TCC Marcia Nasciimento ok - PROEJA

Transcrição

TCC Marcia Nasciimento ok - PROEJA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
INTEGRADA À EDUCAÇÃO BÁSICA, NA MODALIDADE DE EJA
ẼG VĨ KI KÃMÉN SĨNVĨ HAN
AS ARTES DA PALAVRA NO KAINGANG
MÁRCIA GOJTẼN NASCIMENTO
Orientador: Prof. Dra. Maria Aparecida Bergamaschi
Co-Orientador: Prof. Rodrigo Allegretti Venzon
Porto Alegre
2009
FICHA CATALOGRÁFICA
___________________________________________________________________________
N244e Nascimento, Márcia Gojten
E vi ki kâmén sinui han = As artes das palavras no kaingang / Márcia Gojten
Nascimento ; orientadora Maria Aparecida Bergamaschi ; co-orientador Rodrigo
Allegretti Venzon. – Porto Alegre, 2009.
38 f.
Trabalho de conclusão (Especialização) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação. Curso de Especialização em Educação Profissional integrada à
Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos, 2009, Porto
Alegre, BR-RS.
1. Educação. 2. Educação de Jovens e Adultos. 3. EJA. 4. Educação
indígena. 5. Língua kaingang - Tradição oral. 6. Língua kaingang – Oralidade. 7.
Língua kaingang – Narrativas – Rituais – Cantos – Escrita. I. Bergamaschi,
Maria Aparecida. II. Venzon, Rodrigo Allegretti. III. Título. IV. Título
equivalente.
CDU 374.7
_____________________________________________________________________________
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin – Bibliotecária responsável - CRB10/979)
Sumário
Agradecimentos
Resumo
Abstract
Introdução
Capítulo I - Um breve histórico da escrita da língua kaingang
Capítulo II - Relato de uma experiência produtiva
Capítulo III - Gĩr jyvãn – Aconselhamento para crianças
Capítulo IV -Jyvãn - Aconselhamento em cerimônias de
casamento
Capítulo V - Tipos de Narrativa – Gufã
Capítulo VI - Ti si kãme
Capítulo VII - Jé (Cantos de animais)
Capítulo VIII - Rituais fúnebres
Considerações finais
Agradecimentos
Primeiramente aos meus colegas professores Emir, Volmar e
Marta, pela grande parceria nos trabalhos de pesquisa da nossa
cultura e língua.
Ao
meu
jóg
Jorge
Garcia,
por
sempre
atender
nossas
solicitações com carinho importância.
À minha orientadora profª Maria Aparecida Bergamaschi e coorientador Rodrigo Allegretti Venzon, pelo grande apoio e pelo “olhar
especial” à educação escolar indígena.
Resumo
A
presente
monografia
é
uma
introdução
ao
estudo
e
documentação da língua kaingang, mais especificamente as Artes da
Palavra, dentro da tradição oral. Analisa os diferentes gêneros de
discurso dentro da língua kaingang como, por exemplo, os diferentes
tipos
de
narrativas,
cantos,
rezas,
etc;
e
busca
mostrar
as
especificidades do uso elaborado da língua, as complexidades da
oralidade que estão por trás do aparente uso comum da língua.
Abstract
The present monograph is an introduction to kaingang language study and
documentation more specifically on The Art of the Word within oral tradition. It
analyses the different sorts of discussion in kaingang language as, for
instance,the different kinds of narratives, chants, prayers, etc. and intends to
show the specificities of the elaborated use of the language and the
complexities of speech which is behind the apparent common use of language.
Key-words: kaingang, language, oral tradition.
A Arte da Palavra no kaingang
Introdução
A língua kaingang pertence à família linguística Jê e apresenta
cinco dialetos já detectados e descritos por alguns lingüistas¹1. Esses
dialetos são distribuídos por uma população de quase 30 mil
kaingang que habitam a região sul do país e parte do estado de São
Paulo. Os kaingang sozinhos representam cerca de 45% de toda a
população dos povos de língua jê, e estão entre os 5 povos indígenas
mais populosos do Brasil.(D’Angelis 2002).
A língua kaingang é considerada umas das línguas indígenas
com maior número de falantes no Brasil. Um dado que é um tanto
tranqüilizador para os kaingang, que já viram sua língua num estágio
de crise muito preocupante, inclusive num passado não tão distante.
Porém, segundo os mais recentes estudos e discussões sobre a
sobrevivência das línguas minoritárias, em cenário global, quase a
totalidade das línguas indígenas faladas no Brasil são consideradas
“línguas em perigo de extinção”. Segundo Franchetto (2004), na
verdade, qualquer língua minoritária em uma situação de dominação
colonial deveria ser considerada “em perigo (de extinção)” ou
“comprometida”. Mesmo as línguas ainda aparentemente seguras
podem mostrar sinais de crise, que podem, com o tempo, resultar em
extinção lingüística (e cultural).
Essas
previsões,
citadas
anteriormente,
se
tornam
mais
preocupantes quando nos deparamos com um histórico bastante
devastador desde os primeiros contatos com a sociedade envolvente,
de políticas educacionais de enfraquecimento das línguas e culturas
1
A lingüista Ursula Wiesemann (1967; 1978) foi responsável pelo estudo da gramática kaingang e pela
implantação da escrita dessa língua, classificando-a em cinco dialetos: (1) de São Paulo (SP), entre os rios
Tietê e Paranapanema; (2) do Paraná (PR), entre os rios Paranapanema e Iguaçu; (3) Dialeto Central (C),
entre os rios Iguaçu e Uruguai, Estado de Santa Catarina; (4) Dialeto Sudoeste (SO), ao sul do rio
Uruguai e a oeste do rio Passo Fundo, Estado do Rio Grande do Sul; e (5) o Dialeto Sudeste (SE), ao sul
do rio Uruguai e leste do rio Passo Fundo. (disponível em www.socioambiental.org)
indígenas. A partir da década de 1970, o movimento indígena tem
conseguido mudar conceitos e os direcionamentos dessas políticas.
Mas, na prática e em muitos estados, as antigas políticas de transição
lingüística ainda estão em pleno vigor, sobrepondo-se aos direitos
conquistados na legislação.
Nesse sentido, o intuito é de poder estar contribuindo de
alguma forma para a revitalização dessas línguas. Com este trabalho
pretendemos,
a
princípio,
socializar
algumas
experiências
que
julgamos muito válidas; em especial aos professores indígenas, tanto
nas aulas com seus alunos como em sua tarefa de pesquisadores.
