Olímpio Marinho

Transcrição

Olímpio Marinho
Promessas vazias
Olímpio Marinho
Promessas vazias
1ª Edição
POD
KBR
Petrópolis
2014
Edição de texto Noga Sklar
Editoração KBR
Capa KBR s/ arquivo Google
Copyright © 2014 Olímpio Marinho
Todos os direitos reservados ao autor.
ISBN 978-85-8180-252-7
KBR Editora Digital Ltda.
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55|24|2222.3491
FIC027000 - Romance
Olímpio Marinho é natural de Pará de Minas (MG). Nascido em 1938, é o caçula de uma família de 16 filhos. Formou-se
em Contabilidade e durante 27 anos trabalhou como funcionário
do Banco do Brasil, tendo se aposentado como Gerente de Comércio Exterior. Dedicou a maior parte de sua vida à leitura e,
além de Promessas vazias, seu primeiro romance publicado pela
KBR, publicou também Primavera sem Flores. Seus autores prediletos são Machado de Assis, Humberto de Campos, Gabriel García Márquez, Graciliano Ramos, José Saramago, Dostoievski, Eça
de Queiroz, Tolstói, Guimarães Rosa, Flaubert, Dante Alighieri e
Vladimir Nabokov.
Email do autor: [email protected]
Dizem que sou pessimista. Não é verdade!
O mundo é que é péssimo.
José Saramago
Aos meus filhos, Suzana, Suzanete, Eduardo, Maurício,
Renata, Fábio e Júlio, expresso todo o meu amor. Aos meus
netos Leonardo, Graziela (em memória), Raquel, Bárbara,
Vítor, Miguel e João Vítor, com muito carinho.
Den Himmel überlassen wir den Engeln und den Spatzen.1
Heinrich Heine, “Deutschland”
1 Deixemos o céu aos anjos e aos pardais.
Sumário
Nota do autor • 15
1. • 21
2. • 31
3. • 39
4. • 47
5. • 63
6. • 69
7. • 73
8. • 79
9. • 87
10. • 91
11. • 99
12. • 103
13. • 111
14. • 115
15. • 127
16. • 131
17. • 135
18. • 143
19. • 149
20. • 153
21. • 157
22. • 163
23. • 167
24. • 171
25. • 173
26. • 187
27. • 191
28. • 193
29. • 205
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Nota do autor
Nas linhas do poema “Aubade”, do poeta inglês Philip Larkin,
está nítida a certeza de uma verdade inquestionável, o momento
em que nada veremos ou ouviremos, em que toda percepção se
extinguirá, aniquilando nossos sofrimentos e angústias e transformando em nada nossos sonhos e esperanças. “Não estar aqui, não
estar em lugar nenhum” — a morte é, pois, o fim, e não o começo de nada. Ainda assim, as três preocupações do homem, que
se confundem com suas necessidades primárias, são: a natureza, a
sociedade e a religião.
A natureza é o conjunto das leis físicas, botânicas, matemáticas, astronômicas, zoológicas, biológicas, genéticas, todas
as outras já conhecidas e outras ainda não descobertas. Todos os
acontecimentos estão subordinados a estas leis, e nada, absolutamente nada, ocorre à sua revelia. Quando um fenômeno sobrevém
sem explicação plausível, certamente ele está amparado em alguma
lei ainda desconhecida. Milagres, portanto, só existem em mentes
fantasiosas!
Nos primórdios da civilização, o homem se juntou em tribos, iniciando, então, as observações dos fenômenos que ocorriam
naturalmente. Milhares de séculos se passaram até que começaram
a construir uma sociedade organizada. Porém, o desconhecimento
daquelas leis e a natural curiosidade sobre a origem da vida ensejaram a busca por algo extraordinário, que contemplasse suas angústias. E daí nasceram as diversas crenças.
