paulo scott

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paulo scott
paulo scott
Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System
habitante irreal
Este livro contou com o Programa Petrobras Cultural
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a primavera do habitante irreal
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Donato
Uma criança de cinco anos com os pés descalços na areia,
diante do mar pela primeira vez, e logo sob a luz a pino de
um dia de verão escaldante como este, precisa de um bom
tempo pra compreender o que seus olhos, sem acuidade pra distâncias, conseguem captar. Por isso, enquanto
Henrique pega jacarés nas ondas da praia do Siriú, Donato permanece estarrecido ante a vastidão do horizonte
turquesa prevalecendo sobre qualquer outra imagem ou
objeto que se anteponha, subtraindo a imagem ou a figura que for pra dentro de sua enormidade, como subtrai
Henrique, nesta primeira vez em que saem de São Paulo. A babá veio a seu lado no banco traseiro da Ipanema
cinco portas, improvisando histórias enquanto Henrique
dirigia cauteloso sozinho na frente. Donato fez de tudo
pra ser adorável durante as risadas e também quando a
acompanhou na hora de colorirem as folhas de papel com
caneta hidrocor, fabricando nelas os aviões a jato da Força
Aérea Brasileira, os que neste minuto abarrotam a sacola
de vime junto ao balde azul e ao ancinho verde sobre a
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estranha solidez da areia. Acompanhá-la nas brincadeiras
foi o modo que encontrou pra não ser inoportuno, foi
sua maneira de cooperar com Henrique, ser cooperativo,
e aceitar a possibilidade de se eximir das lembranças que
continuam sem discernimento tomadas por interregnos
que em breve não existirão, de buscar harmonia praquela
convivência e admiti-la como contraponto a algo que é a
parte palpável da solidão (de uma solidão que já foi sua
vida também), sim, mil vezes sim, cooperar, ser cooperativo, inventar nisso uma ordem sucinta, uma recriação
que servirá em todos os futuros, próximos ou não, nutrindo o desejo de que um dia, num desses futuros, possa
negligenciá-la, pois, como qualquer outra criança, Donato quer mesmo é a normalidade pura e a normalidade
do medo presentes no esfacelar, irrealizável, das imagens
televisivas em sua cabeça (o irrisório por meio do qual ele
reconhece um código infalível pra chegar à alegria, todos
os dias, e de novo à alegria), monstros de bolso que viram
monstros maiores, esferas das quais depende todo o futuro da raça humana e do universo, golpes, fugacidade em
roupas indescritíveis, estímulos oscilando entre o amarelo
iniciante e o mais trágico vermelho, e, então, de súbito,
alguém, que ele não consegue reconhecer, lhe segura pelas axilas e o ergue mais de metro acima, e ele já não está
olhando o mar (há apenas a impenetrabilidade do céu) e
vai sendo atravessado por uma eletricidade avessa absurdamente lenta como se a gravidade estivesse se propagando dentro de outra pessoa, plantada, arrancada e replantada em outra pessoa, e não combina, ou encaixa, com a
situação vertiginosamente rápida e descomunal, que na
verdade é um peso esvaziando pra dentro de seu peito,
um desenho animado exato na parte em que o avião do
mocinho está caindo sem combustível, sob o realce apelativo duma sonoplastia nipônica; agora, a culminância
do céu dá impressão de estar congelado em azul à frente
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de seus olhos, é aflição, incompletude carregando o susto
que ele não conseguiu presumir e que (de uma eletricidade pior) se renova quando, ainda na mesma ação, seus
pés passam da altura da própria cabeça, e ele tenta gritar,
mas sua voz não sai (e se saísse, com certeza, seria a da
outra pessoa, a pessoa que ele precisaria ser e cuja fala é
determinada, é o comando de monstros de bolso virando
monstros maiores), está presa no estômago e cercada de
maneiras de admitir, e já não há como ir mais alto e por
isso agora seu corpo se ocupa de um modo diferente, e
na trajetória entre todos esses tempos, ainda com dificuldade, ele, Donato, compreende a queda. “Mas você está
um chumbo, Nato...”, escuta duma voz feminina e, sem
chegar a supor que seus pés estavam pra tocar o chão, se
dá conta de que sobe novamente, sobe como se estivesse
preso a molas, e prossegue num lance, numa decolagem
acrobática, como as personagens da tevê, livre, perguntando-se se assim é a vida, se esses serão os seus poderes e essa
a sua iniciação heroica, rosqueando em cento e oitenta
graus até voltar às mãos firmes que o apanham antes dele
despencar e o mantêm à altura do rosto da mulher, o tipo
de mulher de televisão, mas que ele não identifica, como
não identificou a voz. “Pesado e enorme, indiozinho...”, a
mulher o encara, “não está reconhecendo a Luisa”, ela diz
e finalmente o conduz ao chão. “Trouxe um presente pra
você”, e pega do bornal atravessado no peito uma coruja
entalhada em madeira, medindo uns quinze centímetros
de altura. Donato não diz nada, mas reconhece o objeto
que já foi seu brinquedo. Ele estende os bracinhos, quase
salta sobre ela, segurando-a firme, com uma agressividade que não é sua (como se tudo ao redor diminuísse de
importância), e se volta na direção das dunas e fica assim,
estanque, embriagado pelo odor da madeira, da tintura à
base de cipó, da terra e da gordura que ainda estão ali incrustadas, e lhe vem a ânsia envolvida numa certeza tele-
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visiva de habitar o volume da coruja, voar no seu interior
como voam as animações a que ele assiste todos os dias
pela manhã na tevê da sala da casa do seu pai, quer voar,
driblar as fibras do cinamomo entalhado. A mulher passa
uma das mãos sobre sua cabeça, com a outra acena pra
Henrique, que já a percebeu, e pergunta: “Henrique está
te dando muito trabalho, Juruninha?” A criança segue
atônita, tenta lembrar à sua maneira como era a voz da
coruja, a voz feminina que havia dentro da coruja (ou que
a circundava), mas a coruja está muda e a cada segundo
mais diminuída de familiaridade. “Tu não te lembra mais
da Luisa, não é?... Pena. Catorze meses são um século, eu
sei... Mas, não esqueceu da coruja. Isso é bom...” A mulher volta a olhar Henrique, ele agora está saindo do mar.
“Vida nova...”, toca a ponta do nariz de Donato e, sem
dizer mais nada, caminha até a margem. Donato olha pra
coruja, depois pras pessoas que estão próximas (não há
muitas, a maioria sentada sob seus guarda-sóis), detém-se
na babá, ela está de óculos escuros a uns cinco metros,
não é possível saber pra onde ela olha, se ela o percebe
ou não. E trava, não consegue manipular os detalhes ou
induzi-los, não consegue sequer retê-los. Em algum lugar
não muito longe daquela beira de praia, muito provavelmente em Garopaba, há tevês ligadas (Donato não sabe)
e nelas uma pediatra está dando entrevista ao jornal do
meio-dia. Solícita, explica que a ação motora da criança,
seja pelo movimento ou pelo toque, é o que reforça sua
atenção visual, é o que permite que ela explore e provoque o ambiente. Donato não manipula o ambiente, não
provoca o ambiente. Donato apenas cogita estar na altura
fabulosa daquelas dunas mais adiante à sua direita, iguais
desenhos, gigantes arenosas, monstros oferecendo suas
couraças, onde talvez esteja a demasia das lembranças que
ele não está encontrando na coruja de madeira. Henrique
e a mulher se entretêm a pouco mais de vinte metros de
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onde Donato está. Falam a seu respeito, embora ele não
perceba, porque está de costas (e também porque não
passa de uma criança) articulando o pensamento como
nunca articulou, gastando os minutos como nunca gastou, antes de caminhar atrás da vulnerabilidade daquela
paisagem inédita, antes de manter o olhar fixo nas dunas,
ensaiar uns passos, olhar a babá indiferente, deixar a coruja cair na areia, e correr, correr de verdade.