Consideramos que em um “construir educação”, como é o caso da
educação escolar kaingang, a mesma deveria estar alicerçada no
estudo de sua cultura, sua história e língua, em interface aos
conhecimentos da sociedade envolvente, tendo então como base o
estudo e pesquisa. Todavia, não temos percebido grandes avanços
nas políticas educacionais/linguísticas com essa perspectiva (a salvo
as iniciativas isoladas de organizações independentes). Sentimos,
então, a necessidade de despertar uma reflexão mais crítica em torno
da importância da pesquisa e documentação de línguas e culturas
indígenas.
Posteriormente, entraremos então no tema propriamente dito,
que é uma introdução “As Artes da Palavra”, fazendo uma relação
com a literatura. Esse termo é utilizado, no presente estudo,
parafraseando Franchetto (2003).
Nos capítulos que seguem, será feita uma exemplificação das
construções textuais elaborados na oralidade da língua kaingang,
como, por exemplo, os diferentes tipos de narrativas, cantos, rezas,
etc. Vamos também fazer um breve estudo e análise das construções
gramaticais que venham a caracterizar os diferentes tipos de textos,
como termos específicos da língua kaingang que por ventura
possamos detectar estarem classificando esses textos.
Do material de pesquisa aqui analisado, a maior parte foi coletada em
campo e o restante constitui de material publicado (como cd de
áudio).
Capitulo I
Um Breve histórico da Escrita da Língua Kaingang
No final da década de 1950, a línguísta Ursula Wiessemann deu
inicio ao estudo da ortografia e gramática da língua kaingang, sendo
a
responsável
pela
implantação
da
escrita
dessa
língua
e,
posteriormente pela implantação do Ensino Bilíngüe em todas as
escolas Kaingang a partir da década de 1970.
O Ensino Bilíngüe, inicialmente, não tinha outra finalidade a não
ser o de facilitar e acelerar o processo de aprendizagem da língua
portuguesa, pelas crianças indígenas; introduzindo primeiro a língua
kaingang nas primeiras duas séries e, logo que se dessem por
alfabetizados, era substituída pela língua portuguesa.
Essa política de educação caracterizou-se como uma estratégia
de políticas para o abandono da língua materna. Como é claramente
colocado por D’Angelis:
As pressões sobre a sociedade kaingang não foram, porém, apenas
aquelas da discriminação, mas também configuram-se em políticas
sistemáticas para que os índios deixassem de falar a língua materna.
Curiosamente, a escola primária, presentes em diversas comunidades
kaingang pelo menos desde a década de 30, e amplamente
generalizada nas décadas de 50 e 60, tornou-se efetivamente
eficiente como instrumento de pressão contra a manutenção da
língua indígena quando passou a ser bilíngüe, nos anos 70. (D’Angelis
2002).
Para garantir o sucesso do ensino bilíngüe, em 1970 deu-se
início a formação dos primeiros monitores bilingues²2 em nível de 1º
grau.
2
Os
próprios
indígenas
estavam
sendo
qualificados
para
Iniciativa do SIL (Summer Institute of Linguistics) através da concretização do projeto denominado
Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão, Terra Indígena Guarita, no município de Tenente
Portela –RS.
servirem
de
instrumento
direto
no
processo
de
integração
e
abandono da língua³3.
A realidade do ensino, enfim, da Educação Escolar indígena, é
bem diferente na atualidade. São bem presentes as iniciativas e o
anseio para tornar o ensino especifico e diferenciado bem concreto
nas escolas das comunidades, e reverter a função devastadora que a
princípio o ensino bilíngüe exercia. Sem dúvida, são muito relevantes
as iniciativas de professores indígenas que buscam por si próprios,
condições para efetivar projetos de fortalecimento e revitalização
lingüística e cultural, ultrapassando dessa maneira as “limitações” e
deficiências que o sistema educacional ainda carrega. Da mesma
forma, ressaltamos a importância das iniciativas bem sucedidas de
instituições e organizações independentes, que inclusive são bem
raras aqui na região Sul.
Contudo, o que temos de concreto hoje, se torna muito
pequeno diante da gravidade da situação que se apresenta. As
seqüelas e conseqüências são muitas. É preciso que se dê de fato o
devido respeito à diversidade cultural e lingüística do país.
Tratar
com a devida importância de patrimônios da humanidade que se
perdem sem possibilidade de resgate.
A avaliação dos lingüistas em relação à sobrevivência das
línguas minoritárias é muito preocupante. De acordo com Franchetto
(2004), mesmo em casos de extrema urgência, onde há um sério
risco de perda ou até mesmo já houve extinção, não há ações
direcionadas. Em um nível geral, no Brasil, não há nenhum programa
consistente e monitorado para a revitalização linguística, onde ela
ainda é possível; nem qualquer tipo de acompanhamento e análise
das experiências espontâneas que podem estar ocorrendo.
3
Sobre essa experiência, o ensino bilíngüe, Andila Inácio Belfort., aluna da primeira turma de formação
de professores bilíngües diz:
Entendemos hoje que a criação do projeto de formação de professores indígenas tinha o objetivo de
abreviar a alfabetização bem como o período de transição da língua kaingang para o português das
crianças indígenas, com isso a FUNAI apressaria a integração e a IECLB, a evangelização do povo
kaingang. (BELFORT 2005)
No caso da língua kaingang, os “sinais de perigo” estão bem
visíveis em vários aspectos. Apesar de ter um bom número de
falantes, a língua kaingang vem perdendo espaços importantes para
a língua portuguesa. As gerações mais jovens, filhos de casamentos
com fóg tendem a falar somente o português. O cotidiano tradicional
familiar, pode se dizer assim, também vem se transformando. Como
por exemplo, as visitas noturnas entre as famílias que propiciavam às
crianças ouvirem as narrativas, já ocorrem de maneira raríssima.
Escolas têm optado por ministrar a alfabetização (de crianças que
têm o kaingang como língua materna) na língua portuguesa, por falta
de recursos eficientes para o ensino da língua kaingang. E ainda
temos nas escolas uma clientela que chega cada vez mais “exigente”,
por serem de uma geração que convive e se utiliza das praticidades
que a tecnologia proporciona, e que a escola não consegue
acompanhar.
Da
mesma
forma,
encontramos
muitas
dificuldades
no
desenvolvimento da literatura escrita da língua e no estudo de sua
gramática. Por mais que os professores kaingang, que ministram o
ensino bilíngüe, tenham formação superior, eles não possuem
formação específica sobre a gramática da língua; trazendo somente o
conhecimento lingüístico obtido no ensino fundamental. A salvo
aqueles professores que se formaram em curso de magistério
específico (e alguns em curso superior), e que tiveram uma formação
mais direcionada.
