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AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 PODE O MONSTRO DEIXAR DE SER MONSTRO? RESIGNIFICAÇÕES DO CORPO A PARTIR DOS AVANÇOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA MONSTER CAN LEAVE TO BE MONSTERS? BODY RESIGNIFICATIONS FROM THE PROGRESS OF SCIENCE AND TECHNOLOGY Emanuel Marcondes de Souza Torquato Revista e-ciência Volume 2 Número 2 Artigo 02 V.2, N.2, DEZ. 2014 ISSN: 2318-4922 - 13 - AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 PODE O MONSTRO DEIXAR DE SER MONSTRO? RESIGNIFICAÇÕES DO CORPO A PARTIR DOS AVANÇOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA MONSTER CAN LEAVE TO BE MONSTERS? BODY RESIGNIFICATIONS FROM THE PROGRESS OF SCIENCE AND TECHNOLOGY Emanuel Marcondes de Souza Torquato1 RESUMO O artigo procura compreender a relação entre o maquínico e o orgânico presente nos diversos hibridismos que o corpo configura na cultura contemporânea. Para tanto, utiliza-se da análise de autores importantes para a discussão da cibernética enquanto ciência como Norbert Wiener, o fundador da cibernética, Clynes e Kline, Vilém Flusser, Donna Haraway, Tomaz Tadeu, Lúcia Santaella e Erick Felinto. Procede-se nesta investigação a partir da revisão da noção de monstruosidade atualizada na figura tecnológica do ciborg. Com esta discussão investiga-se as fronteiras do que é o humano e da noção de normalidade, as novas configurações do corpo, o tema da biomídia e os novos rumos que a ciência está tomando. Palavras-chave: Cibernética. Biomídia. Corporeidade. Ciborg. ABSTRACT The article seeks to understand the relationship between the machinic and the present in the various hybrids that configures the body in contemporary culture organic. For this purpose, we use the key to the discussion of cybernetics as a science as Norbert Wiener, the founder of cybernetics, Clynes and Kline, Flusser, Donna Haraway, Tomaz Tadeu, Lucia Santaella and Erick Felinto analysis authors. We proceed in this investigation from the revision of the notion of monstrosity updated technological figure of the cyborg. With this discussion investigates the boundaries of what is human and the notion of normality, the new configurations of the body, the subject of biomídia and the new directions that science is taking. Key words: Cybernetics. Biomedia. Embodiment. Cyborg. INTRODUÇÃO Experimenta-se atualmente uma verdadeira invasão dos monstros. Zumbis, vampiros, lobisomens, orcs, ogros, gigantes, dragões, animais híbridos, alienígenas e todo tipo de criatura estranha saíram do imaginário da literatura do grotesco para ganhar um lugar especial em nosso dia-a-dia através de um crescente número de filmes e seus subprodutos mercadológicos. Acrescentemos ainda a estes monstros os ciborgs, figuras tecnológicas monstruosas oriundas da literatura ciberpunk e dos filmes de ficção científica. Habitantes, em outros tempos, dos relatos fantásticos sobre o diferente, o perigoso e o estranho, na contemporaneidade, manifestam-se por vezes em figuras bonachonas e cômicas. A imagem do monstro bonzinho e que encanta e diverte as crianças, ou mesmo do monstro herói e justiceiro, parece dividir espaço com o personagem de terror, numa tentativa de amenizar o significado de tão numerosa presença. O fato é que criouse uma cultura do consumo em torno do tema monstros, indo desde os espetáculos de rock horror show e música pop, à camisetas com caveiras de apliques, joias, jogos eletrônicos, ou até mesmo biscoitos ou chocolates temáticos. Realizamse ainda, em muitos lugares, feiras para a diversão ou negócios em que a atração principal são os monstros. Para além do sentido cômico ou de terror que as manifestações dos monstros apresentam, 1 Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (2000), Especialização em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Juazeiro do Norte - FJN e Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (2005). Atualmente é professor da Universidade Federal do Cariri - UFCA, da Faculdade de Juazeiro do Norte - FJN e da Faculdade Católica do Cariri. E-mail: [email protected] - 14 - AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 trazemos uma inquietação a partir da vertente tecnológica. À luz dos