creio em deus filho - Centro de Formação de Nazaré

Transcrição

creio em deus filho - Centro de Formação de Nazaré
CREIO EM DEUS FILHO
A Questão do Filho
Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, por esta oportunidade de recapitular
aqui nestas páginas a doutrina sobre Jesus Cristo, no âmbito do Ano da Fé. Agradeço também ao P.
Hugo e ao Centro de Nazaré por esta graça de partilhar convosco este tema titulado “Creio em Deus
Filho”, no âmbito da XVII Semana Teológica desta amável Arquidiocese da Beira.
Tratar de Deus Filho é um desafio muito grande e exigente, um terreno muito fértil seja para
acertar seja para errar. Muito do que se pode dizer de Jesus é certo: que é Deus, que é homem, que
tem vontade, que salva, que morreu, etc... mas basta uma palavra a mais ou a menos para sair dos
carris da verdadeira doutrina: se dissermos que é apenas homem, que tinha uma só vontade, etc...
podemos já cair em algum erro grave.
Esta dificuldade em falar de Jesus, que é dificuldade de conhecer a sua identidade, ficou
bastante evidente nas palavras do próprio Jesus, quando disse: ninguém conhece o Filho senão o
Pai (Mt 11,27). Curiosamente, acerca do Pai, Jesus diz que é conhecido pelo Filho e por aquele a
quem o Filho o quiser revelar (idem), mas acerca do Filho diz que só o Pai o conhece.
Como podemos, então, pretender falar do Filho se Ele é só conhecido pelo Pai? Podemos
perceber a vertigem que nos vem ao pretendermos abordar este tema. E teríamos todos motivos para
abandoná-lo. O que nos anima a enfrentá-lo são dois confortos seguros: a promessa do próprio Jesus
de enviar o Espírito que nos ensinaria tudo e nos conduziria à verdade plena (…). Tudo o que o Pai
tem é meu, por isso vos disse: ele receberá do que é meu e vos anunciará (Jo 14,26; 16,13-15). O
outro é o testemunho dos Apóstolos que conviveram com Jesus e que nos deixaram o conhecimento
que lhes foi dado, durante o ministério público de Jesus e também após a sua morte e ressurreição,
segundo as palavras esclarecedoras de João:
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que
contemplamos e o que nossas mãos apalparam do Verbo da Vida – porque a Vida
manifestou-se: nós a vimos e lhe damos testemunho e vos anunciamos a Vida eterna,
que estava voltada para o Pai e que nos apareceu – o que vimos e ouvimos vo-lo
anunciamos, para que estejais também em comunhão conosco. E a nossa comunhão é
com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. (1Jo 1,1-3).
É este testemunho que nos permite acolher alguma coisa sobre Jesus e poder partilhar o que
a Igreja ao longo dos séculos foi transmitindo iluminada pelo Espírito que a vai conduzindo ao
conhecimento da verdade plena, aquela verdade que se encontra apenas com Deus Pai e que só o
Espírito pode revelar. Isto significa que nós também hoje, só podemos entrar devidamente no
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mistério do Filho apenas com a luz do Espírito: Vem, Espírito Santo, vem, vem iluminar!...
A nossa reflexão sobre Deus Filho terá duas vertentes: uma na qual recapitularemos a
doutrina sobre a identidade do Filho de Deus, segundo nos é proposta pela Sagrada Escritura e pela
Tradição da Igreja e a outra onde tentaremos perceber a missão ou papel do Filho na História da
Salvação e na Igreja de hoje.
I. IDENTIDADE DE DEUS FILHO
Das três Pessoas da Santíssima Trindade, o Filho é a mais complexa, pela multiplicidade das
suas características e até pela aparente oposição das suas diferentes manifestações: umas vezes se
mostra forte, quando pára a tempestade e leva os presentes a se questionarem: quem é este a quem
até o vento e o mar obedecem? (Mc 4,35-41), ou quando ressuscita mortos e faz que muitos creiam
nele ou que fiquem extremamente espantados (cf. Jo 11,1-45; Mc 5,21-42); mas outras vezes se
mostra como um humano comum, nascendo bebé, de uma mulher, fugindo de perigos (cf. Mt 1,182,15), quando chora (cf. Jo 11,35), quando é preso e morto, para escândalo dos seus próprios
discípulos (cf. Mc 14,26-65).
