Artigo Completo - Psicanálise e Cinema
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Artigo Completo - Psicanálise e Cinema
O filme Lady Vingança e o estereótipo da mulher vingativa1 Maria Josefina Medeiros Santos Introdução Ao longo de sua história, o cinema foi marcado por filmes cujos enredos eram de alguma forma tributários à temática da vingança. Películas tais como O poderoso chefão, Os bons companheiros, A igualdade é branca, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, Os duelistas, Faça a coisa certa, Kill Bill2 e outros retrataram o fenômeno vingativo e entraram para a antologia das produções mais elogiadas da história da cinematografia internacional. O cinema atual perpetua essa tradição e continua trazendo às telas filmes marcados pelo furor vingativo. Em 2007, dos 385 filmes que foram lançados nos Estados Unidos, 45 possuem o fenômeno vingativo pintado de alguma forma, o que equivale a dizer que o tema surge em aproximadamente 12% da amostra revisada. 3 O cinema sul coreano atual conta com uma leva de jovens diretores que tem conquistado a crítica internacional. Referenciados pelos cinemas francês, japonês, e americano, esses cineastas ergueram a indústria cinematográfica no país e exportaram suas produções para mercados diversos. A alavancada do cinema sul coreano foi propiciada por robustos investimentos privados efetuados no inicio da década de 90, período especialmente próspero para economia do país, uma vez que se tornou um grande exportador de automóveis, eletrônicos, navios e aço. Dentre os jovens cineastas sul coreanos, Park Chan-wook talvez seja o mais célebre e reverenciado. O diretor se tornou mundialmente conhecido ao ganhar o Prêmio do Júri em Cannes, no ano de 2004, com seu filme Oldboy (2003), o segundo da chamada Trilogia da Vingança. A primeira película dessa coletânea norteada pela 1 Este texto foi fruto de uma Iniciação Científica ( A Metapsi cologia da Vingança) realizada pela UFMG e orientada pela Pofa.Dra. Ana Cecília de Carvalho, no ano de 2008. 2 Francis Ford Coppola (1972), Martin Scorsese (1990), Krzysztof Kieslowski (1994), Krzysztof Kieslowski (1994), Ridley Scott (1977), Spike Lee (1989), Quentin Tarantino (2003/2004), respectivamente. 3 Filmes estreados em 2007 e que retrataram o fenômeno vingativo: Alpha Dog, Seraphim Falls, Hannibal Rising, Norbit, Ghost Rider, 300, Behind the Mask, Dead Silence, My Brother, Nomad, The Page Turner, Shooter, Everything´s Gone Green, Pathfinder, Perfect Stranger, Red Road, Red Line, Slow Burn, Fracture, Civic Duty, Spiderman 3, Provoked, Brooklyn Rules, Fantastic 4: Rise of The Silver Surfer, Ghosts of City Soleil, Harry Potter And The Order Of The Phoenix – The rebellion begins,Live Free or Die Hard, Dynamite Warrior, Captivity, I Know Who Killed Me, The Bourne Ultimatum, The Last Legion, Illegal Tender, War, Balls of Fury, Halloween, The Brave One, Eastern Promises, Sydney White, List Caution, Trade, Sleuth, We Own the Night, O Jerusalem, Reservation Road, Mr. Untouchable. Fonte: Film Release Schedule - Upcoming Movie Release Information and News. temática da vingança foi Mr. Vingança (2002), e a que a encerra é Lady Vingança (2005). Ao diretor Park Chan-wook foram dirigidas inúmeras inquirições sobre o porquê da produção seqüencial de filmes centrados em empreitadas vingativas. De fato, não foi o cineasta que concebeu a idéia de uma trilogia, e sim a própria mídia cultural sul coreana, como se observa na seguinte colocação do diretor: “When I was about to start Oldboy I was somewhat concerned about making two films on vengeance back to back. I even thought about refusing the project but my wife convinced me to by saying, 'If the story's interesting, isn't that all that matters?' Then reporters kept asking me about the two vengeance films and why I was doing them one after the other. It felt like they were criticizing me for choosing to tell horrible stories, instead of taking up one of the beautiful ones. And then, before I realized it, I'd announced that I wasn't just making two, but three films on vengeance. It was actually just a spontaneous statement in an interview, and I regretted it deeply, but I couldn't take something back I said in public. So you could say the trilogy owes its conception to Korean journalists.” 4 O presente artigo busca analisar um dos filmes que compõe a Trilogia da Vingança – Lady Vingança - para em seguida efetuar considerações, apoiando-se em noções psicanalíticas, que busquem elucidar os motivos que engendram tamanha fascinação dos espectadores por filmes que retratam o fenômeno vingativo. 4 “Quando eu estava para começar Oldboy, eu estava um tanto preocupado em fazer dois filmes seguidos de vingança. Eu até pensei em recusar o projeto, mas minha esposa me convenceu ao dizer ‘Se a história é interessante, não é só isso que importa? ’ Daí, repórteres ficavam me perguntando sobre os dois filmes de vingança e por que eu estava fazendo um depois do outro. Parecia que eles estavam me criticando por escolher contar histórias horríveis, ao invés de pegar uma dentre as bonitas. E aí, antes de eu perceber, eu anunciei que eu não estava apenas fazendo dois, mas três filmes sobre vingança. Isto foi apenas uma declaração espontânea em uma entrevista, e eu me arrependi profundamente, mas eu não podia retirar algo que eu disse em público. Então, você pode dizer que a trilogia deve sua concepção aos jornalistas coreanos.” (Fonte: IMDb). Lady Vingança “When I first announced to the Korean audience that we’re going to do a new revenge movie with Lee Yeong-ae as the lead character, there’s a saying in Korea that once a woman has set her eyes on vengeance then snow will fall even in June. That’s a very literal translation. But people thought it would be more cruel, more violent especially since Lee Yeong-ae’s image was very clean, very innocent and sweet. They were thinking she was going to transform and be the angel of vengeance but that’s not the reason why she was cast. I didn’t use a female lead because women are more vengeful, rather the opposite. I felt like only a woman would have certain virtues that this character needed.”5 “Assim que uma mulher põe seus olhos na vingança, então neve pode cair até mesmo em Junho.” Este ditado sul coreano sublinha certa pressuposição recorrente no senso comum de que as mulheres são essencialmente mais vingativas que os homens. Uma mulher, obstinada em obter uma desforra, seria capaz de tudo, até mesmo de fazer precipitar neve em um dos meses mais quentes do verão no hemisfério norte. Park Chan-wook, contudo, não baseou a sua escolha por uma atriz para interpretar a personagem principal em Lady Vingança nessa suposição, o diretor a fez por considerar que o papel interpretado pela atriz Lee Yeong-ae exigia certas virtudes típicas do universo feminino. Mas de onde vem essa suposição de que as mulheres são mais vingativas que os homens? Se nos centrarmos no homicídio, ou seja, em uma das modalidades existentes de crime contra a vida, observa-se que aproximadamente 95% dos homicídios cometidos no Brasil são efetuados por homens. 