A RECEITA DO PENSAMENTO INTEgRADOR

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A RECEITA DO PENSAMENTO INTEgRADOR
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AlTA gERêNCIA
A RECEITA DO
PENSAMENTO
INTEgRADOR
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HSMManagement 89 • nOVeMbRO-deZeMbRO 2011 hsmmanagement.com.br
N
Roger Martin e
Jennifer Riel,
experts da Rotman
School, mostram,
com exemplos reais,
que as melhores
decisões gerenciais
são estruturadas
com uma lógica
condicional
os dias mais esfuziantes
do boom das ponto.com,
a convergência era o
grande furor. A nova
economia estava prestes
a desbancar a velha e só se viam no futuro comércio online, cliques e URLs.
Novos modelos de negócio baseados
no mundo virtual fizeram com que
negócios tradicionais, do mundo real,
parecessem antigos e desinteressantes.
Nada resume tão bem o espírito do
boom quanto a fusão da AOL com a
Time Warner no ano 2000. Foi uma
transação gigantesca, a maior da história: a audaciosa AOL comprou a
venerável Time Warner por US$ 160
bilhões em ações, criando uma fortaleza das novas mídias, totalmente integradas, de US$ 350 bilhões.
O então presidente da Time Warner,
Gerald Levin, defendeu a fusão destacando as sinergias que seriam geradas
entre o maior provedor de serviços de
internet do mundo e uma gigante da
mídia que ainda não havia desvendado
os segredos da oferta de conteúdo online: “Essa combinação estratégica com
a AOL acelera a transformação digital
da Time Warner, dando a nossas áreas
de criação e conteúdo um quadro em
branco enorme para ser preenchido”.
Infelizmente, a fusão descambou
quase logo depois e, dez anos mais
SINOPSE
•• A fusão da AOL com a Time Warner no ano 2000 fez muito barulho,
mas não teve os resultados esperados. Motivo: tanto os executivos
da AOL como os da Time Warner tinham sido vítimas do próprio
pensamento; apenas queriam fundir lógicas conflitantes.
•• Eles não escolheram o caminho do pensamento integrador, que
leva em consideração vários aspectos do problema e as relações
causais entre eles. Quem se vale dessa abordagem é capaz de
manter o problema completo em mente e encontrar soluções
criativas e faz tudo isso de forma explícita, esforçando-se para
entender “o pensamento por trás do próprio pensamento”.
•• Um exemplo positivo de utilização do pensamento integrador é
o Festival de Cinema de Toronto, que conseguiu obter sucesso
de crítica e público e se tornou porta de entrada do mercado
cinematográfico norte-americano. [A Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo segue lógica similar.]
tarde, as empresas, agora independentes, valem apenas um sétimo do valor
de antes da fusão. Como tudo pôde ter
dado tão errado?
Alguns argumentam que o insucesso foi apenas uma questão de timing,
que uma boa ideia (a convergência
entre serviços e conteúdo de internet)
se desfez pelo estouro da bolha das
ponto.com.
Ou talvez –e é essa nossa teoria– os
executivos da AOL e Time Warner
tenham sido vítimas do próprio pensamento, de uma vontade despreocupada de fundir lógicas conflitantes. A
tensão de ideias opostas deve ser usada
de modo explícito, e nunca despreocupado, se o objetivo for gerar novas e
melhores soluções.
SE + ENTÃO + MAS
(no caso AOL Time Warner)
É um erro comum enxergar só o que
queremos enxergar, sem fazer as perguntas mais difíceis, testar suposições
ou buscar entender de que maneira
causas e efeitos estão conectados.
Vamos pensar no caso que acabamos
de descrever. A Time Warner tinha um
problema: não sabia como fazer as
pessoas pagar por seu conteúdo online
e se preocupava com a possibilidade
de que, em um futuro completamente
digital, um modelo de assinatura paga
desaparecesse.
Surgiu, então, a AOL, impelida pelo
boom das ponto.com. Ela tinha vasto
público pagante, aparentemente sedento de informação. Juntas, AOL e
Time Warner partiram da seguinte
suposição: unidas poderiam oferecer
aos consumidores da AOL o conteúdo
Roger Martin é diretor da Rotman
School of Management, da University
of Toronto, do Canadá, professor de
gerenciamento estratégico e autor
de Design de negócios (ed. Campus/
Elsevier). Jennifer Riel é diretora associada do centro de pensamento integrador da Rotman School, que leva
o nome de Desautels.