Meses se passaram desde aquela vez na praia, a mulher
tem nome, mas seu nome não é dito com frequência
por ele (é um nome que ainda não cabe no apartamento onde mora com Henrique e a nova babá, um nome
que ele ainda não quer). Ela, a mulher, está em dúvida
se virá morar com eles em São Paulo, pediu um tempo
pra pensar, decidir se largará mesmo o Rio de Janeiro, a
qualidade de vida que só existe lá. Donato sabe escutá-la,
aprende muito escutando ela falar, ela é rápida e imprevisível, Henrique não é tão imprevisível. Por isso é Cássia,
secretária pessoal contratada por Henrique quando alugaram o apartamento no Sumaré, quem o acompanha
neste primeiro dia da pré-escola. Mandá-lo pra uma instituição bilíngue talvez fosse melhor e mais barato, mas
ao inscrevê-lo nesta, onde o inglês é a língua preponderante e setenta por cento das vagas se destinam a filhos
de estrangeiros residindo no Brasil, Henrique imagina
estar assegurando que o menino sofra menos. Donato
aprenderá o inglês e melhorará seu português ao mesmo
tempo, terá de se virar junto com outras crianças que
também precisam se adaptar. Henrique, o seu pai, não
está certo dessa decisão, mas quer a melhor das sortes pro
filho que escolheu. Não foi simples conseguir a carta de
matrícula, um dia Donato saberá disso. Se não estivesse
assessorando este grupo de indústrias norte-americanas
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interessadas no aprimoramento da lei de patentes no
Brasil, grupo cujo porta-voz é vice-presidente da associação de pais e mestres da escola, dificilmente a diretora
geral abriria a exceção. Claro, há exigências, uma quantidade de exigências nada simples. Como salientou o coordenador responsável pelas matrículas, o receio maior
da direção é que Donato acabe prejudicando o aproveitamento dos demais. Por isso, acertaram que receberá
orientação extraclasse intensiva pra compensar suas deficiências em relação à língua e, no final de maio, será submetido a uma avaliação. A palavra mudança é uma das
que Donato melhor entende. Quase sem levar em conta
a pouca idade (como faria, por exemplo, um treinador
de ginástica olímpica com seus fedelhos ou o professor
de um prodígio recém-saído das fraldas à procura de um
possível gênio da música), Henrique lhe disse que uma
vida completa exige grandes mudanças, disse que tudo
está pronto, mas que a mudança exigirá o empenho de
ambos. Donato sente o seu amor e se esforça de verdade pra acompanhá-lo. E quando o táxi para em frente à
escola Cássia pede ao motorista que a aguarde, pagará
depois, sabe que estão atrasados, caminha com Donato até o guichê de recepção, onde há uma jovem que
fala com eles em inglês, o cumprimento de boas-vindas
constrange Cássia (que é bastante atilada, competente,
mas não tem um inglês tão bom assim) e a faz apenas
informar, sem ter certeza sobre seu português ser entendido, que Donato é aluno novo. A jovem imediatamente passa a falar um português com sotaque estrangeiro
bem carregado, justifica-se dizendo que as crianças ali,
em geral, têm boa noção de inglês e que foi só por força
do hábito que deixou de recebê-los em português. Cássia envolve com as duas mãos as bochechas de Donato
e lhe deseja boa sorte. Donato lhe devolve um sorriso
curto. A moça da escola o segura pelo ombro e o leva
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em direção à sala de aula. Passam por corredores. Param
diante da sala onde está acontecendo a aula, sua anfitriã
bate na porta. Não demora muito até o vão se abrir, e
ele enxergar seus futuros colegas sentados em grupos a
volta de mesas hexagonais. A professora o encara e sorri.
A menina da recepção entra com ele, a professora já está
informada sobre as peculiaridades do novo aluno e, ao
menos desta vez, se dirige a ele falando em português.
Após anunciar seu nome aos demais, mostra onde ele
sentará. Na mesa indicada estão mais três crianças (é a
única mesa incompleta da sala), ele não chega a olhar
seus rostos, a que está ao seu lado, uma garota de pele
negra, toca no seu braço e diz com sotaque afrancesado
se chamar Rener, mas que seu apelido é Açúcar Mascavo,
ele olha na direção dela sorrindo, e, em guarani, fala que
é bom estar naquele lugar, a menina sorri também e fala
que o cabelo dele tem uma cor bonita. A professora passa
distribuindo folhas brancas e giz de cera, ele ganha um
cinza-escuro. É a primeira tarefa, e ele a realiza com facilidade porque basta acompanhar os outros três sentados
à mesa. Os minutos voam. A metade da manhã passou
e veio o intervalo e todas as crianças foram a um pátio cercado, onde havia brinquedos que exigiam duplas,
trios, grupo contra grupos. A maioria delas agia como se
aquilo fosse seu, sua propriedade, como se houvessem
ensaiado na véspera ou usassem alguma espécie de telepatia, porque eram tão precisos e coerentes ao combinar
ações nas gangorras, no escorregador, na escada horizontal, na prancha-vaivém, nos balanços, na gaiola-labirinto
e no foguetinho aramado, os mesmos brinquedos que
aparecem ao fundo na foto tirada com a turma inteira no
final daquela mesma manhã depois que a professora lhes
passou pequenos quebra-cabeças pra serem montados e
colocados em uma folha de cartolina como tema de casa
(na foto, Rener apareceu olhando direto pra ele, bela, es-
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guia, sem o menor constrangimento; ela garante que foi
nesse dia que o apelidou de Curumim, mas não é verdade). Aquela manhã foi o mais perto que pôde chegar do
verbo enturmar-se durante todo o ano de mil novecentos
e noventa e cinco. Somente no outro dia, quando a professora lhes passou atividades mais complexas, foi entender que não adiantaria ficar assistindo as coisas acontecerem e copiá-las. Com o passar das semanas, a linguagem
rapidamente deixou de ser ferramenta insólita. E na data
da avaliação, sobrecarregado de palavras desconhecidas,
de lacunas sem aproximação tátil, Donato compreendeu
que precisava ser exatamente como seu pai queria.
Fim do ano. Lada Niva é a marca e modelo que ele mais
gosta de dizer, depois vêm Fiat Uno, Scania Saab, Toyota
Bandeirantes e uma lista variada e extensa de outras nomenclaturas quase todas compostas ligadas ao inesgotável mundo automobilístico. Fora disso, gosta de palavras
como bombeiro, aviador, salva-vidas, esta, por sinal, impressa em amarelo nas costas da camiseta vermelha que
está usando neste momento quando ele e Henrique se
dirigem ao aeroporto de Guarulhos pra encontrar com
a mulher. Estão na Marginal Tietê, um dos raros lugares
que o fazem achar as coisas mostradas na televisão menos
impressionantes, é quase o seu lugar preferido em São
Paulo. Veículos incontáveis em diferenças sem trégua que
o fazem cobrar de Henrique os devidos nomes e as devidas atualizações de modelos (há coisa de cinco minutos
foi o Maserati, visto pela primeira vez), tudo assimilado
tão rápido quanto o bate-pronto das respostas dadas em
função das perguntas que ele próprio se encarrega de fazer. Essa é a maior prova de que se integrou perfeitamente
à vida nova. Confortável que está na versão menino classe
média alta paulistana dedicado de corpo e alma à sua co156
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leção de miniaturas Matchbox e Hot Wheels. Hoje é o
primeiro dia das suas férias de verão, sente-se orgulhoso,
porque Henrique, simulando uma conversa entre adultos, lhe contou no café da manhã que todas as expectativas quanto a seu desempenho escolar foram atingidas e,
por isso, ano que vem, ele continuará no mesmo colégio.