novos avanços científicos e tecnológicos e da influência que exercem sobre a cultura atual, mostra-se importante compreender como os ciborgs estão engendrando um abalo na noção tradicional de corpo e subjetividade. Trata-se de um verdadeiro impacto que essa cultura do consumo em torno dos monstros exerce, a partir dos ciborgs, sobre a corporeidade, revelando-a pluriforme. Nas palavras de alguns estudiosos, trata-se de uma desconstrução e reconstrução de corpos em muitas possibilidades. Algo muito próprio dos monstros à medida que suscitam tanto uma repulsa quanto um fascínio. Procuramos, nesta pesquisa, costurar, de forma crítica, um diálogo entre textos e autores que, na contemporaneidade, analisam esta problemática em vista de encontrar um sentido que subjaza esta desconstrução e recostrução em voga. DE ONDE VIERAM OS MONSTROS? As primeiras representações dos monstros surgiram na mitologia, nas lendas, no folclore, nos contos de fadas e, mais tarde, nos relatos de viagens para terras remotas. (FELINTO, 2012, p. 84) Nessa literatura, o significado da palavra monstro estava ligado ao seu sentido literal, ou seja, “aquele que mostra algo”, no caso, uma revelação divina, ou a ira dos deuses, as infinitas e misteriosas possiblidades da natureza, ou aquilo que o homem corre o perigo de vir a ser. É, portanto, a manifestação de algo fora do comum ou do esperado. Representa uma alteração maldita ou benfazeja das regras conhecidas. Nesse contexto, os monstros aparecem como maravilhas ou prodígios do mundo, encarnando um poder incompreensível aos homens. Os monstros eram sempre identificados pelo corpo, ou seja, era na estrutura física que se apresentava a distinção entre “homens” e “monstros” e não no caráter destes, independente de ser, por exemplo, um sábio, como o centauro Quíron, ou algo horrendo e perigoso, como a Medusa. Já na Idade Média (FELINTO, 2012, p. 84), os monstros foram identificados à imagem dos demônios, passando a associá-los a um princípio destrutivo e maligno referente a sua forma amedrontadora. Nesse período, por influência da ideologia cristã na Europa, a estranheza do “fantástico” foi resignificada em grande parte no temor do maligno. O demônio tornou-se de agora em diante a grande fonte geradora de monstros, reconhecidos não necessariamente por suas ações ou intenções mas por seu aspecto físico horrendo. Constituiu-se assim uma forte associação do mal aos monstros. Dessa forma, tanto figuras míticas, quanto pessoas com corpos distintos, consideradas deformadas ou aleijadas, foram inseridas nessa definição de monstro que significa também periculosidade maligna. De qualquer modo, a monstruosidade trouxe a marca da transgressão e da desordem, da ameaça contra a natureza e contra a homogeneidade. APROXIMAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E MONSTROS As primeiras expressões que aproximam os monstros da ciência, ultrapassando a esfera do maravilhoso e teológico, encontram-se no século XVI, num tipo de literatura que combinava influências sobrenaturais e naturalistas. Para o cirurgião francês Ambroise Paré, na obra Os Monstros e os Prodígios (FELINTO, 2012, p. 85), por exemplo, o monstruoso encontra-se em atos contra a natureza que ofendem as leis de Deus. Os monstros seriam manifestações físicas, palpáveis, corpóreos de atos pecaminosos constituindo-se basicamente em deformidades que poderiam ser explicadas pela ciência. É curioso notar que foi no século XIX que essa compreensão dos monstros enquanto deformidades corpóreas ganha as feições de espetáculo performático. Na América do Norte desse período, os freak shows eram muito comuns e constituíamse em espetáculos dedicados à exposição pública de bizarrias, as anomalias e deformações que afetam o corpo. Foi nesse mesmo século, em 1832, que o zoólogo francês Geoffray Saint-Hilaire criou a “teratologia”, do grego terato, monstro, ou seja, a ciência que estuda as deformidades do corpo. Empregou-se este termo em diferenciação à raiz latina monstrum, para distinguir os tratados que abordavam as deformidades orgânicas daqueles que as misturavam às explicações mágicas e espirituais. Porém, não obstante esta preocupação científica, a anomalia continuou ainda a ser vista como monstruosa e como