6 Em uma pesquisa concretizada na comarca de Belo Horizonte entre os anos de 2003 e 2005, intitulada “Tipologia dos Homicídios: uma análise sociológica das denúncias oferecidas pelo Ministério Público de Minas Gerais”, contamos com dados que se opõem a concepção de que mulheres são mais vingativas que os homens, pelo menos em termos de assassinatos animados por motivos de vingança. A autora da pesquisa, Klarissa Almeida Silva, estabelece nove tipologias de crimes: (1) Bala perdida, (2) Caput (crimes cujas circunstâncias não foram suficientemente apuradas), (3) Trabalho policial (engloba delitos cometidos por 5 Park Chan-wook em entrevista a Daniel Robert Epsteine em 10 de Outubro de 2005. Disponível no site: http://suicidegirls.com/interviews/Park+Chan-Wook/ 6 Banco de Dados – MNDH. Disponível no site: http://www.dhnet.org.br/mndh/bdados/bdtxt1.htm policiais militares e civis em situações de trabalho), (4) Drogas/Tráfico, (5) Motivos financeiros, (6) Vingança (corresponde àqueles casos onde o agressor tinha como objetivo vingar-se da vítima por razões outras que não advindas de drogas e relações amorosas, como brigas anteriores e desentendimentos de outra ordem), (7) Motivos amorosos (todos os casos onde os antecedentes indicavam brigas entre pessoas íntimas, casais de namorados, cônjuges, amantes e, ainda, retaliação devido a rompimento da relação por uma das partes), (8) Conflitos Cotidianos (envolvendo brigas e discussões de entre pessoas conhecidas), (9) Outros não especificados na denúncia (outros casos que não se enquadravam no caput, nem havia detalhamento suficiente no texto da denúncia que permitisse caracterizar os crimes). A distribuição percentual das denúncias de homicídios consumados e tentados, oferecidas pelo Ministério Público de Minas Gerais, entre dezembro de 2003 e dezembro de 2005, na comarca de Belo Horizonte, de acordo com a tipologia desses crimes deu-se da seguinte maneira: 28,14% conflitos cotidianos, 20,78% Drogas/Tráfico, 18,61% Vingança, 13,42% Trabalho Policial, 5,63% Homicídio Simples, 5,19% Conflitos Amorosos, 4,98% Motivos Financeiros, 3,25% Bala Perdida. Observa-se, portanto, que a vingança engendra aproximadamente 19% dos homicídios em Belo Horizonte, sendo a terceira motivação nessa modalidade de crime contra a vida. Embora a autora separe as tipologias referentes à vingança e conflitos amorosos, pode-se notar que nesta última estão inseridos assassinatos tentados ou consumados em função de retaliações entre casais, seja em razão de rompimentos ou traição. A pesquisa de Silva traça um perfil estatístico das tipologias de homicídios apenas em Belo Horizonte, contudo, seus resultados certamente podem ser representativos para outros contextos nacionais. Assim, com a estatística supracitada que evidencia que por volta de 95% dos homicídios no Brasil são efetuados por homens, e que são numerosos os assassinatos motivados pela vingança, pode-se inferir que os homens matam mais para se vingarem e retaliarem em função de rompimentos e traições amorosas. Pelo menos em termos estatísticos de homicídios retaliativos, os homens podem ser considerados mais vingativos que as mulheres. O trabalho de Silva nos fornece apenas estatísticas referentes a homicídios tentados ou consumados, não sendo possível dizer com referências estatísticas se as mulheres se empenham mais em outras formas de vingança que não passam necessariamente pelo âmbito homicida. As mulheres podem cometer pequenos atos vingativos que não são registrados enquanto delitos, uma vez que não são denunciados. É como no conto de Nelson Rodrigues7, “A Grinalda”, em que um homem, Elesbão, abandona Vanda, uma mulher que o sustentava, para ficar com sua noiva, Odete. Elesbão, por não ter dinheiro para pagar pelo vestido de noiva, recorre à abastada Vanda que aceita em arcar com a despesa, dizendo: “Pra tua noiva, eu dou. Tenho ciúmes de outras mulheres. Mas de noiva, esposa, não.” (p.201). Entretanto, Odete obriga Elesbão a dar um fim ao relacionamento infiel, e o noivo o faz. É no dia do casamento de Odete que Vanda decide se vingar, rasgando o vestido de noiva e sapateando em cima da grinalda da rival que cai histericamente em prantos na porta da Igreja. * A vingança de Vanda não se compara a de Lee Geum-ja, protagonista de Lady Vingança. A película se inicia com a personagem saindo de uma prisão durante um rigoroso inverno sul coreano. A neve8 cai e Lee é recepcionada por um grupo animado de pessoas vestidas com o traje de Papai Noel. A jovem observa por um tempo aquelas pessoas que se dispuseram a lhe recepcionar a despeito do frio que fazia. No entanto, Lee não se comove com o ato – dirige ao líder do grupo um ríspido vitupério e lhe vira as costas a fim de seguir seu caminho sozinha. Ao deixar a prisão, Lee procura algumas de suas ex-companheiras de cárcere, figuras que, cada uma ao seu modo, contribuirão com o plano de vingança da protagonista da trama. Vale ressaltar que as cúmplices de sua empreitada retaliativa, bem como outras mulheres que cumpriam pena durante a estadia de 13 anos de Lee na prisão, também se envolveram com práticas vingativas antes, durante a após a passagem pelo período de privação da liberdade. Uma delas, a “Bruxa”, uma homossexual bruta que forçava serviços sexuais das detentas, foi presa por assassinar o seu marido infiel e sua amante, castrando seu companheiro ao molde “bobbiano”9 e fazendo churrasco com 7 Nelso Rodrigues. A Coroa de Orquídeas. (São Paulo: Companhia das Letras,1993). Lady Vingança é um filme essencialmente em branco e vermelho. Com a passagem do filme, observa-se que o branco representa a pureza e o vermelho a vingança. 8 9 No ano de 1993, na Virgínia (EUA), a equatoriana Lorena Bobbit, cansada dos abusos físicos e sexuais cometidos pelo marido, extirpou-lhe o pênis com uma faca de cozinha. Lorena fugiu da cena do crime e lançou a genitália de John Wayne Bobbit pela janela de seu automóvel. O pênis foi achado e reimplantado cirurgicamente em Bobbit, que logo após ingressou em uma carreira de ator na indústria de cinemas pornográficos. a genitália extirpada. Essa ressalva se faz importante, uma vez que sublinha a ligação do feminino com o fenômeno vingativo no filme. Grande parte das detentas representadas possui em sua trajetória de vida situações maculadas pelo afã vingativo, fato que reitera as conjeturas existentes acerca de uma suposta predisposição feminina à vingança. Lee foi condenada por seqüestrar e assassinar um garoto de oito anos. O assassinato comoveu o país, recebendo uma cobertura midiática perversa que espetacularizou o crime, levando-o aos limites da banalização. Com o transcurso do filme, porém, surge a revelação de que Lee não foi quem matou o garoto. O seqüestro foi proposto à personagem pelo seu então namorado, um professor que dava aulas de inglês para crianças ricas. Baek convence a jovem a se envolver no seqüestro, dizendo que o afastamento da criança de seu seio familiar lhe seria benéfico, uma vez que estreitaria os laços de amor na família. Além do mais, Baek garante a Lee que a criança será bem tratada durante a operação, não sofrendo qualquer injúria física ou mental. Lee, uma mãe solteira sem recursos financeiros suficientes para suprir os cuidados necessários com sua filha, assente ao plano e se envolve no seqüestro de Won -mo. Contudo, Lee é traída. O garoto é seqüestrado e depois assassinado pelo mentor do crime. No entanto, Baek arquitetou seus atos de maneira minuciosa e perversa; para não ser incriminado pelo crime que cometera, ele seqüestra também a filha de Lee. A personagem torna-se então vítima de uma chantagem: o professor diz que sua filha seria morta caso Lee não aceitasse se culpabilizar pelo seqüestro e morte do garoto. A mãe aceita as condições e é então incriminada por um crime que em parte não cometeu, a Lee caberia a imputação em decorrência do seqüestro, mas não em função do assassinato. A promessa de uma vingança é então proclamada. Durante treze anos Lee arquiteta sua vingança, a adia, a fortalece, e sonha com o dia de sua concretização - o “Dia D.”, ou melhor, o “Dia V”. Recém libertada, Lee tem um sonho. Nele ela caminha em um cenário invernal, marcado pela branquidão da neve que nos remete a certa pureza e tranqüilidade. A jovem arrasta por uma corda um cão imobilizado por uma armação de madeira. O animal, entretanto, possui um rosto humano, o da figura de seu ódio, Baek. Lee se aproxima de um precipício, pára, olha para a figura quimérica, saca uma arma e atira na cabeça do cão-homem, tingindo o branco da neve com o sangue de sua vítima. Enquanto tem este sonho, Lee esboça um sorriso de contentamento. Neste sonho, explícito tal como os das crianças, o desejo de vingança da personagem é desvelado. Na elaboração onírica, Geum-ja se transforma em um algoz sádico que conduz seu cãozinho imobilizado e submisso por um percurso cercado de neve, elemento que surge em sua brancura como uma garantia de manutenção da pureza, a despeito da vingança homicida prestes a ocorrer. No livro A lógica das paixões10, Roland Gori afirma que o traumático conduz a algumas saídas: ou o sujeito se entrega ao ódio passional e também aos crimes mais abomináveis, ou oferece às “reminiscências a ‘sepultura’ do sonho, da palavra, da criação, e de sua melancolia.”