Olímpio Marinho
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Olímpio Marinho
Promessas vazias Olímpio Marinho Promessas vazias 1ª Edição POD KBR Petrópolis 2014 Edição de texto Noga Sklar Editoração KBR Capa KBR s/ arquivo Google Copyright © 2014 Olímpio Marinho Todos os direitos reservados ao autor. ISBN 978-85-8180-252-7 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br www.facebook.com/kbrdigital [email protected] 55|24|2222.3491 FIC027000 - Romance Olímpio Marinho é natural de Pará de Minas (MG). Nascido em 1938, é o caçula de uma família de 16 filhos. Formou-se em Contabilidade e durante 27 anos trabalhou como funcionário do Banco do Brasil, tendo se aposentado como Gerente de Comércio Exterior. Dedicou a maior parte de sua vida à leitura e, além de Promessas vazias, seu primeiro romance publicado pela KBR, publicou também Primavera sem Flores. Seus autores prediletos são Machado de Assis, Humberto de Campos, Gabriel García Márquez, Graciliano Ramos, José Saramago, Dostoievski, Eça de Queiroz, Tolstói, Guimarães Rosa, Flaubert, Dante Alighieri e Vladimir Nabokov. Email do autor: [email protected] Dizem que sou pessimista. Não é verdade! O mundo é que é péssimo. José Saramago Aos meus filhos, Suzana, Suzanete, Eduardo, Maurício, Renata, Fábio e Júlio, expresso todo o meu amor. Aos meus netos Leonardo, Graziela (em memória), Raquel, Bárbara, Vítor, Miguel e João Vítor, com muito carinho. Den Himmel überlassen wir den Engeln und den Spatzen.1 Heinrich Heine, “Deutschland” 1 Deixemos o céu aos anjos e aos pardais. Sumário Nota do autor • 15 1. • 21 2. • 31 3. • 39 4. • 47 5. • 63 6. • 69 7. • 73 8. • 79 9. • 87 10. • 91 11. • 99 12. • 103 13. • 111 14. • 115 15. • 127 16. • 131 17. • 135 18. • 143 19. • 149 20. • 153 21. • 157 22. • 163 23. • 167 24. • 171 25. • 173 26. • 187 27. • 191 28. • 193 29. • 205 | 15 | Nota do autor Nas linhas do poema “Aubade”, do poeta inglês Philip Larkin, está nítida a certeza de uma verdade inquestionável, o momento em que nada veremos ou ouviremos, em que toda percepção se extinguirá, aniquilando nossos sofrimentos e angústias e transformando em nada nossos sonhos e esperanças. “Não estar aqui, não estar em lugar nenhum” — a morte é, pois, o fim, e não o começo de nada. Ainda assim, as três preocupações do homem, que se confundem com suas necessidades primárias, são: a natureza, a sociedade e a religião. A natureza é o conjunto das leis físicas, botânicas, matemáticas, astronômicas, zoológicas, biológicas, genéticas, todas as outras já conhecidas e outras ainda não descobertas. Todos os acontecimentos estão subordinados a estas leis, e nada, absolutamente nada, ocorre à sua revelia. Quando um fenômeno sobrevém sem explicação plausível, certamente ele está amparado em alguma lei ainda desconhecida. Milagres, portanto, só existem em mentes fantasiosas! Nos primórdios da civilização, o homem se juntou em tribos, iniciando, então, as observações dos fenômenos que ocorriam naturalmente. Milhares de séculos se passaram até que começaram a construir uma sociedade organizada. Porém, o desconhecimento daquelas leis e a natural curiosidade sobre a origem da vida ensejaram a busca por algo extraordinário, que contemplasse suas angústias. E daí nasceram as diversas crenças. No princípio os homens adoravam o sol, a lua ou fenôme| 17 | Olímpio Marinho nos como o raio e os trovões; depois idolatraram animais, até que surgiu a ideia de um ser onisciente e onipresente, criador de todas as coisas — ideia singela, porém convincente. No início eram vários os deuses, só bem mais tarde a ideia de um Deus único avultou-se, permanecendo até o presente. E o tempo, implacável, seguia. A teoria da evolução natural das espécies, defendida por Charles Darwin, trouxe grande alento para a humanidade, pois esclarecia de maneira lógica o surgimento de todas as espécies e o desenvolvimento de cada uma delas, com as naturais transformações ocorridas ao longo de bilhões de anos. Porém, já estava arraigada na consciência das pessoas a ideia de um ser superior e criador. Impotentes para contestar a Teoria da Evolução as religiões trataram de criar outra, esta