Isso fez com que a identidade do Filho fosse a mais discutida ao longo da história da Igreja e
fosse motivo das mais variadas declarações. A identidade do Filho é a que suscitou maior número
de heresias, desde aquelas monofisitas, passando pelas adopcionistas, até às monotelistas (cf. CIC
465-469). Depois de muitas controvérsias, ela ficou plasmada sobretudo nos chamados “símbolos
da fé”, que resumem o essencial do que somos chamados a crer.
Nestes “símbolos”, podemos claramente ver como a parte referente ao Filho é de longe a
mais desenvolvida, procurando precisar as questões mais debatidas. Assim, no chamado “Símbolo
dos Apóstolos”, relativamente mais breve, se diz do Filho:
E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor
que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;
nasceu da Virgem Maria;
padeceu sob Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto e sepultado;
desceu à mansão dos mortos;
ressuscitou ao terceiro dia;
subiu aos Céus;
está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,
de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos.
Enquanto no credo Niceno-Constantinopolitano, que usamos com frequência nos Domingos e
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solenidades, se ampliam ainda mais os elementos para:
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigénito de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos:
Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
gerado, não criado, consubstancial ao Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E por nós homens e para nossa salvação
desceu dos Céus.
E encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria,
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos;
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou ao terceiro dia,
conforme as Escrituras;
e subiu aos Céus, onde está sentado à direita do Pai.
De novo há-de vir em sua glória
para julgar os vivos e os mortos;
e o seu Reino não terá fim.
Nestes símbolos, parecem destacar-se os seguintes elementos:
 Se reafirma a fé em Deus, que é também Filho. Depois de ter dito na primeira parte que
Deus era Pai, agora se afirma que este ser supremo, aquele que é em si mesmo, a plenitude do ser e
de toda a perfeição, «Aquele que é» sem origem e sem fim (cf. Ex 3,13-15), o todo-poderoso, sob
cujas mãos está o governo do mundo, é também Filho, ou seja, uma Pessoa divina, gerada (e não
criada) pelo Pai, antes de todos os séculos; este Filho partilha com o Pai a sua substância, a sua
realidade profunda, e o seu eterno e pleno poder sobre o mundo e sobre os homens, cujo destino
indicará no fim dos tempos, qual justo juíz (cf. Jo 8,28; Mt 25,31-46). Como encontramos no
prefácio da Solenidade da Santíssima Trindade:
Com o vosso Filho Unigénito e o Espírito santo, sois um só Deus, um só Senhor, não na
unidade de uma só pessoa, mas na trindade de uma só natureza. Tudo quanto revelastes acerca
da vossa glória, nós o acreditamos também, sem diferença alguma, do vosso Filho e do Espírito
Santo. Professando a nossa fé na verdadeira e sempiterna divindade, adoramos as três Pessoas
distintas, a sua essência única e a sua igual majestade (Missal Romano).
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 Este Deus Filho se identifica com Jesus de Nazaré – nascido hebreu, em Belém, duma
filha de Israel, no tempo do rei Herodes o Grande e do imperador César Augusto, carpinteiro de
profissão (CIC 423) - na medida em que sendo Deus se fez homem, para salvar os homens,
nascendo da Virgem Maria, por virtude do Espírito Santo (cf. Mt 1,18; Lc 1,26-38). É verdadeiro
homem, e enquanto Deus e homem foi crucificado, padeceu e foi sepultado numa época histórica
muito precisa, ou seja, sob Pôncio Pilatos, que foi prefeito da província romana da Judeia, entre os
anos 26 e 36 d.C. Disso darão testemunho os seus discípulos , como vemos pelas palavras de Pedro:
Jesus, o Nazareu, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais, que
Deus operou por meio dele entre vós, como bem o sabeis. Este homem, entregue segundo o
desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pela mão dos
ímpios (Act 2,22-23).
Ou, como dirá Paulo: Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou
Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a
Lei, a fim de que recebêssemos a adopção filial (Gl 4,4-5).