. Lee percorre a via onírica, mas privilegia a saída passional, executando uma vingança que choca o espectador pelo seu alto grau de violência. Após ser condenada, a filha de Lee é entregue ao conselho tutelar e torna-se candidata à adoção. Jenny, como viria a se chamar, consegue um lar na Austrália, país ao qual a protagonista se dirige assim que descobre o paradeiro de sua filha. O encontro de Lee com os pais adotivos é pândego – a personagem dança e se embebeda com os pais australianos, cena, que assim como outras do filme, mescla o trágico e o insuportável com pinceladas de humor, criando no espectador uma confusão de afetos. O diretor, em todos os filmes que compõem a trilogia, alterna momentos de intensa tragicidade com toques cômicos, insinuando que o humor pode ser uma espécie de saída diante do traumático. Park-Chan wook já se declarou contrário a qualquer expedição vingativa. O diretor considera a vingança um ato fútil e que frequentemente destrói a vida de todos que estão nela envolvidos. O humor, segundo Freud, seria o triunfo do narcisismo, ou seja, a vitória de um ego que se recusa a sofrer com as perturbações externas. O humor desmerece e diminui a injúria, o que faz do humorista um vingador atípico – ele fere quem lhe feriu com o descaso, com a pilhéria que enfraquece a relevância da afronta ou da humilhação. O humor serve como uma blindagem que não só distancia o desprazer, como o transforma em fonte de prazer. Durante sua estadia na Austrália, a filha de Lee decide que quer ir para a Coréia do Sul com a mãe. Lee inicialmente se recusa em aceitar o pedido da filha, mas acaba assentindo ao seu anseio. Com o retorno a Coréia, Lee pode finalmente dar prosseguimento a sua vingança. Por intermédio de Jeong, ex-colega de cela que se 10 Roland Gori, A lógica das paixões. (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004).p.93. tornou namorada de Baek só para auxiliar Lee em sua vingança, a protagonista consegue chegar à casa do ex-professor de inglês. Jeong, antes do encontro de Lee com o homem que havia devastado sua vida, coloca um sonífero no jantar de Baek. Este havia descoberto há poucos dias que Geumja havia saído da prisão e que planejava reencontra-lo. Com medo, Baek paga dois capangas para protegerem sua casa e doparem Lee com iodo para em seguida extermina-la. Antes de conseguir entrar na casa de Baek, Lee e Jenny são surpreendidas pelos sujeitos encarregados de interceptá-las. Geum-ja luta bravamente, segurando sua respiração durante todo o embate corporal. Por fim, a personagem consegue se desvencilhar dos capangas e os executa com sua arma. No momento do reencontro com Baek, Lee lhe afaga os cabelos, o olha com admiração e o joga no chão. O corpo entorpecido cai imóvel, a protagonista pega uma tesoura e com fúria e rapidez começa a arrancar os cabelos de Baek. Enquanto o faz chora diante do homem que tomou sua filha, a chantageou e a fez assumir um crime que não cometeu. Enquanto Lee e Jeong imobilizam Baek, amarrando-o com cordas e o amordaçando, a protagonista encontra no casaco de sua filha, ainda sobre o efeito do iodo, um bilhete em inglês. Inepta na língua, Lee procura um dicionário e vai traduzindo palavra por palavra. Na mensagem, Jenny revela que já pensou em se vingar da mãe, mas em sua memória não havia o registro do rosto materno, fato que malograva suas fantasias retaliativas. Seria preciso a definição de um rosto, de uma imagem sobre a qual pudesse recair o ódio vingativo e o sadismo de perceber o sofrimento na fisionomia da mãe que lhe abandonou. Jenny também diz que uma desculpa não seria o suficiente, seriam necessários no mínimo três pedidos de perdão. Este é um aspecto típico do psiquismo infantil – a repetição e a crença de que quanto mais melhor, quanto maior melhor. Repetição que auxilia a elaboração, e a suposição de que três pedidos de desculpa é um ato de humilhação tão supremo que seria capaz de apaziguar o seu ressentimento em relação à mãe. Lee então leva Baek ao palco onde será executada sua vingança, uma escola desativada em um local afastado da cidade. A personagem o prende em uma cadeira e lhe tira a mordaça, obrigando-o a agir como tradutor entre ela e sua filha. Lee diz a Jenny que seus pecados são grandes demais e que considera não merecer a filha que tem. A personagem fala que também faz parte de seu castigo ter feito sua filha crescer sem mãe. Lee diz a Jenny que se ela cometer um pecado, ela precisa fazer uma expiação. “Grande expiação para grandes pecados, pequena expiação para pequenos pecados”. A mãe então revela a filha que irá matar Baek, pois ele fez dela uma pecadora. Lee então abraça Jenny e lhe pede, emocionada, três pedidos de perdão que são contados um após o outro pela menina. Na próxima cena, Lee, já sozinha com sua vítima, aponta a arma em sua cabeça. Com fúria, a personagem hesita. Não consegue atirar, parece esperar por algo. De repente, o telefone celular de Baek toca. Lee o toma em suas mãos e reconhece dentre os penduricalhos que enfeitam o aparelho a bolinha de gude de Won-mo, o garoto que Lee ajudou a sequestrar e quem veio a morrer pelas mãos de Baek. Lee se espanta e se dá conta de que cada um dos badulaques presos ao aparelho pertencia a outras crianças também assassinadas por Baek. Lee tira a mordaça de Baek que então lhe inquire sobre o porquê da personagem usar uma sombra vermelha nos olhos. Ela o cala e o joga no chão, o arrasta, chora e o chuta. Lee novamente lhe põe sentado e dá um tiro em cada um de seus pés. A personagem então liga para o detetive que investigou o seqüestro e o assassinato de Won-mo. Lee mostra a Choi a mórbida coleção de penduricalhos de Baek. Geum-ja, Jeong e Choi reviram a casa de Baek em busca de pistas que confirmassem a suspeita da personagem acerca das outras mortes. Depois de muita procura, Lee acha quatro fitas de vídeo embaixo de uma cômoda. Os três assistem as fitas que mostram Baek torturando as crianças que seqüestrava, bem como o modo como ele as matava. Diante da crueldade desmesurada exibida nas filmagens, o grupo fica imobilizado, em silêncio. O desconforto perante as imagens é visceral, levando Choi a se retirar e vomitar no banheiro. A partir dessa revelação, o filme toma rumos surpreendentes. Lee vê-se impelida a modificar seu plano de represália contra Baek. Ela percebe que a vingança que buscava não era apenas sua, outros também tinham o direito de compartilhá-la. Lee então decide convocar os familiares de cada uma das crianças torturadas e assassinadas nas filmagens. Com todos sentados nas carteiras da escola desativada, Lee exibe os vídeos um após o outro. Gritos, murmúrios, gemidos e lamentos ressoam pelo cômodo, ruídos que ferem Lee, levando-a a tapar os ouvidos. Após os familiares terem se acalmado, ocorre o seguinte diálogo: Lee: Vocês têm duas opções. Se quiserem uma punição pela lei, podemos entregá-lo ao detetive Choi. Mas se quiserem algo mais rápido e personalizado, podemos matá-lo. Vão poder matá-lo aqui e agora. Mãe de uma das crianças: Ele tem algum filho? Lee: Supostamente ele é estéril. A lógica do “olho por olho, dente por dente” surge na fala da mãe desesperada. É a fantasia de que um ato idêntico possa tamponar a dor de uma hemorragia libidinal, que seja capaz de quitar a angústia que emerge de uma injustiça. A pergunta da mãe fala de um terror que lhe escapa, que lhe irrepresentável. O choque com algo que julgava impensável a leva à rivalidade imaginária que busca reproduzir no outro dor semelhante a que a acomete. É a suposição de que há um fim pior que a morte – a morte em vida dos familiares vítimas de fatalidades semelhantes. Parentes de vítimas de crimes hediondos não raro padecem de um desequilíbrio pulsional que favorece uma invasão das disposições tanâticas. Crimes brutais, em especial se passarem impunes, costumam suscitar um quadro de completa imobilidade e incapacidade de investir libidinalmente no mundo exterior. Opera-se a meta última da pulsão de morte – o anseio pela paz, por um estado de desligamento total e de condução da tensão a um limiar mínimo. O filme menciona que o pai de uma das crianças assassinadas matou-se logo após o crime. Observa-se neste ponto o sobrepujamento da pulsão de