absolutamente desprovida de lógica e amparada apenas na fé: o Criacionismo, atualmente chamado pomposamente de “Projeto Inteligente”. O homem fora feito de barro pelo suposto ser superior e ganhara vida com um sopro. Nada se disse sobre a criação dos outros seres e nem a razão das diversas raças, e de tão despropositada e absurda tal teoria sequer é analisada nos meios científicos, restando-lhe contentar-se com a hipocrisia religiosa. O cisma entre o pensamento científico e a fé colocou o homem moderno diante de uma hesitação intransponível: as igrejas institucionalizadas deixaram de lado a crença pregada por Jesus, assomando no lugar dela o dogmatismo e o fanatismo, duas pragas que submetem os homens ao autoritarismo das elites espirituais. Utilizando o medo e a ameaça, as religiões exploram os mais desvalidos, e constroem, da noite para o dia, verdadeiros impérios, com templos luxuosos e monumentais redes de comunicação. Transformaram-se, através do tempo, em organizações multinacionais, com objetivos comerciais para lá de evidentes: enriquecem as elites, enquanto aos fiéis é oferecida apenas a esperança de vida eterna, com base em fantasiosas citações das chamadas “Sagradas Escrituras”. Os objetivos políticos e de amealhar fortuna estão evidentes em todas elas. São incontáveis os autoafirmados “bispos”, “pastores”, “apóstolos”, que se apresentam aos crédulos | 18 | Promessas vazias fiéis com a plataforma única de “pregar a palavra” — mas que palavra? —, como se tal propósito tivesse a mínima importância para quem vive miseravelmente, à margem do progresso. É a mais descarada utilização da crença alheia para enriquecimento ilícito. Jesus, cuja importância histórica não se discute, foi transformado em garoto-propaganda, e o nome dele é utilizado sem nenhum pudor na consecução de objetivos eleitoreiros e financeiros. Novos milionários surgem a cada dia, afrontando os ensinamentos dos evangelistas que as religiões pregam com tanta ênfase, como se vê a seguir: Diz Mateus:1 E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso pai, sabe o de que tendes necessidades, antes que lho peçais. (Mateus, 6: 5-8) E eis que alguém, aproximando-se lhe perguntou: Mestre, que farei eu de bom para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele lhe perguntou: Quais? Respondeu Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra o teu pai e a tua mãe e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; Que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e 1 Trechos transcritos do livro O Novo Testamento, editado pela Sociedade Bíblica do Brasil. Eventuais erros de português não são de responsabilidade do autor. | 19 | Olímpio Marinho segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades. (Mateus, 19: 16-22) O que se vê hoje são palanques, reais e virtuais, que mais parecem postos de arrecadação. As luxuosas igrejas, construídas com o dinheiro matreiramente tomado de fiéis incautos, são o retrato fiel da mais refinada malandragem religiosa. São acirradas as disputas das emissoras de rádio e de televisão, com seus negócios multimilionários, na busca das obladagens dos ingênuos crédulos tudo em flagrante desrespeito ao que ensinou Mateus e que as religiões não se cansam de enaltecer — terás um tesouro no céu, etc. Ademais, sabe-se hoje, com absoluta segurança, que os “dez mandamentos” nada mais são que o resumo de leis que vigoravam entre povos do Oriente Próximo e da Índia, muito antes do nascimento de Moisés. A famosa lei do rei babilônico Hamurabi (1810 - 1750 a.C.), inspirada no Rig Veda dos hindus, já os continha. Portanto, não é verdade que Moisés tenha recebido de Deus as tábuas com os mandamentos. E Jesus, ao fazer as citações que lhe são atribuídas pelos evangelistas, apenas repetia o que já era conhecido há mais de cinco mil anos. Efetivamente, o homem nasceu para viver em sociedade, e em harmonia com a natureza. No entanto, graças à explosão demográfica — incentivada pelas religiões, que condenam todo e qualquer meio de controle de natalidade —, a natureza se mostra incapaz de suprir as necessidades desse enorme contingente de pessoas, daí surgem