Isso é bom, porque lá tem essa menina, Rener, que é entre os colegas quem mais o inspira na hora de ter certeza
do que dizer, como falar. Por causa do seu mérito, do
seu mérito exclusivo (foi essa a expressão que Henrique
usou), passaram o final da manhã na livraria aquela da
Paulista pra que ele pudesse escolher dois livros. Henrique não foi explícito quanto ao idioma, mas Donato
sabia o que o pai esperava dele. Escolheu um em português e o outro em inglês. Donato compreende a enorme
dedicação de Henrique, de Henrique seu pai, pra serem
os dois uma família. Na escola, as professoras mais velhas
falam bastante em família e em Deus (a palavra Deus o
perturba menos do que a palavra família). Nas ilustrações que faz, ficam apenas ele e Henrique. Donato gostaria de desenhar alguém segurando sua mão esquerda. A
partir de hoje sabe que poderá desenhar a mulher, ela é
quem segurará sua mão esquerda. Donato espera poder
desenhá-la muitas vezes, desenhá-la pra sempre, espera
que ela se esforce (tanto quanto os dois) pra tirar muito
bom e ótimo, como ele conseguiu tirar em quase todos os
trabalhos da escola. Donato compreende a enorme dedicação de Henrique. Donato compreende Henrique e, na
maior parte do tempo, procura se antecipar às ações dele
pra não decepcioná-lo. Na primeira e única vez em que
reagiu agressivamente contra um colega, foi levado à sala
da diretora, que lhe disse “você tem sorte de ser acolhido
por uma pessoa tão boa quanto o senhor Henrique”, disse
que atitudes indisciplinadas como aquela só o decepcionariam. Decepção é uma palavra que Donato não gosta,
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mas que apesar disso o ajuda a compreender o mundo,
mais até do que outras palavras boas de dizer. Decepção
justifica palavras do tipo cuidado, que pra ele assemelha-se a Guarulhos (nome que vem das Tribos Guaianases,
isso foi o que Henrique lhe explicou antes de embarcarem
no carro hoje depois da livraria). Guarulhos é palavra que
Donato gosta, mas acha um pouco estranha, pesada na
boca, como achou estranha outro dia, embora não tão
pesada, a palavra anafilático que tentou dizer e não conseguiu. Isso levou Henrique a insistir pra que tentasse mais
uma vez. Ele tentou e não teve sucesso, e Henrique a pronunciou pausadamente. Tentou de novo e não conseguiu.
Não foi a primeira vez que o estimulou a acertar, a se
corrigir e dizer uma palavra que fora interrompida ou que
nem sequer foi iniciada. A sensação que Donato tem nessas situações é a de estar jogando Pega Varetas da Estrela
sozinho, uma partida na qual não tem permissão pra ser
derrotado e, no entanto, jamais lhe será permitido vencer.
Durante o verão, quando estiverem passando mais tempo
juntos (e porque desta vez a mulher será espectadora, uma
espectadora com quem se possa contar pra ser espectadora), Henrique lhe cobrará com certo rigor a pronúncia
correta das palavras, em português e inglês, e daí, quando
março vier, falar com fluência e exatidão pra Donato será
dever absoluto, chega de criancice, dirá pra si mesmo de
uma maneira sua, e anos depois será malabarismo. Em
Guarulhos encontram fácil uma vaga no estacionamento.
Quando chegam à área de desembarque descobrem que
a chegada do voo atrasará em meia hora. Donato pega
a mão do seu pai, Henrique é seu pai, e aperta forte. E
quando recebe atenção, mesmo que abreviada, (como se
explodissem em sua boca) diz as palavras que não conseguiu pronunciar durante a viagem, pronuncia em carreira, uma, duas, três vezes, vencendo um opositor que
jamais estará no conflito imaginário do seu Pega Varetas
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da Estrela, dando sua resposta à dedicação de Henrique
pra serem uma família, como a família que as professoras
mais velhas ensinam na escola.
A mulher e o seu pai não se entendem. Donato não
consegue ajudá-los. Henrique não sairá de São Paulo,
e parece que ela conseguiu trabalho numa universidade
do Rio de Janeiro. Donato acha que será bom quando
inverterem os hábitos de visitação e ele e seu pai passarem um tempo com ela no Rio. Donato deixa na sua
escrivaninha a coruja e de vez em quando faz guerra
entre ela e outro brinquedo, a coruja sempre vence. A
foto dele com Rener (que ele retira da gaveta só nessas
situações) é o juiz.
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Anos depois. Luisa e Henrique finalmente se acertam. Ela
se muda pra São Paulo.
O tênis Rainha é do tipo preto futebol de salão
básico. Pra vários dos seus colegas Donato é um esnobe, pra outros uma vítima da mais eficiente lavagem cerebral dum padrasto nazista (ao adjetivá-lo, obviamente,
não entram no mérito de que um nazista, um branco tipo
nazista, jamais adotaria um índio). Aos dez anos é provavelmente o único do seu nível escolar imune aos apelos
consumistas típicos da sua faixa etária. Henrique tomou
todas as precauções pra esclarecê-lo dos significados da
palavra capitalismo, do modo de funcionamento e organização, psicológica inclusive, que está por trás desse
termo, e sobre a razão das riquezas serem escassas e as
necessidades humanas ilimitadas, e de isso ser uma regra acima das outras, mesmo que charlatões prometam
que não. Os seus professores falam muito em liberdade
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e fraternidade, sempre que podem tentam ilustrar as repercussões econômicas dessas duas escolhas, o professor
Lavirmes é um dos que fazem questão de não esconder o
fato de que os alunos da escola são candidatos em potencial a futuros dirigentes dos seus países, enfatizando que
não adianta estudar sem saber as implicações sociais do
que se estuda. No geral, esse tipo de lição não faz muito
sentido pra maioria dos alunos. Pra Donato os conceitos
e explicações fazem mais sentido quando coincidem com
os de seu pai: quando não há o suficiente pra todos é preciso critérios realistas pra se dividir o que existe, o que
se tem ou o que se consegue. Preço. Donato gosta dessa
palavra curta, direta e confiável, porque ela é prática e integra seu vocabulário desde sempre, ele entende o que ela
representa, seja no supermercado, na papelaria, no lanche
no parque, no campo de futebol, na roupa, nas viagens
que faz com Henrique pelo Brasil, nos carros que tanto o fascinavam e agora não fascinam mais, nas compras
que faz com Luisa; há semanas em que a única coisa que
Luisa faz é comprar. Donato sabe muitas coisas, mas não
sabe muito bem o que é o futuro, o futuro ainda é uma
escolha de Henrique. Donato sabe que é preciso aprender
a pensar, sabe que é preciso estudo e é preciso disciplina,
sabe que inteligência não vale nada sem disciplina. Donato não se sente mal e nem concorre e nem firma alianças
com seus colegas, passa ao largo dos tradicionais jogos de
hierarquia, do magnetismo mundano dos três ou quatro
mais seguros de si, os capitães inevitáveis, os rangers que
num momento levam à perfeita harmonia do grupo, a
um companheirismo de concisão muscular, a uma rispidez quase marcial, e noutro à pior das cizânias, às disputas, aos degraus, aos afastamentos infalíveis, às revanches
e, sem desconsiderar o que é puramente estatístico, à via
de fato, briga, mata-cobra, rasteira, pedalada, gancho, cabeçada, sangue. Donato é um zero. Território neutro. Suí160
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ça. Acostumou-se a ser a curiosidade não alardeada dos
outros dentro e fora da escola. Nas festas de aniversário
dos colegas sofria um pouco com as outras crianças que
não o conheciam e não tinham noção exata do que fazer
ao se deparar com um índio. Às vezes era bom e hilário,
noutras não era tanto assim. A pequena Rener aprendeu
a lucrar socialmente com isso. Negros franceses levam
vantagem sobre índios brasileiros. Donato é a atração dos
seus aniversários, a cada ano ela refaz a história da origem
do amigo, de como se conheceram, de ele ser um tipo de
pajé que vingará seu povo, que só está entre os brancos
pra aprender como dominá-los, quase um buda (a mãe
dela é budista e ela sabe tudo sobre a religião), um buda
vingador. Donato morre de vergonha, mas cooperando
como pode com a necessidade patológica de extrapolar
que Rener tem, a cada vez, ele aparece vestido da forma
mais exótica possível. Desta, combinaram, ele escolheu
terno escuro, camisa branca, gravata vermelha e um bóton onde está escrito “pergunte-me como”, Rener estava de
vestido rosado, alguém comentou que só faltava grinalda
e outro disse que aquilo não era aniversário, era casamento. Nem Henrique nem os pais de Rener desconfiam do
teatrinho que seus filhos aprontam todos os anos, mas
Luisa percebeu o acerto e manteve a cumplicidade. Foi
ela inclusive quem alugou o terno quando Donato pediu.