 A unidade de seu ser Deus e homem se manifestou mais claramente na sua ressurreição
após a sua morte na cruz, que o mostrou acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se
dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra (Fl 2,9-10). É o
mesmo Jesus que viveu, padeceu, morreu e que agora ressuscitou e está na glória de Deus, como o
deixa claro Pedro:
O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob, o Deus de nossos pais glorificou o seu servo Jesus, a
quem vós entregastes e negastes diante de Pilatos, quando este já estava decidido a soltá-lo. Vós
acusastes o Santo e o Justo e exigistes que fosse agraciado para vós um assassino, enquanto
fazíeis morrer o Príncipe da vida. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos e disso nós somos
testemunhas (Act 3,13-15)
 Este Jesus, Deus e homem, realiza as promessas divinas do Antigo Testamento, sobretudo
quando invocamos os títulos com que é chamado: Jesus, que quer dizer “Deus salva”, conforme
revelado pelo Anjo do Senhor a José (cf. Mt 1,21: ele salvará o seu povo dos seus pecados); ou
Cristo, ou Messias esperado, conforme as palavras de Marta: Sim, Senhor, eu creio que tu és o
Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo (Jo 11,27) ou na chamada “confissão de Pedro”: Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16,16).
Portanto, a Igreja católica crê em Jesus, como o Filho de Deus; e crê nele sem negar ou se
afastar da fé no Deus único (cf. Dt 6,4), segundo afirma claramente o Concílio de Calcedónia (451):
Na sequência dos santos Padres, ensinamos unanimemente que se confesse um só e mesmo Filho,
nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade; verdadeiro Deus
e verdadeiro homem, composto de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai pela sua
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divindade, consubstancial a nós pela humanidade, “em tudo semelhante a nós, excepto no pecado”
(Heb 4, 15); gerado pelo Pai antes de todos os séculos, segundo a divindade e, nestes últimos
tempos, por nós homens e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria e Mãe de Deus, segundo a
humanidade.
Um só e o mesmo Cristo Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem
confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. A diferença das naturezas não é abolida pela
sua união; antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só pessoa e
numa só hipóstase (DS 301-302; CIC 467).
A encarnação, pela qual o Verbo eterno de Deus assume uma natureza humana é, por isso, o
mistério da admirável união da natureza divina e da natureza humana, na única pessoa do Verbo (cf.
CIC 483), como já deixara claro o prólogo de João:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.
Este veio para testemunho, para dar testemunho da luz, para que todos cressem por ele.
Não era ele a luz, mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.
Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem
no seu nome;
Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus.
E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai,
cheio de graça e de verdade.
João deu testemunho dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem após
mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu.
E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça.
Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou. (João
1:1-18; CIC 423)
Este é, sem dúvida, um dos melhores resumos mais antigos da identidade de Deus Filho, que
explica o que Marcos tinha dito ainda mais sucintamente no início do seu Evangelho, exprimindo a
fé da sua Comunidade: Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus (Mc 1,1), onde se
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anuncia a salvação divina trazia por Jesus, Ungido de Deus e seu Filho (cf. LG 3; 7; DV 2; AG 3).
O texto de João tem a vantagem de uma linguagem mais acessível; deve ter sido por isso
também que durante algum tempo este prólogo era ensinado aos catecúmenos, para acolherem
desde cedo o caminho que lhes era proposto para a salvação.
Aliás, esta é a característica dos textos bíblicos, como acontece, no ambiente hebraico com o
texto do Shema, repetida diariamente pelos judeus ainda hoje e que inicia com: Escuta Israel:
YHWH nosso Deus, é o único YHWH; portanto, amarás YHWH teu Deus com todo o teu coração,
com toda a tua alma e com toda a tua força (Dt 6,4-5).
A simplicidade destes textos permite que praticamente todas as crianças judias aprendam de
pequenas este texto que continuarão a pronunciar cada dia pelo resto da sua vida. Isto parece
contrastar, em certa medida, com os nossos “símbolos”, textos mais elaborados, cheios de
significado, que procuram de um modo quase académico precisar os diversos aspectos que
suscitaram polémicas e erros no passado, como foi o caso do docetismo, da heresia nestoriana, dos
monofisitas, etc. (cf. CIC 465-468).
Encontramos na Liturgia e na piedade quotidiana dos fiéis alguns esforços de tornar mais
“acessíveis” estas realidades fundamentais da fé cristã, uns com mais fruto e outros com menos. Me
vem à mente, neste momento, um canto muito conhecido que diz de forma singela:
Creio em Jesus, Creio em Jesus
É meu amigo, minha alegria
É meu amor
Creio em Jesus, Creio em Jesus
É meu salvador!