No princípio os homens adoravam o sol, a lua ou fenôme| 17 |
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nos como o raio e os trovões; depois idolatraram animais, até que
surgiu a ideia de um ser onisciente e onipresente, criador de todas as
coisas — ideia singela, porém convincente. No início eram vários
os deuses, só bem mais tarde a ideia de um Deus único avultou-se,
permanecendo até o presente.
E o tempo, implacável, seguia. A teoria da evolução natural
das espécies, defendida por Charles Darwin, trouxe grande alento
para a humanidade, pois esclarecia de maneira lógica o surgimento de todas as espécies e o desenvolvimento de cada uma delas,
com as naturais transformações ocorridas ao longo de bilhões de
anos. Porém, já estava arraigada na consciência das pessoas a ideia
de um ser superior e criador.
Impotentes para contestar a Teoria da Evolução as religiões
trataram de criar outra, esta absolutamente desprovida de lógica
e amparada apenas na fé: o Criacionismo, atualmente chamado
pomposamente de “Projeto Inteligente”. O homem fora feito de
barro pelo suposto ser superior e ganhara vida com um sopro. Nada
se disse sobre a criação dos outros seres e nem a razão das diversas raças, e de tão despropositada e absurda tal teoria sequer é
analisada nos meios científicos, restando-lhe contentar-se com a
hipocrisia religiosa.
O cisma entre o pensamento científico e a fé colocou o homem moderno diante de uma hesitação intransponível: as igrejas
institucionalizadas deixaram de lado a crença pregada por Jesus,
assomando no lugar dela o dogmatismo e o fanatismo, duas pragas
que submetem os homens ao autoritarismo das elites espirituais.
Utilizando o medo e a ameaça, as religiões exploram os
mais desvalidos, e constroem, da noite para o dia, verdadeiros
impérios, com templos luxuosos e monumentais redes de comunicação. Transformaram-se, através do tempo, em organizações
multinacionais, com objetivos comerciais para lá de evidentes: enriquecem as elites, enquanto aos fiéis é oferecida apenas a esperança de vida eterna, com base em fantasiosas citações das chamadas
“Sagradas Escrituras”. Os objetivos políticos e de amealhar fortuna estão evidentes em todas elas. São incontáveis os autoafirmados
“bispos”, “pastores”, “apóstolos”, que se apresentam aos crédulos
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fiéis com a plataforma única de “pregar a palavra” — mas que
palavra? —, como se tal propósito tivesse a mínima importância
para quem vive miseravelmente, à margem do progresso. É a mais
descarada utilização da crença alheia para enriquecimento ilícito.
Jesus, cuja importância histórica não se discute, foi transformado em garoto-propaganda, e o nome dele é utilizado sem
nenhum pudor na consecução de objetivos eleitoreiros e financeiros. Novos milionários surgem a cada dia, afrontando os ensinamentos dos evangelistas que as religiões pregam com tanta ênfase,
como se vê a seguir:
Diz Mateus:1
E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque
gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para
serem vistos dos homens.
Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.
Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará. E, orando, não useis de vãs repetições,
como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar
serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus,
o vosso pai, sabe o de que tendes necessidades, antes que lho
peçais. (Mateus, 6: 5-8)
E eis que alguém, aproximando-se lhe perguntou: Mestre,
que farei eu de bom para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe
Jesus: Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe
um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.
E ele lhe perguntou: Quais? Respondeu Jesus: Não matarás, não
adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra o
teu pai e a tua mãe e amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; Que me falta
ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus
bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e
1 Trechos transcritos do livro O Novo Testamento, editado pela Sociedade Bíblica do Brasil. Eventuais erros de português não são de responsabilidade do autor.
