memorial facebook. meu epitáfio é minha página. as

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memorial facebook. meu epitáfio é minha página. as
MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA
PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO
CIBERESPAÇO
FACEBOOK MEMORIAL. MY EPITAPH IS MY PAGE. REPRESENTATIONS
OF DEATH IN CYBERSPACE
MEMORIAL FACEBOOK. MI EPITAFIO ES MI PÁGINA. LAS
REPRESENTACIONES DE LA MUERTE EN EL CIBERESPACIO
Leticia Mueller
[email protected]
RESUMO
Esta pesquisa busca levantar, descrever e analisar como a presença do corpo virtual do falecido no
ciberespaço altera a manifestação do luto e a representação da morte, afetando o relacionamento do
ser humano com a morte e, principalmente, com o ambiente virtual em que atuam. Para realizar esse
trabalho, a metodologia escolhida foi a do levantamento bibliográfico de conceitos referentes ao
ciberespaço e do levantamento histórico do relacionamento do homem ocidental com a morte. Com
isso, pretendeu-se fazer uma analogia das relações comunicacionais no âmbito do luto e da morte para
verificar de que forma os indivíduos parecem estar se apropriando das redes sociais para se relacionar
e comunicar.
Palavras-chave: Ciberespaço. Mídias sociais. Luto. Morte.
ABSTRACT
This research aims to describe and analyze how the presence of the virtual body of the deceased in
cyberspace alters the expression of mourning and the representation of death, affecting the
relationship of the human being with the death, and mainly with the virtual environment in which
they operate. In order to accomplish this work, the chosen methodology consisted of a bibliographical
survey of concepts relating to cyberspace and a historic survey of Western man's relationship with
death. Thus, it was sought to make an analogy of communicative relations within the mourning and
death to verify how the individuals seem to be appropriating the social networks to relate and
communicate to each other.
Key words: Cyberspace. Social media. Mourning. Death.
LETICIA MUELLER
RESUMEN
Esta investigación tiene por objetivo describir y analizar cómo la presencia del cuerpo virtual del
difunto en ciberespacio modifica la manifestación de luto y la representación de la muerte, afectando
a la relación del ser humano con la muerte y, en particular, con el entorno virtual en el que operan.
Para realizar este trabajo, la metodología elegida consistió en un estudio bibliográfico de conceptos
relativos al ciberespacio y un estudio histórico del relacionamietno del hombre occidental con la
muerte. Con esto, hemos intentado hacer una analogía de las relaciones comunicacionales en el
ámbito del luto de la muerte para comprobar cómo los indivíduos parecen estar apropiándose de las
redes sociales para relacionarse y comunicarse.
PALABRAS-CLAVE: Ciberespacio. Medios sociales. Luto. Muerte.
INTRODUÇÃO
As novas tecnologias digitais vêm mudando as esferas culturais, sociais,
econômicas e políticas. Na sociedade do conhecimento, a lógica comunicacional
“muitos-muitos” fez com que a Internet se tornasse um meio de disseminação de
informações. Para Levy (1999), a World Wide Web é a maior revolução na história da
escrita depois da invenção da imprensa.
A comunicação por computadores favorece “um tipo muito especial e
proliferante de cultura que está recebendo o nome de cultura do computador”,
como classifica Santaella (1996, p. 12). Essa cultura se desenvolve em um ambiente
que propicia diversos fenômenos e possibilidades. Pode-se, por exemplo, fingir ser
outra pessoa, estar em vários lugares ao mesmo tempo, aprender sobre a cultura de
diversos países, manter laços de amizade com pessoas que moram a milhares de
quilômetros de distância e ainda fazer várias atividades simultaneamente.
O mundo virtual acabou se transformando em uma extensão da vida cotidiana
do “mundo real”, e nesse processo de apropriação tecnológica, temas como a morte
também migraram para dentro do mundo online em busca de ressignificações.
