olhares sobre escravidao contemporanea - GEDMMA

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olhares sobre escravidao contemporanea - GEDMMA
Ministério da Educação
Universidade Federal de Mato Grosso
Reitora
Maria Lúcia Cavalli Neder
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Francisco José Dutra Souto
Coordenador da Editora Universitária
Marinaldo Divino Ribeiro
Composição do Conselho Editorial da EdUFMT
Presidente
Marinaldo Divino Ribeiro
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Bismarck Duarte Diniz
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Janaina Januário da Silva
Jorge do Santos
José Serafim Bertoloto
Karlin Saori Ishii
Marluce Aparecida Souza e Silva
Marly Augusta Lopes de Magalhães
Moacir Martins Figueiredo Junior
Taciana Mirna Sambrano
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Cuiabá, MT
2011
© FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes (Orgs.). Olhares sobre a Escravidão
Contemporânea: novas contribuições críticas. Cuiabá: EDUFMT, 2011.
ISBN: 978-85-327-0395-8
O45
Olhares sobre a escravidão contemporânea : novas contribuições
críticas / Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado (Orgs.).
– Cuiabá : EdUFMT, 2011.
442 p. : il. (algumas color.)
ISBN – 978-85-327-0395-8
Inclui bibliografia.
1. Trabalho escravo. 2. Escravidão contemporânea.
3. Agropecuária – Trabalho escravo. 4. Trabalho escravo – Amazônia.
I. Figueira, Ricardo Rezende (Org.). II. Parado, Adonia Antunes (Org.).
CDU – 326.3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Coordenação da EdUFMT:
Marinaldo Divino Ribeiro
Supervisão Técnica:
Janaina Januário da Silva
Revisão e Normalização Textual:
Giselle Marques Ramos de Oliveira
Vânia Siqueira de Lacerda
Capa, Editoração e Projeto Gráfico:
Candida Bitencourt Haesbaert
Foto da capa:
João Roberto Ripper
Impressão:
Gráfica Print
Filiada à
Editora da Universidade Federal de Mato Grosso
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Fone: (65) 3615 8322 – fax: (65) 3615 8325
www.ufmt.br/edufmt | [email protected]
Sumário
Apresentação....................................................................................... 9
Introdução......................................................................................... 11
I . ABERTURA
Representações de trabalhadores, gatos, e empregadores sobre o trabalho escravo.... 23
José Damião de Lima Trindade
1 – Representações de trabalhadores, gatos e empregadores
sobre o trabalho escravo........................................................................ 37
Maria Antonieta Vieira
Regina Bruno
2 – Depoimentos de trabalhadores rurais escravizados
por dívida - 2007, Pará, Brasil.................................................................. 57
Adonia Antunes Prado
3 – A escravidão contemporânea: relações existentes e estudo de caso................. 71
Ricardo Rezende Figueira
Adriana da Silva Freitas
Andrea Kazuko Murakami
Vera Lúcia Cavalieri
4 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a denúncia como um
dos caminhos na resistência dos trabalhadores à dominação............................. 93
Alessandra Gomes Mendes
5 – De homens escravos a terra livre: um caso de escravização capitalista
Rio de Janeiro (1993-1998).....................................................................113
Gladyson S. B. Pereira
II . PODER PÚBLICO E SOCIEDADE CIVIL
1 – Modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao
de escravo usando lógica Fuzzy...............................................................129
Benedito de Lima e Silva Filho
Renato de mello
2 – A cabeça do libertador.....................................................................155
Jaqueline Gomes de Jesus
3 – Trabalho escravo: a dignidade dilacerada pelo capital..............................171
Antônio Alves de Almeida
4 – Trabalho escravo contemporâneo.......................................................197
Marcelo Campos
5 – Violação de direitos humanos no campo: um enfoque a partir da Amazônia......205
José Batista Gonçalves Afonso
III . PERSPECTIVA DE TRABALHO E DIREITO
1 – Atuação do ministério público federal no combate ao crime de trabalho escravo
no meio rural e políticas públicas para erradicar a escravidão contemporânea.....229
Neide M. C. Cardoso de Oliveira
2 – Tratados e convenções internacionais e seus reflexos (e inconsistências)
no tratamento da escravidão pós-abolição..................................................245
Nanci Valadares de Carvalho
3 – Tráfico de pessoas: cenário, atores e crime
Em busca do respeito à dignidade humana..................................................265
Waldimeiry Corrêa da Silva
4 – Mecanização do corte de cana crua e políticas públicas compensatórias:
indo direto ao ponto............................................................................293
Francisco Alves
5 – Acre, desenvolvimentismo e reservas extrativistas...................................317
Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior
6 – Notas sobre o mundo do trabalho rural no estado de Mato Grosso
em fins da primeira década do século XXI..................................... 335
Vitale Joanoni Neto
7 – Depoimento – Uma situação vivida por um imigrante de 1931 .....................349
Mitiko Yanaga Une
8 – Nuevos estándares internacionales, flexibilidad laboral y elementos de
trabajo esclavo en la horticultura de exportación en México............................359
Boris Marañón-Pimentel
9 – Os acionistas da casa grande: A reinvenção capitalista do trabalho
escravo no Brasil contemporâneo............................................................391
Leonardo Sakamoto
10 – Trabalho escravo - uma realidade na cadeia produtiva de corporações
com a chamada “responsabilidade social”..................................................427
Marcela Soares Silva
Os autores.........................................................................................441
Agradecimentos
Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro o apoio, na modalidade APQ2; à Fundação Ford e
à Universidade Federal do Mato Grosso pela publicação deste livro; à direção do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely
Souza de Almeida, à Escola de Serviço Social, à Faculdade de Educação e ao
Centro de Filosofia e Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, pelo poio à realização da I e II Reunião Científica Trabalho Escravo
Contemporâneo e Questões Correlatas.
Em especial, agradecemos à professora Gelba Cavalcante de Cerqueira,
por sua dedicação incansável ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), e à doutora Denise Dourado Dora, pela disponibilidade
e solidariedade ao projeto do GPTEC.
Apresentação
É com imensa satisfação que apresento o livro OLHARES SOBRE A ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA: NOVAS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS, organizado por Ricardo Rezende Figueira e Adônia Antunes Prado, com a colaboração
de vários autores que estudam a temática da Escravidão Contemporânea.
No início da década de 1980, havia grande resistência teórica, no âmbito
das Universidades, para aceitar que houvesse escravidão nas agropecuárias
na Amazônia. Atualmente, embora ainda não haja consenso sobre a questão,
até o poder público, assessorado por pesquisadores de Universidades, combate esta forma de relação social de produção que ainda persiste. A escravidão por dívida é uma chaga social disseminada em várias partes do mundo.
Na introdução, os autores fazem referência ao livro “À Margem da
História”, no qual Euclides da Cunha denuncia a persistência da escravidão
de trabalhadores nos seringais da Amazônia. O “aviamento”, uma forma de
escravidão por dívida, praticado nos seringais, era a prática de “cativeiro”
mais conhecida no Brasil.
Na transição do trabalho escravo para o colonato, nas fazendas de café
de São Paulo, os feitores viam os colonos europeus como escravos de pele
branca. As cartas-denúncia do colono suíço Thomas Davatz, e a revolta dos
colonos da fazenda do Senador Vergueiro, levaram os governos de alguns
países europeus a pressionar o governo brasileiro, exigindo dos barões do
café a adoção de relações de trabalho condizentes com a condição de homens
livres dos colonos.
No final dos anos 60 e início da década de 1970, as agropecuárias subsidiadas pela SUDAM, com a intermediação dos gatos, levaram milhares de
trabalhadores para derrubar a mata em fazendas na Amazônia. Logo que
assumiu a Prelazia de São Felix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga fez as
primeiras denúncias sobre a exploração dos trabalhadores nas agropecuárias do Araguaia. Era o início. Ao longo das décadas seguintes esta prática
não só continuou como se ampliou. Atualmente os jornais noticiam com
relativa freqüência a “libertação” de trabalhadores em situação análoga ao
trabalho escravo em modernos empreendimentos capitalistas, como usinas
de açúcar, agropecuárias e madeireiras. Os proprietários são empresários,
políticos, muitos com formação universitária. Atualmente esta prática está
disseminada inclusive em áreas urbanas.
Esta coletânea resultou das discussões do Grupo de Pesquisa sobre o
Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), de pesquisas de seus membros, e
de relatórios de órgãos incumbidos de reprimir a prática do trabalho escravo
contemporâneo. Estes textos nos mostram que, apesar do desenvolvimento
econômico, muitas empresas capitalistas mantêm, no seu interior, relações
sociais de produção atrasadas, incompatíveis com este modo de produção.
Os depoimentos de trabalhadores submetidos a formas de exploração análogas ao trabalho escravo são um libelo acusatório contra os exploradores,
e contra a sociedade envolvente.
Apesar desta situação, nos últimos anos houve avanços significativos,
no âmbito legal e político, no combate oficial à prática do trabalho escravo.
Grandes empresários e até políticos, donos de empresas agropecuárias foram denunciados e punidos. Seus nomes saíram do anonimato para a lista
suja do trabalho escravo.
A leitura deste livro mostra que o processo de expansão da fronteira
amazônica, estimulada e subsidiada pelo Estado, alardeada como progresso
e desenvolvimento, possibilita a acumulação do capital utilizando práticas
de expropriação, exploração da força de trabalho, violência e a sujeição
dos trabalhadores à situação análoga ao trabalho escravo. Neste contexto
os próprios trabalhadores se tornam mercadoria.
Prof. Dr. João Carlos Barrozo
PPGHis da UFMT
Introdução
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
Há mais de um século, em agosto de 1909, morreu Euclides da Cunha.
Além de homenagear o escritor de Os Sertões (1922), é hora de retomar outro
texto euclidiano. Cinco anos antes, em 1904, o escritor esteve na Amazônia,
como chefe da uma comissão de reconhecimento do Alto Purus. A experiência possibilitou que redigisse À Margem da História, publicada, enquanto
livro, postumamente. No texto, o autor que combinava pesquisa e denúncia,
constatou que ao trabalhador “[...] nas paragens exuberantes das héveas e
castiolas, o aguarda(va) a mais criminosa organização do trabalho que ainda
engenhou o mais desaçamado egoismo” (CUNHA, 2006, p. 28) ou, afirma
ainda o autor que, o nordestino empurrado pela necessidade para a região,
era aguardado para “[...] a mais imperfeita organização do trabalho” também
construída pelo mesmo egoísmo (CUNHA, 2006, p. 51). Por isso, prosseguiu
o narrador: “De feito, o seringueiro – e não designamos o patrão opulento,
senão o freguês jungido à gleba das estradas – realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 2006, p. 28). E
retomou poucas páginas depois: “Repitamos. O sertanejo emigrante realiza,
ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que
trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 2006, p. 51).
Com um vocabulário singular, variado e peculiar, o autor revelou a
existência de homens atados aos seringais, vítimas de um crime que não
era aleatório, mas intencional. E o demonstrou ao apontar minuciosamente,
através de valores da época, o mecanismo e a arquitetura que enlaçavam o
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
homem ao seu senhor. A trama da prisão da pessoa constava inicialmente do
adiantamento recebido para a viagem, o transporte, os gastos provenientes
da compra de mercadorias e instrumentos de trabalho. Havia, para Euclides
da Cunha, atrás desse comércio, um sistema “de venda de um homem” e,
como consequência, a escravidão por dívida.
É natural que ao fim de alguns anos o freguês esteja irremediavelmente perdido. A sua dívida avulta ameaçadoramente: três, quatro,
cinco, dez contos, às vezes, que não pagará nunca. Queda, então, na
mórbida impassibilidade de um felá desprotegido, dobrando toda a
cerviz à servidão completa. O regulamento é impiedoso:
Qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se sem que liquide
todas as suas transações comerciais...
Fugir? Nem cuida tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer.
Buscar outro barracão? Há entre os patrões acorde de tal não aceitarem uns os empregados de outros antes de saldadas as dívidas, e ainda
há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizarse essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes
(CUNHA, 2006, p. 30-31).
O mundo do crime sobrevivia com sua organização interna capiciosa,
suas reuniões, seus controles sociais e os acordos entre os proprietários
dos seringais, moendo esperanças e sonhos de migrantes que queriam o
sossego de uma existência. A lógica era o desejo sem freios e limites para o
lucro. Ou era o “desaçamado egoismo” sobre gentes amordaçadas; subjugadas pelas lonjuras em que se encontravam. A situação chegada a tal ponto
que os escravizados também escravizavam. Os caucheiros “Vão em busca
do selvagem que devem combater e exterminar ou escravizar, para que do
mesmo lance tenham toda a segurança no novo posto de trabalhos e braços
que lhos impulsionem” (CUNHA, 2006, p. 58).
O autor, possivelmente, não imaginava que a tragédia persistiria com
tanta e amiúde frequência nos anos posteriores. Pouco mais de 30 anos
depois, Euclides da Cunha não assistiu, ao deslocamento de milhares de
brasileiros de muitos rincões do país em direção à mesma região para viver
os mesmos problemas. Eram os chamados soldados da borracha, tangidos
pela propaganda do Estado e pela ação das forças armadas, para a coleta
da borracha vegetal. Iam abastecer os aliados em tempos de guerra, mas
conheceriam a estrutura da dívida, seriam desabastecidos de seus sonhos
e morreriam ali mais brasileiros, do que aqueles que tinham ido para os
campos de guerra da Itália. No primeiro caso, entre os séculos XIX e XX, havia a omissão do Estado. Nordestinos doentes e famintos eram embarcados
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
para a Amazônia; no segundo, nordestinos e não nordestinos, também em
situação de maior vunerabilidade, eram enviados pelo governo brasileiro
para a área. Em ambos momentos, uma vez na Amazônia, eram abandonados
nas mãos dos empresários da borracha.
Outros autores, como Ferreira de Castro e Thomaz Davatz, tiveram
menos sorte que Euclides da Cunha que não foi submetido à escravidão, mas
escreveu sobre ela. Ferreira de Castro, em 1911, com 13 anos, emigrou de
Portugal para o Brasil e foi levado de Belém para colher a borracha vegetal
em uma fazenda onde permaneceu por quatro anos nas condições similares
às descritas por Cunha. A experiência foi inspiradora para o romance de
1930, A Selva que também descreve minuciosamente o sistema do trabalho
no seringal, o endividamento e a violência contra os que tentam escapar.
Cinco destes personagens fugitivos são presos no tronco e, chicoteados com
um peixe boi, sangram. Há um personagem, ex-escravo e amigo do patrão,
que diante da escravidão presenciada, revoltado, incendeia o barracão,
provocando a morte do dono do seringal. Antes dele, em meados do século
XIX, o suíço Davatz, tinha escrito seu livro, que não era propriamente um
romance, mas um memorial de sua própria história e a de outros colonos na
fazenda de café em São Paulo, do abolicionista e liberal senador Vergueiro.
Ali tinham sido submetidos não apenas à situação limite da imigração em
terra estrangeira, mas à condição de escravidão.
Euclides da Cunha não teve tempo para presenciar, a partir do final da
década de 1960, o novo processo de deslocamento humano para a Amazônia.
Milhares de pessoas pobres, especialmente nordestinas, se deslocaram nas
condições mais desfavoráveis para a Amazônia e já não buscavam o caucho,
mas uma terra para viver, ou um trabalho. O egoísmo sem freio e organizado,
apontado no À Margem da História, tinha agora outro interesse. Era a pecuária que, financiada e incentivada pela ditadura, concentrava terra, aliciava
e submetia os novos trabalhadores ao mecanismo do endividamente. De
certa forma repetia o mesmo processo presenciado por Cunha e vivido por
Castro e Davatz. E a famosa frase euclidiana podia ser reescrita e revivida:
“[...] é o homem que trabalha para escravizar-se.”
Passou o governo militar, a chamada Nova República foi proclamada em
1985, e estamos prestes a concluir a primeira década do novo século e milênio. Thomaz Davatz, Euclides da Cunha e Ferreira de Castro, abolicionistas
em seus tempos, poderiam imaginar que a escravidão continuaria na ordem
do dia tanto tempo depois? O fenômeno que se manifestou em diversas modalidades de produção – café e borracha vegetal – irrompe onde o controle
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
social não está suficientemente vigilante, como nos setores antigos e em
novos como aqueles de pecuária, cana-de-açúcar, algodão, carvão vegetal e
construção civil ou tecelagem.
O livro que ora apresentamos - Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas – é, neste sentido, atual. Trata de um problema ainda não solucionado nas diversas latitudes do mundo e os debates
sobre a escravidão ilegal e contemporânea, que atinge preferencialmente
os imigrantes, ainda mal começaram.
O conjunto de textos deste livro é o resultado de estudos realizados por
pesquisadores de diversas universidades e apresentados no decorrer da I e
II Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas,
respectivamente em 2007 e 2008, no campus Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As reuniões foram promovidas pelo Grupo
de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC).
O GPTEC, constituído em 2003, faz parte do Núcleo de Estudos de
Políticas Públicas em Direitos Humanos da mesma Universidade e guarda
um rico arquivo com depoimentos de trabalhadores, textos redigidos por
agentes de pastoral, sindicalistas, procuradores e auditores fiscais do trabalho, reportagens, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o
tema. É um local onde se conjuga pesquisa, ensino e extensão. Onde estão
interligados o estudo e a paixão pela humanidade. A academia que, não
sendo indiferente à sorte do mundo e das pessoas que o habitam, reflete e
debate. Provoca pesquisas e encontros de pesquisadores.
No texto, os leitores encontrarão além dos olhares diversificados de pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Brasília, Bahia, Mato Grosso
e do México, o espaço no qual a sociedade civil e o Estado se manifestam. O
material está disposto em cinco partes como pode ser observado a seguir.
A Primeira Parte intitula-se Trabalho, identidades e resistência e apresenta resultados de pesquisas que tratam da dimensão existencial de realidades
vividas por trabalhadores escravizados, patrões e homens que os aliciam,
enquanto seres do mundo material e do mundo dos valores, dos sentimentos,
memórias e desejos.
O capítulo Representações de trabalhadores, ‘gatos’ e empregadores sobre
o trabalho escravo, escrito pelas cientistas sociais Maria Antonieta Vieira e
Regina Bruno apresenta e comenta as vivências do mando, da obediência
e da resistência e os imaginários que as envolvem, e discute, também, as
dimensões materiais que interagem com aquelas em um espaço de poder
(material e simbólico) contido na relação de trabalho ilegal e desumana
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
discutida neste livro. O trabalho tem como base uma pesquisa encomendada
pela Organização Internacional do Trabalho. Na pesquisa foram entrevistados trabalhadores e empreiteiros no decorrer de operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (GEFM) e,
posteriormente, em seus escritórios ou residências, alguns proprietários de
estabelecimentos presentes no “cadastro de empresas e pessoas autuadas
por exploração do trabalho escravo” publicado em página do Ministério
do Trabalho e Emprego. As informações recolhidas na pesquisa de campo
foram sistematizadas no relatório Perfil dos principais atores envolvidos no
Trabalho Escravo Rural, de 2007.
No Estudo de depoimentos de trabalhadores rurais escravizados por dívida
– 2007. Pará, Brasil, Adonia Antunes Prado, também cientista social, analisa
e comenta depoimentos prestados por trabalhadores evadidos do trabalho
cativo em fazendas do estado do Pará a agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em diversos municípios, e a agentes do Centro de Defesa da Vida e
Direitos Humanos de Açailândia, no Maranhão, dentre outros sujeitos sociais.
No processo de análise das fontes primárias são discutidos aspectos relativos
à presença de crianças no trabalho forçado, tempo de permanência dos trabalhadores nas fazendas, violência, atividade exercida pelo trabalhador, redes de
aliciamento, saúde e doença, endividamento, sentimento de humilhação etc.
Ricardo Rezende Figueira, Adriana da Silva Freitas, Andrea Kazuko
Murakami e Vera Lúcia Cavalieri, respectivamente, antropólogo, assistentes
sociais e jornalista, elaboram uma reflexão sobre as múltiplas relações –
parentesco, amizade, dominação, coerção - estabelecidas entre os atores
presentes na escravidão contemporânea no Pará a partir de 113 relatórios
de fiscalização do GEFM. Entre os imóveis fiscalizados, selecionaram um e
elaboraram um estudo de caso que auxilia a compreensão sobre o conjunto e,
assim, produzem o capítulo A escravidão contemporânea: relações existentes
e estudo de caso.
O texto de Alessandra Gomes Mendes, socióloga, intitulado Trabalho
Escravo Contemporâneo no Brasil: a denúncia como um dos caminhos na
resistência dos trabalhadores à dominação discute situações ocorridas nas
regiões Sul e Sudoeste no período de 1980-2000 e apresenta questões
a respeito da importância da denúncia como estratégia de combate ao
trabalho escravo e de busca da garantia de direitos humanos. Ao mesmo
tempo, a autora traz à discussão as ações que o estado e a sociedade civil
têm realizado no sentido da “construção e afirmação da resistência dos
trabalhadores escravizados”.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
O tema da Segunda Parte é Poder Público e Sociedade Civil e trata de alguns aspectos das ações dessas duas esferas sociais no combate ao trabalho
escravo no campo brasileiro, em especial no estado do Pará. São olhares a
partir do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), da CPT e da universidade,
atores que são, o primeiro e o segundo, sujeitos de longa data envolvidos
com o tema e o último, podendo ser percebido como personagem emergente
e a cada dia mais comprometido.
Benedito Lima, autor do estudo intitulado Modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo usando lógica Fuzzi, é auditor
fiscal do MTE e desenvolveu seu estudo propondo a definição e utilização
de variáveis consideradas úteis e adequadas à caracterização e identificação
do trabalho análogo ao de escravo, depois de validar em campo o modelo
de auxílio de decisão e de identificação em questão. O sistema proposto,
segundo o autor, “integra informações e verifica se o que foi observado pode
ser categorizado como trabalho análogo ao de escravo”. Em outras palavras,
Benedito Lima propõe a utilização de um instrumento que possibilite a
exclusão ou diminuição da interferência de elementos subjetivos na identificação do trabalho escravo por ocasião das fiscalizações governamentais
às empresas denunciadas.
Mais uma contribuição originária do campo acadêmico é o trabalho
apresentado por Jaqueline Jesus, psicóloga que utiliza as ferramentas da
Teoria das Representações Sociais a fim de entender A cabeça do libertador.
A autora realizou sua pesquisa de campo junto a funcionários públicos,
agentes de instituições internacionais e de organizações não governamentais envolvidos com processos de libertação de trabalhadores escravizados
e investigou suas percepções quanto ao seu trabalho e às suas visões de
prazer e sofrimento.
Antônio Alves de Almeida, historiador, recupera a trajetória da CPT na
luta contra o trabalho escravo contemporâneo no Brasil e, levando em conta
características históricas que marcam esse processo, discute os limites e
potencialidades das ações da CPT na erradicação do problema. O título deste
capítulo é Trabalho escravo: a dignidade dilacerada pelo capital.
Os dois últimos textos são depoimentos, coroando a Segunda Parte. O
primeiro deles foi prestado por Marcelo Gonçalves Campos, auditor fiscal
do trabalho e assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE. Seu
discurso é contundente e ele, manifesta-se como funcionário público e agente
do Estado no combate a ações que afrontam as leis penais e trabalhistas do
país, da forma comprometida como o fazem aqueles que transformaram
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
seu labor profissional em militância ativa na luta pelo respeito às leis e à
dignidade humana.
O segundo depoimento é produzido por alguém que combate o trabalho
escravo no Brasil a partir da sociedade civil. José Batista Afonso, advogado e
agente da CPT em Marabá, no estado paraense. O autor faz um diagnóstico do
que considera o problema da terra no país, apresenta números sobre a concentração fundiária, a violência e o trabalho escravo, a correlação de forças, a
criminalização do movimento social, denuncia o modelo econômico definido
pelo poder executivo e é duro em relação ao papel do poder judiciário.
A Terceira Parte, intitulada Perspectiva de Trabalho Escravo e Direito
contempla a atuação dos agentes do Direito brasileiro e o processo de produção de normas, acordos e tratados internacionais destinados ao combate
do tráfico de pessoas e do trabalho escravo ilegal, apresentando e problematizando diversos momentos em que a luta pela dignidade da condição
humana se transformou em pauta de discussão dentro e fora do Brasil,
tendo daí nascido agendas nacionais e internacionais que contribuem para
a extensão de coberturas legais e proteção aos sujeitos vitimados.
Três artigos compõem esta seção. O de Neide M. C. Cardoso de Oliveira,
procuradora da República, intitulado Atuação do Ministério Público Federal
no combate ao crime de trabalho escravo no meio rural e políticas públicas
para erradicar a escravidão contemporânea: breve apresentação, que chama
atenção para as dificuldades existentes para a sua erradicação e chama atenção de um aspecto sumamente importante presente a este campo de debate,
qual seja: não importa se estatisticamente o número de pessoas escravizadas hoje no Brasil não é significativo. Onde esse exorbita em significações é
no campo da violação aos mais elementares direitos humanos em um pais
que se encontra entre as maiores economias do mundo, é no escândalo que
representa sua existência em empresas tecnicamente modernas, muitas de
propriedade de juízes, parlamentares ou outros representantes de classes
dirigentes, detentores de saber e poder no Brasil.
O texto de Nanci Valadares, cientista política, intitulado Tratados e Convenções Internacionais e seus reflexos (e inconsistências) no tratamento da
escravidão pós-abolição arrola e discute um conjunto de determinações que,
na história do Ocidente, tentaram encerrar séculos de escravidão mercantil
perpetrada por países europeus, processo esse coroado pela presença de dois
importantes dispositivos. São eles a Convenção de 1926 e o Protocolo de Palermo, de 2000. A autora estende seus comentários ao Brasil contemporâneo
e à atuação do Estado e da sociedade civil no combate ao trabalho escravo.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
O terceiro e último capítulo desta parte intitula-se Tráfico de pessoas:
cenário, atores e crime. Em busca do respeito à dignidade humana e foi escrito
por Waldimeiry Correa, brasileira que desenvolve seus estudos na Universidade de Sevilha. O trabalho escravo contemporâneo é aqui apresentado
no contexto mais amplo das formas abusivas de desrespeito à pessoa e a
autora analisa legislação, tratados e convênios que, internacionalmente, no
século XX, buscaram estabelecer compromissos visando à extinção de tais
práticas. Tais são os casos da Convenção de 1926 e do Protocolo de Palermo,
de 2002, estudados no capítulo anterior, como, também, do Convênio para
a Repressão de Tráfico de Pessoas e da repressão da Prostituição Alheia, de
1949 ou da Convenção Suplementaria sobre a Abolição da Escravidão, de
1956, dentre outros instrumentos.
A Quarta Parte do livro está dedicada a estudos sobre Migração e trabalho. Aí se encontram estudos que tratam do trabalho escravo por dívida
no Brasil de nossos dias, relacionando-o ao fenômeno das migrações, aos
estranhamentos que esta produz, sua funcionalidade enquanto elemento
facilitador de ilegalidades e afronta aos direitos dos trabalhadores, dentre
outros aspectos.
O primeiro artigo deste bloco é da autoria de Francisco Alves, economista
que tem estudado a força de trabalho humana – majoritariamente composta
por trabalhadores migrantes - em plantações de cana-de-açúcar, sobretudo
no estado de São Paulo e se intitula Mecanização do corte de cana crua e
políticas públicas compensatórias: indo direto ao ponto. O autor tem como
ponto chave para a discussão que faz os inúmeros casos documentados de
abusos contra os trabalhadores que colocam os usineiros frente à necessidade de resolver a seguinte equação: melhorar as condições de trabalho
dos trabalhadores ou não exportarem álcool. Para escapar deste dilema os
usineiros pretendem adotar a mecanização completa do corte, passando ao
largo das grandes questões que se colocam: como deverá se dar a expansão
do Complexo Agroindustrial Canavieiro de forma a preservar e melhorar as
condições de vida dos trabalhadores e o meio ambiente? A sociedade deve
decidir se aceita esta forma de expansão predatória ou se impõe condições
para a expansão da “canavicultura”?
Horácio Antunes de Sant´Ana Júnior, sociólogo, é autor do capítulo intitulado Acre, desenvolvimento e reservas extrativistas. Seu foco está centrado
na análise em um modelo de unidade de Conservação, no caso as Reservas
Extrativistas que “[…] surgiram com o movimento sócio-ambiental originado
no Acre, como forma de enfrentamento ao modelo de desenvolvimento con18
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
cebido pelos governos ditatoriais implantados no Brasil a partir de 1964.” O
autor discute o tema da modernização na região amazônica e observa que
esta, por mais que tenha promovido liberdade e autonomia tem difundido,
também, instrumentos de coerção, de destruição e apropriação de bens naturais, de ampliação e criação de novas formas de exploração do trabalho
O historiador Vitale Joanoni Neto, autor de vários estudos sobre o fenômeno das migrações e o trabalho escravo no estado do Mato Grosso discute,
a partir de referências teóricas, de dados qualificados de organismos nacionais e internacionais e de pesquisa de campo amplamente documentada,
a relação entre os fenômenos da pobreza, da migração e da escravização
de populações fragilizadas pelos dois fenômenos anteriores. Seu estudo,
intitulado Notas sobre o mundo do trabalho rural no estado do Mato Grosso
em fins da primeira década do século XXI apresenta ao leitor resultados
visíveis da ação do agrobusiness em áreas de fronteira no estado do Mato
Grosso, onde à acumulação e concentração de riquezas tem correspondido
a exclusão social crescente.
A última comunicação desta Parte é o depoimento de Mitiko Une, geógrafa, cujo pai migrou do Japão para o Brasil. Tendo assistido a graves situações de trabalho escravo, ele próprio foi vítima do crime. O pai de Mitiko, o
senhor Takeki Yanaga, chegou a Santos em1931, tendo ido, imediatamente
trabalhar em uma fazenda de café, em Ourinhos. Ali, conheceu o barracão,
a perda da liberdade e o profundo estranhamento causado pelas diferenças
culturais e climáticas em relação ao seu país.
A última Parte deste livro intitula-se Economia e relações de trabalho.
Nos três capítulos que compõem este bloco, os autores discutem a temática
central buscando perceber de perto o trabalho escravo contemporâneo enquanto fator produtivo ativo e adequado à economia moderna; suas relações
e implicações no que se refere ao atual estado de globalização da economia
e alguns aspectos que se apresentam nas relações entre capital e trabalho
e entre os fatores produtivos; como Estado e sociedade civil se envolvem
nessa trama etc. No Brasil, como no México, as economias globalizadas fazem
conviver harmoniosamente em suas entranhas alta tecnologia e relações de
trabalho aparentemente anacrônicas. Caberia perguntar: trata-se de uma
contradição? Neste caso, faz sentido a suposta dicotomia entre tradicional
e moderno ou serão estes os dois lados de uma mesma moeda?
O primeiro dos três capítulos foi escrito pelo professor Boris MarañonPimentel, peruano radicado na cidade do México lecionando na Universidade
Nacional Autónoma daquele país. O título do trabalho é Nuevos estándares
19
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
internacionales, flexibilidad laboral y elementos de trabajo esclavo em la
horticultura de exportación em México e nele encontram-se formulações que
o autor busca desenvolver a respeito do que considera o caráter cada vez
mais complexo que as relações de trabalho assumem na atual conjuntura
mundial – globalização, estados mínimos, flexibilização das legislações do
trabalho etc. – e suas consequências para a força de trabalho, sobretudo para
os trabalhadores na agricultura de exportação mexicana.
Leonardo Sakamoto, doutor em Ciência Política, escreveu Os acionistas
da casa-grande: a reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporâneo. O autor apresenta e comenta as formas como o capitalismo
contemporâneo se apropria de formas de exploração do trabalho aparentemente exteriores a este modo de produção em busca da ampliação de seus
lucros. A busca por produtividade e lucratividade barata leva empresários
a fazerem com que “o livre jogo das forças do mercado” produza resultados
mais favoráveis àqueles que burlam a ética republicana, levando a uma
ampla gama de produtos a marca do suor e do sangue dos trabalhadores
migrantes das regiões mais pobres do país.
O último capítulo do livro intitula-se Trabalho escravo – uma realidade
na cadeia produtiva de corporações com a chamada “responsabilidade social”,
foi escrito por Marcela Soares Silva, assistente social e nele a autora discute
como atitude do capital, na presente conjuntura caracterizada pelo neoliberalismo, transfere ao Terceiro Setor da economia “as sequelas da questão
social” por meio das ações de Responsabilidade Social em empresas onde
foi encontrado trabalho escravo por dívida.
Referências
CASTRO, Ferreira de. A Selva. 10. ed. Lisboa: Guimarães & Cia., 1945.
CUNHA, Euclides. À margem da história. São Paulo: Martins Claret, 2006.
DAVATZ, Thomaz. Memórias de um colono no Brasil: 1850. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1980.
20
ABERTURA
Representações de trabalhadores, gatos, e
empregadores sobre o trabalho escravo
José Damião de Lima Trindade
Há algumas décadas, o romance infanto-juvenil que narra a história de
Poliana desfrutava de certa popularidade, inclusive por sua versão cinematográfica.
Essa personagem era uma jovem que, malgrado uma sucessão de infortúnios na vida, amiúde se dedicava a uma brincadeira que chamava de “jogo
do contente”, pela qual tentava encontrar em tudo o seu “lado bom” e, assim,
“tornava” o mundo melhor, descobrindo sempre razões para se alegrar até
em situações muito francamente insatisfatórias.
Essa novela, de otimismo ingênuo e risonho, embutia, na verdade, uma
mensagem conformista. Ela vem-me à memória porque, ao fazermos um
balanço que se pretenda realista da situação atual dos direitos humanos,
devemos, logo de partida, nos desvencilhar da “síndrome de Poliana”. Nossa
postura ou será exigente e crítica, ou será inútil. O terreno do qual devemos
partir é a própria realidade. Olhando-a, temos a obrigação de nos posicionar
face ao que de fato vemos. Se quisermos transformar a realidade, será pela
arma da crítica, nunca pela “paciência” complacente, nem pelo “contentamento” com avanços já obtidos.
Nesse sentido, cabe, antes de tudo, identificar qual é a tendência principal
de nosso tempo em relação à temática dos direitos humanos, quero dizer, em
relação à situação em que objetivamente se encontram esses direitos. Não
podemos fugir da constatação de que vivemos numa quadra– no Brasil e no
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
planeta – em que os direitos humanos, em quase todas as suas dimensões,
estão sob fogo. Houve um período, em meados do século XX, em que se dava
o contrário. Vivíamos, então, uma conjuntura que favorecia a luta pelos
direitos humanos, e uso com ênfase a palavra luta porque, como sabemos,
a conquista desses direitos foi e segue sendo fruto da luta social, uma luta
que implica em contrariar interesses, frequentemente interesses poderosos.
Mas, em meados do século XX, tínhamos uma situação internacional em que
tais lutas eram travadas em terreno propício. Que situação era aquela?
O breve estado de bem-estar
No pós-Segunda Guerra Mundial havia se configurado uma correlação
mundial entre as forças políticas caracterizada por fatores de ordem muito
progressista. Primeiro, a consolidação da União Soviética como potência econômica e militar, após derrotar o nazismo. Basta imaginarmos o cenário de
tragédia e pesadelo se houvesse ocorrido o contrário, se o nazismo houvesse
derrotado a União Soviética e vencido a Segunda Guerra Mundial. Segundo,
em consequência dessa vitória, se conformara na Europa Central e Oriental
o chamado “campo” socialista. Logo esse “campo” seria fortalecido pelas vitórias das revoluções chinesa (1949) e cubana (1959), além da constituição
de um amplo leque de nações “não-alinhadas”. Malgrado indícios já então detectáveis de degeneração institucional nos países do “socialismo real”, que só
se agravariam nas décadas subsequentes, e malgrado divergências políticas
entre eles mesmos, o fato era que perto de um terço da humanidade trilhava
um caminho de desenvolvimento econômico-social que, de alguma maneira,
contrariava a lógica ocidental de livre-mercado. Terceiro, alastravam-se como
incêndio, pela África e Ásia, as insurreições nacionais contra o colonialismo
europeu. Em quarto lugar, proliferavam ao redor do planeta partidos centrados, em graus variados, na defesa de interesses dos trabalhadores: partidos
comunistas, socialistas, trabalhistas, social-democratas ou nacionalistas de
esquerda. Em quinto lugar, correlatamente, também o movimento operário
em escala mundial se organizava em sindicatos, fosse nos próprios EUA, em
toda a Europa, no Japão, até na América Latina.
Esse conjunto de fatores de pressão favorecia a extensão de direitos econômicos, sociais e culturais aos trabalhadores, ao menos nos países centrais
(o Estado de Bem-Estar), a autodeterminação dos povos e a própria defesa
dos direitos individuais, face à consciência que se criava mundialmente de
repúdio às barbaridades cometidas pelo nazi-fascismo durante a guerra. E
digo barbaridades do nazi-fascismo porque os vencedores da Segunda Guer24
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
ra Mundial só trataram das violações cometidas pelos perdedores. Os crimes
contra a humanidade praticados pelos vencedores não foram a julgamento:
o bombardeio-massacre de Dresden, até militarmente sem sentido, ficou
impune, assim como ficaram impunes os dois maiores genocídios instantâneos de toda a história da humanidade, perpetrados em agosto de 1945
em Hiroshima e Nagasaki, contra um Japão já derrotado. Os vencedores da
guerra julgaram apenas os crimes contra os direitos humanos cometidos
pelos perdedores – mas mesmo isso foi um avanço.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada pela Organização
das Nações Unidas – ONU, em dezembro de 1948, foi resultado daquela
correlação mundial de forças. Sem a pressão dos países do bloco soviético
e sem a ascensão operária que se alastrava pelo mundo, seria inimaginável
a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais naquele documento,
assim como a inclusão do direito de autodeterminação dos povos sem as
lutas de libertação nacional, então em curso.
Crise dos direitos sociais
Mas, aquela correlação mundial de forças se inverteu no final do século
XX, a começar pelo impacto do formidável incremento da produtividade do
trabalho, decorrente da fortíssima injeção de fatores de ciência e tecnologia
na indústria, na agricultura e no setor de serviços. Entre as décadas de 1970
e 1980, a produtividade do trabalho aumentou muito rapidamente, tornando
agudas tanto a concorrência econômica mundial, como a expansão do desemprego no planeta. Surgia, já na década de 1980, uma categoria historicamente
nova – a do desemprego permanente, isto é, estrutural ao capitalismo.
Na antiga categoria do “exército industrial de reserva”, estudada por
Karl Marx, quando a economia capitalista entrava em processo de expansão,
o desemprego recuava (embora não se extinguisse), e quando a economia
mergulhava em crise, o desemprego se alastrava. Essa “reserva” humana
de desempregados, que cresce ou diminui ao sabor das crises cíclicas do
capitalismo, desempenhava/desempenha, objetivamente, a função social
de rebaixar o preço da força de trabalho. Durante as fases de expansão
econômica, evita que os salários dos trabalhadores se elevem além de certo
patamar e, inversamente, rebaixa de modo drástico esses salários nos momentos de recessão/depressão. Num e noutros casos, a existência de uma
massa desempregada preserva a taxa de lucros dos empresários.
A partir da década de 1980, a esse emprego-desemprego cíclico, que não
deixa de existir e de operar, sobrepõe-se o desemprego estrutural: o capita25
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
lismo, valendo-se da tecnologia mais sofisticada e recente, passa a descartar
de modo permanente uma quantidade imensa de trabalhadores ao redor
do planeta, eliminando atividades e profissões, substituídas para sempre
mediante a informatização/automação/robotização de ramos econômicos
inteiros. Os chamados programas de “re-qualificação” de mão de obra só tem
sido capazes de reintegrar à economia uma parcela insignificante desses
trabalhadores descartados, pois os novos meios de produção dinamizados
pela ciência e pela tecnologia conseguem atingir as metas produtivas anteriores, e até superá-las, empregando quantidade crescentemente menor
de trabalhadores.
A proposta muito óbvia e racional de redução progressiva e universal da
jornada de trabalho, na mesma proporção das elevações da produtividade e
com manutenção dos níveis salariais, certamente estancaria o crescimento
do desemprego. Mas, essa solução é inaplicável num mercado tangido por
concorrência feroz e, ademais, contraria a própria lógica da busca do lucro,
único motor do capitalismo. Só houve reduções duradouras da jornada, com
manutenção dos salários, em alguns momentos do século XX marcados por
forte mobilização operária. Numa conjuntura de fraqueza relativa dos trabalhadores, como esta em que, salvo exceções localizadas e fugazes, o planeta
ingressou desde o final da década de 1970, a redução de jornada só ocorre
no eventual interesse patronal de reduzir a produção em momentos de crise
– e, então, é invariavelmente acompanhada da redução dos salários, à qual os
trabalhadores acabam se submetendo para postergar o pior, o desemprego.
Em outras palavras: se, nos momentos de euforia econômica, os superlucros são apropriados privadamente pelos capitalistas, nos momentos de
crise os prejuízos são logo “socializados”, seja pela expansão do desemprego imediato e bruto, seja pelo socorro financeiro que os Estados, sacando
recursos públicos, colocam sem pestanejar à disposição dos empresários
“em dificuldades”.
