço do projecto, quase como ponto
de encontro ou ponto de passagem, essa sim, tenha sido importante. Enquanto utilizadores do espaço, estes jovens que convivem de forma tão harmoniosa
podem ser uma referência importante para os mais jovens. Como nos diz, os amigos “(...) são estes aqui que frequentam o mesmo espaço”.
Central a esta pesquisa e à análise desta entrevista, é a compreensão do papel do projecto na vida destes jovens.
Do que percebemos, já tinha existido no bairro um espaço que aos olhos de D, era parecido, “tipo isto”; “Com a abertura deste, pudemos voltar ao mesmo!”.
O impacto da abertura é positivo e os computadores são fortes atractivos para que se passe a frequentar o espaço.
Num bairro que, de certa forma, parece votado ao abandono, a abertura de um espaço enche-se de significado. Mais ainda se for um espaço pronto a
receber também crianças e jovens: “Os miúdos não tinham aquela autorização de andar na rua, mas como já há este projecto, os pais já deixam eles virem
para aqui. Já é uma oportunidade para eles conviverem com outras crianças. Acha que isso é muito importante”. Mas até onde se estende a importância que
Josué dá a este projecto? Se existisse, teria sido diferente a sua vida de criança. Sim, teria sido “fantástico” e tê-lo-iam “obrigado a fazer o TPC”.
Percebemos que já deve ter existido (e poderá continuar a existir) tentativas de captar mais a participação destes jovens mais velhos. Josué refere que eram
chamados quando havia festas para ajudarem e para organizarem jogos, por exemplo. Também já teve oportunidade de fazer uma formação na área dos
computadores, mas segundo apuramos não terá nenhum certificado. Considera que os técnicos são “fantásticos” e que a relação é “5 estrelas”.
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O projecto é visto como algo que pode abarcar todas as idades: “Acho que isto, não há idade para andar aqui”. O contacto dos seus pais também já ficou ali
em tempos; estavam a tentar participar numa actividade em que frequentariam aulas, mas a mesma não chegou a abrir.
Sentimos que há como que um constante reconhecimento, mas Josué coloca-se do “lado de fora”. É positivo, benéfico e importante, mas como se fosse
mais para os outros do que para si. Não sentimos que valorize muito a importância que o projecto poderia, eventualmente, ter na sua vida. Aliás, considera
que não mudou com a intervenção do projecto no bairro: “Estou mais com os meus amigos... tipo... já frequentei mais isto. Agora venho aqui mesmo só de
vez em quando... e mesmo talvez por causa disso; por causa dos meus amigos, estou sempre com eles, tenho sempre o tempo ocupado”.
Reflectindo sobre o que ouvimos, vimos e observámos, somos tentados a dizer que Josué sentirá a importância da presença do projecto, não através da sua
pessoa, mas sim, através do bairro. Naquela promiscuidade do olhar que não nos deixa distinguir onde termina o bairro e começam os seus habitantes,
pensamos encontrar a resposta que procuramos: a existência do projecto valoriza o bairro, o bairro renova-se e reinventa-se e Josué enche-se de orgulho;
sente tudo através do bairro e este último pulsa dentro de si. Josué quer casar, ter dois ou três filhos, um carro e uma casa numa zona como Cascais ou
Sintra. Mas, enquanto houver bairro, tenciona ir visitá-lo todos os dias.
Não temos dúvidas de que Josué participaria entusiasticamente em actividades relacionadas com a requalificação urbana, por exemplo: “Sinceramente já
não gosto de ver aquilo ali. Gostava de ver o bairro todo pintado, todo como deve ser.”; “Nós já pensámos nisso. Se cada pessoa desse um x para pintar o
bairro, acho que o bairro ficava bonito, mas pronto, é mesmo cada um por si”.
Não tem ambições de que algo seja alterado no projecto, mas deixa uma sugestão: “Não digo umas férias que isto está mau, mas um dia ou dois, irmos para
um parque de campismo ou então sair de manhã e virmos à noite, e irmos para uma piscina... acho que isso era óptimo, era muito bom”.