Nas estrofes, o canto retoma alguns episódios da vida de Jesus para mostrar quem Ele é e
também anunciar a sua mensagem de salvação.
Provavelmente este tipo de canto não será capaz de substituir a riqueza dos símbolos
tradicionais, mas talvez poderia ajudar a tornar mais viva a profissão de fé, a fazer com que as
Comunidades se apropriem desta fé e a sintam como sua e não algo trazido de fora e sobretudo a
fazer dela um momento alegre, segundo aquelas palavras com que termina a renovação da fé na
Vigília Pascal e noutros momentos semelhantes: Esta é a nossa fé, esta é a fé da Igreja que nos
alegramos em professar (Missal Romano).
Este trabalho de apropriação da fé em Deus Filho é fundamental para se falar de um diálogo
com a cultura, pois a meta que nos devemos propor é aquela dos samaritanos após o testemunho da
mulher que encontrou Jesus no poço: Já não é por causa do que falaste que cremos. Nós próprios o
ouvimos e sabemos que esse é verdadeiramente o salvador do mundo (Jo 4,42).
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Para reflectir em grupo:
1. A liturgia e a vida permitem alegrar-se na fé em Jesus, Deus, com o Pai e o Espírito?
2. Que erros se verificam ainda hoje acerca da Pessoa do Filho?
3. De que maneira a fé no Filho pode ser mais “acessível” às Comunidades africanas?
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II. PAPEL OU ALGUNS ATRIBUTOS DO FILHO
Na nossa primeira reflexão, recapitulamos os dados principais da nossa fé em Deus Filho,
baseando-nos nos ensinamentos da Sagrada Escritura e nos símbolos da fé, nomeadamente o
“Símbolo dos Apóstolos” e o “Credo Niceno-Constantinopolitano”, que condensam o essencial da
verdadeira doutrina acerca de Jesus, Filho de Deus vivo. Nesta segunda parte, partindo das mesmas
bases, e recolhendo a reflexão posterior do Magistério, destacaremos alguns títulos usados para a
missão do Filho na História da Salvação.
Este desenvolvimento não pretende ser exaustivo, antes procurará indicar algumas pistas
para uma maior aproximação à figura do Filho e ajudar a aprofundar o diálogo entre o Evangelho, a
Teologia e a cultura Africana, no âmbito do que se tem designado “cristologia africana”,
especialmente no que diz respeito à identidade e missão de Jesus Cristo.
2.1. Jesus como Salvador ou libertador
Este título evoca os grandes momentos da história de Israel, em que o povo de Deus
experimentou a presença salvífica de Deus. Podemos lembrar, como exemplos, a libertação do
Egipto (cf. Ex 3,8; 6,6), pelos juízes (cf. Ne 9,27-28), a libertação do exílio da Babilónia (cf. Is 43),
que inspiraram cantos como Is 12: O Senhor é minha força e o meu canto: Ele é a minha salvação!
A ligação entre Jesus e o Deus salvador de Israel é feita de partida pelo seu nome, anunciado
pelo Anjo do Senhor a José, ao qual explica que salvará o seu povo dos seus pecados (Mt 1,21; cf.
CIC 430-433; AG 8).
O Novo Testamento deixa claro isto em várias passagens. João diz que foi Deus que nos
amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados (1Jo 4,10); o Pai enviou
o Filho como salvador do mundo (1Jo 4,14).
O Credo Niceno-Constantinopolitano retoma o mesmo tema quando afirma do Filho: por
nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e encarnou pelo Espírito Santo no seio da
Virgem Maria e se fez homem (CIC 456-458).
Deus Filho se manifesta como salvador ou libertador já no seu ministério público, quando
liberta certos homens de males terrenos: da fome (cf. Jo 6,5-15), da injustiça (cf. Lc 19,8), da
doença e da morte (cf. Mt 11,5); mas sobretudo quando liberta os homens da mais grave das
escravidões, a do pecado, que os impede de realizar a sua vocação de filhos de Deus e é a causa de
todas as servidões humanas (CIC 549) e os liberta de Satanás, instaurando o Reino de Deus (cf. Mt
12,28; Lc 8,26-39; LG 5; 14; 46).