Assim, nesta nova fase em que ingressou, sem retorno possível, o capitalismo se converteu em máquina feroz de expulsão massiva de seres
humanos do mercado de trabalho. Entenda-se: expulsão da sociedade e da
própria vida autônoma, pois estar fora do mercado equivale a não existir, a
perder toda autonomia pessoal, a ficar na dependência da caridade privada
ou do assistencialismo público, se e quando caridade e/ou assistencialismo
comparecerem.
Essa tendência, desde sempre intrínseca ao capitalismo devido à apropriação privada da ciência e da tecnologia, ganhou fôlego sem mais qualquer
26
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
limitação política a partir do desmoronamento da União Soviética e dos
países do chamado “campo” socialista da Europa Central e Oriental. O fim
da bipolaridade política, econômica e militar permitiu que aquela tendência
da economia capitalista, que vinha se firmando desde as décadas de 1970 e
1980, triunfasse agressivamente a partir da década de 1990. Desde então,
por assim dizer, as classes dominantes do planeta vêm respirando aliviadas,
após 80 anos de concessões parciais aos trabalhadores, período durante o
qual haviam sido forçadas a entregar muitos anéis para não perder os dedos,
isto é, para conter os riscos de revolução social. O caminho para manter-se
à tona na intensificada competição mundial intercapitalista passa agora por
“cortar custos”, isto é, cortar despesas com direitos sociais, que entram em
recuo por toda parte. Eis o brado empresarial de vitória: “Chegou a hora de
recuperarmos o que havíamos cedido!”.
Portanto, sem mais qualquer ilusão quanto à efetividade de um direito
ao trabalho, e com os demais direitos trabalhistas em recuo internacional, o
Direito do Trabalho tornou-se uma cidadela sob cerco. Para o capital manterse à tona na concorrência, vale até a restauração de relações de trabalho
análogas ao trabalho escravo.
Retorno do trabalho escravo
Aliás, esse tema – o contemporâneo retorno do trabalho escravo – dá
bem a medida do grau de hipocrisia e degradação humana inerente às
relações sociais capitalistas. A partir do século XVI, para suprir a carência
de força de trabalho no recém-conquistado Novo Mundo, o então nascente
capitalismo europeu não hesitou em reduzir à escravidão os índios, num
primeiro momento, e, logo depois, também os africanos. Todos os discursos “legitimadores” daquela prática infamante foram logo providenciados.
No pensamento religioso, cogitou-se muito depressa que os indígenas e os
africanos não seriam propriamente “humanos”, que seriam desprovidos de
alma, ao menos de alma “igual” à dos europeus – portanto, sua redução à
condição de “bens de comércio”, submetidos a trabalho forçado e a castigos
corporais, não configuraria “pecado”. Mesmo após a Igreja Católica “reconhecer” a condição humana aos indígenas das Américas, sua captura e redução
ao cativeiro não foi jamais detida, pois essa prática já havia se incorporado
à conduta corrente dos colonizadores.
Quanto aos africanos, a história é muito conhecida: durante quase quatrocentos anos, esses “animais vocais”, não-humanos e sem alma divina, foram vítimas de captura e sequestro na África, transportados pelo oceano sob
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ferros, amontoados nos porões imundos de navios negreiros para, ao final,
serem vendidos como “mercadorias semoventes” nos portos das Américas.
Até o século XIX, escravagistas cristãos das Américas deslocavam citações
bíblicas em seu favor, como as do Livro de Gênesis, capítulo 9 (versículos
25 a 27)1 e de São Paulo, na sua Epístola aos Romanos.
Esse comércio de carne humana, gerador da diáspora negra que se
abateu sobre mais de 12 milhões de vítimas, foi um dos mais importantes
fatores a propiciar a chamada “acumulação primitiva” de capital que, no
final do século XVIII, conduziria ao florescimento irresistível da Revolução
Industrial e do capitalismo industrial moderno.
Ao longo do século XIX, as burguesias das nações industrializadas se
deram conta de que o trabalho assalariado terminava saindo “mais barato”
do que a manutenção de escravos até o final de suas vidas e que, ademais,
a generalização do trabalho assalariado convinha à expansão de mercados consumidores nas colônias e nos países do Novo Mundo. Só então, as
canhoneiras de Sua Majestade britânica foram colocadas a serviço de dar
por encerrado o “ignominioso” (como passou a ser chamado) comércio de
seres humanos. O Brasil deteve a posição de último país do planeta a abolir
legalmente a escravatura, o que certamente nos informa muito a respeito
da mentalidade de nossas classes dominantes.
Mas a questão escrava está longe de poder ser “dada por encerrada”
neste início século XXI. Nenhuma ilusão a esse respeito. Superado o escravismo colonial ao final do século XIX, o trabalho escravo ressurgiu, sob
formas novas e igualmente infames, ao final do século XX – justamente no
momento em que as lutas operárias perdiam vigor ao redor do planeta. Mais
uma vez, o capitalismo triunfante demonstra que consegue, sem qualquer
aguilhão moral, combinar relações de trabalho “modernas” (assalariadas)
com relações “atrasadas” (servis ou análogas à da escravidão). Trata-se do
regurgitamento contemporâneo e feroz da velha lei capitalista do desenvolvimento desigual e combinado.
Seja mediante a retomada do sequestro antigo e direto (África), seja pelo
confinamento de trabalhadores migrantes reduzidos ao trabalho forçado por
“dívidas” impagáveis (Amazônia, Ásia), seja pela submissão de crianças e
mulheres extremamente pobres (zonas rurais da América Latina e da Ásia),
seja, ainda, pela submissão “voluntária” de estrangeiros em situação irregu-
1 Gênesis, 9: Versículo 25: E disse: maldito seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos. Versículo 26:
Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e seja-lhe Canaã por servo. Versículo 27: Alargue Deus a Jafé, e habite
nas tendas de Sem, e seja-lhe Canaã por servo.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
lar (grandes cidades da América Latina, da Ásia, até da Europa ocidental),
relações de trabalho abertamente escravas ou a elas análogas voltam a ser
adotadas em várias regiões, não importa quantos solenes tratados internacionais hajam proibido o trabalho não-livre. Nas franjas tecnológicas do
capitalismo, onde quer que o trabalho braçal não-qualificado ainda possa
mostrar-se “atraente” a empresários, diversas modalidades “invisíveis” de
escravidão retomam fôlego, nutrindo-se do desemprego massivo, da desvalorização da força de trabalho e da omissão/conivência hipócrita das elites
economicamente dominantes.
Esse movimento socialmente perverso, claro, só se agrava nos momentos
de crise econômica, que não o inventa, mas o expande. A crise dos direitos
econômicos, sociais e culturais, que se expressa em várias modalidades,
já estava perfeitamente identificada ao término do século XX. E, por efeito
reflexo, os direitos individuais-civis também acabavam sendo atingidos, pois
não constitui novidade que aos desempregados, ou aos trabalhadores com
salários insuficientes para atender as necessidades fundamentais, também
os direitos civis se reduzem a frase de efeito – para não falar dos milhões
de trabalhadores e trabalhadoras submetidos àquelas novas formas de escravidão. Mas, quanto a isto – o ataque aos direitos individuais – a entrada
do século XXI nos reservaria surpresas sombrias.
Crise dos direitos individuais
Sob o mote/pretexto da defesa nacional a qualquer custo, as potências
imperiais passaram a editar leis e a adotar práticas de violação a antigos
direitos individuais que se imaginavam já “consagrados”. Qual é o significado
do campo de concentração de Guantánamo, dos sinistros calabouços de Abu
Ghraib e de outros centros de tortura no Iraque e no Afeganistão, dos centros
secretos de “interrogatório” e de eliminação de prisioneiros sequestrados,
instalados pelos EUA em “território estrangeiro” sob complacência dos
governos do Egito, do Paquistão, até de países europeus? E os inacessíveis
navios-prisões que os EUA mantêm fundeados em águas internacionais? As
ONGs de sempre se cansaram de denunciar, documentar e apresentar testemunhas dessas contemporâneas fábricas de horrores. A lei norte-americana
denominada Patriot Act, inacreditável recuo histórico em relação à garantia
dos direitos individuais, teve reproduções aproximadas em leis adotadas na
Inglaterra, na Itália, na França e na Alemanha.
Mas a ONU e outras instituições planetárias foram, diga-se com todas as
letras, complacentes enquanto tudo acontecia. Salvo lamúrias inconvincen29
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
tes, nada fizeram para impedir que se restaurassem práticas francamente nazistas. Pesou, isto sim, um silêncio hipócrita e conivente face ao sequestro de
suspeitos, à tortura sistemática, humilhação, privação do direito de defesa e
assassinato de seres humanos de pele mais escura e idioma não-europeu.
Dando, talvez, por quase completado o “serviço sujo”, as potências imperiais já cogitam da possível “desativação” desses centros. Mas o que conta
é isto: mantiveram/mantêm/manterão tais locais de barbarização de seres
humanos durante o tempo que considerarem “necessário”. O recado que nos
enviam é este: os direitos à vida, à integridade física e psicológica, o direito
a receber uma acusação formal num processo legal que assegure o direito
de defesa e o direito de ser assistido a todo tempo por um advogado, a garantia de não ser preso sem os procedimentos legais, e de não permanecer
preso além da pena, não são direitos universais, não importando quantos
tratados internacionais de direitos humanos tenham sido escritos, assinados
e festejados com brindes de champanhe em taças de cristal.
Eis, portanto, o cenário em que nos movemos neste momento: à crise
dos direitos econômicos, sociais e culturais aberta ao final do século XX,
sobrepôs-se, neste início do século XXI, uma crise dos direitos individuais. O
único direito individual que segue gozando de todas as garantias é o direito
de propriedade. Falamos, é claro, de realidade, não de declarações solenes,
nem compêndios de leis.
O direito e os direitos humanos
E aí chegamos ao fulcro da questão que talvez melhor expresse a esquizofrenia jurídica do nosso tempo: a função efetivamente desempenhada
pelo direito positivo. Quando se trata de manter o status econômico-social, a
efetividade do direito é imediata e ágil, essa função conservadora entra em
cena e opera de modo a não deixar dúvida – até mesmo, se necessário, contra
o direito anterior. Ora, dirão vocês, mas o direito positivo também está, em
quase todos os países, perpassado por normas avançadas, progressistas, de
defesa dos direitos humanos. Eu respondo: é esta a esquizofrenia do direito.
Por um lado, nunca tivemos, tanto no direito internacional quanto no direito
interno, um conjunto tão amplo e minucioso de normas de defesa de direitos
humanos. Mas, a vida nos ensina que essas normas não vão à prática, ou o
vão condicionalmente – se, quando e enquanto convém aos interesses dos
que realmente detêm os poderes no mundo.
Esse traço ilusório do direito pode ser ilustrado com a seguinte fábula:
se um dia um disco voador desviar-se de sua trajetória e tiver de fazer um
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
pouso forçado na Terra para reparos, e estacionar em alguma faculdade de
direito ou biblioteca jurídica, enquanto os marcianos-mecânicos trabalharem
no motor, os demais tripulantes, muito curiosos, poderiam passar a noite se
dedicando à leitura de documentos jurídicos incríveis, inclusive de uma certa
Constituição Brasileira de 1988. Suponho que se deterão especialmente nos
longos e belos artigos que arrolam direitos e garantias. Ao retornar a Marte,
os marcianinhos relatarão maravilhados aos seus superiores hierárquicos
que o paraíso realmente existe, foi encontrado – e fica no Brasil!
Ou seja, o direito, a par de sua função precipuamente conservadora,
cumpre também uma função ideológica de mistificação da realidade, de
retrato falso, ainda mais numa conjuntura como a atual, em que o capital
expurga do seu discurso o caráter universal dos direitos humanos, ou o
preserva apenas como peça decorativa da diplomacia internacional – ou,
agora sim, para a defesa incondicional, e mesmo anti-social, do sacrossanto
direito de propriedade. De todos os direitos humanos, esse é o único, repito,
que atualmente não corre riscos, é o único que segue completamente bem
defendido, e defendido inclusive contra a sociedade.
Não devemos nutrir ilusões. Ao lado da Constituição democrática e cidadã de 1988, segue em vigor, funcionando como um lembrete a todos nós,
a própria lei de segurança nacional dos tempos da ditadura militar. Não se
lembraram de revogar esse, como se diz, “entulho autoritário”. Assim como
ainda não houve vontade política para tornar públicos os arquivos secretos
da ditadura, ou para responsabilizar os assassinos e torturadores daquele
tempo – o que funciona mais ou menos como uma carta branca para os
assassinos e torturadores dos tempos atuais.
Aliás, um recente estudo desenvolvido pela cientista política norteamericana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota,
indicou que, nos países em que os crimes das ditaduras – tortura, homicídio
e “desaparecimento” – foram investigados e punidos, o índice atual de violência policial é sensivelmente inferior ao dos países que não investigaram
nem puniram aqueles criminosos.
Recentemente, em 2008, o relator especial da ONU sobre execuções
sumárias visitou nosso país e, em seu relatório, afirmou enfaticamente: no
Brasil, a polícia tem mãos livres para matar.
A esse respeito, vivi uma experiência especialmente chocante no ano
2000, quando o relator especial da ONU para tortura também visitou o
nosso país. Às vésperas de sua visita, foram organizadas, nas cidades pelas
quais passaria, comissões de entidades da sociedade civil com o encargo
31
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de sugerir ao relator instituições locais a serem inspecionadas. Eu integrei
a comissão de São Paulo. A visita, como todas as inspeções da ONU, teve
caráter oficial, fora autorizada pelo governo federal e anunciada com semanas de antecedência. Era público que, em tais dias, o relator estaria em tais
cidades. Portanto, houve tempo suficiente para que as autoridades policiais
e carcerárias pudessem, digamos, “preparar” as repartições que eram alvos
mais frequentes de denúncias. Achávamos, por isso, que a eficácia das visitas
poderia estar em grande medida comprometida.
A comissão paulista acompanhou o relator da ONU em inspeções em seis
ou oito instituições públicas paulistas. E, para nossa surpresa, para nosso
estarrecimento, mesmo em se tratando de uma visita previamente anunciada
e divulgada pelos meios de comunicação, o relator constatou atrocidades
chocantes em quase todas as instituições que visitou – desde o açoitamento
de crianças com chicotes de arame numa unidade da Fundação Estadual do
Bem Estar do Menor - FEBEM (atual Fundação CASA), até várias modalidades de tortura como “método” de interrogatório ou medida punitiva em
unidades policiais e prisionais. O impensável aconteceu até na visita à Vara
da Infância e Juventude da cidade de São Paulo. O relator da ONU observou
que dez ou quinze adolescentes, com os uniformes de presidiários-mirins
da FEBEM, sob vigilância de funcionários daquela instituição, haviam sido
trazidos para aguardar o momento de serem ouvidos pelo juiz em audiências
de seus processos de internamento. Então (e sem que isto houvesse sido
programado), o relator subitamente dirigiu-se àqueles adolescentes e, por
meio de um tradutor, identificou-se e começou a indagá-los sobre eventuais
maus-tratos. Tudo foi muito rápido, não houve tempo para a intervenção
dos funcionários. Em poucos segundos, deu-se a seguinte cena: vários garotos levantaram as camisas e exibiram, nas costas e no peito, marcas de
queimadura por cigarro e outros sinais de castigos físicos.
A violação dos direitos humanos é tão escancarada em nosso país, tão
generalizada, que, mesmo durante uma visita publicamente anunciada,
não se torna possível ocultar tudo – nem mesmo no interior de um órgão
do Poder Judiciário! Tudo, em todos os lugares visitados, foi gravado por
um cinegrafista da BBC que acompanhava o relator. Esse documentário foi
depois exibido na Europa e nos EUA, e o relatório oficial encaminhado à ONU
ainda envergonha nosso país – mesmo porque, passados quase dez anos,
persiste esse quadro de violação sistemática de direitos dos pobres, dos sem
riqueza e sem poder, dos “invisíveis”, que não existem para a grande mídia
senão quando são abatidos.
32
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Tanto no plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, como no
plano dos direitos individuais, persistem violações, e não se trata de situações
excepcionais. Temos de colocar, sem dúvida nenhuma, a mão na sujeira. Se
não abrirmos os infames arquivos da ditadura militar, se é que resta alguma coisa de relevante que ainda não tenha sido “expurgada”, se é que não
foi tudo convenientemente queimado, enquanto não abrirmos o que resta
desses arquivos secretos, enquanto o Estado brasileiro for cúmplice desse
ocultamento da verdade, não teremos grande esperança de disciplinar a
polícia atual. Enquanto os assassinos e torturadores da ditadura militar
seguirem impunes, isto certamente seguirá funcionando como passaporte
de impunidade para a violência atual da nossa polícia. No momento em que
os torturadores, estupradores e assassinos da ditadura militar, com ou sem
farda, tiverem que responder por seus crimes, os homicidas e torturadores
de hoje pensarão duas vezes antes de torturar e matar.
Há questões sobre as quais não é possível conciliar – esta é uma delas.
Ou seguimos os exemplos dos países vizinhos do Cone Sul, considerando
juridicamente os assassinatos e torturas da ditadura como crimes contra
a humanidade – portanto, imprescritíveis e inanistiáveis – ou fechemos os
olhos, na hipócrita postura de “esquecimento” e, então, não nos queixemos
mais da polícia violenta e violadora que temos em quase todo o país. Polícia
essa, cujas duas principais ferramentas de investigação policial são o pau de
arara e o choque elétrico. A diferença é que, ontem, as vítimas eram militantes
revolucionários, combatentes da democracia. Hoje são os pobres em geral,
os negros, índios, são os que lutam para trabalhar na terra ou para ter um
teto que os abrigue nas cidades.
Uma convergência inevitável
Eu dizia no começo que, em matéria de direitos humanos, ou somos
críticos ou somos inúteis. Isso não significa que devamos nos prostrar em
pessimismo paralisante, nem que devamos desprezar instrumentos legais.
Devemos sim, sacar tais instrumentos, inclusive como dedos acusatórios, denunciadores, exigindo medidas concretas e urgentes, sem poupar governantes, sejam quais forem, sejam de quais partidos forem, que se comportarem
de forma omissa e leniente, seja por conivência, seja por covardia política.
E esse empenho deve também considerar a necessidade de superação de
uma distorção perigosa: a fragmentação dos movimentos de direitos humanos. É certo que ingressamos num período de especificação desses direitos,
sendo mesmo esperável que os diversos grupos vulneráveis e oprimidos
33
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
– mulheres, crianças e adolescentes, idosos, grupos étnicos, portadores de
necessidades especiais etc. – especializem sua atividade e priorizem suas
temáticas próprias. Porém, isso não pode conduzir à perda da dimensão
global, ao esquecimento da interligação e interdependência de todos os
direitos humanos. Numa palavra, essa fragmentação das lutas precisa ser
revertida porque conduz à despolitização – exatamente o que esperam os
violadores dos direitos humanos. Ao se perder a visão de conjunto, desviando
esforços para um rumo fragmentário de ações paralelas e isoladas entre si,
não se dá conta de que há certos movimentos objetivos da realidade que
condicionam tudo, que limitam o alcance de cada uma das lutas parciais ou
até tornam inalcançáveis certos objetivos específicos.
Refiro-me, antes de tudo, a esse poderoso fator objetivo que é o modo
como planetariamente se processa o movimento do capital, num sentido
anti-humano, excludente de bilhões de pessoas, expulsando do mercado,
da sociedade e da vida parcelas imensas e crescentes da humanidade, ou
“incorporando” outras como... escravas. Ou detemos este movimento que a
tudo engolfa, ou nossas lutas parciais, isoladas e fragmentadas se revelarão
impotentes, reduzindo-se a “vitórias” minúsculas e localizadas, vitórias de
Pirro, porque logo anuladas pelo movimento excludente e destrutivo global.
Se não tivermos a lucidez de dar esse salto de qualidade na compreensão
do momento que vivemos, acumularemos revezes demasiado graves, porque esse movimento do capital chegou a um ponto em que, não só precisa
destruir um contingente incalculável da humanidade para continuar se
autovalorizando, como também não consegue deter sua marcha insensata
rumo à destruição física do planeta.
Hoje, falar em defesa dos direitos humanos é, antes de tudo, falar em
salvar a humanidade e o planeta em que ela vive – estes objetivos demandam
remover aquela macro-ameaça global da humanidade e da natureza. A menos que optemos por nos comportar como Poliana e passemos a acreditar
na ilusão rósea, tão tola quanto perigosa, de que é possível “humanizar” o
capitalismo e reconciliá-lo com a natureza.
Institutos jurídicos, tais como o que atribui uma “função social” à propriedade, certamente revestem de uma película adocicada a pílula que nos
é dada para engolir, mas não são antídotos para o veneno que ela contém. O
capitalismo não se “humanizará”, não se tornará receptivo a chamamentos
da razão, não deterá de motu proprio sua voracidade destrutiva, porque isso
mexeria com os lucros, assim como os detentores do capital não passarão,
milagrosamente, a conduzir-se segundo preceitos tais como “amai-vos uns
34
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
aos outros”. A burguesia ri secretamente desse mandamento, só nós é que
almejamos um mundo em que o amor universal seja possível, no entanto,
esse mundo só existirá se o capitalismo deixar de existir.
A burguesia, embriagada pela obsessiva extração de lucros, comporta-se
como o dependente químico terminal: não pode aceitar um mundo fundado
na igualdade e na cooperação, precisa manter a humanidade acorrentada a
essa divisão antinatural de classes sociais, porque só dessa divisão consegue
extrair o óleo combustível da reprodução do capital.
Hoje, não é mais possível lutar de modo consequente por direitos humanos sem incorporar as bandeiras da igualdade social substancial, bem
como as temáticas do feminismo, do anti-racismo, da ecologia, da livre
expressão da vida sexual, da defesa dos migrantes, da busca de uma cidadania mundial e igualitária. Logo, esse feixe de propósitos convergentes
e libertadores encontra diante de si uma muralha – que tem o nome de
capitalismo. Desmontar essa muralha passou a ser condição para uma luta
consequente pelos direitos humanos. A realidade não nos dá mais o direito
de nos iludirmos como Poliana.
35
I TRABALHO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA
1
Representações de trabalhadores, gatos e
empregadores sobre o trabalho escravo
Maria Antonieta Vieira
Regina Bruno
O presente artigo norteia-se por uma perspectiva relacional, considerando que os diferentes atores sociais envolvidos no trabalho escravo – trabalhadores, empreiteiros e empregadores – fazem parte de um mesmo processo
social, estando unidos por um laço tenso e desigual de interdependência
que expressa relações de poder. Considera também que para compreender
a existência e manutenção da escravidão contemporânea é importante ir
além da investigação das condições objetivas de reprodução da força de
trabalho, abordando aspectos do mundo subjetivo dos diferentes atores, e,
mais especificamente, suas formas de representação sobre as relações de
trabalho do trabalho escravo.
A concepção acerca das relações de trabalho no mundo rural brasileiro, que foi constituída historicamente pelos diferentes atores, tem como
referência um passado escravista. As transformações do campo ocorridas
no Brasil na segunda metade do século XX, que produziram modificações
importantes nas relações de trabalho, passaram a expulsar os trabalhadores da terra, tornando-os cada vez mais dependentes do assalariamento.
No entanto, os códigos que regulam estas relações de trabalho, tanto para
trabalhadores como para empregadores não se pautam pela percepção de
direitos e garantias de condições de trabalho, mas estão, em grande medi-
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
da, baseados em um passado de dominação tradicional, onde a submissão
dos trabalhadores tinha como contrapartida o clientelismo e as formas de
proteção pessoal desenvolvidas pelo patrão.
O presente artigo, baseado em pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o Perfil dos Principais Atores do Trabalho
Escravo Rural1, procura apontar elementos que compõem a representação
dos diferentes sujeitos sobre relações de trabalho e emprego e, mais especificamente, sobre trabalho escravo, bem como elementos referentes às suas
expectativas e projetos de vida.
Representações dos trabalhadores
As situações de trabalho escravo, que ocorrem por meio de mecanismos
de coerção e violência são, em alguma medida, legitimados pelo assentimento
dos que, no limite da sobrevivência, se submetem às formas de opressão.
Concepções e valores dos oprimidos, por vezes, naturalizam a exploração a
que são submetidos, legitimando as formas de dominação.
A seguir, serão abordados alguns aspectos referentes às representações
dos trabalhadores no sentido de contribuir para a compreensão do processo de constituição e manutenção do trabalho escravo, enfocando: o que os
trabalhadores que foram submetidos à escravidão valorizam nas relações
de trabalho e qual o limite socialmente aceito para a exploração, indicando
os valores subjacentes que orientam suas escolhas. Em segundo lugar, como
se representam socialmente, em outros termos, como consideram que a
sociedade os vê. Em terceiro, o que, na sua visão, é trabalho escravo, dando
destaque para a questão da dívida contraída com os empreiteiros, que se
constitui em um dos principais mecanismos de coerção que os mantém na
condição de escravo.
Além destes aspectos, serão abordados outros referentes às aspirações e
projetos de vida dos trabalhadores e o que, na sua visão poderia ser feito para
1 O estudo foi realizado por pesquisadores e colaboradores do GEPTEC – Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo - que faz parte do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo da pesquisa foi traçar um perfil dos principais atores
envolvidos no processo de trabalho escravo rural no Brasil, em áreas de maior incidência com a finalidade
de subsidiar a formulação e reorientação de políticas públicas de combate ao trabalho escravo. A pesquisa
baseou-se em metodologia qualitativa e foi conduzida mediante a aplicação de entrevistas em profundidade
que permitissem captar as práticas, concepções, valores e expectativas dos diferentes atores, tendo como
foco principal o trabalho. Foram realizadas 121 entrevistas com trabalhadores, 7 com empreiteiros e 12 com
empregadores envolvidos em situação de Trabalho Escravo. As entrevistas com trabalhadores e gatos foram
realizadas em 7 viagens que acompanharam as operações dos grupos móveis de fiscalização do Ministério
o Trabalho e Emprego no segundo semestre de 2006 e primeiro semestre de 2007 nos estados do Pará,
Mato Grosso, Bahia e Goiás. As entrevistas com os empregadores, que foram flagrados pela fiscalização
com trabalho escravo em suas propriedades, foram realizadas no período de abril a agosto de 2008.
38
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
erradicar o trabalho escravo. Considera-se que estas informações possam
subsidiar a elaboração de políticas públicas, fornecendo indicações sobre
as expectativas e interesses dos sujeitos envolvidos.
Representações sobre emprego e relações de trabalho
Critérios de avaliação do contrato de trabalho – A necessidade
Os trabalhadores que se encontram em situação de trabalho escravo são
movidos pela necessidade premente para aceitar ofertas de emprego, tendo
em vista sua posição desfavorável no mercado de trabalho - baixa qualificação, baixa escolaridade - e a pressão que sofrem face às necessidades da
família, nas quais são, muitas vezes, os únicos responsáveis pelo sustento.
No entanto, isto não significa que eles não tenham critérios próprios para
avaliar o que significa um bom trabalho e parâmetros para estabelecer
limites à exploração.
Muito pouca importância é dada pela maioria dos trabalhadores escravos à existência de relações formais de emprego. A remuneração – ganhar
bem ou ter a garantia de que vai receber – aparece como o critério mais
importante para definir um bom trabalho. Alguns depoimentos explicitam
a importância da remuneração:
Serviço bom é aquele que dá dinheiro.
É quando paga bem. A mola do peão é o dinheiro.
É quando se ganha bem. Não importa se (o serviço) é pesado ou
maneiro.
O preço é que agrada a gente. Se dá prá levar um troquinho para
ajudar a família
É quando vou trabalhar e no final do mês vou ter o dinheiro, recebo
o combinado.
A valorização da remuneração em detrimento de outras condições de
trabalho aumenta a vulnerabilidade destes trabalhadores, podendo fazer
com que, premidos pela necessidade, aceitem, diante de um salário aparentemente vantajoso, condições de trabalho extremamente precárias, perigosas, em locais distantes, sem garantias trabalhistas, que possam significar
condições de trabalho escravo.
Os valores que orientam a avaliação das relações de trabalho não estão
pautados pelos códigos que regulam as relações formais do trabalho assalariado que incluem condições de segurança no trabalho, garantia dos direitos
trabalhistas com registro em carteira, férias, regulação da jornada de trabalho e horas extras, etc. O trabalho assalariado é visto como uma estratégia,
geralmente temporária, que permite obter rendimento monetário para a
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
aquisição de bens. Cumpre notar, que a reprodução destes trabalhadores
depende cada vez mais do circuito mercantil, seja para garantir a sobrevivência imediata da família como a compra de alimentos, seja para ter acesso
a bens de consumo como os eletrodomésticos, peças de vestuário, serviços,
etc, que, cada vez mais, passam a fazer parte do modo de vida mesmo de
pequenos e distantes povoados rurais.
Percepção dos limites da exploração na relação de emprego – a humilhação
A aceitação de uma oferta de emprego pelos trabalhadores se norteia
principalmente pelo valor da remuneração. No entanto, quando perguntados
sobre os principais motivos que os levam a abandonar um emprego outros
fatores aparecem como relevantes. A razão mais forte alegada para deixar
um trabalho se refere ao tratamento recebido.
A ênfase é na falta de respeito e consideração a eles enquanto pessoas,
por parte do gato ou empregador, cujas atitudes desqualificadoras e discriminadoras ferem a dignidade humana; nas palavras de um trabalhador,
quando a gente não se sente como humano. A categoria humilhação é utilizada
de forma recorrente para expressar este sentimento.
Os trabalhadores são pouco exigentes com relação às condições de
trabalho oferecidas pelo empregador. Condições precárias de alojamento,
água, alimentação, equipamento de proteção e segurança e jornada extensiva
geralmente não são utilizadas como razão para deixar o emprego.
A valorização positiva de um emprego se refere principalmente ao tratamento de respeito e atenção dado a eles e o recebimento do pagamento
dentro do que consideram aceitável. Os critérios utilizados para qualificar
um emprego não são, portanto, as relações contratuais formais do trabalho assalariado, mas se apoiam em uma ordem moral, baseada em valores
tradicionais de honra, reciprocidade, respeito, configurando como injustiça
as situações onde estas regras são quebradas, quando se sentem atingidos
em sua dignidade como pessoas. O não cumprimento do combinado pelo
gato, a ausência de pagamento depois de muito tempo de trabalho, os maus
tratos e humilhações, podem fazer com que os trabalhadores se indignem
e encaminhem, por exemplo, uma denúncia junto às autoridades sobre as
condições de trabalho vividas na fazenda.
40
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Imagem social
Imagem social dos trabalhadores – trabalhador sem valor
Na imagem social que fazem de si mesmos como trabalhadores assalariados, como peões, predominam os sentimentos de inferioridade, discriminação e desvalorização social. Entre os que possuem uma autoimagem
positiva, a característica principal apontada para a valorização é o fato de
ser um trabalhador, característica que confere atributos de honra, respeito,
honestidade.
A grande maioria, no entanto, utiliza atributos negativos e desqualificadores quando descreve como a sociedade os vê, expressando sentimentos de
discriminação, desvalorização e inferioridade, em outros termos, de falta de
reconhecimento social. A própria denominação peão é, para alguns, sinônimo
de preconceito, que desconsidera a condição de trabalhador. A percepção
de um dos entrevistados pode ser observada abaixo:
(O peão) é discriminado até como o povo chama “esse é um peão”.
Não vê que ele é um trabalhador!
É maltratado, não é bem recebido. Quando eu era peão o atendimento no comércio, nas festas era um. Quando passei a chefe (em uma
fazenda que trabalhei) o atendimento era outro.
(O povo) acha que são trabalhador humilde, não tem consideração
com a gente. Diz que o peão do campo não vale nada.
Os trabalhadores sentem que determinados elementos presentes em
seus gestos e em sua aparência física são alvo de discriminação e desqualificação, o que leva à ideia de que o peão não tem valor, ou seja, não é valorizado socialmente, é visto como um objeto descartável. Isto foi relatado em
observações feitas por um dos entrevistados:
Acho que eles (povo) conhece (o peão) até pelo andar. Ficam olhando
desconfiado, ficam mangando do trabalhador. Olham as mãos cheia
de calo, já critica.
Peão não tem valor. Tem deles que não carrega nenhum peão no carro
dele porque diz que peão fede.
Não dão valor ao peão. Até o olhar das pessoas é diferente para a
gente. Tratam como se fosse uma coisa qualquer, como um objeto de
precisão. Precisa dele, põe pra cá; não precisa, vai pra lá.
Para alguns, o que confere socialmente valor às pessoas é o dinheiro e,
neste sentido só quando está com dinheiro o peão teria valor:
41
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Não tem valor na cidade, o valor é só quando chega na cidade, com
dinheiro. Se tem relógio, vale o relógio, se não tem, não vale nada
É tudo lascado(o peão) não tem nada.Não dá valor ao peão. Só dá
valor quando tem dinheiro.
A imagem social que estes trabalhadores fazem de si mesmos se constrói
nas relações estabelecidas com o conjunto da sociedade em geral e de trabalho com os patrões em particular. Trata-se de um processo que se constitui
ao longo da história rural brasileira, que atribuiu a estes trabalhadores um
lugar de inferioridade e desqualificação social.
A introjeção desta imagem dificulta aos trabalhadores a valorização
de si próprios e a percepção de si como sujeitos portadores de direitos.
No entanto, eles não estão reduzidos à visão do outro, na medida em que
consideram que sua condição de trabalhador não é devidamente valorizada
socialmente. Como diz o trabalhador: [...] se não for o peão que enfrenta a
juquira, o povo da cidade não vive.
O povo chama:”esse é um peão”. Não vê que ele é um trabalhador!
Representações sobre o trabalho escravo
Trabalho escravo - a submissão moral
De primeiro (a escravidão) era quando trabalhava apanhando.
Hoje, quando trabalha humilhado.
A escravidão não é só ficar preso numa fazenda.
Para os trabalhadores o trabalho escravo se apresenta como uma situação limite de exploração2 na qual se destacam três aspectos: o trabalho
não pago ou superexplorado, a existência de maus tratos e humilhação por
parte do empregador e o trabalho exaustivo. A privação de liberdade se
apresenta nesta visão, também, como um aspecto do trabalho escravo, mas
não como o preponderante.
Ganhar pouco, trabalhar forçado, ser humilhado
Não receber remuneração ou ganhar muito pouco é o elemento mais
frequente apontado pelos trabalhadores para caracterizar o que seja o
trabalho escravo:
2
Esta representação coincide com o analisado por Neide Esterci quando se refere ao trabalho escravo como
uma categoria utilizada para designar a exacerbação da exploração e da desigualdade: “Determinadas
relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou a denunciar a desigualdade no
limite da desumanização” (ESTERCI, 1994, p. 44).
42
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
É a pessoa que vai trabalhar na fazenda a vida inteira trabalhando
sem ganhar quase nada.
Trabalhar a troco de comida.
Quando a gente trabalha sem tirar lucro e botou força, trabalhou e o
dono do serviço não quer pagar
O trabalho exaustivo se refere ao trabalho pesado demais, que esgota
as forças do trabalhador ou o faz trabalhar contra sua vontade. Este fato é
observado a partir de algumas colocações:
Trabalho pesado demais que a gente não pode fazer.
Explorar o trabalhador. O trabalhador fazer o que ele não pode, o
máximo que o corpo pede.
Forçar a pessoa a trabalhar, a fazer o que ela não quer.
Os maus tratos, o relacionamento sem consideração e respeito por parte
do empregador, com xingamentos, agressividade, são considerados sinônimo
de escravidão. Mais uma vez a categoria humilhação sintetiza esta condição
que afronta a dignidade humana, que significa ser tratado como animal,
como cachorro. Uma condição que desqualifica e submete moralmente o
trabalhador à vontade do outro e, neste sentido, priva-o de sua autonomia,
mesmo quando não o prende fisicamente.
A humilhação aparece para alguns como o equivalente do castigo físico
da escravidão colonial
De primeiro (a escravidão) era quando trabalhava apanhando. Hoje,
quando trabalha humilhado. A escravidão não é só ficar preso numa
fazenda.
Não poder sair, ter vigia armado, não sair porque está devendo
A privação de liberdade com uso de violência física e armada, ameaças
por parte de vigias, gatos e administradores, é mencionada por um grupo
de trabalhadores:
Estar trabalhando no lugar, não poder falar, não poder sair, não poder
se comunicar com a família. Trabalho forçado, fazer o que o cara (gato)
quer, não ganhar nada e não poder sair. Trabalhar e não receber; trabalhar obrigado; querer sair e não ser liberado. Você estar trabalhando
e uma pessoa está com uma arma. Você quer parar pra descansar e
ele fica avexando pra trabalhar. Aí eu acho que é. Quando a pessoa
trabalha sem condições e obriga a pessoa a ficar na fazenda;
Trabalhar obrigado, com gente armada. Trabalhar e não receber, não
ter pra comer, ser ameaçado, se quer sair o cara dizer que vai matar.
Os depoimentos mostram que, mais do que a privação física da liberdade,
a submissão moral levada a seus limites significa escravidão. Ser submetido
43
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ao outro pelo desrespeito, maus tratos, não pagamento ou superexploração,
trabalho exaustivo, má alimentação, afronta a dignidade humana dos trabalhadores, significa ser tratado que nem cachorro, o que dá a dimensão do
que é injusto e inaceitável, do que é escravidão.
Retenção por dívida – quem deve, paga
A retenção por dívida é tradicionalmente um mecanismo utilizado para
manter os trabalhadores cativos. Neste sentido é importante verificar se,
do ponto de vista moral, os trabalhadores consideram a dívida como um
elemento que justifica sua retenção na propriedade.
Grande parte dos trabalhadores considera que não podem deixar o
emprego se estão devendo. A maioria utiliza argumentos morais como a
honestidade e a honra como razão para permanecer na propriedade até
pagar a dívida com trabalho:
Por que tem que pagar o que deve
Por que o direito é acertar a cantina
É feio a gente sair devendo às pessoas
A obrigação de quem deve é pagar
Ele tem que pagar porque honestidade é acima de tudo. Uma das
coisas mais feias que acho é não cumprir quando deve. Tem que trabalhar pra poder pagar. Se sair não tem como pagar. O trabalhador que
é honesto tem que sair limpo de qualquer lugar. Se ele for honesto,
ele trabalha e paga o gato
O homem tem que ter o seu compromisso, trabalhar para pagar
Só tem direito de sair quando não está devendo.
Um grupo menor considera que o dever moral de ficar na propriedade
para pagar a dívida é relativizado diante de certas circunstâncias como a
doença, a quebra do que foi combinado, e, especialmente dos maus tratos
e da humilhação
Se ele tá devendo tem que pagar, mas se ele for humilhado tem o
direito de sair.
Dependendo, se o gato tiver querendo prender e explorar aí sim, mas
se ele estiver só devendo tem que trabalhar para pagar (a dívida)
primeiro
Dependendo dos maus tratos ele tem de sair
Se tá doente, pode sair. Se combinou de um jeito falou de outro, eu vazo!
Como se verifica, o argumento da dívida pode ser um mecanismo eficaz
para prender o trabalhador à propriedade, tendo em vista que para grande
parte os valores morais são fortes orientadores da conduta.
44
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Aspirações, projetos de vida e propostas para a erradicação do
trabalho escravo
Aspirações e projetos
O conhecimento das aspirações e projetos de vida dos trabalhadores é
um fator importante para a elaboração de políticas públicas, uma vez que
dá indicações sobre as expectativas e interesses dos sujeitos envolvidos em
possíveis projetos a serem desenvolvidos.
As aspirações mais expressivas dos trabalhadores que passaram por situações de trabalho escravo estão relacionadas à aquisição de moradia e formação/
retorno ao lar. Em seguida, apareceram algumas relacionadas ao trabalho.
Casa e família
O desejo de ter uma casa, motivação da maioria, está geralmente associado a um projeto familiar e afetivo. Em muitos depoimentos a família é
citada como parte deste projeto: comprar uma casa para a mãe, construir
casa para a família, etc. Esse discurso foi verificado em:
Comprar uma casa boa, viver feliz com a minha família.
Construir uma casa para os meus pais. Poder dar do bom e do melhor
para eles.
Ter uma família, uma casa, uma esposa e um filho
É comprar uma casinha prá mim, lá no Maranhão. Isso Deus vai me
ajudar.
A ideia de casa está associada à de lar, que é uma aspiração principalmente para os que não têm família ou se encontram longe dela.
Gostaria de trabalhar e construir um lar, uma residência
Voltar a viver com a família: a mulher e as filhinhas
Ficar mais perto da família. Ter um lar e viver sossegado com a
família.
Trabalho por conta própria
O trabalho, que aparece em segundo lugar entre os anseios dos entrevistados, é principalmente o por conta própria, que se apresenta como
alternativa de autonomia frente às relações de dependência e exploração.
Entre as atividades mencionadas sobressaem às ligadas ao comércio.
Trabalhar por conta própria, que não dependesse de outro, uma loja,
abrir um comércio. Trabalhar por minha conta. Qualquer trabalho
na minha conta. Ter meio de sobreviver sozinho, sem depender de
45
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ninguém. Montar uma oficina, ter meu próprio negócio e não ser mais
humilhado.Ter uma vida melhor e trabalhar só para mim.