Ela sabe que ele é de economizar as palavras, sabe que
ao pronunciá-las o faz da maneira mais correta e enfática
possível, empostando-se desvirtuado do papel de criança
(embromando-se entre lapsos pra esconder seu insucesso
reptiliano em decolar). Condenado a uma seleção absoluta, de vírgulas até, à calibragem do ar dentro dos pulmões,
aos estreitamentos, tão precocemente habituado à pressa
dum vocabulário extenso, porque as raridades estão à mão
bem mais do que o palavrório abundante do dia a dia. E
isso é uma sacanagem da natureza. Quando começou a
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gaguejar (quase ao mesmo tempo em que assumiu o empenho de não fazê-lo) se deu conta de que o corriqueiro
era seu pior inimigo, seu corpo todo parecia resistir ao
que deveria ser elementar, mera decorrência, pra domá-lo
era preciso surpreendê-lo, usar caminhos que produzissem o choque, a surpresa, e torcer pra que essa surpresa
fosse mais rápida e dinâmica do que o embotamento da
língua e do cérebro, do diafragma e das mãos. As mãos.
Um dia escutou num programa de tevê: só os inseguros e
os poucos convincentes precisam das mãos pra se expressar, pra chegar aonde querem. Donato precisa das mãos,
mas não admitirá atalho, tem certeza de que Henrique
não admitiria. Donato se dedica às palavras difíceis e ao
que é difícil em geral, nisso estão suas alavancas, quase
nunca as encontrou na infância. Nas festas de Rener, ele
quase não conversa (sua tartamudez não chega a se revelar), deixa a amiga falar pelos dois. Os que já o conhecem,
e já na dinâmica das brincadeiras, apenas ajudam aqui e
ali, dando atenção necessária pra tornar a história inventada pela famosa Açúcar Mascavo um pouco mais verossímil. No final da festa, vestidos de noivos, como os outros
disseram, os dois riem de sua própria miscelânea, ela o
abraça e promete que um dia serão donos de um grupo de
espetáculos, e ele promete apenas que preparará algo ainda mais impactante pro ano que vem. Tudo está por vir.
Quites. Desquites. Os três à mesa do apartamento em
São Paulo. Luisa e Henrique acirram os argumentos como
nunca. Donato acha que Luisa procura sempre competir
com Henrique (e ele acha isso justo), mas ele não sabe
tão bem assim o que se passa entre os dois. E a discussão
está prestes a virar briga. Luisa está tentando convencer
Henrique a não colocar tudo o que eles têm nesse projeto
que ele inventou e que está se arrastando, em termos de
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retorno financeiro, desde noventa e seis, quando a internet ainda engatinhava no mundo e mais ainda no Brasil,
quando a rede mundial de computadores era uma curiosidade orbitada por chutes no escuro (fazia pouco tempo que os acessos haviam sido disponibilizados em escala
comercial, fazia pouco que os fundos de tela verdes-preto
haviam sido abandonados e as possibilidades gráficas de
interação pelo monitor se expandiram); sua ideia foi criar
um “núcleo de distribuição de informação especializada por
assinatura a corporações, grupos sociais, novos investidores,
agentes políticos”, informações baseadas em pesquisa e levantamentos dirigidos aos que buscassem “novas estratégias, alternativas de desenvolvimento econômico e interação
social”, foi o que Donato leu num dos prospectos que
ficam espalhados pelo gabinete de Henrique. Era preciso
aproveitar a nova ferramenta pra democratizar os discursos, as análises, e ganhar dinheiro. Seu pai imaginou que,
se houvesse um número suficiente de assinantes no Brasil
e no exterior, conseguiria deixar a empresa autossustentável em dois anos. Isso não aconteceu. Suas ambições,
entretanto, continuaram crescendo e o forçando a aportes de dinheiro cada vez maiores. Como parou de prestar
consultoria não havia outra fonte de renda. No segundo
ano do projeto, Luisa entrou de sócia, meio a meio, com
o dinheiro da antecipação de legítima do patrimônio de
seus pais. Uma saída que se tornou traumática quando
seus pais descobriram onde ela pretendia aplicar a herança e, depois, com o péssimo desempenho do projeto, quase um motivo pra rompimento das relações familiares.
Henrique falou em devolver o dinheiro, mas Luisa ficou
possessa com a ingerência de seus pais, mas isso foi há
quase ano, hoje ela está possessa é com Henrique, por
ele não ter percebido que chegou a hora de parar. Ele diz
que continuará com as visitas atrás de assinantes e novos
sócios, viajará o Brasil inteiro se for preciso, tentará novos
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contatos na Europa, alguma fundação, as universidades,
algum visionário, algum filantropo. Um visionário como
você, Luisa provoca, como os milhares que ainda vão perder muito dinheiro tentando adivinhar qual é o futuro da
internet. Este é o momento em que Donato pede licença,
levanta e vai pro seu quarto. Na parede ao lado da sua
cama está o desenho que ele fez anos atrás, a ilustração
ficou bem-feita, nela aparecem os três, bem-vestidos, sorrindo, mas não de mãos dadas.
Treze anos de idade. Costuma sentar-se bem à direita, na
quarta mesa da frente pro fundo. Gasta os vinte e cinco
minutos do intervalo quase sempre da mesma maneira.
O destino final é a biblioteca. O roteiro é simples, a campainha toca, ele aguarda um minuto até a maioria da turma sair, tira da mochila o CD player que Henrique lhe
deu, sempre traz uma pérola da coleção de mais de mil
disquinhos que ficam na sala do seu apartamento (hoje
pegou o Surfer Rosa, duns caras chamados Pixies, uma
banda semiantiga que inspirou o Nirvana, lordes supremos do universo). Em seguida, dá a tradicional volta pelo
pátio onde ficam os caramanchões, eventualmente perde
um minuto ou dois com os grupos de meninos, sempre
grupos pequenos, com quem tem afinidade, um desses
grupos é formado pelo Américo, o Ramon e o Julián, este
último um boliviano, pálido e desmilinguido, de olhos
azuis cinzentos, candidato potencial a seu melhor amigo.
Não perde mais do que cinco minutos neste tour, segue
pro momento pequena dose de obsessão diária: caçar Rener
esteja ela onde estiver, nem que seja apenas pra uma olhada e um aceno a distância. Desde o ano passado estudam
em turmas diferentes, é uma estratégia da escola, alterar as
turmas pra aumentar a sociabilidade dos alunos. Desta vez
não precisou procurá-la. Ela vem correndo em sua direção
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com um CD pra lhe entregar, é o Love on the Beat, do
Serge Gainsbourg, diz que ele tem de perder tempo é com
esse cara e não com os Nine inch nails da vida (ele nem
gosta de Nine inch nails). Donato olha pra ela agradecido,
coloca o CD no bolso do casaco, pergunta se não quer ir
com ele até a biblioteca, ela ri e diz que se alguma vez trocar o intervalo de um dia ensolarado pela biblioteca que
a internem num manicômio, beija-o no rosto e volta pra
sua roda de amigas. Donato, então, caminha até o início
do corredor que leva à saída do colégio, dobra à esquerda
e segue até a biblioteca. Ali é o seu refúgio. Dizer bom-dia
às duas atendentes do balcão e à bibliotecária geral é refúgio, atrapalhar-se com os nomes nas lombadas dos livros é
refúgio, achar que entende a poesia dos autores brasileiros
é refúgio, que entende Walt Whitman e Camões, quando
mal são tratados em sala de aula, é refúgio. Refúgio. Ali
tem a sensação de não estar perdendo tempo e (espremido
nos corredores junto aos outros alunos, os interessados e os
que muito provavelmente apenas adotaram uma estratégia
de invisibilidade como a sua) também a sensação de possuir alguma autoridade autobiográfica. Ali não precisa se
submeter a testes de força, carisma, liderança, atilamento,
humor, popularidade, ali não precisa descobrir o quanto se
parece com seus colegas futuros líderes de seus países, ali na
impessoalidade das estantes de ferro e do silêncio impregnado ao resto da mobília passa os únicos minutos em que
admite pra si a oportunidade de se acovardar.