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segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades. (Mateus, 19:
16-22)
O que se vê hoje são palanques, reais e virtuais, que mais
parecem postos de arrecadação. As luxuosas igrejas, construídas
com o dinheiro matreiramente tomado de fiéis incautos, são o retrato fiel da mais refinada malandragem religiosa. São acirradas as
disputas das emissoras de rádio e de televisão, com seus negócios
multimilionários, na busca das obladagens dos ingênuos crédulos
tudo em flagrante desrespeito ao que ensinou Mateus e que as religiões não se cansam de enaltecer — terás um tesouro no céu, etc.
Ademais, sabe-se hoje, com absoluta segurança, que os
“dez mandamentos” nada mais são que o resumo de leis que vigoravam entre povos do Oriente Próximo e da Índia, muito antes do
nascimento de Moisés. A famosa lei do rei babilônico Hamurabi
(1810 - 1750 a.C.), inspirada no Rig Veda dos hindus, já os continha. Portanto, não é verdade que Moisés tenha recebido de Deus
as tábuas com os mandamentos. E Jesus, ao fazer as citações que
lhe são atribuídas pelos evangelistas, apenas repetia o que já era
conhecido há mais de cinco mil anos.
Efetivamente, o homem nasceu para viver em sociedade,
e em harmonia com a natureza. No entanto, graças à explosão
demográfica — incentivada pelas religiões, que condenam todo
e qualquer meio de controle de natalidade —, a natureza se mostra incapaz de suprir as necessidades desse enorme contingente
de pessoas, daí surgem problemas como o aquecimento global, o
degelo das calotas polares e o assustador desequilíbrio das estações
climáticas. Espécimes da flora e da fauna são extintas, com imprevisíveis consequências ecológicas.
De outro lado, as disputas religiosas e as visões discordantes sobre ecologia transformaram o homem moderno em um verdadeiro robô, prisioneiro de uma ambição desmedida, em que a
ética perdeu importância na disputa pelo progresso profissional.
Premido, de um lado, pelas fantasias religiosas, e, de outro, pela
necessidade de produzir sempre mais, perdeu o respeito pela na| 20 |
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tureza e vive sobressaltado, agarrado à ilusão de uma vida após a
morte repleta de ventura.
Com Promessas vazias, pretendi apenas mostrar como o
dogmatismo — que no Kantismo é uma crença equivocada na
capacidade do espírito humano para a elaboração de sistemas de
pensamento que dispensam o movimento reflexivo da crítica, isto
é, o debruçar-se da razão sobre si mesma na busca de seus limites
e ilusões — e o fanatismo religioso, ou interpretação literal das
“sagradas escrituras”, têm causado sofrimento ao ser humano através dos tempos, negando-lhe o essencial para uma vida decente e
dando-lhe apenas esperanças vãs.
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1.
A tarde estava quente e abafada. Os ventos sopravam fortemente,
prenunciando que choveria ainda naquele dia: finalmente, o início
da temporada das águas. Já era tempo. Os jardins ressequidos clamavam por um cântaro de água, e os roseirais jaziam sedentos sob
o sol escaldante de verão. A visão da paisagem era desanimadora:
campos e vales, outrora verdejantes, ostentavam impiedosa secura;
córregos, antes ribeirões, restavam tristemente transformados em
inexpressivos fios de água. Que melancólico espetáculo! Desde o
princípio dos tempos a chuva tem hora certa para chegar. O homem, no entanto, nutre a esperança de que venha um pouco antes,
como se o desejo dele pudesse alterar a lógica da natureza.
A rua estava deserta. Pássaros voavam em bando à procura
dos ninhos, os machos à frente e as fêmeas atrás, instintivamente
preocupadas com os filhotes que as aguardavam com ansiedade e
medo. A encantadora ingenuidade dos pássaros guarda semelhança
com a fé e a esperança, duas verdades teologais que nada têm de
prático ou consistente. Na escolástica, a fé é apenas crença religiosa, sem fundamento em argumentos racionais; a esperança é o sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja.
