memorial facebook. meu epitáfio é minha página. as
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memorial facebook. meu epitáfio é minha página. as
MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO FACEBOOK MEMORIAL. MY EPITAPH IS MY PAGE. REPRESENTATIONS OF DEATH IN CYBERSPACE MEMORIAL FACEBOOK. MI EPITAFIO ES MI PÁGINA. LAS REPRESENTACIONES DE LA MUERTE EN EL CIBERESPACIO Leticia Mueller [email protected] RESUMO Esta pesquisa busca levantar, descrever e analisar como a presença do corpo virtual do falecido no ciberespaço altera a manifestação do luto e a representação da morte, afetando o relacionamento do ser humano com a morte e, principalmente, com o ambiente virtual em que atuam. Para realizar esse trabalho, a metodologia escolhida foi a do levantamento bibliográfico de conceitos referentes ao ciberespaço e do levantamento histórico do relacionamento do homem ocidental com a morte. Com isso, pretendeu-se fazer uma analogia das relações comunicacionais no âmbito do luto e da morte para verificar de que forma os indivíduos parecem estar se apropriando das redes sociais para se relacionar e comunicar. Palavras-chave: Ciberespaço. Mídias sociais. Luto. Morte. ABSTRACT This research aims to describe and analyze how the presence of the virtual body of the deceased in cyberspace alters the expression of mourning and the representation of death, affecting the relationship of the human being with the death, and mainly with the virtual environment in which they operate. In order to accomplish this work, the chosen methodology consisted of a bibliographical survey of concepts relating to cyberspace and a historic survey of Western man's relationship with death. Thus, it was sought to make an analogy of communicative relations within the mourning and death to verify how the individuals seem to be appropriating the social networks to relate and communicate to each other. Key words: Cyberspace. Social media. Mourning. Death. LETICIA MUELLER RESUMEN Esta investigación tiene por objetivo describir y analizar cómo la presencia del cuerpo virtual del difunto en ciberespacio modifica la manifestación de luto y la representación de la muerte, afectando a la relación del ser humano con la muerte y, en particular, con el entorno virtual en el que operan. Para realizar este trabajo, la metodología elegida consistió en un estudio bibliográfico de conceptos relativos al ciberespacio y un estudio histórico del relacionamietno del hombre occidental con la muerte. Con esto, hemos intentado hacer una analogía de las relaciones comunicacionales en el ámbito del luto de la muerte para comprobar cómo los indivíduos parecen estar apropiándose de las redes sociales para relacionarse y comunicarse. PALABRAS-CLAVE: Ciberespacio. Medios sociales. Luto. Muerte. INTRODUÇÃO As novas tecnologias digitais vêm mudando as esferas culturais, sociais, econômicas e políticas. Na sociedade do conhecimento, a lógica comunicacional “muitos-muitos” fez com que a Internet se tornasse um meio de disseminação de informações. Para Levy (1999), a World Wide Web é a maior revolução na história da escrita depois da invenção da imprensa. A comunicação por computadores favorece “um tipo muito especial e proliferante de cultura que está recebendo o nome de cultura do computador”, como classifica Santaella (1996, p. 12). Essa cultura se desenvolve em um ambiente que propicia diversos fenômenos e possibilidades. Pode-se, por exemplo, fingir ser outra pessoa, estar em vários lugares ao mesmo tempo, aprender sobre a cultura de diversos países, manter laços de amizade com pessoas que moram a milhares de quilômetros de distância e ainda fazer várias atividades simultaneamente. O mundo virtual acabou se transformando em uma extensão da vida cotidiana do “mundo real”, e nesse processo de apropriação tecnológica, temas como a morte também migraram para dentro do mundo online em busca de ressignificações. Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 127 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO CIBERESPAÇO O computador, como meio mais comum de acesso a esse mundo virtual, segundo Sherry Turkle (1997), é para a sociedade contemporânea mais do que uma ferramenta de comunicação, mas também um meio de transformação dos modos de cognição e interações perceptivas. Da mesma forma, Lemos (1997), ao propor que a interatividade digital é um tipo de relação tecno-social, consistindo no diálogo entre homens e máquinas cujo contato é permitido por ‘interfaces gráficas’ em tempo real, também acredita que essa característica da interatividade digital afeta as relações entre o sujeito e o objeto. Essas transformações são criadas pelo homem e ao mesmo tempo o afetam. No mundo virtual, todos podem assumir as mais diversas identidades e ser aquilo que o mundo real não permite. Os indivíduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou seja, eles possuem uma imagem de si mesmos e de sua situação. Cada ato do indivíduo ou do grupo modifica o mundo virtual e sua imagem no mundo virtual. “(...) Um mundo virtual, mesmo não realista, é, portanto, fundamentalmente organizado de acordo com a modalidade táctil e proprioceptiva” (LEVY, 1999, p. 72). O mundo virtual pode simular fielmente o mundo real ou permitir que o indivíduo construa outra identidade diferente da sua no cotidiano, seja física ou comportamentalmente. Talvez, seja essa “sensação subjetiva propiciada pelos mundos virtuais de estar em interação pessoal e imediata com a situação simulada” (LEVY, 1999, p. 70) que explique a frequência das visitas aos perfis dos indivíduos nas redes sociais, mesmo depois de mortos. Essa impressão de realidade, causada pelo poder de potencializar sensações do ciberespaço, leva a sociedade a interagir com os perfis como se fossem entidades físicas reais. Assim, o pai que perde a filha, continua virtualmente e publicamente mantendo a comunicação na sua página do Facebook. Resta saber quais são suas Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 128 LETICIA MUELLER intenções ao agir assim e se há algum indício de confusão entre o real e o virtual no ciberespaço. No ciberespaço, essa aceleração da troca de informações nos dá o poder de desencarnar, ficar alheios às convenções de espaço e tempo para nos tornarmos personas virtuais capazes de viajar na velocidade da luz. Isso confunde as relações dos seres humanos com o mundo e desordena a história (VIRILIO, 1993). MORTE E SOCIEDADE A morte é um tema que sempre teve grande relevância para a sociedade. Cada cultura, situada em um determinado espaço territorial e em um período de tempo, tem uma forma de lidar com a morte. Analisar o relacionamento do homem com a morte, a expressão do luto e a representação da morte, mais do que compreender a finitude da vida, ajuda a compreender como uma sociedade lida e interpreta a vida. Heidegger (2004) considera que a morte pertence à própria estrutura essencial da existência e plenifica a vida, pois a existência humana é um ser-para-amorte. Ela é intrínseca, nascemos morrendo e morremos a cada dia. “Quando o homem começa a viver, tem idade suficiente para morrer” (MARANHÃO, 1998, p. 69). Sendo a morte um processo natural da vida, aceitá-la contribui para a preservação do indivíduo: A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precauções especiais – como indivíduos e como grupos – para proteger-se contra a ameaça da aniquilação (ELIAS, 2001, p. 10). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 129 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO Ainda assim, existe uma grande negação da mortalidade do corpo físico “(...) porque o conhecimento da morte é externo, produto da consciência que reconhece o real, e não inato, que o homem se surpreende com a morte” (MORIN, 1970, p. 59). O medo da morte está em contextos antigos, como na perspectiva mítica bíblica, segundo Norbet Elias (2001): No paraíso, Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adão, o homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte é uma punição (...) desempenhou papel considerável no medo humano da morte por um longo tempo (ELIAS, 2001, p. 17) Morin (1970) ainda fala que a dor da morte só existe quando a individualidade do morto tiver sido presente e reconhecida e que quanto mais único o indivíduo, maior a dor. A perda da individualidade juntamente com o terror da decomposição do cadáver é o que causa a repulsa à morte. Quanto mais amada for a pessoa perdida, maior a importância conferida aos pertences, aos lugares e aos artefatos produzidos para representá-la. É esse conjunto memorial que ajudará o trabalho de luto, a ocupação do vazio deixado pelo morto e o cultivo de lembranças, como afirma Lepargneur (1986): A experiência dolorosa é reconhecer uma feição conhecida, familiar, na máscara do cadáver. A morte de um próximo, de um parente, suscita reação emotiva violenta, porque a ocorrência não deixa de evocar a morte própria. A morte não morreu, está espreitando suas vítimas, muito perto de nós (LEPARGNEUR, 1986, p. 37). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 130 LETICIA MUELLER MORTE NO OCIDENTE A preocupação pelos mortos faz parte da natureza do homem e consiste em uma apreensão e também revolta contra a própria morte (MORIN, 1970). Mesmo os homens de Neanderthal davam sepulturas para os mortos e já esboçavam sentimentos de resignação perante a finitude da existência. O cadáver humano já suscita emoções que se socializam em práticas fúnebres e a conservação do cadáver implica um prolongamento da vida. O não abandono dos mortos implica a sua sobrevivência. Não existe praticamente qualquer grupo arcaico, por muito primitivo que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos (MORIN, 1970, p. 25). As efígies, a mumificação e os monumentos atestam o desejo de conservar, de alguma maneira, o antepassado. Além de manter o morto vivo na memória dos que ficaram, os ritos fúnebres servem para que ele permaneça como modelo para os seus e para a comunidade onde ele viveu e que inspire atitudes semelhantes a que teve em vida. No início da Idade Média, havia uma familiaridade com a morte. O homem resignava-se sem grande dificuldade à ideia da mortalidade (ARIÉS, 2012). É o que ele denomina morte domada, uma morte domesticada. Para Ariés, a morte era uma cerimônia pública e organizada, marcada pela aceitação da finitude humana, tratada como algo simples e natural, como narra nesse trecho descrevendo os hábitos da sociedade: O quarto do moribundo transformava-se, então, em lugar público, onde se entrava livremente. Ainda no começo do século XIX, os passantes que encontravam na rua o pequeno cortejo do padre levando o viático acompanhavam-no, entrando, em seguida, no quarto do doente. (...) Levavam-se crianças (ARIÉS, 2012, p. 39). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 131 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO Os mortos eram enterrados nos terrenos das igrejas, tanto no interior quanto no seu pátio. Quanto mais próximo do púlpito, maior o poder aquisitivo do defunto, pois pretendia-se ficar o mais perto possível dos santos e mártires para ficarem protegidos do inferno. É importante salientar que embora a igreja e o cemitério estivessem interligados, ambos não deixaram de ser lugares públicos, nos quais ocorriam encontros e reuniões e realizava-se o comércio, danças e jogos, de forma que vivos e mortos conviviam em locais comuns (ARIÉS, 2012). Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, a morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo e estabeleceu a própria individualidade. Um reflexo disso é a individualização das sepulturas, retomando um costume da Roma antiga na qual cada indivíduo possuía um local de sepultura marcado por uma inscrição funerária, que significava o desejo de conservar a identidade do morto, sair do anonimato e perpetuar a memória do defunto. Com a inscrição, reaparece a efígie, sem que esta chegue a ser realmente um retrato. Evoca a beatitude ou o eleito descansando à espera do Paraíso. Na época de São Luís, entretanto, tornar-se-á mais realista, atendo-se a reproduzir os traços do vivente. Finalmente, no século XIV, levará o realismo ao ponto de reproduzir uma máscara modelada pelo rosto do defunto (ARIÉS, 2012, p. 62). O epitáfio, portanto, auxilia na perpetuação da lembrança do morto no seio da sociedade. O que está escrito representa uma mensagem muda dos mortos para os vivos, já que a única maneira pela qual uma pessoa morta vive é na memória dos vivos. Quando a cadeia da recordação é rompida “(...), então o sentido de tudo que seu povo fez durante milênios e de tudo que era significativo para ele também se extingue” (ELIAS, 2001, p. 41). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 132 LETICIA MUELLER No século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar à morte um novo sentido, exaltando-a e dramatizando-a. A ostentação da dor, própria dos funerais, visa provar ao morto a aflição dos vivos, para garantir a benevolência do defunto (MORIN, 1970). Foi nessa época que as carpideiras tornaram-se comuns nos funerais. Mas, ao mesmo tempo, já se ocupa menos de sua própria morte e, assim, a morte romântica, como classifica Ariés, é, antes de tudo, a morte do outro – o outro cuja saudade e lembrança inspiram, a partir do século XIX, o culto dos túmulos e dos cemitérios (ARIÉS, 2012, p. 66). O túmulo transformara-se no signo da presença do defunto para além da morte, gerando um apego dos vivos pelos restos mortais. A celebração da morte