problemas como o aquecimento global, o degelo das calotas polares e o assustador desequilíbrio das estações climáticas. Espécimes da flora e da fauna são extintas, com imprevisíveis consequências ecológicas. De outro lado, as disputas religiosas e as visões discordantes sobre ecologia transformaram o homem moderno em um verdadeiro robô, prisioneiro de uma ambição desmedida, em que a ética perdeu importância na disputa pelo progresso profissional. Premido, de um lado, pelas fantasias religiosas, e, de outro, pela necessidade de produzir sempre mais, perdeu o respeito pela na| 20 | Promessas vazias tureza e vive sobressaltado, agarrado à ilusão de uma vida após a morte repleta de ventura. Com Promessas vazias, pretendi apenas mostrar como o dogmatismo — que no Kantismo é uma crença equivocada na capacidade do espírito humano para a elaboração de sistemas de pensamento que dispensam o movimento reflexivo da crítica, isto é, o debruçar-se da razão sobre si mesma na busca de seus limites e ilusões — e o fanatismo religioso, ou interpretação literal das “sagradas escrituras”, têm causado sofrimento ao ser humano através dos tempos, negando-lhe o essencial para uma vida decente e dando-lhe apenas esperanças vãs. | 21 | 1. A tarde estava quente e abafada. Os ventos sopravam fortemente, prenunciando que choveria ainda naquele dia: finalmente, o início da temporada das águas. Já era tempo. Os jardins ressequidos clamavam por um cântaro de água, e os roseirais jaziam sedentos sob o sol escaldante de verão. A visão da paisagem era desanimadora: campos e vales, outrora verdejantes, ostentavam impiedosa secura; córregos, antes ribeirões, restavam tristemente transformados em inexpressivos fios de água. Que melancólico espetáculo! Desde o princípio dos tempos a chuva tem hora certa para chegar. O homem, no entanto, nutre a esperança de que venha um pouco antes, como se o desejo dele pudesse alterar a lógica da natureza. A rua estava deserta. Pássaros voavam em bando à procura dos ninhos, os machos à frente e as fêmeas atrás, instintivamente preocupadas com os filhotes que as aguardavam com ansiedade e medo. A encantadora ingenuidade dos pássaros guarda semelhança com a fé e a esperança, duas verdades teologais que nada têm de prático ou consistente. Na escolástica, a fé é apenas crença religiosa, sem fundamento em argumentos racionais; a esperança é o sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja. Os pássaros, não tendo fé nem esperança, valem-se do instinto que lhes garante a sobrevivência. Os homens, ao contrário, apegam-se a essas crenças unicamente em razão do medo, idealizando vida futura e eterna após a morte como se tais desejos fossem possíveis. Apressado, Dr. Elói calçou os sapatos de pelica, vestiu uma capa de chuva, colocou o chapéu de abas curtas. Gritou qualquer | 23 | Olímpio Marinho coisa para dona Angelina, a empregada, e abriu a porta da sala. Olhou o relógio com preocupação: eram quatro horas da tarde. Se não acelerasse o passo, a chuva o apanharia pelo caminho — pensou. Bateu a porta e saiu. Levava um livro ensebado de tanto manuseio, pois só na leitura encontrava prazer, e, ironicamente, dizia que era o que lhe restava na vida, que para ele tinha o sentido de uma purgação. Os atropelos dos últimos tempos o inquietavam de tal modo que ele suportava com resignação o refúgio na casa da tia. Evidente que se alojar ali, longe das filhas e dos amigos de aventuras, causava-lhe grande desgosto. Mas ele sabia que a vida sempre nos reserva surpresas desagradáveis, e só de quando em quando nos dá algum prazer miúdo, inexpressivo, se comparado com as tragédias que nos acompanham todo o tempo. Sabia, ademais, que o ser humano tem um estranho prazer em ser enganado e, por isso, faz um enorme esforço para convencer a si próprio de que as migalhas de coisas prazerosas da vida compensam as agruras da existência, daí a ingenuidade das crenças em coisas irracionais como vida eterna, ressurreição da carne, diabos, inferno, paraíso, reencarnação. Inconscientemente, porém, apega-se a uma fé desprovida de qualquer lógica e bom senso. Certamente, ninguém acredita nesses