Continuar os estudos e formar os filhos
O desejo de estudar se refere principalmente aos filhos e expressa a
expectativa de ascensão social, que possibilite não reproduzir a situação
dos pais e obter melhora da condição de trabalho:
Meu sonho maior na minha vida era formar meu filho em alguma
coisa prá tirar ele da juquira, porque se ele não se formar o destino
dele é a juquira.
Ver os filhos na escola para ser alguma coisa na vida.
Que eu tivesse condição de dar um estudo a minha filha.
As aspirações demonstram a centralidade da família como valor para
estes trabalhadores, em torno do qual se estrutura seu projeto de vida. Um
outro valor que sobressai é o da autonomia que se expressa no desejo de
ter um trabalho onde não dependa da relação de emprego e possa trabalhar
por conta própria.
Terra para plantar
A aquisição de terra apareceu como expectativa apenas para um pequeno grupo de trabalhadores quando perguntados sobre os seus projetos. No
entanto, ela foi a escolha de aproximadamente metade dos entrevistados
na pesquisa, quando foram apresentadas para eles quatro alternativas que
poderiam resolver os problemas dos trabalhadores - terra para plantar,
comércio na cidade, emprego rural e emprego urbano.
O comércio na cidade apareceu em segundo lugar, o que reforça a preferência por atividades autônomas de trabalho.
Tabela 1: Expectativas em relação ao trabalho (primeira escolha) %
Ter terra
para plantar
Ter um
comércio
Emprego rural
registrado
Emprego na
cidade
46,1
26,9
13,5
13,5
Do ponto de vista das políticas públicas o que se verifica é que a reforma
agrária pode responder ao anseio de uma parcela significativa de trabalhadores que vêem na terra para plantar a primeira opção de trabalho, bem
como da preferência pelo trabalho autônomo.
46
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Propostas para erradicação do trabalho escravo
A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego é considerada pelos
trabalhadores como a medida mais eficaz e decisiva para o combate ao trabalho escravo, capaz de garantir o cumprimento da lei pelos empregadores,
combatendo a impunidade, mesmo em locais distantes e de difícil acesso,
verifica-se em alguns depoimentos:
Fazer a fiscalização em todas as fazendas, aí eu sei que acabava.
É isso mesmo que está acontecendo. Ir direto nas fazendas, fiscalizando. Daí vai melhorando. O governo devia fiscalizar direito. Devia
fazer um tipo força tarefa, uns 400 policial federal, aí acaba isto. A
fiscalização ficar dentro direto porque senão, isto nunca vai parar.
Uma fazenda longe como esta nunca vai parar.
Fiscalização é fundamental. É tudo muito escondido. Só uma fiscalização boa para achar. O Ministério deveria trabalhar mais em busca
das fazendas que ainda utiliza o trabalho escravo. Se tivesse mais
pessoas que denunciasse seria mais fácil. Esse serviço (a fiscalização)
se tivesse mais vezes, acabava. Eles (fazenda) tão correndo pra fazer
casa (para os trabalhadores), muitos já não estão pegando sem carteira. Isto (TE) vai acabar, vai morrer por uma fiscalização mais forte,
chegar em tudo quanto é lugar, porque tem muitos nesses mato, vige!
O fazendeiro não vai poder criar boi sem ter peão. Alguma coisa (ele)
vai ter que fazer. O Ministério andar em todos os lugares que a gente
trabalha: firma, fazenda. Tinha que denunciar mais. Mais fiscalização
porque sem a denúncia não anda. Fiquei com medo porque diziam que
ia correr risco de vida. Mas é preciso fazer a denúncia para ver se eles
(fazendeiros) criam vergonha. Porque eles acham que tudo tá bom.
Fiscalização bem rigorosa e a participação nossa na denúncia.
O cumprimento da lei pelos fazendeiros aparece em segundo lugar. Vários entrevistados se referem à importância do registro em carteira como
forma de evitar as situações de trabalho escravo. Alguns ressaltam a importância da fiscalização para o efetivo cumprimento da legislação:
O governo botar lei para legalizar tudo.
Este povo (fazendeiros) é tudo rico e tem estudo, sabe demais.
Eles estão sabendo o que tem que fazer e não faz. Se estivesse tudo
legalizado não tinha problema. Deveria ser feita uma justiça para
todo mundo trabalhar de carteira assinada.Todo mundo trabalhar
de carteira assinada, pagando tudo certinho
Que todo mundo trabalhe fichado. Era todos os fazendeiros assinar as
carteiras do pessoal. Que o gato criasse vergonha e assinasse a carteira
Tinha todo mundo que trabalhar de carteira assinada. Aí quando saia
recebia férias, décimo (13º.). Igual o que estão fazendo aqui (fiscali47
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
zação). Tudo conforme, carteira assinada. Se não fizer, a fazenda vai
ter que arcar com a consequência.
De forma geral os trabalhadores entendem que o combate ao trabalho
escravo depende principalmente dos organismos oficiais e do respaldo da
legislação que possam garantir as condições de trabalho, dando especial
destaque à fiscalização do Ministério do Trabalho e às operações dos grupos
móveis para o cumprimento da lei. Não é dado ênfase, no entanto, à punição
dos responsáveis.
Nenhuma referência é feita à organização e pressão dos trabalhadores
para o combate do trabalho escravo, o que evidencia a fragilidade de organização destes grupos. Há apenas menção, por alguns, da importância da
denúncia de trabalhadores como elemento importante para a fiscalização.
O que se pode concluir é que a presença da fiscalização tem um papel
importante na mudança da visão destes indivíduos, fortalecendo-lhes a
percepção de sua condição de trabalhador e cidadão, de portador de direitos
que podem efetivamente ser concretizados, uma vez que são reconhecidos
pela autoridade pública.
Representações dos empreiteiros – os gatos
Os gatos desempenham papel importante como mediadores no processo
de trabalho. Sua posição os torna responsáveis pelo controle dos trabalhadores, pela execução do serviço, funções que desenvolvem de maneira informal
e pessoal. Geralmente assumem a empreitada com o proprietário sem fazer
nenhuma exigência sobre a forma de contratação e condições mínimas de
trabalho. São inúmeros os problemas que enfrentam a partir daí – cobranças
do proprietário pela realização do serviço, reclamações e desistência do
emprego por parte dos trabalhadores, dificuldades de gerenciamento do
dinheiro recebido. Para a resolução destas questões os gatos geralmente
penalizam os trabalhadores, com redução da remuneração, atraso ou não
pagamento de salários, utilização de mecanismos de aprisionamento dos
trabalhadores por meio do endividamento, retenção de salários, não fornecimento de transporte, utilização de violência física e armada.
De um modo geral, o que se observa é que os pequenos empreiteiros
pertencem à mesma extração social dos trabalhadores, muitos deles tendo desempenhado ou ainda realizando trabalhos como peões e que, em
muitos aspectos, apresentam concepções e valores muito próximos dos
trabalhadores.
48
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Representações sobre relações de trabalho
Como principais problemas que podem ocorrer no trabalho dos empreiteiros, eles destacam, em primeiro lugar, o fato do empreiteiro não receber
pagamento da fazenda pelo serviço e, em segundo, ele ser desrespeitado e
agredido pelos peões.
Perguntados sobre o que daria direito ao trabalhador de abandonar o
serviço os gatos apresentam argumentos semelhantes aos dos trabalhadores
relacionados a pagamento insuficiente, maus tratos, condições precárias de
trabalho, especialmente de alimentação, indicando a existência de elementos
comuns na percepção dos limites à exploração do trabalho:
Quando ele não está ganhando nada.
No meu modo de pensar, não deveria (abandonar o trabalho). Só se
passar fome. Quem é que vai trabalhar com fome?
Se trabalhou um tempo e não deu prá tirar o valor da diária tem
direito de ir embora. Quando ele é maltratado. Quando não alimenta
ele bem e falta com respeito, ele deve abandonar.
No caso do trabalhador que possui uma dívida, o abandono do serviço se
justifica no caso de maus tratos ou se estiver passando fome. Outros utilizam
argumentos de ordem pragmática dizendo que é melhor que o trabalhador
saia para evitar problemas:
Primeiro de tudo, ele fez um compromisso. Mas se o patrão estiver
maltratando ele tem direito, para evitar confusão
Se ele está passando fome, não tá tendo assistência, tem direito de
ir embora
Tem (direito de sair)! É melhor porque se ele quiser sair é melhor;
se não vai criar dificuldade, acaba não trabalhando.
O mundo legal com regras e padrões da legislação trabalhista parece
estar muito distante do cotidiano dos gatos, que organizam sua relação com
os trabalhadores baseados na experiência, onde predomina a naturalização
da exploração do trabalho e o desrespeito às leis trabalhistas. No cotidiano,
não hesitam em lançar mão da imposição pessoal de sua vontade por meio de
ameaças e mesmo da violência para resolver problemas de contestação dos
trabalhadores quanto ao pagamento, tarefas a serem realizadas, alimentação
precária, etc. Diante da presença dos fiscais do Ministério do Trabalho e da
Polícia Federal, que personifica a força da lei, os gatos se sentem atemorizados,
sem entender exatamente os critérios que são utilizados para sua acusação.
49
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Aspirações e projetos de vida dos gatos
Geralmente, a origem dos gatos é rural, sendo que a maioria foi trabalhador rural. A função de empreiteiro se consolidou na prática, em função
de liderança assumida perante grupos de trabalhadores.
Perguntados sobre suas aspirações os gatos se referem a projetos
bastante próximos dos apresentados pelos trabalhadores: ter um sítio, um
comércio, ser motorista e voltar para o local de nascimento.
Gostaria de ter um comércio. Eu nunca tive condições de nada. Já tive
no garimpo, depois tive comércio. Daí vendi o comércio. O Collor me
tomou tudo.
Motorista de carreta (carregar boi). Queria trabalhar para arrumar o
dinheiro para voltar para Caxias no Maranhão. O que eu quero mais é
trabalhar com construção. Queria ter um sítio para terminar os meus
dias de vida, aqui no Mato Grosso.
Cabe observar que estas informações se referem a pequenos empreiteiros, os chamados gatinhos, que possuem poucos recursos financeiros e um
perfil próximo do encontrado entre os trabalhadores. Agenciam pequenos
grupos de trabalhadores e geralmente seu âmbito de atuação se restringe
a uma região determinada. Não possuem uma rede de agenciamento com
hotéis, comércios, meios de transporte, como era comum em décadas passadas na Amazônia. Isto não significa que este tipo de gato não exista mais
atualmente. No entanto, informações recolhidas junto aos responsáveis
pela fiscalização indicam que tem havido realmente uma modificação nos
mecanismos de recrutamento e contratação de trabalhadores, o que pode ser
entendido como um efeito do combate ao trabalho escravo e fiscalização das
relações de trabalho. As novas formas, porém, tornam mais difícil o controle
do agenciamento da mão de obra, que nem por isso deixa de existir.
Para evitar o agenciamento ilegal de trabalhadores e estimular a contratação dentro dos marcos legais seria necessário criar mecanismos que
pusessem em contato trabalhadores e empregadores. Uma forma possível
seria a criação de centros que informassem aos trabalhadores sobre oferta
de postos de trabalho, garantindo que estivessem sendo respeitadas as
condições adequadas de contratação e que oferecessem aos empregadores
um cadastro de trabalhadores disponíveis.
Representações dos empregadores
Refletir sobre a prática do trabalho escravo no Brasil também se insere
na tentativa de entender o lugar dos empregadores nesse processo. Em
50
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
geral, há uma retórica de legitimação e de poder dos grandes proprietários
de terra e empresários envolvidos no trabalho escravo rural. São discursos
construídos para defender posições e privilégios historicamente construídos
e sinalizam para questões mais amplas, estruturantes, que ultrapassam a
problemática do trabalho escravo rural.
Em primeiro lugar serão apontados alguns traços gerais do perfil dos
empregadores tendo como referência a pesquisa realizada3. Em segundo,
como eles representam os trabalhadores rurais e o trabalho escravo. E,
finalmente, como representam os empreiteiros.
O perfil dos empregadores entrevistados
Os empregadores entrevistados têm em média 47 anos. Quase todos
possuem a 3º grau completo e dois cursaram a pós-graduação. A grande
maioria é branca, católica e casada. Os casados residem com as esposas e
filhos menores ou adolescentes e mais da metade tem em média dois ou três
filhos. Família e negócio se complementam. Quase sempre um dos filhos
segue a atividade do pai e invariavelmente há sempre alguém “vocacionado”
para atividades ligadas à agropecuária.
A grande maioria é natural da região sudeste, enquanto que as propriedades encontram-se localizadas nas regiões norte e centro-oeste e muitos
deles residem em municípios próximos às propriedades.
Tornaram-se proprietários de terra “por tradição familiar” ou pela necessidade de investimento e negócio. As propriedades foram adquiridas pela
família durante o processo de ocupação das áreas de fronteira na Amazônia
e do Centro-Oeste, em especial no período dos governos militares, como
decorrência da política de incentivos e de ocupação.
Mas, invariavelmente, são eles que dão início ao processo de construção
do patrimônio e também de ascensão social, constituindo-se assim uma espécie de elite patrimonialista que acumula recursos e alimenta poderes. Nessa
perspectiva, as relações sociais e familiares giram em torno do patrimônio,
da terra e por sua vez realimentam os vínculos familiares e se constituem
em importantes recursos de poder.
A maior parte dos empreendimentos está ligada ao ramo da pecuária,
mas há também produtores de cana/álcool e de grãos, sendo parte significativa faz uso de um padrão tecnológico intensivo ou de uma tecnologia de
3 Foram entrevistados na pesquisa 12 empregadores que tiveram nas suas propriedades situações de trabalho
escravo, conforme fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Sobre a pesquisa ver nota 1.
51
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ponta. No entanto, parte deles pratica a pecuária extensiva com baixo grau
tecnológico. Todos contratam mão de obra permanente e temporária nas
suas fazendas. Vários recorriam aos gatos e “empreiteiros” para a contratação de mão de obra temporária, mas alegam que, por conta da fiscalização,
deixaram de utilizar estes serviços.
Representações sobre o trabalhador rural
As representações dos empregadores sobre os trabalhadores rurais se
orientam a partir de quatro principais supostos: a solidariedade entre empregadores e empregados; a igualdade da racionalidade empresarial; a desqualificação humilhante e, finalmente, a valorização do trabalho e da educação.
O suposto da solidariedade entre patrões e empregados
O discurso da solidariedade entre patrões e empregados é recorrente
e procura excluir a ideia de conflito. São argumentos que expressam uma
determinada visão de mundo que muito se aproxima da noção de autoridade
tradicional fundada na crença da tradição de regras de há muito estabelecidas
na qual a benevolência, a arbitrariedade e a fidelidade pessoal encontram-se
na base da obediência ao patrão e do arbítrio do empregador:
A legislação trabalhista acabou com a amizade entre patrão e empregado
Jogaram uma classe contra a outra
Eles gostam de mim, como seu gosto dele, mas não sou manso para
eles.
O suposto da igualdade da racionalidade empresarial
Uma segunda representação busca enquadrar os trabalhadores dentro
de uma mesma lógica patronal e empresarial, em particular a capacidade
de tomar iniciativa e o objetivo da acumulação. Diferentemente da anterior,
esse é um modo moderno e se orienta por uma suposta racionalidade capitalista e pela tentativa de transformar os valores e interesses patronais em
valores e interesses do conjunto da sociedade. E concebe os trabalhadores
como se estivessem em igualdade de condições para então ressaltar sua
incapacidade e desqualificá-los:
Não tem iniciativa.
Se contenta com pouco, não querem acumular.
Trabalha para comer e não para evoluir.
Não tem cultura de poupança, ganha e gasta tudo.
52
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Não conhece a palavra produtividade.
Carência de se adaptar às novas tecnologias
Humilhação e desqualificação
Uma terceira forma de representação assume direta e explicitamente a
desqualificação e a humilhação. É um raciocínio que em muito se assemelha
ao discurso elitista, proferido do alto e alimentado pelo suposto da superioridade e da inferioridade das pessoas, grupos e classes sociais.
Trabalhador rural é tudo tosco. Não adianta é tosco!
Trabalhador é debochado.
Pior impossível.
O bicho é grosso, bruto.
Tudo o que é de ruim. Pense em uma coisa muito ruim, é o trabalhador rural.
Péssimo, o pior que existe.
São uns analfabetos.
Valorização do trabalho e da educação
E, finalmente, a representação que ressalta alguns aspectos positivos dos
trabalhadores, contudo, invariavelmente ligados à capacidade de trabalho e
a valores familiares e que chama a atenção para a importância da educação
e da qualificação na formação da mão de obra.
Tem tradição familiar
Tem cultura de trabalhar no campo
Ninguém é naturalmente relapso e preguiçoso, falta educação.
Têm os que se esforçam no trabalho.
Representações sobre trabalho escravo
De um modo geral os empregadores entrevistados conhecem as situações legalmente definidas como trabalho escravo. A própria definição
sobre o que seja trabalho escravo é um campo de força e de tensões entre
empregadores e seus representantes e as instituições ligadas à questão como,
por exemplo, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Organização
Internacional do trabalho (OIT).
Duas tendências marcam essa representação, a primeira se caracteriza
pela exacerbação do uso da violência física ou à associação entre da violência
dos proprietários como resposta à rebeldia dos trabalhadores. A segunda
representação procura questionar as situações legalmente definidas como
sendo trabalho escravo. A lógica que orienta os dois argumentos é semelhante, ambos por caminhos diferentes procuram relativizar e desconstruir
a definição de trabalho escravo, enquanto a exacerbação busca chamar a
53
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
atenção apenas para situações-limite, o questionamento, procura minimizar
ou descaracterizar como sendo trabalho escravo algumas situações definidas em lei, como afirma o depoimento a seguir: trabalhar sob a mira de um
revólver, trabalhar acorrentado e o uso da violência quando o trabalhador
se rebela são fatos isolados.
Os mais tradicionais negaram categoricamente a existência de trabalho
escravo no Brasil contemporâneo. “Trabalho escravo é coisa para inglês ver.
Não existe”, disse um dos entrevistados. “Tudo lorota, mentira”, afirmou
outro. “É natural a precariedade das relações de trabalho”, argumentou um
terceiro.
A grande maioria dos entrevistados tem dificuldade de reconhecer a
existência de trabalho escravo em suas propriedades. Eles questionam o
que consideram as incoerências e o rigor da lei. Criticam autoritarismo e
arrogância dos fiscais do MTE ou então afirmam ser mentira dos trabalhadores. Outros justificam e ressaltam que o trabalho escravo não se restringe ao
mundo rural, mas está presente em outras atividades e nas áreas urbanas.
Para muitos haveria uma “cultura da informalidade” entre patrões e
empregados, razão pela qual os trabalhadores não querem ser registrados
e não gostam de usar vestimentas adequadas ao trabalho, dentre outros
aspectos.
É grande a preocupação em reafirmar quais situações não se configura
trabalho escravo. Não é trabalho escravo [...] se o cara tem direito de sair a
hora que quer e a não assinatura da carteira de trabalho, simplesmente não
poderia ser considerado trabalho escravo.
Apenas um, presidente de uma grande empresa moderna, reconheceu
sua parcela de culpa [...] fomos negligentes ao contratar uma empresa de
terceirização, pois tínhamos por obrigação acompanhar o trabalho, diz.
Representação sobre o empreiteiro - gato
O empreiteiro é considerado o grande culpado pela prática do trabalho
escravo e pela situação em que se encontra o empregador perante a justiça
do trabalho. Portanto, é fundamental eliminá-lo. Produto do sistema, ele seria
o responsável pela relação de submissão, isentando, desse modo, os empregadores. Como se estes também não fossem parte do mesmo sistema:
Entrei numa roubada, cai na besteira de contratar um cara para fazer
o serviço.
É essa figura terrível do modelo. Ele é fruto do sistema, é o arrebatador de mão-de-obra e o próprio sistema incentiva e privilegia. Ele é
54
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
o responsável pela escravidão. A comida é dele, o ônibus é dele é ele
quem paga; é ele quem faz essa relação de submissão.
Existiria, segundo os entrevistados, uma tendência a acabar com a figura
do empreiteiro ou evitar a contratação, seja por causa da fiscalização; seja
pela força do mercado, seja ainda, para alguns, por motivos morais.
Mudanças introduzidas pelo combate ao trabalho escravo
A erradicação do trabalho escravo depende de múltiplas ações desencadeadas pelo conjunto da sociedade, que inclui tanto os organismos
públicos do executivo, judiciário e legislativo, como a sociedade civil, com
suas organizações de classe de trabalhadores e empregadores, entidades de
direitos humanos e outras. Estas ações têm provocado, em alguma medida,
alterações no quadro descrito. Entre elas destacam-se as de fiscalização,
levadas a cabo principalmente pelos grupos móveis do MTE, a punição econômica dos infratores seja pela sua inclusão no cadastro dos empregadores
flagrados com trabalho escravo, ou ainda pela cobrança de multas propostas
pelas ações civis públicas para obtenção de indenizações dos empregadores.
Destacam-se também, as campanhas educativas, especialmente da mídia,
que têm dado maior visibilidade à questão do trabalho escravo, a criação de
planos estaduais de combate e as ações desenvolvidas por empregadores
como a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Considera-se que este conjunto de ações tenha contribuído, por exemplo,
para o aumento da contratação direta pelos empregadores de trabalhadores
para trabalho temporário, com registro em carteira, em áreas de maior incidência de trabalho escravo como o sul do Pará. Ao mesmo tempo, verifica-se
uma diminuição da presença do gato, principalmente como aliciador de
mão de obra que cruzava estados transportando trabalhadores, ainda que
isto não signifique automaticamente uma melhora efetiva das condições de
trabalho. Mecanismos informais de arregimentação continuam operando e
utilizando, por vezes, os próprios trabalhadores.
Há também alguns indícios de que os trabalhadores têm desenvolvido uma
percepção mais crítica das relações de trabalho. Tem contribuído para isto o
acesso a informações sobre trabalho escravo e principalmente a realização das
fiscalizações, que auxiliam os trabalhadores a deixarem de considerar como
natural o processo de exploração a que são submetidos. O que é sentido como
injustiça nas relações de trabalho passa a ser visto como privação de direitos,
e estes atores dão um passo em direção à cidadania plena se percebendo como
sujeitos de direitos reconhecidos pela autoridade pública.
55
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Diferentemente dos trabalhadores, grande parte dos empregadores se
sentem destituídos de seu lugar social pela fiscalização e atingidos pessoalmente na sua honra, uma situação que é interpretada como injustiça e sentida
por eles como humilhação. No entanto, outro grupo considera importante e
apoia o combate ao trabalho escravo, participando de iniciativas concretas
como as do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e programas
de reinserção de trabalhadores que foram resgatados.
Apesar dos avanços encontrados no Combate ao trabalho escravo há
ainda um longo caminho para a erradicação que inclui a manutenção e ampliação da fiscalização e punição dos escravagistas e intermediários, mas
também a ampliação de ações preventivas que impeçam a reincidência no
trabalho escravo.
Referência
ESTERCI, Neide. Escravos da Desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da
força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: CEDI, Koinonia, 1994.
56
2
Depoimentos de trabalhadores rurais
escravizados por dívida - 2007, Pará, Brasil
Introdução
Adonia Antunes Prado
Esta comunicação faz parte de um estudo mais amplo atualmente em
andamento no Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC)
do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil e tem como objeto
privilegiado os conteúdos de declarações de trabalhadores submetidos, em
áreas rurais, à exploração servil de sua força de trabalho. Estes depoentes
prestaram as declarações a agentes de organizações da sociedade civil, como
a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro de Defesa da Vida de Açailância
(MA), do Estado, como é o caso dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e dos procuradores ligados ao Ministério Público
e, em um caso, ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região.
O projeto, ora em desenvolvimento, objetiva o estudo de um corpus
documental relativo a quatro décadas, a saber, dos anos setenta até à presente data e por meio do levantamento, cruzamento e análise dos principais
elementos (variáveis) expressos pelos trabalhadores. Com isso, pretende-se
produzir novos conhecimentos a respeito do trabalho escravo no Brasil rural
de nossos dias, em especial, na região amazônica.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
O trabalho escravo contemporâneo é ilegal no Brasil e sua prática teve
repercussão de forma mais visível nos anos setenta, por meio da ação do
bispo espanhol radicado no estado do Mato Grosso, na região Centro-Oeste
do Brasil, Pedro Casaldáliga. O país vivia os chamados “anos de chumbo”
do governo militar e as vozes que se somaram então à do sacerdote eram
esparsas e seus autores tinham que portar grande coragem pessoal, bem
como fortes convicções políticas e éticas para levar avante denúncias que
tanto envolviam setores modernos do grande capital nacional e internacional, como políticos e autoridades regionais tradicionais. 1 Atualmente,
pode-se afirmar que, não apenas por parte de entidades da sociedade civil
organizada, mas também no seio da universidade no âmbito acadêmico) e no
âmbito governamental, cada vez mais se produzem olhares e falas sensíveis
a este aspecto da questão social. 2
No ano de 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi
criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que tem por função fiscalizar propriedades alvo de
denúncia de exploração de mão-de-obra escrava e, em caso de comprovação
da existência do delito, punir os infratores. Ainda no Governo Federal, a partir
do ano de 2004 o mesmo MTE passou a publicar semestralmente em seu sítio
o Cadastro de Empresas e Pessoas Autuadas por Exploração do Trabalho Escravo. A inclusão no cadastro, também conhecido como Lista Suja, impede que
empresa ou empresário receba financiamento por parte de órgãos públicos.
O que vem a ser o trabalho escravo nos dias de hoje? Como esta categoria vem sendo tratada? Segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro
é considerado crime reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio,
sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.3
A pena prevista é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena
correspondente à violência. Também podem ser punidos pelo mesmo
artigo do Código Penal aqueles ou aquelas que impeçam o deslocamento
do trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho, podendo a pena
ser aumentada de metade, caso a vítima seja criança ou adolescente e/ou o
motivo seja preconceito de raça, cor etnia religião ou origem.
1
2
3
Os primeiros estudos do tema foram feitos por e Almeida, 1988; Esterci,1994; Martins, 1994 e Figueira
2004.
No que se refere à presença do tema em estudos acadêmicos, ver Figueira e Prado, 2008.
Disponível em: <http://www.fiscosoft.com.br/indexsearch.php?PID>. Acesso em: 30 jan. 2009.
58
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Neste estudo, trabalhamos com a noção de que a escravização de mão
de obra, atualmente, é entendida como ação ou ações que tiram do sujeito vitimado o direito de locomoção, o direito de ir e vir e de vender sua
força de trabalho. Em nosso país, a maioria dos casos em que se encontra
tal situação se dá sob a alegação de que o trabalhador deve ao patrão, ao
gerente do estabelecimento ou ao agenciador, também conhecido como
gato. 4 Considera-se, também, que a condição servil se caracteriza por um
conjunto de situações que compõem o quadro da escravidão. A imobilização
do trabalhador, a negação do caráter fundamental do trabalho na sociedade
capitalista que é a liberdade de oferecer sua força de trabalho a quem lhe
pareça melhor, é negada e configura o trabalho escravo. No entanto, esta
condição invariavelmente vem acompanhada de outras formas de violência
e de negação da condição humana dos trabalhadores. Retenção de salários,
alimentação de má qualidade ou insuficiente, falta de condições de higiene
ou de segurança nos locais de trabalho e nos alojamentos, agressões físicas
ou morais, isolamento, dentre outras formas de desrespeito ao trabalhador,
constituem-se em condições assessórias e importantes para a caracterização
do trabalho escravo.
Parece, ainda, interessante observar nesta introdução que, para se
entender o trabalho escravo nas zonas rurais brasileiras dos dias de hoje,
de maneira a não se resvalar para os clichês ou para os preconceitos, se faz
necessário levar em conta que ele está imbricado com questões que lhe
são correlatas, cujo conhecimento é fundamental para a produção de uma
consciência estruturada e alicerçada na compreensão da realidade. Pode-se
citar aqui a questão ambiental, a presença do tráfico de pessoas, o trabalho
infantil, as questões legais nos níveis nacional e internacional, o tema das
migrações, a corrida pela produção de fontes alternativas de energia - que
em nosso país pode ser observada (não exclusivamente) na potencialização
da produção do agro combustível - questões de gênero e étnico-culturais, a
“flexibilização” de direitos trabalhistas, dentre outras. Ou seja, parece evidente que falar em trabalho escravo nos dias de hoje não é um anacronismo.
No Brasil, grandes empresas incorrem neste crime. Empresas modernas,
detentoras de capital de ponta e altamente sofisticado. A superexploração
do trabalho humano redunda, para os empresários, em competitividade.
4 “Gato: empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou outros
serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado, trabalha
com parentes e com uma rede de ´fiscais`, e são acusados de diversos crimes, inclusive homicídios. Em
geral, os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem prestar serviço por
anos consecutivos para as maiores empresas.” (FIGUEIRA, 2004, p. 17, 122 et seq.).
59
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Bales, que estudou o trabalho escravo contemporâneo, afirma que [...] não há
trabalhadores pagos que possam competir economicamente com o trabalhador
não pago – escravo (2001, p. 20). Sobretudo, há que se chamar atenção para
o fato de que, esta forma de extração e acumulação faz parte de uma cadeia
que sustenta o modo de produção dominante no mundo atual e não deve
ser interpretada como um “acidente de percurso”.
É necessário estudar este aspecto da divisão do trabalho na sociedade
contemporânea como expressão de uma realidade em que o trabalho não
está desaparecendo, como supõem alguns. O que está desaparecendo é o
trabalho protegido, são as conquistas laborais nascidas das lutas sociais do
século XX e o trabalho escravo é uma das mais radicais formas de expropriação dos direitos trabalhistas e humanos dos trabalhadores. 5
Kevin Bales (2001, p. 19) afirma que no atual momento da história
mundial há mais pessoas escravizadas que “[...] todas as pessoas c apturadas na África na época do comércio transatlântico de escravos.”. Este autor
calcula que em todo o mundo atualmente existam em torno de 27 milhões
de pessoas. O italiano Walter Zanin (2007), que pesquisa a escravidão
contemporânea entre trabalhadores marítimos, cita estudo patrocinado
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), datado de 2005, onde se
estima em 12.300.000 o número mínimo de trabalhadores cativos em todo o
mundo. Bales (2001, p. 20) pondera que pode parecer pouco, se comparado
à população economicamente ativa mundial - cerca de 0,4 % desta -, mas
que se trata de pouco mais de um quinto da população da Itália e, mais que
isto, deve-se considerar que estas pessoas vivem a situação de escravidão
“sobre sua própria pele”, ou seja, que não deve ser nada fácil encontrar-se
nesta condição.
Em quase todos os países do mundo existe exploração de mão de obra
escrava, segundo Bales (2001) e, a exemplo do que acontece no Brasil, a
atividade econômica que congrega o maior contingente de trabalhadores
escravizados é a agricultura.
Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, processados pela
Comissão Pastoral da Terra, CPT (2008), indicam que de janeiro a outubro de
2008, 2.114 trabalhadores da agricultura canavieira haviam sido libertados
nas operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. No mesmo período,
o número de libertados na pecuária foi de 832. No ano anterior, a cultura da
cana participou com 3.060 libertados e a pecuária com 1.430. Entre os anos
5
A respeito da categoria trabalho escravo contemporâneo, ver Figueira (2004, p. 34 et seq).
60
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
2003 e 2006 a cana participara com 1.605 enquanto os libertados da pecuária
foram 6.510. Ou seja, a presença da agricultura na liderança do ranking das
atividades onde o trabalho escravo se fez presente é recente e não é falso
afirmar que tal se deve à corrida pela produção de matéria-prima para a
produção de agrocombustíveis, à ganância de empresários que buscam sobre
lucros por meio da exploração da mão de obra escrava e a necessidade de
controle governamental mais eficaz quanto aos processos de contratação
de trabalhadores e cumprimento das leis trabalhistas.
Ainda são dados da CPT que informam que, de 1995, quando foi criado o
GEFM do MTE, até 2008, o número de trabalhadores libertados do trabalho
escravo é de mais de 30.000, estimando-se em cerca de 20.000 o número
atual de pessoas em trabalho servil no Brasil, apenas no setor primário da
economia.6
Caracterizando a situação
Este texto é produto da análise de 90 depoimentos de trabalhadores
fugidos ou resgatados do trabalho escravo no estado do Pará, tendo estes
sido colhidos, em sua grande maioria, por agentes da Comissão Pastoral
da Terra nas cidades de Marabá, Tucuruí, Xinguara, Alto Xingu, no Pará e
de Araguaina, no Tocantins. No Maranhão, os depoimentos foram dados a
agentes do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia
e, ainda no Pará, a funcionários do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Rondon do Pará. Todos, no ano de 2007, no estado do Pará.
Em geral, os depoimentos são individuais, têm apenas um depoente.
Porém, alguns são prestados por dois, três e até quatro pessoas, sendo raras
as mulheres entre os reclamantes.
Ainda, em relação ao conjunto das informações recolhidas, é impactante
observar que o número médio de pessoas envolvidas em cada declaração é de
17,5 sujeitos submetidos à condição de escravidão, ou seja, cada declaração
prestada e posteriormente encaminhada às autoridades envolve, em média,
mais de 17 trabalhadores (que permaneceram na unidade de produção, por
ocasião da reclamação). Dados retirados de documento de trabalho da CPT
mostram, entre 1996 e 2008, o envolvimento de 55.830 trabalhadores nas
denúncias feitas naquele período.
6 CAMPANHA DA CPT CONTRA O TRABALHO ESCRAVO. Estatísticas em 03 out. 2008, em www.cptnacional.
org.br
61
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Foram destacados alguns aspectos dentre os mais significativos e mais
recorrentes observados no texto dos depoimentos:
Trabalho temporário
Anteriormente, foi feita menção à situação de proprietários rurais
modernos, detentores de fazendas altamente mecanizadas, possuidoras
de tecnologia de ponta, etc. quando se trata de caracterizar o empresário
que, majoritariamente emprega mão de obra escrava no Brasil rural. No
tocante à situação de vida e de trabalho daqueles que são vitimados, nem
todos os que exercem funções na propriedade em que se encontra a mão de
obra cativa são tratados da mesma forma. Quando o porta voz da empresa
mostra ao visitante alojamentos limpos e bem equipados, alimentação e
água de boa qualidade e respeito às obrigações trabalhistas, ele não está
faltando com a verdade. O que acontece é que tais condições são facultadas
aos trabalhadores permanentes, aos trabalhadores de escritório, aos técnicos e a outros trabalhadores que parecem “merecer” uma condição laboral
diferenciada daquela que é destinada ao trabalhador braçal e temporário.
Em outras palavras: equipamentos modernos, uso de tecnologia de última
geração, dentre outros, não significam relações de trabalho também modernas naquelas propriedades.
Assim é que as informações colhidas nos depoimentos estudados neste
trabalho mostram que 44% dos trabalhadores que compõem este grupo
permaneceram de 45 dias a 5 meses na propriedade, sendo 30% deles entre
2 e 4 meses, 44% entre 45 dias e 5 meses e 20% de 6 a 12 meses. Como
se vê, é alta a frequência de mão de obra rotativa entre os trabalhadores.
Neste grupo, entretanto, há exceções, como um trabalhador que está há
seis anos na fazenda e outro há dezessete em situação de escravidão. Outra
observação a fazer é que, em relação ao tempo durante o qual o trabalhador
permanece escravizado: alguns deles, apesar da temporalidade de suas
atividades nas fazendas, permanecem longos anos longe de suas famílias
(SUTTON, 1994). Tal se dá, sobretudo, em razão do endividamento a que se
fez referência anteriormente, que leva o trabalhador a permanecer ligado
a um empreiteiro ou mesmo a um proprietário, trabalhando em troca de
“casa e comida”, às vezes passando de uma fazenda a outra, ou de um gato
a outro, por não conseguir receber o suficiente para saldar suas dívidas, na
maioria das vezes fictícias, improváveis e impagáveis.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Atividades
A maioria dos trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo presta
serviços temporários. A eles está reservado, não somente o trabalho sem
proteção legal, o trabalho superexplorado, mas também, as tarefas mais
árduas, que demandam maior esforço físico e que prescidem de níveis de
instrução mais elevados. A grande maioria desses trabalhadores é analfabeta
ou semialfabetizada7 restando-lhes, assim, o trabalho sem qualificação, o
trabalho temporário, o trabalho informal. Como Bales (2001) observou na
pesquisa que realizou em vários países do mundo, eles “[...] são usados no
trabalho simples, não tecnológico, tradicional”(p. 19).
Nos 90 depoimentos foram citadas 126 ocupações. Isto porque muito
trabalhadores exercem diferentes atividades nas unidades de produção. Do
rol de ocupações citadas, a grande maioria declarou trabalhar na atividade
de roço8 na fazenda onde foi submetido ao trabalho cativo (46%). Eles assim denominavam o trabalho que faziam: roço, roço de mata virgem, roço
de juquira, roço de capoeirão, derrubada e roço de pasto. Os que cuidam de
cercas e de aceiros9 são em 10% e em seguida aparecem aqueles um pouco
mais capacitados, os operadores de motos serra, que derrubam árvores
operando uma máquina (9%). Em menor porcentagem, encontram-se, ainda,
as seguintes ocupações: aplicação de agrotóxico, carvoeiro ou carbonizador,
vaqueiro, carpinteiro, destocador, tratorista, plantador de milho, de capim
e extrator de palmito, dentre outras.
Endividamento
O mecanismo da dívida é especialmente perverso, pois justifica a imobilização do trabalhador, na unidade de produção, o que faz com que a dívida
aumente e que mais e mais se justifique a sua falta de liberdade.
Vejamos o que faz com que o trabalhador seja cativo da dívida: a aquisição de bens e produtos no armazém que geralmente pertence ao proprietário
da fazenda, ao gerente ou ao gato. Os locais de trabalho geralmente ficam
distantes do povoamento, do comércio local e os trabalhadores não têm alternativa senão comprar alimentos, cigarros, remédios e até equipamentos
de trabalho que os patrões são obrigados a fornecer, no chamado barracão
7 Pesquisa encomendada pela Organização Internacional do Trabalho, ainda não publicada, apresenta a
situação educacional de trabalhadores regatados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do MTE,
dentre outros aspectos. Ver, nesta obra, o artigo de Vieira e Bruno.
8 Pôr abaixo (vegetação), cortar, derrubar. Ferreira, (1999).
9 Vala construída entre a estrada e a cerca da propriedade, a fim de evitar o fogo, em caso de incêndio ou
queimada.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
da fazenda, sempre super faturados. Este sistema - conhecido desde os
tempos da escravidão africana - persiste até os dias de hoje e é largamente
comentado pelos autores dos depoimentos estudados.
Em nossa pesquisa encontramos que 87% das informações sobre endividamento se referem às compras feitas na fazenda. Um dos trabalhadores
afirma que quem estiver devendo o rancho, ou seja, a alimentação, fica
proibido de deixar a fazenda, mesmo que por motivo de saúde... e, ainda, que
os trabalhadores trabalham na empreita (tarefa); quando um trabalhador
não realiza as atividades não consegue ganhar nem o salário mínimo e já fica
devendo a diferença. Vale ressaltar que entre os trabalhadores prevalece a
ideia de que quem deve tem que pagar e que o trabalhador, mesmo expropriado de seus mais elementares direitos, não pode se afastar da fazenda
se “deve” ao patrão, ao gato etc. 10
Ameaças
As agressões e ameaças que os trabalhadores sofrem nas fazendas
contribuem para caracterizar o crime de trabalho escravo nos casos estudados, ao mesmo tempo em que representam desrespeito flagrante contra
a condição humana dos trabalhadores e contra seus direitos fundamentais.
No conjunto de depoimentos estudados, encontramos entre as referências
a ameaças e agressões 59% de casos de conhecimento de existência de
armas, presença de gato armado e presença ostensiva de armas, 15% de
referências a ameaças de morte em caso de denúncia às autoridades e 10%
de referências a agressões verbais, violação moral e humilhação, sendo estes
itens considerados isoladamente. Essa observação supõe que nos casos anteriores estejam implícitas tais agressões. Foram mencionados, ainda, dois
casos de agressão com arma de fogo por cobrança de salário, sendo que em
um deles, o trabalhador teria sido assassinado. Há, ainda, casos de agressão
física a menor de idade, ameaça de morte ao trabalhador que adoece, maus
tratos e amedrontamento. Os trabalhadores contam que conheceram um
trabalhador que desapareceu depois de ter dado queixa da fazenda e de
um fazendeiro que contava casos em que teria assassinado pessoas, com a
finalidade de impor medo aos trabalhadores. 11
10 Encontram-se referência a esta “prisão da alma” em Figueira (2004) e na pesquisa realizada a pedido
da OIT, anteriormente referida.
11 A partir da observação de um conjunto de ações agressivas, violências, agravos e atos desrespeitosos,
a CPT classifica as denúncias em três tipos: Tipo 1: Trabalho escravo caracterizado; Tipo 2: Trabalho
escravo provável e Tipo 3: Super exploração grave. São considerados indicadores de prática de violência
contra a pessoa: ameaça de morte, acidente de trabalho, agressão, danos, humilhação e assassinato,
dentre outros aspectos. Ver CANUTO et al. (2008), p. 113-119.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Transcrevemos um trecho de depoimento de dois jovens trabalhadores
– de 24 e 16 anos:
O serviço não está terminado, mas a turma não aguenta mais. Não
receberam nenhum dinheiro, moram em barracão de lona no meio do
mato, comendo farinha seca, pois a cantina do gato comeu todo nosso
dinheiro. Há 3 a 6 menores trabalhando, entre 16 e 17 anos. O motivo
da chamada é que ao reclamar seu acerto ao “gato”, um trabalhador
de nome Zé recebeu dois tiros do irmão do gato (uma bala em cada
perna), não se sabe se propositalmente ou por acidente. O gato não
prestou assistência e tentou impedir que os dois denunciantes ajudassem. Eles resolveram levar o companheiro numa rede, andando
por 34 quilômetros até o hospital.