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A receita do
pensamento
integrador
Alta gerência
valioso da Timer Warner, um diferencial entre os provedores de serviços de
internet. Além disso, a fusão daria à
AOL o direito de utilizar os cabos de
banda larga da Time Warner, aumentando sua capacidade de entrega de
conteúdo de qualidade. Parecia uma
solução perfeita, mas apenas se não
examinarmos de perto o pensamento
por trás dela.
No fim das contas, havia somente
duas situações possíveis em relação ao novo modelo da AOL Time
Warner. Em uma delas, era possível que os clientes da AOL não se
interessassem muito pelo conteúdo
próprio da nova empresa e, portanto, não haveria vantagem para
a AOL Time Warner em possuir
esse conteúdo. Nesse caso, oferecer
conteúdo próprio era má ideia.
Na outra situação, os consumidores
poderiam gostar muito do conteúdo
próprio e rumar aos montes em direção à AOL. Aí tudo começaria a parecer mais interessante. Até considerarmos, porém, dois aspectos: a natureza
do setor naquela época e a provável
resposta da concorrência.
Quanto à natureza do setor na época,
a AOL tinha por volta de 25 milhões de
assinantes, o que correspondia a mais
ou menos 30% de participação em
um mercado que crescia muito rapidamente e estava em constante transformação. Os lançamentos de novas
tecnologias cada vez mais frequentes e
a rápida elevação do número de consumidores online colocavam essa participação de mercado em risco quase
constante.
Na frente competitiva, era pouco
provável que os concorrentes simplesmente assistissem à AOL roubar seu
ganha-pão graças ao conteúdo Time
Warner. Eles lançariam conteúdo online e se recusariam a distribuir qualquer coisa que a Time Warner produzisse, sendo online ou não. O resultado
seria uma briga sangrenta, que se estenderia para além do mundo online
até os espaços de mídias tradicionais,
com efeito devastador para a lucratividade da Time Warner.
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os gestores da aol time warner
tentaram obter o melhor de dois
mundos, mas sem a lógica condicional
Na verdade, ao escolher criar diferenciação por meio de conteúdo
próprio, a AOL Time Warner não
conseguiu entender a lógica por trás
de suas escolhas. Nesse caso, havia
duas construções condicionais do
tipo “se, então, mas”:
“Se” os consumidores não se interessarem tanto por conteúdo
proprietário, “então” os concorrentes não retaliarão agressivamente
quando fecharmos nosso conteúdo,
“mas” nós não ganharemos dinheiro
com o sucesso da iniciativa.
“Se” os consumidores se interessarem muito por conteúdo
proprietário, “então” nós poderemos ganhar participação de mercado por meio da AOL e cobrar caro por
nosso conteúdo, “mas” isso levará a
uma retaliação da concorrência e batalha sangrenta nos negócios ligados a
conteúdo.
As pessoas responsáveis pela fusão
AOL Time Warner na época fizeram
uma suposição (um “se”) e misturaram--na com os efeitos (os “então”). Ao
fazer isso, criaram uma estrutura sem
sentido, que não tinha apoio dos fatos:
“se” os consumidores se interessarem
muito por conteúdo proprietário, “então” os concorrentes não retaliarão
agressivamente quando fecharmos nosso conteúdo “e” nós poderemos ganhar
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participação de mercado por meio da
AOL e cobrar caro por nosso conteúdo.
A AOL Time Warner tentou obter o
melhor de dois mundos, mas seus gestores quiseram fazê-lo sem se dedicar
ao trabalho duro de descobrir um mecanismo por meio do qual o novo modelo funcionaria. Eles imaginaram um
mundo maravilhoso no qual desejariam muito viver, mas não investiram
tempo para descobrir como chegar lá
–por meio da lógica condicional [veja
quadro na página 168].
É perfeitamente possível, sim, ter
uma abordagem sofisticada e rigorosa
para pensar relações causais: aqueles
que pensam de forma integrada fazem
isso o tempo todo. O ponto de partida é
o de que alguns líderes de muito sucesso, em vez de aceitar os trade-offs que
o mundo apresenta, incumbem-se de
superar essa situação e construir um
modelo novo que resolva tudo melhor
e crie valor.