estabelece a autoafirmação de um grupo social, indicando sua duração em determinado tempo e espaço. Dessa forma, destaca-se a importância da sepultura como um local da memória individual e coletiva: Chegava-se mesmo ao ponto de conservá-los à vista, em grandes frascos com álcool (...) Mas a opinião comum quis conservar os mortos em casa, enterrando-os em propriedade da família, ou ter a possibilidade de visitá-los, caso estivessem enterrados em um cemitério público (ARIÉS, 2012, p. 77). A partir de então, torna-se comum visitar os túmulos para recordar os mortos, como forma de conferir-lhes uma espécie de mortalidade. Os cultos funerários variavam de acordo com a localidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, eram comuns as mourning pictures, litografias ou bordados que desempenhavam o papel de pequenos túmulos portáteis para decoração. Logo depois de ser velado por vários dias dentro da própria casa em um evento público, o defunto era conduzido ao cemitério, recebendo visitas frequentes que depositariam flores sobre seu túmulo, sinais de que não seria definitivamente esquecido (MARANHÃO, 1998). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 133 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO O cemitério caracteriza-se como um dos principais locais da representação da morte, comportando também os conceitos de espaço, tempo, memória e esquecimento. O intuito é preservar a lembrança do falecido na memória coletiva. Só a coletividade pode manter viva a memória de uma pessoa que morreu. Como o ser humano é um ser social, a morte representa o esquecimento total, o fim absoluto, a menos que se possa sobreviver na memória coletiva de um determinado grupo. Entretanto, a partir do século XX, entre 1930 e 1950, a morte deixa de ser familiar e passa a ser um objeto interdito. Um fator material importante que impulsionou essa transformação foi a transferência do local da morte. Já não se morre em casa, entre familiares, mas sozinho no hospital devido a impotência ou incapacidade da equipe médica que não foi capaz de salvar o doente. “A morte é um fenômeno técnico causado pela parada dos cuidados, ou seja, de maneira mais ou menos declarada, por decisão do médico e da equipe hospitalar” (ARIÉS, 2012, p. 86). Os avanços da medicina e o aumento da expectativa de vida levaram a sociedade a crer que “a morte não é mais um golpe da natureza, é uma traição técnica” (LEPARGNEUR, 1986, p. 62). O velório também deixa de ser realizado na casa da família, na qual antes o corpo ficava exposto e era visitado pelos entes queridos, pois cada vez menos é tolerado a presença do morto em casa, tanto por questões higiênicas quanto por falta de condições psicológicas de vivenciar a situação (ARIÉS, 2012, p. 85). A partir disto, o luto tornou-se banalizado na sociedade atual. Para Maranhão (1998, p. 18), o dilaceramento da separação e a dor da saudade podem, porém não devem ser manifestados publicamente. Assim, o luto se tornou mais um assunto privado, tolerado apenas na intimidade. O tabu da morte transforma o luto, tornando-o comedido, discreto, solitário e envergonhado. A demonstração de dor é evitada e o direito de chorar só existe quando ninguém está vendo ou escutando. É a interdição ou negação da morte com o objetivo de preservar a felicidade: Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 134 LETICIA MUELLER Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade de felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda a causa de tristeza ou de aborrecimento, mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estamos no fundo da depressão (ARIÉS, 2012, p. 89). A mudança moderna na maneira de visualizar a morte está relacionada com a noção de indivíduo. A partir do momento que a sociedade enxerga o papel social individual de cada um e reconhece a noção de indivíduo, a morte ganha um novo significado. É por isso que as visitas aos cemitérios e a veneração aos túmulos perduraram, ao contrário da ideia de cremação, que ainda é muitas vezes repugnada, pois faz com que os restos mortais desapareceram rápido e radicalmente. A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome (ARIÉS, 2012, p. 40). Em relação ao cortejo fúnebre, a situação é semelhante. Tudo acontece muito rápido, “[...] que mal pode ser percebido no intenso urbano. [...] O corpo é enterrado numa cerimônia muito simples e rápida, como se quisesse neutralizar o acontecimento...” (MARANHÃO, 1998, p. 18). Estamos vivendo em uma sociedade onde o principal objetivo é a produção. A partir desta meta, tem-se a ilusão do progresso contínuo, impedindo assim o lugar para a morte na sociedade. É essa mais uma das razões pelas quais o ser humano ocidental expulsou a morte de seu cotidiano, transformando-a em tabu. Isso porque, ainda que a morte seja um fenômeno banalizado, é um mistério, não comparável a nenhum outro fato, único e desmedido. Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 135 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO O certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas na Idade Média do que hoje (...) Em comparação com o presente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar (ELIAS, 2001, p. 21). A tendência é ocultar a finitude irrevogável da existência humana, especialmente das crianças, pelo uso de eufemismos, relacionando a morte com a ideia do sono, viagem, etc. Os pais nessas sociedades são frequentemente mais reticentes em falar com seus filhos sobre a morte e o morrer. As crianças podem crescer sem nunca terem visto um cadáver. Em estágios anteriores de desenvolvimento o espetáculo de cadáveres era muito mais comum. Desde então, o aumento da expectativa de vida tornou a morte mais distante dos jovens e dos vivos em geral (ELIAS, 2001, p. 97). A toilete fúnebre, cujo intuito é deixar o defunto agradavelmente apresentável, tem justamente o objetivo de mascarar as aparências da morte e conservar no corpo os ares familiares e alegres da vida. Fazem esquecer do morto para criar a ilusão do vivo. Maranhão (1998, p. 78) afirma que a sociedade ocidental contemporânea tem estabelecido, por meio de formas culturais, a redução da morte e tudo o que está relacionado à ela no intuito de negar a sua experiência. Morrer é não ser mais percebido. Essa negação da morte é um problema das sociedades individuais, nas quais a dor da perda gerada pela morte é mais intensa do que nas sociedades coletivas, que possuem relações sociais que vão além do próprio indivíduo e encaram a morte de modo natural. “A ideia de ter que morrer só é característica de um estágio comparativamente tardio da individualização e da autoconsciência” (ELIAS, 2001, p. 69). Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 136 LETICIA MUELLER MORTE NO CIBERESPAÇO Há uma espécie de retomada da morte domada, mas com diferenças significativas. Apesar da familiaridade com a morte, Ariés afirma que os antigos temiam a proximidade dos mortos. Segundo ele, os antigos honravam as sepulturas e promoviam cultos funerários para impedir que os defuntos voltassem para perturbar os vivos (ARIÉS, 2012). Entretanto, a consciência sobre a morte foi diminuindo com o passar dos séculos, pois houve um aumento na expectativa de vida dos indivíduos, o que mostra um aumento da segurança e consequentemente um desvio da reflexão sobre a finitude humana. Com a modernidade, o homem vive um momento em que se percebe capaz de realizar uma dominação de tudo aquilo que está ao seu redor, controlando os fenômenos da natureza. Percebe-se que é a partir da modernidade que começa o início da negação da morte, que ganha ênfase na contemporaneidade. A constatação de que a morte é inevitável está encoberta pelo empenho em adiála mais e mais com ajuda da medicina e da previdência, e pela esperança de que isso talvez funcione (ELIAS, 2001, p.56). Partindo da premissa de que os indivíduos possuem cada vez mais dificuldade em lidar com a morte, de acordo com o autor Phillipe Ariés (2012) o assunto é pouco discutido pela sociedade, sendo por vezes até ocultado. Essa sensação de negação da finitude foi explicada por Castells como um reflexo das novas tecnologias: A tendência predominante nas sociedades, como expressão de nossa ambição tecnológica e em concordância com a nossa comemoração do efêmero é apagar a Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 137 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO morte da vida ou torná-la inexpressiva pela sua representação repetida na mídia, sempre como a morte do outro, de forma que a nossa própria seja recebida com a surpresa do inesperado. Separando a morte da vida e criando o sistema tecnológico para fazer que esta crença dure o suficiente, construímos a eternidade durante nossa existência. Assim, tornamo-nos eternos exceto naquele breve momento quando somos rodeados pela luz (CASTELLS, 1999, p. 547). A Internet, por meio das comunidades virtuais, constrói a representação da morte e desenvolve uma espécie de cerimônia em torno de mortos. Mesmo