disparates, ilusões prazerosas, uma forma de apaziguar o conflito entre o pavor do nada e o desejo de coisas irracionais. Se dissermos a uma pessoa de aspecto desagradável que é bela, ela estampará um sorriso de satisfação, como se nunca houvesse constatado diante do espelho, esse impiedoso artefato que jamais mente, que era uma descarada mentira. Se, ao contrário, a verdade for dita, a reação será grosseira — o segredo de aborrecer é dizer tudo, sem hipocrisia ou bajulação. Em resumo, incapaz de enfrentar os próprios medos, o ser humano ocupa a maior parte da existência cultivando a mentira. Admitindo-se, por exemplo, a absurda hipótese de ressurreição da carne no dia do juízo final, surge uma incerteza cruel: como ressuscitariam os corpos? Existem apenas duas possibilidades: ou se levantariam das tumbas no estado em que haviam deixado a vida ou seriam ressuscitados com uma idade única. No | 24 | Promessas vazias primeiro caso, o caos se instalaria: bebês com horas ou dias de vida necessitariam de cuidados por longo tempo, assim como os idosos e deficientes de toda ordem. Não havendo mais o componente temporal, como o problema se resolveria? Se, porém, todos ressuscitassem com a mesma idade, estaríamos diante da mais cruel injustiça do suposto criador: aqueles que viveram apenas algumas horas ou dias retornariam mais velhos, sem terem vivido os anos acrescidos, ao contrário dos que muito viveram e que ganhariam, gratuitamente, o rejuvenescimento, ainda que não mais existisse o tempo. Vê-se que a confusão se espalharia, e o desejo de grande contingente seria retornar para o sossego da sepultura. Fé, apenas, não basta para aceitar sonhos dessa magnitude. Enquanto caminhava apressadamente, Elói remoía as tristes lembranças de um passado recente. As imagens das filhas enchiam-no de dolorosa saudade. O que estariam fazendo, na imensidão da cidade grande e na presença da mãe dominadora e implacável? — inquiria a si próprio. Não encontrando resposta, conformava-se em buscar naquela cidade pacata e agradável forças para soerguer-se e readquirir o prazer de viver, objetivo sempre perseguido pelo homem e nunca alcançado, já que o ser humano confunde felicidade com resignação. A felicidade é um sonho impossível, e resignação é a hipocrisia transformada em humildade. Era visível seu esmorecimento. Tudo conspirava contra ele, nada a seu favor. Sentia-se solitário e abandonado. Porém, deduzia: exauridas as forças, a vontade não se esgota — era o consolo que lhe restava! Apoiou a mão nos olhos, passando-a de uma à outra sobrancelha, seguro de que esse gesto desvaneceria o passado, como se as marcas da vida fossem simples rabiscos que se apagassem. Olhou o céu. Nesse breve lapso de tempo, as nuvens haviam encoberto o sol, que escurecera como se houvesse um eclipse. O vento forte, como se quisesse tirar-lhe o chapéu e a capa, investia furiosamente contra seu corpo, que resistia. Impetuoso como guerreiro, o vento arrancava as folhas dos canteiros. Nem as sebes dos muros escapavam de sua fúria vertiginosa. Estabanadas, as pessoas corriam de um lado a outro à procura de abrigo, enquanto as nuvens, acastelando-se com enor| 25 | Olímpio Marinho me rapidez, obscureciam ainda mais o céu. As dianteiras, baixas e negras como fuligem, corriam velozmente. O aguaceiro cairia de um momento para outro, e podia-se prever a destruição que ele traria. Apegada ao instinto de sobrevivência, uma cadela passou correndo com os filhotes, fugindo desesperada. Acabrunhado, Elói se angustiava com o turbilhão que se aproximava. Um fato insólito, no entanto, chamou sua atenção: sentados num tosco banco de madeira, indiferentes à preocupação geral, um jovem casal de namorados trocava juras de amor. Curioso, Elói se achegou, alertando o casal do toró prestes a desabar. Os dois namorados se entreolharam e apenas sorriram, como se a felicidade que os dominava fosse maior que qualquer temporal. Depois de poucos minutos de conversa, Elói já os conhecia. Estavam de passagem pela cidade, fazendo planos para o casamento já marcado. E ousavam nos projetos, como fazem todos os casais apaixonados: falavam de felicidade eterna, de