Luisa disse que seria pura perda de tempo conhecer o
Pão de Açúcar num dia nublado como este. Donato sabe
que ela está abusando do direito de readequar a programação traçada de comum acordo pelos três. A desculpa esfarrapada dela é a enxaqueca de sempre, disse ter
acordado às cinco da manhã e não dormido mais. O
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motivo, olhando o contexto com objetividade, é única
e exclusivamente o fato de Henrique ter sido chamado
de última hora pra substituir um analista mexicano em
um think tank em Teresópolis, um encontro privado pra
formular sugestões de políticas públicas organizado por
um grupo de jovens empresários mineiros e cariocas (cachê bom, na crise financeira pela qual ele está passando,
não havia como recusar) e, à conta disso, estar impedido de voltar antes da quinta-feira, ou seja, daqui a três
dias. O roteiro, agora, depende dela. Donato não quer
pensar muito nisso, tem um mapa, sabe os ônibus que
precisa tomar. Nunca entra em rota de colisão com Luisa, apenas dribla, flexiona, deixa bilhetinhos. Apesar dos
constrangimentos circunstanciais causados pela gagueira, julga-se em grande vantagem em relação ao resto do
universo social: é mais bem-informado do que a maioria dos adultos que o cercam e absolutamente confiante quanto a ser incapaz de cometer erros motivados por
distração, excesso de orgulho, ressentimento ou vaidade.
Deixa um recado na recepção do hotel, pega o ônibus
circular no Leblon na direção Gávea, Jardim Botânico,
Humaitá, Botafogo. Desce na Voluntários da Pátria, que
é a principal avenida de Botafogo, caminha até a rua das
Palmeiras, até o casarão cinquenta e cinco. Entra. Circula pelo pátio, há uma oca estilizada armada quase na
entrada à esquerda do prédio principal, avista a turma
de alunos na faixa de nove anos que está iniciando uma
dessas prováveis visitações guiadas e se junta ao grupo. A
professora, uma ruivinha bem jovem, olha pra Donato,
não diz nada. Entram numa sala que abriga a exposição
de objetos em cerâmica que representam a arte Asurani
feita pelo povo do mesmo nome que mora no Médio
Xingu a aproximadamente cem quilômetros da cidade
de Altamira no Pará. As tiradas cômicas do guia compensavam sua apresentação, fraca, pouco convincente
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e sem informações relevantes mesmo pra um bando de
alunos duma escola pública municipal qualquer. Tudo
transcorre bem até que a professora enfatiza que o maior
erro do homem branco é tirar o índio do seu habitat e
por isso “todos nós deveríamos lutar pros índios voltarem ao seu estado natural, vivendo em harmonia com a
natureza...”. Antes dela terminar, Donato levanta a mão.
Isso a desconcentra, segue-se um segundo de dúvida (é
possível perceber em seus olhos), e ela lhe passa a palavra. Ele diz que ela está enganada, o melhor seria pegar
até o último selvagem que se pudesse encontrar dentro
da floresta e civilizá-lo, dar-lhe condições reais de “garantir sua dignidade no mundo atual sem precisar do favor
de ninguém, antes que se complete a dizimação”. Termina dizendo que o passado não volta. A professora fica
atônita, dois alunos perguntaram ao mesmo tempo, “o
que é dizimação, professora?”, e, por sorte, o guia largou
uma de suas tiradas humorísticas, e Donato foi conhecer
outras partes do Museu do Índio menos propícias a seu
entusiasmo.
Outro ano letivo se passou. Ambos estão com catorze
(Rener é apenas três meses mais velha) e este encontro na escadaria, que é caminho ao estacionamento dos
professores, não foi premeditado. Donato está com o
rosto voltado na direção do recanto emoldurado por
pedras quartzo bem claras onde numa das extremidades
há uma estátua de Nossa Senhora de Lourdes e ainda
atordoado com a notícia de que Rener deixará o Brasil dali a dezoito dias e, junto com seus pais, voltará a
viver na França. Deixa de ser Jeca, Curumim. Você vai
aprender a se virar sozinho, ela diz. Ele volta o rosto pra
ela. Sei me virar, Rener... É que eu... tipo... vou sentir
sua falta, vou sentir muito a sua falta mesmo. Ela retri-
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bui com um sorriso tristonho. Todo esse tempo nós nos
equilibramos um no outro, não é? Ele balança a cabeça. Você me ajudando a não me transformar no freak-show ambulante do colégio. Ela faz cara de agradecida.
E você pegando no meu pé pra eu não virar a Naomi
Campbell da quebrada, com os lábios trêmulos. Pois é,
ele diz. Os olhos de Rener se enchem d’água. Não se
preocupa, vou ficar bem... Faltam só dois anos. Os dois
sabem que dois anos é tempo demais. Mas se liga, Donato, secando as lágrimas que escorreram, tá na hora de
você aprender a jogar melhor o jogo. Ele franze a testa.
Mais do que eu jogo?, Açúcar Mascavo, sou o mister do
passinho certo. Ela dá um encontrão de leve no ombro
dele. Não tô falando disso. Ser desse jeito só vai te abrir
portas no futuro, diz. Do que você tá falando, então?
Ela baixa a cabeça. Da sua cegueira com as coisas que
estão ao redor... da sua ingenuidade, da sua passividade,
da sua..., apoiando o cotovelo nos joelhos e juntando
as mãos à frente. Sair desse colégio, ficar longe de você,
vai ser um alívio. Desculpa falar..., quase sussurrando.
Como assim..., ele tenta interrompê-la. Ela não deixa.
Desculpa eu falar desse jeito. Na real, eu só estou triste e
descontando pra cima de você..., com a mesma voz baixa. Rener, Rener, Rener... Levanta a cabeça e o encara.
Olha, Curumim... Desde o primeiro dia de aula na pré-escola, eu gosto de você... E esse carinho já teve tantas
formas, tantas maneiras que às vezes eu fico com dúvida
se ele realmente existe. Até as minhas amigas... eu juro
de pés juntos que nunca disse nada pra ninguém... até
elas sabem que eu sempre gostei de você... e sabem que
eu sempre protegi você... Ou você acha que escapou
ileso de se tornar um dos sacos de pancada do colégio
por causa dos seus belos olhos? Humpf. Quem se metesse contigo ia ter que se meter comigo... Você mesmo
me chamou de Mônica durante uma época, lembra?,
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diz. Eu ficava puta, não ficava? Ele concorda. E ela lhe
dá outro encontrão de leve. Quantas vezes obriguei o
Douglas Chave Inglesa a te convidar pra jogar futebol
com eles na hora do recreio... ainda exigia que você jogasse na frente, nunca no gol. Donato pensa em falar
das poesias que escreveu pra ela, mas ao invés diz: você
sempre foi a queridinha dos caras mais velhos. Há pelo
menos vinte poemas Veja o que se ganha em ser a estrela
da patinação da escola... Ele decorou um em que a chama
de Dino Sempre desconfiei disso, Rener. Quero dizer,
você mexendo os pauzinhos. Tudo camuflado. Poesias
não pertencem ao mundo de Rener Mulheres sabem fazer
esse tipo de coisa, admito que era muito divertido, os
debiloides do nosso nível me respeitavam não só porque
eu era, digamos, irresistível, mas também porque os caras das turmas de cima fariam tudo o que eu mandasse,
inclusive intimidar, na base da marreta, os menorzinhos
desobedientes. Ah, meu sangue parisiense... Não tenho
culpa de ser assim. E hoje, o que você sente? Com relação aos debiloides? Uma dinossauro dentro de uma poesia
Por favor, Açúcar, não começa... Quase nada mudou...