Neste sentido, o acto libertador por excelência é a morte e ressurreição, onde o Filho dá a
sua vida em resgate pela multidão (Mt 20,28). E o CIC explica a propósito desta última expressão
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que na sequência dos Apóstolos, a Igreja ensina que Cristo morreu por todos os homens, sem
excepção e cita o Concílio de Quiercy (853) que declarara que não há, não houve, nem haverá
qualquer homem pelo qual Cristo não tenha sofrido (CIC 605).
Neste sentido, o título de salvador ou libertador se liga ao de redentor, na medida em que o
mesmo Filho veio dar a sua vida em resgate pela multidão (Lc 22,19; Mt 20,28) e cumpriu a
missão expiatória do servo sofredor que justifica as multidões, tomando sobre si o peso das suas
faltas (Is 53,11; CIC 622-623; SC 6; LG 5; AG 5; DV 4; GS 18).
Na tentativa de tornar mais próxima esta realidade no nosso contexto, alguns autores
propuseram o título de Curandeiro. John Pilch (2000) apresenta quatro elementos a favor dele:

Jesus cura com poder divino (cf. Jo 9,3), usando técnicas populares como impor as
mãos, tocar (Mc 1,41), usando saliva (Mc 8,23), lama (Jo 9,6), ou com palavras potentes, como
talitha kum (Mc 5,41) ou effatha (Mc 7,34).

As curas de Jesus visam restaurar o sentido da vida para a pessoa, como acontece com a
sogra de Pedro, sem referir a causa ou se o problema reapareceu (cf. Lc 4,38-39).

As enfermidades que atende são essencialmente questões de pureza, que excluem a
pessoa da comunidade santa. Cegueira, surdez, mudez, doenças da pele rompem a relação com
Deus, pois quem delas padece não se pode aproximar de Deus até ter o problema resolvido (cf. Mc
1,40-45).

Jesus responde à enfermidade como uma pessoa santa, ou seja, alguém que tem uma
segura familiaridade com o mundo espiritual: os próprios demónios reconhecem nele o Santo de
Deus (Mc 1,9-11).
Como o refere J.D. Crossan, há um consenso geral entre os estudiosos em aceitar que Jesus
era um exorcista e um curandeiro (1994: 369). G. Barbaglio refere que Jesus taumaturgo insere-se,
com justiça e plenamente, no seu ambiente cultural e social, mostrando claras analogias, mas
também peculiaridades inegáveis (Barbaglio 2003: 2).
Uma destas peculiaridades é o sentido que Jesus dá às suas curas, sobretudo quando
respondendo aos enviados de João Baptista (Lc 7,22; Mt 11,5) apresenta seus gestos como acções
messiânicas, segundo promessa de Is 29,18-19; 35,5-6; 61,1.
Por outro lado, Jesus mostra claramente que tem poder próprio e que tem uma relação única
com Deus, que é Ele mesmo, como já pudemos ver na primeira parte. Enquanto Deus, o Emanuel
anunciado no início do Evangelho de Mateus (Mt 1,23), o seu poder é ilimitado, é total, e Jesus o
liga ao perdão dos pecados, reservado ao próprio Deus (Mt 9,1-8)
Outra questão que fica é: será que a actividade de Jesus como curandeiro e exorcista pode
ser suficiente para definir a realidade do que era Jesus Cristo, o Filho de Deus?
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2.2 Jesus como Mediador
Ainda entre os seus discípulos, Jesus acenou para seu papel de intermediário entre Deus e os
homens. A Pedro, pouco antes da paixão, disse: Simão, Simão, eis que Satanás pediu
insistentemente para vos peneirar como o trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não
desfaleça (Lc 22,31-32). O seu papel de mediador se nota ainda no seu sacrifício redentor, no qual
oferece a sua vida em favor de muitos (Lc 22,19-20) ou para redenção de todos (1Tm 2,5-6,
retomado na LG 60; cf. NA 4; DV 4; AG 3).
Com efeito, o papel mediador do Filho é realçado após a sua elevação na cruz (cf. Jo 12,32).