Diante disso, abrem-se lacunas nesse amplo território da
tradição oral das línguas indígenas. Alguns gêneros continuam em
evidência, e outros vão ficando guardados nas memórias dos mais
velhos, como as narrativas sagradas, mitos e lendas. É preciso então
que se pense em estratégias para trazê-las de volta aos ouvidos dos
mais jovens, para que se encantem com este mundo onde o real e a
magia seguem entrelaçados.
Capitulo II
Relato de uma experiência produtiva
Em 2007, preparamos na Escola Estadual Indígena Pẽró Ga (na
comunidade da Aldeia Bananeiras – Terra Indígena Nonoai, município
de Gramado dos Loureiros – RS), uma programação para os alunos
da 4ª série, já que os mesmos estavam se despedindo da escola e
indo para outra escola não indígena fora da aldeia. Achamos que
deveríamos fazer alguma coisa diferente e ao mesmo tempo algo que
soasse importante para essa nova fase da vida deles, uma vez que
sair da aldeia para estudar ainda é uma dificuldade bem presente
para os adolescentes dessa comunidade. Preparamos então uma
“Noite Cultural”. Convidamos o senhor Jorge Garcia para passar a
noite com a gente na escola e conversar com as crianças.
O senhor Jorge Garcia é uns dos últimos kujá (pajé) que temos
na região, é da metade kamẽ (rá téj) e é descendente de Kaingang
com Guarani. É fluente nas duas línguas indígenas e também no
português. A sua trajetória de vida e de sua família é marcada pela
participação ativa na história de luta na região onde cresceu. Dedicase, atualmente, em repassar os conhecimentos adquiridos em sua
experiência de vida às gerações mais jovens. Apesar de existirem
ainda alguns kujás, dificilmente se vê a realização de um ritual devido
a vários motivos, como influência
religiosa, a
preferência da
população pela medicina convencional, e assim por diante.
Para a programação da noite, pedimos que ele, após sua fala,
cozinhasse algumas ervas para que as crianças pudessem ver e
experimentar, já que nunca haviam visto um kujá realizando um
ritual. Ficamos um pouco apreensivos sobre qual seria a reação dos
alunos diante do ritual do cozimento das ervas e purificação, pois a
maioria das crianças e seus familiares freqüentam igrejas evangélicas
onde, muitas vezes, existe choque de conceitos e crenças.
Preparamos um ambiente típico das noites kaingang: fogo de chão,
pri (espécie de esteira de folhas de coqueiro) para as crianças se
sentarem ou deitarem. Enquanto o ẽmĩ (bolo) assava na cinza para
ser servido mais tarde, o Sr. Jorge começou sua apresentação. Tão
logo iniciou a programação, nos surpreendemos ao ver todos
receberem essa experiência de maneira absolutamente normal,
caracterizada pela ansiedade e satisfação de viver, de se apropriar de
algo que sempre fora seu. E o modo como foi apreciado pelos
adultos. Foi um momento de reencontro mesmo. Para as crianças, foi
mágico receberem, do próprio kujá, as pinturas dos clãs. Vimos o
ambiente escolar transformar-se num espaço de vivência cultural.
Foi uma palestra com muita qualidade, com uma programação bem
diversificada: começando pelo aconselhamento, seguido de cantos,
ritual do banho com remédios, momento das narrativas e, depois, o
jantar. Foram cinco horas sem intervalo, e, mesmo assim, as crianças
não dispersaram a atenção em nenhum momento. Tudo isso se deve
ao talento nato do palestrante.
Capitulo III
Gĩr jyvãn – Aconselhamento para crianças
A seguir, temos transcritos trechos da fala do seu Jorge Garcia,
no qual, conforme a análise detecta ser, esse discurso, uma variante
da
Narrativa
Kaingang,
ao
que
chamamos
de
“Jyvãn”
(aconselhamento).
Com essas palavras deu início à sua palestra:
Havé!
Ũri sỹ ãjag vej kãtĩg ha. Kófa ti. Tỹ ija jag vovo nĩ ham. Tỹ ija
ajag gufã si nĩ.
Havé, inh kófa vera ha! Sỹ jag jẽ’ỹn kãããn mỹr ser ham, inh
kanhkã krã hã tỹ tỹ jag nỹtĩ ha. Kỹ tỹ inh mỹ ha tỹ’ĩ tĩ isỹ jag kãkã
jãn kỹ ha, sanh há hara.
Sa jag mỹ vãmén jé, kỹ jẽmẽm nĩ, keja! Inh pi ajag mỹ ón! Sa
kejãn nén ũ tón kỹ, ki hã sỹ vãmén. Inh pi kejẽn ũ mỹ un-ón ge nĩ.
Hãra jag tỹ tỹ inh krẽ kãsir nỹtĩ, kỹ tỹ inh mỹ ha tỹvĩ tĩ.
Kỹ ajag jykre ki vin nĩ, inh vãmer tỹ. Mỹ ke!? Keja’! kỹ tỹ sĩnvĩ
tĩj. Ajag tỹ inh rikén vẽjẽ’ỹn gen vẽ.
Vera ha! Tỹ ẽg tỹ kanhgág nỹtĩ. Ẽg pi tỹ ũ nỹtĩ ham, tỹ jag
kanhkã kar ẽg tỹ nỹtĩ. Ẽg jamré ag, ẽg kanhkã ag, kamẽ, kanhrukrẽ
ke jé ẽg ne tóg ham. Kỹ tỹ sĩnvĩ tĩ, ẽg tỹ tag ki kanhrãn kỹ. Kỹ ajag
jykre ki vin nĩ.
Ajag nỹ, ajag jóg ki jãmãm nĩ. “Vovo tỹ ki há mỹ’” kem nĩ fag
mỹ. Kỹ fag tỹ ajag mỹ tój. Vỹsỹ ẽg tũ vẽ hamã, kanhgág ag tỹ jag
jã’ỹn fã vã. Hã ki ja tĩ nĩ ver. Hã ki ja sanh há nĩ. Ke ja’! Kỹ inh
jãmãm nĩ. Inh pi fagnĩnh mỹ inh pi ajag, ajag mỹ vãmén ge nĩ ham.
Inh mỹ sĩ hã ve kỹ ija ser ãjag kãkã jã kỹ, inh sanh há hãra ver ãjag
mỹ vãmén jãn ha.