Reclamações
Uma forma elucidativa de estudar o trabalho escravo como questão social em nossos dias tem sido a de procurar entender como os envolvidos nas
situações – os trabalhadores, seus familiares, seus empregadores, gatos etc. –
representam estas mesmas situações. Como os diferentes atores se referem à
questão da saúde do trabalhador temporário, por exemplo, ou à questão dos
seus direitos legais, à alimentação, à situação dos alojamentos etc.12
No levantamento das reclamações dos trabalhadores representados nas
90 declarações estudadas observa-se que perpassa uma mescla de lesão ou
ferida corporal com lesão moral ou ferida moral, a presença da violência
material e da violência simbólica que forma ou deforma consciências e que,
muitas vezes leva a mais violência. A privação material não se esgota em
si mesma, nesses casos. Ela vai além, ela atinge a autoestima do ofendido,
“humilhado”, como é corrente no vocabulário desses trabalhadores. 13A retenção do salário tem dimensões que ultrapassam o comprometimento do
poder de compra do trabalhador. A ausência de porta no recinto destinado
às necessidades fisiológicas significa muito mais que a falta de um pedaço de
madeira. Tudo isto tem uma dimensão moral que é preciso levar em conta.
Compõe o rosto de uma economia moral cujo alcance pode, acredita-se, ser
medido pelos riscos que os trabalhadores correm quando fogem, ou mentem
para sair da fazenda e denunciar o patrão, ou quando encobrem a saída de
algum companheiro.14
12 Ver ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007; DE CERQUEIRA et al. (2008).
13 Ver FIGUEIRA (2004), p. 34.
14 Ver GILLY, 1998; FIGUEIRA, 2004; THOMPSON, 1998; MOORE, 1987; PRADO, 2008.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Neste item, a retenção de salário é a informação mais frequente, com
52% de referências (o patrão simplesmente não paga, ou paga aos poucos).
Segue a esta, a menção à água suja, com 25%. Outras queixas são frequentes:
o trabalhador é obrigado a comprar no armazém da fazenda, não recebe
comida nos dias de descanso, como domingos ou dias em que se encontram
doentes; não é fornecida carne (dizem que carne, só pescando ou caçando),
trabalho sem folga semanal; trabalho sem equipamentos de segurança; o
patrão dá carne podre ou de gado morto por doença, mudança na combinação
feita no início do contrato; jornada diária excessiva (caso de trabalhador que
começa às 3 e termina às 19horas). A quase totalidade afirma a inexistência
de instalações sanitárias. São mandados a “fazer as necessidades” no mato.
Em 18% dos depoimentos os trabalhadores se queixam do isolamento que
sofrem no trabalho dentro da floresta.
Acidentes de trabalho
Dentre os 90 depoimentos aqui comentados, 22 deles mencionam
casos de acidente de trabalho. Além desses, um trabalhador afirmou ter
perdido um dedo e não ter recebido socorro; há referência a dois casos de
envenenamento por agrotóxico, sendo que um teria redundado na morte
do trabalhador e um caso de mordida de cobra.
Migrações
Um elemento importante para se entender a realidade do trabalho cativo
no Brasil contemporâneo - quiçá no mundo também – é a presença de pessoas
que migram de regiões empobrecidas em busca de melhores condições de
vida. Em alguns dos municípios mais pobres do Brasil, a população masculina em idade produtiva praticamente se ausenta durante a maior parte
do ano. São esses chamados bolsões de pobreza os maiores “fornecedores”
da mão de obra carente de capacitação para atividades mais sofisticadas,
desprovida de educação formal e moradora em locais onde não existe oferta
de trabalho – nem mesmo o menos qualificado. No grupo de depoimentos
estudados esta tendência se vê confirmada.
A observação das informações constantes dos documentos analisados
nesta pesquisa mostra que naquele grupo, 42% migraram do estado do Maranhão. Este dado confirma informações da OIT, que apontam naquele estado
o maior contingente de pessoas escravizadas no Pará ao longo dos últimos
anos. O segundo estado brasileiro a “fornecer” mão de obra para a escravidão
66
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
brasileira atual é o Piauí. 15 Estes dois estados brasileiros são responsáveis
por 61% desta mercadoria macabra, segundo fontes da OIT, de 2005 e estão
entre os mais pobres do país. 16 Em segundo lugar, encontram-se municípios
do próprio estado do Pará como regiões de origem dos trabalhadores. São
27% do total de reclamantes que declararam terem sido submetidos ao
trabalho escravo em regiões distantes de seus locais de moradia, mas dentro do estado onde residem. A porcentagem dos trabalhadores que foram
escravizados no mesmo município onde moram é de quase 9%.
Estudos afirmam de forma enfática que, ao longo da história dos povos,
o sujeito escravizado tem sido estranho ao local onde sua força de trabalho
é explorada, alguém que não mora no local onde é submetido ao trabalho
forçado. As pesquisas empíricas realizadas atualmente dão conta de que este
fato continua a ser observado e observável. 17 No universo de informações
colhidas nos depoimentos trabalhados neste estudo, como se pode registrar a partir dos dados anteriormente apresentados, esta tendência segue
vigente em nosso país.
Considerações finais
A análise do conjunto de depoimentos 2007 parece trazer à luz uma parte
da questão do desrespeito aos direitos humanos e aos direitos trabalhistas de
um contingente da população brasileira. Este, por falta de educação formal,
de profissionalização e em razão da presença hegemônica de uma economia
que cada vez mais prescinde do trabalho humano (hipertrofia do exército
de reserva de mão-de-obra), se vê na contingência de trocar sua força de
trabalho por um prato de comida e é impelida a migrar em busca do sonho
de ter um emprego e receber algum dinheiro, mesmo que isto implique na
perda da liberdade e na sujeição a humilhações. Observe-se que apenas
recentemente este tema vem ganhando espaço e legitimidade, mesmo que
há décadas o problema é denunciado e estudado. Isto significa, parece-nos,
15 Ver Prado, 2008.
16 Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para 2005 informam que o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Maranhão era de 0, 683 e do Piauí, de 0,703. O maior IDH
do Brasil encontra-se no Distrito Federal e era de 0,874. Estes dois estados brasileiros encontravam-se
entre os nove de menor IDH do Brasil naquela ocasião. O IDH é uma medida comparativa que engloba
três dimensões: riqueza, educação e esperança média de vida. É uma maneira padronizada de avaliação
e medida do bem-estar de uma população. O índice foi desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, e vem sendo usado desde 1993 pelo PNUD no seu relatório anual. Disponível em:
<http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3039&lay=pde> Acesso
em: 05 fev.2009.
17 Ver Figueira 2004.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
que muito ainda há que ser pesquisado e trazido à tona nos mais diversos
campos da produção intelectual brasileira.
O endividamento, a temporalidade do trabalho, as diversas formas de
violência, as ocupações a que se dedicam os trabalhadores, a presença recorrente de determinados tipo de queixas, etc. levam a crer que, no campo
das ciências sociais, da ciência do direito, da ciência econômica, da educação,
das ciências da saúde, dentre outras, muito se pode estudar e contribuir para
extinguir o crime do trabalho escravo.
O estudo das ameaças impostas aos trabalhadores - quem ameaça, como
ameaça, as formas como estes recebem as ameaças e de que maneira reagem
às mesmas, as diversas manifestações de resistência - mais ou menos veladas
-, por exemplo, são elementos que, se bem entendidos, podem contribuir para
a criação de políticas públicas visando à resolução do problema. O mesmo
se pode afirmar em relação à questão da temporalidade e da rotatividade
do trabalho humano braçal em propriedades altamente mecanizadas e às
formas alternativas de resolução da questão, respeitando-se os direitos
dos trabalhadores. O mesmo raciocínio serve para o rol das reclamações
apresentas pelos trabalhadores etc.
Ao mesmo tempo, se observa que o mapa do trabalho escravo reproduz
a geografia do cultivo dos produtos primários mais cotados no mercado de
exportação brasileiro. As levas de trabalhadores rurais sem terra que migram
Brasil afora seguem a rota da monocultura de exportação, das commodities
que, das bolsas de valores dos grandes centros de negócios, jogam com a
vida de trabalhadores pobres brasileiros e também de outros países.
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69
3
A escravidão contemporânea:
relações existentes e estudo de caso
Introdução
Ricardo Rezende Figueira
Adriana da Silva Freitas
Andrea Kazuko Murakami
Vera Lúcia Cavalieri
Este artigo apresenta resultados parciais do estudo realizado em relatórios de fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (GM/MTE), cujas cópias foram cedidas pela
Procuradoria Geral da República ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo
Contemporâneo (GPTEC). Inicialmente a equipe se propõs a refletir a respeito das relações de parentesco e amizade, do perfil dos diversos atores
envolvidos com situações de escravidão contemporânea1 e da conexão entre
tais relações e a resistência e a denúncia. Por diversas razões, a proposta
inicial encontrou limitações, como se verá ao longo do texto, e outros aspectos foram acentuados.
O recorte estabelecido na pesquisa abrangeu os relatórios das fiscalizações efetuadas no estado do Pará que constam no “Cadastro de Empregadores” do MTE, previsto na Portaria n°. 540/2004, conhecido como
1 Crime previsto pelo no Art. 149 do Código Penal Brasileiro (CPB) de 1940 que trata das condições
análogas à de escravo; com nova redação. Ver nota 8.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Lista Suja (LS).2 Ter o nome no cadastro significa que o governo brasileiro
considerou que naquele local houve trabalhadores mantidos em condições
análogas à de escravo.
A publicação do Cadastro se deu antes da Portaria, em novembro de
2003. O estudo abrangeu seis listas compreendidas entre esta data e dezembro de 2007: a 1ª lista e da 11ª (agosto de 2006) até a 15ª (dezembro
de 2007). O universo referido de pesquisa das LS abrange 113 relatórios de
fiscalizações realizadas entre 1996 e 2005.
O artigo parte de um dos casos da LS, o da fazenda São Roberto, verificando as conexões do proprietário com outras unidades de produção e, a seguir,
faz diversas considerações sobre o estudo realizado nas respectivas LS.
O tema em questão
A escravidão por dívida começou a ser estudada mais intensamente a
partir dos anos 1970, especialmente em função das consequências do modelo
de desenvolvimento implementado na Amazônia pelo governo militar com
as chamadas frentes de “expansão” ou frentes de “pioneirismo” e o recrudescimento daquilo que era identificado como o sistema de peonagem.3
Há diversos estudos publicados sobre a escravidão antiga e contemporâ4
nea ; além de livros como depoimento, ensaio, romance, biografia.5 Neste
estudo não revisaremos tais autores, o que foi realizado em outra ocasião
(FIGUEIRA e PRADO, 2008, p. 91-100).
Em documento do poder executivo é relevante a introdução da categoria
em 1986 no próprio título de um de seus relatórios: Trabalho Escravo, que
foi divulgado pela Coordenadoria dos Conflitos Agrários do MIRAD-INCRA
(ALMEIDA, 1988, p. 67). Alguns anos depois, em 1992, o Governo Federal
voltou a admitir oficialmente a existência do problema, através de uma
resposta do embaixador Celso Amorim, na Organização das Nações Unidas,
em Genebra, a uma denúncia da CPT.
Também em 1992, o Fórum Nacional de Combate à Violência no Campo,
promovido pela Câmara dos Deputados em Brasília, discutiu a escravidão,
2 A publicação, semestral, abrange o país, e, por ordem judicial, o nome da unidade de produção pode ser
retirado definitiva ou temporariamente da LS.
3 Veja (Martins, 1981, p. 112-113). O debate acadêmico para tentar melhor explicar esse processo e os
que o antecederam de entradas de gentes e ciclos econômicos sobre a região ainda são apresentados
como “devassamentos” ou “ondas”. Sobre isso, cf. Horácio A. de Sant´Ana Júnior (2004, p. 62-64).
4 Entre outros autores: Abbagnano, 2000, p. 347; Gorender, 1978, p. 60-61; Vilela, 1997, p. 100-101;
Martins, 1994, p. 13-14; 1999, p. 160-162; Bales, 2000, p. 19-22; Esterci, 1994; Esterci e Figueira,
2001; 2004; Castilho, 1999, p. 90.
5Davatz, 1980; Cunha, 1922; Castro, 1945; Audrin, 1946; Élis, 1987; 1956.
72
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
apresentou propostas para que se intensificassem e melhorassem as fiscalizações do MTE e da Polícia Federal, sugeriu uma maior clareza do art. 149 do
Código Penal Brasileiro (CPB) e a complementação de diversos dispositivos
legais, com a criminalização das condutas detectadas e maior rigor legal
quanto às punições. Diversos projetos de lei tramitaram na Câmara dos
Deputados, bem como no Senado, além das modificações no art. 149, em
2003. E, desde 1991, foi apresentado o Projeto de Emenda Constitucional
(conhecida como PEC 438/2001) estabelecendo sanção de perda de gleba
onde for constatado o trabalho escravo.
Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso utilizou a categoria
trabalho escravo em uma entrevista radiofônica, e apresentou como diferença
entre a forma atual de escravidão e a do século 19, o fato de que o escravo do
passado sabia quem era seu senhor. Contudo, ao se manifestar em documentos escritos e, ao criar um órgão responsável para combater o crime, o governo
preferiu utilizar palavras mais genéricas como “trabalho forçado”.6
A partir de 2003, a postura do Estado sofre alteração. O presidente Luís
Inácio Lula da Silva e seus ministros valeram-se regularmente da categoria trabalho escravo. Foi lançado o Plano Nacional para a Erradicação do
Trabalho Escravo e foram desencadeadas medidas para implementá-lo. Ao
mesmo tempo, a categoria tornou-se cada vez mais frequente nas declarações do poder judiciário, aparece nos nomes de conferências e seminários
promovidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil
ou por outros parceiros. Por força de construção social, esta modalidade
de trabalho, tem sido reconhecida como não apenas parecida, mas como
escrava. Os que empregam a categoria consideram que sua utilização não
obscurece ou confunde o seu significado.7
O caso da São Roberto
Inicialmente, o grupo de pesquisa selecionou dez fazendas, entre as unidades de produção fiscalizadas, em 2002 e presentes na LS. Destas, a metade
era composta por fazendas que envolviam o maior número de “vítimas” relacionadas por parentesco e ou amizade entre si e a outra metade por unidade
6 O Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), criado para o “combate ao trabalho
escravo”, como acentuam a Secretária de Fiscalização do MTE e a Coordenadora do próprio GERTRAF
(Vilela e Cunha, 1999, 37).
7 Em vista a nova redação do art. 149, a categoria tem sido compreendida por Procuradores e Juízes do
Trabalho com um sentido amplo: basta haver condições degradantes de trabalho para ser tipificado como
crime de “trabalho análogo à de escravo”. A Lei n. 10.803/2003 altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848
(dezembro de 1940), para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se
configura condição análoga à de escravo.
73
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de produção nas quais não se identificavam as mesmas relações. A tentativa
era descobrir se havia diferenças nas formas de resistência das chamadas
vítimas comparando um e outro caso. Apesar do esforço, as informações
se mostraram insuficientes para conclusões satisfatórias. Diante disso, a
pesquisa tomou como eixo de análise uma fazenda. Como nos relatórios de
fiscalização constavam apenas as declarações dos trabalhadores aos auditores fiscais, o Grupo de Pesquisa utilizou como complementodepoimentos
prestados à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outros documentos contidos
no acervo do GPTEC.
A escolha do estudo relacionado a São Roberto, no município de Santana do Araguaia, no Pará, incluído na primeira LS, se deu em função da
presença do proprietário não apenas nesta, mas em outras situações de
escravidão desde 1998. Além disso, envolvia um número significativo de
pessoas, com relatos diversificados e boa parte vinda de um mesmo estado,
o Maranhão.
Quem é o fazendeiro
Antonio Lucena de Barros, conhecido como Antônio Lucena ou Maranhense, era proprietário da fazenda São Roberto, em Santana do Araguaia,
ou presidente do Conselho da Administração da empresa.8
Ele aparecia em diversos relatórios de fiscalização, também como
proprietário da Matão9 e da Vale do Rio Fresco10; como “integrante” da
Associação dos Fazendeiros do Vale do Rio Fresco11, que seria também o
nome de uma fazenda; e como administrador da fazenda Santa Ana.12 Todas
as cinco unidades de produção no Pará.
Acrescidas a tais informações, que às vezes parecem confusas, o Maranhense era personagem em outras histórias, como aquelas das fazendas
Garupa13 em 2002, São Roberto14 nos anos 1998, 2002 e 2004, e Vale do Rio
Fresco, em 2003 e 2006. Influente e rico, o fazendeiro estaria envolvido com
crimes financeiros, teria sido preso em 2003 por utilizar trabalho escravo, e
8 Ministério Público Federal/Procuradoria Geral da República (MPF/PGR) 1472/2003-85 (p. 85).
9 Ele teria vendido a fazenda Matão para a Agropecuária Vista Alegre que também foi fiscalizada em abril
de 2002. MPF/PGR 1410/2003 – 73, MP. 92.
10 MPF/PGR 3144/2003-13.
11 MPF/PGR 1414/2003-51, p. 104.
12 Cf. ofício/Incra/SR(27) de 25 jul. 03, da Superintendente Regional/Incra/SR-27 in p. 124, doc MPF/PGR
1414/2003-51.
13 MPF/PGR 5927/2003-31.
14 Em julho de 2003 foi incluído na LS e foi retirado em dezembro 2007.
74
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
não estava só: seu pai, José Silva Barros, apareceu também como proprietário
de Vale do Rio Fresco, que constava em LS.15
Antônio Lucena também foi acusado de participar de um sistema de
lavagem de dinheiro com o banqueiro Daniel Dantas16 por meio do aluguel
de terras para criação de gado.17 E ainda foi apontado, em depoimento à
Procuradoria da República em 2001, como um dos “laranjas” do ex-deputado
federal, senador e governador Jader Barbalho18 na atividade de extração de
madeira.19
O problema
A relação de trabalho é acompanhada por um conjunto de práticas tipificadas, conforme a autoridade coatora, como crime – manter pessoas em
trabalho “análogo a de escravo”, cárcere privado, violência física, lesão corporal, assassinato, danos ambientais e fraude contra o sistema financeiro - e
violações às leis trabalhistas – não assinar Carteira de Trabalho e Previdência
Social, não recolher os direitos previdenciários, não pagar salário e férias,
condições inadequadas de habitação, transporte, alimentação e segurança.
No intuito de apurar denúncias oferecidas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Redenção e das CPT de Marabá e Xinguara20, o
Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GM), composto por agentes do MTE,
Polícia Federal e pela Procuradoria do Trabalho do Distrito Federal, realizou
uma fiscalização, entre 5 e 20 de abril de 2002, em oito fazendas, entre elas
a São Roberto e a Associação dos Fazendeiros do Vale do Rio Fresco.21 A
equipe localizou 197 trabalhadores22 na São Roberto em uma empreitada
que consistia em roço de juquira, desmatamento com motosserra e trator e
15 Em dezembro de 2004 foi incluída na LS e se mantinha ainda em julho de 2009.
16 Daniel Dantas, banqueiro, foi indiciado por crimes financeiros como evasão de divisas, lavagem de
dinheiro, gestãofraudulenta e formação de quadrilha, em 2008. (www.globo.com, 27/04/2009)
17 Ele ainda teria vendido algumas de suas terras por 210 milhões para a Agropecuária Santa Bárbara, do
grupo de Daniel Dantas. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,dantas-correrisco-de-perder-terras-que-comprou-no-para,210169,0.htm>. Acesso em 30 de julho de 2009, matéria
de 22 jul.2008.
18 Jader Barbalho era também acusado de formação de quadrilha e desvio de verbas da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM.
19 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u67442.shtml>. Acesso em 19
jun.2009. Matéria de 24 fev.2005.
20 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 2.
21 MPF/PGR 1414/2003-51, p. 104.
22 Número de trabalhadores encontrados definido após análise do relatório de fiscalização, que indica
o número de 186 empregados em seus autos de infração e 171 retirados ao relatar a ação (MPF/PGR
1472/2003-85, p. 3).
75
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
construção de cercas.23 Entre as vítimas, havia 15 mulheres e três menores
de idade. Ora, a presença dos menores no trabalho insalubre de desmatamento violava as leis.24
Os trabalhadores estavam alojados em barracas cobertas de plástico, sem
paredes laterais, banheiro, proteção contra as intempéries do tempo e ataques
de animal, local para tomar banho e acesso à água potável. A fazenda não
oferecia, como determina a lei para as frentes de trabalho com dez ou mais
trabalhadores, treinamento em segurança, higiene do trabalho, prestação de
primeiros socorros e ainda, dificultou o livre acesso do Agente de Inspeção às
dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista. Diante disso, os funcionários do GM lavraram 13 Autos de Infração.25 A
situação encontrada foi considerada de trabalho escravo, fraude à legislação
trabalhista e descumprimento às normas de proteção ao trabalho.26
Vale considerar a existência ainda na São Roberto de 13 trabalhadores
acidentados e com malária27 e a fazenda não lhes disponibilizou atendimento
médico, remédio ou transporte em caso de urgência. A situação se agravava pela
ausência de equipamentos de proteção individual – botas, capacetes e mosquiteiros – e de condições sanitárias – não havia banheiro e nem água potável para
consumo. As atividades desenvolvidas corroboraram as declarações de que
havia acidente de trabalho, com feridas feitas por galhos e troncos de árvores,
além das reclamações de dores no corpo por excesso de esforço físico.
Em 2003, na fazenda Vale do Rio Fresco28, em Cumaru do Norte, foi
constatada a presença de 264 trabalhadores do Tocantins, Maranhão e
Piauí, em condição análoga à de escravo. O fato justificou a prisão de Antonio Lucena, pela Polícia Federal, no sul do Pará, por determinação do juiz
substituto da Justiça Federal de Marabá no Pará, Herculano Martins Nascif.
Outras cinco pessoas29 foram presas com ele, todas acusadas de pertencer a
um grupo criminoso com atuação nos estados do Tocantins, Piauí e Pará. As
23 Deste total, 15 eram cozinheiro (a)s, 11 mulheres e 4 homens.
24 Art. 7º, XXXIII da Constituição Federal de 1988.
25 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 13-14, 67-79.
26 Idem, p. 18.
27 Ibidem, p. 116.
28 MPF/PGR 3144/2003-13.
29 A prisão foi realizada em 27/fev. 2003. Cf. a denúncia: “Eles são acusados também por formação de
quadrilha, frustração de direito assegurado por lei trabalhista, sonegação previdenciária, exposição da
vida e da saúde de pessoas a perigo e destruição de floresta considerada de preservação permanente”
Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ajb/2003/02/28/ult740u9318.jhtm>. Acesso em 31/jul.2009,
matéria de 28/fev. 2003; e, <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/137955/fazendeiros-presos-pormanter-trabalho-escravo>. Acesso em 17/jun.2009, matéria de 28 mar. 2003).
76
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
prisões foram pedidas por um grupo de procuradores federais articulados
nacionalmente.30 No relatório de fiscalização da Fazenda Vale do Rio Fresco
a equipe do GM destacou que:
[...] há mais de um ano, fomos portadores de um dossiê feito pelo
Vereador Pedro Tindô, de Redenção, em que faz graves acusações
sobre o “Maranhense” e outros. “Maranhense” [...] é de grandes negócios na região: imobiliária, agropecuária, rede de televisão (Globo)
e outros. É conhecido como o homem que mais desmata na região de
Cumaru do Norte, Santana do Araguaia e São Félix do Xingu; valeria
uma devassa fiscal (p. 7).
Imobilização sob pretexto de dívida
Durante a empreita, dado o tamanho da fazenda (13.068 ha.) e sua distância em relação à sede municipal, o direito de ir e vir dos trabalhadores foi
prejudicado. Entre o local do trabalho e a cidade de Redenção, o trabalhador
precisava percorrer 320 km. 31
Outros fatores limitaram a saída dos trabalhadores, como a existência
de fiscais (capatazes) e gatos (empreiteiros) armados32 e a falta de pagamento, prometido somente para o final da empreita.33 Porém, contrapondo
a declaração da maioria do grupo, um trabalhador afirmou que se alguém
quisesse sair, receberia o pagamento.34
Um dos trabalhadores – libertado anteriormente da Fazenda Castanhal,
no Tocantins, em dezembro de 2001, pelo MTE – já havia prestado serviço na
São Roberto em 2001 por quatro meses e declarou: “[...] não valeu a pena, mas
voltei porque não tinha opção [...] nunca sofri ameaça, nem agressão física.”,
mas destacou que o fiscal andava com uma espingarda. Também relatou que,
para sair da fazenda, teria que ir de carona no carro da unidade de produção
até Redenção e esperar uns dez dias para receber e, nesse ínterim, seria ele
próprio responsável pelo pagamento do hotel.35
Nas declarações dos trabalhadores não é relatado diretamente o sistema
de dívida com o cerceamento do direito de ir e vir, apesar de haver o relato
30 Constam como procuradores federais na ação: Mário Lúcio Avelar (Tocantins), Raquel Dodge, Ubiratan
Cazetta (Pará), pelo procurador do Ministério do Trabalho, Lóris Pereira Júnior e pela subprocuradorageral da República e procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Maria Eliane Menezes de Farias.
31 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 25.
32 Idem, p. 211.
33 Ibidem, p. 118.
34 Ibidem, p. 121.
35 Ibidem, p. 139.
77
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
acerca do gato Arnaldo36, por exemplo, que comprava as roupas, botinas,
fumo e remédios e descontava, posteriormente, de seus salários. É notável o
destaque dado ao não recebimento do salário por meses, a falta de socorro,
e a compra dos materiais necessários na cantina para posterior desconto
no salário, prática conhecida como sistema de barracão ou truck system,
mecanismo relatado como dívida pelo Grupo Móvel.
Um exemplo de contraponto é o das declarações dos trabalhadores da
Fazenda Rolemaq37, que afirmaram serem impedidos de sair antes de saldar a dívida contraída na cantina. Nos dois casos, embora o meio utilizado
para manter o trabalhador na fazenda seja idêntico – a dívida – é possível
identificar uma diferenciação no trato e percepção do problema.
No que se refere à Fazenda Boa Esperança38 – localizada em Canaã dos
Carajás e fiscalizada em dezembro de 2002 – outra estratégia era utilizada
para imobilizar os trabalhadores, a distribuição regular noturna de bebida
alcoólica. Ademais, eles só poderiam sair da fazenda após o término de todo
o serviço, quando então receberiam seus pagamentos.
Quem denuncia
Para que um crime seja punido é necessária uma investigação. Nos casos
de trabalho escravo, em geral existe a denúncia e pode ou não haver fiscalização. A CPT, por exemplo, lamenta que o expressivo número de denúncias
que apresenta não é alvo de fiscalização. Mas também, há fiscalização que não
é fruto da denúncia. Pode ser resultado de uma ação regular, preventiva ou
acidental. E, às vezes em uma mesma operação, há a denúncia e o acaso.
A denúncia chega ao conhecimento do MTE, através da pessoa prejudicada ora por pessoas, ora por instituições que as obtiveram através de
trabalhadores que viveram o problema, presenciaram ou souberam por
terceiros. Em um levantamento nos arquivos do GPTEC, quanto ao período
compreendido entre 1972 a 2009 no Pará, se constata que o MTE acolheu
denúncias de diversas fontes. Os trabalhadores, em vez de irem direto ao
MTE, em muitos casos procuraram antes algum órgão público – IBAMA, Polícia Civil e Federal, Ministério Público Federal, Cartório, Promotoria e Câmara
Municipal, Conselho Tutelar –, a sociedade civil – STR, Diocese e Centro de
36 Este gato era conhecido como “Grande” e arregimentava vítimas em Redenção/PA.
37 Localizada em Água Azul do Norte/PA, a fazenda foi fiscalizada de abril a maio de 2003. Foram 13 os
trabalhadores libertados (MPF/PGR 4651/2003-54, p. 5).
38 Propriedade de José Braz da Silva (na época prefeito da cidade de Unaí/MG). MPF/PGR 4627/2003-35, p.
116.
78
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) – em especial, a CPT.
Quanto à fiscalização realizada na fazenda São Roberto, houve uma
denúncia coletiva, formulada e apresentada no Pará pelo STR de Redenção,
e pela CPT de Marabá e Xinguara. Em diversos casos, para que a fiscalização
seja eficiente, um dos trabalhadores denunciantes acompanha os auditores
como aconteceu na São Roberto. O homem participou de empreitada e, por
isso, conhecia o local de desmatamento. Contudo, no caminho para a São
Roberto, como passavam pela fazenda Associação dos Fazendeiros da Vale
do Rio Fresco, decidiram fiscalizar também esta unidade de produção, o que
gerou um problema. A notícia se difundiu e os fazendeiros se prepararam
para dificultar a ação dos auditores e da equipe nas demais propriedades,
conforme constata o relatório assinado pela coordenadora da equipe.39
No ano anterior, em 2001, o GM tentou realizar uma ação na São Roberto.
O insucesso se deu por ter se atrasado e não dispor de aparato de segurança
compatível, segundo um dos auditores. O resultado da ação, de fato, depende
de uma série de elementos, inclusive da rapidez com que ela é realizada e do
proprietário não dispor de tempo para desfazer os vestígios do crime.
Em que situação há a denúncia? Em relação à Fazenda Consolação40,
fiscalizada em 2002, a decisão e o modo de formular a denúncia surgiram
inesperadamente. Dois jovens, de igual faixa etária, admitidos no mesmo
dia, brigaram entre si e foram dispensados. Eles saíram a pé e no caminho
encontraram um trabalhador libertado pelo GM em outra propriedade.41 O
homem, mais experiente pelo contato que havia tido com as autoridades,
lhes apresentou um folheto da campanha de erradicação do trabalho escravo da CPT. Os dois tinham agora novos dados sobre o que era considerado
trabalho escravo e o caminho mais claro para agir.
No caso, a denúncia foi realizada por dois denunciantes, mas poderia
ser por uma pessoa ou por um grupo maior, como aconteceu contra a fazenda Señor, de Dom Eliseu, no Pará.42 Dezessete adultos, acompanhados
de seis crianças, fugiram e foram ao CDVDH de Açailândia, no Maranhão,
onde apresentaram uma queixa contra a unidade de produção. Salvo uma
39 “Fomos desestimulados (a prosseguir nas fiscalizações) pelo Sr. José Eustáquio Caetano Teixeira, responsável pela Associação, ele e alguns fazendeiros, afirmavam que ao saberem da nossa presença as
fazendas estavam sendo esvasiadas” (sic). De fato tiveram dificuldades em localizar os trabalhadores que
haviam sidos deslocados para outras áreas, pois havia árvores e troncos interditando propositalmente
a estrada, como revelam fotos do relatório (MPF/PGR 1472/2003-85: p. 17ss).
40 Localizada em Brejo Grande do Araguaia e propriedade de José Ribamar Oliveira (MPF/PGR 4655/200352).
41 Da fazenda do Zucatelli, cf. depoimento concedido à CPT de Marabá.
42 MPF/PGR 7957/2003-82, p. 100-111.
79
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
pessoa do Piauí, os denunciantes eram do Maranhão. Quanto aos adultos,
três eram do mesmo município, Açailândia, e cinco de uma região próxima,
Itinga; da região central do estado, uma pessoa era de Pio XII, outra de
Esperantinópolis, duas de Altamira e três de Alto Alegre; do norte, uma de
Encruzo. Como eram do Maranhão e alguns do mesmo município, poderiam
ter construído relações mais próximas de amizade e, por isso, controles
sociais mais profundos, noções de fidelidade e responsabilidade mútua
maiores. Dominavam uma mesma tradição. Eram de certa forma estabelecidos entre si, mas outsiders43 em relação ao Pará de onde vinham. Lá eram
imigrantes temporários, estavam em trânsito, e não tinham a quem buscar
socorro. Estranhavam e eram estranhados.
Diversas pesquisas demonstram que indignar-se e formular uma denúncia não é algo simples para os trabalhadores; principalmente quando são
oriundos da mesma região e não apenas pela exposição física a retaliações.
Fugir da fazenda porque se tem uma dívida pode ser considerado um ato de
desonestidade, de roubo e obrigaria o fugitivo a ter que se explicar para si,
para os parentes e conhecidos. E situação menos complicada se dá quando
o trabalhador não conhece nem é conhecido; quando não precisa prestar
contas morais para ninguém e os riscos físicos forem menores. Ele tem a
liberdade de recompor seus valores e construir um novo jeito de ser compreendido e aceito.44 No caso da Señor, havia uma relação de conhecimento
entre alguns do grupo, o acontecimento que gerou a indignação e desencadeou motivações até para a fuga, foi a suspeita de que alguns teriam roubado
pimenta. Dois foram presos e interrogados. Até então os trabalhadores aparentemente estavam tranquilos, inclusive alguns estavam na fazenda havia
dois anos. Contudo, a violência moral e física sofrida, agravada pela presença
de menores e mulheres, contribuiu para a atitude do grupo.45
Rede de aliciamento
Há pessoas atraídas por promessas que emigram do local onde moram,
em companhia de amigos e parentes, para outras regiões do país ou do
exterior; outros, vão sós, sem relações de parentesco, compadrio, amizade
ou vizinhança anteriores estabelecidas. Nos casos estudados, elas foram
43 Empregando uma categoria cara a Elias e a Scotson (2000).
44 Sobre as bases sociais que justificam a indignação, veja Moore, 1987 e Figueira, 2004.
45 Entre as 153 vítimas, havia 18 menores e 48 mulheres. (MPF/PGR 1472/2003-85, p.2 e 106).
80
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
aliciadas46 especialmente no nordeste, para atividades no Pará ligadas à
pecuária (roçar, derrubar florestas, plantar capim, limpar pasto, erguer,
recuperar cercas ou proteger as cercas e os pastos do fogo), a fruticultura
(extração, colheita ou beneficiamento de açaí, palmito e pimenta) e a carvoaria (corte de madeira, abastecimento de forno, carbonização, retirada e
ensacamento do carvão)47 ou para executar diversas dessas atividades ao
mesmo tempo no Pará.
Uma vez nos imóveis, os recrutados em princípio para sair devem pagar
o “abono” eventualmente recebido no ato do recrutamento, os gastos com
a viagem e a alimentação e os instrumentos de trabalho adquiridos em
uma cantina na própria fazenda, onde os preços superam a remuneração
prometida. Sair depende de fatores, tais como a responsabilidade moral
dos recrutados com a dívida, as ameaças psicológicas ou físicas, a distância
entre o local do trabalho e o de recrutamento, a eficiência do sistema de
coerção para “imobilizar” o trabalhador. Longe de casa, de parentes, amigos
e conhecidos que poderiam apoiá-lo, o aliciado fica mais vulnerável a todo
tipo de pressão e exploração.
Importante considerar aqui a rede de aliciamento que fomentava a
empreitada na São Roberto. Baseado em declarações das vítimas, foi possível identificar a atuação efetiva de três gatos, Alacides, Iron e Arnaldo.
Entretanto, um dos trabalhadores afirmou também conhecer outros dois
gatos, Gonzaga e Cantô, porém não foi encontrado outro registro acerca
destes no relatório.48
Os trabalhadores da Fazenda São Roberto foram aliciados em Redenção,
Pará, João Lisboa, Balsas e São Raimundo das Mangabeiras, Maranhão. O gato
Iron, que já havia sido indiciado no Inquérito Policial instaurado durante
a fiscalização na Fazenda Rio Dourado arregimentava os trabalhadores em
Redenção, Pará.49 Enquanto Alacides realizava suas contratações geralmente
no Maranhão, de onde era natural, apesar de residir em Redenção, aonde
também recrutava trabalhadores – pelo menos cinco50 destes teriam traba46 O aliciamento de trabalhadores de uma região para outra do território nacional é crime previsto pelo
CPB, art. 207, caput e § 2º.
47 Sobre o tema da carvoaria, cf. Elizabeth Dias, 2002, p. 272.
48 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 20 e 127.
49 Idem, p. 25.
50 Os trabalhadores, em um grupo composto por 51 pessoas, foram arregimentados em Estreito e Imperatriz, Maranhão, e levados pelo gato Altamira, para a Fazenda Matão. Com base nas declarações destes
trabalhadores, constata-se que a permanência na unidade de produção foi de cerca de três meses. De
acordo com um dos trabalhadores, não houve saldo, pois “a cantina comeu tudo”, e ainda ficou sem
receber por oito alqueires.
81
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
lhado na Fazenda Matão, supracitada. Além disso, um grupo de cerca de 40
pessoas foram contratadas por ele em Balsas/MA.
Uma prática comum no aliciamento é o engodo – promessas de boas condições de remuneração e trabalho para atrair a vítima –, como afirmou um menor
de idade libertado na São Roberto. Segundo ele, a proposta de pagamento foi de
R$ 200,00 e ao chegar à empreitada mudou para R$ 100,00.51 Em declaração,
o gato afirmou que “quando vai arregimentar o pessoal no Maranhão fala o
valor aproximado do que cada um vai ganhar, sendo combinado o serviço e o
preço efetivamente pago quando chega à fazenda”.52
Um dos elementos primordiais que aprisiona o trabalhador é a dívida.
Em geral, começa no aliciamento – o chamado adiantamento ou abono. A
partir desse ponto ele é submetido a um sistema de crescente endividamento. No que tange à São Roberto, os adiantamentos foram descontados
das verbas rescisórias dos libertados.53 Contudo, não foi possível identificar
quais foram considerados, se os referentes à cantina ou aos pagamentos já
realizados, pois alguns trabalhadores receberam parte da remuneração antes
da fiscalização. Em relação à fazenda Rolemaq, a fiscalização não permitiu
que fossem efetuados descontos irregulares no salário dos empregados,
somente os adiantamentos feitos em moeda corrente foram subtraídos do
total a receber.54 Cabe observar, que esta decisão do GM com relação à São
Roberto – o que também se repete em outras55 fazendas – é uma contradição,
que implica na legitimação do sistema de endividamento criado pelas UP.
Uma vítima, que afirmou ter sido aliciada por Alacides com um grupo de
11 pessoas, relatou que sua conta do hotel e de refeições foi paga pelo gato,
como forma de adiantamento. Na empreitada ficou sob a coordenação do
gato Daniel, com quem acertou trabalho livre, pois receberia gratuitamente
dele a alimentação e a foice, porém sua remuneração era menor – o que pode
indicar um desconto indireto referente à alimentação. Ele fazia retiradas
na cantina com outro gato, o que aumentava sua dívida. No momento da
fiscalização o trabalhador não tinha ciência do saldo devedor e não havia
recebido nenhum valor pelo serviço.56
51 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 95.
52 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 99.
53 MPF/PGR 1472/2003-85, Ibidem, p. 252-415.
54 MPF/PGR 4651/2003-54, p. 10.
55 Como por exemplo: a Fazenda Rio Tigre, localizada em Santana do Araguaia, e fiscalizada de 16 a 22 de
junho de 2004; a Fazenda Cinco Estrelas, localizada em Marabá/PA, e fiscalizada em agosto de 2002.
56 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 168.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Por outro lado, os trabalhadores coordenados por Alacides, em sua
maioria, estavam sob o sistema cativo, quando a alimentação é descontada da
remuneração. Segundo declaração, este gato era uma pessoa conhecida nos
municípios de aliciamento do Maranhão. Diante disso, o controle das vítimas
sob sua responsabilidade era feito “por cabeça”, não havendo registro dos
trabalhadores. O gato declarou que “a maioria dos trabalhadores é conhecida,
não sendo preciso haver anotações do trabalho feito ou do valor combinado”.57
Obstáculos ao grupo móvel
No que tange ao momento da ação do GM na fazenda, os auditores fiscais
ressaltaram a falta de cooperação tanto do gerente, dos gatos e advogados
da fazenda, quanto do próprio fazendeiro. O que ocorreu de forma distinta
na Fazenda Olivence58, fiscalizada em fevereiro de 2003, onde não houve
resistência à atuação do GM, entretanto, a presença de repórteres de um
jornal de circulação local chamado “A Notícia” foi considerada como “fato
estranho” pelo GM, pois aqueles fotografavam o “rosto” de auditores fiscais
e trabalhadores. Ademais, o jornal “Correio de Tocantins” escreveu notas
hostis em relação à fiscalização móvel.59
Outro fato relevante foi ressaltado na fazenda Boa Esperança pelo
GM. O filho do proprietário não esboçou “sentimento de humanidade pelo
trabalhador doente que estava na sua frente relatando a desgraça de sua
vida” (p.102) e resistiu fortemente a cumprir as exigências impostas pelo
Ministério Público do Trabalho. A situação se modificou quando o Procurador
ameaçou levar os fatos à imprensa. Só então o filho do fazendeiro assinou
o Termo de Ajustamento de Conduta proposto.