marginalização da deformação física. (FELINTO, 2012, p. 85) Há, entretanto, relatos que retratam o monstruoso numa outra esfera, desvinculada de uma geração orgânica, deformada ou não, mas o coloca no âmbito do puramente artificial, separado e construído. Um deles pode ser visto na interpretação do mito de Prometeu. Titã, descendente de uma antiga raça de deuses destronada por Zeus, sabendo que a Terra continha a semente dos céus, Prometeu fez o homem a partir da argila e um pouco de água. Admirada diante da obra, a deusa Atena concedeu ao humano o sopro divino. O primeiro invento foi dar origem à humanidade à qual Prometeu ensinou todas as competências. A ela só faltava o dom do fogo, algo que havia sido proibido por Zeus. Ao transgredir a proibição, Prometeu é castigado. Acorrentado a um penhasco do Monte Cáucaso, uma águia devorava-lhe o fígado cotidianamente. Seu sofrimento durou eras, até que, penalizado, Zeus lhe imputou um castigo mais brando. Outra figura emblemática de uma forma de vida que não passou pela reprodução sexuada encontra-se na lenda judia do Golem. Tendo emergido nas comunidades judias da Europa Central, ganhou popularidade no século XIX. O Golem é um ser mágico, criado a partir do barro, que tinha por função proteger os judeus contra perseguições. Por ser uma criatura reduzida ao silêncio, privada do dom da fala, sofria de deficiências nos poderes da razão não chegando a ser considerado um humano. Embora fosse uma criatura forte era também - 15 - AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 desajeitado, tornando-se perigoso. Ele é um bobo pesadão que desconhece tanto sua força como o grau da sua falta de jeito e ignorância. Sem controle, pode destruir os amos com sua agitada vitalidade. Indica-se aí, com clareza, as fraquezas e, porque não dizer, a aberração da criação artificial estranha aos desígnios divinos. A figura mitológica do Golem foi, muitas vezes, tomado em analogia com os perigos monstruosos dos artifícios tecnológicos e da desumanização provocada pelas máquinas que privam o mundo da espontaneidade e das emoções. Outro exemplo é o romance de Mary Shelley de 1818, Frankenstein (FELINTO, 2012, p. 86-87), representante da essência dos medos e esperanças evocadas pelas novas tecnologias. Entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o natural e o artificial, esse personagem borra as fronteiras. Mantém-se nele tanto a dinâmica da monstruosidade quanto a punição pela transgressão das leis da natureza. Essas questões permanecem hoje na ansiedade em torno das consequências dos experimentos científicos, sobretudo aqueles que manipulam matéria viva. Frequentes analogias aparecem atualmente entre a figura do Frankestein e a possiblidade de uma tecnologia senciente, ou seja, ao mesmo tempo consciente e sensível, podendo estar presentes no robô, nos androides e nos computadores inteligentes. O que percebemos nos três exemplos apresentados é que se confundem as posições do monstro, ora podendo ser assumido pela criatura, produto da manipulação do natural através da transgressão da sua ordem, ora pode ser visto no criador, transgressor da essência, em busca de pervertê-la à outra ordem através da mistura que, como castigo, volta-se contra seu engendrador. Quaisquer misturas ou hibridismos é imputada, portanto, de monstruosidade por transgredirem a crença de que a natureza humana é ontológica. Nas palavras de Latour, Quando nos vemos invadidos por embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas digitais, robôs munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos liberados de forma controlada, baleias equipadas com rádio-sondas, sintetizadores de genes, analisadores de audiência etc, quando nossos jornais diários desdobram todos esse monstros ao longo de páginas e páginas, e nenhuma dessas quimeras sente-se confortável nem do lado dos objetos, nem do lado dos sujeitos, nem no meio, então é preciso fazer algo. (FELINTO, 2012, p. 87) Estes novos monstros surgem quando despertam nossa horrorizada curiosidade, porque abrem brechas e desestabilizam nossas certezas. São monstruosas todas as criaturas instaladas numa linha onde as identidades se tornam instáveis e as diferenças borradas. E assim, como pudemos ver, o que mais