viagens e de filhos. Sobre filhos, havia, entre eles, uma pequena discordância: o rapaz dizia que se tivessem uma filha deveria chamar-se Cristina, nome que se lhe afigurava de uma beleza ímpar; a moça, sorrindo, afirmava que se chamaria Teresa, talvez em discreta referência a Santa Terezinha, de quem era devota — uma discussão amena, coisa de jovens. Elói, então, sutilmente, propôs que a filha se chamasse Teresa Cristina, nome que contentaria aos dois. Estava resolvido o dilema! O casal sorriu, concordando. Elói despediu-se, continuando a caminhada. E os namorados, felizes com a amabilidade daquele desconhecido, saíram correndo à procura de abrigo. Adiante, Elói cruzou com um homem idoso que o saudou alegremente, ensaiando um sorriso que mostrava a boca murcha, sem um único dente. Era o único que não demonstrava medo, talvez em razão da idade, visto que a velhice é, com certeza, a causa maior de nossos receios; o que para todos era uma tempestade medonha, para aquele velho desdentado não passava de um chuvisco, já enfrentara na vida tormentas de toda ordem. Seguiu calmamente, indiferente à aflição dos outros, exibindo o ingênuo sorriso. Logo adiante, porém, parou e ficou apreciando as pernas bem torneadas de uma jovem que andava apressadamente — com | 26 | Promessas vazias o passar do tempo, o homem perde as forças, mas não perde o desejo, e este talvez seja o grande mistério da vida. Elói andava com pressa, segurando o chapéu e o livro com uma das mãos e com a outra o guarda-chuva. Olhava de quando em quando o céu da tarde que se tornava noite. Como se sabe, a noite guarda todos os segredos da vida e da morte, e quando o dia se veste assustadoramente de noite, como naquele momento, os temores se ampliam, e o homem se reconhece incompleto. Na escuridão, se amesquinha. A imaginação toma contornos de realidade. Daí a razão de os fantasmas e demônios atacarem somente à noite. Era preciso agilizar o passo — pensou, voltando-se para olhar o velho que andava devagar. Mas faltou-lhe tempo. Os grossos pingos da chuva se precipitaram com tal intensidade que ensoparam suas pernas e tudo mais abaixo dos joelhos. O vento forte arrancou-lhe o guarda-chuva e ele correu para chegou ao bar, indiferente aos olhares furtivos dos poucos fregueses, os desocupados de sempre que não saíam de lá. Caminhou para o fundo do pequeno salão, tirou a capa que de nada lhe valera e as galochas ensopadas. Olhou com orgulho os sapatos novos e secos e se jogou na cadeira de palhinha, colocando sobre a mesa o livro que trazia com zelo especial. Deu um sinal para o proprietário e, sorrindo, fez o pedido. O dono do bar já conhecia os hábitos caros e refinados do doutor, mantendo em estoque as melhores marcas de seu uísque preferido. E como jamais reclamava do preço, considerava-o seu melhor freguês. Vani — um pervertido quando moço que, na meia-idade, buscava desesperadamente reconciliar-se com os princípios religiosos — aproximou-se com aspecto doentio, curvado como se carregasse um fardo. Respirava com extrema dificuldade em razão da asma, que não lhe dava trégua. Limpou com um pano branco os respingos da mesa, oferecendo ao doutor uma pequena toalha para secar o rosto e os braços. Enquanto Elói se enxugava, o dono do bar olhava desconfiado para aquele homem de estatura mediana, sempre elegantemente vestido e com os cabelos besuntados de brilhantina. Em seguida, colocou sobre a mesa a garrafa de uísque, um copo, uma | 27 | Olímpio Marinho pequena vasilha de gelo e um pratinho com queijo do reino cortado em pequenos pedaços. Olhou interrogativamente o freguês, comentou sobre o aguaceiro e, não obtendo mais que um sorriso educado e desinteressado, afastou-se intrigado com a sisudez de Elói que, sem lhe dirigir sequer um olhar, já abria o livro velho, quase imprestável. Vani já vira de tudo na vida. Trabalhando no bar desde menino, conhecia todas as manias das pessoas, especialmente dos assíduas frequentadores de botecos. Porém, jamais vira alguém tão carrancudo. Elói nunca falava, parecia que todo o interesse dele estava naquele livro de título tão longo e curioso: O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus, de