O CIC 662 explica o sentido deste momento:
Jesus Cristo, o Único Sacerdote da nova e eterna Aliança, não "entrou em um santuário feito
por mão de homem... e sim no próprio céu, a fim de comparecer agora diante da face de Deus a
nosso favor" (Hb 9,24). No céu, Cristo exerce em carácter permanente seu sacerdócio, "por
isso é capaz de salvar totalmente aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus, visto que
ele vive eternamente para interceder por eles" (Hb 7,25). Como "sumo sacerdote dos bens
vindouros" (Hb 9,11) ele é o centro é o actor principal da liturgia que honra o Pai nos Céus.
Este é o sentido do que encontramos no Credo Niceno-Constantinopolitano, quando diz que
Jesus está sentado à direita do Pai, ou seja, na honra e glória da divindade, como se exprime S.
João Damasceno (cf. CIC 663).
É nesta condição em que tendo entrado uma vez por todas no santuário do céu, Jesus Cristo
intercede sem cessar por nós como mediador que nos garante permanentemente a efusão do
Espírito Santo (CIC 667; cf. LG 19; 24; 39; DV 17; 19; AG 4).
Em relação à Igreja, a Lumen Gentium refere que Cristo, mediador único, estabelece e
continuamente sustenta sobre a terra, como um todo visível, a Sua santa Igreja, comunidade de fé,
esperança e amor, por meio da qual difunde em todos a verdade e a graça (LG 8; 14)
É neste contexto que se propõe também para Cristo o título de “Antepassado”.
D. Stinton (2004) diz que o culto dos antepassados constitui um dos pilares da Religião
Tradicional Africana e se caracteriza por: uma relação natural, na medida em que pais e avôs se
tornam antepassados directos; os antepassados têm status sobrenatural ou sagrado, têm poder, por
isso são temidos e venerados, podendo beneficiar ou ferir quem não os reconhece; estando numa
posição superior, não divina, agem como mediadores entre Deus e os homens; há constante
comunicação com eles; e são modelos de comportamento humano (Stinton 2004: 133-134).
Para ser Antepassado é preciso ter sido adulto e ter filhos, além de ter tido uma morte
natural (Stinton 2004: 133-135; Mbiti 1989:82-83). Só estes podem se tornar guias espirituais do
povo, mediadores e guardiães das questões familiares, das tradições, da moral, ou seja, serem
consciência social da comunidade.
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Segundo R. Fotland (2005), os Antepassados representam o aspecto mais visível e
proeminente do mundo transcendente e, nessa linha, V. Kuster defende que Jesus poderia ser
considerado Antepassado na medida em que é mediador da vida, está presente entre os vivos,
mesmo depois de morrer, sendo mediador entre Deus e os homens; por outro lado, como os
Antepassados cuidam da vida dos descendentes e continuam a fortalecê-la, assim Cristo
continuamente alimenta a vida dos crentes, conforme as suas palavras em Jo 6,35 e também na
última ceia. Jesus é o verdadeiro Guia da Comunidade, que a protege e aconselha, é modelo de
virtudes e atrai para a Comunidade ajuda e perdão (cf. 1Jo 2,1; Rm 8,34; Kuster 1999:120).
Apesar de vários aspectos parecerem a favor desta designação, Jaco Beyers coloca algumas
questões pertinentes. Por exemplo, porque só Jesus teria essa consideração de Antepassado e não os
outros familiares no seio da Igreja? Para ser Antepassado, é preciso ser da família: Jesus é Africano?
De qual tribo? Aceitar Jesus como Antepassado implica reconhecer o sistema todo da veneração dos
Antepassados com todas as suas implicações; por outro lado, os Antepassados não podem ser ao
mesmo tempo homens e Deus. Colocar Cristo como Antepassado não seria negar ou ignorar a sua
divindade?... Como conciliar esta proposta com a afirmação clara do Credo Niceno de que Jesus é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem?
O debate continua aberto e temos autores a favor de Jesus como proto-Antepassado, como
John Pobee, Bénézet Bujo; e temos outros que são contrários, como Nurnberger que diz que a morte
e ressurreição de Cristo não podem ser comparadas com a morte de pessoas que se toram depois
Antepassados (Nurnberger 2007: 96).
Numa linha semelhante se encontra a proposta de autores como R.J. Schreiter de considerar
Cristo como “Irmão mais velho”, no sentido de que Ele seria o primogénito de Deus no mundo, com
quem falar a quem consultar (Schreiter 2002: 121).