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DA MORTE NO CIBERESPAÇO
CIBERESPAÇO
O computador, como meio mais comum de acesso a esse mundo virtual,
segundo Sherry Turkle (1997), é para a sociedade contemporânea mais do que uma
ferramenta de comunicação, mas também um meio de transformação dos modos de
cognição e interações perceptivas. Da mesma forma, Lemos (1997), ao propor que a
interatividade digital é um tipo de relação tecno-social, consistindo no diálogo entre
homens e máquinas cujo contato é permitido por ‘interfaces gráficas’ em tempo real,
também acredita que essa característica da interatividade digital afeta as relações
entre o sujeito e o objeto.
Essas transformações são criadas pelo homem e ao mesmo tempo o afetam.
No mundo virtual, todos podem assumir as mais diversas identidades e ser aquilo que
o mundo real não permite.
Os indivíduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou
seja, eles possuem uma imagem de si mesmos e de sua situação. Cada ato do
indivíduo ou do grupo modifica o mundo virtual e sua imagem no mundo virtual. “(...)
Um mundo virtual, mesmo não realista, é, portanto, fundamentalmente organizado
de acordo com a modalidade táctil e proprioceptiva” (LEVY, 1999, p. 72).
O mundo virtual pode simular fielmente o mundo real ou permitir que o
indivíduo construa outra identidade diferente da sua no cotidiano, seja física ou
comportamentalmente. Talvez, seja essa “sensação subjetiva propiciada pelos
mundos virtuais de estar em interação pessoal e imediata com a situação simulada”
(LEVY, 1999, p. 70) que explique a frequência das visitas aos perfis dos indivíduos nas
redes sociais, mesmo depois de mortos.
Essa impressão de realidade, causada pelo poder de potencializar sensações
do ciberespaço, leva a sociedade a interagir com os perfis como se fossem entidades
físicas reais. Assim, o pai que perde a filha, continua virtualmente e publicamente
mantendo a comunicação na sua página do Facebook. Resta saber quais são suas
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intenções ao agir assim e se há algum indício de confusão entre o real e o virtual no
ciberespaço.
No ciberespaço, essa aceleração da troca de informações nos dá o poder de
desencarnar, ficar alheios às convenções de espaço e tempo para nos tornarmos
personas virtuais capazes de viajar na velocidade da luz. Isso confunde as relações
dos seres humanos com o mundo e desordena a história (VIRILIO, 1993).
MORTE E SOCIEDADE
A morte é um tema que sempre teve grande relevância para a sociedade. Cada
cultura, situada em um determinado espaço territorial e em um período de tempo,
tem uma forma de lidar com a morte. Analisar o relacionamento do homem com a
morte, a expressão do luto e a representação da morte, mais do que compreender a
finitude da vida, ajuda a compreender como uma sociedade lida e interpreta a vida.
Heidegger (2004) considera que a morte pertence à própria estrutura
essencial da existência e plenifica a vida, pois a existência humana é um ser-para-amorte. Ela é intrínseca, nascemos morrendo e morremos a cada dia. “Quando o
homem começa a viver, tem idade suficiente para morrer” (MARANHÃO, 1998, p.
69).
Sendo a morte um processo natural da vida, aceitá-la contribui para a
preservação do indivíduo:
A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre as muitas
criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres
humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a
maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os
vivos, sabem que morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim, estando
cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precauções
especiais – como indivíduos e como grupos – para proteger-se contra a ameaça da
aniquilação (ELIAS, 2001, p. 10).
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Ainda assim, existe uma grande negação da mortalidade do corpo físico “(...)
porque o conhecimento da morte é externo, produto da consciência que reconhece
o real, e não inato, que o homem se surpreende com a morte” (MORIN, 1970, p. 59).