A administração da fazenda São Roberto tentou esconder os trabalhadores e os equipamentos de fiscalização e impediu o acesso dos fiscais do
trabalho aos locais aonde as vítimas viviam, por meio da obstrução da estrada
com troncos e galhos de árvores. Também foi apontado pela coordenadora
da fiscalização o “total desrespeito” em relação ao horário da reunião por
parte dos representantes da fazenda, além das tentativas de pagar o mínimo
possível aos trabalhadores. 60
57 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 98.
58 Fazenda localizada em Curionópolis/PA, propriedade de Carlos Gilberto de Oliveira Barreto (MPF/PGR
2344/2003-59).
59 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 3.
60 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 20, 23-25.
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Em um dos momentos de tensão, o sub-coordenador do GM, se retirou
“exasperado” por haver “falta de ética e respeito ao que fora acordado”. Aliás, assinala o documento que também os “trabalhadores” se consideravam
“desrespeitados” pelos advogados e pelo gato da empresa, pois lhes foi
oferecido uma proposta (150 reais) para que ficassem quietos e se mantivessem escondidos da fiscalização. A conduta de um dos advogados da
empresa tinha precedente. Também em outra fazenda – a Rio Dourado –,
com a participação do mesmo advogado, trabalhadores foram subornados
para se retirarem da propriedade antes da chegada do GM.
O Relatório final descreve o clima entre as partes do conflito:
Mais uma vez reunidos no Sindicato, os advogados (da fazenda) compareceram na hora do almoço sem proposta concreta. Tudo parecia
uma brincadeira de péssimo gosto. Acostumados com as peças da
peripécias do Dr. João Roberto que posterga sempre, usa de ironia e até
de uma boa dose de cinismo para emperrar as negociações possíveis,
nosso Grupo tomou-se de certa apreensão. Víamos com apreensão
a ansiedade e a insegurança dos trabalhadores que estavam permanentemente sendo molestados pelos “gatos” e alguns funcionários da
fazenda para alterarem seus depoimentos, para desistirem de seus
direitos e toda uma gama de chantagem. Além disso, o prazo para o
pagamento, estabelecido no TAC61estava vencendo e eles apostavam
no depósito em consignação, de apenas um salário mínimo. (MPF/
PGR 1472/2003-85, p. 21-22).
Ainda merece atenção a falta de segurança sentida pelos trabalhadores
encontrados e também por parte do próprio grupo de fiscais do MTE. De
acordo com documento da CPT/Xinguara, de 26 de abril de 2002, o GEFM
ficou isolado, sem o apoio necessário. E enumera os problemas:
Ausência de delegado da Polícia Federal, o que inviabilizou flagrantes
de vários crimes, como o trabalho escravo, prisão do fazendeiro e de
seus cúmplices;
Ausência do IBAMA62, o que inviabilizou flagrante de crime de extração ilegal de mogno; Saída antecipada do Procurador de Trabalho
que fragilizou a atuação do Grupo Móvel; Saída antecipada de alguns
policiais federais, o que inviabilizou outras operações de libertação de
61 Termo de Ajuste de Conduta.
62 O IBAMA realizou uma vistoria na Fazenda São Roberto, em 10 de abril de 2003, onde foi constatado
desmatamento em uma área de 3.112 hectares, destes aproximadamente 218 hectares eram área de
preservação permanente. O que mostra, apesar das fiscalizações do GEFM realizadas anteriormente,
que Lucena de Barros continuava a infringir a legislação vigente.
84
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
trabalhadores que continuavam escravizados na mesma fazenda e em
várias outras; Ausência total do Ministério Público Federal e Estadual.
Certamente, estes foram fatores que comprometeram a ação do GM e que
reforçaram o cenário de insegurança no qual os trabalhadores viviam e do
qual seriam libertos. Diante desse quadro, eles receberam um valor inferior
ao combinado. Caso contrário, permaneceriam em Redenção, aguardando o
pagamento, sem um aparato de proteção legal. Deve-se acrescentar a isso,
as limitações físicas e psicológicas dessas vítimas escravizadas, que antes
de serem libertas, passaram mais de 45 dias na fazenda, sem receberem
seus salários, em péssimas condições de sobrevivência, algumas doentes e
acidentadas, isoladas na mata.
Quem é o trabalhador
Financiados pela OIT, pesquisadores e colaboradores do GPTEC estudaram o perfil dos diversos atores envolvidos com o trabalho escravo. No
transcurso de operações do GM, ouviram 121 trabalhadores e 7 empreiteiros.
Posteriormente, 12 empregadores.
Entre os aspectos assinalados pelos pesquisadores, percebe-se que
geralmente vítimas são pessoas provenientes de localidades de acentuada
pobreza, desempregadas, 62% tinham filhos, 18% eram analfabetos e 45%
“analfabetos funcionais, ou seja, tiveram menos do que 4 anos de estudo”.
Quanto à distribuição etária: 3% tinham menos de 18 anos; 45% de 18 a 29
anos; 42% de 30 a 49 anos; 10% de 50 anos ou mais. As mulheres correspondiam a 4% do total de libertados. No que se refere à posse de documentos
pessoais, apenas um estava sem “identificação”. Entre os analfabetos, 32%
não tinham título de eleitor e CPF (BRUNO, 2007, p. 24-28). Predominavam
entre os trabalhadores as “atividades de limpeza e roço de pasto (59%), seguidos da derrubada (29%), catação de raiz (28%), lavoura de café (20%),
cana (19%) e algodão (19%)” e 10% já haviam sido libertados pelos grupos
móveis anteriormente” (Ibidem 2007, 51-59).
Naquilo que concerne ao aspecto profissional, não foi identificada
alteração entre as gerações. A maioria dos pais (78%) trabalhava em área
rural; sendo 69% destes, lavradores, e 8 %, vaqueiros e garimpeiros (ibidem,
2007, p. 37-39).
[...] o trabalho escravo atual é precedido pelo trabalho infantil. Praticamente a totalidade dos entrevistados (92%) iniciou sua vida de
trabalho antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a trabalhar é de 11 anos, sendo que 40% iniciaram antes desta idade. Na
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
maioria dos casos (69%) o trabalho infantil era trabalho familiar. No
entanto os demais trabalhavam com a família para um patrão (8%)
ou exclusivamente para um patrão (20%). (Ibidem, 2007, 46-47).
Ao retomar a história da São Roberto deve-se destacar que alguns haviam sido libertados, anterior ou posteriormente, em outras empreitadas na
região do Pará, o que denota a fragilidade das condições econômico-sociais
das cidades nas quais eles viviam.
Mesmo constando na LS 186 pessoas escravizadas, só tiveram rescisão
de contrato 171 trabalhadores. Vale considerar o fato de se tratar da 1ª LS,
divulgada em 2003, que indica o número de trabalhadores prejudicados e não
libertados, como as que a sucederam. Ademais, posteriormente à leitura dos
diversos relatórios das fazendas listadas nesse documento, verificou-se que,
na maioria dos casos, o número de trabalhadores prejudicados contemplava
os escravizados e os permanentes na unidade de produção, que em geral
não são considerados incursos como vítimas no Art. 149. No que se refere
a esta fazenda, eram dez os trabalhadores fixos, incluindo dois advogados,
João Roberto Dias de Oliveira e Álvaro Roque Siliprandi – que também advogaram para a Fazenda Rio Dourado63 em 2001 – e uma preposta, Virgínia
Márcia Machado de Souza.
Resultados preliminares da pesquisa
O caso da São Roberto revela as relações complexas estabelecidas entre
proprietários, seus prepostos e os trabalhadores; revela tensões entre aqueles e funcionários públicos. Contudo, outros dados podem ser identificados
quando se investiga e se debruça sobre as demais unidades de produção.
Foram identificados e cadastrados, entre as 113 propriedades do universo
da pesquisa do GPTEC, 5.070 trabalhadores escravizados, 4.501 libertos;
do total dos escravizados, 167 eram menores; 274 eram mulheres; nove
pessoas foram presas nas operações – um pistoleiro e oito proprietários
que exerciam também a função de gato.
As fazendas fiscalizadas em 2002 e 2003 foram as que mais pessoas
foram libertas; respectivamente, 1.113 e 1201; e o maior número de operações, respectivamente 26 e 30. Os anos 1998 e 2005 foram aqueles com
menor número de escravizados identificados nas operações cadastradas:
91; e, libertos, respectivamente, 44 e 88 pessoas. 1997 e 1999 tiveram o
63 Localizada em Cumaru do Norte/PA, esta unidade de produção é de propriedade da Agropecuária Rio
Largo Ltda. A fiscalização mencionada ocorreu em março de 2001, quando 54 trabalhadores foram
libertos MPF/PGR 1580/2003-58.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
menor número de unidades de produção inseridas no cadastro, apenas duas
e uma respectivamente.
Entre 1995 e 2007, o GM fiscalizou no país 1.683 propriedades e encontrou
trabalho escravo em 624 (37 %). Efetuou 503 fiscalizações no Pará e constatou o crime em 116 (44,44%).64 Deixou de fiscalizar boa parte das denúncias
porque os dados recebidos eram insuficientes ou por qualquer outra razão.
A seguir apresentamos alguns resultados sintéticos do estudo:
A. Demora na inclusão na LS.65 De 1995 a 2006, das 269 fazendas fiscalizadas no Pará e consideradas como envolvidas em trabalho escravo, conforme pode ser apreendido na relação dos imóveis nos quais houve libertação
de trabalhadores66, 153 (56,87%) não entraram até dezembro de 2007 na
LS. Somente depois de tempo relativamente longo, decorrido entre a fiscalização e os trâmites internos no próprio ministério, houve a inclusão na LS:
58 fazendas demoraram uma média de 2,8 anos; ou 33,8 meses. Esta pode
não ser necessariamente a média nacional, na opinião de Marcelo Campos,
Coordenador Nacional do GM. O Pará, por razões diversas – pressões políticas locais, desatenção da autoridade – estava entre os estados com maior
morosidade na inclusão do nome das unidades de produção na LS;
B. Reincidências no crime. Foi constatado que o mesmo trabalhador
pode ser libertado em fazendas diferentes. Por exemplo, dos 50 trabalhadores escravizados na fazenda Rio Liberdade67, em Santana do Araguaia, em
2004, cinco tinham sido escravizados e libertados em outras propriedades.
Um na fazenda São Roberto; dois, na Monelo68; um, na Santana, e outro, na
Vale do Rio Fresco.
Também é perceptível que entre as unidades de produção inseridas nas
LS, cinco constam mais de uma vez, por incorrerem novamente no crime.
Alguns proprietários, em torno de nove, aparecem mais de uma vez na LS,
como os citados a seguir: Antônio Lucena de Barros possui duas fazendas;
Celso Chuquia Mutran, as fazendas Baguá69, em Eldorado dos Carajás, e
Castanhal Cabaceiras70, em Marabá, e Celso Chuquia Mutran tem parentes
envolvidos na relação da LS – Aziz Mutran Neto, Délio Chuquia Mutran,
64 Vide Conflitos do Campo da CPT do mesmo período.
65 As Superintendências Regionais do Trabalho poderiam ter parte de responsabilidade pelo atraso na
inclusão das unidades de produção na LS, segundo um funcionário do MTE.
66 Vide Conflitos do Campo da CPT do mesmo período.
67 TE.PA. Rio Liberdade 04.1.1.
68 TE.PA. Monelo: 05/4.10.
69 MPF/PGR 9787/2003-71.
70 MPF/PGR 7142/2003-01.
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Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Evandro Chuquia Mutran, Helena Chuquia Mutran – e não é o único que tem
parentes nesta situação.
C. Limites dos relatórios e mudanças de forma. Até pelo menos 2002, o
número cadastrado de libertos nem sempre coincidiu no próprio relatório
de fiscalização com o número anunciado na relação da LS. Faltou a relação
completa dos trabalhadores, distinguindo os libertos dos não libertos. Nem
sempre o relatório assinala a existência de trabalhador idoso na atividade.
Os primeiros relatórios têm forma irregular, há casos em que falta um
relato introdutório que sintetize a ação, não obedecem a critérios mais homogêneos, são imprecisos e dificultam a análise, ao contrário dos relatórios
dos anos seguintes. Aos poucos, foram sendo superadas tais limitações e as
equipes já elaboraram relatórios com um padrão informativo mais claro,
mesmo se a ordem das informações varia. Em geral, nos relatórios constam
os seguintes itens: composição das equipes; relatório de fiscalização71; fotografias; comunicação de acidentes de trabalho; autos de infração; termo
de ajustamento de conduta; verificação física e termo de declaração do trabalhador; termo de rescisão de contrato; ata de assembléia72 e depoimento
do denunciante.
As categorias sofreram mudanças. Na primeira LS, em vez de uma relação
de trabalhadores libertos, há uma relação de trabalhadores “prejudicados”.
No caso da fazenda Primavera73, o relatório apresenta 248 trabalhadores
“prejudicados”; contudo há uma relação de apenas 166 trabalhadores e
destes, dez eram pessoal da unidade de produção, incluindo um gato.
Apesar da introdução de mudanças no artigo 149, dando um sentido
jurídico mais elástico e menos estrito ao conceito, os relatórios se tornaram
ainda mais cuidadosos e apresentam o sentido estrito de escravidão: dívida,
dificuldade de mobilidade etc.
D. Reincidências. De 171 gatos identificados parcial ou completamente,
quatro estão presentes em fazendas diferentes: 1. Alfredo Antônio Rosa,
em 2002, foi flagrado em duas unidades de produção de proprietários e
municípios distintos. 2. Edmilson Dantas de Santana foi flagrado em três
fazendas, em 2002, em municípios próximos, com proprietários diferentes.
3. Iron Martins Cardoso foi flagrado em duas unidades de produção, em anos,
71 O conteúdo do relatório comporta informações descritivas sobre a operação, as conclusões da equipe e
vem ou não assinado pelo coordenador do GM.
72 A assembléia consiste em reunião entre os auditores fiscais e o proprietário e/ou seu preposto no
decorrer da operação.
73 MPF/PGR 1721/2003-32.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
municípios e proprietários diferentes. 4. Juarez Feitosa Gomes foi flagrado
em três propriedades. Duas estão no mesmo município, e o fato se deu no
mesmo ano; uma terceira em município vizinho e no ano seguinte.
E. Mudança de status. Foram identificadas mudanças de status de
trabalhador. Na fazenda Rio Dourado, em Cumaru do Norte, em 2003, três
trabalhadores braçais em situação de vítimas passaram a exercer a função
de gato. Um vaqueiro se tornou “tirador de estaca”.
F. Relações de parentesco identificadas.
F.1. A resistência ou o controle social entre os trabalhadores pode ser
modificado caso estes tenham relações de conhecimento ou parentesco anteriores ao trabalho ou serem outsiders em relação à unidade de produção
e ao próprio grupo.
F.2. Foi possível constatar relações de parentesco entre alguns proprietários. Além da relação de parentesco entre eles, foram detectadas relações
entre os outros atores presentes nas fazendas. E há os casos de parentesco
não comprovado, mas provável – o nome de família idêntico, o local de residência ou outras informações.
F.3. Quanto às relações de vítimas & vítimas existem relações variáveis
no mesmo imóvel ou em imóveis diferentes como avô & neto; pai & filho; mãe
& filho; pais & filhos; padrasto & enteado; esposo & esposa; companheira &
companheiro; irmãos & irmão; primos & primos.
F.4. Quanto a vítimas & pessoal da unidade de produção – se relacionam
trabalhadores com gerente, ajudante de caminhão, fiscal/capataz/gerente,
capataz, vaqueiro, operador de motosserra, operador de máquina, tratorista,
cozinheiro.
F.5. Os lugares sociais, como vimos, são diversificados; alguns têm poder de mando outros são subalternos em graus diferentes. Quanto a gato &
vítima, há casos de possível parentesco estabelecido da seguinte forma: tio
& sobrinho; pai & filho; padrasto & enteado; cunhado & cunhado; irmão &
irmão; esposo & esposa; sogro & nora.
F.6. Quanto a gatos & gatos, estes mantêm relações de parentesco como:
pai & filho; irmão & irmão; sogro & genro; tio & sobrinho; cunhado & cunhado; esposo & esposa. Aqui chama a atenção para a presença de mulher no
exercício de uma função prioritariamente masculina.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Conclusão
A pesquisa aponta para alguns aspectos do perfil dos trabalhadores e
das relações de parentesco entre os agentes sociais envolvidos de alguma
forma nas atividades produtivas denunciadas por organizações reconhecidas
pelo Estado como incursas na escravidão. Indica também que é necessário
efetuar alguns cruzamentos de dados que podem revelar aspectos ainda
não suficientemente conhecidos inclusive e principalmente sobre as formas de resistência em função das relações anteriormente estabelecidas.
O estudo demonstra que, apesar de tantas operações nas quais o crime da
escravidão foi constatado e da indignação demonstrada pelos agentes do
Estado, somente nove pessoas foram presas em flagrante: um pistoleiro e
oito proprietários que também exerciam a função de gato.
Diversas formas de enfrentar o problema foram implementadas ao longo
dos últimos anos. Em 1995, foi criado o GM,74 nos anos seguintes, setores da
Justiça Federal atuaram com penalidades expressivas em ações por danos
morais coletivos nas relações de trabalho ou de crime previsto no art. 149.
Outras medidas foram tomadas, especialmente após 2003, como o I e
II Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo; o MTE instituiu a
Lista Suja; o Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo75 se organizou e
envolveu grandes empresas. Para os trabalhadores foram acionados o seguro
desemprego, a bolsa alimentação, a prioridade em assentamentos de reforma
agrária etc. Tem se destacado a Comissão Nacional Para a Erradicação do
Trabalho Escravo no monitoramento das medidas tomadas e na formulação
de propostas de novas ações, mas o problema está longe de ser superado
(Sakamoto, 2009, p. 19-22). Nenhum proprietário ou empreiteiro foi mantido preso, sequer aqueles que foram condenados, e a escravidão persistiu.
Outras medidas, para sanar o problema, terão de ser acionadas de forma
preventiva e curativa, como a geração de novos empregos, a distribuição
de renda, a perda da terra de quem utiliza mão de obra escrava, a reforma
agrária e um novo modelo de desenvolvimento.
74 De sua criação em 1995 até 2008, conforme o MTE, foram realizadas 2.169 fiscalizações, resgatados
32.563 trabalhadores e houve pagamento de indenizações aos trabalhadores de R$ 47.089.081,51. Cf.
Disponível em <http://www.mte.gov.br/fisca_trab/est_quadro_comparativo_1990_2008.pdf.> Acesso
em 14/set. 2009.
75 Cf. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br/pacto/conteudo/view/4>. Acesso em 14/set. 2009.
90
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
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92
4
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil:
a denúncia como um dos caminhos na
resistência dos trabalhadores à dominação
Introdução
Alessandra Gomes Mendes
A escravização de trabalhadores como fenômeno persistente no Brasil
compõe situações-limite inseridas num quadro mais amplo caracterizado
pela precariedade nas relações de trabalho no conflito capital/trabalho e
pelas condições de superexploração da força de trabalho. Os estudos, os debates e as ações de combate à escravização de trabalhadores são resultados
da ampliação do fenômeno social da escravidão contemporânea, no âmbito
nacional e internacional, visíveis nas denúncias apresentadas ao Ministério
do Trabalho e no Relatório Global da OIT (Organização Internacional do Trabalho) do ano de 2005 Uma aliança global contra o trabalho forçado sobre a
escravização de trabalhadores e imigrantes estrangeiros clandestinos, tanto
no espaço rural quanto no urbano.
Neste artigo, partimos da pesquisa que deu origem à dissertação apresentada no mestrado em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa,
sobre o trabalho escravo contemporâneo no Brasil (Mendes, 2002), onde
buscamos interpretar as estratégias de dominação e de resistência desenvolvidas pelos diferentes atores sociais envolvidos no processo. Naquele
estudo, foram levantadas questões fundamentais para a compreensão da
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
escravidão contemporânea no Brasil, como a fluência entre as formas das
relações de poder e de troca passando pelo favor, pela promessa, pela reciprocidade e pelo clientelismo. Outro ponto importante está nas diferenças
regionais, principalmente entre as regiões norte e o sul do Brasil, quanto à
caracterização das situações de escravização de trabalhadores, seja por parte
destes ou por parte dos agentes do Estado. A partir dos dados levantados
e tratados, escolhemos para discutir os casos ocorridos na grande região
Sul-Sudeste, no período de 1980-2000, apresentando algumas questões
acerca da importância da denúncia como caminho para o combate ao trabalho escravo e a busca de garantia de direitos humanos, e mostrar como
as ações do Estado e da sociedade civil vêm contribuindo para a construção
e afirmação da resistência dos trabalhadores escravizados.
Transição da economia escravista para o trabalho livre
Na tentativa de interpretação das formas de trabalho escravo contemporâneo devemos estabelecer cuidadosas distinções conceituais. Esse esforço
consiste em compreender as aproximações possíveis e especificidades do
fenômeno frente às modalidades presentes nos sistemas escravistas da
antiguidade e da era moderna, assim como em relação a outras formas de
dependência e de dominação pessoal. Nas múltiplas formas contemporâneas de trabalho compulsório, a escravização de pessoas, sob quaisquer
circunstâncias, representa a negação de direitos civis e sociais fundamentais afirmados pela ordem jurídica. Os casos de escravização representam
transgressões do ordenamento contratual do trabalho livre e são combatidos tanto por agências especializadas do Estado, quanto por entidades da
sociedade civil. A escravidão não é, pois, socialmente legitimada, ferindo
frontalmente algumas das mais elementares noções de valores humanos.
Ainda assim, a presença continuada de tais casos revela sua persistência à
margem da ordem legal, seu enraizamento em mentalidades distorcidas e
nos contextos econômicos e políticos que a tornam plausível.
Ao contrário do escravismo da era moderna, em que o escravo representava uma mercadoria que podia ser objeto de todas as formas características da apropriação mercantil (venda, hipoteca, aluguel, empréstimo)
em um mercado de dimensão intercontinental, as formas de escravidão
contemporânea ocorrem em circunstâncias que não mais reconhecem como
legítimos os direitos de propriedade do senhor sobre a vida do escravo. A
escravidão contemporânea acontece nos interstícios da economia de mercado baseada no trabalho livre. As formas de imposição do trabalho escravo
94
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
contemporâneo emergem fundamentalmente no contexto de transgressões
da ordem regular do trabalho livre, como nos impedimentos à livre circulação dos trabalhadores e como violação na aplicação das condições legais
dos contratos de trabalho. Para compreendermos a dinâmica da escravidão
contemporânea no Brasil, é necessário situá-la no quadro histórico mais
amplo da transição do trabalho escravo ao trabalho livre no Brasil.
O fim do tráfico negreiro em 1850 marca o ponto a partir do qual o escravismo brasileiro estava inexoravelmente condenado (Carvalho, 1988, p.5083). Diferentemente do sul dos Estados Unidos, onde a reprodução natural
dos escravos era um importante componente da dinâmica demográfica do
escravismo (breeding), a reposição do plantel escravista no Brasil repousava
de forma quase exclusiva no tráfico transatlântico (Alencastro, 2000). A
partir de então, as elites se defrontavam com a necessidade de conformar
um mercado de trabalho livre que permitisse a continuidade da expansão
da grande lavoura exportadora, especialmente nas regiões cafeeiras.
No terço final do século XIX, combinaram-se novas iniciativas legislativas, culminando com a Lei Áurea, a dinâmica demográfica e migratória, a
emergência do movimento abolicionista e a resistência dos escravos para
inviabilizar alternativas de imobilização servil da força de trabalho num
modelo semelhante ao da Rússia Czarista e da África do Sul (Foner, 1988).
A abolição se faria sem indenização aos proprietários e sem quaisquer
formas de proteção social aos ex-escravos, mas também, sem estabelecer
uma rígida regulamentação do trabalho que imobilizasse a força de trabalho
nas fazendas. O fim do trabalho escravo não significava necessariamente a
criação espontânea do trabalho livre assalariado.
Desde o período colonial, no entorno do mundo da plantation, emergia gradativamente uma ampla camada de homens livres pobres e libertos
(Franco, 1983) e (Mattos, 1998). Frente à imensa disponibilidade de terra
livre, constitui-se um universo povoado de sitiantes, vendeiros, tropeiros,
garimpeiros e outros personagens que, caracterizados por ampla mobilidade geográfica, ocupam os interstícios da ordem escravista. Relativamente
desnecessários para a lógica de operação da plantation escravista, tais homens, entretanto, estão articulados ao universo de poder representado por
extensas redes de patronagem e clientela. Já no censo de 1872, a população
escrava representava cerca de apenas 20 % da população do Império. Com
a abolição, entretanto, nem o Estado nem os grandes proprietários seriam
capazes de converter a massa da população livre pobre em força de trabalho
disciplinada para a grande lavoura.
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(Orgs.)
Jessé de Souza (2003, p.121) ao analisar o personalismo presente nas
relações diretas entre senhor e o escravo, afirma que o lugar estrutural
ocupado pelo sistema escravocrata brasileiro, tanto no sentido social quanto
econômico, influenciou outro estrato social fundamental e numeroso no
Brasil colônia: o “dependente” ou “agregado”, formalmente livre.
A situação social do dependente estava marcada pela posição intermediária entre o senhor proprietário e o escravo obrigado a trabalhos
forçados. Ele era um despossuído formalmente livre, cuja única chance
de sobrevivência era ocupar funções nas franjas do sistema como um
todo. (Souza, 2003, p. 122).
O autor nos mostra que se constituiu, portanto, um estrato social “ralé”
que cresceu e se espalhou pelo território: “homens a rigor dispensáveis,
desvinculados dos processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil
baseada na escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e
os deixava sem razão de ser” (Souza, 2003, p.122).
A transição ao trabalho livre e a formação de um mercado de trabalho
dependeria, em última instância da importação maciça de força de trabalho
a partir da grande imigração (Martins, 1979) e (Holloway, 1984). No
campo, a transição ao trabalho livre seria representada pela emergência de
uma ampla gama de formas não-tipicamente capitalistas de organização do
trabalho (Martins, 1979). De uma forma característica, a passagem ao trabalho livre combinará uma série de incentivos adicionais aos trabalhadores
(como no colonato, na parceria, na figura do “morador” e do “agregado”) com
elementos tácitos ou explícitos de limitação da mobilidade e da liberdade dos
trabalhadores. Mesmo os empreendimentos industriais da primeira metade
do século XX (como, por exemplo, a instalação da indústria siderúrgica no
Vale do Aço, em Minas Gerais), estabeleceriam estratégias de imobilização
da mão de obra através de “vilas operárias”.
A formação incompleta do mercado de trabalho livre, especialmente nas
áreas de fronteira, faria com que a possibilidade de formas compulsórias de
trabalho como sendo uma realidade. A partir da segunda metade do Século
XX, se no Sul e Sudeste a industrialização e a urbanização se firmavam, as
áreas de fronteira do Centro-Oeste e do Norte do País apresentavam-se
como atrativas para a ocupação por aqueles trabalhadores expulsos de
suas terras. Neste sentido, o fluxo migratório de trabalhadores e famílias
inteiras intensificou-se consideravelmente. Migração e desenraizamento
nas áreas de fronteira constituirão uma das principais fontes dos casos de
escravização que analisaremos.
96
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Martins (1997) considera, portanto, que o advento principal da transição do trabalho escravo para o trabalho livre foi a definição e a universalização da propriedade capitalista da terra onde o cativeiro foi uma forma
de assegurar a sujeição do trabalho, atribuindo singularidade à situação.
A nova modalidade de relação não-capitalista de produção foi capaz de
assegurar uma produção não-capitalista de capital, numa sucessiva acumulação preventiva dos países ricos e na condição fundamental da reprodução
capitalista. Martins (1997) afirma que é preciso considerar não somente
o processo do capital, mas também, a singularidade do momento em suas
condições históricas.
Nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil viveu um período de acentuado
crescimento econômico e de expansão de sua fronteira agrícola, incorporando novas regiões antes praticamente desocupadas, como o sul do Mato
Grosso, Rondônia e o Pará. Nesta época, o governo militar tentava promover
a expansão econômica e o desenvolvimento da região amazônica através do
estímulo à colonização por trabalhadores rurais vindos do Nordeste e do Sul
do País, e do fomento a investimentos de grande escala através de incentivos
fiscais (Sutton, 1994). Muitos desses colonizadores, entretanto, foram
entregues à própria sorte tornando-se mais tarde, mão de obra barata e vulnerável a qualquer tipo de arbitrariedade. Martins afirma que “[...] fronteira
é um cenário de intolerância, ambição e morte” (Martins, 1997, p.11). Por
isso, a figura central e reveladora da realidade social da fronteira é a “vítima”
e não o “pioneiro”. É na condição de vítima que podem ser encontradas duas
características centrais da constituição do humano: a alteridade e a visão
particular do outro (Martins, 1997, p.12). Esta fronteira possui muitas e
diferentes situações, é a fronteira do humano.
Ademais, a institucionalização tardia dos direitos trabalhistas no
campo, em contraste com os trabalhadores urbanos, alimentou um amplo
grau de arbítrio e violência nas relações de trabalho no campo. Em 1969, o
Estatuto do Trabalhador Rural estabeleceu a ampliação dos benefícios da
legislação trabalhista no campo, revogando o estatuto de 1963. A reação
dos proprietários rurais iniciou um processo de “modernização dolorosa”
(Silva, 1982) com a adoção de novas tecnologias poupadoras de trabalho
na produção e a substituição dos antigos moradores por trabalhadores
assalariados volantes. Esses fenômenos levaram a uma desarticulação das
formas tradicionais de relações de trabalho no campo, a um aumento de
pagamento por tarefas e da categoria de trabalhadores temporários, desprotegidos do Estatuto do Trabalho Rural. Foram significativos os efeitos da
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
‘modernização dolorosa’ sobre a estrutura fundiária e os níveis de renda e
emprego no campo.
O setor agroindustrial canavieiro, por exemplo, recebeu nos anos 60
grandes incentivos federais para a concentração de capital, promovendo a
integração agroindustrial através da aquisição de bens de capital e de terra.
Nos anos 70, os complexos agroindustriais trouxeram uma redefinição do
processo de acumulação capitalista, com condicionantes políticos e econômicos. As políticas públicas para a modernização dos processos produtivos
agrícolas davam nova forma à estrutura fundiária e ao trabalho. O Pró-Álcool
em 1975 foi um marco decisório na concentração de capital (Silva, 1982). A
revogação do Estatuto do Trabalho Rural, em 1973, por outro lado, consolidou
as redes de empreiteiros e “gato” como intermediários na contratação de mão
de obra temporária e volante, permitindo inúmeras novas formas de infração
dos contratos verbais e da legislação trabalhista do trabalhador rural.1
A escravidão contemporânea: características gerais
Ao se tratar de “formas contemporâneas de escravidão” no Brasil, faz-se
necessário conceituar e distinguir as modalidades de trabalho que envolvem
“formas escravistas de relações”, diferenciando-as da escravidão. Enquanto
a escravidão supõe uma relação de sujeição, percebida nas situações onde
o trabalhador é humilhado, castigado, torturado ou morto, a escravidão por
dívida é trabalho sob coação. Para Martins (1997), ambas se diferenciam do
“[...] uso repressivo da força de trabalho” e da “[...] imobilização da força de
trabalho”, uma vez que o sistema social recusa como valor o trabalho escravo.
Por isso, a escravidão contemporânea é uma situação temporária, manifesta
nas “[...] formas coercitivas extremadas de exploração do trabalhador”, dentro do processo de reprodução do capital, não podendo ser reduzida à sua
relação com o modo de produção. Neste sentido, compreende-se a escravidão
contemporânea enquanto um processo de escravização, favorecido pela
inexistência de condições de vida e trabalho favoráveis aos trabalhadores
em regiões e cidades com alto nível de pobreza ou diante da situação de
ilegalidade, no caso dos imigrantes estrangeiros.
Os pontos críticos do debate acerca do trabalho escravo e do trabalho
livre referem-se às limitações dos conceitos, e às relações entre trabalho
1 O Pró-Álcool ou Programa Nacional do Álcool, criado em 14 de novembro de 1975 pelo decreto 76 593
foi um programa de substituição em larga escala dos combustíveis veiculares derivados de petróleo por
álcool, financiado pelo governo do Brasil a partir de 1975 devido à crise do petróleo. Disponível em:
<http://wapedia.mobi/pt/Pr%C3%B3-%C3%A1lcool>. Acesso em: 21 mai. 2009.
98
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
livre e o desenvolvimento do sistema capitalista (Martins, 1999, p.83).
Sobre a escravidão contemporânea na Índia e no Peru, Tom Brass (1986),
afirma que o trabalho escravo não é só compatível com o capitalismo como,
em certas situações, este o prefere ao trabalho livre. No caso do Brasil, Esterci (1994) destaca que mesmo que se possa pensar que todo uso da mão
de obra é repressivo, na escravidão contemporânea, está se pensando em
“[...] formas extremas de repressão”. Por isso, a escravidão contemporânea
entendida como fenômeno social, constitui uma categoria política de luta
de interesses e de conflito de visões de mundo entre diferentes segmentos
e atores sociais. Ao projetar-se como evidência no cenário social contemporâneo, a escravização provoca a estranheza, a indignação moral e a repulsa
na sociedade, assim como a sua compreensão dentro do processo de acumulação e expansão do capital, marcando novos sentidos de interpretação, no
contexto de uma ordem que afirma, ao menos teoricamente, a preservação
da dignidade humana e dos direitos de cidadania.
A escravidão contemporânea é reconhecida nas seguintes formas:
1. O trabalho forçado: a pessoa é reduzida à condição análoga à de
escravo por meio de fraude e do uso de coerção;
2. O aliciamento da mão de obra: ocorre quando um grupo de pessoas
atraído pela oferta de pagamento de salários e de condições de trabalho é recrutado por empreiteiro ou “gato” para prestar serviços
em outras localidades, onde constatam que os compromissos e as
promessas não são compridos por este;
3. A servidão: ocorre quando a pessoa fica obrigada por lei, costume ou
acordo, a viver e a trabalhar nas terras do proprietário, a prestar-lhe
serviços, remunerados ou não, em troca do direito de ocupar uma
parcela de terra cedida pelo proprietário, mas sem a possibilidade
de mudar sua posição;
4. A imobilização de trabalhadores por dívida adquirida (debt bondage ou debt peonage): ocorre quando o empregador exige que
o trabalhador lhe preste serviços como forma de compensar uma
dívida adquirida através da aquisição de instrumentos de trabalho,
gêneros alimentícios, moradia, vestuário e remédios. No Brasil, esta
é a forma mais disseminada de escravização.
No período analisado, 1980 a 2000, a maior parte dos casos de escravização no Brasil foi encontrada na região da Amazônia Legal, nos estados
do Pará, Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Amapá e partes do Maranhão,
Goiás e Tocantins. Respondendo por 72% das situações de escravidão por
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
dívida, foi também onde houve o maior grau de violência e brutalidade.
Mas, não se restringindo a ela. Os estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande
do Sul e Minas Gerais também apresentaram muitos casos de escravização.
A distribuição geográfica das situações de escravização seguiu os ciclos
econômicos e de ocupação no país, incidindo, na maioria dos casos, nas
atividades econômicas da pecuária, da agroindústria canavieira e cafeeira
(corte de cana e colheita do café), do desmatamento (tombada de árvores),
da extração de látex nos seringais, do reflorestamento (criação de mudas e
plantio), das madeireiras, do carvoejamento (derrubada de árvores e produção de carvão vegetal) e do garimpo.
Em conexão com os casos de escravização, havia um significativo fluxo
migratório sazonal de trabalhadores recrutados, mas, também havia trabalhadores fixos, como na manutenção das fazendas, nas baterias de carvão e
nas plantações. A migração produzia um desenraizamento dos trabalhadores
que facilitava o aliciamento da mão de obra e a criação de dívida imobilizadora (Figueira, 2003). Nos estados centrais, como Minas Gerais, São Paulo
e Rio de Janeiro, as relações de trabalho se desenvolveram de forma que se
apresentaram muito mais marcadas pelo conflito capital/trabalho do que
pelas relações baseadas no paternalismo ou no clientelismo. Neste ponto,
incide a diferença fundamental entre as duas grandes regiões analisadas na
dissertação – Área Sul e Área Norte. Apesar das diferenças, relações pessoais
subsistiam com relações impessoais, institucionalizadas em contratos de
trabalho, configurando um cenário mesclado, onde fazendeiros mantêm
‘colonos’ em suas terras, e empreiteiros ‘gatos’ contratavam trabalhadores
conhecidos, assim como trabalhadores ofereciam seus serviços para aqueles
que conheciam. Há, portanto, aspectos fundamentais na configuração das
relações de trabalho no campo nas diferentes regiões do Brasil, que fundamentam o ressurgimento de situações de escravização, a saber:
1. a incorporação tardia dos direitos trabalhistas, presente nas cidades
desde os anos 40, no campo, iniciada apenas a partir do programa
FUNRURAL, de forma ainda incipiente 2;
2. a existência de uma ampla gama de arranjos de relações de trabalho que divergem dos modelos típicos de assalariamento, como o
2 O Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) foi criado pela Lei Complementar nº. 11, de
25/maio1971, que instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL). Em seu artigo
2º, o Programa previa a prestação dos seguintes benefícios: I - aposentadoria por velhice; II - aposentadoria por invalidez;III - pensão;IV - auxílio-funeral;V - serviço de saúde;VI - serviço social. (Disponível
em http://www.dji.com.br/leis_complementares/1971-000011-patr/000011-1971-patr.htm. Acesso
em 21 maio 2009.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
colonato, os meeiros e agregados. Estes arranjos subsistem, em
grande parte, devido à rarefação estatal na regulação dos contratos
de trabalho;
3. O caráter violento da vida em algumas áreas marcadas pelo isolamento geográfico;
4. o desenraizamento dos trabalhadores provocado pelos fluxos migratórios, expondo grande parte dos trabalhadores à vulnerabilidade
quanto às garantias de vida e de trabalho.
A denúncia como um caminho para o combate ao trabalho escravo
A denúncia formal é praticamente o único caminho para a tomada de
conhecimento sobre os casos de escravização e deve-se reconhecer que,
para além daqueles que vêm à publico, existem inúmeros casos, situações
e regiões onde ocorrem processos de escravização que não engrossam
as estatísticas. Durante a ditadura militar, denúncias partiam de vários
segmentos sociais, mas o governo não reconhecia a presença de casos de
escravização e dificultava a atuação destas entidades. Apesar de a primeira
denúncia pública ter ocorrido no início dos anos 70, somente em 1993 o
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) brasileiro assumiu a existência de
escravidão contemporânea no território nacional. Nos anos de 1994 e 1995,
houve um salto no número de casos denunciados tanto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), quanto pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT),
do (MTE). Nesse contexto, em junho de 1995, foi criado o Grupo Especial
de Fiscalização Móvel (GEFM) com o objetivo de garantir uniformidade de
procedimentos, eficiência e agilidade e, principalmente, o sigilo absoluto de
suas operações. O GEFM estimulou a constituição do Grupo Executivo de
Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), com caráter interministerial
e interinstitucional, subordinado à Câmara de Política Social do Conselho
de Governo3.
A importância das entidades e organizações sociais na denúncia das
situações de escravização de pessoas tem impulsionado um movimento
maior de defesa dos direitos humanos, civis e sociais. Como parte do projeto
de modernização e democratização, o Estado brasileiro vem desenvolvendo políticas públicas para erradicação de relações escravistas de trabalho
3 Coordenado pelo Ministério do Trabalho, é composto por representantes dos Ministérios do Meio Ambiente, de Política Fundiária, da Justiça, da Agricultura, da Previdência e do Desenvolvimento.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
através da legislação constitucional4 e trabalhista5, e da ação de órgãos estatais6, como respostas às pressões dos órgãos internacionais, dos segmentos
da sociedade civil e dos trabalhadores escravizados. No entanto, desde a
abolição da escravidão colonial, em 1888, o Estado brasileiro apresenta
uma prática que oscila entre a construção da cidadania, com a defesa dos
direitos e garantias fundamentais, e o estímulo a empreendimentos econômicos em regiões de fronteira de ocupação sem, no entanto, desenvolver
políticas públicas que garantam aos trabalhadores, condições dignas de
vida e de trabalho não impedindo, portanto, os processos de escravização
destas pessoas.
Nos casos analisados, verificamos que a denúncia é, entretanto, muitas
vezes precedida pelo reconhecimento da situação de escravização pelo trabalhador e pelas suas tentativas de libertação. Tipicamente, um trabalhador
rural, interpretando a sua situação e a dos demais como de escravidão, deixa
a fazenda ou unidade produtiva. Dado que a escravidão contemporânea se
caracteriza fundamentalmente pelo cerceamento da liberdade de ir e vir e
pela vigilância constante dos trabalhadores, esta evasão se dá, em grande
parte dos casos, por meio de uma fuga, muitas vezes, à noite e pela mata. Se
tiver sucesso, o trabalhador segue então a estrada mais próxima com acesso
a uma cidade de porte médio. Chegando, procura a Delegacia de Polícia, ou
a Igreja Católica local, ou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, quando este
existe, e presta depoimento. Há situações em que o ex-escravo telefona para
alguns desses lugares, informando a situação e solicitando o comparecimento
para confirmar seu relato. Ou então, telefona para algum parente, geralmente
mães ou esposas, pedindo que elas contatem autoridades ou representantes
para irem ao local libertá-los.