morte que conduz ao inanimado. Mais que isso, nota-se o aspecto autopreservador do suicídio, uma vez que possibilita o cessar de uma dor. Ao descobrirem que Baek era estéril, os familiares das vítimas se questionam: “Se ele não tinha filhos, para quê ele precisava de tanto dinheiro?” Lee, com receio lhes responde: “Ele queria comprar um iate...” Após a proposta de Lee, instala-se um foro no qual cada um dos familiares presentes toma para si o poder de jurisdição. Enquanto todos expõem seus argumentos acerca do destino de Baek, Lee observa de pé, hirta e imparcial o desenrolo da discussão. A sua postura remete a de uma professora, de uma mestra que busca introduzir seus discípulos na escola da vingança, “na-lei-de-vingança”. A personagem possuía anos de uma vivência maculada pelo desejo retaliativo, condição que lhe impugnava de razões para assumir um status de maestria perante a realização de uma desforra. A utilização de uma escola desativada faz coro com essa idéia de escolarização vingativa. A escola em desativação mostrada pelo filme nos reporta a idéia de um ambiente fantasma, extinto e alheio a qualquer lei vigente. Os familiares acabam por decidir pelo modo “mais rápido e personalizado”. Optam pela execução de Baek, mas esta deveria ser efetuada “a la carte”, ou seja, cada um dos entes iria separadamente ao encontro do ex-professor e o torturaria cada um ao seu modo, ao seu gosto. Uma das mães diz: “Acho que nem todos gostamos das mesmas coisas”, colocação que sugere uma atitude perversa sádica ( e um tanto fetichista) na qual há a extração de prazer sexual por meios desviantes. Ocorre então um sorteio no qual é distribuído senhas que definem a ordem de ida de cada um dos familiares. A estes são distribuídos capas de chuvas transparentes para que não se sujassem durante a vingança. Preocupação asséptica que contrasta radicalmente com a natureza dos atos que iriam ser procedidos. Mais que isso, o uso de capas protetoras insinua um profissionalismo, como se estivessem uniformizados com o intuito de maximizarem os frutos de uma dada produção. A cena na qual os entes se perfilam em uma longa cadeira, revestidos pela indumentária protetora, possui certo tom tétrico. Mães de fisionomia doce e pais de sisudo aspecto empunham facões, machados e outras armas brancas, situação que em função de uma ruptura com o que era esperado dessas pessoas comuns, gera risos nos espectadores. A primeira etapa da tortura vingativa contou não apenas com uma pessoa, mas com três membros de uma mesma família. Baek, quando confrontado pelo grupo sobre como foi capaz de fazer o que fez, diz: “Ninguém no mundo é perfeito”. Assunção que revela sua consciência de que nem todos possuem desejos universalizados, consoantes com os ditames sociais. O argumento de Baek fala de uma certeza quanto a uma incompletude egóica. A forma pelo qual o sujeito se apresenta é repleta de fissuras que são permanentes. O vingativo apóia-se na crença de que com a desforra alcançará a restauração completa de um ego ferido pela dor de uma injúria que lhe foi dirigida. Muito do afã pela vingança se sustenta nessa ilusão de completude, na fantasia de que pela represália algo lhe será restituído, sanando o vazio instaurado quando do agravo. Mesmo que inconscientemente, os parentes parecem saber que a ferida aberta pelo assassinato de seu filho é permanente. Não é fortuita a fala do pai que diz “Isso não vai trazer nosso filho de volta, vai?”. Ela revela que a despeito da vingança, eles jamais recuperarão a vida de seu filho. A vingança pode auxiliar no tamponamento de uma hemorragia libidinal, o cessar de um ressentimento mortificante. Mas a ferida aberta por uma injúria deixa cicatrizes, marcas indeléveis com as quais o sujeito terá que conviver. Como no corpo biológico, o processo de cicatrização pode transcorrer de modo saudável ou problemático. Os pontos, a bandagem e a medicação, quando administradas adequadamente, deixam cicatrizes menos agressivas que quando esses cuidados não são levados em conta. Do mesmo modo que em alguns ferimentos surgem quelóides e outras perturbações cutâneas, algumas feridas narcísicas não “saram” de forma adequada. O modo como cada um lida com um desejo de vingança repercute severamente no aspecto de suas cicatrizes psíquicas. Alguns podem esquecer, perdoar, criar, ou se submeterem à análise. Outros podem se vingar e se sentirem absolutamente satisfeitos com isso, mas há também os que sofrem e se culpam em demasia pela vingança efetuada. O golpe final contra Baek é desferido pelas mãos de uma avó que punge a nuca do ex-professor com uma pequena tesoura que pertencia a seu neto. Após a morte de Baek, inicia-se um sistemático ritual de limpeza. O asseio com a cena do crime insinua muito mais que uma tentativa de não deixar rastros incriminatórios que pudessem leválos a serem acusados pelo crime que cometeram, insinua um anseio de fazer não existir tudo aquilo, de tornar invisível a barbárie por eles executada. Uma tentativa de negar suas pulsões destrutivas, de sepultar, tal como Baek o foi, as moções agressivas condenáveis pela civilização. Durante o enterro do corpo, Lee saca a arma sobre qual se debruçou com tanto afinco em sua feitura, e dispara dois tiros na face de Baek tal como havia feito em seu sonho. Mas o júbilo que outrora sentira não é esboçado. Lee enterra a arma com o corpo, chora e sorri, mas pesar e desespero podem ser vistos em seu rosto. É possível inferir que a personagem tenha se arrependido por ceder a sua vingança a outros. A desforra não foi executada com suas próprias mãos, a ela foi novamente conferido um papel de passividade, uma vez que só assistiu a tortura e morte de Baek. Cabe aqui a indagação de que se apenas como intermediária, voyeur e testemunha da vingança contra Baek, Lee foi capaz de se satisfazer. O fato de que a personagem insistiu em atirar em um cadáver revela uma atitude imbuída de ódio e desespero perante um plano malogrado, perante a impossibilidade de uma descarga pulsional efetuada à sua maneira. Se a vingança pressupõe a mudança de papéis de passividade para atividade, Lee falha em sua retaliação. A ela lhe restou assistir a vingança de outros cujos quais considerou mais merecedores de se vingarem. A personagem, de certa forma, colocou em uma balança o peso de seu sofrimento e de terceiros, e ,ao apurar o resultado, julgou que os pais eram mais dignos de executarem o homem que torturou e assassinou seus filhos e filhas. Mas com esse procedimento, Lee desrespeitou o seu anseio, sofrendo imensamente por isso. Efetuada a vingança, Lee leva os familiares à cafeteria onde trabalhava e lá eles comem um bolo em silêncio. A irmã de uma das crianças inquire Lee acerca da devolução do dinheiro referente aos resgates. A protagonista garante que todos serão ressarcidos. Feita a garantia, cada um dos familiares escreve em pequenos papéis os dados bancários para que se pudesse realizar os depósitos. Entregue os dados, todos saem abruptamente, e passam a se preocupar com a neve e com o trânsito que ela usualmente causa. Após a vingança, retomam a vida e todas as suas questões práticas. A desforra, pelo menos aos familiares, parece ter possibilitado a retomada de uma vida até então estancada pela dor e pelo ressentimento. Com Lee, no entanto, isso não parece ocorrer. Lee, ao chegar em casa tira de seus olhos a sombra vermelha que usou durante todo o filme. A sombra vermelha nos olhos pode ser vista como uma referência ao mote sul-coreano de que quando uma mulher põem seus olhos em uma vingança, ela é capaz de tudo. Há ainda uma fala do senso-comum que diz - fulano “está com sangue nos olhos” - expressão que faz alusão a um ódio intenso por alguém e também a um desejo de vingança. A personagem limpa a cor de sangue de seus olhos, mas está longe de alcançar a paz que tanto almejara. No banheiro de seu apartamento, Lee vê o espectro do menino que ela ajudou a seqüestrar. O fantasma, que assumiu na visão da protagonista uma forma adulta, a amordaça do mesmo modo que a jovem amordaçou Baek. Esta passagem sublinha a culpa de Lee na morte de Won-mo. Embora Lee tenha sido vítima das chantagens de Baek e ter sido levada a cumprir uma pena por um