O medo da morte está em contextos antigos, como na perspectiva mítica
bíblica, segundo Norbet Elias (2001):
No paraíso, Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adão, o
homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte é uma
punição (...) desempenhou papel considerável no medo humano da morte por um
longo tempo (ELIAS, 2001, p. 17)
Morin (1970) ainda fala que a dor da morte só existe quando a individualidade
do morto tiver sido presente e reconhecida e que quanto mais único o indivíduo,
maior a dor. A perda da individualidade juntamente com o terror da decomposição
do cadáver é o que causa a repulsa à morte.
Quanto mais amada for a pessoa perdida, maior a importância conferida aos
pertences, aos lugares e aos artefatos produzidos para representá-la. É esse conjunto
memorial que ajudará o trabalho de luto, a ocupação do vazio deixado pelo morto e o
cultivo de lembranças, como afirma Lepargneur (1986):
A experiência dolorosa é reconhecer uma feição conhecida, familiar, na máscara
do cadáver. A morte de um próximo, de um parente, suscita reação emotiva
violenta, porque a ocorrência não deixa de evocar a morte própria. A morte não
morreu, está espreitando suas vítimas, muito perto de nós (LEPARGNEUR, 1986,
p. 37).
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MORTE NO OCIDENTE
A preocupação pelos mortos faz parte da natureza do homem e consiste em
uma apreensão e também revolta contra a própria morte (MORIN, 1970). Mesmo os
homens de Neanderthal davam sepulturas para os mortos e já esboçavam
sentimentos de resignação perante a finitude da existência.
O cadáver humano já suscita emoções que se socializam em práticas fúnebres e a
conservação do cadáver implica um prolongamento da vida. O não abandono dos
mortos implica a sua sobrevivência. Não existe praticamente qualquer grupo
arcaico, por muito primitivo que seja, que abandone os seus mortos ou que os
abandone sem ritos (MORIN, 1970, p. 25).
As efígies, a mumificação e os monumentos atestam o desejo de conservar, de
alguma maneira, o antepassado. Além de manter o morto vivo na memória dos que
ficaram, os ritos fúnebres servem para que ele permaneça como modelo para os seus
e para a comunidade onde ele viveu e que inspire atitudes semelhantes a que teve
em vida.
No início da Idade Média, havia uma familiaridade com a morte. O homem
resignava-se sem grande dificuldade à ideia da mortalidade (ARIÉS, 2012). É o que ele
denomina morte domada, uma morte domesticada.
Para Ariés, a morte era uma cerimônia pública e organizada, marcada pela
aceitação da finitude humana, tratada como algo simples e natural, como narra nesse
trecho descrevendo os hábitos da sociedade:
O quarto do moribundo transformava-se, então, em lugar público, onde se
entrava livremente. Ainda no começo do século XIX, os passantes que
encontravam na rua o pequeno cortejo do padre levando o viático
acompanhavam-no, entrando, em seguida, no quarto do doente. (...) Levavam-se
crianças (ARIÉS, 2012, p. 39).
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Os mortos eram enterrados nos terrenos das igrejas, tanto no interior quanto
no seu pátio. Quanto mais próximo do púlpito, maior o poder aquisitivo do defunto,
pois pretendia-se ficar o mais perto possível dos santos e mártires para ficarem
protegidos do inferno. É importante salientar que embora a igreja e o cemitério
estivessem interligados, ambos não deixaram de ser lugares públicos, nos quais
ocorriam encontros e reuniões e realizava-se o comércio, danças e jogos, de forma
que vivos e mortos conviviam em locais comuns (ARIÉS, 2012).
Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, a
morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo e
estabeleceu a própria individualidade.
Um reflexo disso é a individualização das sepulturas, retomando um costume
da Roma antiga na qual cada indivíduo possuía um local de sepultura marcado por
uma inscrição funerária, que significava o desejo de conservar a identidade do morto,
sair do anonimato e perpetuar a memória do defunto.