Os pássaros, não tendo fé nem esperança, valem-se do instinto que
lhes garante a sobrevivência. Os homens, ao contrário, apegam-se
a essas crenças unicamente em razão do medo, idealizando vida
futura e eterna após a morte como se tais desejos fossem possíveis.
Apressado, Dr. Elói calçou os sapatos de pelica, vestiu uma
capa de chuva, colocou o chapéu de abas curtas. Gritou qualquer
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coisa para dona Angelina, a empregada, e abriu a porta da sala.
Olhou o relógio com preocupação: eram quatro horas da tarde. Se
não acelerasse o passo, a chuva o apanharia pelo caminho — pensou.
Bateu a porta e saiu. Levava um livro ensebado de tanto
manuseio, pois só na leitura encontrava prazer, e, ironicamente,
dizia que era o que lhe restava na vida, que para ele tinha o sentido
de uma purgação. Os atropelos dos últimos tempos o inquietavam
de tal modo que ele suportava com resignação o refúgio na casa
da tia. Evidente que se alojar ali, longe das filhas e dos amigos de
aventuras, causava-lhe grande desgosto. Mas ele sabia que a vida
sempre nos reserva surpresas desagradáveis, e só de quando em
quando nos dá algum prazer miúdo, inexpressivo, se comparado
com as tragédias que nos acompanham todo o tempo.
Sabia, ademais, que o ser humano tem um estranho prazer
em ser enganado e, por isso, faz um enorme esforço para convencer a si próprio de que as migalhas de coisas prazerosas da vida
compensam as agruras da existência, daí a ingenuidade das crenças
em coisas irracionais como vida eterna, ressurreição da carne, diabos, inferno, paraíso, reencarnação. Inconscientemente, porém,
apega-se a uma fé desprovida de qualquer lógica e bom senso.
Certamente, ninguém acredita nesses disparates, ilusões prazerosas, uma forma de apaziguar o conflito entre o pavor do nada e o
desejo de coisas irracionais.
Se dissermos a uma pessoa de aspecto desagradável que é
bela, ela estampará um sorriso de satisfação, como se nunca houvesse constatado diante do espelho, esse impiedoso artefato que
jamais mente, que era uma descarada mentira. Se, ao contrário, a
verdade for dita, a reação será grosseira — o segredo de aborrecer
é dizer tudo, sem hipocrisia ou bajulação. Em resumo, incapaz de
enfrentar os próprios medos, o ser humano ocupa a maior parte da
existência cultivando a mentira.
Admitindo-se, por exemplo, a absurda hipótese de ressurreição da carne no dia do juízo final, surge uma incerteza cruel:
como ressuscitariam os corpos? Existem apenas duas possibilidades: ou se levantariam das tumbas no estado em que haviam deixado a vida ou seriam ressuscitados com uma idade única. No
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primeiro caso, o caos se instalaria: bebês com horas ou dias de vida
necessitariam de cuidados por longo tempo, assim como os idosos
e deficientes de toda ordem. Não havendo mais o componente
temporal, como o problema se resolveria? Se, porém, todos ressuscitassem com a mesma idade, estaríamos diante da mais cruel
injustiça do suposto criador: aqueles que viveram apenas algumas
horas ou dias retornariam mais velhos, sem terem vivido os anos
acrescidos, ao contrário dos que muito viveram e que ganhariam,
gratuitamente, o rejuvenescimento, ainda que não mais existisse
o tempo. Vê-se que a confusão se espalharia, e o desejo de grande
contingente seria retornar para o sossego da sepultura. Fé, apenas,
não basta para aceitar sonhos dessa magnitude.
Enquanto caminhava apressadamente, Elói remoía as
tristes lembranças de um passado recente. As imagens das filhas
enchiam-no de dolorosa saudade. O que estariam fazendo, na
imensidão da cidade grande e na presença da mãe dominadora e
implacável? — inquiria a si próprio. Não encontrando resposta,
conformava-se em buscar naquela cidade pacata e agradável forças
para soerguer-se e readquirir o prazer de viver, objetivo sempre
perseguido pelo homem e nunca alcançado, já que o ser humano
confunde felicidade com resignação. A felicidade é um sonho impossível, e resignação é a hipocrisia transformada em humildade.