assassinato que não cometeu, a personagem assume sua parcela de culpa na morte do garoto. E a consciência desse erro irá atormentá-la para sempre. O espectro de Won-mo não a perdoa e a amordaça, ato que pretende dizer: “Você errou tanto quanto ele, e por isso, merece ser punida como ele foi”. Diferentemente de muitas pessoas ressentidas que se apegam a uma ladainha de culpabilização do outro, Lee se implica com seu montante de culpa e sofre com ele. Lee pune Baek por tê-la feito passar treze anos na prisão pela morte de um garoto, e também por ter tomado sua filha e a usado em um joguete de chantagem. Já quanto ao seqüestro, Lee assume sua responsabilidade, pagando por ele tanto na prisão quanto nos tormentos diários animados por uma intensa culpa. Na última cena, Lee sai e compra um bolo completamente branco que mais se assemelha a um bloco de neve. No caminho de volta para casa, a personagem encontra a filha. Durante a cena, uma narração surge e diz que Lee ainda não conseguiu encontrar a redenção, e que apesar disso, ou por causa disso, a narradora diz gostar dela. Lee se volta à filha e diz: “Seja transparente. Como isso.” e aponta para o bolo que acabara de comprar. A filha passa o dedo sobre a cobertura do confeite e incita a mãe a experimentá-la. Lee não aceita. A personagem percebe que a pureza e a transparência simbolizadas pelo bolo são atributos que não mais lhe dizem respeito. Se a filha precisou apenas lamber dedadas do bolo branco para se purificar, Lee precisou enfiar o rosto no bolo e devora-lo com avidez. A película termina assim, em uma tentativa desesperada e de reaver uma pureza e inocência perdida ao longo de um trajeto marcado pela violência. Lady Vingança e a psicanálise. O Projeto de Dharma Lady Vingança é um filme dividido em quatro partes: Liberdade, O Projeto de Dharma, Adiamento e Baek. Ainda na prisão, Geum-ja se encarregou de cuidar de uma velha detenta chamada Ko Suun-Kook. A senhora havia sido uma espiã da Coréia do Norte e presenteou Lee com um livro amarelo, dizendo: “Eu te dou esta flor para que leve a sua vingança adiante.”. O livro, que continha o projeto para a fabricação da arma usada posteriormente pela protagonista, tornou-se o guia para a execução de sua vingança. A segunda parte da película – O Projeto de Dharma – se baseia no conteúdo deste livreto. Embora esse contivesse um material que serviu de norte para a campanha vingativa de Lee, o opúsculo continha ensinamentos budistas. O budismo pode ser pensado como um “sistema básico de crenças: crença na docilidade e bondade essencial de todos os seres humanos, a crença no valor da compaixão, a crença numa política de benevolência e uma percepção do que há em comum entre as criaturas vivas.” 11 O objetivo central desse sistema de crença é obter um genuíno conhecimento da verdadeira natureza das coisas. Dharma, conceito central na doutrina budista, significa a 11 Howard C.Cluter. A arte da felicidade (São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.9). lei cósmica subjacente a toda e qualquer existência. O termo também designa os ensinamentos de Buda, e é considerado um dos três pilares do budismo, juntamente com Sangha, a comunidade de fiéis, e Buda, a figura reverenciada pela filosofia religiosa. O budismo se expandiu pelo continente asiático e possui três variações principais: Theravada, Vajrayana e Mahayana. Esta última é especialmente praticada na China, no Japão e na Coréia do Sul. O budismo Mahayana se sustenta na meditação e nas chamadas “Quatro nobres verdades”, são elas: 1) A vida é cheia de sofrimentos. 2) A maior parte deste sofrimento tem suas raízes no desejo, hábito mental que conduz as pessoas a verem tudo pelo prisma do seu eu e do seu bem estar. 3) Este desejo pode ser dirigido para o alcance da paz, e, possivelmente, a um estado de completa iluminação espiritual – o Nirvana. 4) Os meios para atingir o Nirvana repousam na trilha de oito passos: visão pessoal, resolução, discurso, ação, hábitos de vida, esforço, intensa vida mental e concentração.12 O budismo é uma doutrina filosófico-religiosa que considera a paz e a paciência duas das maiores virtudes. A vingança é um ato condenado por Dharma; segundo os ensinamentos budistas, “A vingança se resolve com a não vingança”. Diante de sentimentos vingativos, aconselha-se que o fiel reze para que sua perseverança ajude a purificar as falhas daquele que de alguma forma lhe fez mal. Lee, ao sair da prisão, com o livreto dourado em suas mãos, abandona o cristianismo e adota o budismo como sua doutrina filosófica. Quanto ao afã vingativo, tanto a religião cristã quanto o budismo adotam posicionamentos semelhantes. No catolicismo tem-se o adágio “Ofereça a outra face” e no budismo vislumbra-se o pacifismo resignado. A mudança de parâmetros religiosos, contudo, parece ser uma atitude estratégica por parte de Geum-ja. O budismo é uma filosofia que possui uma relação mais branda com a inculpação perante as falhas. Nessa doutrina não existe a concepção de um inferno terrificante ou de um deus opressivo e julgador. O budismo acredita na teoria do carma, ou seja, na concepção de que boas ações produzem efeitos 12 Achaan Buddhadasa. A causa do sofrimento na perspectiva budista. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1998. positivos e que as más ações produzem efeitos negativos. O carma não se relaciona com a idéia de justiça ou punição, os budistas crêem que o carma é uma conseqüência das próprias leis da natureza. Além de o budismo oferecer maior benevolência perante os erros de seus seguidores, essa doutrina louva a concentração como uma das maneiras para se alcançar a iluminação espiritual. O diretor Park-Chan wook, quando disse que sua escolha por uma mulher para interpretar o personagem central de Lady Vingança foi influenciada pela sua crença de que só uma mulher possuiria as virtudes necessárias para interpretar o papel, não deixou muito claro quais seriam essas virtudes. Mas é possível supor que uma dessas virtudes seja a concentração, um dos oito passas para se atingir o Nirvana. Lee é extremamente focada em sua empreitada vingativa, manejando suas ações com cautela e minúcia. Talvez um homem fosse mais explosivo em suas ações, bem como não seria capaz de conceder sua vingança a outros, tal como Lee fez em relação aos familiares das crianças seqüestradas e assassinadas. A concentração, portanto, é um aspecto central na estruturação da personalidade de Geum-ja. Os ensinamentos budistas podem ter sido usados como uma maneira de incrementar seu centramento e permitir a realização de seus objetivos. O estereótipo de mulher vingativa sob um viés histórico Para que se efetue uma compreensão apurada acerca dos possíveis motivos que levaram à criação do estereotipo feminino ávido por vingança, faz-se necessário traçar uma perspectiva histórica que contemple a trajetória da mulher ao longo dos anos. Uma compreensão histórica é salutar, afinal, tal como coloca Foucault, os discursos sobre o sujeito e o sexo são historicamente determinados. 13 Em seu livro A história do mundo pela mulher14 (1989), Rosalind Miles, expoente do movimento feminista mundial, busca apresentar uma História na qual a mulher também se fizesse presente, não sendo apenas uma mera coadjuvante no “registro dos crimes, loucuras e infelicidades do homem”, definição dada por Gibbon, 13 Néri, Regina. O encontro entre a psicanálise e o feminino, sigularidade/diferença. In: Feminilidades, 2002. 