Immanuel Kant. Justificando os esforços para redimir-se dos pecados da mocidade, Vani pensava: Que bobagem! A existência de Deus está demonstrada em cada detalhe da vida, como aquela chuva que caía sem que ninguém pudesse prever, nem mesmo os doutores que cuidam dessas questões, os tais meteorologistas. Mas, cada louco com a própria mania, resignava-se o dono do Tobias’ Bar, retirando-se para atender os outros clientes. A chuva caía forte. Formou enorme enxurrada, que arrastava tudo que havia pela frente. Transformada em caudaloso rio, a Rua Direita deixava perplexos os moradores, que há tempos não viam uma tempestade como aquela. De repente, do nada, uma senhora entrou no bar completamente molhada, arrastando a filha que, parecendo não se importar com todo aquele incômodo, ria da aflição da mãe. Ao olhar a moça, Elói se lembrou da filha mais velha que deixara há mais de três anos. Como a filha, a moça certamente ainda não passara dos vinte anos, vivia aquela época de sonhos e encantamentos. Ficou pensativo, imaginando como seriam os sonhos da filha, que se agarrara a ele no dia em que partira pedindo-lhe que não a deixasse. Não teria ele transformado seus sonhos em pesadelos? Dúvida cruel, que ele procurava afogar em doses de uísque. Quando esses pensamentos o atormentavam, sentia-se impotente. Porém, refletia, a impotência é uma força, e o homem sempre se socorre do próprio medo, pede ajuda ao pavor e | 28 | Promessas vazias a ansiedade o aconselha a ouvir. Supunha escutar vozes, que lhe diziam: “Não esmoreças; vai, levanta, caminha que a solução virá!” Deixando sobre a mesa o livro que tanto interesse lhe despertava, não tirava os olhos da moça, buscando alguma semelhança física com a filha que não via há tempos. A chuva diminuíra de intensidade. Os fregueses do bar, debruçados nas balaustradas das janelas, contemplavam o rio em que a rua se transformara. Algumas pessoas caminhavam apressadas, como se compromissos inadiáveis não lhes permitissem aguardar o final da tempestade. Um gato, completamente molhado e com o rabo elevado, passou miando e saltou sobre um muro, desaparecendo enlouquecido. Elói levantou-se calmamente e veio juntar-se aos outros, ficando longo tempo contemplando ao esplêndido espetáculo da natureza. Nenhum pássaro voava, como se soubessem dos riscos de uma tal aventura. Pombos gorjeavam nos beirais das casas, festejando o acasalamento. O sino da matriz tocou. Olhou o relógio de ouro, único presente que o sogro não lhe tomara: eram cinco da tarde. A escuridão da tempestade dava a impressão de que já era noite, mas, ao longe, as nuvens raleavam, uma pontinha de sol surgia como se fosse um tênue candeeiro de luz, clareando o ambiente. Zombando dos homens, a natureza mostrava sua força. Os ventos cessaram, a chuva se transformou em garoa e, com a mesma velocidade com que haviam chegado, as nuvens foram se dispersando e o resto de luz daquela tarde-noite surgiu no horizonte, deixando à contemplação o raro espetáculo de sol com chuva. A imaginação desaparecia, para dar lugar à realidade. As pessoas postadas nas portas das casas comentavam os detalhes da chuva passageira. O movimento aos poucos se normalizava. Já sabiam que na periferia da cidade os estragos haviam sido grandes, os mesmos miseráveis de sempre estavam, de novo, desalojados de seus casebres. Diziam, no entanto, que era a vontade de Deus, todos compreendem e até louvam essas desgraças — são manifestações impiedosas de fé e esperança, filhas diletas do medo e da ignorância. | 29 | Olímpio Marinho Ao voltar para a mesa, os miúdos olhos do doutor percorreram todo o salão. A moça, porém, havia desaparecido. Perdido em meditações, instintivamente percebeu que eram inócuos os esforços para se livrar do tormento que já durava tanto tempo. Sua profunda tristeza se arrastava por dias intermináveis, obrigando-o a um esforço sobre-humano para que nem a tia nem a empregada percebessem a inquietação que o dominava. Balançando a cabeça, na vã tentativa de livrar-se dos pensamentos, chamou Vani em voz alta, assustando os demais fregueses, já acostumados à sua sisudez. Queria