Com a inscrição, reaparece a efígie, sem que esta chegue a ser realmente um
retrato. Evoca a beatitude ou o eleito descansando à espera do Paraíso. Na época
de São Luís, entretanto, tornar-se-á mais realista, atendo-se a reproduzir os traços
do vivente. Finalmente, no século XIV, levará o realismo ao ponto de reproduzir
uma máscara modelada pelo rosto do defunto (ARIÉS, 2012, p. 62).
O epitáfio, portanto, auxilia na perpetuação da lembrança do morto no seio da
sociedade. O que está escrito representa uma mensagem muda dos mortos para os
vivos, já que a única maneira pela qual uma pessoa morta vive é na memória dos
vivos. Quando a cadeia da recordação é rompida “(...), então o sentido de tudo que
seu povo fez durante milênios e de tudo que era significativo para ele também se
extingue” (ELIAS, 2001, p. 41).
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No século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar à morte um
novo sentido, exaltando-a e dramatizando-a. A ostentação da dor, própria dos
funerais, visa provar ao morto a aflição dos vivos, para garantir a benevolência do
defunto (MORIN, 1970). Foi nessa época que as carpideiras tornaram-se comuns nos
funerais.
Mas, ao mesmo tempo, já se ocupa menos de sua própria morte e, assim, a
morte romântica, como classifica Ariés, é, antes de tudo, a morte do outro – o outro
cuja saudade e lembrança inspiram, a partir do século XIX, o culto dos túmulos e dos
cemitérios (ARIÉS, 2012, p. 66).
O túmulo transformara-se no signo da presença do defunto para além da
morte, gerando um apego dos vivos pelos restos mortais. A celebração da morte
estabelece a autoafirmação de um grupo social, indicando sua duração em
determinado tempo e espaço. Dessa forma, destaca-se a importância da sepultura
como um local da memória individual e coletiva:
Chegava-se mesmo ao ponto de conservá-los à vista, em grandes frascos com
álcool (...) Mas a opinião comum quis conservar os mortos em casa, enterrando-os
em propriedade da família, ou ter a possibilidade de visitá-los, caso estivessem
enterrados em um cemitério público (ARIÉS, 2012, p. 77).
A partir de então, torna-se comum visitar os túmulos para recordar os mortos,
como forma de conferir-lhes uma espécie de mortalidade. Os cultos funerários
variavam de acordo com a localidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, eram
comuns as mourning pictures, litografias ou bordados que desempenhavam o papel
de pequenos túmulos portáteis para decoração.
Logo depois de ser velado por vários dias dentro da própria casa em um
evento público, o defunto era conduzido ao cemitério, recebendo visitas frequentes
que depositariam flores sobre seu túmulo, sinais de que não seria definitivamente
esquecido (MARANHÃO, 1998).
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O cemitério caracteriza-se como um dos principais locais da representação da
morte, comportando também os conceitos de espaço, tempo, memória e
esquecimento.
O intuito é preservar a lembrança do falecido na memória coletiva. Só a
coletividade pode manter viva a memória de uma pessoa que morreu. Como o ser
humano é um ser social, a morte representa o esquecimento total, o fim absoluto, a
menos que se possa sobreviver na memória coletiva de um determinado grupo.
Entretanto, a partir do século XX, entre 1930 e 1950, a morte deixa de ser
familiar e passa a ser um objeto interdito. Um fator material importante que
impulsionou essa transformação foi a transferência do local da morte. Já não se
morre em casa, entre familiares, mas sozinho no hospital devido a impotência ou
incapacidade da equipe médica que não foi capaz de salvar o doente. “A morte é um
fenômeno técnico causado pela parada dos cuidados, ou seja, de maneira mais ou
menos declarada, por decisão do médico e da equipe hospitalar” (ARIÉS, 2012, p. 86).
Os avanços da medicina e o aumento da expectativa de vida levaram a sociedade a
crer que “a morte não é mais um golpe da natureza, é uma traição técnica”
(LEPARGNEUR, 1986, p. 62).