14 Rosalind Miles, A história do mundo pela mulher (Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1988). historiador do Império Romano, sobre o que é a história. Nesse esforço de contar a trajetória da espécie humana incluindo a participação do sexo feminino, Miles busca fontes, materiais e indícios (arqueológicos, biológicos, literários, teológicos e outros) que remontam da pré-história até os movimentos feministas do século XX. “Pois no início, quando a humanidade emergiu da escuridão da pré-história, Deus era mulher.” (p.40). Miles relata que durante 25000 anos a feminilidade possuiu um estatuto sagrado. Neste período, predominava a adoração da Grande Mãe, deidade que era venerada em diversas partes do globo, assumindo distintas características a depender da localização geográfica dos povos que a reverenciavam. Essa sacralização do feminino pode ser atribuída a vários fatores. Entre eles tem-se a observação das mulheres e de seus ciclos menstruais que fez com que recaísse no feminino certa mistificação, uma vez que seus recorrentes e não fatais sangramentos inquietavam os homens. Além disso, a mulher possuía uma relação íntima com a natureza, sendo capaz de fazer frutificar a terra com a sua horticultura. Esta prática estarrecia os homens, em vista que se ocupavam primordialmente com a caça e não eram capazes de compreender de que modo os frutos cresciam na terra. Mas, principalmente, a mulher era venerada em função de sua capacidade de gerar vidas. Antes de o processo reprodutivo ser integralmente conhecido, não era feita nenhuma ligação causal entre o ato sexual e o nascimento. Assim, apenas à mulher era creditada a competência de suscitar vidas, restando aos homens se assombrarem diante da gestação e do parto. Nas sociedades que cultuavam a Grande Mãe, portanto, as mulheres gozavam de grandes privilégios. Nos matriarcados não era antinatural ou anômalo o engajamento feminino em atividades sociais em parceria com o homem. A deidade feminina possuía características antitéticas representadas pelos aspectos de “vida” e “morte”. A “vida” podia ser vislumbrada a partir da habilidade da Grande Mãe de gerar filhos; já seu aspecto mortífero era vinculado a sua sexualidade e sua avidez por sexo. O aspecto destrutivo da Deusa pode ser entrevisto em relatos do folclore irlandês que datam de 1000 A.C. Nestas descrições um trio de deusas denominadas Morrigan assombrava os campos de batalha ao coletar cabeças decepadas e exibindo-as aos soldados moribundos. Na pérsia, adoradores de uma deusa chamada Ampusa criam que ela passeava pelo mundo em uma bolha de sangue procurando alguém para sacrificar. Inúmeros indícios insinuam a crença existente na Deusa e no seu caráter lascivo e mortífero que buscava homens para amar e imolar. A partir disso, antevê-se que há muito se faz presente na história humana a vinculação entre o feminino não apenas com a geração de vidas, mas também com a destrutividade. Ao feminino era associada uma miríade de traços bélicos, intempestivos e impudicos. A Deusa, amiúde, era retratada como possuidora de ímpetos vingativos dirigidos àqueles homens que não foram capazes de lhe satisfazer. Há milhares de anos, portanto, já é possível encontrar atrelamentos entre o feminino e a conduta vingativa. Ainda de acordo com Miles, o fim do matriarcado se deu a partir do momento em que foi compreendida a relação existente entre o ato sexual e o nascimento dos bebês. Os homens passaram a perceber que também possuíam um papel na procriação, o que irrompeu no destronamento da primazia materna. Além disso, a explosão populacional ocorrida por volta de 8000 A.C, acarretou mudanças significativas no modo como se dava a produção alimentícia, assim como a movimentação populacional pelas terras produtivas. A explosão demográfica deste momento histórico levou a substituição da horticultura praticada pelas mulheres por uma forma de produção de alimentos mais sistematizada representada pela agricultura. Com isso, a mulher foi novamente deslocada de sua posição proeminente na lida com a terra; o desenvolvimento da agricultura demonstrou que não havia nada de mágico na fertilização das terras, pelo contrário, esta obedecia a uma lógica causal entre plantio e colheita, associados a cuidados específicos como a regadura do cultivo. O aumento numérico da população também conduziu à escassez, levando sociedades ao redor do mundo a adotarem o nomadismo como forma de sobreviverem. Cada vez que era necessário se deslocar de uma região na qual se extinguiam os recursos de sobrevivência para outra na qual esses eram fartos, não raro combates e guerras ocorriam, e os homens peremptoriamente se destacavam em tais empreitadas. Com tais vicissitudes ocorreu, então, a transferência de poder da fêmea para o macho. O primado do matriarcalismo chegava a seu fim e dava início a uma configuração de relação de gêneros que perdurou e perdura até a atualidade. Curiosamente, se à mulher é comumente atribuído o rótulo de vingativa, percebe-se com essa retomada algo como uma vingança histórica do masculino. “Será talvez por espírito de vingança que os homens há tantos séculos fizeram da mulher sua escrava?”15 A teoria de Miles é que o período de aproximadamente 25000 no qual a mulher ocupou um status proeminente nas mais diversas sociedades proporcionou o 15 Carpenter, Edward In: A história do mundo pela mulher. Miles, Rosalind (1989). P.91. surgimento de um pesado ressentimento dos homens diante do feminino. Ao assumirem a condição de “sexo forte” os homens aviltaram a condição feminina e pintaram a mulher como um ser inferior, defeituoso, incapaz, sujo e pecaminoso. Com o surgimento das grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – a condição de inferioridade da mulher foi perpetuada. O mito de Adão e Eva talvez seja a crença religiosa que mais depreciou o feminino, esboçando a mulher primeva de modo pecaminoso, sedutor, fraco e ardiloso. Na Bíblia, a mãe de todas as mulheres procedeu a seu bel-prazer, espezinhando o mandamento de Deus de não comer o fruto proibido. Na Igreja cristã, a altivez feminina se somava a sua impureza. Havia a crença, no século XII, de que abraçar uma mulher se equivalia a abraçar um saco de esterco. No Islamismo, um mensageiro de Allah revela: “Parei junto às portas do Inferno e a maioria dos que entravam era de mulheres” (p.109). Assim, observa-se que historicamente encontramos uma série de fatos que possam ter auxiliado na construção de um estereotipo negativo da mulher. Mas por que a insistência do homem em projetar características tão pejorativas à mulher? Tem-se a hipótese de vingança, segundo a qual os homens estariam buscando uma desforra pelo longo primado do matriarcalismo. Contudo, podem-se buscar no corpo feminino as origens para o envilecimento das mulheres. Se Freud, no século XX falava do continente negro que a mulher representava, insinuando o enigma do feminino, não é surpreendente observar a incompreensão do homem antigo perante a mulher. O comportamento feminino durante e após a atividade sexual estarrecia os homens, estes achavam que a mulher possuía dentro de si algo misterioso que sugava as energias masculinas no momento da cópula. Enquanto o homem exauria suas forças durante a investida sexual, a mulher parecia não sofrer com isso, sendo capaz de copular inúmeras vezes. Esse comportamento intrigava os homens, fazendo-os acreditar que a mulher possuía no interior de seu corpo algo diabólico que sugava a energia do macho. A menstruação, por seu turno, também foi designada como uma atividade demoníaca, em vista que por mais sangue que saísse durante a regra, a mulher permanecia saudável e aparentemente incólume aos sangramentos. O sangue em muitas religiões é o símbolo mor da impureza; em textos judaicos, por exemplo, a mulher menstruada é considerada como niddah, ou seja, impura. Durante este período lhe é vetado o convívio familiar, assim como entrar em sinagogas. Outra parte do corpo feminino que foi atacado por ser considerado perigoso foi a língua. Esta era vista como um órgão ameaçador por propiciar a fala que, quando executada por uma mulher, era considerada essencialmente sedutora ou resmungona. A mulher silente era valorizada, sendo considerada um ideal feminino. Este aspecto é especialmente interessante, uma vez que atos de vingança freqüentemente surgem quando há restrições na articulação simbólica. A linguagem é um instrumento poderoso que permite ao sujeito aviltado fazer uso da fala para ressignificar o que lhe ocorreu. Jacques Allain Miller expõe no livro Percurso de Lacan – Uma Introdução16 a vertente pacificadora da palavra. O autor trabalha a noção esboçada acima de que o imaginário é “fundamentalmente uma dimensão de guerra, de rivalidade mortal” (p.19). Já a palavra é vista como “função de mediação entre os sujeitos” (p.19). O sintoma, portanto, emerge de um defeito de simbolização. Aquele material não dito, e que no fenômeno vingativo