Na maior parte dos relatos analisados, além de reconhecer algumas
das formas pelas quais as denúncias são feitas, reconhece-se a presença de
entidades de defesa de direitos de humanos, a de órgãos governamentais
e de sindicatos representativos que recebem, encaminham e apuram estas
denúncias. Esses padrões de denúncia parecem revelar transformações
recentes e substanciais no contexto político e ideológico em que a escravidão contemporânea se desenrola. A presença crescente de atores públicos
4 Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.
5 Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Forçado; Lei n. 7.998 de 11 fev.1990 discorre sobre
trabalhadores em condição análoga à de escravo; Medida Provisória n. 74 de 23/10/2003 que assegura
pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado. Plano Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo, lançado em março de 2003.
6 GEFM e SIT/MTE.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
envolvidos com a denúncia e a repressão à escravização, de algum modo,
abre novos espaços para que os próprios trabalhadores tomem iniciativa de
denúncia, demonstrando que uma circularidade de informações e definições
de escravização percorre o caminho inverso, permitindo que os trabalhadores sejam capazes de redefinir sua autoimagem como escravos. A escolha
por trazer à luz os casos de trabalho escravo ocorridos nas regiões Sul e
Sudeste, no período de 1980 a 2000, neste artigo, decorre de dois fatores
fundamentais: a) apesar de, nestas regiões, as ‘fronteiras agrícolas’ já terem
sido ocupadas, as atividades econômicas ligadas à agroindústria foram o
segmento onde o processo de escravização de trabalhadores ocorreu com
maior intensidade; b) a presença do Estado e a articulação de entidades
civis e religiosas são significativas como formas de mobilização política e
de construção da cidadania, dentro do paradigma do Estado Moderno de
Direito, principalmente, no período da abertura democrática.
Dentre os casos analisados nestas regiões, identificou-se que na atividade do corte de cana-de-açúcar, as reclamações e reivindicações feitas pelos
trabalhadores, e apuradas pela fiscalização, referiam-se também às infrações aos direitos humanos e civis como no impedimento de deixar o local,
a retenção de documentos, o transporte de trabalhadores em caminhões
junto com animais, a omissão de socorro médico nos casos de acidentes e
doença e os maus tratos físicos. A situação de escravização, já caracterizada
no aliciamento e na imobilização, era reforçada pela dificuldade de acesso
aos locais impossibilitando aos trabalhadores realizarem compras em outros
locais que não no barracão, em buscar assistência médica nas cidades e em
se comunicar com os familiares. A redução no valor combinado dos salários,
a quebra do acordo quanto ao pagamento da cana cortada e os descontos de
alimentação e ferramentas de trabalho, compõem a referência feita pelos
trabalhadores à sua condição de escravos.
A caracterização das situações como de escravização era geralmente
atribuída pelos próprios trabalhadores vitimados, principalmente quando
comparavam as condições existentes com as de outros lugares onde já trabalharam. Mesmo sem referirem-se claramente à escravidão, assumiam que
foram enganados na contratação, e que as condições impostas nos locais
de trabalho não eram condizentes com um ideal de relação de trabalho,
sobre uma base mais justa quanto ao pagamento e ao tratamento recebidos. Ao reconhecerem as irregularidades trabalhistas e a escravização, os
trabalhadores construíam mecanismos de resistências que vão de formas
mais prudenciais como a manifestação ao encarregado de sua insatisfação,
103
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ou a tentativa de negociação com o encarregado ou com a empresa acerca
dos acertos e do pagamento de direitos, mesmo conscientes do perigo de
demissão, a formas mais extremadas como a recusa em trabalhar sob condições inadequadas, como na colheita sob chuvas intensas e as fugas. Há
casos analisados na região Sul, em que muitos trabalhadores escravizados
afirmaram que iriam alertar os demais trabalhadores que permaneceram
em suas origens sobre as condições encontradas.
Para realizar uma fuga, como forma de resistência mais extremada e
última saída para que seus direitos sejam reconhecidos e praticados, alguns
trabalhadores escravizados mentiram para sair do local e para procurarem
orientações. As fugas nos estados do Sudeste-Sul foram motivadas pela
busca dos direitos, pela denúncia das condições dos demais trabalhadores
que permaneceram no local de trabalho e para sua libertação e pagamento.
Alguns trabalhadores que não conseguiam trabalhar com fome, decidiam
por fugir, deixando a carteira profissional na usina. Um deles afirmou que
“lá nóis tava preso, que nem numa penitenciária, a gente nunca vimo um
castigo deste no mundo” (EM SÃO PAULO..., 1987), contando que já haviam
fugido de 200 a 300 pessoas da usina, inclusive, mulheres e crianças; e que,
na fazenda, ainda estão 700 migrantes sujeitos a mesma situação. Após a
fuga, estes trabalhadores foram assistidos pela Associação dos Voluntários
e Integração do Migrante (AVIM), aguardando liberação de passagens para
retornarem a Alagoas. Os trabalhadores casados eram os mais preocupados
com as famílias e ansiosos para voltar. A fuga é um dos mecanismos extremos
de resistência à escravização, uma vez que ela representa grandes riscos
para quem foge. Por isso, muitas vezes, os trabalhadores se organizam em
grupos maiores.
Mas, seja devido ao cenário de desemprego alto e de acirramento da
pobreza, seja devido às relações pessoais que mantinham com seus empregadores e patrões, os trabalhadores optavam também por formas mais
sutis de resistência, como o atraso nas tarefas, ou a tentativa de negociação
direta com o patrão, através de uma conversa. Cientes muitas vezes das
retaliações que poderiam sofrer diante de uma fuga, reclamação ou recusa
em trabalhar, os trabalhadores adotavam posturas de condescendência a
fim de reduzir a possibilidade de sanção, como a suspensão da alimentação
ou o desalojamento de sua família.
Desta forma, a maior parte dos casos de escravidão contemporânea
torna-se conhecida por meio de denúncias feitas por trabalhadores fugidos
que, após andarem por horas ou mesmo dias, conforme a distância dos locais,
104
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
procuraram entidades, como a CPT, os sindicatos de trabalhadores rurais,
quando estes existiam e funcionavam ou a delegacia de polícia. A partir desta
procura, é que se reconhece nestas regiões Sudeste-Sul, as variações quanto
ao aparato institucional composto pelos atores que combatem a escravidão,
marcando as diferenças no tratamento da questão. Em alguns casos, as denúncias foram encaminhadas diretamente por entidades religiosas, civis,
representativas ou pela imprensa nacional. Nos casos denunciados pela
imprensa, tanto a impressa quanto à falada, os casos foram encaminhados
aos órgãos responsáveis que realizaram a apuração. A partir de matéria
televisiva veiculada pelo SBT em 1993, por exemplo, a DRT-MG realizou
visita de fiscalização em Morada Nova de Minas. Nos relatórios de inspeção
foram relatados indícios de:
[...] trabalhadores rurais reduzidos à condição análoga à de escravo,
crime tipificado pelo art. 149, do Código Penal”, a partir das características: 1. distância entre o posto de trabalho _ Morada Nova, e o de
recrutamento – Piauí e norte da Bahia; 2. relação entre trabalhador
e empregador mediada por “um agente inidôneo e hábil em fraudes,
o ‘gato’ (constatou-se a existência de 8 ‘gatos’);. temporariedade do
trabalho onde a duração de uma safra ou período de 6 a 10 meses
(cultura de capim braquiária para colheita de semente para exportação para o Japão); 4. isolamento das fazendas pela barragem Três
Marias, impedindo a fuga do trabalhador; 5. péssimas condições de
trabalho e de vida, contrastando com as promessas feitas pelos ‘gatos’;
6. existência de vários armazéns para fornecimento de alimentos de
qualidade duvidosa e com preços acima dos praticados no mercado;
regime de acumulação de dívidas; nenhuma regularidade trabalhista
nem previdenciária (DRT-MG, 1993).
Realizada a denúncia, os casos foram tratados por instâncias diferentes
conforme sua presença na região. Em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, a presença de sindicatos de trabalhadores rurais, de
organizações civis e religiosas e de inúmeras entidades não-governamentais,
defensoras dos direitos dos trabalhadores e dos direitos civis influenciou a
conscientização dos trabalhadores em algumas áreas, no sentido de conhecerem alguns direitos trabalhistas, civis e políticos. A Diocese de AraçatubaSP, por exemplo, em 1988 num Manifesto referindo-se às greves de 1978 e
1979, mostrou que a organização e as lutas dos trabalhadores conseguiram
reduzir os abusos, garantindo transporte mais seguro (substituindo os caminhões por ônibus), demonstrativos de pagamentos pelo corte da cana; o
estabelecimento do preço da cana cortada, a afirmação de contratos coletivos
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de trabalho e o atendimento médico durante o trabalho (CORTADORES DE
CANA..., 1988). Nesta época, na Comarca de Araçatuba, existiam mais de
3.000 processos trabalhistas aguardando julgamento.
As lutas trabalhistas refletem-se nas atitudes dos trabalhadores ao se
organizarem numa paralisação ou mesmo numa greve, muitas vezes, sob
orientação dos sindicatos, assim como nas fugas para denunciarem as situações de escravidão. As dificuldades de sindicalização estavam no pagamento
da taxa de sindicalização e na realização de assembléias, possível somente
aos domingos.
Mas, há locais em que a existência do sindicato dos trabalhadores não
garante a proteção dos direitos destes. Na Serra dos Aimorés, em Minas
Gerais, trabalhadores numa usina de açúcar ao reconhecerem sua situação
como de escravidão procuraram o sindicato local. No entanto, este sindicato
encontrava-se distante dos trabalhadores e, além de não ter dinheiro para
sua manutenção, o Presidente na ocasião estava articulado politicamente
com um funcionário da usina denunciada.
Outra característica fundamental destes estados, está na maior atuação
dos órgãos estatais como o Ministério do Trabalho através das Delegacias
Regionais, do Ministério Público do Trabalho e das Polícias Militar e Civil,
na fiscalização de irregularidades trabalhistas e de uso da violência de
forma geral. Durante uma ação em São Paulo, o chefe da delegacia regional
do Ministério Público do Trabalho, informou que empreiteiro seria ouvido
porque ele “ele é o contratador, mas deve estar sendo contratado por outros”
(BLITZ descobre..., 1995; BLITZ descobre quatro mil..., 1995). Sobre a situação encontrada, o delegado afirmou que:
é uma questão social. Os pais precisam do ganha-pão e ficam indignados com a hipótese de interdição das áreas de trabalho, já que também
podem perder o emprego”. Diante da possibilidade de interdição da
área, o delegado afirmou que “vamos estudar, junto ao Jurídico do
Ministério do Trabalho a possibilidade de interdição da área onde as
crianças estão trabalhando (BLITZ descobre quatro mil..., 1995).
Nos casos analisados, encontramos a ação do judiciário (OAB, Procuradoria da União) nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, das polícias militar, civil e federal nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais. Os
órgãos estatais de fiscalização e apuração, Ministério do Trabalho, Delegacia
Regional do Trabalho e CPI’s de Assembléias Legislativas, estão mais presentes no Paraná e Minas Gerais. No Paraná, três deputados federais membros
da CPI instalada pela Assembléia Legislativa, eram ex-trabalhadores rurais
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
(CPI da violência..., 1991). A ação das entidades religiosas, como a CPT foi
mais efetiva no Rio de Janeiro e Minas Gerais, enquanto a participação das
representativas como os sindicatos e federações de trabalhadores na agricultura (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG,
Central Única de Trabalhadores, CUT) foi maior no Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. No Paraná, além de representantes dos
trabalhadores, organizações representativas de fazendeiros e empresários
(União Democrática Ruralista - UDR e Federação da Agricultura do Estado
do Paraná – FAEP), se envolveram também na apuração das denúncias. Mas,
é preciso destacar que tanto as entidades quanto os órgãos fiscalizadores tiveram atuações diferenciadas, que seguiram orientações distintas conforme
as coordenações, frente às situações de escravização encontradas.
A dificuldade de implementação das políticas de combate ao trabalho
escravo, como na criação do GERTRAF, em 1995, pode ser visualizada, por
exemplo, nos casos em que os próprios funcionários dos órgãos fiscalizadores demonstraram desconhecimento da realidade na região onde atuavam.
O representante do Ministério Público do Trabalho, relatando uma operação
para apuração de uma denúncia de trabalho escravo, relatou:
Na manhã do dia seguinte, ou seja, menos de 24 horas da denúncia,
saímos em comboio para o referido município, somente encontrando
a propriedade por volta das 12 horas. Local de difícil acesso, aliado
ao total desconhecimento da região e infelizmente para a surpresa da
equipe, pois, o município em questão (Santa Teresa) é considerado
um dos mais evoluídos do estado (PROCURADORIA REGIONAL DO
TRABALHO, 1999).
A presença dos órgãos fiscalizadores e das entidades denunciantes
não garantia a inexistência de situações de escravização de trabalhadores,
nem do aliciamento em outras regiões e Estados. Até maio de 2009 estas
situações continuam acontecendo e sendo alvo de denúncias e projeção
para a sociedade brasileira e internacional. Em 1988, a Polícia Militar de
Ibiúna, região de Sorocaba (SP), apurou denúncia feita por um menor fugido de que boias-frias estavam sendo mantidos em ‘regime de escravidão’
por uma família de agricultores descendente de japoneses. Na operação, a
polícia apurou que os trabalhadores tinham de cumprir longas jornadas de
trabalho, que dormiam em barracos de madeira em colchões ‘imundos’; que
a alimentação era precária, havendo casos de desnutrição, principalmente,
entre os menores. Os trabalhadores estavam há mais de quatro meses trabalhando, não tendo recebido nenhum pagamento. Quando tentaram falar
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
com os proprietários, seu filho ameaçava os trabalhadores de morte em caso
de fuga (ESCRAVIDÃO BRANCA, 1988).
No dia 27 de novembro de 1995, representantes da CPT, do Partido
dos Trabalhadores (PT) e da CUT foram à redação do Jornal Diário da Terra
denunciar a existência de trabalho escravo no complexo rural de Santana.
Informaram que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST)
já havia protocolado pedido de fiscalização local e que a TV Bandeirantes
veicularia matéria de flagrante em Iaras (DENÚNCIAS DE TRABALHO, 1995).
Durante uma blitz do Ministério do Trabalho, a partir de denúncia do MST
(que acompanhou a ação, filmando e gravando depoimentos para formalizar
a denúncia) e da CPT, foram encontradas cerca de 4.000 pessoas submetidas
ao regime de semi-escravidão, nas fazendas de pinus, à margem da rodovia
Castelo Branco que liga a Capital ao oeste paulista. Muitos eram menores.
Após esta operação, a denúncia de ‘trabalho semi-escravo’ foi encaminhada
formalmente ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa de São Paulo, pelo deputado estadual Renato Simões, do PT. O
problema foi ainda retratado informalmente pelo MST à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
(OEA). O delegado do Ministério Público do Trabalho informou que o caso dos
menores será encaminhado à Procuradoria do Trabalho em Campinas, pois o
trabalho para os menores de 14 anos configura crime previsto na Constituição
Federal (MST comprova..., 1995).
Alguns contratantes e empregadores reconhecem certos deveres trabalhistas como o registro em carteira profissional e o pagamento de verbas
rescisórias. Nos casos em que os empregadores eram empresas, existiam
preocupações com a imagem da empresa para além das implicações legais.
Foram recorrentes as declarações dos empregadores de que estariam providenciando reformas nos alojamentos, melhorias na alimentação servida
e até mesmo, a contratação de trabalhadores terceirizados (DESCOBERTO
TRABALHO..., 1999). Apesar de a maioria das empresas terem negado a
responsabilidade pela contratação dos trabalhadores e, pela sua escravização, algumas se mobilizaram para reduzir as implicações das denúncias e
dos fatos apurados. Algumas empresas rescindiram seus contratos com os
empreiteiros responsabilizados e admitiram em seus quadros os trabalhadores vitimados (EMPRESA promete..., 1988).
Houve casos em que quando a polícia ou a fiscalização chega ao local, o
empreiteiro foge ou esconde trabalhadores (POLÍCIA acaba..., 1988). Durante
uma operação no Rio Grande do Sul, o empreiteiro queixou-se da fiscalização
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
uma vez que acreditava estar “prestando um serviço à humanidade oferecendo
trabalho aqueles pobres coitados e lhes pagando um salário justo” (POLÍCIA
acaba..., 1988). Ele tentou se justificar mostrando recibos de pagamento e
afirmando que chega a pagar prêmios aos descascadores que atingissem a
cota de produção.
Além disso, muitos empregadores ou encarregados sabiam que frente
à imposição de violência física, havia a possibilidade de denúncia por parte
dos trabalhadores e de serem punidos pelas Polícias e por outros órgãos.
Em vários casos, tem-se que era o temor das implicações decorrentes que
motivou os empregadores a não serem arbitrários e violentos, mas, somente
este temor, não garantia uma atitude mais amena, uma vez que o envolvimento dos patrões com os trabalhadores, principalmente, os moradores
tinha origem em relações anteriores. Além disto, as relações dos patrões
com os órgãos fiscalizadores comprometiam uma ação efetiva para inibir a
prática da escravização.
Considerações finais
A escravidão contemporânea deixa-se conhecer a partir da denúncia. As
denúncias de escravidão e do uso repressivo da mão de obra buscam evidenciar situações de profunda degradação humana e, desta maneira, sensibilizar
a sociedade e o Estado com o objetivo de exigir a punição dos responsáveis
e evitar que elas continuem ocorrendo. Desta forma, muitos segmentos
acreditam no poder do termo ‘escravidão’, como fonte de indignação moral,
utilizando-o para pressionar os governos para o reconhecimento de alguns
casos como tal. Segmentos da Igreja Católica como as Pastorais da Terra e
do Imigrante, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, políticos de partidos de
esquerda (PT, Partido Socialista Brasileiro - PSB, Partido Comunista do Brasil
- PC do B), Ministério Público do Trabalho e do Judiciário têm assumido a
posição de denunciantes, uma vez que, na maioria dos casos, os trabalhadores escravizados estão impedidos ou temem fazê-lo, ou, por vezes, não
se reconhecem como tal. Neste sentido, à medida que novos atores sociais
tematizam a questão e a organização sindical rural e as mobilizações no
campo e na cidade aumentam, criam-se mais possibilidades para a efetuação
das denúncias e combate ao trabalho escravo.
109
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
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111
5
De homens escravos a terra livre:
um caso de escravização capitalista
Rio de Janeiro (1993-1998)
“Um patrão desses devia ficar
muito tempo preso, para aprender a não judiar do empregado”
Homero Vieira Marques1
Gladyson S. B. Pereira
O início da década de 1990, viu emergir uma avalanche de denúncias
sobre escravização2. Dentre elas, encontra-se o caso da granja Rocha Klotz,
- localizada entre Resende e Itatiaia, estad o do Rio de Janeiro, próximo à
fronteira com São Paulo – caso esse ocorrido entre 1992 e 1993. Procuramos
refazer o caminho trilhado pelos protagonistas desse caso concreto, procurando desvendar as forças que se envolveram nessa luta contra a escravidão
e registrando os diferentes e mais marcantes momentos desse conflito no
período entre 1993 e 1998.
1 Granjeiro dos Rocha Klotz entrevistado pelo jornal “O Dia” a respeito de João Luiz da Rocha Klotz.
2 Para ler histórico da escravidão contemporânea no Brasil ver PEREIRA, Gladyson S. B. Disponível em:
<www.gptec.cfch.ufrj.br>
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Aspectos gerais e o contexto histórico
Resende é um importante pólo industrial situado à beira da rodovia
Presidente Dutra, na fronteira dos dois mais importantes estados do país
e se notabilizando pela grande concentração de indústrias químicas especializadas na fabricação de produtos farmacêuticos e veterinários. Os novos
grupos sociais que surgiram em função desse processo de industrialização
criaram novas organizações que são referências importantes no município
e adjacências, como o Sindicato dos Químicos de Resende.
Além disso, é marcante a presença de um clero católico progressista
que, apesar da repressão da cúria romana, continuava a ter força na região
sul do estado do Rio de Janeiro3, dava contornos particulares aos conflitos
políticos da região. A atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o da
diocese contribuía para mobilização social local. Entretanto, o município
ainda possuía fortes laços com as tradicionais oligarquias escravocratas
cafeicultoras, tradição manifestada na má aceitação de conquistas históricas
como os direitos trabalhistas.
A denúncia de trabalho escravo, que pretendo analisar, ocorreu entre
1993 e 1994, período de franca implementação de políticas neoliberais no
Brasil pelo governo Fernando Henrique Cardoso, dentre elas a abertura
de nosso mercado a empresas estrangeiras com o discurso de motivar a
concorrência e, assim, pressionar a modernização das empresas nacionais.
Alguns eventos marcaram a região nesse período: no âmbito municipal, a
criação do Fórum Popular em Defesa do Jardim Esperança (frente de apoio
a sem-tetos ameaçados de despejo por João Luiz da Rocha Klotz) e, no plano
nacional o “Movimento da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e
Pela Vida” e a priorização do combate à escravidão pelo Fórum Nacional de
Combate à Violência no Campo.
Antes da denúncia de escravidão contra o senhor João Luiz da Rocha
Klotz, já tinham ocorrido dois grandes embates, um entre Klotz e meeiros4
e outro entre Klotz e sem-tetos.
3 As dioceses da região estavam sob a jurisdição do bispo Dom Waldir Calheiros ligado à teologia da
libertação, corrente teológica baseada na luta contra os opressores (Matheos, 1996, p. 18).
4 Meeiro – Quem se submete a um contrato de meação, condição de repartir produto do trabalho sob
critérios variáveis. Em 1992, um grupo de meeiros da fazenda Barra I se desentendeu com o proprietário
Klotz, por esse ter mandado um trator arrasar suas plantações, prontas para a colheita e, em seguida,
semear braqueária. Os meeiros revoltados decidiram então tomar posse da terra.
114
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
No primeiro embate, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de
Barra Mansa5 foi acionado e passou a realizar reuniões periódicas com os
ex-meeiros, agora posseiros das terras de Klotz. A presença do sindicato se
materializava na figura de seu presidente, o senhor Francisco Bernardino
que trabalhou junto com a CPT e a igrejas católicas locais, representadas
pelo agente pastoral Valdecir e pelo padre André Petrucce, da diocese de
Barra do Piraí e Volta Redonda, cidades próximas a Resende.
O trabalho escravo na granja Rocha Klotz
Seu Bernardino, apesar das ameaças6, realizava reuniões periódicas
com os posseiros da fazenda Barra I a fim de pô-los a par dos acontecimentos
e ajudar na organização da luta. No caminho para tais reuniões era levado
a penetrar em outras fazendas do mesmo proprietário. Nas idas e vindas
o velho sindicalista foi aos poucos conhecendo os empregados da granja e
nesse convívio ocasionalmente descobriu que os granjeiros estavam submetidos a um regime de trabalho escravo.
Sem limites claros para o tempo de trabalho nem pagamento de salário
e sobrevivendo do recebimento de uma suposta “cesta básica” insuficiente
para as necessidades das famílias, esses trabalhadores seguiam sua dura
rotina sem maiores questionamentos há quase dois anos, como foi registrado
na imprensa local:
A abolição do pagamento regular em dinheiro, desde abril do ano
passado, tornou ainda mais dura a rotina dos granjeiros, acostumados
a trabalhar da manhã à noite, sem folgas semanais. ‘Não tem dia santo
nem feriado’, conta Homero Vieira Marques. O trabalho aumentava
com a chegada de caminhões para o transporte de frango. ‘Se o caminhão chega de madrugada, tem que levantar para encher’, diz Antônio
Rodrigues de Andrade, 40 anos, quatro filhos (DINHEIRO, 1993).
Bernardino exortou os granjeiros a se rebelarem contra tal situação
a qual estavam “acostumados”. Mas a solução não era tão simples, pois os
granjeiros retorquiram: “Bernardino, se eu for reclamar ele vai mandar desocupar a moradia!”. Tendo as choupanas da granja como único lugar para
morar, os granjeiros se submetiam a Rocha Klotz.
5 No período em questão, não havia sindicato de trabalhadores rurais em Resende. O sindicato de Barra
Mansa então, por ser o mais próximo, assumia todas as ocorrências de Resende.
6 João Luiz foi demonstrando progressivamente ser uma pessoa muito violenta. Chegou a contratar um
conhecido pistoleiro, Joaquim Neto, para dar fim a vida de Seu Bernardino. O pistoleiro primeiramente
tentou coagi-lo a abandonar os posseiros e diante da persistência do sindicalista decidiu assassiná-lo,
porém ele, um dia antes, foi morto por um marido ciumento em Resende.
115
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Para esses granjeiros, a alternativa de aceitar o sindicato como seu mediador no conflito já era algo temerário, acostumados que estavam às formas
de relação informadas pelas tradições de compadrio. No entanto, o próprio
João Luiz, ao submeter seus empregados a um limite tão insuportável sem
uma explicação convincente, vinha rompendo com essas tradições:
[...] tinham pessoas que há trinta anos trabalhavam pra Rocha Klotz, a
média ali era de uns dezoito anos, então vários ali foram admitidos pelo
pai do João Luiz da Rocha Klotz,... Então, é como se fosse uma gratidão
muito grande daqueles trabalhadores com aquela família, [...] mas
chegou a um ponto que extrapolou qualquer limite de resistência, de
sobrevivência, tudo... e também o que colaborou para que eles entrassem com a ação também o próprio comportamento eu não sei.. rai[voso,
criminoso talvez desse João Luiz, onde os trabalhadores trabalhavam
muitos e muitos meses sem nada receber, eles concordavam em receber
dois meses de salário já tava bom [...] (PEREIRA, 2007, p. 194).
O argumento muitas vezes usado pelo patrão de que a empresa estava
falida não resistia ao fato, apontado pelos funcionários, da existência de 10
mil frangos para o abate nas instalações7.
Conflitos anteriores e paralelos
Quando o caso de escravidão da granja Rocha Klotz veio à tona, a sociedade local já estava mobilizada em função de outro conflito. Tratava-se
dos sem-teto do Jardim Esperança, ocupação na Fazenda da Barra, de propriedade de Klotz.
Ao fugir da elevação dos preços dos aluguéis, as famílias pretendiam
criar um bairro novo o Jardim Esperança. Klotz conseguiu uma liminar de
despejo, o que levou várias organizações populares de Resende a criarem
o Fórum Popular em Defesa do Jardim Esperança. O Fórum se reunia toda
quinta-feira no Sindicato dos Químicos e Farmacêuticos de Resende, coordenado por Valdo Duarte Gomes, advogado do referido sindicato.
Em 1993, o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica em
1993, era exatamente “a moradia”, o que contribuiu para o interesse e o envolvimento. A Comissão Pastoral da Terra e vários padres participaram do
fórum do Jardim Esperança. A Campanha da Fraternidade ali foi aberta com
uma missa no acampamento dos sem-teto, celebrada pelo bispo da região,
Dom Valdir Calheiros. A articulação dos setores populares organizados de
7 “Estes (Orlando e João Luiz Klotz) alegam estarem falidos, apesar de funcionários da granja garantirem
ao jornal O Globo que havia mais de dez mil frangos destinados ao abate nas instalações.” O GLOBO
DENUNCIA ESCRAVIDÃO EM PENEDO. Itatiaia, 08 de Abril de 1993.
116
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Resende no fórum popular se contrapondo ao despejo requerido por Rocha
Klotz contribuiu para facilitar a luta contra a escravização.
Neste contexto, outra circunstância insólita veio agravar a situação. João
Luiz havia levado seu pai, já muito velho e doente, a assinar um documento
passando para ele todos os bens da família, deserdando sua irmã. Esta, casada
com um juiz, processou o irmão. João Luiz então passou a processar todos
os juízes que sucessivamente assumiam o caso para atrasar o processo, se
tornando um desafeto do judiciário da região.
As ações de combate ao trabalho escravo
Em Resende e Itatiaia
Nem todos os funcionários da granja Rocha Klotz aceitaram a lei como
um espaço de mediação de suas relações com o administrador e o dono da
granja. Alguns continuaram submetidos diretamente a sua arbitrariedade.
Outros aceitaram participar de uma disputa dentro dos marcos da lei, porém,
mesmo os que a isto se dispuseram, ficaram a depender da interpretação
que tinham diferentes advogados sobre como traduzir tal conflito para as
formas legais. Assim, no caso dos escravizados da Rocha Klotz, podemos
afirmar que houve uma imposição de limites ao domínio da lei e a criação
de um espaço para a convivência entre o domínio da lei e o poder arbitrário
na forma como esses conceitos são propostos por Thompson:
Existe uma diferença entre o poder arbitrário e o domínio da lei. Devemos
expor as imposturas e injustiças que podem se ocultar sob essa lei. Mas o
domínio da lei em si, a imposição de restrições efetivas ao poder e a defesa
do cidadão frente às pretensões de total intromissão do poder parecemme um bem humano incondicional.(Thompson, 1987, p. 358.)
Houve quem considerasse que o caminho se esgotava na ação trabalhista,
como a advogada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Ana Paula Horta
Salvador, e houve quem advogasse para acrescentar uma disputa no campo
penal, como os advogados Valdo Duarte Gomes, que coordenava o Fórum
do Jardim Esperança, e Márcio Prado, membro da coordenação da CPT8.
Essa diferença ocorria em função do polêmico artigo 149 do Código Penal,
de resto muito antigo9.
8 Os advogados que encaminharam o conflito para o âmbito penal o fizeram de forma a defender a vontade
das vítimas. Entretanto, muitos juristas afirmam que a lei visa proteger a ordem social e não a personalidade desses ou daqueles cidadãos e, portanto, a lei deveria ser aplicada independente da vontade
das vítimas.
9 O artigo 149 tem origem na “Lei de Plagium” parte da constituição do império e das ordenações filipinas
cuja origem se encontra no direito romano. Nesses casos a escravidão era legal, sendo a Lei de Plagium
aplicada a quem submetesse à condição escrava pessoas livres ou libertas. O artigo 149 é uma adaptação
as novas circunstâncias, sendo crime fazer passar por escravo a qualquer um, já que todos devem ser
livres. CUNHA S., 1995.
117
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
De qualquer forma, o primeiro desdobramento jurídico do conflito social
começou com processos individuais cobrando verbas rescisórias e salários.
O senhor João Luiz Klotz, inicialmente procurou realizar acordos com os
trabalhadores e o sindicato, entretanto, passado algum tempo, alterou seu
comportamento negando sistematicamente todas as acusações dos trabalhadores, encaminhadas pelo sindicato. Isso produziu um aumento do número
de empregados da granja dispostos a lutar judicialmente. O sindicato acabou
por elaborar um processo coletivo de sessenta trabalhadores, visando o
pagamento de indenizações por infrações trabalhistas.
As condições de vida a que estavam submetidos esses trabalhadores
indicavam, porém, uma grave situação10:
A maioria morava lá dentro, tava morando em condições subumanas,
as casas eram totalmente destruídas e a cesta básica que eles recebiam
era pobre demais não atendia nem as necessidades básicas deles, não
tinham luz, não tinham água! E estavam sem trabalhar porque alguns
deles se revoltam com aquela situação então estavam suspensos de
trabalhar [...] (PEREIRA, 2007, p. 172).
Entretanto, a lei - no caso, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro de
1940, inspirado no artigo 337 do Código Penal Republicano de 1890 - na
época ainda era muito vaga e imprecisa na definição do que era trabalho
escravo:
“O artigo 149 não conceitua para os efeitos penais o que deve entender
como tal, o que possibilita interpretações variadas acerca da matéria.
Na maioria da vezes, as autoridades entendem que [...], advém do
costume e que, portanto, desnaturaria a tipificação penal.” (CUNHA,
1995. p. 59-60).
Informados da situação dos granjeiros da Rocha Klotz, os advogados
Valdo Duarte e Márcio Prado (então membro da 18ª subseção da Ordem
dos Advogados do Brasil - OAB/RJ), apostando nas contingências políticas
favoráveis (a existência do Fórum do Jardim Esperança e do desafeto do
judiciário por Klotz) assumiram o caso.
A tese fundamental se baseava no fato de que os granjeiros, ao não receberem salários, ficavam imobilizados na fazenda. Argumentavam que sem
recursos financeiros os empregados da granja não teriam condições de sair
10 “A maioria morava lá dentro, tava morando em condições subumanas, as casas eram totalmente destruídas e a cesta básica que eles recebiam era pobre demais não atendia nem as necessidades básicas
deles, não tinham luz, não tinham água! E estavam sem trabalhar porque alguns deles se revoltam com
aquela situação então estavam suspensos de trabalhar [...].” Ana Paula Horta Salvador, advogada do STR/
Barra Mansa. (Pereira, 2007, p. 172).
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
devido à grande distância até a cidade e ao fato de serem, na maioria, grupos
familiares, cuja saída a qualquer custo correspondia a um risco muito grande:
“Uma coisa é a pessoa sair sozinha da propriedade, tentar a vida aí
fora. Outra coisa é toda uma prole. E muito mais ainda quando se trata
de trabalhadores rurais que não tem nenhuma qualificação profissional e [...] vários deles analfabetos, [...]” (PEREIRA, 2007, p. 193).
A imobilização caracterizaria a privação da liberdade, e, portanto, uma
situação análoga a de escravo enquanto a ausência do pagamento de salários
caracterizaria um mecanismo de redução a escravidão.
A divulgação da denúncia do sindicato nos jornais O Globo e A Lira foram
os elementos catalisadores de todas essas circunstâncias políticas favoráveis a tal ajuizamento, possibilitando investir na busca de apoio não só dos
movimentos já organizados como do conjunto da sociedade como um todo:
“Nós não conhecíamos nada, nada, por mais que nós pesquisássemos
algumas coisas semelhantes e que estivessem tramitando no nosso
judiciário. [...] aquela ocasião foi inédita [...] a gente tem que trabalhar
demais a questão política, a divulgação, a sociedade...” (Pereira,
2007, p. 191).
Conjunto da sociedade é chamado a opinar
Foi com uma reportagem do jornalista Antônio Werneck, publicada em
4 de Abril de 1993 pelo jornal O Globo, que o caso de Penedo tomou uma
dimensão pública estadual. Tendo feito um balanço do número de casos de
denúncias de trabalho escravo no estado do Rio de Janeiro, Werneck incluiu
o caso da Granja Rocha Klotz como sendo “acusada pela Fetag de manter 80
pessoas em regime de semi-escravidão”.11 A partir dessa reportagem vários
jornais locais deram destaque ao caso.
Sob o efeito da reportagem de Antônio Werneck, o jornal A Lira, na
edição de 8 a 15 de Abril de 1993, publicou a denúncia contra Rocha Klotz
e revelou as intenções do sindicato de tentar antecipar a audiência marcada
para Agosto na justiça do trabalho, realizar manifestações em frente à empresa dos Klotz e junto com a Igreja Católica conseguir doações de alimentos.
Além disso, essa denúncia contra Klotz fragilizava-o politicamente frente à
disputa da área do Jardim Esperança:
“[...] isso politicamente era bastante interessante porque fragilizava
a posição do Klotz na discussão dos posseiros já que tava envolvido
11 FETAG: Federação dos Trabalhadores na Agricultura.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
numa denúncia da maior gravidade, né do ponto de vista dos direitos humanos e tal.” Álvaro M. B. Saraiva, jornalista do Sindicato dos
Químicos (PEREIRA, 2007, p. 189).
No dia 12 de Abril de 1993, ou seja, 8 (oito) dias após a reportagem de
O Globo, a FETAG e STR de Barra Mansa12 encaminharam ao promotor de
justiça da 2ª vara da comarca de Resende o registro de notitia criminis, onde
cita as denúncias de escravidão em O GLOBO e A Lira. Seis trabalhadores
rurais da fazenda Barra I foram arrolados como testemunhas.
A participação da Igreja no processo de envolvimento da sociedade foi
também fundamental. No âmbito local, apresentava o problema do ponto
de vista da ética cristã e mobilizava seus fiéis a contribuir materialmente
para a causa dos “trabalhadores escravizados”. Essa contribuição com alimentos se tornava um sinal para os granjeiros da Rocha Klotz de que não
estavam sozinhos e de que valeria a pena resistir. A CPT procurou conectar
outras instâncias de poder, dando à denúncia uma dimensão política que
extrapolava os limites municipais.
Setores da própria sociedade produziam acontecimentos que “alimentavam” a imprensa. A campanha de solidariedade em apoio do grupo de
sem-teto ameaçados de despejo pelo senhor João Luiz Klotz, que se intitulou
Movimento pela Cidadania, acabou tendo um papel importante no direcionamento da indignação social que tais reportagens suscitaram. A sobrevinda
do movimento nacional contra a fome (o Movimento da Ação da Cidadania
Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, encampada até pelo presidente Itamar
Franco), criou um panorama ainda mais sombrio sobre o que ocorria nas
granjas Rocha Klotz. Os dois movimentos, o de solidariedade aos granjeiros escravizados e aos brasileiros que passavam fome, chegaram mesmo a
serem confundidos. Com as campanhas para recolhimento de alimentos, a
sociedade já não somente foi chamada a opinar, mas passou também a ser
chamada a participar ativamente do embate.
A partir da metade do mês de abril de 1993, na região sul fluminense,
Bernardino e João Luiz protagonizaram uma polêmica pública sobre a existência de escravidão através de cartas em jornais da região e debate na rádio.
Apesar dos esforços de Bernardino, João Luiz soube usar sua oratória (era
pastor evangélico) se apresentando como empresário moderno, obtendo um
desempenho superior no debate de rádio: “[...] tais assertivas mentirosas,
[...], vêm enxovalhar o nome de uma empresa tradicional na região, que
12 Apoiados pela Comissão de Assistência e Direitos Humanos da 18ª Subseção da OAB/RJ.
120
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
labuta há mais de 20 anos no ramo de produção de alimentos, empregando
trabalhadores, detendo inclusive Know-how genético em avicultura...”.
Carta de João Luiz Klotz em A Lira (PEREIRA, 2007, p.189).
Entretanto, o desempenho positivo na rádio logo foi frustrado pelo impacto das imagens da televisão. A presença da televisão se deu por mediação da
comissão de deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro (ALERJ) articulada pela candidatura do deputado Paulo Banana.
Fernando Moura, assessor de Paulo Banana e ex-membro da CPT, mantinha
contato permanente com Álvaro Miguel, membro do Fórum Popular do Jardim
Esperança e um dos principais articuladores, e com o STR de Barra Mansa.
Foi através de Fernando Moura que a candidatura de Paulo Banana entrou
em contato com o caso Klotz e organizou a comissão de deputados.
Quando a comissão parlamentar foi ao distrito de Penedo em Itatiaia e
penetrou nas granjas e nas casas dos funcionários, a imprensa que os acompanhou também teve acesso àquelas dependências. Foram divulgadas: listas
com as quantidades e tipos de produtos que compunham aquilo que João
Luiz chamava de “cesta básica”; a denúncia dos trabalhadores compelidos a
assinar recibos em branco por salários que não recebiam para ter direito a
“cesta básica”; a imagem de uma mulher grávida que fora demitida e a mais
completa falta de comida13.
Contribuiu para a articulação da comissão de deputados estaduais
um elemento novo na conjuntura nacional que foi a mudança de postura
do governo federal frente às denúncias de escravidão, sempre negadas. A
partir de março de 1993, o governo passou a admitir a existência de escravidão no país e o ministro do trabalho, Walter Barelli, se mostrou disposto
a dialogar sobre o problema (Sutton, 1994). Não foi à toa que a comissão
de apuração de denúncia se efetivou em fins de junho de 1993 e teve um
encontro com o já referido ministro como uma das primeiras atitudes após
a visita à Granja Klotz14.
As imagens do estado de miséria dos granjeiros da Rocha Klotz provocaram um grande choque na população e frustraram as intenções de João
Luiz provar sua inocência. Os vigias que permitiram a entrada da comissão
13 Informações veiculadas nos jornais: TRABALHO ESCRAVO EM PENEDO. A Voz da Cidade. Resende, 22
de Junho de 1993. FUNCIONÁRIOS DA GRANJA VIVEM EM REGIME DE SEMI-ESCRAVIDÃO. Tribuna
do Comércio. Resende, 24 de junho de 1993. ESCRAVIDÃO. Imprensa livre. Resende, Junho/Julho,
1993. DEPUTADOS COMPROVAM EXISTÊNCIA DE TRABALHO SEMI-ESCRAVO EM PENEDO. Momento.
Itatiaia, 26 de Junho de 1993.
14 DEPUTADOS COMPROVAM EXISTÊNCIA DE TRABALHO SEMI-ESCRAVO EM PENEDO. Momento. 26
jun.1993.
121
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de deputados na fazenda foram demitidos sumariamente, fato explorado
pelos jornais.
Durante o mês de julho, no auge do Movimento da Ação da Cidadania
Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, a defesa dos trabalhadores escravizados
das granjas Rocha Klotz se tornou um tema em torno do qual se realizavam
coletas de alimentos e passeatas. O corte da “cesta básica” como punição
aos funcionários e a tentativa de impedir o contato da CPT com os empregados da fazenda, motivou ainda mais a reação dos agentes da CPT, da Igreja
Católica e do Sindicato.