O velório também deixa de ser realizado na casa da família, na qual antes o
corpo ficava exposto e era visitado pelos entes queridos, pois cada vez menos é
tolerado a presença do morto em casa, tanto por questões higiênicas quanto por
falta de condições psicológicas de vivenciar a situação (ARIÉS, 2012, p. 85).
A partir disto, o luto tornou-se banalizado na sociedade atual. Para Maranhão
(1998, p. 18), o dilaceramento da separação e a dor da saudade podem, porém não
devem ser manifestados publicamente. Assim, o luto se tornou mais um assunto
privado, tolerado apenas na intimidade.
O tabu da morte transforma o luto, tornando-o comedido, discreto, solitário e
envergonhado. A demonstração de dor é evitada e o direito de chorar só existe
quando ninguém está vendo ou escutando. É a interdição ou negação da morte com
o objetivo de preservar a felicidade:
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Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade de felicidade, o
dever moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando
toda a causa de tristeza ou de aborrecimento, mantendo um ar de estar sempre
feliz, mesmo se estamos no fundo da depressão (ARIÉS, 2012, p. 89).
A mudança moderna na maneira de visualizar a morte está relacionada com a
noção de indivíduo. A partir do momento que a sociedade enxerga o papel social
individual de cada um e reconhece a noção de indivíduo, a morte ganha um novo
significado. É por isso que as visitas aos cemitérios e a veneração aos túmulos
perduraram, ao contrário da ideia de cremação, que ainda é muitas vezes repugnada,
pois faz com que os restos mortais desapareceram rápido e radicalmente.
A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima,
por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à
nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer
seu nome (ARIÉS, 2012, p. 40).
Em relação ao cortejo fúnebre, a situação é semelhante. Tudo acontece muito
rápido, “[...] que mal pode ser percebido no intenso urbano. [...] O corpo é enterrado
numa cerimônia muito simples e rápida, como se quisesse neutralizar o
acontecimento...” (MARANHÃO, 1998, p. 18).
Estamos vivendo em uma sociedade onde o principal objetivo é a produção. A
partir desta meta, tem-se a ilusão do progresso contínuo, impedindo assim o lugar
para a morte na sociedade. É essa mais uma das razões pelas quais o ser humano
ocidental expulsou a morte de seu cotidiano, transformando-a em tabu. Isso porque,
ainda que a morte seja um fenômeno banalizado, é um mistério, não comparável a
nenhum outro fato, único e desmedido.
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O certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas na Idade
Média do que hoje (...) Em comparação com o presente, a morte naquela época
era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar (ELIAS, 2001,
p. 21).
A tendência é ocultar a finitude irrevogável da existência humana,
especialmente das crianças, pelo uso de eufemismos, relacionando a morte com a
ideia do sono, viagem, etc.
Os pais nessas sociedades são frequentemente mais reticentes em falar com seus
filhos sobre a morte e o morrer. As crianças podem crescer sem nunca terem visto
um cadáver. Em estágios anteriores de desenvolvimento o espetáculo de
cadáveres era muito mais comum. Desde então, o aumento da expectativa de vida
tornou a morte mais distante dos jovens e dos vivos em geral (ELIAS, 2001, p. 97).
A toilete fúnebre, cujo intuito é deixar o defunto agradavelmente
apresentável, tem justamente o objetivo de mascarar as aparências da morte e
conservar no corpo os ares familiares e alegres da vida. Fazem esquecer do morto
para criar a ilusão do vivo.
Maranhão (1998, p. 78) afirma que a sociedade ocidental contemporânea tem
estabelecido, por meio de formas culturais, a redução da morte e tudo o que está
relacionado à ela no intuito de negar a sua experiência.
Morrer é não ser mais percebido. Essa negação da morte é um problema das
sociedades individuais, nas quais a dor da perda gerada pela morte é mais intensa do
que nas sociedades coletivas, que possuem relações sociais que vão além do próprio
indivíduo e encaram a morte de modo natural. “A ideia de ter que morrer só é
característica de um estágio comparativamente tardio da individualização e da
autoconsciência” (ELIAS, 2001, p. 69).