é remoído por meio do ressentimento, serve de catalisador à rivalidade imaginária. A cura analítica pode se dar justamente nessa direção, uma vez que interrompe as formações inérticas do imaginário e propicia a articulação simbólica. “A cura é um processo fundamentalmente intersubjetivo no decorrer do qual o sujeito é levado a restabelecer a continuidade de sua história, interrompida pelo sintoma.” (p.19) Historicamente, outro rótulo atribuído ao feminino diz respeito à passividade. Muito antes de Freud proceder as suas primeiras teorizações acerca da sexualidade feminina, traçando uma dialética fálica que opõe masculino-fálico-atividade/femininocastrado-passividade, Aristóteles, no século IV A.C, já dizia a respeito das diferenças sexuais: “O homem é ativo, cheio de movimento, criativo na política, nos negócios e na cultura. O macho dá forma e configura a sociedade e o mundo. A mulher, por outro lado, é passiva. Ela fica em casa, segundo sua natureza. Ela é matéria aguardando para ser formada pelo princípio ativo do macho.”17 (p.76). Aristóteles não foi o único a enxergar a mulher como um ser essencialmente passivo; acreditou-se durante longo período que a fêmea se aproximava a uma espécie de incubadora, de receptáculo não só da semente masculina durante a reprodução como também dos cuidados e imposições do homem. 16 17 Jacques Allain Miller, Percurso de Lacan – Uma Introdução (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988). Rosalind Miles, A história do mundo pela mulher (Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1988). Nesse sentido, faz-se necessário o resgate da consideração efetuada por Freud acerca do jogo do carretel ou do fort-da presente em “Além do Princípio do Prazer” (1920). Neste texto, Freud relata a brincadeira constantemente praticada por um menino de um ano e meio com seu carretel de madeira. Resumidamente, o garoto jogava o seu carretel preso por uma corda para fora do encortinado que envolvia sua caminha. Ao fazê-lo, o menino proferia um longo ‘o-o-o-ó’ que pode ser interpretado coma a representação da palavra em alemão fort, que em português significa “foi embora”. Logo após, o garoto puxava o carretel para perto si e dizia um alegre da que, traduzido, significa “ali” ou “voltou”. A brincadeira, portanto, consistia na alternância entre desaparecimento e retorno. Freud analisou o jogo como uma transformação da experiência a qual o menino era cotidianamente sujeitado - o da saída de casa precedido pelo retorno ao lar de sua mãe. A criança teria então encontrado a sua maneira de lidar ou dominar a situação que lhe causava desconforto com o manuseio do jogo simbólico. Por meio deste, o garoto foi capaz de sair da passividade, ou seja, do sujeitamento à arbitrariedade das idas e vindas maternas e assumir uma condição ativa em que ele próprio controlava a ausência e o reaparecimento de sua mãe pela via lúdica. Na brincadeira do fort-da revela-se uma sutil vingança do garoto que ao executála parece dizer: ‘Pois bem, então vá embora! Não preciso de você. Sou eu quem estou mandando você embora’(p.28). A vingança, em termos gerais, pode ser vista como uma mudança de papéis. O subjugado, humilhado e ferido, ao vingar-se, incorpora o papel ativo de algoz que se regozija com sua posição de superioridade. Vingar-se implica necessariamente na passagem da passividade para atividade. Com isso, observa-se uma contradição – se à mulher, ao longo dos tempos, foi projetado atributos vis, inclusive o de vingativa, a característica referente ao seu caráter passivo, sublinhada pela passagem supracitada de Aristóteles, não condiz com estereotipo da mulher que anseia por vingança. Passividade e desforra são duas atitudes que não se ajustam, sendo paradoxal a coexistência de ambas na configuração estereotípica feminina. Tal contra-senso será mais bem trabalhado no desfecho deste tópico. Para dar continuidade ao trajeto histórico que tem como escopo a elucidação da visão generalizada ainda presente da fêmea ávida por vingança, é fundamental retomar um período histórico no qual o obscurantismo foi associado à concepção do feminino. Na Idade Média, os homens acusavam as mulheres de feitiçaria, punindo-as com a morte na fogueira. Os homens da época acreditavam que as feiticeiras eram discípulas do Diabo, sendo capazes de cometerem sortilégios para se vingarem de seus detratores. Até o Renascimento vigorou a ideologia disseminada em grande parte pelo cristianismo que estabeleceu uma relação entre a mulher, o sexo e o mal. Até o século XVIII o feminino foi vinculado à noção de perigo e ao diabólico. A mulher era encarada como um ser inclinado à “luxúria e aos excessos sexuais, portadoras do mal e da morte” 18 . Foi apenas com o esforço de alguns filósofos, médicos e moralistas do século XVIII que essa concepção começou a se alterar. Quando foi proposto que à mulher deveria ser dada a incumbência de ser a guardiã da família e da infância, foi necessário re-qualificála, ou melhor, transformá-la de mulher à mãe. No século XIX, observou-se uma dupla imagem do feminino. A idéia do ser frágil, dependente e passivo foi fortalecida. Em oposição, ainda era patente a noção de que a mulher possuía um poder sexual em demasia, passível de ameaçar a estabilidade do modelo familiar burguês. Foi neste contexto que Freud surgiu trazendo um novo olhar a questão do feminino. Ele construiu uma teoria acerca das afecções histéricas que buscava alterar a imagem desqualificada da histeria, quadro até então estigmatizado e marginalizado por suscitar uma completa incompreensão na medicina vigente na época. Freud, em seus primeiros estudos referentes à histeria, ressaltava as qualidades intelectuais e morais de suas pacientes histéricas. Na descrição do caso de Frau Emmy, por exemplo, a jovem foi retratada como uma figura de caráter impecável, com grande inteligência e energia, e alto grau de comprometimento com a verdade e o bem-estar de todos. Breuer, por sua vez, também pintou Anna O. como uma jovem inteligente, forte e criativa, possuidora de aguçados sensos crítico e de justiça.19 Dora, além de sublinhar o fato de que mulheres histéricas não eram figuras degeneradas, pelo contrário, muitas delas eram intelectualmente privilegiadas, também mostrou a Freud um feminino rebelde e desejante. Os sintomas eram suas armas de reivindicação e também de vingança em relação ao pai, ao Sr.K e a toda uma sociedade que tolhia a manifestação da sexualidade feminina. Nunes, Silvia Alexim. “O feminino e seus destinos: maternidade, enigma e feminilidade” In: Feminilidades (2002).p.37. 19 Arthur Schopenhauer, misógino notório, efetuou a seguinte declaração acerca da relação entre as mulheres e a justiça: “As mulheres, que por fraqueza de razão, são muito menos capacitadas do que os homens para compreender, memorizar e assumir como norma os princípios gerais, são em regra inferiores aos homens em relação à virtude da justiça e, portanto, também em relação à honestidade e à escrupulosidade. Sendo assim, a injustiça e a falsidade são seus vícios mais comuns, e a mentira, seu elemento característico. [...] A idéia de ver as mulheres exercendo uma função judicial é risível.” Franco Volpi, A arte de insultar (São Paulo: Martins Fontes, 2003) p.146. 