DINHEIRO, ASSUNTO DE FAMÍLIA

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DINHEIRO, ASSUNTO DE FAMÍLIA
Revista Valor Investe | Karin T. Sato
02/08/2011
DINHEIRO, ASSUNTO DE FAMÍLIA
"(...) Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma
grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o
dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou
isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro!" O poema, escrito por Cecília Meireles em
1964, nunca foi tão atual. Que criança tem consciência de que, se gastar todos os seus
recursos, ficará sem a guloseima? Em geral, elas querem tudo e, de preferência, agora. Mas
não as culpem, porque esse também é um equívoco cometido por adultos.
No dia a dia, nem todos resistem à oportunidade de parcelar um produto em dez vezes ou
trocar de carro, atraídos por prestações que, à primeira vista, não parecem tão altas. E se
para os adultos é difícil se controlar, imagine para os pequenos, cheios de vontades.
Ana Clara Falcão, por exemplo, tem apenas sete anos e já é dona de um aparelho celular e
um computador. "O que mais me preocupa é o desejo de consumir, que não para de
crescer, devido às propagandas e às inovações tecnológicas, que chegam facilmente até as
crianças", lamenta a mãe, Rosiane Lima Falcão, vendedora que reside em Recife (PE).
Como é de se imaginar, ela busca fazer o melhor. Uma ideia foi limitar os presentes a datas
comemorativas, mas admite que dizer "não" é difícil "Como trabalho, sinto que sou ausente.
Antes, tentava suprir essa falta com presentes, mas percebi que estava cultivando um hábito
ruim", conta. Quando notou que a situação estava fugindo do controle,
Rosiane optou por dar à filha um pouco de dinheiro a cada 15 dias. O resultado, diz, tem
sido bom.
A especialista em educação financeira Cássia D'Aquino alerta que, se os pais não se
atentarem à questão desde cedo, os desejos de consumo podem atingir o auge na
adolescência. Ela explica que, após os nove anos, as crianças ficam muito ligadas a signos
que as identificam com um determinado grupo. "É difícil para os pais entender por que, de
uma hora para outra, o filho se interessou tanto por um tênis de determinada marca", diz.
Para o engenheiro Roberto Akira Odani, morador de São Paulo e pai de três meninos com
idades entre 8 e 11 anos, o mais difícil é controlar os anseios por eletrônicos. "Eles pedem
itens como iPod e videogame. E questionam por que os amigos podem ter e eles, não.
Explico que os valores são muito elevados. Mas nem sempre funciona", diz.
Com tantas aflições, pais e escolas passaram a levar o assunto mais a sério. Logo, porém,
surge um primeiro desafio. Afinal de contas, o que é educação financeira? O que ensinar aos
filhos?
Para Celina Arruda Macedo, que há dez anos trabalha com crianças e se especializou em
percepções subliminares do dinheiro, os pais não devem se limitar a falar de cifras. É preciso
abordar a importância de ter um projeto de vida.
O escritor Álvaro Modernell, membro do Grupo de Apoio Pedagógico (GAP) da Estratégia
Nacional de Educação Financeira (Enef), define de outra forma: "Ela consiste em dicas que
ajudam os indivíduos a fazer um uso inteligente do dinheiro, tendo em vista sua felicidade,
no presente e no futuro-.
Em casa ou na escola?
Outra questão muito abordada é se as crianças devem aprender educação financeira no lar
ou na escola. Embora falar sobre dinheiro ainda seja um tabu para a maioria dos brasileiros
e um tema pouco discutido em casa, há um consenso entre os especialistas consultados pela
Valor Investe de que a família pesa muito mais na formação pessoal do que o colégio, cujo
papel é complementar. O motivo é simples: os filos tendem a seguir o modelo dos pais. É aí
que começa a confusão.
"Nem sempre os pais percebem o quanto são fonte do comportamento exagerado dos filhos.
Então, é necessário senso crítico, para saber de onde a criança ou o adolescente está tirando
tanta fixação pelo consumo", afirma Cássia.
Dessa forma, não cabe o velho ditado popular "faça o que digo, mas não o que faço". Celina
explica: "Quanto mais nova for a criança, mais ela acredita no que os pais fazem, em
detrimento do que dizem". O que não quer dizer que ela necessariamente considerará os
pais como o modelo ideal.
Jurandir Sell Macedo, doutor em finanças comportamentais e professor de educação
financeira na Universidade de Santa Catarina (UFSC), relata uma experiência interessante.
Todos os anos, no primeiro dia de aula, ele pergunta aos alunos: "Quando o assunto é a
forma de lidar com o dinheiro, vocês gostariam de seguir o exemplo de seus pais?". Oitenta
por cento respondem que não.