(...) Ũn tỹ tỹ kanhgág tỹ, nãn mré ẽg tỹ sa nĩ ham. Nãn ga, ke jé ẽg
ne tóg ham. Ti kikaró kaaar jag tỹ nỹ tĩ, jẽsĩ ag mré hẽ: fẽr, grun, ỹ...
nén ũ kar’ kikaró ãg tỹ nỹ tĩ ham. Kar tỹ ẽg kikaró nĩ gé. Tin hãnrike
ãn kikaró ãg tỹ nỹtĩ, jo fóg ag pi kikaró nỹ tĩ ham. Ti ne ẽg to fỹ ke nẽ
ham. Ẽg to mryg jé tóg mũ gé. Hara ẽg tỹ kikarón ti tỹ ẽg mỹ nén ũ
vãnhmỹ, ẽg mré vĩ rike tỹ nĩ gé.
Havé tỹ ija kujá nĩ kỹ ja kikaró nĩ nén ũ tỹ hãnrikej ke ãn ti, hara ũ pi
inh (kri) fig tĩ gé ham. (...)
(...) ajag tỹ ajag jẽ’ỹn kej ke vã ser ham. Ke ja’! Inh rikén. Mỹr,
kãnhmar végtũ kej mỹ’. Ãjag hã nỹ mĩ mũj mỹ’. Kỹ inh vĩ jẽmẽm nĩ!
“Kófa nĩ vé ge ja nĩg”, ke ja’! Kỹ han sór nĩ, ajag! Kỹ tỹ sĩnvĩ tĩj.
Kanhgág
vãfor kamãg nĩ. Ẽg pi hã ki fóg ag rikej ke ve nĩ ham.
Tugnỹm kãn sỹ tĩ, tãmĩ.
Hỹ! Kỹ inh vĩ tag jãmã há han nĩ ham. Ajag eskora ra mũ kỹ jag
professora fag vĩ jẽmẽm nĩ gé, ajag nỹ riken vã gé. Kar estuda ke há
han nĩ. (...)
Jo inh pi kikaró nĩ ham, vé inh nĩ ajag... ihã kikaró nĩ, tag, ẽg ga kãmĩ
ẽg kanhgág, ẽg tỹ jagnã to há, ẽg tỹ jagnã mré há, ẽg tỹ ẽg jamré,
ẽg kanhkã, ẽg ve fag, ẽg má fag, ẽg nỹ... Tag hã kikaró inh nĩ ham.
Haran pi mág nĩ gé ham, inh vẽnhrán kórég nĩn, ke mỹr inh(...).Kỹ
vỹsãnsãn nĩ ãjag, tag nón. Tỹ ũ nĩ’, tỹ ũ nĩ’ ke tỹ mũ hamã. Hara tỹ
kejãn há kej mũ, ajag mỹ, ajag tỹ inh vĩ jẽmẽn kỹ. Jo jag tỹ jẽmẽg
tũn kỹ, hãrej? Jo ija kãnhmar vén kej mỹ’, inh pi ajag mré ge tĩj, mỹr
isĩg gen hỹnỹ’, ajag... ãmã ũ ra kegé. Kỹ inh pi vej ke mũ ham.
Kỹ tỹ, vãsãnsãn nĩ. Jag tỹ tỹ gĩr tag tỹ inh mỹ sĩnvĩĩĩ tỹ’ĩ nỹtĩ
ham. Ne pi inh mỹ tag rike nĩ ha. Isỹ tãmĩ tĩg han, hara ja tag vég
tũn ver, ajag tỹ kanhgág tỹ’ĩ tỹ ki nĩn ha. Ke ja’! Kỹ tỹ inh mỹ sĩ tĩ, ẽg
tỹ kanhgág tag ver.
Tradução
Hoje vim visitar vocês.
Sou avô de vocês, sou a geração velha do tempo de vocês.
Olhem!
Olhem
para
a
minha
velhice.
Eu
presenciei
o
crescimento de todos vocês. Vocês são filhos da minha gente. Estou
muito feliz por poder estar aqui hoje com vocês, com essa idade bem
avançada que tenho hoje.
Vou falar pra vocês, então me escutem. Não vou mentir para
vocês. Sempre falo o que é correto. Não tenho motivos pra falar
mentiras. Vocês são os meus filhinhos e por isso estou muito feliz.
Então guardem em suas mentes o que contarei a vocês. Porque
assim será bonito, belo... De agora em diante, assim como eu fiz,
vocês cuidarão um do outro.
Reparem, nós somos todos kaingang. Não somos diferentes um
do outro. Lembrem, somos todos irmãos, parentes. Somos cunhados,
irmãos. Devemos nos lembrar de kamẽ e kanhru. É bonito quando
aprendemos isso (tudo está em seu devido lugar quando aprendemos
isso). Portanto guardem em suas mentes. Perguntem a seus pais
sobre o que o vovô está dizendo e eles contarão a vocês. Isso são
coisas nossas. Cuidar um do outro são coisas dos kaingang desde
antigamente. E ainda vivo seguindo isso, até estar velho agora. (...)
Todo o kaingang sabe que tem algo em comum com a mata, o
ser espiritual da mata. Todos vocês o conhecem. Até os pássaros o
conhecem. E ele também sabe de nós. Sabemos quando acontece
algo, e os fóg já não percebem isso. Ele chora, se manifesta pra nós.
E entendemos o que quer dizer. É como se falasse com a gente. Sou
kujá e sei prever o que está para acontecer. Mas já não acreditam
mais no que eu falo.
Chegou o momento de vocês cuidarem uns aos outros, como eu
fiz. Pois logo não me verão por aqui. Vocês é que ficarão por aqui.
Então escutem e guardem o que estou dizendo a vocês. “Assim dizia
o velho!” digam isso (e tentem seguir o que eu vos ensinei). E será
bonito. Não permitam que o kaingang se perca. Nunca devemos
tentar ser como os fóg, não há razão alguma para isso. Já observei
em toda parte.
Sim! Então ouçam bem o que estou dizendo a vocês. E, quando
forem à escola, ouçam bem seus professores também, eles são como
os seus pais e, estudem bem. Ao contrário de vocês, eu não tenho
esse conhecimento. Às vezes, os fóg me chamam, mas não sei sobre
a escrita. Eu só sei sobre ser kaingang em nossas terras, que é viver
em harmonia um com o outro, cuidando dos irmãos, dos pais, dos
cunhados, das sogras... . Só entendo sobre isto. Mas isto, às vezes
não é suficiente (não é grande coisa), pois não sei escrever. Então se
esforcem em busca dos estudos. Às vezes é complicado, mas tudo se
ajeitará se vocês guardarem em suas mentes tudo que eu lhes disse.
E, eu tombarei em breve. Não ficarei aqui com vocês pra sempre,
pois já é tempo de eu ir, e não verei o que está para acontecer.
Então sejam persistentes. Vocês, crianças, são muito lindas pra
mim, não há nada igual pra mim. Andei muito e não encontrei nada
igual a isto: um lugar cheio só de kaingang. Por isso estou muito feliz
por ainda sermos kaingang.