A ideia de Jesus como “primogénito” está presente já no Novo Testamento (cf. Rm 8,29; Col
1,15; Hb 2,10-18). Contudo, seria preciso ter presente, para uma correcta interpretação deste termo,
que a mesma Escritura, já por nós citada, na primeira reflexão, designa Cristo de unigénito ou Filho
único (Jo 1,14.18) e a posição de Cristo diante de Deus não deixa dúvidas (cf. Jo 3,16-18).
Será nessa linha que o Símbolo dos Apóstolos afirma claramente se crer em Jesus Cristo,
seu único Filho, nosso Senhor; e o Credo de Nicea-Constantinopla retoma a ideia com termos muito
próximos: Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, como já vimos acima.
Como no primeiro caso, se podem aduzir elementos a favor e outros contrários; a grande
questão que parece colocar-se também aqui é a posição única, privilegiada de Cristo, enquanto
homem e Deus, enquanto gerado e não criado, consubstancial ao Pai, etc. Como apresentar esta
realidade de maneira coerente para o cristão de hoje?
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2.3 Jesus como Rei e Senhor
A nível da Sagrada Escritura, podemos perceber que inicialmente, o título de “Senhor”
aplicado a Jesus exprime o respeito e a confiança dos que se aproximam de Jesus e d'Ele esperam
socorro e cura (Lc 1,43; 2,11); mas já no encontro com Jesus Ressuscitado, transforma-se em
adoração: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28). Toma então uma conotação de amor e afeição,
que vai ficar como típica da tradição cristã: “É o Senhor” (Jo 21,7) (CIC 448).
Os documentos da Igreja explicitam ainda mais o sentido destes títulos:
Ao atribuir a Jesus o título divino de Senhor, as primeiras confissões de fé da Igreja afirmam,
desde o início, que o poder, a honra e a glória devidos a Deus Pai cabem também a Jesus, por
ser Ele "de condição divina" (Fl 2,6) e ter o Pai manifestado esta soberania de Jesus
ressuscitando-o dos mortos e exaltando-o em sua glória.
Desde o principio da história cristã a afirmação do senhorio de Jesus sobre o mundo e sobre a
história significa também o reconhecimento de que o homem não deve submeter sua liberdade
pessoal, de maneira absoluta, a nenhum poder terrestre, mas somente a Deus Pai e ao Senhor
Jesus Cristo: César não é "o Senhor". "A Igreja crê... que a chave, o centro e o fim de toda a
história humana se encontram em seu Senhor e Mestre." (GS 10; CIC 449-450).
Nesta linha, autores como François Kabasele, Cletus Mwiila, propõem para Deus Filho o título
africano de “chefe”, uma espécie de chefe tradicional.
Segundo C. Mwiila, Jesus se identifica como um chefe tradicional, pois as prerrogativas de um chefe
bantu se realizam plenamente n'Ele: a Ele pertence de maneira eminente o poder, enquanto Filho do Chefe,
seu emissário; na medida em que é forte, generoso, sábio e reconciliador dos homens; Jesus é grande chefe
por ter vencido Satanás: um verdadeiro chefe é um herói, que defende e protege o seu povo, e Cristo é
defensor e protector do povo; um chefe é muito poderoso, forte, generoso, reconciliador, apelando ao amor e
à união, como faz Jesus que insiste no perdão (Mwiila: 2)
As reservas apresentadas acima acerca da questão de acolher todo o sistema no qual estes
conceitos se inserem podem ser aduzidas também aqui: De qual tribo seria Jesus chefe? Por outro
lado, os diversos títulos que a Escritura nos traz ajudam a dar uma ideia mais ampla do Filho; em
que medida o título de “chefe tradicional” enriqueceria realmente a compreensão de Deus Filho?
1. As diferentes designações de Deus Filho na Escritura e na Tradição ajudam as nossas
Comunidades a entender quem é Jesus? Quais se mostram mais próximas?
2.
Existe algum título do contexto africano que se apresenta adequado para Jesus? Que
motivos teria a sua favor?
3.
A profissão da fé no Filho é assumida como própria (“nossa fé”) pelas Comunidade e na
vida dos fiéis? Que se pode fazer para melhorar?
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BIBLIOGRAFIA
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