Era visível seu esmorecimento. Tudo conspirava contra ele,
nada a seu favor. Sentia-se solitário e abandonado. Porém, deduzia: exauridas as forças, a vontade não se esgota — era o consolo
que lhe restava! Apoiou a mão nos olhos, passando-a de uma à outra sobrancelha, seguro de que esse gesto desvaneceria o passado,
como se as marcas da vida fossem simples rabiscos que se apagassem. Olhou o céu. Nesse breve lapso de tempo, as nuvens haviam
encoberto o sol, que escurecera como se houvesse um eclipse. O
vento forte, como se quisesse tirar-lhe o chapéu e a capa, investia
furiosamente contra seu corpo, que resistia.
Impetuoso como guerreiro, o vento arrancava as folhas dos
canteiros. Nem as sebes dos muros escapavam de sua fúria vertiginosa. Estabanadas, as pessoas corriam de um lado a outro à
procura de abrigo, enquanto as nuvens, acastelando-se com enor| 25 |
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me rapidez, obscureciam ainda mais o céu. As dianteiras, baixas
e negras como fuligem, corriam velozmente. O aguaceiro cairia
de um momento para outro, e podia-se prever a destruição que
ele traria. Apegada ao instinto de sobrevivência, uma cadela passou correndo com os filhotes, fugindo desesperada. Acabrunhado,
Elói se angustiava com o turbilhão que se aproximava.
Um fato insólito, no entanto, chamou sua atenção: sentados num tosco banco de madeira, indiferentes à preocupação
geral, um jovem casal de namorados trocava juras de amor. Curioso, Elói se achegou, alertando o casal do toró prestes a desabar.
Os dois namorados se entreolharam e apenas sorriram, como se
a felicidade que os dominava fosse maior que qualquer temporal.
Depois de poucos minutos de conversa, Elói já os conhecia. Estavam de passagem pela cidade, fazendo planos para o casamento
já marcado. E ousavam nos projetos, como fazem todos os casais
apaixonados: falavam de felicidade eterna, de viagens e de filhos.
Sobre filhos, havia, entre eles, uma pequena discordância:
o rapaz dizia que se tivessem uma filha deveria chamar-se Cristina,
nome que se lhe afigurava de uma beleza ímpar; a moça, sorrindo, afirmava que se chamaria Teresa, talvez em discreta referência
a Santa Terezinha, de quem era devota — uma discussão amena, coisa de jovens. Elói, então, sutilmente, propôs que a filha se
chamasse Teresa Cristina, nome que contentaria aos dois. Estava
resolvido o dilema! O casal sorriu, concordando. Elói despediu-se,
continuando a caminhada. E os namorados, felizes com a amabilidade daquele desconhecido, saíram correndo à procura de abrigo.
Adiante, Elói cruzou com um homem idoso que o saudou
alegremente, ensaiando um sorriso que mostrava a boca murcha,
sem um único dente. Era o único que não demonstrava medo,
talvez em razão da idade, visto que a velhice é, com certeza, a
causa maior de nossos receios; o que para todos era uma tempestade medonha, para aquele velho desdentado não passava de um
chuvisco, já enfrentara na vida tormentas de toda ordem. Seguiu
calmamente, indiferente à aflição dos outros, exibindo o ingênuo
sorriso. Logo adiante, porém, parou e ficou apreciando as pernas
bem torneadas de uma jovem que andava apressadamente — com
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o passar do tempo, o homem perde as forças, mas não perde o
desejo, e este talvez seja o grande mistério da vida.