Essa
“fala”
chefes/lideranças,
é
um
kujá,
tipo
anciãos.
de
É
discurso
um
específico
gênero
de
dos
discurso
denominado jyvãn, traduzido por aconselhamento. A realização
desse discurso, público, é restrita aos homens. É cultural a mulher
kaingang ser mais preservada quanto à exposição pública, garantindo
sua participação de maneira mais discreta.
Quem realiza esse discurso são pessoas que obtém uma boa
conduta na sociedade. São pessoas com prestígio social. Percebe-se
uma relação entre velhice, experiência e sabedoria.
Nesse
texto
encontramos
expressões
que
parecem
ser
específicas desse gênero, jyvãn.
Observe os exemplos:
Mỹ ke ja!
Inh vĩ tag tỹ ãjag jykre ki vin nĩ. (Guardem minhas palavras em suas
mentes)
Kỹ inh vĩ tag jẽmẽ há han nĩ.(Por isso, preste atenção em minhas
palavras)
Hamẽ!
Capitulo IV
Jyvãn - Aconselhamento em cerimônias de casamento
Temos aqui uma variante do gênero jyvãn/aconselhamento,
visto anteriormente. Um pouco semelhante ao aconselhamento de
crianças, este se dá nas cerimônias de casamento.
Entre as metades clânicas, o casamento se dá entre pessoas de lados
opostos e, o aconselhamento é feito pelos jóg (ancião pertencente à
mesma metade de cada um) dos noivos. Neste caso, o noivo é de
metade kamẽ e seu conselheiro, então, é um ancião também da
mesma metade.
Os trechos a seguir são de um aconselhamento realizado por
Nízio Kẽrán, num casamento que aconteceu em maio de 2007, em
Nonoai. O conselho foi para o noivo.
Ũri...
Inh kósin,
Ũri ija ã mỹ, ã mỹ vãmén mỹ, hamã, inh kósin.
Ũri... ẽg tỹ jagmré mỹsinsér kãn ham, ã tỹ, ã kakrã ti krã, ti kósin
fi tỹ vãsusa tag tu, inh kósin, ham.
Ũri ã tỹ, kósin fi tỹ ũri, ã mỹnh fi riken kỹ fi tỹ nĩj mũ gé.
Ũri ã tỹ, ũ tỹ ã mỹ nén ũ han ge mũ fi vỹ tỹ ũri inh kósin fi nỹ, inh
kósin.
Ũri ã tỹ tỹ fi kafã nĩ, ã!
(...)
Ũri ã tỹ tỹ fi panh ri ke nĩ gé.
Ke mũn kã ã tỹ ũri... fi jã’ỹn há han nĩ.
à kakrã mỹ fi jã’ỹn há han nĩ.
à má fi mỹ fi kósin fi jã’ỹn há han nĩ. Kỹ tỹ inh mỹ há tĩj, “inh kósin
ne sỹ ti mỹ vĩ jãmã jan”, ke jóg.
Tradução:
Hoje, meu filho...
Hoje, meu filho! Te direi algumas palavras.
Hoje, juntos nos alegramos, pois você tornou a filha do seu sogro,
parte sua.
A partir de hoje, esta filha, será como sua mãe.
A partir de hoje, esta, cuidará de você. E você será o parceiro dela.
Hoje você será também, como um pai pra ela.
(...)
Assim, cuide bem dela.
Cuide bem dela para o seu sogro e para sua sogra.
E assim ficarei contente. “Meu filho ouviu e guardou as minhas
palavras”, assim direi, então.
Nesse discurso, percebemos a poética através da repetição de
versos, através dos ritmos e entonação.
Capitulo V
Tipos de Narrativa
Gufã
Na língua kaingang existe a palavra kãmén, que pode ser
traduzida por “contar, dar noticias, explicar”. Kãmén vem da palavra
kãme, que significa “história” (a ser contada). Por exemplo: “Pĩ
Kãme” (História do Fogo). A palavra kãme é caractrística do gênero
narrativo. Toda narrativa é finalizada com a presença dessa palavra,
em frases como: “Hãvẽ ser, Pĩ Kãme ti” (esta é, então, a História do
Fogo).
Na cultura kaingang, conseguimos identificar, até então, três
tipos de narrativas. Primeiro temos as denominadas gufã, que quer
dizer ancestral. São narrativas que contam as origens, nos tempos
ancestrais, e relatam fatos de tempos mais antigos. Dentro do gênero
gufã, temos também as fábulas.
Temos também as narrativas chamadas Ti si kãme, que são as
histórias antigas e verdadeiras. Um outro gênero, que corresponde às
narrativas engraçadas – inventadas, mentiras –, é conhecido como
vẽnh ó’.
Distinguimos um jeito especifico de contar os gufã. Sempre há
um ou mais interlocutores que, a cada episódio contado, responde(m)
ao narrador. As narrativas que relatam tempos ancestrais geralmente
iniciam-se com essa expressão: “Gufã vỹ nĩg tĩ!” (Havia um
ancestral). Em seguida, o interlocutor responde, falando “e’” como se
estivesse dizendo “sim, conte-me mais”. Assim, se segue por toda a
narrativa.
Veja, a seguir, o trecho que fala dos primeiros contatos com os
fóg (brancos).
Gufã vỹ nĩg tĩ!
E’
Kỹ kófa tỹ’ĩ fi ne tỹ kẽ nĩg tĩ.
E’!
Kỹ fi tỹ kajãr jẽ’ỹn nĩg tĩ. Kajãr mag tỹ ge jã ha’
E’!
Hara tỹ fi vĩ kikaró nĩg tĩ. Fi tỹ ti jãnãn kỹ tỹ fi mỹ tĩ tĩ, nén ũ nón.
Kakanã, mỹg mág... Ti tỹ mỹg ve kỹ tỹ ser ve kónãn tĩ jé tóg, nón.
Kãj sĩ... kãj sĩ hanja fi tỹ nĩg ti mỹ. kỹ fi tỹ ser ti nunh to sa ja nĩg. Kỹ
ti ne tỹ tu kỹ tĩg tĩ. Hara fãn kỹ tỹ tũ kỹ(kã tĩg kỹ tỹ) fi mỹ jun. kỹ fi
tỹ koj ser, kófa fi.
E’!
Tradução livre:
Havia um ancestral.
Então havia ali, uma mulher bem velhinha.
Ela criava um macaco. Um macaco grande.
Ele entendia a fala dela. Quando mandado, ele obedecia, indo em
busca das coisas. Frutas, mel... Quando encontrava uma abelha, saía
atrás, e dava um jeito de melar. Ela havia feito um cestinho pra ele.