negada, a morte ocupa lugar de destaque no ciberespaço, que reconfigura cerimônias tradicionais. A morte é celebrada nas comunidades virtuais por meio de postagens de conteúdo multimídia, como imagens, textos e vídeos, numa espécie de velório “eterno”. Está se construindo uma nova narrativa em torno da morte. Os usuários do Facebook podem diariamente velar o corpo online do morto e ainda interagir com outros contatos da rede, evitando o sepultamento final e definitivo do corpo. Na cerimônia virtual, cada um pode participar da sua maneira, sem convenções religiosas ou os tabus da morte. Se a morte domada (ARIÉS, 2012) era uma cerimônia pública, ela pode estar sendo retomada na ‘morte digital’, pois além de ser mais tolerada no ciberespaço, permite a manifestação do luto de forma mais espontânea e menos solitária, como uma fuga do tabu costumeiro com os enlutados. Uma das razões para isso estar acontecendo é que as imagens são um meio de afirmação da individualidade diante do perecimento, da decomposição e do esquecimento. Enquanto no offline o corpo sofre os efeitos do tempo e se decompõe a pó, no online o corpo permanece intacto. Nesse sentido, pode-se dizer que as imagens ajudam a amenizar o sentimento de temor do esquecimento e da mortalidade humana. Levando em conta a possibilidade de os perfis no Facebook serem extensões do corpo e da personalidade humana (MCLUHAN, 1995), o ato de manter a comunicação com o perfil de falecidos queridos pode ser uma busca para cuidar do Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 138 LETICIA MUELLER prolongamento da vida, da mesma forma que ainda é costume manter os túmulos sempre bem cuidados. Dessa forma, os amigos e familiares mais íntimos sentem-se, de certa forma, na obrigação de deixar mensagens carinhosas, assim como acontece no mundo offline onde as lápides mantém-se, quase sempre, bem cuidadas. Essa tradição de reavivar a lembrança do morto por meio de visitas no cemitério pode estar ganhando uma releitura, sendo reapropriada no ciberespaço por meio desses perfis que já estão se transformando em verdadeiros cemitérios. Para quem parte, é uma forma de ser lembrado; para quem fica, é uma forma de se lembrar de quem já não está aqui. O Facebook, por exemplo, desde 2009 permite que os perfis sejam transformados em memoriais1 após a morte do usuário. O memorial possibilita que amigos e familiares continuem enviando mensagens e prestando homenagens ao perfil, que se torna invisível para qualquer outro usuário que não seja amigo da pessoa. No memorial, amigos podem compartilhar recordações na timeline do falecido e o conteúdo compartilhado pelo morto permanecerá no Facebook, visível ao público com o qual a mensagem foi compartilhada. Deixar uma memória virtual para ser visitada por pessoas queridas pode ser reconfortante – tanto para quem elabora quanto para quem acessa a página. Porém, falar sobre morte e perdas no meio virtual, assim como no meio presencial, não é fácil para todos. Logo, deve-se pensar nas possibilidades de cada pessoa que entra em contato com algum tipo de memorial online. Alguns aspectos negativos relacionados à presença do falecido em redes sociais são: mensagens ou postagens que venham causar mal-estar para os familiares, pessoas que nunca falavam com o falecido ou com sua família podem vir prestar condolências, a pessoa falecida poderia ter segredos que não gostaria que viessem à tona e que podem aparecer publicamente na internet, entre outros. 1 http://www.facebook.com/help/103897939701143/ Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 139 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO Já os aspectos positivos estariam ligados à possibilidade de deixar mensagens dirigidas ao falecido que podem beneficiar o processo de luto de quem escreve celebrando quem aquela pessoa foi na sua vida, relatando histórias de momentos compartilhados e como isso marcou e transformou quem você era na pessoa que é hoje -; a chance de presenciar o processo de luto das outras pessoas, o que tem uma relação com o senso de comunidade, do sofrimento grupal pela perda e também serve para construir um novo tipo de relação com quem partiu; aproxima quem mora longe do falecido; é útil nas situações onde se optou pela cremação e não há túmulo para ser visitado; é reconfortante para muitas pessoas saber que há um lugar onde se podem encontrar diversas lembranças e informações sobre alguém que já se foi. O perfil é um local com potencialidade para ser eterno, imune aos efeitos