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Acima de tudo, Josué encontra-se numa fase da sua vida em que é nos amigos que busca a sua motivação. Uma motivação que não parece ter ido buscar
directamente a este projecto que, a seu ver, o deixou igual.
Os amigos já não frequentam a escola e, ao contrário de Josué, já todos trabalharam. Neste momento, os seus pares “(...) estão naquela pausa. (...) o
trabalho está um bocado difícil”. Josué, segundo nos diz, já teve várias oportunidades de poder trabalhar e não aproveitou para o fazer: “Agora que eu
quero, não tenho!”. Não consegue explicar o porquê de sempre ter resistido a trabalhar “Eh pá... nem eu me percebo. Não percebo isso, sinceramente (...).
Não pensava; eu na altura não pensava muito nisso”. Avisa-nos de que o que vai dizer é entre aspas, mas diz que o que queria era a “boa vida” do bairro.
Tanto amigos, como os pais, sempre o motivaram a procurar trabalho. Até chegou a ir a entrevistas, mas nunca foi chamado.
Foi quando começou a dar-se com este grupo de amigos que sentiu que passava a ser adolescente, muito embora nos diga que a relação se intensifica
quando tem perto de 17 anos: “Deus queira que mantenha por muitos anos, este grupo”. É o grupo em que se insere no momento em que deixa os da sua
idade e começa a dar-se com os mais velhos. Sempre gostou de andar com pessoas mais velhas; é bom porque se aprende sempre algo. Os amigos, que
considera pessoas maduras, são para ele uma referência: “A maneira como eles agem... como é que eu vou dizer isto? Têm atitude!”.
Procuramos perceber as afinidades que os juntaram. Refere-se ao facto de morarem no mesmo bairro (sempre presente a importância deste espaço) e a
relação próxima que conseguiu com eles: “Nunca me desiludiram. Acima de tudo, nunca me desiludiram!”; “Se eu precisar de alguma coisa, eles estão lá
para me ajudar. É uma coisa muito importante que marca as amizades”. Fazem muitas coisas juntos. Embora desempregados, ocupam o espaço de uma
forma bastante lúdica. Vão à praia; saem às sextas-feiras e aos sábados; vão ao ginásio praticamente todos os dias. Fazem coisas juntos, divertem-se, como
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quaisquer outros jovens gostariam de fazer. Não há racismos, nem tensões. Fica fácil de perceber por que dissemos que, a certa altura, a banda sonora de
Josué se modifica. Ele próprio, ao enumerar-nos os locais onde gosta de dançar, dá-nos mostras da diversidade: “Ondeando – festa africana; Dock’s – festa
africana; BBC; house, latina...”.
Têm um estilo de vida com actividades, cujos gastos inerentes não podem ser eles a suportar no seu desemprego: “É a mãe, é a mãe! Vou-lhe pedindo, ela
dá-me (...). Ela reclama, claro que reclama! Só queres ginásio, só queres sair à noite, não sei quê, não sei que mais, pronto é aquelas birras de mãe, pronto. E
eu, pronto, começo-me a rir, como é óbvio (...). Convenço, um abraço, um beijinho”.
É inequívoca a sensação de que Josué está a levar a sério esta fase da sua vida Aliás, embora muito divertido e dono de gargalhadas sonoras, ele leva tudo a
sério; família, cultura cigana, escola, amigos. Vemo-lo como um elemento que muito bem faria a ponte entre os dois mundos. Ele, que se preocupa como
facto de as meninas ciganas não poderem estudar muito e que se preocupa com o facto de as mulheres ciganas não poderem ir à praia como as outras
(proibido o uso do bikini), seria uma ponte ideal entre as duas realidades. Não despreza nenhum dos “mundos” a que tem acesso, retirando antes o que
todos têm de bom. Vai dançando ao som de todas as músicas, o que o torna uma referência para as crianças mais jovens e para o próprio Escolhas.
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Autoria: DINÂMIA’CET
Fotografia: Luiz Saint-Maurice
2013
DINÂMIA’CET-IUL, Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa
Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, PORTUGAL
Tel. 217938638 Fax. 217940042 E-mail: [email protected] Internet: www.dinamiacet.iscte.pt
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