Folhear - Cavalo de Ferro

Transcrição

Folhear - Cavalo de Ferro
CYNAN JONES
A COVA
Romance
Tradução
Rita Carvalho e Guerra
Publicado com o apoio do prémio Wales Literature Exchange Translation
Award promovido pelo Arts Council of Wales National Lottery Funding
Título original: The Dig
© Cynan Jones, 2014
© Cavalo de Ferro, 2016, para a presente edição
Revisão: Cláudia Chaves de Almeida
Paginação: Finepaper, Lda.
ISBN: 978-989-623-215-3
1.ª edição, Janeiro de 2016
Todos os direitos para a publicação em língua portuguesa (Portugal)
reservados por:
© Cavalo de Ferro, marca propriedade de Theoria, Lda.
Rua das Amoreiras, 72 A 1250-024 Lisboa
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Este, para m.
Transpôs o portão com a carrinha e reduziu as luzes. Era
uma noite uniforme e a carrinha parecia ter uma cor
estranha, alienígena, sob ela. Durante algum tempo deixou-se ficar sentado, cautelosamente.
Era altura de as ovelhas parirem e, aqui e ali, ao longo
do vale pouco profundo e em diversos pontos das colinas havia luzes acesas. E embora ao longe lhe parecesse
uma comunidade em labuta, ele sabia que todas aquelas
quintas estavam envolvidas nos seus próprios processos;
processos mais ou menos idênticos na sua natureza, mas,
em cada espaço de luz, levados a cabo numa intimidade
privada e isolada.
Olhou para a paisagem e recordou, naqueles poços
de luz, as quintas que aprovavam ou que se opunham ao
que ele fazia. No seu tempo, tinha percorrido quase todo
este terreno e, na sua mente, desenhou a forma vaga das
terras que pertenciam a cada quinta e repetiu os nomes
de cada propriedade que conhecia, como se observasse
constelações.
Era um período de certezas contraditórias, com estas
pessoas acordadas à noite; no entanto, também estavam
mais atarefadas e distraídas, e por esse motivo ignoravam com maior facilidade os ruídos, aceitavam-nos como
resultado do trabalho dos outros. Atribuíam-lhe mais
prontamente o ladrar distante dos cães.
Ele era um homem rude e grande, e, ao sair da carrinha, esticou-se e relaxou como uma criança aliviada do
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CYNAN JONES
medo momentâneo de ser esbofeteada. Para onde quer
que fosse, carregava uma sensação de nocividade e parecia que até as coisas inanimadas que o rodeavam tinham
conhecimento disso. Elas temiam-no, de alguma forma.
Abriu a porta de trás da carrinha e o arame dentro
da janela estalou; agarrou no saco e deixou cair o texugo
que se encontrava no seu interior. Este caiu no alcatrão
sujo, ao seu lado.
Os cães tinham-lhe arrancado a parte da frente do
focinho e o nariz pendia, solto e ensanguentado, preso
apenas por um pedaço de pele. Pendia do texugo como
se fosse um animal diferente.
Bah, pensou. Os corvos tratariam daquilo.
Deu alguns pontapés no texugo, para que perdesse
a rigidez. Pontapeou a cabeça para que ficasse exposta
na estrada. O lábio superior estava repuxado num esgar
e parecia exagerado, e alguns dos dentes estavam partidos sobre o maxilar inferior, pendendo, soltos, onde
ele os tinha partido com uma pá para dar uma hipótese aos cães.
Não tiveram espaço para cavar um fosso, por isso
prenderam o texugo a uma árvore, para que os rafeiros se pudessem atirar a ele, e a pata traseira do animal
estava pelada e apresentava cortes profundos provocados
pelos arames.
Aquilo podia ser um problema, pensou. Podia ser um
indício, mas tudo o resto estava bem. Os outros ferimentos seriam disfarçados.
O ventre do texugo estava rasgado e estraçalhado no
sítio onde os terriers o tinham atacado, antes de ter dado
conta dele com uma pá.
Messie portara-se bem naquela noite, pensou. Fora boa
e persistente.