"Se dividirmos o Brasil em seis partes, perceberemos que quatro são formadas por quem
tem dívidas que vão além do pagamento da casa própria. Durante décadas, convivemos com
uma inflação elevada, que impedia a organização do orçamento", afirma. "Como resultado,
essas pessoas nunca aprenderam a fazer controle financeiro e é exatamente isso que
passam para seus filhos."
O consolo é que esse quadro está mudando. Especialistas notam uma vontade crescente de
crianças e jovens de entender como funciona o mundo das finanças. A disciplina de Macedo,
por exemplo, é a eletiva mais procurada da UFSC. As 80 vagas disponíveis costumam ser
disputadas por 500 estudantes, todos os anos. E Celina, que dá aulas de educação financeira
para jovens de 15 e 16 anos no Colégio de Aplicação da UFSC, relata que alguns deles
passaram a falar sobre o assunto com seus pais. Outros garantem que estão guardando
dinheiro. "Tenho até uma aluna que já aplica em fundos de investimento", comemora.
Por que ensinar
Que educação financeira é importante é ponto pacífico. Mas o argumento decisivo para
investir na ideia está nos potenciais prejuízos na vida adulta. "Quem não recebe orientações
relacionadas ao dinheiro vai tropeçar durante mais tempo e cometerá equívocos que
poderiam ter sido evitados", diz Cássia.
A questão, completa Celina, envolve a noção de limites. E eles devem começar desde cedo.
"A partir dos dois anos já é possível, mas não há idade certa. Geralmente, quando a criança
diz 'mãe, compra tal coisa' já é a hora", afirma a professora. Para ela, é importante mostrar
que não se pode ter tudo, porque assim é o mundo real. "Com os limites claros, a criança
aprende a fazer escolhas", afirma.
Os conceitos parecem simples, mas a realidade está longe de ser. Pais que dispõem de
pouco tempo para os filhos ou são divorciados, por exemplo, sentem-se culpados e acabam
tendo uma dificuldade maior de estabelecer limites. "O 'não', dito na hora certa, quase
sempre é o melhor presente para os filhos", acredita Cássia.
A Caloi de última geração
Os pais do engenheiro Paulo Peixoto, 39 anos, sempre se preocuparam em passar aos filhos
o valor do dinheiro e do trabalho. Ele garante que, desde muito jovem, sabe a diferença
entre querer e precisar. Quando tinha 12 anos, sua bicicleta quebrou e ele foi com a mãe
comprar uma nova. Teve de fazer uma escolha: ou ganhava uma básica e mais barata ou
uma Caloi recém-lançada, igual à dos amigos da rua. "Minha mãe perguntou se eu queria a
Caloi. Queria, mas achei caro. Preferi comprar a outra", conta.
Aos 13 anos, ele começou a ganhar "semanadas" para que pudesse passear no fim de
semana, mas buscava sempre economizar. Preferia, por exemplo, levar lanche de casa a
gastar na escola com a alimentação.
A disciplina deu resultado. O engenheiro começou a investir aos 23 anos e decidiu que
economizaria todo mês para comprar uma casa. Após uma temporada de trabalho na
Europa, em 2003, adquiriu um imóvel e um carro quando voltou ao Brasil. Tudo à vista. No
ano passado, comprou outra casa, novamente pagando no ato.
Erros e acertos
O engenheiro Rogerio Halicki Cordeiro, pai de Giovana, quatro anos, e Luana, nove, nunca
teve dúvidas sobre a educação financeira das filhas. A mais velha recebe R$10 por semana,
mas com uma condição: manter o quarto limpo e fazer a lição de casa no horário
combinado. Além disso, a cada nota "A" na escola, Luana ganha um presente de
determinado valor. Se receber um "B", ainda recebe um mimo, mas desde que custe a
metade do preço. A estratégia foi baseada no sistema de bonificação da multinacional em
que Cordeiro trabalha. Com o método, ele diz que a filha começou a prestar mais atenção
nos gastos e a economizar.
Cássia, no entanto, desaprova a ideia, que considera um equívoco comum e grave principalmente porque a criança aprende que o importante é o resultado, e não o caminho
percorrido até o objetivo. "Os filhos podem entender que, se quiserem colar, trapacear, não
importa", comenta. "Mais vale a pena, quando eles têm um bom desempenho escolar, dar
um abraço bem apertado", afirma.