Foi distribuída uma carta aberta à população denunciando a “prática da
escravidão” de Rocha Klotz e a situação de miséria dos granjeiros, pedindo
a doação de alimentos não perecíveis tendo como pontos de referência de
entrega, dentre outros, o Sindicato dos Químicos e a Igreja Nossa Senhora da
Paz. Assinavam essa “carta aberta” a CPT, o STR/Barra Mansa e o Movimento
em Defesa da Cidadania15.
Além da carta e da coleta de doações, se organizou uma passeata contra
o trabalho escravo. Para a divulgação de todas essas atividades foram utilizadas a distribuição de panfletos e o rádio. A população se dividiu: pequenos
comerciantes, donas de casa e trabalhadores em geral se posicionaram
levando mantimentos e manifestando apoio à causa dos trabalhadores escravizados. A elite local, entretanto, silenciou, tendo sido notável a omissão
da câmara municipal16.
Em 27 de Agosto de 1993, foi decretada a prisão preventiva de João
Luiz da Rocha Klotz em função das ameaças feitas aos granjeiros. A estadia
de Klotz na cadeia foi breve, porém marcante. Foi vivida como uma vitória
importante da organização das forças populares.
Porém, esse período de agitação e mobilização foi arrefecendo e o caso
de escravidão da granja Rocha Klotz se tornou mais um processo dentre os
vários na rotina judiciária.
Em 1998, seu Bernardino articulou a presença do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST) para ocupar a granja Rocha Klotz. O caso
de escravização foi o grande motivador da ação de ocupação da terra e da
15 Segundo me informou o senhor Álvaro Miguel, participavam desse movimento: Sindicato dos Químicos
e Farmacêuticos de Resende, Associação dos Aposentados, Federação das Associações de Moradores,
Sindicato dos Comerciários, Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação, Associação dos Professores
Municipais, comunidades eclesiais de base, associações de moradores, partidos de esquerda (Partido dos
Trabalhadores - PT; Partido Socialista do Brasil - PSB e Partido Comunista do Brasil - PC do B).
16 Ver entrevistas com Álvaro Miguel e Valdo Duarte (Pereira, 2007, p.189-200).
122
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
luta pela sua desapropriação em função do não cumprimento de uma das
funções sociais da terra – as relações harmônicas de trabalho.
A entrada do MST na granja Rocha Klotz reacendeu as discussões sobre
a escravidão na região e se tornou uma tentativa de implementar na prática
uma ideia que hoje é uma proposta de lei, a desapropriação de terras onde
se constate a prática da escravização.
Consequências e continuidades da luta
Independentemente do desfecho jurídico do caso, as consequências
políticas que a luta por esse enquadramento jurídico penal produziu foi
uma conquista considerável em termos de organização dos trabalhadores
e mobilização social.
O escritório de advocacia particular que assessorou o caso acabou por
obter certa notoriedade e a receber grande número de trabalhadores em
busca de demandas legais. Ou seja, a luta estimulou os trabalhadores a
reivindicarem seus direitos.
A ausência de pagamento de salários e o pagamento na forma de alimentos como indícios de redução a situação análoga a de escravo, passaram a
constar em documentos oficiais e em projetos de lei17. Assim, a luta contra
a escravidão na granja Rocha Klotz acabou se somando a um esforço maior,
no país, de luta pela alteração da lei que acabou se concretizando em 200318,
sem a inclusão, entretanto, dos requisitos propostos a partir do caso da
granja Rocha Klotz.
Sendo assim, em 2003, dez anos depois de prolongado processo judicial,
a ação trabalhista chegou ao fim com a vitória dos trabalhadores.
As terras da granja Klotz, apesar de nunca terem sido desapropriadas,
se encontram ocupadas até hoje pelo MST, tendo se tornado um exemplo
nacional de experiência agroecológica. Agora a granja Rocha Klotz tem um
novo nome: acampamento Terra Livre.
17 A Instrução normativa intersecretarial no. 1 de 24 de Março de 1994. Procedimentos da inspeção do
trabalho na área rural. Ministério do Trabalho; e o projeto de Lei 929/95, do Sr. Paulo Rocha e outros.
Câmara dos Deputados. Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília/DF.
18 Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, altera o art. 149 do decreto-lei n o 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 - código penal.
123
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Conclusão
Estudando o caso da granja Rocha Klotz, percebemos o nível dos conflitos
gerados por uma denúncia de escravização, envolvendo os seus sujeitos, que
vão criando táticas e estratégias para superar as dificuldades.
A dificuldade encontrada em enquadrar criminalmente as situações de
escravização no artigo 149 do Código Penal, motivou a transposição das
lutas locais, através de inúmeras mediações, para uma dimensão política
de maior envergadura, buscando adequar a lei à nova realidade social da
escravidão. Esses esforços produziram mobilização social e ampliação da
capacidade organizativa dos setores populares. É nessa articulação com
o conjunto das forças sociais organizadas, que a classe trabalhadora tem
exercitado sua capacidade de tornar “universal” sua interpretação acerca
das palavras e de seus usos. É nesse contexto que a luta pela caracterização
legal da escravidão capitalista atual se insere.
Esta ação contra a escravização capitalista é apenas uma das inúmeras
manifestações da luta contra o capital, é um dos aspectos da luta de classes
que é fruto de novas contradições histórico-sociais concretas. Os encaminhamentos dessas disputas em torno da escravização capitalista dependem
de outras disputas, inclusive, e talvez especialmente, de ordem ideológica
(Figueira, 1999, p. 200); disputas essas que mesmo se realizando em outras
trincheiras, contribuem no conjunto para todos aqueles que se encontram
do mesmo lado no campo de batalha.
Vivemos um momento da história do capitalismo em que, cada vez mais
surgem diferentes caminhos para a redução de trabalhadores a condição escrava. Alguns desses caminhos, mecanismos de redução, foram consagrados
na lei através da luta e mobilização social, outros caminhos permanecem sem
esse recurso legal. Por isso, os recursos da solidariedade, da vinculação entre
lutas setoriais, da articulação entre trabalhadores do campo e da cidade, da
ocupação de terras e do embate na imprensa são fundamentais na mobilização
da sociedade no combate ao trabalho escravo, bem como no combate a todas
as mazelas do Capital que na medida em que se aprofunda nos exige cada vez
mais unidade e criatividade para resistir e transformar a sociedade.
124
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Referências
CUNHA, S. E. Atualidade do plagium: redução à condição análoga à de escravo.
Rio de Janeiro: EMERJ, Dezembro, 1995. Mimeo.
DINHEIRO FOI ABOLIDO EM ABRIL DE 1992. O Dia, 12 de Setembro 1993.
PEREIRA, Gladyson S. B. A escravização capitalista no Brasil contemporâneo:
A denúncia, os conflitos, as mediações e a lei- Resende/Itatiaia Rio de Janeiro,
1993-1994. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2007.
SUTTON, Alison. Trabalho escravo: um elo na cadeia de modernização no Brasil
de hoje. São Paulo: CPT/CÁRITAS/CEDI-KOINONIA/CONTAG/CUT-DNTR/ FASE/
IFAS/MNDH/MST/OAB. 1994
THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores: A origem da lei negra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
WEISSBRODT, D. et al. La abolición de esclavitud y sus formas contemporâneas. Nova York e Genebra: ONU, 2002.
125
II
PODER PÚBLICO E SOCIEDADE CIVIL
1
Modelo de auxílio à identificação de trabalho
análogo ao de escravo usando lógica Fuzzy
Introdução
Benedito de Lima e Silva Filho
Renato de Mello
A escravidão do homem para força de trabalho é talvez a mais antiga
forma de opressão imposta pelos detentores do poder em relação aos seus
semelhantes. São encontrados relatos de escravidão humana nas antigas
civilizações da África, da Ásia e mesmo da América do Sul e Central. No
Brasil, aconteceu inicialmente a tentativa de portugueses em escravizar os
índios, que foi em parte mal sucedida. A nação foi erguida sobre o trabalho
de escravos índios e africanos e posteriormente sobre a semi-escravidão dos
descendentes dos africanos miscigenados com índios e portugueses.
Em todo o mundo, e especialmente no Brasil, convivem lado a lado
trabalhadores que têm os seus direitos trabalhistas respeitados pelos empregadores e outros que não os têm, trabalhando em condições análogas às
de escravo. Eles estão expostos a riscos ambientais elevados e sem proteção.
Alojados em barracos de lona preta, bebem água contaminada, trabalham
sem carteira de trabalho assinada, sem acesso a informações trabalhistas e
previdenciárias, às vezes contraem dívidas perpétuas com o patrão, o que os
colocam em situação de absoluta submissão em relação ao empregador.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Esses indivíduos não têm usualmente capacidade de se mobilizarem
para sair destas condições e se emanciparem, seja por razões de falta de
entendimento da situação em que se encontram, ou por razões de força
do escravizador. Tais como os grupos que necessitam de tutela do Estado:
crianças, idosos, indígenas e incapacitados, os trabalhadores escravizados
merecem e têm direito de receber proteção social.
Até meados da década de 1990 o governo brasileiro vinha negando
a existência deste contingente de brasileiros (também de estrangeiros
imigrantes) em condições subumanas de trabalho, como se a negação do
fenômeno limpasse esta nódoa histórica. As recentes ações institucionais
trouxeram à tona a dimensão, nada desprezível, da escravização humana
no país e a premente necessidade da eliminação definitiva desta situação
limite da condição humana.
Há trabalhadores, especialmente os rurais, laborando em condições de trabalho em que os direitos trabalhistas e constitucionais não são
respeitados. A situação desses trabalhadores, geralmente, é reconhecida e
legitimada como escravidão, ainda que não haja uma definição precisa.
Este artigo define as variáveis que melhor caracterizam trabalho
análogo ao de escravo, avalia em campo estes indicadores e valida o modelo
de auxílio de decisão de identificação dessa situação. Além de apresentar
uma estrutura lógica e computacional de apoio à decisão na caracterização
das condições de trabalho, utilizou-se instrumentos lógicos na forma de soft
decision trees, apoiados na lógica Fuzzy.
O que se verifica em campo, é que o cenário encontrado raramente se
apresenta como uma situação clara e precisa em relação ao trabalho servil.
Na maioria das vezes os auditores são obrigados a fazerem inferências para
a identificação daquelas condições.
Atualmente, não existe nenhum modelo de apoio à decisão na identificação de trabalho análogo ao de escravo sendo utilizado pelo Grupo Especial
de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Este fato tem levado à dificuldade em reconhecer tal situação, onde são frequentes as situações em que os agentes públicos discordam entre si. Existe
premência que a área de fiscalização do trabalho do MTE disponha de modelo
que apoie os decisores na identificação, em campo, do trabalho.
As características da analogia à escravidão são de difícil mensuração, estão todas interrelacionadas e se situam em campos dos métodos
sociológicos e filosóficos. As ciências exatas voltaram-se para contemplar
a avaliação de sistemas difusos e estruturas lógicas de representações.
130
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Entre as contribuições que se mostram promissoras para tal, está a teoria
da lógica difusa.
Este artigo apresenta um modelo robusto e sensível para estas avaliações
e pretende atender aos anseios dos atores sociais envolvidos no combate à
escravidão contemporânea.
A lógica difusa
Zadeh desenvolveu a Teoria de Conjuntos Difusos com o objetivo de fornecer um ferramental matemático que considerasse os aspectos imprecisos
do raciocínio lógico dos seres humanos e, ainda, situações ambíguas, não
passíveis de processamento através da lógica computacional fundamentada
na lógica booleana que é um sistema de dedução matemática restrito aos
valores zero e um (falso e verdadeiro).
Para que a lógica humana seja implementada em soluções de engenharia é preciso que se construa um modelo matemático compatível com este
raciocínio impreciso.
Portanto, a lógica difusa tem sido desenvolvida como um modelo matemático que permite a representação das decisões humanas e processos
de avaliação em forma de algoritmo.
Por isso, o conceito da variável linguística é considerado tal como a
essência da técnica da modelagem difusa. Deste modo, ela pode ser considerada assim como o nome dado a um conjunto difuso. E ainda representade
modo impreciso conceitos de variáveis de um dado problema, admitindo
como valores somente expressões linguísticas, também chamadas de termos
primários, tais como muito baixo, baixo, alto, muito alto, etc. Estes valores
contrastam com os valores precisos assumidos por variáveis numéricas.
A participação difusa de uma variável linguística é definida por quanto um dado elemento xi , do universo de discurso U , satisfaz o conceito
representado por um conjunto difuso à , definido pelo valor da função de
pertinência µ Ã ( xi ) , xi ∈ U .
São as propriedades sintáticas e semânticas que regem o comportamento
do sistema de conhecimento difuso. Elas definem a forma de utilização das
variáveis linguísticas.
As propriedades sintáticas definem a forma com que as informações
linguísticas difusas são armazenadas, proporcionando a criação de uma base
de conhecimento com sentenças devidamente estruturadas.
É da natureza humana trabalhar com características incertas, mas em
muitas situações existe a necessidade de um valor numérico que represente
131
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
o valor de referência. Logo, torna-se necessário um processo que converta o
valor difuso resultante da saída de inferência para um número real, tal como
uma ação bem definida, processo esse denominado de desfuzificação.
O modo mais comum de armazenar informações é a representação por
meio de regras de produção difusa, que normalmente são compostas de duas
partes principais: SE < situação > ENTÃO < ação >
A parte SE descreve a situação, para a qual ela é designada e a parte
ENTÃO descreve a ação do sistema difuso nesta situação.
A situação compõe um conjunto de condições que, quando satisfeitas,
mesmo parcialmente, determinam o processamento da ação, e realiza isso
através de um mecanismo de inferência difuso, ou seja, dispara uma regra.
Por sua vez, a ação compõe um conjunto de diagnósticos que é processado
e que, em seguida produz uma resposta quantitativa para cada variável de
saída do sistema.
O mecanismo de inferência define o processamento das situações, os
indicadores de disparos das regras e os operadores utilizados em um sistema
de conhecimento difuso. Isto se dá de acordo com a semântica. Desta forma,
é executado o processamento de conhecimento. As informações quantitativas
são transformadas em informações qualitativas, e este processo é considerado um processo de generalização, comumente denotado de fuzificação.
Por um processo de especificação, comumente chamado de desfuzificação, a conversão difuso → escalar transforma informações qualitativas em
uma informação quantitativa.
Trabalho escravo no século XXI
As práticas coercitivas de trabalho forçado estiveram quase sempre
associadas aos regimes colonialistas e às tradições de servidão. Há, no entanto, aspectos de trabalho forçado que continuam presentes nas formas
contemporâneas de utilização de mão de obra, como a escravidão por dívida,
encontradas nas zonas rurais.
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), existe dificuldade de
caracterização de trabalho forçado por não haver clara definição do conceito,
esse fato implica na coleta de dados e de estatísticas. Quantas pessoas são
atingidas pelo trabalho? Quem são essas pessoas? Quem são as principais
vítimas? Como funciona exatamente o trabalho forçado? Qual o perfil de quem
se beneficia diretamente da sujeição de pessoas à servidão humana?
As respostas a estas questões levarão a um maior entendimento da relação existente entre o desenvolvimento, a pobreza e a desigualdade, pois a
132
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
existência de trabalho escravo desafia o valor do trabalho, solapa a formação
de capital humano e contribui para o ciclo da pobreza. Trabalho forçado, além
de ser uma expressão jurídica que expressa um tipo de relação do mundo
do trabalho, é também um fenômeno econômico que vem se reproduzindo
no mundo capitalista há vários séculos.
O trabalho forçado, do qual o trabalho análogo ao de escravo é espécie,
é uma forma de negação da liberdade humana, ainda encontrado em vários
países, nos mais diversos continentes. Esta opressão continua sendo um dos
problemas mais complexos encontrados no mundo do trabalho. O trabalho
servil merece ser atacado pelas autoridades locais, governos nacionais,
organizações de empregadores e de trabalhadores e da comunidade internacional a fim de sua eliminação.
A convenção de 1926 da OIT define escravidão como o estado ou a
condição de uma pessoa sobre a qual se exercem alguns ou todos os poderes
relativos ao direito de propriedade.
Em 1956, as Nações Unidas adotaram a Convenção Suplementar sobre
Abolição da Escravidão, Tráfico de Escravos e Instituições e práticas Análogas
à Escravidão na qual se exortavam os países membros a abolirem práticas
como a servidão de modo geral e por dívidas.
A referida Convenção em seu artigo 1° alínea “a” define servidão por
dívida como o estado ou condição que resulta do fato de um devedor se ter
comprometido a prestar seus serviços pessoais, ou os serviços de alguma
pessoa sobre a qual exerce autoridade, como garantia de uma dívida, se o
valor desses serviços razoavelmente avaliados, não for aplicado na liquidação
da dívida, ou se não se define o prazo e a natureza dos ditos serviços.
Para a OIT o principal aspecto do trabalho forçado nas áreas rurais do
Brasil é o endividamento que acaba imobilizando o trabalhador nas propriedades até a quitação da dívida o que na maioria das vezes é construída
de forma fraudulenta.
Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho escravo, Ela
Wiecko V. de Castilho (procuradora da República) afirma que o conceito
jurídico de trabalho escravo é restrito e imperfeito, cabendo aos servidores
do estado aplicá-lo, dando a interpretação mais adequada à proteção dos
direitos humanos (CASTILHO, 1994).
Segundo Martins (1999), mesmo durante o período da escravidão legal,
havia dificuldades jurídicas para definir quem era escravo e quem não era.
Alguns aspectos da escravidão contemporânea são piores do que a do negro
do período colonial. Algumas das denúncias vêm acompanhadas de relatos
133
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de violências físicas contra o trabalhador, o que ocorria naquela época, mas
em proporção bem menor. Na escravidão do período colonial, o escravo era
propriedade do senhor e, portanto capital imobilizado e não era de seu interesse incapacitá-lo para o trabalho ou matá-lo. Outra diferença importante
é que no caso da escravidão atual no Brasil, ela é sazonal dependente das
peculiaridades de cada cultura, enquanto no período colonial a escravidão
era permanente.
O tipo de trabalho acima referenciado vem algumas vezes acompanhado
de um conjunto de práticas que podem ser identificadas juridicamente como
crime: manter pessoas em cárcere privado, praticar violência física, como
a tortura e as lesões corporais, os assassinatos, os crimes ambientais, e as
violações às leis trabalhistas e previdenciárias como a não assinatura da
Carteira de Trabalho e Previdência de Trabalho (CTPS), o não pagamento
dos direitos previdenciários, não pagamento dos salários e das férias, e disponibilizar condições inadequadas de habitação, transporte, alimentação e
segurança (FIGUEIRA, 2004).
O modelo de identificação de trabalho escravo
O modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo integra os temas de desconformidade legal trabalhista; desconformidade legal
de segurança e saúde do trabalhador; desconformidade legal penal e desconformidade social. Estes critérios temáticos foram desdobrados em seus
componentes próprios, até que os indicadores possam ter avaliação direta
em campo. Então, estes são representados em um mapa do tipo top down
decision trees, por meio de operações básicas dos conjuntos Fuzzy.
A árvore principal da figura a seguir representa o sistema Fuzzy para
a identificação dessa modalidade ilegal de trabalho O desenho da árvore
é feito pelos decisores, que definem quais indicadores temáticos melhor
compõem o indicador sistêmico de cada um dos temas. É estruturado inicialmente a partir da busca em responder qual é o grau de identificação do
tema pesquisado.
134
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Figura a- Árvore de causas de Trabalho análogo ao de escravo.
O resultado das operações dos blocos de regras “se, e, ou, então” fornecem elementos indicadores de estado dos avaliadores temáticos. O resultado
final do indicador sistêmico localiza a avaliação do que foi observado em
campo, em um universo de discurso acordado, para verificação do grau de
confiança com que se pode contar para identificar o trabalho como análogo
ao de escravo.
As definições das variáveis e a estruturação do modelo ficaram a cargo
de um grupo interministerial de decisores. O grupo foi constituído de um
moderador do MTE e três decisores, sendo dois auditores fiscais do trabalho
e um Procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT).
135
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Os decisores procuraram contemplar as variáveis presentes no ordenamento jurídico brasileiro concernente ao trabalho em condições de escravidão, além de inserir alguns indicadores no campo social não constantes no
ordenamento jurídico, mas presentes nas relações de trabalho.
O grupo definiu os quatro indicadores temáticos que conformam a identificação de escravidão: desconformidade legal trabalhista, de segurança e
saúde, além de desconformidade legal, penal e social.
Em seguida, a representação foi desdobrada até que os indicadores
primários pudessem ser caracterizados e medidos. Cada composição tem
regras próprias, segundo o entendimento que os decisores têm da importância relativa destes indicadores individuais e/ou temáticos na composição
de um indicador temático, e dos indicadores temáticos na composição de
um indicador sistêmico.
Foram então estimadas pelo grupo de decisores as importâncias relativas
de cada indicador na composição do indicador de ordem superior.
A identificação do trabalho é feita dentro da seguinte escala: valor inferior a (0,5) será considerado descumprimento de normas; valores igual
ou superiores a (0,5) será considerado trabalho análogo ao de escravo. Os
indicadores definidos pelo grupo decisor foram os seguintes:
Identificação de trabalho análogo ao de escravo
Este indicador expressa o grau de semelhança entre as condições de trabalho encontradas em campo e as previsões legais determinantes de trabalho
análogo ao de escravo definidas no ordenamento jurídico brasileiro.
Desconformidade legal trabalhista
Este indicador expressa o grau de desconformidade legal na relação
de emprego existente entre o empregador e o trabalhador em relação à
legislação supracitada.
Remuneração
O termo remuneração representa o conjunto de retribuições recebidas
pelo trabalhador pela prestação de serviços, seja em forma de dinheiro ou
de utilidades, provenientes do empregador ou de terceiros, decorrentes do
contrato de trabalho a fim de satisfazer as suas necessidades básicas e de sua
família. Representa o conjunto de remuneração direta ou indireta, recebido
pelo trabalhador, derivado da relação do contrato de trabalho (formal ou
informal) entre empregado e empregador.
136
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Registro
Apesar de não ser uma prestação pecuniária ou utilitária, a variável registro está embutida no bloco remuneração por se constituir a base da relação de
emprego de onde todos os direitos trabalhistas derivam. Indicador que verifica
a formalização da relação de trabalho entre o trabalhador e o empregador.
Salário
Compreende-se salário como o conjunto de retribuições recebidas
habitualmente pelo trabalhador em troca dos serviços prestados, seja em
dinheiro ou em utilidades destinado a satisfazer as necessidades pessoais
do trabalhador e de sua família.
Contribuições previdenciárias
Este indicador expressa a conformidade legal das exigências previdenciárias a cargo do contratante em relação ao trabalhador.
Carga de trabalho
Este indicador visa comparar as exigências a que são submetidos os
trabalhadores frente às cargas máximas admitidas na legislação trabalhista
considerado o patamar superior não causador de patologias do trabalho.
Jornada
Indicador que avalia a exploração da capacidade de trabalho e representa
crime capitulado no art. 149 do Código Penal, quando excessiva.
Descanso semanal
Identifica se a pausa mínima semanal necessária para a reposição das
energias dos trabalhado está sendo concedida.
Férias
Este indicador verifica se as férias estão sendo concedidas de acordo
com a legislação trabalhista.
Desconformidade legal de segurança e saúde
Este indicador expressa o grau de desconformidade das condições de
segurança e da saúde do trabalhador em relação ao controle dos riscos físicos, químicos, mecânicos e biológicos existentes no ambiente de trabalho.
137
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Condições sanitárias
Indicador temático que mede a qualidade dos fatores higiênicos do
trabalho.
Água e instalações sanitárias
Neste artigo, entende-se como instalações sanitárias o local destinado
ao asseio corporal e/ou ao atendimento das necessidades fisiológicas de
excreção.
Alojamento
Alojamento é local onde os trabalhadores moram, seja em caráter temporário ou em definitivo, e devem ter condições de abrigar os trabalhadores
em perfeitas condições de higiene e segurança contra intempéries e animais
silvestres ou peçonhentos.
Este indicador qualitativo avalia as condições de segurança e higiene
dos alojamentos disponibilizados aos trabalhadores.
Saúde e segurança
Este indicador representa o conjunto de fatores que conformam a condição de saúde dos trabalhadores.
Equipamento de proteção individual – EPI
EPI é todo dispositivo ou produto, de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança
e a saúde no trabalho.
Atestado de saúde ocupacional - ASO e primeiros socorros
Devido à peculiaridade de o trabalho rural proporcionar os mais variados tipos de acidentes e ser desenvolvido normalmente em locais de difícil
acesso, o que torna o transporte do acidentado até instalações hospitalares
mais próximas demorado, a NR-311 tornou obrigatório que todo estabelecimento rural deverá estar equipado com material necessário à prestação
de primeiros socorros, considerando-se as características da atividade
desenvolvida e realização de exames médicos a fim de monitorar a saúde
dos trabalhadores.
1 Norma que regulamenta a segurança e saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração
florestal e aquicultura.
138
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Este indicador qualitativo serve para monitorar a saúde dos trabalhadores.
Desconformidade legal penal
O indicador de desconformidade legal penal contempla as variáveis
presentes no Código Penal brasileiro caracterizadores de atos considerados
crimes e passíveis de detenção nas relações de emprego.
Servidão por dívidas
Este indicador representa a relação de submissão do trabalhador em
relação ao empregador derivada de dívidas contraídas durante a relação
de emprego.
Descontos indevidos
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no art. 462 prevê que “ao
empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado,
salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de
contrato coletivo”. Este indicador quantitativo avalia os descontos efetuados
pelo empregador no salário do trabalho.
Coagir compras
Este indicador avalia a subordinação do trabalhador frente ao empregador ao ser este obrigado a efetuar suas compras de mantimentos diretamente
do empregador, criando entre ambos o elo da escravidão por dívida.
Compra da liberdade do trabalhador
A compra da liberdade representa indicador qualitativo que apesar de
não ter previsão legal de crime é utilizado com frequência pelos agenciadores
de mão de obra como mecanismo de vínculo entre o trabalhador e o gato.
Restrição de ir e vir
A Constituição Federal assegura aos brasileiros o direito de livre trânsito
em todo o território brasileiro em tempo de paz. A restrição a este direito
representa uma das formas de violação constitucional mais utilizada pelos
fazendeiros que se utilizam de vários artifícios para manter os trabalhadores
imobilizados dentro das fazendas.
139
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Coação física ou psicológica
A coação física aos trabalhadores, apesar de ainda existir como forma de
restringir o direito de ir e vir, tem sido substituída, nos últimos tempos, pela
coação psicológica uma vez que esta é mais sutil e difícil de ser detectada pelos
órgãos de combate ao trabalho análogo ao de escravo. Indicador de caráter
subjetivo e qualitativo que influencia o comportamento dos trabalhadores.
Retenção de documentos
Este indicador representa outro mecanismo de manutenção dos trabalhadores sob jugo do empregador uma vez que sem documentos os trabalhadores se sentem impotente para saírem das fazendas.
Vigilância armada
Indicador qualitativo tipificado como crime no Código Penal brasileiro
bastante frequente na escravidão contemporânea.
Desconformidade social
Este indicador qualitativo expressa o exercício de cidadania pois, através dele será determinado o grau de inserção que este trabalhador tem na
sociedade e o respeito a seus direitos assegurados na constituição federal.
Segregação
O indicador segregação expressa o nível de restrição dos trabalhadores
em relação ao convívio com os outros companheiros e com as comunidades
próximas ao local de trabalho.
Aliciamento em outros locais.
Este indicador é uma das formas sutis utilizadas pelo contratante para
manter o trabalhador preso nas fazendas, uma vez que alienado de seu habitat natural o trabalhador se sente impotente para romper o contrato. Tem
previsão legal de pena de detenção de um a três anos e multa.
Intermediação de mão-de-obra
A contratação de trabalhadores para trabalhar nas fazendas da região
Norte e Centro-Oeste do Brasil na derrubada de mata ou roço de juquira
normalmente ocorre através de terceiros (gatos) a mando dos fazendeiros
a fim de tentar descaracterizar a contratação ilegal de mão de obra em outra
localidade.
140
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Este indicador qualitativo demonstra de forma clara um dos mecanismos
de construção da relação de trabalho escravo no meio rural brasileiro.
Bloco informações e conhecimento
Este indicador expressa qualitativamente o nível de informações que
chegam ao trabalhador no tocante a informações de caráter pessoal (informações familiares), informações geográficas (se o trabalhador sabe a
localização correta da fazenda onde está trabalhando), se tem informações
do que ocorre na sociedade através de rádio, televisão, jornais e revistas.
Informações gerais/contratuais
As informações trabalhistas expressam o grau de conhecimento do trabalhador em relação aos direitos trabalhistas, e indica a possibilidade de defesa destes
direitos na relação de emprego, pois quanto menor o grau de conhecimento dos
seus direitos mais fácil será mantê-lo em condições de escravidão.
Este indicador expressa a conformidade entre o contrato firmado (verbal
ou escrito) entre o trabalhador e o empregador no momento da contratação
e o efetivamente cumprido pelas partes durante o contrato de trabalho.
Isolamento social
Indicador de caráter qualitativo expressa o nível de liberdade dos
trabalhadores em relação ao convívio com os outros trabalhadores e com
as comunidades próximas ao local de trabalho e se é assegurado o direito
constitucional de ir e vir.
Valoração dos Indicadores
A aplicação do modelo tem início com a elaboração de uma planilha,
onde são anotados os indicadores primários que, segundo o grupo decisor,
melhor caracterizam o trabalho análogo ao de escravo.
O indicador temático está disposto na planilha logo abaixo dos indicadores
primários de forma a melhorar a visualização de cada tema, bem como, facilitar a
visualização da influência de cada indicador primário no indicador temático.
Planilha operacional
A planilha operacional do modelo em estudo apresenta em sua parte superior, campos destinados à identificação da empresa em que devem ser inseridos
nome; endereço; número do Cadastro Nacional de Pessoa jurídica (CNPJ); Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e números de empregados.
141
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Na parte inferior da planilha, constam os nomes dos indicadores primários e temáticos. Cada indicador poderá assumir quaisquer valores entre
zero (melhor situação) e Um (pior situação). À medida que os valores dos
indicadores primários são inseridos, os valores dos indicadores temáticos se
alteram automaticamente, refletindo a influência de cada indicador primário
em seu bloco temático e, simultaneamente, é apresentada na parte inferior
da planilha a identificação do trabalho que vai se alterando conforme a influência do indicador no modelo e pode assumir as seguintes classificações:
descumprimento de norma; análogo ao de escravo.
Aplicação do modelo em uma situação real
O modelo de auxílio de identificação de trabalho análogo ao de escravo,
acima exposto, foi aplicado em uma situação real de fiscalização do GEFM do
MTE, na cidade de Sobral-CE, em fevereiro de 2006. Durante a ação foram
retirados 41 (quarenta e um) trabalhadores, todos oriundos do Maranhão,
em função das condições de trabalho serem consideradas comparáveis a
escravidão. O nome da empresa aposto na planilha, bem como o endereço,
o CNPJ, o CNAE e o número de trabalhadores são todos fictícios, entretanto,
os valores dos indicadores são verdadeiros e correspondem ao consenso do
GEFM em relação ao cenário encontrado.
MINISTÉRIO DO TRABALHO
EMPRESA
IDENTIFICAÇÃO DE TRABALHO ANÁLOGO À DE ESCRAVO
EMPRESA FICTÍCIA LTDA
ENDEREÇO
Rua Padre Fialho nº 100
CNPJ
00,999,000/11111-00
CNAE
NÚMERO DE EMPREGADOS
Descanso semanal
1414
100
SITUAÇÃO EXISTENTE - AVALIÇÃO DE PROBLEMAS
0,8
Férias
0,0
CARGA DE TRABALHO
Contribuição previdenciária
1,0
Salário
0,5
EPI
0,8
Jornada
0,7
Registro
Água/instalações sanitárias
0,5
1,0
REMUNERAÇÃO
1,0
exames médicos/primeiros socorros
Alojamento
142
1,0
0,7
1,0
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
CONDIÇÕES SANITÁRIAS
0,9
NR 31
retenção de documentos
0,8
0,0
RESTRIÇÃO DE IR E VIR
0,2
Coação física
0,0
Vigilância armada
0,0
compra da liberdade
informações sobre o contrato
0,3
1,0
SERVIDÃO POR DÍVIDA
INFORMAÇ. E CONHECIMENTOS
intermediação de mão de obra
Isolamento
0,9
Coagir compras
0,0
Decontos
0,7
1,0
0,0
aliciamento em outra localidade
0,3
SEGREGAÇÃO
0,9
IDENTIFICAÇÃO DO TRABALHO
TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
1,0
Planilha 1-Situação real encontrada na empresa Fictícia Ltda na cidade de Sobral-CE 2006
A análise de todas essas variáveis de saída será demonstrada a fim de
melhorar a compreensão da identificação de trabalho apresentada para
esta situação real. A análise é realizada na mesma sequência da planilha
de identificação do trabalho escravo. Lembrando que, apesar de estar
oculta na planilha, por motivos estéticos, as variáveis “carga de trabalho” e
“remuneração” formam juntas a “desconformidade legal trabalhista”; que
as variáveis de saída, “condições sanitárias” e “NR-31” constituem a “desconformidade legal de segurança”; que as variáveis de saída, “restrição de
ir e vir” e “servidão por dívida” formam a “desconformidade legal penal”
e por fim as variáveis de saídas “informação” e “conhecimento” formam a
“desconformidade social”.
Figura 1 - Variável de Saída Carga de trabalho
O indicador temático carga de trabalho pertence ao conjunto de variável
linguístico ótima com pertinência igual a (0,0); tem pertinência (0,6) em
relação ao conjunto linguístico boa; já em relação ao conjunto linguístico
143
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
média tem pertinência (0,2) e pertinência (zero) em relação ao conjunto
linguístico ruim.
Figura 2 - Variável de saída Remuneração
O indicador temático “remuneração” pertence ao conjunto de variável
linguístico “ótima” com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto
linguístico “boa” tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico
“média” tem pertinência (0,4) e em relação ao conjunto linguístico “ruim”
tem pertinência (0,6).
Figura 3 - Variável de saída Desconformidade legal trabalhista
O indicador Desconformidade legal trabalhista tem como entrada os dois
indicadores retro analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico
nenhuma com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico
pouca tem pertinência (0,5); em relação ao conjunto linguístico média tem
pertinência (0,9) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência
(zero). O que demonstra que aqueles indicadores influenciam medianamente
a desconformidade legal trabalhista.
144
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Figura 4 - Variável de saída Condições sanitárias
O indicador de saída condições sanitárias pertence ao conjunto de variável linguístico ótima com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto
linguístico boa tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico
média tem pertinência (zero) e tem pertinência máxima (1), em relação ao
conjunto linguístico ruim.
Figura 5 -Variável de saída NR-31
O indicador de saída NR-31 tem pertinência igual a (zero) em relação
ao conjunto de variável linguístico ótimo; em relação ao conjunto linguístico
bom tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico médio tem
pertinência (zero) e máxima (1) em relação ao conjunto linguístico ruim.
145
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Figura 6 - Variável de saída Desconformidade legal de segurança
O indicador Desconformidade legal de segurança tem como entrada os
dois indicadores acima analisados e tem pertinência igual a (zero) em relação ao conjunto de variável linguístico nenhuma; com relação ao conjunto
linguístico pouca tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico
média tem pertinência (zero) e tem pertinência máxima (1) em relação ao
conjunto linguístico alta. O que demonstra que aqueles indicadores influenciam a desconformidade legal trabalhista com a máxima intensidade, fazendo com que este indicador influencie intensamente o indicador sistêmico
identificação de trabalho análogo ao de escravo.
Figura 7 - Variável de saída Restrição de ir e vir
O indicador temático restrição de ir e vir pertence ao conjunto de variável
linguístico nenhum com pertinência igual a (0,6); tem pertinência (0,4) em
relação ao conjunto linguístico pouca; em relação ao conjunto linguístico
média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta tem
pertinência (zero).
146
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Figura 8 - Variável de saída Servidão por dívida
O indicador temático servidão por dívida pertence ao conjunto de variável
linguístico nenhuma com pertinência igual a (0,9); em relação ao conjunto
linguístico pouca tem pertinência (0,1); em relação ao conjunto linguístico
média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta tem
pertinência (zero).
Figura 9 – Variável de saída Desconformidade legal penal
O indicador Desconformidade legal penal tem como entrada os dois
indicadores retro analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico
nenhuma com pertinência igual a (1,0); tem pertinência (0,1) em relação ao
conjunto linguístico pouca; já em relação ao conjunto linguístico média tem
pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta também tem
pertinência (zero). O que demonstra que aqueles indicadores influenciam
a desconformidade legal penal com intensidade bastante baixa fazendo com
que este indicador influencie minimamente o indicador sistêmico identificação de trabalho escravo.
147
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Figura 10: Variável de saída Informação
O indicador temático informação pertence ao conjunto de variável
linguístico ótima com pertinência igual a (0,0); em relação ao conjunto
linguístico boa tem pertinência (1,0); já em relação ao conjunto linguístico
médio tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico ruim
também tem pertinência (zero).
Figura 11: Variável de saída Segregação
O indicador temático segregação pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto
linguístico pouca tem pertinência (zero); também em relação ao conjunto
linguístico média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico
alta tem pertinência máxima (1).
148
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Figura 12: Variável de saída Desconformidade social
O indicador Desconformidade social tem como entrada os dois indicadores acima analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma
com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouca tem
pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência
(1,0) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência (zero). O que
demonstra que aqueles indicadores influenciam a desconformidade social
com intensidade média, fazendo com que este indicador influencie medianamente o indicador sistêmico identificação de trabalho escravo.
Variável de saída Identificação de trabalho análogo ao de escravo
Observa-se pela figura 9 que para a situação real encontrada na EMPRESA FICTÍCIA LTDA, o indicador sistêmico identificação de trabalho análogo
à de escravo pertence ao conjunto de variável linguístico pouquíssimo com
pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouco tem
pertinência (0,5); em relação ao conjunto linguístico médio tem pertinência
(1,0) e tem pertinência (zero) em relação ao conjunto linguístico alto.
Figura 13: Identificação de trabalho escravo
149
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A identificação das condições de trabalho mostrada na figura 9 indica que
0,5556 das condições ideais de trabalho estão sendo descumpridas e, portanto caracterizam as condições de trabalho análogo as de escravo conforme
determinado pelo grupo decisor. É importante ressaltar que mesmo o bloco
desconformidade legal penal tendo uma contribuição bastante pequena na
identificação de trabalho comparável à escravidão por ser constituída em
relação a variável nenhuma com o valor máximo (1,0); a desconformidade
de segurança e saúde por ter grau de pertinência máxima (1) trouxe a caracterização para a parte central do diagrama, o que foi preponderante para a
identificação de escravidão. Fica demonstrado, neste caso, que mesmo não
havendo as infrações previstas no código penal e presentes no modelo, as
outras variáveis tiveram bastante significância na caracterização do cenário
e quase que sozinhas puderam identificar as condições de trabalho encontradas na empresa FICTICIA LTDA como trabalho análogo ao de escravo.
Conclusões e recomendações
O modelo desenvolvido serve para auxiliar à identificação das condições
de trabalho mesmo em condições limítrofes de descumprimento de normas.
Estas últimas, às vezes, caracterizadoras de trabalho degradante que são em
última instância, trabalho análogo ao de escravo. O modelo procurou contemplar o maior número possível de variáveis constantes no ordenamento
jurídico brasileiro e nas convenções internacionais da OIT ratificadas pelo
Brasil, a fim de ser o mais fiel as leis tuteladoras do trabalho.
A construção do modelo partiu inicialmente de uma revisão dos conceitos de trabalho escravo ao longo da história e em especial da escravidão
brasileira do período colonial e contemporâneo.
Em seguida foi realizado um estudo do ordenamento jurídico brasileiro
pertinente ao assunto de forma a embasar a escolha das variáveis do modelo.
Ponto importante na construção do modelo foi a constituição de um grupo
interministerial de decisores com participação de auditores fiscais do MTE,
e de procurador do MPT para a escolha e valoração das variáveis presentes
no mesmo. O método utilizado para a pesquisa, onde as variáveis escolhidas
são fruto de decisões de consenso de especialistas revelou-se importante
para que o mesmo se mostrasse sensível e robusto durante a validação em
uma situação real de fiscalização do MTE, no município de Sobral-CE.
O Modelo desenvolvido ao ser aplicado para validação em uma fiscalização de combate ao trabalho análogo ao de escravo do GEFM do MTE,
respondeu de forma precisa, ao identificar como o trabalho com caracterís150
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
ticas de escravidão um cenário em que os blocos temáticos, restrição de ir
e vir e servidão por dívida, ambos constituídos totalmente por indicadores
primários caracterizadores de crime de acordo com os art. 149 e 207 do
código penal, apresentavam respectivamente 0,3 e 0,2 como valores de
entrada no bloco desconformidade legal penal, o que poderia sugerir que
o cenário fiscalizado seria identificado apenas como descumpridor de normas do trabalho, entretanto, o bloco desconformidade legal de segurança
constituído pelos indicadores temáticos condições sanitárias e NR-31 que
apresentavam valores máximos de (1,0) conseguiu influenciar a identificação
das condições de trabalho como trabalho análogo ao de escravo, contrariando
o senso comum inicial.