Tudo mudou... Você sabe... Já namorei o Mark, o Gabriel, dei uns amassos noutros dois caras... Eu nunca
beijei ninguém, ele revela. Ah é?... Que novidade... E
ele avança (três casas de uma só vez). Gosto de você, Rener, e gosto de verdade. Esse ano foi difícil, um monte
de coisas com as quais eu não precisava lidar passaram
a ser importantes e eu descobri que não tinha a menor
ideia de como levá-las. Você vive pros estudos, ela diz.
Não é pra isso que a gente tá aqui? Até hoje não sei direito... Agora, volto pra França e vou ter que recomeçar
do zero... Sei que não vou me adaptar... E ele a surpreende: eu te amo, Açúcar Mascavo... Há quanto tempo?
Donato não responde, não consegue ser tão desembaraçado quanto ela. Três ou quatro minutos se passam
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sem que nenhum dos dois diga uma palavra sequer. Um
grupo de colegas vem na sua direção, aproxima-se sem
cerimônias, afinal Rener e Donato são como se fossem
pão e manteiga, Rener se dá conta e levanta pra encontrá-los. Donato fica onde está, sabe que Rener levará o
bando pra longe, porque essa é sua forma de defendê-lo e, neste momento, de atormentá-lo pela iniciativa
também. Sabe que terá de rearranjar os motivos que o
levam a estar naquela escola. Devia tê-la beijado. Devia
tê-la impedido de se levantar.
Com a história rascunhada nas mesas da biblioteca, Donato vence o concurso de dramaturgia do colégio. Por
isso ganhará o dinheiro pra montar e encenar o seu texto Crucial Dois Um na festa de final de ano letivo. Tem
pouco mais de três meses pra escolher os atores, ensaiar,
preparar cenário. Não imaginou que conseguiria, foi a
primeira vez que concorreu. Se Rener estivesse no Brasil
a chamaria pra representar a protagonista da história que
se passa num futuro e num lugar indeterminados, onde
o governo, um governo indeterminado, desenvolveu um
método de ressuscitação com o propósito de garantir uma
sobrevida de vinte e uma horas, o serviço é prestado sob
o regime de monopólio e se revelou uma das formas mais
eficazes de obtenção de dinheiro pros cofres públicos, só
os ricos podem contratá-lo, pois o preço é alto, a principal condição imposta pelo governo aos eventuais contratantes é que, nas primeiras sete horas da sobrevida, resolvam suas obrigações com o fisco, com o tesouro público,
tendo de se submeter a um interrogatório, sob o efeito de
uma droga que, durante essas sete horas, os impedirá de
mentir, e também todos os litígios que existam com as
empresas privadas parceiras do programa; o contratante
que, por sua própria conta, não tenha condições de arcar
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com o preço total do serviço poderá ser patrocinado por
outras pessoas, ficando, no entanto, à disposição desses
patrocinadores durante metade das catorze horas restantes, essa modalidade costuma ser contratada por grandes
empresas pra obterem dos seus executivos as informações
e segredos que antes deles morrerem não tenham sido
revelados.
Pega uma carona com a mãe de Julián e desce na
avenida Paulista, disse que tomaria o metrô, mas decide
ir a pé, gosta de caminhar sem pressa pela Doutor Arnaldo quando se sente tranquilo. Luisa adorará a notícia, foi ela que o levou à sua primeira peça infantil. Faz
sinal pro vigia abrir o portão da vila. Pega a chave de
dentro da mochila, abre a porta. Hoje é dia de faxina,
por isso estranha o silêncio (sexta-feira é quando Luisa
faz questão de ficar em casa e organizar seus trabalhos).
Abre as janelas da cozinha, a luz do final de tarde invade a peça, o tipo de luz que deixa a cidade melhor,
mostra a louça na pia, a caixa de flocos de cereal e a
tigela de cerâmica suja, da mesma forma que a deixou
pela manhã. Pega o celular, liga pra Luisa. “Oi, pode falar?”, pergunta. “Posso”, a resposta é seca. “A dona Leila
não veio”, avisa. “Eu sei...”, abalada (mas ele ainda não
notou). “Tenho uma notícia boa. Ganhei o concurso
de dramaturgia...”, comunica. “Ã?”, ela parece não estar
ouvindo direito. “Aquele da escola... Você e o Henrique
me...”, eufórico. “Que bom...”, ela o interrompe. “Você
está em casa, não está?”, Luisa diz. “Sim...”, já sem a
euforia. “Então encontro você aí”, desliga sem ao menos
lhe dar tchau. Ele sabe que terá de arrumar a cozinha,
então não perde tempo, tira o lixo do cestinho, põe pra
fora. Quando entra de novo, liga o rádio e a televisão (é
um hábito recente), não chegam a passar dez minutos
quando escuta no rádio o boletim atualizando as infor-
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mações sobre o turboélice transportando vários empresários que desapareceu dos radares aéreos por volta das
onze da manhã durante o trajeto de Teresina a Brasília.
É o suficiente pra que aperte o pano da cozinha entre as
mãos sem secá-las direito e, tentando controlar a respiração, pegue o celular pra falar com Luisa.
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O corpo foi um dos últimos a serem encontrados pela
equipe de resgate. Depois de atendidos trâmites burocráticos de toda ordem, foi enviado a São Paulo. O caixão
permaneceu fechado durante as duas horas do velório.
Luisa disse que não avisaria ninguém, muito menos pagaria nota de falecimento em jornal. “Isso não combina
com o Henrique.” Isso não combinaria com ela. Donato
não pediu pra ver o que sobrara do padrasto, nem acompanhou enquanto o sepultavam, ficou sentado em frente à lanchonete do Gethsêmani imaginando a confusão
que seria se tivessem de enterrá-lo em Porto Alegre. Um
número impressionante de amigos apareceu. Ele se perguntou o que faz alguém largar seus compromissos e ir a
um velório em plena três da tarde, se ele, que é o filho, o
filho adotado de um filho único de um casal, já falecido,
não conseguia sentir nada além da vontade enorme de
não estar ali.
Luisa vem tomando remédios há mais de uma
semana e provavelmente seria prudente se abster de
atividades que exigem reflexo, como dirigir o Honda
Civic de Henrique, onde os dois estão neste momento
enquanto trafegam a mais de cento e vinte quilômetros
por hora pela Anhanguera. Ela segura o volante e dirige
como se o carro fosse seu. Ele a observa: seus gestos e o
seu tom de voz a fazem parecer uma pessoa desconhecida, uma estranha com quem ele não saberá lidar. Ela
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diz que não aceitará acordo, diz que é preciso confiar
no Judiciário brasileiro. “Se alguém errou, sem dúvida, irá pagar...” Donato olha a paisagem instantânea e
veloz do acostamento, tenta evitar a afinidade da sua
presença com a de Luisa, como intuitivamente evitou o
seu parentesco informal por todos esses anos, tenta evitar antes que, além de estranha, ela se torne despiciente
(por se conciliarem de forma tão abrupta e siamesa).
“Os amigos gaúchos de seu pai vão querer a minha cabeça...”, ela diz. Donato não responde, mas volta a encará-la (deixando que seu silêncio aparente ser alguma
maneira pouco à vontade de acatar). Por isso, ela prossegue: “Nem todos leem jornal, nem todos eles prestam
atenção nas tragédias, nem todos trabalham com a hipótese de que eu possa achar que eles saíram de vez das
nossas vidas...” Ela abaixa todo o vidro do seu lado, coloca a cabeça pra fora. Isso dura uns poucos segundos.
Quando volta à posição normal, solta um suspiro, foi
suspiro de satisfação. “Preciso colocar gasolina”, dirige
mais alguns quilômetros, dá sinal à direita, sai da pista,
entra no posto Texaco. “Não tenho certeza se vou conseguir continuar aqui nesta cidade...”, para ao lado de
uma das bombas de combustíveis. Há um frentista lhe
fazendo sinal pra que mova o carro até a bomba mais
à frente. “Vou precisar descer”, Donato avisa. “Espera.