Denise Hills, mãe de Guilherme, 10 anos, dono de três porquinhos cheios de moedas, e de
Eduardo, 13, que já tem uma caderneta de poupança, sempre deu especial importância à
educação financeira. Até porque ela é superintendente de sustentabilidade do Itaú Unibanco
e tem contato com o tema no trabalho que desenvolve no banco. "Quando meus filhos
pediam um brinquedo, eu perguntava: 'você quer mesmo isso?'.
Ela conta que, recentemente, Eduardo queria um iPod. Como a família tinha planejado uma
viagem aos Estados Unidos, ele decidiu juntar dinheiro e comprar lá, onde é mais barato. A
executiva diz que Eduardo mostra curiosidade sobre o assunto e às vezes até faz perguntas
sobre a bolsa de valores. "Dinheiro sempre foi um assunto muito normal, que tratamos em
família."
Como ensinar os pequenos
Especialista em educação financeira para crianças, Cássia D'Aquino explica o que os pais
devem fazer em cada fase de seus filhos (e o que é necessário evitar).
Aos 2 anos e meio Por volta de dois anos e meio, geralmente, as crianças já entendem
que existe o dinheiro e que, com ele, é possível comprar coisas divertidas e gostosas. A
partir dessa idade, os pais devem se esforçar para mostrar a diferença entre QUERER e
PRECISAR.
Após 5 anos Mostre a diferença entre as cédulas de dinheiro e as moedas. Diga que é
importante tratar o dinheiro com cuidado. Peça ainda para a criança segurar as moedas. Se
puder, leve seu filho para o trabalho. Mas não o deixe de escanteio, brincando em algum
canto do escritório. Mostre o que faz no dia a dia. Lembre-se, porém, de explicar de maneira
fácil. Nada de palavras complicadas. Quando os filhos entendem o que os pais fazem,
compreendem de onde vem o dinheiro e o quanto ele vale.
Entre 6 e 10 anos Nessa fase, as crianças se interessam por tudo que é de organizar.
Por exemplo, gostam de álbuns de figurinhas, carrinhos pequenos e adesivos. Por isso, elas
já são capazes de guardar dinheiro por um prazo um pouco maior. Os pais podem começar a
dar semanadas (as mesadas são recomendadas somente após os 11 anos).
Após 9 anos A partir dessa idade, as crianças começam a constituir grupos e consumir
roupas de marca e outro itens relacionados ao seu grupo. Os pais devem saber dizer "não"
aos pedidos de maneira tranquila, sem gritos ou sobressaltos e com muito diálogo. É
também nessa época que elas começam a gastar muito com telefone. Esta é uma queixa
comum entre os pais! Os adolescentes são capazes de chegar da escola e ligar para o amigo
que acabaram de encontrar. Uma solução é livrar-se dos telefones sem fio - que estimulam
as longas conversas - e deixar apenas um telefone em casa, na sala de estar. Como eles não
gostam que os adultos escutem seus diálogos, isso também inibe o uso do aparelho
telefônico.
A partir dos 11 anos Leve seu filho ao banco, para que comece a entender um pouco o
funcionamento do sistema financeiro. Mostre os meios de pagamento e o que as pessoas
fazem na agência bancária.
Evite:
Reclamar do trabalho na frente da criança, porque ela crescerá acreditando que trabalho é
sinônimo de sofrimento e pode se tornar um adulto desinteressado.
Premiar boas ações e notas com dinheiro ou presentes. É um equívoco grave. Em primeiro
lugar, porque a criança entenderá que o importante é o resultado, e não o caminho para se
chegar lá. Em segundo lugar, a criança pode crescer dando importância excessiva ao
dinheiro ou a bens materiais. O ideal é os pais reconhecerem o esforço do filho com palavras
e um simples abraço.
Comprometer-se a dar mesada ou semanada e esquecer-se da promessa ou decidir não dar,
porque o filho tirou uma nota ruim ou foi malcriado. A mesada deve ser dada sempre, e no
dia combinado, independentemente do que acontecer.
Ser um consumidor compulsivo ou uma pessoa com muitas dívidas. Os filhos tendem a
replicar o comportamento dos pais. Logo, o velho ditado popular "faça o que digo, mas não
faça o que faço" não funciona.
Dizer "não" de forma agressiva. O melhor é conversar, explicando a situação financeira da
família. Por exemplo, se o seu filho pedir um novo videogame, diga que está economizando
para mudar de casa ou pagar uma viagem da família no fim do ano (mas lembre-se, mais
tarde, de cumprir com sua palavra). O importante é não gritar ou castigar.
"Desistir" de educar o adolescente e deixá-lo fazer o que quer. Os adolescentes tendem a
desafiar os pais, em busca de uma reafirmação dos valores da família. Por incrível que
pareça, é isso que eles procuram. O processo é desgastante, mas passa.

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