Elói andava com pressa, segurando o chapéu e o livro com
uma das mãos e com a outra o guarda-chuva. Olhava de quando
em quando o céu da tarde que se tornava noite. Como se sabe,
a noite guarda todos os segredos da vida e da morte, e quando o
dia se veste assustadoramente de noite, como naquele momento, os temores se ampliam, e o homem se reconhece incompleto.
Na escuridão, se amesquinha. A imaginação toma contornos de
realidade. Daí a razão de os fantasmas e demônios atacarem somente à noite. Era preciso agilizar o passo — pensou, voltando-se
para olhar o velho que andava devagar. Mas faltou-lhe tempo. Os
grossos pingos da chuva se precipitaram com tal intensidade que
ensoparam suas pernas e tudo mais abaixo dos joelhos. O vento
forte arrancou-lhe o guarda-chuva e ele correu para chegou ao bar,
indiferente aos olhares furtivos dos poucos fregueses, os desocupados de sempre que não saíam de lá.
Caminhou para o fundo do pequeno salão, tirou a capa
que de nada lhe valera e as galochas ensopadas. Olhou com orgulho os sapatos novos e secos e se jogou na cadeira de palhinha,
colocando sobre a mesa o livro que trazia com zelo especial. Deu
um sinal para o proprietário e, sorrindo, fez o pedido. O dono do
bar já conhecia os hábitos caros e refinados do doutor, mantendo
em estoque as melhores marcas de seu uísque preferido. E como
jamais reclamava do preço, considerava-o seu melhor freguês.
Vani — um pervertido quando moço que, na meia-idade,
buscava desesperadamente reconciliar-se com os princípios religiosos — aproximou-se com aspecto doentio, curvado como se
carregasse um fardo. Respirava com extrema dificuldade em razão
da asma, que não lhe dava trégua. Limpou com um pano branco
os respingos da mesa, oferecendo ao doutor uma pequena toalha
para secar o rosto e os braços.
Enquanto Elói se enxugava, o dono do bar olhava desconfiado para aquele homem de estatura mediana, sempre elegantemente vestido e com os cabelos besuntados de brilhantina. Em
seguida, colocou sobre a mesa a garrafa de uísque, um copo, uma
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pequena vasilha de gelo e um pratinho com queijo do reino cortado em pequenos pedaços. Olhou interrogativamente o freguês,
comentou sobre o aguaceiro e, não obtendo mais que um sorriso
educado e desinteressado, afastou-se intrigado com a sisudez de
Elói que, sem lhe dirigir sequer um olhar, já abria o livro velho,
quase imprestável.
Vani já vira de tudo na vida. Trabalhando no bar desde
menino, conhecia todas as manias das pessoas, especialmente dos
assíduas frequentadores de botecos. Porém, jamais vira alguém
tão carrancudo. Elói nunca falava, parecia que todo o interesse
dele estava naquele livro de título tão longo e curioso: O único
argumento possível para uma demonstração da existência de Deus,
de Immanuel Kant. Justificando os esforços para redimir-se dos
pecados da mocidade, Vani pensava: Que bobagem! A existência de
Deus está demonstrada em cada detalhe da vida, como aquela chuva
que caía sem que ninguém pudesse prever, nem mesmo os doutores que
cuidam dessas questões, os tais meteorologistas. Mas, cada louco com
a própria mania, resignava-se o dono do Tobias’ Bar, retirando-se
para atender os outros clientes.
A chuva caía forte. Formou enorme enxurrada, que arrastava tudo que havia pela frente. Transformada em caudaloso rio,
a Rua Direita deixava perplexos os moradores, que há tempos não
viam uma tempestade como aquela. De repente, do nada, uma
senhora entrou no bar completamente molhada, arrastando a filha
que, parecendo não se importar com todo aquele incômodo, ria
da aflição da mãe.