18 Porém, foi no texto de 1910, “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”, que a mulher assumiu definitivamente seu caráter ambivalente na obra freudiana. O sorriso de Mona Lisa seria uma representação fiel do enigma que ronda a mulher que ora se exibe com ternura e delicadeza, e ora com uma sexualidade em excesso passível de destruir o homem. Uma das representações mais controversas acerca da natureza feminina na obra freudiana pode ser encontrada no texto de 1914 “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Neste, o autor situa o narcisismo como uma qualidade inerente à mulher, postulando que essas fazem escolhas objetais majoritariamente narcísicas, ou seja, preferem ser amadas do que amar. Segundo Nunes, Freud “confere ao feminino completude e onipotência que o situam em posição de indesejável auto-suficiência. A mulher, fixada em seu narcisismo, representaria uma ameaça ao homem e à sociedade por fugir ao controle e porque sua essência egoísta se voltaria para seus próprios interesses, em detrimento dos valores altruístas, familiares e sociais.” (p.50). A partir de pressupostos freudianos, podemos pensar que quem se vinga é motivado por uma ferida narcísica que pulsa e urge por um tamponamento. Essa vedação, que pode ser alcançada pelo ato vingativo, aparentemente restituí algo perdido em função de uma injúria. Assim, se a mulher é concebida neste momento da obra freudiana como uma figura narcisista, inclinada a atos egoístas que privilegiam suprir seus próprios interesses, pode-se inferir que, embora Freud não tenha tecido considerações que abordassem diretamente possíveis relações entre o feminino e o fenômeno vingativo, ele a considerava inclinada a práticas vingativas. Essa concepção freudiana de mulher ameaçadora é fortalecida no texto de 1917 “O tabu da virgindade”. Neste, o autor justifica o temor existente em relação à sexualidade feminina em função de uma agressividade feminina que julgava real. Freud cria que a mulher, mobilizada pelo complexo de castração e a inveja do pênis, desejaria obter algo semelhante a uma desforra, ou seja, ambicionaria tornar-se a castradora e não a castrada. A psicanálise, portanto, embora quando de seu surgimento tenha auxiliado a desvirtuar a imagem de mulher dócil, fraca e defeituosa que imperava nas mais diversas searas da época, acabou dando continuidade a alguns estereótipos presentes há muito na história humana. Se Freud, no início de suas teorizações acerca da histeria no final do século XIX e início do XX buscou ressaltar as qualidades intelectuais e de caráter de suas pacientes histéricas, em trabalhos ulteriores ele se perde em um “continente negro” e resgata suposições arcaicas em relação ao feminino. O autor retoma concepções que pintavam a mulher como uma figura ameaçadora, agressiva, portadora de uma sexualidade excessiva e de interesses egoístas. O que levou Freud a se posicionar de maneiras tão distintas frente a uma mesma temática não é muito claro. Sarah Kauffman,20 em seu estudo sobre o narcisismo feminino, é levada a crer que a mulher tornou-se um tópico tão obscuro e enigmático aos olhos de Freud após seu trabalho referente ao narcisismo. A autora considera que a incompreensão que ronda o feminino em Freud se deve a auto-suficiência e indiferença que portam as mulheres. Assim, o conceito de inveja do pênis protagoniza uma contradição teórica após o surgimento do trabalho de 1914 referente ao narcisismo. Neste, as mulheres, especialmente as belas, não são mais invejosas, mas sim altivas e auto-suficientes, indiferentes diante da presença masculina. * Ao longo deste resgate histórico tornou-se evidente que sobre a mulher recaiu uma plêiade de adjetivos que comumente instauram relações ambíguas: “anjo ou demônio, santa ou prostituta, frígida ou lésbica, mãe devotada ou infanticida”21 Os rótulos de passiva e vingativa, por exemplo, são amostras que evidenciam a junção freqüente de adjetivos relativos ao feminino que são essencialmente antitéticos. A partir disso, chega-se em uma articulação efetuada por Lacan ao longo de sua obra que fala acerca da inexistência dA mulher. “A mulher não existe” nos diz Lacan em seu seminário XX intitulado “Mais, ainda”. Com isso, Lacan pretende dizer algo que foi insinuado ao longo deste resgate histórico acerca das representações do feminino ao longo dos tempos. A dificuldade de se encontrar um significante que defina o que seja uma mulher revela que esta se situa em um campo sobre o qual o simbólico não alcança, ou seja, a mulher se localiza fora da captura da linguagem. A mulher não existe, pois não se pode pensar em um significante da identidade feminina. A Mona Lisa, ora terna ora ameaçadora, interpõe o impasse de se definir no que consiste uma mulher. Se ao longo dos tempos prevaleceu a imposição de adjetivos essencialmente ruins ao universo feminino, o surgimento da noção de maternidade, bem como os movimentos sociais de 1968, possibilitaram a 20 Silva Alexim Nunes, O feminino e seus destinos: maternidade, enigma e feminilidade, In: Feminilidades. (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002). 21 Idem.p.49. vinculação do feminino a conceitos positivos. As noções referentes à responsabilidade e amabilidade materna atritam com noções distintas que tacham a mulher como uma figura egoísta, imprevisível e destrutiva. A mulher não existe como um todo, e por isso, deve ser pensada uma a uma. A mulher á cindida, pois não pode ser toda situada na função fálica. Ela se situa em um gozo fálico e em um gozo a mais denominado para além do Falo. A mulher não existe como conjunto, ela habita o vazio da inexistência de um único significante para nomeála, vazio que é comumente suplantado pelo semblante - "Ela finge, finge que ama ..."22 Geum –ja Lee, protagonista de Lady Vingança, personifica as ambigüidades do feminino. Na cadeia, a personagem era vista como santa, mas também como bruxa. A jovem zelava pelo bem-estar de suas companheiras de cela, nem que para isso precisasse cometer um assassinato na prisão. Lee transita sobre a impossibilidade de nomeá-la com um único significante, a personagem é mãe e mulher, heterossexual e lésbica, impulsiva e paciente, misericordiosa e vingativa. Lee reitera o ditado popular sul-coreano de que quando uma mulher busca uma vingança ela é capaz de fazer nevar até mesmo no verão. A personagem, ao levar sua represália às últimas conseqüências, intensifica o imaginário da mulher ávida por vingança. Seja no cinema, na literatura, na psicanálise ou ao longo da história, é possível encontrar inúmeras representações do feminino que dão respaldo ao estereótipo de mulher vingativa. Contudo, ao tomar como referência contribuições advindas da teoria lacaniana, pode-se notar que não é possível circunscrever o feminino a qualquer conceituação taxativa. A mulher não se encaixa em um significante prévio que define a sua identidade. Assim, a mulher não é anjo ou demônio, santa ou prostituta, frígida ou lésbica, mãe devotada ou infanticida, e também não é misericordiosa ou vingativa... Mais do que pertencente a um sexo, o(a) vingativo(a) é um sujeito que teve seu narcisismo ferido, seu desejo desrespeitado. Quem se vinga busca estancar uma ferida narcísica lancetada por alguém. O vingador não é determinado pela sua constituição anatômica, mas sim por quanto estaria disposto a simbolizar sua ferida com um ato de desforra. Homem ou mulher, o sujeito que opta por vingar-se de alguém o faz por uma escolha que perpassa pela economia libidinal – alguém que foi humilhado pode simplesmente esquecer, investindo libidinalmente outros objetos, contudo, há quem 22 . GRANT, Walkiria Helena. A mascarada e a feminilidade. 1998. invista sua libido na chaga que lhe foi aberta pela humilhação, e também no algoz ao qual é creditada a plena responsabilidade pelo seu sofrimento. Quem se vinga, indiferentemente da genitalidade, o faz por uma fixidez libidinal, por um excesso de libido narcísica que o qualifica como superior aos outros, e por isso, digno de proceder de acordo com suas próprias leis. É fundamental salientar que a vingança pode ser compreendida a partir de uma série de abordagens, até mesmo dentro da psicanálise. Aqui privilegiamos um determinado viés, contudo, existe uma série de subsídios que podem contemplar o fenômeno vingativo quando pensamos, por exemplo, na teoria lacaniana. O gozo, o estádio do espelho, a agressividade e angústia são elementos que certamente poderiam contribuir nessa discussão, contudo, foi necessário estabelecer um recorte teórico, tendo sido privilegiado, no plano psicanalítico, a perspectiva freudiana. BIBLIOGRAFIA BIRMAN, Joel. Feminilidades. Rio de Janeiro: Contra Capa,2002. BUDDHADASA, Achaan. A causa do sofrimento na perspectiva budista. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1998. CUTLER, Howard C. A arte da felicidade: um manual para a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FEGHALI, Jandira; MENDES, Candido; LEMGRUBER, Julita. Reflexões sobre a violência urbana: (in)segurança e (des)esperanças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. 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