E havia amarrado no pescoço dele. Então, ele vivia carregando
aquilo. Enchia e trazia pra ela, sempre. E ela, então, comia.
Os episódios vão ficando cada vez mais longos, acrescentandose mais e mais acontecimentos, consecutivamente. A interferência do
interlocutor parece separar cada episódio.
Veja, a seguir, uma versão escrita da fábula Pépo mré Jãtã (O Sapo
e o Corvo). Essa versão foi escrita pelo professor Volmar da Silva.
Pépo mré jãtã
Kỹ pépo mré jãtã ag tóg jagnẽ mré mũg tĩ .hãra ag tóg vẽkyn
kyn há ja nỹtĩ kỹ ag tóg jagnã mré majre mĩ vẽkyn kyn mũ tĩ . kỹ ag
tóg jagnẽ kón ũ fag namora ke keti.
Hãra pépo ti tũ fi tóg ta há janĩ javo jãtã ti tũ fi tóg kórég ja nĩ .
kỹ jãtã vỹ pépo ti tu fi ki vẽ’ ĩg mũ .Hãra jãtã tóg ẽkrég tĩ ja n,ĩ pépo
ti tũ fi tu.
Kỹ jãtã tóg “inh hãn majre han kanhkã ta”, kemũ. Mỹr pépo pi
tã há nĩ ke tóg mũ . “kỹ sỹ ti tũ fi mré vĩj mũ”, ke tóg, jãtã ti.
Kỹ jãtã tóg pépo mỹ kurã tỹ ẽg ge kã ẽg tóg kanhkã tá majre
nỹti ke mũ. Kỹ jãtã tóg “ã mỹ tĩg”, kemũ. kỹ pépo tóg “tĩg ja mũ”
kemũ . kỹ jãtã tóg pépo mỹ “ã mỹ hẽren kỹ tĩg” mũ kemũ . kỹ pépo
tóg ti mỹ sỹ tĩg gen ve jé mũ kemũ”. Kỹ jãtã tóg ti mỹ “sỹ ã pi tĩg
mũ” kemũ hãra pépo tóg inh hã jãtã mỹ ge keja fã nĩg nĩ .
Kỹ pépo tóg jãtã mỹ inh vĩ jẽmẽj ke ã tóg nĩ hãra kemũ .kỹ jãtã
tóg “emẽ”, kemũ .Kỹ pépo tóg jãtã mỹ “ã tĩ gen kỹ ã vẽkyn fã ty
jãnkã ki tuvẽnh n”ĩ kemũ “ã tỹ ã kur rĩnh tu mẽ tu”, ke mũ .kỹ jãtã vỹ
hej kemũ .
Kỹ pépo tóg ver ti mỹ “ã tỹ kanhkã tá junkỹ ã vẽkyn fã tỹ jankã
ki tuvẽnh kỹ kãra rãn nĩ ver”, kemũ. Kỹ jãtã vỹ pépo vĩja han mũ se.r
kỹ pépo kãtĩg kỹ jãtã tỹ ti kur rĩnh mũ ju ti vẽkyn fã kãra rã mũ ser.
Kỹ tóg ẽmẽ ka nĩg tĩ ser . kỹ jãtã vỹ kãtĩ kỹ ti vẽkyn fã vynky tĩ mũ
ser kanhkã ra.
Aqui, o professor adota um “estilo” diferente na sua narração.
Apesar de estar escrevendo sua versão de uma das mais conhecidas
fábulas no repertório das narrativas kaingang, ele adota um tempo de
pretérito perfeito; o que é diferente nas narrativas orais das fábulas,
onde
encontramos
expressões
que
nos
remetem
ao
pretérito
imperfeito, usando termos que dão essa idéia. Uma análise desses
termos é um tema muito interessante para um outro momento.
Capitulo VI
Ti si kãme
Essas narrativas chamadas Ti si kãme relatam os fatos mais recentes.
São as histórias “verdadeiras” do povo kaingang. Parecem mais um
diálogo narrativo. O interlocutor interfere com parênteses de curtas
reflexão e, muitas vezes, acrescentando informações. A introdução já
é feita com um fato marcante da história.
Kỹ fi ne tỹ ser ag jo (...) fi tỹ ũ ag tỹ ag tỹ hãnrikej ken vé ser.
Kỹ fi ne tỹ ser ag mỹ “katy tỹ tĩ, inh krã, mũnỹ!” ke tĩ ham.
Ãpãn kã ne tỹ mũg tĩ ham, kanhgág ag jamã ũn ra ham.
Ag kanhgág jũ ag kri rãg jé ham, tag ki ke ag, kanhgág pẽ ag.
Hara fag ne tỹ ser goj... goj je tỹ kã sag tĩ, goj mag. Kỹ fag je tỹ
ser, goj kafã ãn hã kã nĩ kỹ ser, fi ne tỹ ser pãvãnh nĩj ham.
Tradução:
Então, ela previu, para eles, qual seria a reação dos outros.
E disse, para eles, “está calmo, vamos”, (dizia).
Andavam a pé, sim, para a outra aldeia.
Para surpreender os índios selvagens. Sim. Os daqui faziam. Os
kaingang.
Então eles, num rio... Havia um rio, um rio grande. Na margem desse
rio, ela (kujá) se punha a fazer suas previsões.
Esta narrativa conta a história da guerra dos Kaingang com os
Xokleng, por causa de território.
Capitulo VII
Jé (Cantos de Animais)
Contam as lendas que, no princípio, eram os animais que
faziam a festa do Kiki. Que cada animal tinha o seu próprio canto e
que, ao redor do fogo, tomavam da bebida e entoavam seus cantos.
Pénkrig fi Jé (Canto da Formiga) foi registrado por Zílio Jagtyg
Salvador; e Krág Jé (Canto da Queixada) e Ójor Jé (Canto da Anta) o
foram por João Carlos Kasú Kanheró, no cd “Kanhgág Ag Vĩ Ỹmã Mág
Ki” / Vozes Kaingang na Aldeia Grande. (KASÚ et alii 2004/2005).
Pénkrig fi Jé (Canto da Formiga)
à ne tetĩ nĩ / O que carregas?
à ne tetĩ nĩ / O que carregas?
à ne tetĩ nĩ / O que carregas?
à ne tetĩ nĩ /O que carregas?
Isỹ ũ tẽtá fi / quando a mulher
ãgtynyn jẽ ven kỹ / socando algo (no pilão), a vejo
Ka ta inh mỹ há tĩ / feliz eu fico
Ka ta inh mỹ há tĩ / feliz eu fico
Isỹ ũ tẽtá fi jagtynỹn / quando, do socado da mulher
mru ko tĩn kỹ / as migalhas como
ta inh mỹ há tĩ / feliz eu fico
à ne tetĩ nĩ / o que carregas?