Ao olhar a moça, Elói se lembrou da filha mais velha que
deixara há mais de três anos. Como a filha, a moça certamente
ainda não passara dos vinte anos, vivia aquela época de sonhos e
encantamentos. Ficou pensativo, imaginando como seriam os sonhos da filha, que se agarrara a ele no dia em que partira pedindo-lhe que não a deixasse. Não teria ele transformado seus sonhos
em pesadelos? Dúvida cruel, que ele procurava afogar em doses
de uísque. Quando esses pensamentos o atormentavam, sentia-se impotente. Porém, refletia, a impotência é uma força, e o homem sempre se socorre do próprio medo, pede ajuda ao pavor e
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a ansiedade o aconselha a ouvir. Supunha escutar vozes, que lhe
diziam: “Não esmoreças; vai, levanta, caminha que a solução virá!”
Deixando sobre a mesa o livro que tanto interesse lhe despertava,
não tirava os olhos da moça, buscando alguma semelhança física
com a filha que não via há tempos.
A chuva diminuíra de intensidade. Os fregueses do bar, debruçados nas balaustradas das janelas, contemplavam o rio em que
a rua se transformara. Algumas pessoas caminhavam apressadas,
como se compromissos inadiáveis não lhes permitissem aguardar
o final da tempestade. Um gato, completamente molhado e com
o rabo elevado, passou miando e saltou sobre um muro, desaparecendo enlouquecido.
Elói levantou-se calmamente e veio juntar-se aos outros,
ficando longo tempo contemplando ao esplêndido espetáculo da
natureza. Nenhum pássaro voava, como se soubessem dos riscos
de uma tal aventura. Pombos gorjeavam nos beirais das casas, festejando o acasalamento. O sino da matriz tocou. Olhou o relógio
de ouro, único presente que o sogro não lhe tomara: eram cinco
da tarde. A escuridão da tempestade dava a impressão de que já
era noite, mas, ao longe, as nuvens raleavam, uma pontinha de
sol surgia como se fosse um tênue candeeiro de luz, clareando o
ambiente.
Zombando dos homens, a natureza mostrava sua força.
Os ventos cessaram, a chuva se transformou em garoa e, com a
mesma velocidade com que haviam chegado, as nuvens foram se
dispersando e o resto de luz daquela tarde-noite surgiu no horizonte, deixando à contemplação o raro espetáculo de sol com
chuva. A imaginação desaparecia, para dar lugar à realidade. As
pessoas postadas nas portas das casas comentavam os detalhes da
chuva passageira. O movimento aos poucos se normalizava. Já sabiam que na periferia da cidade os estragos haviam sido grandes,
os mesmos miseráveis de sempre estavam, de novo, desalojados
de seus casebres. Diziam, no entanto, que era a vontade de Deus,
todos compreendem e até louvam essas desgraças — são manifestações impiedosas de fé e esperança, filhas diletas do medo e da
ignorância.
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Ao voltar para a mesa, os miúdos olhos do doutor percorreram todo o salão. A moça, porém, havia desaparecido. Perdido
em meditações, instintivamente percebeu que eram inócuos os esforços para se livrar do tormento que já durava tanto tempo. Sua
profunda tristeza se arrastava por dias intermináveis, obrigando-o
a um esforço sobre-humano para que nem a tia nem a empregada
percebessem a inquietação que o dominava. Balançando a cabeça,
na vã tentativa de livrar-se dos pensamentos, chamou Vani em voz
alta, assustando os demais fregueses, já acostumados à sua sisudez.
Queria notícias das mulheres que, por um instante, haviam lhe despertado tanto interesse. O proprietário do bar, sempre
muito solícito, e sem disfarçar sua ansiedade por obter informações a respeito do doutor, não se fez de rogado, foi logo se sentando. Depois de se livrar do avental puído, com respingos de cerveja
e vinho, Vani ajeitou a camisa e, atribuindo à informação uma
importância que não tinha, foi logo dizendo que a senhora ficara
viúva há dois anos, e, desde então, vivia em companhia do irmão
Matias, próspero fazendeiro lá da Cova D’Anta. O pobre homem,
no momento, estava numa enrascada daquelas, disse Vani. Uma
sirigaita lá do Zambeque, sabendo da excelente situação financeira
da família, procurara um advogado recém-formado e inexperiente
dizendo que o pirralho que a acompanhava era filho de Matias,
um sujeito pacato e que vivia como um eremita.