Quero te propor uma coisa...”, diz, antes de engatar a
marcha e arrancar devagar. “Você se forma na escola”, e
freia parando o carro um pouco antes da bomba, “e em
janeiro nós...” Donato solta a trava da porta. “O que vai
ser, madame?”, o frentista pergunta. “Preciso ir ao banheiro...”, Donato diz e abre a porta. “Só um instante.”
Ela se atrapalha. “Você me desculpe, Luisa...”, Donato
diz e sai do carro. “Vou esperar você aqui”, ela diz. Ele
caminha na direção da loja de conveniência e some do
olhar dela. “Gasolina aditivada... Pode completar”, diz
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ao frentista. Ele enche o tanque, verifica o óleo. O rapaz
está demorando. Luisa paga com o cartão de crédito e
quando já pensa em se dirigir até a loja, pra saber se está
tudo bem com ele, é surpreendida pela menina usando
uniforme da Texaco. “Senhora, desculpe importuná-la,
mas o moço que chegou com a senhora pediu pra eu dizer que ele foi de táxi pra casa e que vai encontrar com
a senhora lá”, a menina fica olhando na direção da loja
de conveniência. “Você pode me dizer se ele... deixa pra
lá.” O frentista pergunta se ela quer limpar o para-brisa,
mas ela quase não escuta. Vai dirigir até a alameda Lorena, chamar alguma amiga (mas qual?), tomar um café
no Suplicy, depois um drinque, dois, três e procurar
um hotel pra que Donato fique sozinho e entenda o
mais rápido possível o que é se virar por conta, mas esse
é o cenário que ela está montando em sua cabeça pra
tornar menos doído não o fato de ter perdido o homem
com quem conviveu por mais de quinze anos e amou
incondicionalmente, mas por ter sido abandonada pela
única pessoa que poderia estar ali com ela suportando
com alguma decência o transtorno de não conseguir
imaginar como acordará amanhã e de onde arrancará
forças pra admitir que dali pra frente a ausência, a nova
ausência, será um bloco sólido e sem a menor chance
de caber na realidade.
Donato optou por aguardar setenta e duas horas antes
de recorrer à ajuda da polícia ou procurar eventuais
conhecidos, perdeu a conta de quantas vezes ligou pro
celular dela. Agarrou-se a esse remorso e dentro dele a
uma leitura rancorosa de tudo que lhe aconteceu até
aqui. Não sabe o que fazer, não tem forças, não tem
sequer espontaneidade. Já está esperando há mais de
minuto. A voz do outro lado da linha disse ser da Clí174
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nica São Patrício e informou que um tal doutor Nelson
falaria com ele em instantes. Na gravação de espera,
voz dizendo que a instituição oferece ambiente hospitalar aconchegante, métodos e pessoal apropriados ao
tratamento de pessoas que se encontrem acometidas
por inconveniências emocionais, assegurando-lhes as
melhores condições clínicas pra que se recuperem da
forma mais rápida possível. O médico atende, explica que Luisa os procurou pra uma autointernação, foi
medicada e passa bem, desculpa-se por não ter ligado antes, mas quando deu entrada ela só fornecera o
contato da mãe no Rio de Janeiro e somente minutos
atrás lhes pediu pra avisá-lo. Donato pergunta se pode
falar com ela, o médico diz que uma enfermeira ligará
pra ele dali a vinte minutos no máximo e lhe transferirá a paciente, observa que só poderão conversar por
cinco minutos, é o jeito de evitar que ela não se canse
demais. Por fim o médico diz que ele poderá visitá-la
amanhã na parte da tarde, só por quarenta minutos, e
que “se tudo correr nos conformes” ela sairá em quinze
dias. Os minutos passam e o tempo de espera chega a
uma hora e pouco. O telefone toca, a voz lhe diz oi e
pergunta como vão as coisas. Ele diz que está pronto
pra deixar a cidade, que pode terminar de cursar o terceiro ano em outro lugar e que nunca mais precisarão
colocar os pés em São Paulo. Ela suspira e diz que ele
está maluco de cogitar se transferir duma escola tão
boa assim, terá de se formar. Enquanto escuta, ele pensa que terá de pegar caixas de papelão vazias do supermercado pra guardar livros, roupas, quadros, filmes,
CDs de Henrique, enfim, fazer com que o fantasma
do pai se dissipe antes dela retornar. Então ele volta a
acompanhar o que ela está dizendo e pede desculpas,
diz aos atropelos que a visitará amanhã sem falta (e é
cruelmente tomado pela noção de possuir a lucidez ne-
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cessitada pela outra pessoa, e isso é algo novo, um novo
poder, injustificadamente gratuito, injustificadamente
adulto).
A adoção decidida por Luisa renovou a cumplicidade entre os dois. A série de comparecimentos diante do juiz,
do Ministério Público, do Conselho de Supervisão da Infância e da Juventude fez com que atuassem sem falhas
pra demonstrar a estrutura da nova família. Avaliações
constrangem, instigam os que estão sendo avaliados a não
levá-las a sério. Estão, agora, diante do cartório de registro civil. Vieram ao Centro exclusivamente pra pegar a
certidão na qual, daqui por diante, estão os nomes Luisa
Vasconcelos Lange e Donato Henrique Lange Becker (seu
nome agora com quatro nomes). Ela demora apenas uns
minutos, porque é fim de expediente e já não há filas nos
guichês. Daqui a minutos sentará com ela à mesa de um
restaurante bastante concorrido em Higienópolis e pedirão uma garrafa de Pol Roger Brut Reserve. A extravagância, no entanto, começará quando ela pedir outra garrafa
do mesmo champanhe e desafiá-lo a acompanhá-la, afinal
ele está prestes a se formar com láurea, muito possivelmente com o coeficiente mais alto entre todos os alunos,
estrear a peça, como dramaturgo e diretor, e se mudar
com ela pra longe de São Paulo. Ele não vacila, permite
que o garçom encha sua taça. O maître passa de mesa em
mesa oferecendo um saco no qual há fichas redondas numeradas, do tipo imitação de madrepérola, pra que cada
cliente retire uma, justificando a intromissão em face das
festividades da semana do vigésimo sexto aniversário do
estabelecimento. São dois sorteios por noite valendo uma
diária em apartamento luxo no Paulista Plaza da Alameda
Santos. Depois de estar certo de tê-las entregado a todos,
o atendente sorteia justamente o número que está na mão
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de Luisa. Ela pede a Donato que se manifeste, grite algo,
afinal agora ele é o homem da casa. O maître se aproxima
e lhes entrega um envelope comunicando que a diária
poderá ser usufruída a qualquer tempo e inclui um consumo de até cem reais em pedidos à copa. Ela pergunta
se inclusive esta noite. Ele se apruma e imediatamente
garante que sim. Ela lhe pede que complete as taças e propõe um brinde, outro. Terminaram de comer a lagosta ao
molho de pitanga e ela pediu de sobremesa um tiramisu
acompanhado de duas taças de Kir Royale, e então ele
propôs de irem dali direto ao Paulista Plaza. Ela sorriu
com os lábios retesados e largou um por que não?. Enquanto passavam pela avenida Paulista, olhando os prédios do assento de trás do táxi, ela disse que os dois nunca
mais voltariam ali, que depois de umas semanas nunca
mais haveria São Paulo. No hotel, ganharam um apartamento no penúltimo andar. Não havia malas, o que não
impediu o ajudante de acompanhá-los até o quarto com
duas camas de solteiro, conforme pediram, e lhes mostrar
o funcionamento dos equipamentos. O funcionário do
hotel se retira. Os dois ficam sentados no sofá, com as luzes apagadas, compartilhando a exaustão. A claridade dos
prédios se adensa no ar poluído e é suficiente pra iluminá-los deixando dúvidas sobre onde estão os limites. Vem
o acidente. A aproximação. Donato movimenta contra a
boca de Luisa o seu primeiro beijo. Ela assiste a sua falta
de jeito, sua determinação investigativa, e permanece sem
palavras, confusa, aflita.