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A COVA
As tetas do texugo estavam protuberantes e inchadas
da amamentação e várias tinham sido arrancadas, deixando na pelagem pastosa uma mistura de sangue e leite.
Fora uma pena não ter conseguido apanhar as crias,
pensou.
Pensou em arrancar-lhe a pata.
Bah, não ia conseguir, pensou. Não ia conseguir que
resultasse. Sentiu, de súbito, repulsa perante a ideia de voltar a tocar no texugo. De lhe prestar qualquer reverência.
A ideia de esconder o seu acto deixara o homem
grande subitamente furioso e cansado. Tinha passado a
noite acordado e o passeio, a dura escavação e a adrenalina tinham-no fatigado, ainda que tal se revelasse apenas como uma onda de raiva interior.
Voltou a entrar na carrinha e curvou-se sob o seu próprio peso. Tirou as luvas e atirou-as para o lugar do passageiro, que estava coberto de pêlos de cão. Um pouco
mais abaixo, na estrada, fez inversão de marcha e passou
por cima do texugo. Depois voltou a fazer inversão de
marcha e passou de novo por cima dele.
Deixou a carrinha em ponto morto, saiu e aproximou-se do animal. O crânio estava completamente esmagado.
Olhou para a perna e esta continuava a sobressair, revelando uma chacina inatural e premeditada.
— Cabra — disse; depois pisou a perna, uma e outra
vez, esmagando a marca precisa do arame até a apagar
da carne crua.
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parte um
O Cavalo
Capítulo Um
O cão acordou quando Daniel passou entre os edifícios,
levantou-se, preso pela sua corrente, espreguiçou-se e
bocejou; sob a luz da lanterna, Daniel viu o seu espreguiçar preguiçoso e a luz foi reflectida pelos elos da
corrente.
Atravessou o recinto de confinamento, o gado mastigava junto aos comedores sob a luz que se espraiava a
partir da vacaria; e ouviu o cão abanar-se e voltar a deitar-se no canil atrás de si.
A noite ondulava na quietude.
Entrou no ovil. As ovelhas estavam a descansar em
posições variadas e o espaço era maternal e silencioso.
Apenas se ouvia o som dos animais a mastigar, a estranha tosse das ovelhas. Pousou a lanterna numa prateleira e acendeu a luz; alguns dos cordeiros baliram e, da
incubadora, chegaram os sons dos órfãos excitados com
a ideia de irem comer.
Enquanto espera que a chaleira ferva, percorre o
ovil. Das traves do tecto pendem CDs, estranhos objectos astrais na meia-luz, agora ignorados pelos pardais e
estorninhos, cuja função é afugentá-los. De quando em
vez reflectem a luz com incongruente efeito natalício e
ele pensa nela a pendurá-los e nas suas outras invenções
rápidas, como se fosse uma criança a reproduzir o que
vê na televisão.
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CYNAN JONES
Uma traça solitária esvoaça por entre os deflectores
de vento em direcção à lâmpada nua que se encontra
sobre a chaleira, uma cúspide, um pedaço de cinza deslizante no filamento branco, papel queimado preso na
corrente ascendente de um fogo que ninguém vê, que
ninguém sente.
No fundo do redil, uma ovelha bate com as patas no
chão, erguendo o lábio como um cavalo. É o turno dele,
tem de ficar até ela parir, ainda que saiba que as ovelhas
da raça Beulah são boas mães e, muitas vezes, não precisam
de ajuda. Sabe que ela está quase, que já não falta muito.
A chaleira borbulha mecanicamente, o vapor erguendo-se na direcção da luz da lâmpada, depois estala e ele faz
a mistura e, enquanto pousa a caneca na prateleira para
arrefecer, verifica as divisórias, os cordeiros cansados aninham-se sonolentos e afáveis sob o calor das mães. Vai
buscar os baldes de água, retirando com as mãos o feno
que bóia e as caganitas que mancham cromatograficamente a água; mas o trovejar da água a correr da torneira
e a encher os baldes não perturba o suave mastigar das
ovelhas ensonadas que se deitam, como que exaustas por
terem comido, com um ar saciado. E naquela noite calma
sente, por breves instantes, como se algo invisível lhe tivesse
tocado o rosto, a ancestralidade daquilo que faz, e que ele
poderia ser um homem de qualquer idade.