E Vani continuou com a dissertação: Matias negava, não
dava nenhuma importância ao caso, enquanto o advogado da mulher tomava as providências normais, alardeando por toda cidade
que não havia nenhuma dúvida de que o pai do menino era mesmo o fazendeiro. Diante da real possibilidade de levar vantagem
financeira, a moça, de nome Mercês, queria o reconhecimento do
filho, e por isso abrira processo. Fiel ao característico estilo bonachão, o fazendeiro mais uma vez negou a paternidade e, dizendo
tratar-se de um caso que ele mesmo poderia provar ao juiz, optou
por não contratar advogado. Dizia, para contrariedade dos causídicos da cidade, que ele próprio faria a defesa, asseverando tratar-se de caso simples, que, tão logo fosse julgado, o livraria de todo
aquele transtorno. Mas no íntimo um temor o angustiava: como
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reagiriam as pessoas que o cercavam quando revelasse o segredo
que guardava há anos, e do qual ninguém sequer desconfiava? E
ponderava: não havia melhor maneira de encerrar um caso assim,
surgido do nada, e que era o resultado de um mal que assola a
humanidade desde tempos imemoriais: a ganância, infortúnio que
parece dispor de asas, tão rapidamente aparece em situações como
essa. Por isso, se decidira: nada de despesas inúteis para encobrir
uma dolorosa verdade que, cedo ou tarde, seria do conhecimento
de todos.
Empolgado com o interesse de Elói, não obstante a dificuldade para respirar que aumentava à medida que falava, Vani
continuou sua exposição, depois de orientar Abelardo a respeito
de um sujeito bêbado que se recusava a pagar a conta. A senhora
se chamava Matilde e tinha duas outras filhas pequenas. Ele, Vani,
conhecia bem a família, pois fora vizinho dela até a morte do marido, um sujeito robusto e saudável que morrera de repente, como,
aliás, morrem todas as pessoas robustas e saudáveis!
Depois de relatar minuciosamente tudo o que sabia sobre
a família da moça, Vani ficou esperando que o doutor dissesse
alguma coisa a respeito dele próprio. Elói, tomando de um trago
a segunda dose de uísque, limpou com as costas da mão o bigode
fino e bem aparado e perguntou:
— E a moça?
Vani, remexendo-se na cadeira com impaciência, disse que
era a filha mais velha de dona Matilde; vivia na fazenda e muito
raramente aparecia na cidade. Namorava um rapaz lá de Tabatinga
e isso era tudo o que sabia da família, disse, encerrando o depoimento. Depois de prestar as informações complementares, ficou
na expectativa de que Elói saciasse a sua curiosidade e dos demais
fregueses. Percebendo o interesse, depois de abastecer-se de nova e
generosa dose da bebida predileta Elói disse apenas que iria, já no
dia seguinte, até a fazenda Capão Amarelo conhecer o Sr. Matias.
Recostou-se na cadeira e recomeçou a leitura do livro ensebado, e demonstrando uma arrogância intolerável, leu, em voz
alta, um trecho do livro: “... do que ficou dito até aqui, vê-se facilmente que o conceito de um ente absolutamente necessário é um
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Olímpio Marinho
conceito da razão pura, isto é, uma simples ideia cuja realidade
objetiva nem de longe está ainda provada pelo fato de a razão
necessitar dela”.
Sem nada entender, Vani saiu rapidamente, enquanto os
outros retomaram a conversa interrompida em que se ocupavam
da vida alheia.
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