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MORTE NO CIBERESPAÇO
Há uma espécie de retomada da morte domada, mas com diferenças
significativas. Apesar da familiaridade com a morte, Ariés afirma que os antigos
temiam a proximidade dos mortos. Segundo ele, os antigos honravam as sepulturas e
promoviam cultos funerários para impedir que os defuntos voltassem para perturbar
os vivos (ARIÉS, 2012).
Entretanto, a consciência sobre a morte foi diminuindo com o passar dos
séculos, pois houve um aumento na expectativa de vida dos indivíduos, o que mostra
um aumento da segurança e consequentemente um desvio da reflexão sobre a
finitude humana.
Com a modernidade, o homem vive um momento em que se percebe capaz de
realizar uma dominação de tudo aquilo que está ao seu redor, controlando os
fenômenos da natureza. Percebe-se que é a partir da modernidade que começa o
início da negação da morte, que ganha ênfase na contemporaneidade.
A constatação de que a morte é inevitável está encoberta pelo empenho em adiála mais e mais com ajuda da medicina e da previdência, e pela esperança de que
isso talvez funcione (ELIAS, 2001, p.56).
Partindo da premissa de que os indivíduos possuem cada vez mais dificuldade
em lidar com a morte, de acordo com o autor Phillipe Ariés (2012) o assunto é pouco
discutido pela sociedade, sendo por vezes até ocultado. Essa sensação de negação da
finitude foi explicada por Castells como um reflexo das novas tecnologias:
A tendência predominante nas sociedades, como expressão de nossa ambição
tecnológica e em concordância com a nossa comemoração do efêmero é apagar a
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morte da vida ou torná-la inexpressiva pela sua representação repetida na mídia,
sempre como a morte do outro, de forma que a nossa própria seja recebida com a
surpresa do inesperado. Separando a morte da vida e criando o sistema
tecnológico para fazer que esta crença dure o suficiente, construímos a
eternidade durante nossa existência. Assim, tornamo-nos eternos exceto naquele
breve momento quando somos rodeados pela luz (CASTELLS, 1999, p. 547).
A Internet, por meio das comunidades virtuais, constrói a representação da
morte e desenvolve uma espécie de cerimônia em torno de mortos. Mesmo negada,
a morte ocupa lugar de destaque no ciberespaço, que reconfigura cerimônias
tradicionais. A morte é celebrada nas comunidades virtuais por meio de postagens de
conteúdo multimídia, como imagens, textos e vídeos, numa espécie de velório
“eterno”.
Está se construindo uma nova narrativa em torno da morte. Os usuários do
Facebook podem diariamente velar o corpo online do morto e ainda interagir com
outros contatos da rede, evitando o sepultamento final e definitivo do corpo. Na
cerimônia virtual, cada um pode participar da sua maneira, sem convenções religiosas
ou os tabus da morte.
Se a morte domada (ARIÉS, 2012) era uma cerimônia pública, ela pode estar
sendo retomada na ‘morte digital’, pois além de ser mais tolerada no ciberespaço,
permite a manifestação do luto de forma mais espontânea e menos solitária, como
uma fuga do tabu costumeiro com os enlutados.
Uma das razões para isso estar acontecendo é que as imagens são um meio de
afirmação da individualidade diante do perecimento, da decomposição e do
esquecimento. Enquanto no offline o corpo sofre os efeitos do tempo e se decompõe
a pó, no online o corpo permanece intacto. Nesse sentido, pode-se dizer que as
imagens ajudam a amenizar o sentimento de temor do esquecimento e da
mortalidade humana.
Levando em conta a possibilidade de os perfis no Facebook serem extensões
do corpo e da personalidade humana (MCLUHAN, 1995), o ato de manter a
comunicação com o perfil de falecidos queridos pode ser uma busca para cuidar do
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prolongamento da vida, da mesma forma que ainda é costume manter os túmulos
sempre bem cuidados.