Volta a olhar para a ovelha que bate com as patas e
aproxima-se dela. A ovelha cerra os dentes e fita-o com
os olhos vesgos, e ele vê o cordeiro que se apresenta de
rabo, a pequena cauda cilíndrica assemelhando-se a um
girino no saco amniótico, o saco obsceno oferecido pela
vulva dela, cintilando com água negra.
Ele deita a ovelha de lado e põe o gel na mão, a sua
cor cirúrgica, de um rosa forte, estranha no seu carácter
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A COVA
manufacturado, contrasta com aquele processo natural.
Há ali uma geografia interiorizada, familiar e mamífera,
como se algo distante guiasse as mãos dele em redor do
cordeiro que ainda se encontra dentro dela, avaliando a
constituição do bebé, e aquilo que ele faz, que poderia
ser repelente, é-lhe de alguma forma confortável, o calor,
o balão quente e gorduroso. Só visualmente existe vergonha. Os fluidos e os esforços maternais estão para além
desta, são demasiado ancestrais para sentir vergonha, e
ele compreende que está em acção uma força poderosa
e vital, equânime com o seu instinto e segura de si.
Ele empurra o cordeiro que tenta sair para o exterior,
a sua mãe está prostrada, caída na palha estaladiça, os
dentes cerrados. Ele não olha para lado nenhum, trabalhando com uma força suave, pensando, muito lá ao longe,
sem se concentrar. Por um breve instante, ouve-se a chuva.
O calmo mastigar. A chuva bate levemente na chapa sobre
ele e, no exterior, o sugar e o estalar das vacas que se alimentam sob os projectores. A chuva passa depressa. Um
assobio. O assobio dos bebedouros de água a encher.
Encontra as patas traseiras, segura com a palma da
mão os cascos afiados, inclinando para trás cada um
deles e puxa-os para fora da ovelha; o pulsar forte da
cintura pélvica e dos músculos que controlam o nascimento maceram-lhe o braço. E, depois, ele puxa o cordeiro num movimento suave e forte; bate e esfrega o seu
pêlo molhado para o fazer respirar, sente o poder do
rápido pulsar do seu coração por entre a frágil caixa formada pelas suas costelas, ainda molhado nas suas mãos
devido à gordura do nascimento, todas estas coisas da
vida, do sémen e do muco babados entre as coxas até ao
saco molhado do nascimento e ao ser recém-nascido, brilhando oleoso — todas estas coisas da vida molhada.
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CYNAN JONES
Ele olha à sua volta; encurralado entre a gamela e a barreira, vê o estorninho de contraplacado desfeito na ponta
da gamela, a proximidade do cheiro do feno, que na sua
mente pode apenas cheirar a feno, dada a ausência de
qualquer outra referência. Sente um cansaço quase louco,
anseia pela ajuda dela, por alguma companhia acima de
tudo, para ajudar a dar continuidade ao esforço. Mas o
ritmo agora é este, os turnos serão assim. Sente-se como
se o corpo estivesse a ser alimentado apenas pelo ar que o
enche, mas experimenta, apesar de tudo, uma sensação de
força — uma reserva de força; como se pudesse dar mais,
cansado ou não, pois aquilo é da maior importância.
Deixa que a mãe limpe o cordeiro, mergulhado nos
fluidos do nascimento e da cor dos taninos, e, enquanto
ela mordisca o saco que cobre a cria, ele remove o glóbulo
cremoso de gordura coagulada que primeiro irrompe da
teta rígida e generosa, aquele colostro vital.
Afasta-se da ovelha, olha para baixo e depara-se com
uma espiga de cevada, vertebral e decepada por entre a
palha, como um esqueleto no meio da comida dos pássaros.