espanta é a generalização da simbiose entre máquinas e organismos, no mundo contemporâneo, que torna cada vez mais difícil distinguir aquilo que é puramente orgânico daquilo que é puramente máquina. Já não temos mais nitidamente definida as fronteiras que nos fazem perceber onde termina o humano e onde começa o maquínico. Ou, nas palavras de Tomaz Tadeu (2009), dada a ubiquidade das máquinas, onde terminam as máquinas e começa o humano. OS AVANÇOS DA CIÊNCIA NO CAMPO DA BIOMÍDIA As questões atuais acerca do corpo, que o tão popular tema da monstruosidade evidencia, são desencadeadas nos tempos atuais pela revolução biotecnológica. Pesquisas em áreas como a farmacologia, fisiologia cerebral, tecnologia reprodutiva, próteses, biônica, terapia genética e engenharia de células tronco trazem questões psíquicas, culturais e éticas que vão muito mais além dos limites meramente técnicos, reacendendo o debate sobre o monstruoso e o normal. O russo Vladimir Mironov, em Campinas, no interior de São Paulo, no Centro de Tecnologia da Informação, um centro de pesquisa ligado ao Ministério das Ciências, Tecnologia e Inovação, desenvolve, desde 2013, um projeto de pesquisa sobre bioimpressão. Seu intuito é desenvolver uma impressora 3D que imprima tecidos e órgãos vivos. O trabalho de Mironov envolve também teste com um braço robótico capaz de imprimir tecidos vivos a partir de uma tinta orgânica contendo células tronco. Essa tecnologia, de uma certa forma, já existe em instituições americanas. Nos Estados Unidos células do fígado foram impressas pela empresa Organovo, um rim foi impresso na Universidade Wake Forrest e músculos e veias do coração na Universidade Missouri-Columbia (ROTHAMAN, 2013, p. 52). Tudo isso hoje já é possível graças às revoluções na biologia que vêm ocorrendo desde a descoberta da estrutura química do código genético. A identificação da dupla hélice do DNA permitiu à biologia estabelecer com precisão a natureza exata do material genético. Os quatro nucleotídeos básicos, adenina, citosina, guanina e timina, subunidades de uma cadeia de DNA, formam o alfabeto da informação genética e dos milhares de configurações possíveis que tornam o DNA um código informacional. A partir dessas descobertas, a biologia teve de recorrer a princípios de organização desconhecidos, até então, para química orgânica, ou seja, as noções de informação, de código, de mensagem, de programa, de comunicação, de expressão, de controle, tratando agora não da matéria vida, mas sim de sistemas vivos controlados informacionalmente. A biotecnologia torna-se, assim, uma tecnologia da escrita e processamento informacionais, utilizando a biomídia como matéria prima (HARAWAY, 1991, p. 164). Fala-se agora, no tocante à tecnologia da informação, não apenas em hardware e software, mas em um componente novo e úmido, o wetware. (SANTAELLA, 2003. P. 28). O ciborg RECONSTRUTOR DE CORPOS O neologismo ciborg (cib – ernético mais org – anismo) está ligado à imagem de corpos híbri- 16 - AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 dos, misturas de humanos e máquinas em figuras bizarras e assustadoras presentes nos filmes hollywoodianos inspirados em ficção científica, como o cyberpunk “Neuromancer” de William Gibson. No entanto, não se restringem apenas aos seres monstruosos da ficção. Os ciborgs de fato existem, como defende Donna Haraway, na obra Manifesto Ciborg (2009). O Termo ciborg foi utilizado primeiramente por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas homem-máquina autoregulativos, quando ambos aplicavam a teoria de controle cibernético aos problemas que as viagens espaciais impingem sobre a neurofisiologia do corpo humano. No contexto da relação do programa espacial norte-americano com a pesquisa médica, o ciborg foi proposto como uma solução para as alterações das funções corporais ao se acomodarem a ambientes diversos. Diferentemente do ciborg de Clines e Kline (1960), que foi concebido como uma espécie de super-homem capaz de sobreviver em ambientes extraterrestres hostis, Haraway (1991) apropriase da possibilidade polissêmica do ciborg utilizando-o como uma metáfora carregada de ironia política contra o capitalismo patriarcal, numa apropriação da forma transgressora do termo