Dessa forma, os amigos e familiares mais íntimos sentem-se, de certa forma,
na obrigação de deixar mensagens carinhosas, assim como acontece no mundo
offline onde as lápides mantém-se, quase sempre, bem cuidadas. Essa tradição de
reavivar a lembrança do morto por meio de visitas no cemitério pode estar ganhando
uma releitura, sendo reapropriada no ciberespaço por meio desses perfis que já estão
se transformando em verdadeiros cemitérios. Para quem parte, é uma forma de ser
lembrado; para quem fica, é uma forma de se lembrar de quem já não está aqui.
O Facebook, por exemplo, desde 2009 permite que os perfis sejam
transformados em memoriais1 após a morte do usuário. O memorial possibilita que
amigos e familiares continuem enviando mensagens e prestando homenagens ao
perfil, que se torna invisível para qualquer outro usuário que não seja amigo da
pessoa.
No memorial, amigos podem compartilhar recordações na timeline do falecido
e o conteúdo compartilhado pelo morto permanecerá no Facebook, visível ao público
com o qual a mensagem foi compartilhada.
Deixar uma memória virtual para ser visitada por pessoas queridas pode ser
reconfortante – tanto para quem elabora quanto para quem acessa a página. Porém,
falar sobre morte e perdas no meio virtual, assim como no meio presencial, não é
fácil para todos. Logo, deve-se pensar nas possibilidades de cada pessoa que entra
em contato com algum tipo de memorial online. Alguns aspectos negativos
relacionados à presença do falecido em redes sociais são: mensagens ou postagens
que venham causar mal-estar para os familiares, pessoas que nunca falavam com o
falecido ou com sua família podem vir prestar condolências, a pessoa falecida poderia
ter segredos que não gostaria que viessem à tona e que podem aparecer
publicamente na internet, entre outros.
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http://www.facebook.com/help/103897939701143/
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Já os aspectos positivos estariam ligados à possibilidade de deixar mensagens
dirigidas ao falecido que podem beneficiar o processo de luto de quem escreve celebrando quem aquela pessoa foi na sua vida, relatando histórias de momentos
compartilhados e como isso marcou e transformou quem você era na pessoa que é
hoje -; a chance de presenciar o processo de luto das outras pessoas, o que tem uma
relação com o senso de comunidade, do sofrimento grupal pela perda e também
serve para construir um novo tipo de relação com quem partiu; aproxima quem mora
longe do falecido; é útil nas situações onde se optou pela cremação e não há túmulo
para ser visitado; é reconfortante para muitas pessoas saber que há um lugar onde se
podem encontrar diversas lembranças e informações sobre alguém que já se foi.
O perfil é um local com potencialidade para ser eterno, imune aos efeitos do
tempo e do apodrecimento, onde o indivíduo finado é capaz de permanecer com a
personalidade, ainda que de forma etérea, e que permite a visitação a qualquer
momento. Visitando o Facebook de quem morreu, é possível relembrar a identidade,
ajudar a reconstruir sua imagem por meio de lembranças e ainda manter uma boa
impressão daquele que partiu, ao contrário das imagens associadas aos corpos
putrefatos dos cemitérios. Criam-se lembranças para manter os mortos vivos na
memória. Manter ativo o perfil do finado poderia ser interpretado como um desejo
de conservar a individualidade para além da morte, uma forma de eternizar-se na
história, transpondo quaisquer limites espaciais-temporais.
No entanto, nos ambientes digitais dessas comunidades, todo enterro deve
ser compreendido como temporário, podendo o usuário ‘recorrer ao cadáver’ a
qualquer momento.