SE + ENTÃO + MAS
(no caso Festival de Cinema de Toronto)
Um bom exemplo dessa abordagem
integradora vem da história de Piers
Handling, diretor do Festival Internacional de Cinema de Toronto. Antes de
Handling, a maioria dos festivais de cinema operava com base numa relação
condicional simplista:
A receita do
pensamento
integrador
Alta gerência
A estrutura da
lógica condicional
Cenário 1
Benefício-chave
Consequência
indesejada
Cenário 1
Benefício-chave
Consequência
indesejada
1
“Se” você criar exclusividade,
“então” você gerará buzz (ou
seja, interesse da mídia), fazendo com que a indústria queira ir ao
evento, “mas” a comunidade local ficará totalmente isolada da diversão.
Nessa estrutura, o festival convida
pequeno número de filmes a participar
e tem um júri composto de pessoas da
indústria para premiar um dos poucos
privilegiados. A presença das estrelas
e a divulgação de um grande prêmio
chamam a atenção da mídia para os
filmes e deixam a indústria feliz, mas a
comunidade local é totalmente excluída do festival; no máximo consegue
ficar atrás das cordas de veludo na esperança de ver uma ou duas estrelas de
cinema.
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SE
ENTÃO
MAS
Cenário 2
Benefício-chave
Consequência
indesejada
SE
ENTÃO
MAS
Cenário 2
Benefício-chave
Consequência
indesejada
Esse modelo excludente é o que
predomina em festivais de cinema no
mundo todo, mas não é a única opção.
Há também um segundo tipo de festival, baseado em outra sequência lógica
condicional:
“Se” você criar inclusão, “então” desenvolverá uma comunidade local de amantes de
cinema, além de uma indústria local
vibrante, “mas” a maior parte da indústria estará bem menos interessada
em ir ao festival.
Esse segundo modelo é a base fundadora do Festival de Cinema de Toronto desde o princípio. O festival se
preocupa em ser o mais inclusivo possível, unindo-se à comunidade local e
nutrindo uma paixão por cinema den-
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tro dela. Isso cria uma base local forte
de frequentadores e voluntários, mas
não há tanta atração para a grande indústria de cinema.
Caso Handling não tivesse entendido a lógica causal em jogo, poderia
ter simplesmente presumido que não
havia problema e tentar mesclar os
dois modelos, sem questionar até que
ponto um movimento como esse seria
possível.
“Se” você criar inclusão, “então” gerará interesse da mídia,
fazendo com que a indústria
queira ir ao festival, “e” você desenvolverá uma comunidade de amantes locais de cinema, além de uma indústria
local vibrante.
Handling percebeu que a lógica causal não dava apoio à estrutura que ele
queria: um festival inclusivo e orientado à comunidade que também gerasse
notícia e chamasse a atenção da indústria. Quando ele assumiu a direção
do festival, em vez de ignorar a tensão
entre exclusividade e inclusão, ele trabalhou para encontrar um meio de
chegar a seu objetivo.
Para fazer isso, mergulhou na lógica
de cada um dos modelos para achar
um modo de ter ambos, buscando um
ponto de apoio que permitisse ao Festival Internacional de Cinema de Toronto ter tanto a atratividade gerada pela
exclusividade como todos os benefícios
da inclusão, tanto o envolvimento da
indústria como o apoio das bases.
Com sua equipe, Handling analisou
mais a fundo os aspectos de destaque
do problema e as relações causais. Ele
perguntou: quem tem mais importância para o festival e o que eles mais
querem? Ele pensou em incentivos
para todas as partes envolvidas: o público quer ver filmes que vão adorar (e
talvez ver Brad Pitt); estrelas querem a
atenção da mídia para seus filmes; patrocinadores querem exposição e acesso ao público; a imprensa quer uma
história para cobrir; e a indústria quer
um incentivo financeiro.
Nesses incentivos, Handling enxergou um modo de alavancar as relações
causais que os outros festivais não per-
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A receita do
pensamento
integrador
Alta gerência
Pensamento comum versus
pensamento integrador
Toda vez que nos vemos diante de uma decisão, seguimos ao menos dois passos básicos, não é?