à ne tetĩ nĩ / o que carregas?
Krág Jé (Canto da Queixada)
Pó gryngran, pó gryngran, pó gryngran (imitação do barulho das
pedras)
Kry gryg gryg, kry gryg gryg
pó gryngran, pó gryngran
kryg gryg gryg, kryg gryg gryg
kryg gryg gryg, kryg gryg gryg
mỹ hághá ra / alegrem-se
mỹ hághá ra / alegrem-se
kryg gryg gryg, kry gryg gyrg, kry gryg gyrg
pó jugpó goj jur mĩ / pedras sobre as águas, saltadas
jy kutã kỹ tỹ inh mỹ há / sobre elas cruzei e alegre estou
Kỹ isỹ ũ / e alguém
inh kanhkã / parente meu
ag mré vã / com eles po...
vãre kỹ / posar então
mĩ takã tỹ inh mỹ / por isso, eu
há tĩ hamã / alegre estou
pó gryn gran, pó gryngran, pó gryngran
kry gryg gryg, kry gryg gryg, kry gryg gryg...
Ójor Jé (Canto da Anta)
Ójor, ojor
Antas, antas
ójor, ójor
antas, antas
pãnónh, pãnónh
montanhas, montanhas
Tãpry, tãpry
subir, subir
Krág mág juvã, kri jã kỹ vyr
queixadas, seu trilho peguei e fui
Ójor, ójor... Ójor, ójor... Ójor, ójor...
Gojor mĩ ku... kutã kỹ ó... óré nig ki
Pelas curvas do rio, cru-cruzei
Nig ki rã kỹ
na lama funda, en-entrei
Inh kan mỹ han, já hón tỹ inh
Isỹ, inh mỹ, sér ja mãn kỹ
Isỹ jag mỹ, tỹj mũ, tỹj mũ
(...)
por ter sentido, prazer eu vou
pra vocês cantar, cantar
Ójor, ójor...
antas, antas...
Nesses cantos infantis, vimos que as palavras são trabalhadas.
São cantos que “brincam”. Em algumas palavras, as silabas são
duplicadas e separadas, o que acontece no último canto: ku kutã, ó
óré. Outras são repetidas: tỹj mũ, tỹj mũ.
Neste pequeno trecho do Canto da Serpente, Pỹn Jé, notamos a
presença de um tipo de rima. Observe abaixo.
Isỹ nĩgrãg nĩ ra ijé
nĩĩĩgrãg nĩ ra ijé
kukãm tĩ kỹ kri krỹ ké
kri krỹ ké
Ke jé inh vã vã.
Sê ouvidos eu tivesse
Ooouvidos eu tivesse
Na direção eu seguiria e em cima cravaria
Em cima cravaria
Ritos para chamar e proteger o espírito da criança
A prática desses ritos é muito rara atualmente. Somente os
kaingang mais antigos é que ainda os realizam. Acredita-se que
devemos proteger o espírito, para que não se desprenda do corpo.
Temos a descrição de um olhar antropológico sobre isso.
Segundo Veiga (2006), os Kaingang crêem que o corpo (há) não tem
vida sem o espírito. É o espirito que dá vida ao corpo. O espírito pode
deixar o corpo durante o sonho e ir visitar outros lugares, inclusive o
numbê, a aldeia dos mortos. Algumas doenças são explicadas como
uma perda temporária do espírito que, se prolongado, leva a morte.
Daí a necessidade da intervenção do kuiâ para restituir o espírito ao
corpo.
Especificamente sobre a proteção do espírito da criança, Veiga relata:
“Convivendo com os kaingang do Xapecó, nos anos 80, ouvi de
Vicente Fókâe a explicação que o espírito da criança é muito irriquieto
e que se assusta facilmente. Por esse motivo, se alguém necessita
cruzar um rio ou uma água qualquer, com uma criança, esta pode se
assustar e seu espírito ficar naquele lugar, o que faria com que a
criança adoecesse. Assim, sempre que andam com uma criança e
fazem uma parada em algum lugar, ou cruzam um riacho, antes de
prosseguir, falam com ela: “Tag mĩ, ikóxid. Kunĩg” (Por aqui, meu
filho. Venha!)”. (VEIGA 2006)
Ouvi de Juraci o seguinte:
Mũjé ha!
Ker kãjã nĩ hã
Tag mĩ kãtĩg nĩ
Ker ãgno kã jã nĩ hã, inh kósin!
Vamos agora!
Não queira ficar por aqui
Não pare aqui
Venha por aqui
Não fique pra trás, meu filho.
Da mesma forma, quando as famílias se acampavam na beira das
estradas nos “vãre”, dormindo debaixo de árvores, também faziam
esse ritual, por acreditar que o “tãn” (protetor, força) da árvore
roubava o espírito das crianças.
Kẽtajug!
Ker inh kósin ki ẽvãnh hã,
Inh kósin tỹ sá nỹ
Kẽtajug!
Ker inh kósin ki ẽvãnh hã,
Inh kósin tỹ kórég nỹ.
Soita!
Não olhe para o meu filho,
Meu filho é preto.
Soita!
Não olhe para o meu filho,
Meu filho é feio.
Ainda, ouvi de minha mãe, Kagmũ, o seguinte:
“Quando eu era criança, minha mãe, quando passávamos perto de
um cemitério a noite, ela me chamava também. Colocava-me
caminhando na frente dela e então falava com meu irmão falecido:
Ker ã regre fi ki ãvãnh hã
Fi tỹ inh mỹ mog há han jé
à tỹ ser inh ré mỹr...
Kur kãtĩg, inh kósin
Ker tag mĩ vãfor tĩ nĩ hã
Não olhe para sua irmã
Para que ela cresça bem para mim
Você já me deixou...
Venha agora, filha!
Não se perca por aqui
Capítulo VIII
Rituais Fúnebres
Os rituais fúnebres são parecido com os ritos de proteção do espírito.
Há quase um século, pesquisadores já observaram esse ritual.Veja
nos registros Henrich Maniser.
Muito cedo, ao despertar, começa a ressoar numa cabana qualquer
um gemido ritual que perdura, frequentemente por muitas horas. O
significado desse gemido é invariável, podendo ser traduzido pelas
seguintes palavras: “Evoquemos a lembrança (ou, bem, “eu me
lembro”) de tal ou qual parente morto, em tal época” (às vezes, já
decorreu um ano ou dois de sua morte!). Esse gemido, por sua vez,
lembra aos outros índios o destino de seus parentes mortos e seus
choros se fazem ouvir, simultaneamente, em diversas partes.