Ainda que esteja ocorrendo a supressão do luto, o ciberespaço parece
proporcionar o ambiente adequado para a manifestação de sentimentos. Por meio
de postagens diretas no perfil do falecido, o usuário pode expressar suas
condolências e ainda ler e interagir com a de outros usuários que façam parte da rede
do morto, afastando a imagem da morte à medida que adota um discurso direto,
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como se o receptor estivesse vivo. Falar não deixa de ser uma forma de negar a
morte:
Falar é, portanto, uma maneira de afastar a morte e o medo da morte, de negá-la,
mesmo quando a fala a celebra. A linguagem é vida, ela deserta o corpo
concomitantemente com a vida, ou pouco antes (LEPARGNEUR, 1986, p. 29).
O luto, como forma de expressão social da dor dos parentes e próximos do
recém-morto, ganha nova reconfiguração no ciberespaço, pois pode ser difícil aceitar
a ausência física do falecido quando o corpo online permanece intacto e presente em
meio aos outros.
As formas e prazos de luto, em geral estritamente regulamentados pelo costume,
visam à acomodação do grupo do defunto à nova situação que vem se estruturar
sem ele. É um tempo de transição para “matar o morto” como parceiro de diálogo
entre vivos (LEPARGNEUR, 1986, p. 37).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece haver uma nova visão de morte eclodindo na sociedade atual, o que
reflete uma nova cultura em que os perfis nas redes sociais podem ser considerados
extensões do homem. Essa continuidade póstuma de comunicação e postagens no
perfil dos usuários falecidos seria uma forma de conservar ativa e “bem cuidada” a
imagem do morto no virtual, assim como ocorre nas lápides e túmulos no universo
offline.
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MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES
DA MORTE NO CIBERESPAÇO
O ciberespaço parece ser a melhor forma do homem se eternizar no tempo e
na história, quebrando barreiras espaciais e temporais, inclusive transpondo os
limites da vida terrena.
É nesse sentido que a comunidade torna-se um espaço de relação entre os
vivos e os mortos. Uma espécie de “Além digital” onde os usuários mantém os
finados ativos na memória dos vivos por meios de textos, vídeos e imagens.
A alimentação dos perfis de falecidos é uma espécie de atualização da morte
domada, de que fala Philippe Ariés (2012), como cerimônia pública construída,
diariamente, pelos usuários.
Resta-nos estimar os contornos da nova experiência subjetiva a partir de
diferenças com o que já existiu por meio do estudo das representações da morte na
cibercultura e das mudanças espaciais-temporais da rede. Ou seja, pensar como as
novas tecnologias podem estar transformando nossa percepção e nossas estratégias
afetivas e comunicacionais.
Sendo o computador uma ferramenta que potencializa processos-cognitivos,
pode-se concluir que há uma recusa em relação a morte e uma dificuldade de
aceitação. Para saber se o motivo do estreitamento comunicacional entre vivos e
mortos seria uma tentativa de revelar a angústia para outros conectados ou uma real
necessidade de se comunicar, deveria ser feito um estudo mais aprofundado.
Tendo em vista a importância do assunto, ainda recente, mas de suma
relevância para compreensão de toda uma cultura, pretende-se prosseguir com a
pesquisa, analisando outros pontos de vista e outros perfis das mais diversas faixas
etárias.
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LETICIA MUELLER
REFERÊNCIAS
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ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – seguido de envelhecer e morrer
(tradução: Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo (Vol. 1). Petrópolis: Vozes, 2004.
LEMOS, André. Anjos interativos e retribalização do mundo: sobre Interatividade e
Interfaces
Digitais,
1997.
Disponível
em:
<http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/interativo.pdf>.Acesso em: 10 abr.
2013
LEPARGNEUR, François Hubert. Lugar atual da morte: antropologia, medicina e
religião. Edições Paulinas, 1986.
LEVY, Pierre. Cibercultura, C. I. Da Costa (trad.). São Paulo: Editora 34, 1999.
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MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 1995.
MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Portugal: Publicações Europa-America, 1970.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.
TURKLE, S. A Vida no Ecrã. A identidade na era da Internet. Lisboa: Relógio D’Água,
1997.
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