É terrível quando você se descobre meticuloso e metódico
ao extremo e descobre também, tardiamente, que a pessoa que ocupa o topo da sua lista de melhores talentos cênicos da escola sofre de uma insegurança desmedida com
relação à própria capacidade de subir no palco, fazer valer,
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tocar o terror, mandar tudo à merda e atuar como faz tão
bem nos ensaios. Primeiro foi o resfriado que o deixou
afônico, depois descobriu que era gripe, depois evoluiu
pra sinusite leve e depois sinusite grave, depois refluxo
gástrico, depois as tais palpitações no lado esquerdo do
peito, sem fundamento, já que ele, Vicente Fino, é obviamente magro, saudável e não tem nenhum retrospecto de
infarto ou coisa parecida na família. Você aposta, arrisca,
porque afinal ele, o protagonista masculino da peça, Vicente Fininho, repita-se, é uma bichinha judia e nervosa,
carismática, com uma puta cara de jumento assustado
capaz de se reacomodar em qualquer expressão, tão representante das minorias quanto você, Donato adotado
atolado, que é um índio, igual aos índios mais índios,
com uma baita cara de índio mesmo, que se possa encontrar nos documentários daqueles irmãos Vilas-Boas, e
que teve a maldita sorte de ser educado por um branco,
um branco branquelo defunto, cheio de ideais que no
final das contas, tragicamente, não chegaram a se concretizar, como esta peça que gerou tantas expectativas e neste
momento está prestes a não acontecer. Você que não gaguejava tanto há meses, porque tudo tem acontecido sem
que você ocupe o centro das atenções, está há mais de
quinze dias no centro da tempestade, é o legítimo Próspero com a tempestade enterrada no cu e está gaguejando
feito um louco. Agora são cinco e vinte da tarde, as portas
do anfiteatro abrem às sete e, supostamente, a peça deveria começar às sete e meia da noite em ponto, porque depois do espetáculo é festa e bebedeira. O problema é que
Vicente Finíssimo está no otorrinolaringologista, afônico
e, segundo sua mãe (que nestas horas, como era de se
esperar, o acompanha), com febre de trinta e nove graus.
Prognóstico (você acaba de desligar o celular): Vicente
não atuará. E não há santa alma que saiba suas falas, só
você sabe todas as falas, ninguém será trouxa de se expor
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e virar o bode expiatório se tudo der errado. Pior é saber
que a maioria da plateia estará ali por causa do Vicente.
São os amigos dele, inclusive uns de fora da escola, os que
de fato apreciam as loucuras dramatúrgicas. Substituí-lo,
você? Não, você gaguejará, não terá fluência, atrasará o
ritmo dos diálogos que são o trunfo da peça. E Kika entra
na sala sem bater. “Desculpe entrar desse jeito, mas preciso te dizer uma coisa... Posso?” Kika fica com o rosto bem
perto do seu. O hálito que sai da sua boca é o melhor que
alguém poderia produzir. Puta merda, Kika sabe como
chegar. “Deve.” Kika tem uns olhos lindos. “Sei que você
é o diretor.” Kika tem uns peitos. “E você a iluminadora
e sonoplasta.” Kika tem uma franja tipo Regina Duarte
quando Regina Duarte era jovem e gostosa e era chamada
de namoradinha do Brasil. “Então, você terá de fazer o
papel do Vicentinho”, Kika diz. Concentre-se, Donato,
não é hora pra isso. “Não sou ator”, rebate. “Mas é o
único jeito... Usa uma máscara... Não vai fazer diferença.
O mais importante são os diálogos”, Kika movimenta os
lábios tão bem. “Você tá esquecendo da forma”, ele tenta.
Kika podia dar pra ele um dia. “Que forma?”, Kika diz levantando os braços tesudos de Kika. “Como serão dadas
as falas... Vou estragar tudo” (e, Senhoras e Senhores, acaba de falar o Diretor, Donato Adotado, que ainda tem o
desplante de fantasiar com Kika chupando seu pau num
momento desses). “Esquece a forma”, diz Kika. “O que
eu tinha de inventar essa maldita peça?”, diz o diretor.
“Podemos fazer uma leitura dramática”, diz Kika. “Kika,
deixa eu pensar dois minutos, aqui, sozinho.” Kika abre a
porta. Dá pra acreditar no que é esta bunda empinada da
Kika? “O elenco tá todo lá fora...” Vira mais, Kika. “Que
embaraço do cão...” Vira duma vez, Kika. “Você não tem
dois minutos, você tem que atuar... Usa uma máscara, vai
funcionar, eu peço pra Alessandra catar uma que cubra
do lábio superior pra cima.” Tipo: pra ele, o lábio, aju-
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dar a te chupar, Kika? “Que diferença fará?”, o diretor
pergunta. “Sei lá, é um recurso... Você monta uma persona...” Kika, Kika, Kika. “Não me venha falar de persona”,
o diretor se irrita. “Jung...”, Kika provoca. “Ah, me faça o
favor, Kika... Não é hora de Jung.” “Então, você?”, e abre
um sorriso, a pior das armas de Kika. “Manda buscar a
máscara.” Donato cede. Donato não tarava com Kika assim, mas Kika está demais hoje. Kika sai, Donato senta à
mesa onde estão espalhadas as páginas com os diálogos,
as cenas, os atos, as intervenções técnicas, as ênfases da
peça, abre a pasta de elástico, põe toda aquela papelada dentro, guarda na sua bolsa. Sai pra conversar com o
grupo de atores, gagueja quase o tempo todo, mas suas
palavras encadeiam uma preleção firme sobre o texto que
ele escreveu e sobre a contribuição decisiva de todos ali
pra que o resultado ficasse bem melhor do que ele imaginava. Aos poucos vai percebendo que está conseguindo
tranquilizar a todos, garantir um sentimento mínimo de
unidade. Alessandra surge com duas máscaras feitas por
um amigo seu chamado Guilherme Pilla, são máscaras
plásticas que deixam os lábios e o maxilar bem expostos,
a mesma coisa com os olhos. Donato prova a primeira e
se sente tão confortável que nem experimenta a segunda.
Agora, dentro do palco e dentro da máscara, no
importante papel de protagonista masculino, Donato
imagina ser Henrique, e isso não o assusta como deveria
assustar.
No show dos Stones em Copacabana, Luisa abraçou Donato e disse com a boca encostada em seu ouvido: “Você
faz ideia de como será em Recife?” Ele virou o rosto pra
ela, aproveitando o barulho ensurdecedor, e, sob o efeito
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das cinco latas de Itaipava que bebera, riu presunçoso, do
modo que supôs teria rido pra Rener se Rener obviamente estivesse ali, se não a tivesse convencido de que nunca
mais escreveria cartas ou enviaria mensagens e tentaria
esquecê-la pra sempre. Pés na areia (e distante como até
então nunca se sentira da francesa; já pensou que existia
apenas pra francesa), puxa Luisa pra si e, cercado pelo
maciço de um milhão e trezentas mil pessoas eufóricas,
leva sua boca contra a dela e a morde nos lábios, suas
mãos escorregam pela sua cintura e param firmes sobre
sua bunda, ela põe suas mãos sobre as dele e as induz a
apertá-la com a força que se espera de um homem que
conheça as mulheres. Donato jamais imaginara como seria esse desligamento de todos os outros olhares. Assim
que Keith Richards terminou de cantar This place is empty, Luisa o convidou pra saírem dali e caminharem até o
apartamento na Joaquim Nabuco, onde estavam parando. Ele queria esperar pelo menos até You can’t always
get what you want, mas os Stones e todo o memorabilia
cultural que pôde acumular em treze anos não se comparam ao que está sentindo agora; toda informação neste momento é inútil. Luisa e seu corpo musculoso e seu
humor ácido capazes de causar inveja a muita mulher de
vinte anos, convicta, puxando-o pela mão através do labirinto de gente alucinada que se transformou a avenida
Atlântica, não deixa dúvida, é a última coisa do padrasto
que lhe faltava tomar.
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