Finalmente eles são interrompidos por uma ocupação qualquer (...).
À tardinha, ao crepúsculo, e também durante a sesta no ardente
calor após o meio dia, os gemidos em lembrança dos mortos
recomeçam. Mesmo no meio da noite acorda-se com os sons
familiares de uma voz esganiçada que arrasta sempre a mesma nota
lúgubre. O índio cobre sua cabeça com sua coberta enquanto emite
esse gemido ritual. São, sobretudo, as mulheres que gemem; os
homens, bem mais raramente. (MANISER 2006)
Ainda hoje existem esses rituais, os choros e gemidos rituais,
mesmo de uma forma mais discreta.
É evidente a diferença de um velório kaingang e o velório de
não-índio, e até mesmo os dos indianos (mestiços que vivem na
comunidade, não falantes do kaingang), que já são mais “discretos”
em suas lamentações. Num velório kaingang, é bem notável a
presença de um ritual nos choros e lamentos. O que é diferente do
choro de uma situação qualquer.
Lembro-me do choro de minha mãe, quando faleceu minha avó,
há alguns anos. Nas duas noites após o sepultamento, minha mãe
nos acordou com seu choro, no meio da madrugada. Deveriam ser
umas quatro ou cinco horas da manhã. Recordava os momentos
felizes que passaram juntas, falava de como ela era alegre, das
dificuldades que passaram juntas.
Existem registros de cantos fúnebres em tempos mais antigos,
que nos dias de hoje não encontramos mais devido à influência de
outras crenças, como se pode ver nos registros de Telêmaco Borba
(1908):
Passe com cuidado a ponte. Viva bem com os outros; assim como
elles vivem bem, você também pode viver. Lá você há de ver muita
cousa que já vio aqui em minha terra, assim como o gavião. Teos
parentes hão de vir te encontrar na ponte e te levarão com elles para
a tua morada. (Cagma, iengvê, vê oanan eió nó, engó que tin in
fimbré ixan na ióngóngue, iamá que nò ô caicá, kato nô ó eká
maingvê).
Ou ainda:
Passe bem pela ponte do rio grande; chegando ao campo diga aos
outros: Eu estou aqui. Coma bem as frutas do coma e vire as pedras
que tem limo antes de passar. (Coma coma cô ondiê, ê ni moni tá,
goyo-bangue tarê io can ien caindê rain tarê, vokang ien.)
Considerações finais
Com esse trabalho introdutório sobre as Artes da Palavra no
kaingang, pode-se ter uma noção do grande leque de saberes,
conhecimentos, das formas de elaboração da palavra que existem na
tradição
oral
kaingang.
Com
isso,
podemos
perceber
as
especificidades da língua, que a tornam mais rica, mais valorizada.
Com essa abordagem inicial, podemos dizer que existe uma
variação muito complexa do gênero narrativo. Identificamos três
principais grupos, mas que se subdividem entre eles.
Relatos de
noções de tempos distintos em que ainda não conseguimos ter
definições precisas. Termos gramaticais em que parecem estar
classificando esses gêneros narrativos.
É evidente que ainda há muito a ser pesquisado e analisado. De
todo modo, este trabalho, como já foi dito anteriormente, é um
primeiro encaminhamento para a pesquisa e documentação da
tradição oral kaingang.
BIBLIOGRAFIA
BELFORT, Andila Inácio. A formação dos primeiros professores
indígenas no Sul do Brasil. in Cadernos de Educação Escolar Indígena
- 3º Grau Indígena. Barra do Bugres, MT: UNEMAT, v. 4, n. 1, 2005,
pp. 09-20.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos Indígenas e Educação. Porto
Alegre, RS: Mediação, 2008.
BORBA, Telêmaco Morocines. Actualidade Indígena. Curitiba, PR:
Impressora Paranaense, 1908.
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Kaingang: questões de língua e
identidade. Liames – Línguas Indígenas Americanas. Campinas, SP:
IEL-Unicamp, 2002.
_____. Como nasce e por onde se desenvolve uma tradição escrita
em sociedades de tradição oral? Campinas, SP: Curt Nimuendajú,
2007.
FRANCHETTO, Bruna. As Artes da Palavra. in: Cadernos de Educação
Escolar Indígena. Barra do Bugres, MT: UNEMAT. V.2, N.1 – 2003.
___________. Línguas indígenas e comprometimento lingüístico no
Brasil: situação, necessidades e soluções. Cadernos de Educação
Escolar Indígena, UNEMAT - Barra do Bugres, MT: v. 3, p. 9-26,
2004.
KASÚ et alii. Cd “Kanhgág Ag Vĩ Ỹmã Mág Ki” / Vozes Kaingang na
Aldeia Grande. Porto Alegre,RS: Funproarte, 2004/2005.
MAIA, Marcus. "O Mediativo em Karajá". In: Ludoviko Santos &
Ismael Pontes (orgs.), Línguas Jê: Estudos Vários. Londrina, PR: Ed.
UEL, 2002, ISBN 85-7216-347-6, p. 147-173.
MANISER,
Henrich
Henrikhovitch,
Os
Kaingang
de
São
Paulo.
Tradução de Juracilda Veiga. Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2006.
MELIÁ, Bartolomeu. Educação Indígena e Alfabetização. São Paulo,
SP: Edições Loyola, 1979.
MINDLIN, Betty. Tradição oral, literatura e escrita: um registro
voltado para a educação indígena. in W. D’Angelis & J. Veiga (orgs.).
Leitura e escrita em escolas indígenas. Campinas,SP: ALB/ Mercado
de Letras, 1997, p. 53-81.
TORAL, André Amaral de (org.). Ẽg jamẽn kỹ mũ - textos kanhgág.
Brasília, DF: APBKG/Dka Áustria/ MEC/ PNUD, 1997.
VEIGA, Juracilda. Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang.
Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2006.
WIESEMANN,
Úrsula.
Dicionário
Bilíngüe
Kaingang-Português.
Curitiba, PR: Editora Evangélica Esperança, 2002.

Documentos relacionados

Kujá e suas ervas medicinais - Licenciatura Intercultural Indígena do

Kujá e suas ervas medicinais - Licenciatura Intercultural Indígena do fãg mũ já nǐgtǐ,Tupē vў ti mў ji:ўў Inh vў ã fãg mũ ag kãki ke mũ, ag â ta ãg no kã inh ju ag vê jê, ke mũ,ag kirir há han nǐ, ga tag kãmǐ jag vãjãn,goj, vãnhkagta,vãnh fógán fã,jag ãkrãn fã, é tўv...

Leia mais