1. Decidimos o que se destaca, escolhemos em que
prestar atenção, o que é relevante e o que não é.
2. Procuramos entender o que estamos vendo, observando as relações entre os fatos de destaque e levando em conta a lógica causal disponível. Arquitetamos o problema de
forma que ele faça sentido para nós, baseados nas variáveis
e em como elas interagem, e chegamos a uma solução.
A maioria de nós, em grande parte das vezes, faz o
máximo possível para simplificar esse processo: reduzimos o número de variáveis ao mínimo, pensamos nos
tipos mais simples e diretos de relações causais, dividimos o problema em partes que conseguimos gerenciar e então aceitamos como inevitáveis as concessões
(ou trade-offs) exigidas.
Fazemos tudo isso, porém, de modo implícito, erran-
ceberam. As pessoas mais “por dentro”
da indústria frequentam Cannes por
causa da Palma de Ouro, mas o maior
prêmio de Cannes é, em última instância, vazio. Os últimos cinco vencedores
conseguiram uma média de bilheteria
de apenas US$ 16,5 milhões cada um.
Isso acontece porque os vencedores
são os filmes favoritos de um pequeno grupo elitizado de iniciados. Nesse
caso, Toronto tinha uma vantagem:
uma enorme comunidade de amantes de cinema que se comportavam
(e gastavam) de forma semelhante ao
restante do mercado de cinema norte-americano.
Handling sabia que tinha um público
interessante, porque seus patrocinadores lhe disseram isso, e também sabia
que deveria alavancar a similaridade
dos públicos de Toronto e do resto do
mundo para dar um incentivo financeiro para a indústria e criar uma história para a imprensa, além de exposição para as estrelas. Mas como? Que
mecanismo ele poderia utilizar?
A resposta: o Prêmio Escolha do Público, que já constava do repertório do
festival, mas sem destaque. Handling
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do ao não analisar profundamente nosso raciocínio, em
cada estágio, e assim nos tornamos vítimas de um passo em falso na lógica.
Aqueles que pensam de forma integradora nos ensinam a:
• levar em consideração mais aspectos do problema como importantes para a resolução;
• cogitar tipos mais complexos de relações causais
entre os aspectos;
• manter o problema completo na mente enquanto
trabalhamos em partes individuais;
• achar soluções criativas.
E fazem tudo isso de forma explícita, esforçando-se para
entender “o pensamento por trás do próprio pensamento”, submetendo-o a um exame minucioso e procurando
falhas na subestrutura lógica.
entendeu que essa premiação seria um
sinal para produtores e distribuidores do que realmente faria sucesso no
mercado; caso se tornasse peça central do festival, ele criaria uma história
para a imprensa e um atrativo para as
estrelas. No final ele não poderia estar
mais certo. O Prêmio Escolha do Público tornou-se uma honra valorizada
e mundialmente reconhecida: os últimos cinco vencedores acabaram arrecadando uma média impressionante
de US$ 103 milhões e grande quantidade de indicações ao Oscar.
Handling conseguiu alavancar o
maior benefício do modelo inclusivo
(um público grande e altamente envolvido) e oferecer o maior benefício do
modelo exclusivo (espaço na mídia por
meio do envolvimento da indústria).
O crescimento do Festival Internacional de Cinema de Toronto baseado
no insight de Handling tem sido notável. Ele se tornou porta de entrada do
mercado de cinema norte-americano.
Handling demonstrou habilmente
quais são os ganhos possíveis quando mergulhamos nas lógicas causais
concorrentes e buscamos um modo
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de integrá-las de forma inteligente
e estratégica, em vez de misturá-las
sem a análise adequada.
Complexidade
“Sob que condições X causa Y?”, “Qual
é a força motriz dessa relação?”, “Quais
são os mecanismos por trás dela?”. Ao
fazer tais perguntas, quem pensa de forma integrada aceita que relações causais são obscuras, confusas e complexas. E explicitamente procura entender
o escopo completo dessas relações, de
múltiplas perspectivas, para construir
um modelo causal consistente.
Pensar na lógica de nossas escolhas
de maneira cuidadosa e explícita não
é algo automático. Mas, seguindo o
exemplo dos pensadores integradores,
podemos aprender a usar uma abordagem mais rigorosa para pensar sobre
as relações causais.
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