do tempo e do apodrecimento, onde o indivíduo finado é capaz de permanecer com a personalidade, ainda que de forma etérea, e que permite a visitação a qualquer momento. Visitando o Facebook de quem morreu, é possível relembrar a identidade, ajudar a reconstruir sua imagem por meio de lembranças e ainda manter uma boa impressão daquele que partiu, ao contrário das imagens associadas aos corpos putrefatos dos cemitérios. Criam-se lembranças para manter os mortos vivos na memória. Manter ativo o perfil do finado poderia ser interpretado como um desejo de conservar a individualidade para além da morte, uma forma de eternizar-se na história, transpondo quaisquer limites espaciais-temporais. No entanto, nos ambientes digitais dessas comunidades, todo enterro deve ser compreendido como temporário, podendo o usuário ‘recorrer ao cadáver’ a qualquer momento. Ainda que esteja ocorrendo a supressão do luto, o ciberespaço parece proporcionar o ambiente adequado para a manifestação de sentimentos. Por meio de postagens diretas no perfil do falecido, o usuário pode expressar suas condolências e ainda ler e interagir com a de outros usuários que façam parte da rede do morto, afastando a imagem da morte à medida que adota um discurso direto, Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 140 LETICIA MUELLER como se o receptor estivesse vivo. Falar não deixa de ser uma forma de negar a morte: Falar é, portanto, uma maneira de afastar a morte e o medo da morte, de negá-la, mesmo quando a fala a celebra. A linguagem é vida, ela deserta o corpo concomitantemente com a vida, ou pouco antes (LEPARGNEUR, 1986, p. 29). O luto, como forma de expressão social da dor dos parentes e próximos do recém-morto, ganha nova reconfiguração no ciberespaço, pois pode ser difícil aceitar a ausência física do falecido quando o corpo online permanece intacto e presente em meio aos outros. As formas e prazos de luto, em geral estritamente regulamentados pelo costume, visam à acomodação do grupo do defunto à nova situação que vem se estruturar sem ele. É um tempo de transição para “matar o morto” como parceiro de diálogo entre vivos (LEPARGNEUR, 1986, p. 37). CONSIDERAÇÕES FINAIS Parece haver uma nova visão de morte eclodindo na sociedade atual, o que reflete uma nova cultura em que os perfis nas redes sociais podem ser considerados extensões do homem. Essa continuidade póstuma de comunicação e postagens no perfil dos usuários falecidos seria uma forma de conservar ativa e “bem cuidada” a imagem do morto no virtual, assim como ocorre nas lápides e túmulos no universo offline. Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 141 MEMORIAL FACEBOOK. MEU EPITÁFIO É MINHA PÁGINA. AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE NO CIBERESPAÇO O ciberespaço parece ser a melhor forma do homem se eternizar no tempo e na história, quebrando barreiras espaciais e temporais, inclusive transpondo os limites da vida terrena. É nesse sentido que a comunidade torna-se um espaço de relação entre os vivos e os mortos. Uma espécie de “Além digital” onde os usuários mantém os finados ativos na memória dos vivos por meios de textos, vídeos e imagens. A alimentação dos perfis de falecidos é uma espécie de atualização da morte domada, de que fala Philippe Ariés (2012), como cerimônia pública construída, diariamente, pelos usuários. Resta-nos estimar os contornos da nova experiência subjetiva a partir de diferenças com o que já existiu por meio do estudo das representações da morte na cibercultura e das mudanças espaciais-temporais da rede. Ou seja, pensar como as novas tecnologias podem estar transformando nossa percepção e nossas estratégias afetivas e comunicacionais. Sendo o computador uma ferramenta que potencializa processos-cognitivos, pode-se concluir que há uma recusa em relação a morte e uma dificuldade de aceitação. Para saber se o motivo do estreitamento comunicacional entre vivos e mortos seria uma tentativa de revelar a angústia para outros conectados ou uma real necessidade de se comunicar, deveria ser feito um estudo mais aprofundado. Tendo em vista a importância do assunto, ainda recente, mas de suma relevância para compreensão de toda uma cultura, pretende-se prosseguir com a pesquisa, analisando outros pontos de vista e outros perfis das mais diversas faixas etárias. Revista Uninter de Comunicação, vol 2, n. 2, 2014 142 LETICIA MUELLER REFERÊNCIAS ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 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