Deixa-se ficar de joelhos, assim, um homem ancião em
oração. Sente-se como se fosse feito de carvalho e experimenta, uma vez mais, os vapores de energia que o impelem
a levantar-se e, de alguma forma entorpecido, ergue-se e
continua o seu trabalho. A chuva breve já parou, no exterior
o gado alimenta-se sob as luzes, sugando e dando estalos.
Observa durante algum tempo a Beulah, enquanto esta
se levanta. Endireita-se, o seu instinto é viver, depressa
levanta a cabeça, a sua pelagem salpicada de cinzento
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A COVA
e preto ainda se apresenta em tufos amassados; é animada por uma curiosidade imediata, um interesse pelo
ar, até pelas suas próprias patas.
Ele curva-se e bebe da torneira, consegue sentir o sabor
do plástico dos canos que trazem a água, ouve, mesmo na
ausência dela, a sua censura, recorda que ela trazia garrafas reutilizáveis de água fresca para o ovil, ainda que as
enchesse sempre no mesmo sítio, na torneira da cozinha.
Pensa nela, a dormir naquele momento, no descanso
de que ela precisa, pensa no calor do seu corpo, no facto
de poder ser um ninho para o cansaço dele. Depois regista
o novo cordeiro no livro, descreve a sua apresentação pélvica, recua algumas páginas e desliza a mão pela letra
dela, olha para a tina de conta-gotas e sprays que não compreende, que são do domínio dela, como os registos dos
movimentos e a papelada, todos os aspectos mais minuciosos da quinta.
Observa a Beulah, que está de pé, o seu interesse pelo
ar, e assiste aos seus primeiros passos.
Ele levantou-se e olhou para o exterior, entende a estranha ventriloquia de sons que perturba as suas terras; como
o som de uma raposa a regougar pode parecer oriundo do
outro lado da quinta, como numa noite preênsil como
aquela pode ocorrer a ilusão de um mar próximo. Ouviu
tudo isso, por mais silencioso que parecesse: o vento que
passava por cima das árvores, descendo em seguida por
entre as sebes e soprando sobre os campos com o som distante de ondas que se quebram e deslizam. E de tal forma
era semelhante que ele não tinha a certeza se não se trataria do som das marés transportado desde a costa, escondida da vista a alguns quilómetros de distância.
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Ergueu os olhos para os ramos nus dos freixos, mercuriais e, de alguma forma, ebúrneos, que se destacavam através dos projectores fracos e que quase não se
mexiam, fazendo com que o som parecesse muito longínquo. Um ruído branco distante. Um ruído que trazia
consigo um sussurro, primitivo e abafado, da permanência da vastidão.
O som parecia tangível no ar, no entanto, tudo transmitia uma sensação de silêncio. As ovelhas suspiravam e
mastigavam, as patas do gado chapinhavam, movendo-se
na lama. A corrente do cão tilintava como moedas num
bolso escuro. Todavia, o som trazia consigo quietude.
Enquanto fitava a escuridão absoluta mais além, uma
coruja-das-torres aproximou-se da luz dos projectores,
deslizou silenciosamente por entre os barracões e desapareceu, parecendo deixar para trás um fantasma de si
mesma, uma brancura incomensurável no ar.
Ele entrou no barracão, acendeu a luz e despiu o
casaco velho, manchado de sangue e fluidos, com a parte
interior dos braços suja de merda, polvilhado com o pó
do feno que se agarrara à lanolina e que, por entre tantos
contactos com os animais, cobrira o casaco. Tirou o chapéu. Deixou cair o impermeável em cima das botas; descalçou as botas, pisando o frio chão de cimento, e soltou
as calças de dentro das meias. Durante o breve segundo
em que se equilibrou apenas sobre uma perna percebeu que estava extraordinariamente fatigado. Até aquele
pequeno acto era demasiado cansativo para ele.
Pegou nas botas e pousou-as ao lado das dela, junto
à entrada. As suas próprias botas pareciam, de alguma
forma, protectoras. As botas e as calças dela pareciam
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