e da noção de corporeidade que propõe. Hoje, as tecnologias biológicas e telemáticas estão redesenhando nossos corpos. Os ciborgs apresentam-se nas hibridizações do corpo com as próteses tecnológicas. Trata-se do corpo corrigido e expandido através de próteses, construções artificiais como substituto ou amplificação de funções orgânicas. São alterações fundamentais do corpo, visando aumentar sua funcionalidade interna. Desta forma, o horizonte de possibilidades é amplo, desde as lentes corretivas para os olhos, aparelhos auditivos e as próteses funcionais que substituem partes do corpo, a exemplo das próteses dentárias, até a substituição de funções orgânicas, como marca-passos, órgãos artificiais e implantes de biochips. Para Haraway (1991), o que nos impede de reescrever os nossos corpos? O fazemos o tempo todo nas academias esportivas através das tecnologias do body building com a utilização de suplementos químicos. O fazemos o tempo todo através do nível de pervasividade e ubiquidade a que chegou a tecnologia atual, sem falar nas intervenções artificias da medicina estética. Mais do que construir nosso corpo, é possível construir nossa identidade, nossa sexualidade, até mesmo nosso gênero, nossas formas de sociabilidade, exatamente da forma que quisermos. Ser ciborg então, tem a ver com a liberdade de autoconstruir-se. As novas tecnologias estão suscitando uma desestabilização na crença dos limites corporais e de uma identidade unitária. Como matéria do vivido, o corpo tornou-se o foco privilegiado para a atividade constante da modificação e adaptação por meio da troca de informações com o ambiente. Para Santaella (2004, p. 57-64), mais do que intra ou extracorporais, as transformações do corpo biocibernético seguem três movimentos. O primeiro vai de dentro do corpo para fora dele. Trata-se das conexões permitidas por serviços informáticos telecomunicacionais, acessíveis por meio de um enxame de dispositivos smarts. São dispositivos que possibilitam ultrapassar os limites espaciais, transportando a mente sem a necessidade de deslocar o corpo. O segundo movimento refere-se ao que se posiciona, ao mesmo tempo, fora e dentro do corpo. São as técnicas de body building e body modification ligadas às cirurgias plásticas, enxertos, à química de esteroides e às técnicas de piercing e tatuagem. O terceiro vem de fora do corpo para dentro dele. São os implantes e próteses que pretendem corrigir funções orgânicas avariadas, ou ampliá-las, transformá-las e até mesmo criar novas funções. Toda essa realidade em torno do corpo vem provocando perplexidade, ansiedade e angústia. Lembra pesadelos de outras épocas que perpassavam o imaginário. Fazem ressuscitar os monstros em legiões numerosas. Como dizem Felinto e Santaella (2012 p. 81), essas novas tecnologias e intervenções no corpo produzem um rombo no imaginário porque escancaram o real do corpo, provocam o temor do seu desmembramento, provocam crises nos seus conceitos tradicionalmente tomados como garantidos. À medida que estas transformações anunciam um fenômeno ainda não inteiramente codificado, não absorvido pela cultura, traduzem-se nas representações diversas da cultura atual como monstruosidade. A fusão entre o natural e o artificial, quando conscientemente percebido, amedronta e aterroriza, sobretudo pelas consequências ainda não medidas dessa simbiose. As máquinas não sentem paixão e piedade, raiva e ternura, alegria e medo, não sentem dor nem saudade. No entanto, a cada dia cresce o potencial das chamadas máquinas inteligentes nos situando numa compreensão que enxerga borrada as fronteiras entre humanos e não-humanos. A idéia do ciborg é aterrorizante. A medida que coloca em xeque a originalidade do humano, exige de nós repensar a noção de fronteiras e de normalidade. Talvez abra a possibilidade de um novo humano. Sendo assim, atrevemo-nos a perguntar onde está o monstro e se ele poderá deixar de ser monstro, se nos transformaremos em zumbis ou ciborgs ou em “outros humanos”. - 17 - AR TIGO DE REVISÃO ARTIGO Pode o monstro deixar de ser monstro? Resignificações do corpo a partir dos avanços da ciência e da tecnologia - 13 a 18 REFERÊNCIAS CLYNES, M. E.; KLINE, N. S. 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