notícias das mulheres que, por um instante, haviam lhe despertado tanto interesse. O proprietário do bar, sempre muito solícito, e sem disfarçar sua ansiedade por obter informações a respeito do doutor, não se fez de rogado, foi logo se sentando. Depois de se livrar do avental puído, com respingos de cerveja e vinho, Vani ajeitou a camisa e, atribuindo à informação uma importância que não tinha, foi logo dizendo que a senhora ficara viúva há dois anos, e, desde então, vivia em companhia do irmão Matias, próspero fazendeiro lá da Cova D’Anta. O pobre homem, no momento, estava numa enrascada daquelas, disse Vani. Uma sirigaita lá do Zambeque, sabendo da excelente situação financeira da família, procurara um advogado recém-formado e inexperiente dizendo que o pirralho que a acompanhava era filho de Matias, um sujeito pacato e que vivia como um eremita. E Vani continuou com a dissertação: Matias negava, não dava nenhuma importância ao caso, enquanto o advogado da mulher tomava as providências normais, alardeando por toda cidade que não havia nenhuma dúvida de que o pai do menino era mesmo o fazendeiro. Diante da real possibilidade de levar vantagem financeira, a moça, de nome Mercês, queria o reconhecimento do filho, e por isso abrira processo. Fiel ao característico estilo bonachão, o fazendeiro mais uma vez negou a paternidade e, dizendo tratar-se de um caso que ele mesmo poderia provar ao juiz, optou por não contratar advogado. Dizia, para contrariedade dos causídicos da cidade, que ele próprio faria a defesa, asseverando tratar-se de caso simples, que, tão logo fosse julgado, o livraria de todo aquele transtorno. Mas no íntimo um temor o angustiava: como | 30 | Promessas vazias reagiriam as pessoas que o cercavam quando revelasse o segredo que guardava há anos, e do qual ninguém sequer desconfiava? E ponderava: não havia melhor maneira de encerrar um caso assim, surgido do nada, e que era o resultado de um mal que assola a humanidade desde tempos imemoriais: a ganância, infortúnio que parece dispor de asas, tão rapidamente aparece em situações como essa. Por isso, se decidira: nada de despesas inúteis para encobrir uma dolorosa verdade que, cedo ou tarde, seria do conhecimento de todos. Empolgado com o interesse de Elói, não obstante a dificuldade para respirar que aumentava à medida que falava, Vani continuou sua exposição, depois de orientar Abelardo a respeito de um sujeito bêbado que se recusava a pagar a conta. A senhora se chamava Matilde e tinha duas outras filhas pequenas. Ele, Vani, conhecia bem a família, pois fora vizinho dela até a morte do marido, um sujeito robusto e saudável que morrera de repente, como, aliás, morrem todas as pessoas robustas e saudáveis! Depois de relatar minuciosamente tudo o que sabia sobre a família da moça, Vani ficou esperando que o doutor dissesse alguma coisa a respeito dele próprio. Elói, tomando de um trago a segunda dose de uísque, limpou com as costas da mão o bigode fino e bem aparado e perguntou: — E a moça? Vani, remexendo-se na cadeira com impaciência, disse que era a filha mais velha de dona Matilde; vivia na fazenda e muito raramente aparecia na cidade. Namorava um rapaz lá de Tabatinga e isso era tudo o que sabia da família, disse, encerrando o depoimento. Depois de prestar as informações complementares, ficou na expectativa de que Elói saciasse a sua curiosidade e dos demais fregueses. Percebendo o interesse, depois de abastecer-se de nova e generosa dose da bebida predileta Elói disse apenas que iria, já no dia seguinte, até a fazenda Capão Amarelo conhecer o Sr. Matias. Recostou-se na cadeira e recomeçou a leitura do livro ensebado, e demonstrando uma arrogância intolerável, leu, em voz alta, um trecho do livro: “... do que ficou dito até aqui, vê-se facilmente que o conceito de um ente absolutamente necessário é um | 31 | Olímpio Marinho conceito da razão pura, isto é, uma simples ideia cuja realidade objetiva nem de longe está ainda provada pelo fato de a razão necessitar dela”. Sem nada entender, Vani saiu rapidamente, enquanto os outros retomaram a conversa interrompida em que se ocupavam da vida alheia. | 32 |