Diante do exposto, conclui-se que o modelo de auxílio de identificação
de trabalho análogo ao de escravo é sensível e robusto a ponto de auxiliar os
decisores em situações limites, como a que se apresentou no caso concreto
de aplicação do modelo na empresa Fictícia Ltda em que todos os indicadores
do bloco desconformidade legal, crimes de acordo com Código Penal, não
estavam presentes. No entanto, a saída desfuzificada do indicador sistêmico
do modelo apresentou valor igual a 0,5185 conforme figura 9, classificando
a situação como trabalho análogo ao de escravo.
Vale ressaltar que este é o primeiro modelo desenvolvido no Brasil
utilizando lógica difusa que se debruça sobre a caracterização de trabalho
análogo ao de escravo. O modelo de auxilio de identificação de trabalho
análogo ao de escravo apesar de se apresentar bastante sensível e robusto,
conforme demonstrado acima, pode e deve ser aprimorado pelos agentes
sociais que tenham interesse em fazê-lo, uma vez que variáveis podem ser
facilmente suprimidas ou introduzidas no modelo ou valoradas de acordo
com o entendimento dos decisores.
O objetivo principal deste artigo é a construção de um modelo de auxílio de decisão na identificação de trabalho análogo ao de escravo como
demonstrado acima, foi atingido.
Limitações do modelo
Existem alguns fatores que representam limitações à sua aplicação, e
estão basicamente relacionadas à lógica Fuzzy, ao programa FuzzyTECH ®,
à apuração de indicadores e à interpretação dos resultados.
As limitações relacionadas à lógica Fuzzy se devem, principalmente, ao
hábito ocidental de raciocinar, baseado na lógica Cartesiana, muito embora
o homem pense, intuitivamente, de maneira fuzzy.
151
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Outra limitação é o custo do programa fuzzyTECH ® que por ser um
produto importado é caro, e o idioma, já que o programa é apresentado
somente com versões em inglês e alemão, fatores que restringem o uso de
forma mais ampla.
As limitações relacionadas ao uso dos indicadores residem no fato de que
estes precisam ser definidos baseados no ordenamento jurídico brasileiro,
o que requer equipe de especialistas.
Uma limitação do programa é quanto ao número de indicadores primários a 20 (vinte), isto obriga os decisores a desprezar algumas variáveis
significativas que poderiam estar presente no modelo.
As limitações relacionadas à interpretação dos resultados se devem ao
fato de que nem sempre quem vai aplicar o modelo tem conhecimento de
como funciona a pertinência dos conjuntos difusos, por isso foi elaborada
a planilha Excel de entrada e saída de dados em que apenas a interface das
variáveis primárias, temáticas e sistêmica são mostradas ao usuário, bem
como a identificação das condições de trabalho que é mostrada na planilha
de forma simultânea a inserção de dados.
O modelo foi validado em uma fiscalização de combate ao trabalho
análogo à de escravo na cidade de Sobral-CE pelo GEFM.
A valoração dos indicadores de entrada foi obtida através de discussão
e consenso entre os membros do GEFM. Os resultados de saída Fuzzy foram
desfuzzyficados em valores discretos a fim de facilitar a identificação das
condições de trabalho. O valor final da variável Identificação de trabalho
análogo à de escravo obtido, mostra que o modelo é sensível e robusto e
consegue aconselhar os decisores em situações limítrofes. Também pode ser
expresso em porcentagem se for conveniente para uma melhor compreensão
por parte do aplicador do modelo.
Espera-se, ainda, que este modelo contribua para melhorar a transparência nas decisões de identificação das condições de trabalho.
Referências
CASTILHO, Ela Wiecko. Relatório Final da Subcomissão de Trabalho Escravo,
Brasília. Série ação parlamentar, 1994.
MARTINS, José de Souza. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação (Reflexões sobre riscos da intervenção subinformada). São Paulo:
Edições Loyola, 1999.
MARTINS, José de Souza, O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Ciências
Humanas, USP, 1979.
152
2
A cabeça do libertador
1
Jaqueline Gomes de Jesus
A Psicologia Social e do Trabalho tem muito a contribuir para a compreensão e formulação de estratégias de intervenção no combate ao trabalho
escravo. Essa forma de exploração do trabalho demanda não apenas ações
de resgate e remuneração imediata dos escravos, mas principalmente a
viabilização de modelos alternativos para se empregar estes trabalhadores
e de vinculação social, estimulando mudanças psicossociais.
A partir das percepções dos respondentes sobre a organização do trabalho, foram investigadas as vivências de prazer e de sofrimento, e com base
na Teoria das Representações Sociais, o campo representacional de pessoas
que libertam escravos no Brasil contemporâneo.
O estímulo para se refletir psicossocialmente acerca da escravidão,
sob a ótica dos oprimidos, foi a constatação prática de que, apesar dos tão
decantados progressos da humanidade no afã de humanizar-se, ainda hoje
nos defrontamos com um número vultuoso de seres humanos excluídos da
economia de mercado, do amparo das leis e, ao nível mais básico, de alimentação equilibrada, de saúde pública digna, de moradia, da compaixão por
parte de tantos cidadãos de bem e de seus principais exploradores.
1 O texto se refere à primeira parte da dissertação de mestrado (JESUS, 2005), orientada pela professora
Maria das Graças Torres da Paz e co-orientada pela professora Ângela Maria de Oliveira Almeida, às quais
agradeço.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Muitos são os atores sociais que se defrontam de forma comezinha com
o fenômeno da escravidão no Brasil contemporâneo: pessoas escravizadas,
pessoas que escravizam e as que libertam; os sujeitos desta investigação
são os últimos. Este trabalho, de cunho psicossocial, pouco abordado nas
investigações sobre o fenômeno em questão, propôs-se a perscrutar dois
aspectos: em primeiro lugar, com base na Teoria das Representações Sociais
e organizando os relatos dos sujeitos em categorias relativas a prazer, sofrimento e organização do trabalho, interpretar as percepções e a construção
da identidade profissional de trabalhadores ocupados com a libertação
de pessoas submetidas aos regimes contemporâneos de escravidão. Em
segundo lugar, identificar o núcleo central e os sistemas periféricos das
representações sociais dos libertadores.
Para fins de coadunação entre a linguagem empregada e a conceituação
teórico-metodológica, alerta-se que, toda vez que se cita o termo escravidão
se deve compreender que se está referindo a trabalho escravo, enquanto categoria a qual abriga a ideia de que a escravidão é uma situação diretamente
relacionada ao mundo do trabalho. Além disso, aponta-se, igualmente, que
prazer e sofrimento são aqui entendidos unicamente como fatores de satisfação
e de insatisfação, respectivamente, não se relacionando a qualquer corpus ou
arcabouço teórico específico; portanto, sempre que se ler a expressão escravidão, entenda-se trabalho escravo, e quando se encontrar os termos prazer e
sofrimento nesta dissertação, entenda-se-os por satisfação e insatisfação.
Aspectos sócio-históricos da escravidão
O trabalho em determinadas condições, baseado em relações de exploração, dependendo do seu grau de infra-humanização, criou duas categorias de
pessoas: os cidadãos e os escravos. Há hipóteses de que o domínio da agricultura, na pré-história, tenha possibilitado a preservação da vida das pessoas
derrotadas em batalhas tribais, em função do excedente de alimentos:
[...] os escravos podiam ser utilizados para cuidar dos rebanhos ou
para trabalhar nos campos. Eles aumentavam a riqueza e o conforto
do captor. Providenciavam-lhe comida e poupavam-lhe das tarefas
árduas e desagradáveis. Finalmente, a agricultura avançou ao ponto
de ser lucrativo usar um grande número de escravos para trabalhar
na terra [...]
(MELTZER, 2003, p. 15).
A escravidão subsistiu durante toda a Antiguidade, na Idade Média
(MELTZER, 2003, p. 177-194) e, depois, foi amplamente utilizada pelas
156
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
economias nacionais durante o período Moderno, por meio da exploração
transatlântica da mão-de-obra de africanos, o que se tornou fator fundante
da mentalidade ocidental, como cultura da opressão, da exclusão, da imagem
do cidadão negro e no próprio significado da América para os americanos
(DAVIS, 2001), visto que a escravidão do africano é:
[...] resultado de inúmeras decisões de interesses próprios tomadas
por comerciantes e soberanos na Europa e na África, foi uma parte
intrínseca do desenvolvimento americano a partir das primeiras
descobertas, isso concomitantemente à constatação de que “os sonhos e ideais incorporados a diversas imagens do Novo Mundo não
entravam, necessariamente, em conflito com a escravização de um
povo estrangeiro (p. 40, 2001).
O trabalho escravo é, ainda hoje, uma realidade global, encontrado inclusive nos países desenvolvidos como Estados Unidos (mão de obra latino
americana em plantações do sul) e França (mulheres islâmicas no trabalho
doméstico abusivo), e que se relaciona a fluxos migratórios e ao tráfico
de seres humanos. A escravidão contemporânea se estrutura em torno de
organizações isoladas do Estado: fazendas em regiões muito afastadas dos
núcleos urbanos ou, nas cidades, em casas de prostituição e no trabalho
doméstico abusivo (PAIVA, 2003).
Trabalho escravo no Brasil contemporâneo
O Brasil escraviza o seu povo por meio da exclusão social estruturalmente integrada à cultura nacional, como denota Véras (2002):
além da humanidade formada de integrados (ricos e pobres), inseridos de algum modo no circuito das atividades econômicas e com
direitos reconhecidos, há uma outra humanidade no Brasil, crescendo
rápida e tristemente através do trabalho precário, no pequeno comércio, no setor de serviços mal pagos, tratados como cidadãos de
segunda classe e, acrescente-se, literalmente escravizados (p. 40).
No território brasileiro, as migrações que fornecem recursos humanos
às organizações escravocratas são internas, restritas ao território nacional,
englobando, principalmente, estados das regiões Nordeste e Norte do País
(FIGUEIRA, 2001). Organismos nacionais e internacionais se articulam para
combater a exploração do trabalho escravo. O Ministério do Trabalho e Emprego, em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho
fiscalizam, combatem o trabalho escravo e coletam depoimentos dos libertos;
vários agentes não-governamentais também estão envolvidos.
157
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A predominância da escravidão contemporânea em fazendas é um dos
sintomas dos graves problemas sociais do meio rural brasileiro, a experiência do subsídio não-uniforme do capitalismo agrário para o capitalismo
urbano-industrial foi vivenciada no Brasil, na expressão de Fernandes
(1979), concomitantemente à resistência sociopática à mudança social (p.
105), caracterizada, como aponta o autor, por comportamentos econômicos
autodefensivos e autocompensadores (p. 109) subcapitalistas.
O subcapitalismo é compreendido como um fenômeno regionalizado do
capitalismo, particularmente brasileiro, no qual as práticas capitalistas remontam, ao menos indiretamente, ao capitalismo mercantil, podendo se caracterizar, dentre outros fatores, pelo uso de mão de obra não-capacitada.
O agronegócio, dadas as particularidades sócio-econômicas e educacionais do país, e apesar das regulares instabilidades nesse mercado, decorrentes da volatibilidade nos preços internacionais dos insumos (VIDOR,
2005) —, é de suma importância para o superávit primário da balança de
pagamentos brasileira.
Como afirmam Sorj, Pompermayer e Coradini (1982), sempre o setor agrícola brasileiro, enquanto setor tradicional da economia, esteve
“articulado ao setor moderno [urbano-industrial], servindo ao processo
de acumulação de capital, especialmente através de mecanismo de oferta
de alimentos a preços baixos, além de ser uma fonte geradora de força de
trabalho” (p. 10).
O comportamento da economia agrária relatado por Fernandes (1979)
é estrutural, e sua relação com a economia urbana é tão direta que, segundo
Fernandes (1979), para que o capital possa reproduzir na economia urbana o
trabalhador assalariado, é necessário que exista na economia agrária o capital
que reproduz o trabalhador semilivre (p. 114); sustendo essa lógica, considere-se
que a existência do trabalhador escravo ou semelho ao escravo no campo, reflexo da desproletarização da economia agrária brasileira, explica e aponta para
as mazelas nas atuais condições do trabalho assalariado no meio urbano.
Fernandes (1979) nos leva a corroborar que:
[...] as populações rurais despossuídas e pobres sofrem o desenvolvimento capitalista como uma espécie de hecatombe social” (p.
117), concomitantemente, as representações sociais da população
brasileira, endemicamente explorada, estão diretamente vinculadas
à “primeira grande contradição com a qual o país tem que lidar: uma
riqueza extrema, e altamente concentrada, e uma pobreza extrema,
altamente distribuída (Jovchelovitch, 2000; p. 25).
158
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Portanto, modos de exploração do trabalho, como a escravidão,
não podem ser tidos como excepcionais, mas como elementos
constitutivos do tecido social brasileiro, e para que sejam efetivamente superados e suprimidos, precisam ser refletidos como
tais: representações sociais.
A Teoria das Representações Sociais – TRS (Moscovici, 1978) considera
que as representações sociais são formas modernas para o ser humano
apreender as relações do mundo concreto. Uma representação social é,
segundo Abric (2003):
[...] um conjunto organizado de informações, de opiniões, de atitudes
e de crenças acerca de um dado objeto. Produzida socialmente, ela é
fortemente marcada pelos valores correspondentes ao sistema sócioideológico e à história do grupo que a veicula, pelo qual ela constitui
um elemento essencial de sua visão do mundo (p. 59).
É a consideração de que o objeto de reflexão da Teoria das Representações Sociais – TRS são as relações entre os indivíduos e a sociedade,
inseridas no contexto histórico e cultural, o que determina a TRS como
referencial teórico-metodológico da presente pesquisa; visto que o fenômeno sócio-econômico da escravidão contemporânea é compreendido como
constituído, por elementos afetivos, mentais e sociais particulares, e como
forte determinante da realidade material, cognitiva e social dos atores envolvidos, pode-se enquadrá-lo como um objeto por excelência de estudo de
representações sociais: adotando-se a classificação apresentada por Oliveira
e Werba (2002), ao nível fenomenológico, por mais abomináveis que sejam,
os focos de escravidão, nas suas relações entre escravocratas-opressores,
escravos-oprimidos e libertadores são elementos da realidade social (p.
105) caracterizados por modos de conhecimento, saberes do senso comum
que surgem e se legitimam na conversação interpessoal cotidiana e têm como
objetivo compreender e controlar a realidade social.
A pesquisa investigou as percepções dos libertadores de pessoas submetidas à escravidão contemporânea quanto ao seu trabalho e as suas vivências
de prazer e sofrimento.
Método
Participaram da pesquisa dez (n = 10) libertadores de escravos. Seis
sujeitos representando o governo brasileiro, três sujeitos representando
um organismo internacional e um sujeito representando uma organização
não-governamental, sete (n = 7) do sexo masculino e três (n = 3) do sexo
159
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
feminino; quanto ao grau de escolaridade, nove (n = 9) completaram o ensino
superior, e um (n = 1) o ensino médio.
Foram aplicadas entrevistas individuais semi-estruturadas, baseadas em
um roteiro amplo, formadas por questões abertas relacionadas à descrição
do trabalho, sentimentos em relação a este, dificuldades encontradas, concepções e sentimentos relacionados à dinâmica profissional.
As entrevistas foram flexibilizadas de modo a centrar-se empaticamente
na pessoa do entrevistado, procurando reformular as questões de acordo
com o desenvolvimento da conversação e estimulando o entrevistado com
relação aos temas discutidos. Foram gravadas em fitas K7, posteriormente
degravadas, resultando em um total de 4 horas e meia de gravações, e seus
dados perscrutados de acordo com a análise de conteúdo (BARDIN, 1995),
baseada em análise categorial temática, composta de análise por juízes e
agrupamento de categorias encontradas em função da semelhança semântica e lógica.
Resultados
Foram identificados 111 temas, os quais foram organizados em nove
categorias. A análise temática categorial das entrevistas indicou uma
categoria-síntese para cada conjunto de três categorias: (1) organização do
trabalho, (2) vivências de prazer e (3) vivências de sofrimento.
A categoria-síntese Organização do trabalho foi estruturada em torno
das categorias a) dinâmica do trabalho, b) impotência e c) sucesso.
Dinâmica do trabalho engloba temas emotivamente neutros, essencialmente descritivos da rotina de trabalho do libertador, tais como a distribuição das tarefas, regras e normas e estrutura de subordinação. Foi indicada
por verbalizações como:
• “Desde noventa e sete, eu venho trabalhando, bastante ativamente,
na implementação final dos projetos, tanto na área tecnológica
quanto social”
• “A gente se encontrava semanalmente, e aí, surgiram os trabalhos
que são realmente, daí para frente, todos em grupo. Todo mundo
decide quase tudo”
• “Nós temos sete coordenações, ta? São esses coordenadores, coordenador. Como é que funciona? Nós recebemos denúncias”
Impotência engloba temas de vivência de sofrimento diretamente relacionados à rotina de trabalho do libertador, voltadas para as próprias tarefas,
160
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
o modo como são executadas e suas consequências, envolvendo reforços
negativos aos seus trabalhos, e foi indicada por verbalizações como:
• “É... com uma sensação muito... muitas vezes, de impotência, né?”
• “Então, está tudo mais ou menos aí, direitinho. Para sair isso daí,
nossa! Teve trocentas mil reuniões, né?”
• “A impotência e a frustração, que eu falei no início, que... é normal,
é até bom que a gente se... tenha essa capacidade ter esses sentimentos...”
Sucesso envolve temas de vivência de prazer diretamente relacionados
à realização efetiva da tarefa ou à valorização da formação profissional do
libertador. Foi indicada por verbalizações como:
• “Acabei caindo aqui, meio que de pára-quedas, mandei currículo
e me chamaram. E para minha sorte”
• “Trabalhando em um ambiente agradável... é bem satisfatório... é,
ainda tem a parte, digamos assim, compensatória, né? O salário...”
• “É uma organização que... realmente... aonde você tem prazer de
trabalhar pelo... pelo ambiente, pelo caráter e formação técnica
das pessoas”
A Tabela 1 aponta as categorias presentes em cada entrevista, no referente à organização do trabalho, com a distribuição das frequências brutas
de verbalizações de cada categoria.
Tabela 1: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Organização do Trabalho
Entrevistas
Dinâmica do trabalho
Impotência
Sucesso
A
16
03
08
B
C
D
E
F
12
27
13
08
17
13
21
28
27
I
10
J
07
07
14
22
25
13
Total
12
22
G
H
19
17
02
13
16
08
179
116
Fonte: JESUS, 2005
161
08
15
10
138
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
De acordo com a Figura 1, a categoria Dinâmica do trabalho ocupou 41%
dos conteúdos verbalizados sobre a organização do trabalho, Impotência
contabilizou 27% e Sucesso correspondeu a 32%.
32%
41%
27%
Dinâmica do trabalho
Impotência
Sucesso
Figura 1- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Fonte: JESUS, 2005.
A categoria-síntese Vivência de sofrimento foi composta pelas categorias
relativas a) à pessoa escravizada, b) à pessoa que escraviza e c) à sociedade
onde se escraviza.
A vivência de sofrimento relativa à pessoa escravizada engloba temas em
que o libertador demonstrou insatisfação com a precariedade e a condição
subumana da pessoa submetida ao trabalho escravo, objeto de combate de
seu próprio trabalho, ou atribuiu ao escravo características negativas. Foi
indicada por verbalizações como:
• “A gente via fotos de pessoas que tinham falecido, de pessoas que
estavam machucadas, que não tinham auxílio nenhum, então, assim,
isso tudo é muito degradante, assim, para o homem”
• “Quando tu vê uma menina dizer... ela está presa numa agência,
onde ela tem regras e normas, onde ela precisa... ela é ameaçada de
morte, ela fica presa em cativeiro, tu vê a dor, tu vê a angústia, tu vê
a lesa que isso leva para a vida dessa adolescente”
• “Essa mágoa, esse ressentimento, essa vontade de sair dessa situação... mas, muitas vezes, impedida, justamente, por falta de uma
retaguarda, seja de políticas públicas, né? Ou de... de uma mão,
um colo mesmo, de quem está do lado e que possa estar ajudando
a resolver esse problema”
A vivência de sofrimento relativa à pessoa que escraviza engloba temas
diretamente relacionados à prática escravocrata, seja praticada pelo ge162
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
renciador e guarda dos escravos, denominado “gato”, ou pelo proprietário
das terras, que explora mão de obra escrava pelo intermédio do gato. Foi
indicada por verbalizações como:
• “Olha, é uma escória humana, não é? Que só pensa no lucro, pelo
lucro, não importa os meios para atingir esse lucro, para competir...
eu diria... que é até uma deformação de caráter”
• “Tem uma defecção muito grande, que ele acha que está fazendo
muito por aquele indivíduo, ele diz ‘Olha, se eu não colocar ele aqui,
ele morre de fome. Morre de fome aí na cidade’, então, ele acha que
aquilo, ele já está fazendo demais”
• “Então, é um pessoal de muita truculência, muito articulados. Sabem se expressar muito bem, sabem manejar recursos sofisticados,
de mídia, inclusive, de assessoria de imprensa, para a continuidade
dessa sua exploração”
A vivência de sofrimento relativa à sociedade onde se escraviza envolve
temas relacionados à formação escravocrata da sociedade brasileira e sua
permanência na contemporaneidade sócio-cultural, além de temas econômicos que, na visão dos libertadores, favorecem a escravidão. Foi indicada
por verbalizações como:
• “Para você ter uma ideia, de cada cem trabalhadores no meio rural,
mais de oitenta não têm sequer carteira de trabalho assinada. Quer
dizer, isso demonstra que, no meio rural, há uma ausência da aplicação dos direitos trabalhistas. E é nesse caldo de cultura, nesses
milhões de brasileiros, que você vai encontrar a superexploração,
que é o trabalho escravo”
• “A terra está em mãos de poucos, né? Você vai numa fazenda aí,
no Mato Grosso, Tocantins, Pará, as fazendas são de trinta mil
alqueires de terra. Isso é uma coisa fabulosa, né? Famílias que vão
ser exploradas ali, estão sendo exploradas como escravos”
• “Se em determinado lugar, se colocar uma placa: ‘Aceitam-se trabalhadores escravos’, vai ter gente que vai se inscrever. Que não
está indo iludida, entendeu? Então, infelizmente, é uma realidade
econômica muito grave”
A Tabela 2 aponta as categorias presentes em cada entrevista, com o
total das verbalizações de cada uma.
163
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Tabela 2: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Vivência de Sofrimento
Entrevistas
Pessoa escravizada
Pessoa que escraviza
Sociedade que escraviza
A
02
00
03
B
23
51
41
C
17
06
03
D
02
00
28
E
57
52
75
F
41
19
26
G
07
00
06
H
58
36
40
I
12
21
05
J
03
11
05
Total
222
196
232
Fonte: JESUS, 2005
A vivência de sofrimento relativa à sociedade onde se escraviza correspondeu a 36% dos conteúdos, a relativa à pessoa escravizada ocupou 34%
e à pessoa que escraviza correspondeu a 30% das verbalizações de acordo
com a Figura
30%
36%
34%
Sociedade que escraviza
Pessoa escravizada
Pessoa que escraviza
Figura 2- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – VIVÊNCIA DE SOFRIMENTO
Fonte: JESUS, 2005.
164
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
A categoria-síntese Vivência de prazer foi organizada em categorias
relacionadas a) ao liberto, b) ao libertador e c) à sociedade onde se liberta.
A vivência de prazer relativa à pessoa liberta engloba temas em que o
libertador expressou felicidade com a libertação da pessoa submetida ao
trabalho escravo, ou atribuiu-lhe características humanas positivas. Foi
indicada por verbalizações como:
• “Por isso que eu falo, ainda assim, eles são muito fortes. Depois
que você for considerar, e ver a cara deles, até que eles são muito
fortes”
• “São especializados em trabalhar a terra, historicamente, assim,
só fizeram isso, seus ascendentes todos só fizeram isso, e não têm
terra, né?”
• “Quase toda semana, todo mês, a gente recebe agradecimentos dos
sindicatos, dos trabalhadores, com satisfação, por ter resolvido o
problema”
A vivência de prazer relativa à pessoa que liberta engloba temas relacionados à percepção que o libertador tem do retorno positivo de seu
trabalho, articulado em função de seus próprios recursos como profissional, e da visão positiva que desenvolve sobre si mesmo. Foi indicada por
verbalizações como:
• “Eu assumo essa missão, sabe? Na minha vida, de buscar fazer com
que a gente tenha um mundo melhor”
• “A gente se sente valorizada sim, por cada peça... aquilo que eu te
falei”
• “A gente se sente sim, reconhecido, e, para mim, graças a Deus, tem
sido uma honra trabalhar aqui”
A vivência de prazer relativa à sociedade onde se liberta envolve temas
relacionados à transformação da realidade brasileira, com vistas a uma
conscientização do povo e abertura de perspectivas que levem ao fim da
escravidão. Foi indicada por verbalizações como:
• “O que tem destacado o Brasil, nesse processo, é que o Brasil é um
dos únicos países que reconhece a escravidão no país. E tem tomado
medidas governamentais para erradicação da escravidão”
• “O Brasil está avançando muito no combate ao trabalho escravo”
• “A gente percebeu, também, que depois da morte dos fiscais do
trabalho em Unaí, eles deram muita visibilidade na mídia, muita.
165
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Então foi bom, porque a gente tem a nossa campanha. Foi bom
entre aspas, né? Precisou morrer, para darem a visibilidade, para o
governo dar mais atenção ao tema”
A Tabela 3 aponta as categorias presentes em cada entrevista, com o
total das verbalizações de cada uma.
Tabela 3: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Vivência de Prazer
Entrevistas
Liberto
Libertador
Sociedade que liberta
A
01
02
00
C
00
14
03
B
D
00
00
E
02
G
00
I
01
F
H
J
Total
20
05
05
17
00
02
22
09
08
02
02
00
22
02
15
00
13
15
08
14
104
84
Fonte: JESUS, 2005
A categoria de vivência de prazer relativa ao libertador ocupou 53% dos
conteúdos verbalizados, seguida de vivência de prazer relativa à sociedade
que liberta (43%), e vivência de prazer com relação à pessoa liberta (4%),
como apresenta a Figura 3.
4%
43%
53%
Liberto
Sociedade que liberta
Libertador
Figura 3- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – VIVÊNCIA DE PRAZER
Fonte: JESUS, 2005
166
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
A Figura 4 apresenta a distribuição de frequência percentual das
categorias-síntese conjuntamente, indicando que, dos conteúdos expressos
e reiterados pelos libertadores, 51% se referiam à vivência de sofrimento;
34% à organização do trabalho e 15% à vivência de prazer.
15%
34%
51%
Organização do trabalho
Vivências de prazer
Vivências de sofrimento
Figura 4 – DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS - SÍNTESE
Fonte: JESUS, 2005
Discussão
Paz (1999) afirma, no concernente à perspectiva de Justiça nas organizações, que:
[...] o conflito surge, dentre outras ocasiões, quando as pessoas começam a preocupar-se com as recompensas resultantes do aumento de
produtividade decorrente de suas contribuições. Faz-se necessária,
então, a existência de um conjunto de regras que norteie e assegure
um acordo para distribuição correta de benefícios (p. 271).
Essa reflexão é fundamental para se pensar o papel dos escravizadores
na relação escravagista: para eles, a exploração é justa, em função de determinados fatores sociais, e suas alegações, quando questionados, remetem a
uma alegada incapacidade dos oprimidos, manifesta como a impossibilidade
de encontrarem trabalho.
O escravagista e o escravo são socialmente representados pelo libertador
com imagens menos positivas do que aquelas com as quais o libertador se
representa. A Figura 5 apresenta, com base na Teoria das Representações
Sociais (TRS), a organização do campo representacional dos libertadores
de escravos.
167
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
*aliciamento *falta de apoio
*isolamento *força
Estado das coisas: *choque *dor *injustiça *repúdio
*denúncia *combate *erradicação
Estado do ser (brasileiro): é dicotomizado, distingue o
*avanço do libertador do *atraso da nação
Caráter do Escravagista:
Evento: Escravidão no Brasil contemporâneo
Causas e Explicações: *herança histórica *desigualdade
social, econômica e educacional *subcapitalismo
predatório *deficiência na estruturação do trabalho e do
direito do trabalho *latifúndio
*recorrência familiar *crime
*ganância desmedida
Caráter do Escravo:
Caráter do Libertador: *vocação *legalidade *visibilidade
Figura 5 – Campo representacional dos libertadores
Os resultados obtidos sugerem que a percepção dos libertadores quanto
às vivências de prazer e de sofrimento dos libertos influencia positivamente
as suas próprias vivências. O valor atribuído à organização do trabalho dos
libertadores é relacionado à eficácia do libertador na transformação das
pessoas escravizadas em pessoas libertas, ou seja, na transformação do
trabalho escravo em trabalho livre.
Quanto à organização do trabalho, a vivência de prazer é maior que
a de sofrimento. A dinâmica do trabalho requer profundo envolvimento
intelectual e controle emocional por parte dos responsáveis para a devida
consecução das metas de libertação.
A vivência de sofrimento é distribuída de forma semelhante entre as
categorias, com acento um pouco mais alto para o sofrimento ante à percepção de uma sociedade onde se escraviza, não significativamente maior
que o referente à pessoa escravizada e o escravagista.
A vivência de prazer dos libertadores está relacionada, primeiramente,
à auto-valorização de seu trabalho como libertador e à percepção de uma
sociedade onde se liberta.
O funcionamento psíquico dos libertadores não é livre de influências
de prazer e/ou de sofrimento enquanto não há a percepção de que os
mecanismos sociais de libertação funcionam, através da satisfação das necessidades e desejos dos escravos, o que só é percebido como real quando
estes são libertos.
Prazer e sofrimento são construtos inseparáveis (MORRONE 2001), 53%
da vivência de prazer é relativa ao próprio libertador, enquanto a vivência
168
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
de sofrimento é distribuída de forma mais homogênea, em torno dos 30%
para cada categoria, com diferença de, no máximo, 6%.
A preponderância de vivências de sofrimento indica a forte aversão
dos libertadores a toda a estrutura escravocrata. As vivências de prazer são
significativas, e junto à percepção da organização do trabalho, formam um
equilíbrio entre o desgaste causado pelo trabalho e as expectativas positivas
de transformação da realidade brasileira.
O libertador, ao o outro, também é libertado, tanto pessoal quanto profissionalmente. A sociedade muda para quem liberta, porque se possibilita
a assunção de vivências de prazer, as quais são impossibilitadas enquanto o
outro é escravizado. A perspectiva da libertação, com o sucesso no combate
ao trabalho escravo, reforça o libertador, de modo que se justifica o seu
empenho em libertar, apesar de altamente sofrido.
Com relação à saúde do libertador de escravos, paradoxos relacionados à organização do trabalho e à violência podem resultar em situações
potencialmente estressantes, com quadros clínicos, conforme Glina, Rocha,
Batista e Mendonça (2001), de medo, ansiedade, depressão, nervosismo,
tensão, fadiga e outros distúrbios psicossomáticos. Nesta pesquisa não foram
investigados tais fatores.
Conclui-se que o liberto tem papel primordial na definição do cargo e na
identidade profissional do libertador, e em como ele se percebe e percebe a
sociedade brasileira. Ao demonstrar para a sociedade em geral que o trabalho
escravo existe, que ele é gravíssimo e deve ser denunciado e combatido, o
libertador não está apenas realizando o ideal de cidadania e de justiça da
sociedade, relacionado à ideia de liberdade, mas também é simbolicamente
empoderado, e justifica o seu trabalho.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
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170
3
Trabalho escravo: a dignidade
dilacerada pelo capital
Antônio Alves de Almeida
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o
tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas (Declaração
Universal dos Direitos Humanos - Artigo 4º).
Introdução
As reflexões aqui apresentadas estão pautadas em leituras bibliográficas, reportagens da mídia impressa e virtual, iconografias, relatórios do
Ministério do Trabalho e outros documentos, bem como em pesquisa de
campo e entrevistas com atores diversos da sociedade civil e governamental,
de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Distrito Federal, Paraíba, Maranhão e
Pará. Recorro também à contribuição de intelectuais orgânicos, acadêmicos, juristas e militantes que estão envolvidos de forma direta ou indireta
nessa temática. Entre outros, vale destacar Fábio Konder Comparato, Jacó
Gorender, Ana de Souza Pinto, Ricardo Rezende Figueira 1, Xavier Plassat,
Flávia Piovesan e Binka Le Breton.
1 Ricardo Rezende Figueira trabalhou durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia e, nesse
período, foi membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT). É doutor em Ciências Humanas (com ênfase
em Antropologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual também exerce o cargo de
professor. Coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) e participa coordenação do Movimento Humanos Direitos e da Rede Social Justiça e Direitos Humanos. Escreveu diversas
obras, entre elas: Pisando Fora da Própria Sombra: A Escravidão por Dívida no Brasil Contemporâneo, Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Embora existente em suas diversas expressões, o trabalho escravo contemporâneo muitas vezes acaba sendo uma questão “invisível”. A discussão
do tema é de fundamental importância para o conjunto da sociedade, uma
vez que afeta a todos de diferentes formas e viola os direitos e a dignidade
da pessoa humana.
O combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil2 é desenvolvido por diversos atores, organismos e entidades da sociedade civil e do
Estado, bem como por organismos internacionais. A importância da CPT é
indiscutível na formulação do conceito e na luta pela sua erradicação. Para
tanto, essa pastoral se utiliza de várias ferramentas – como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e estratégias, entre as quais a
denúncia a organismos nacionais e internacionais.
Gênese da cpt no Brasil
“Os índios, os sem terra, os assentados, os pequenos agricultores, os
sertanejos e os camponeses, os ribeirinhos não querem ser relíquia e sim
projeto!” (Campesino de Oaxaca – México. Arquivo da CPT Nacional)
Apresento inicialmente, mesmo que de forma muito sintética, a formação
da CPT e seus objetivos no que diz respeito à temática em questão. A gênese
da CPT ocorreu em uma conjuntura política ditatorial, que se iniciou com o
golpe de março/abril de 1964, quando os militares promoveram uma “quartelada” com o apoio de diferentes segmentos da sociedade, tais como: o empresariado urbano; setores da classe média e grupos religiosos, que viam no
governo o perigo do comunismo; os latifundiários que estavam descontentes
com as “ocupações” de terras pelas Ligas Camponesas no campo ao que se
somava a tentativa – mesmo tímida e limitada – de realização de uma reforma agrária por parte do governo João Goulart, o Jango. Os golpistas também
contavam com o apoio dos Estados Unidos, que intentavam manter o Brasil
e a América Latina longe do “perigo bolchevique”, dando continuidade à sua
política externa orientada pela Doutrina Monroe e pela guerra ideológica
conhecida como Guerra Fria, fortalecendo a sua hegemonia na região.
2 O conceito trabalho escravo contemporâneo traz em si mesmo questões de diversas naturezas: ideológica, moral, jurídica, política, filosófica, entre outras. É importante ressaltar que não há consenso entre
os diferentes setores e atores da sociedade civil e governamental sobre esse conceito. Em relação à sua
materialização na prática ele é ainda mais dissensual. A partir das pesquisas que venho realizando, com
análises iconográficas da realidade encontrada na Amazônia e no estado de São Paulo, depoimentos
dos trabalhadores escravizados etc., entendo que o problema deva ser realmente compreendido como
trabalho escravo. Esta compreensão é fundamental e permitirá mais visibilidade à questão, nos planos
nacional e internacional, sensibilizando cada vez mais a sociedade para lutar pela erradicação dessa
chaga social em pleno século XXI. Para um entendimento mais aprofundado dessa temática, confira:
FIGUEIRA, 2004; Velloso e Fava (Org.). 2006.
172
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
No aspecto eclesiástico, a Igreja Católica passava por transformações
desde o final da década de 50. A eleição do cardeal Ângelo José Roncalli
para papa (João XXIII - 1958 a 1963) e seu papel no Concílio Vaticano II
(1962-1965), assim como as diretrizes apontadas por aquele evento foram
considerados um divisor de águas na história da Igreja Católica. Antes do
Concílio, a Igreja em geral compreendia o mundo como o lugar onde reinava o pecado, a sedução e as práticas heréticas; onde Deus era rejeitado.
Pregava-se: “fora da Igreja não há salvação”. O Concílio mudou radicalmente
a perspectiva vigente no meio eclesial. A Igreja abriu-se para o mundo, o
qual começou a ser visto como um lugar habitado por Deus e onde as suas
sementes germinam e dão bons frutos. É no mundo, com seus valores próprios, sua autonomia e, naturalmente, seus contra valores, que os cristãos
devem viver e realizar sua missão.
A recepção e aplicação do Concílio Vaticano II foi feita levando-se em
consideração a realidade de cada continente e de cada país. Particularmente
na América Latina e no Brasil, como desdobramento do processo conciliar,
houve uma intensa interação entre as diversas Igrejas. Nesse sentido, Beozzo (2003:457) afirma: deve-se notar, entretanto, que não se pode isolar a
recepção brasileira da recepção latino-americana, uma impulsionada pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outra pelo Conselho
Episcopal Latino-americano (CELAM).
Na visão do historiador, de modo particular durante o Concílio e no
imediato pós-concílio, aconteceu uma intensa e profunda interação entre
as diversas igrejas do continente, sendo este um dos frutos mais relevantes
do processo conciliar. Ele afirma ainda que seu resultado mais visível foi a
criação de uma nova identidade destas igrejas, levando-se a falar daí para
frente, com muita propriedade, de uma pastoral, de uma teologia e de um
rosto eclesial latino-americano e caribenho.
A partir da Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia (1968), e
de Puebla, no México (1979), esta presença da Igreja no mundo significou
abertura preferencial para os pobres e oprimidos: índios, negros, camponeses,
operários, enfim, para a imensa maioria dos homens e mulheres desse continente. A Igreja, ou pelo menos parte dela, tornou-se servidora, uma Igreja pobre
para os pobres. No Brasil, as diretrizes do Concílio Vaticano II, de Medellín e
Puebla desencadearam uma nova práxis, estimulando a criação do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI) e a formação da CPT, na década de 70.
A CPT nasceu como resultado da convergência de diversas forças: do
clamor por parte dos sem-terra, dos posseiros, meeiros e trabalhadores
173
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
assalariados do campo, que estavam perdendo suas terras com a concentração estimulada pelo projeto do governo militar de mudança no modelo
de agricultura; do compromisso da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato
Grosso) e a famosa carta de D. Pedro Casaldáliga, em 1971, denunciando o
latifúndio e a marginalização social – com sua presença solidária e profética
ao lado dos posseiros e trabalhadores escravizados.
A opção feita por um grupo de bispos, pastores, padres e leigos foi
significativa porque desencadeou uma ação pastoral eficaz em favor dos
pobres, demonstrando grande preocupação com a violação dos direitos
humanos, principalmente no campo. A opção preferencial pelos pobres por
parte de alguns setores das Igrejas é justificada – além dos elementos já
explicitados – como reação diante das injustiças sociais decorrentes da
divisão da sociedade entre opressores e oprimidos. A referida opção tem
uma fundamentação bíblica, onde Javé se revela como o Deus da justiça e
da liberdade e promete, por meio dos profetas, guiar o seu povo para a terra
prometida onde jorram leite e mel.
Um dos fundadores da CPT, que dedicou a sua vida aos pobres do campo
e aos povos da floresta, padre Cláudio Perani, nos auxilia de maneira significativa a entender essa questão: “Ora, na medida em que a gente constata
uma sociedade dividida em classes opressoras e oprimidas, para poder fazer
fraternidade, é claro, a gente tem que se colocar ao lado dos mais fracos.”
Segundo ele, “toda a lição bíblica do Antigo Testamento é de que Deus está
do lado dos injustiçados e dos pobres. Toda a orientação de Jesus Cristo é:
eu vim para evangelizar os pobres. Isto deveria ser de todo mundo”. 3
A criação da CPT deu-se numa reunião em Goiânia, em 22 de junho de
1975, articulada por Dom Moacyr Grecchi, responsável pela linha missionária da CNBB. A reunião contou com a participação significativa dos bispos
envolvidos nos conflitos da Amazônia Legal, que enfrentavam problemas de
terra e violação dos direitos humanos devido ao modelo de modernização
empregado no campo.
O surgimento da CPT, chamada na ocasião Comissão de Terras, foi possível
principalmente pela iniciativa desses bispos, que agiram motivados e até
“empurrados” por outros agentes pastorais, religiosos, presbíteros e pelos
fieis da base, o que, inclusive, estimulou a CNBB a patrocinar o encontro. Embora tenha havido a participação de representantes da CNBB na formação da
CPT, esta nasceu de maneira oficiosa em relação àquela. Entendiam os bispos
3 Entrevista concedida em 16 ago. 2002.
174
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
que dessa forma a Comissão de Terras teria maior autonomia, liberdade e
agilidade nas ações; que haveria a possibilidade de concretizar o desejo de
um maior compromisso da Igreja, abrangendo vitalmente a problemática
da terra e suas consequências no planejamento pastoral.
A organização da CPT
A Comissão Pastoral da Terra surgiu com uma missão bem definida. De
acordo com o padre Cláudio Perani, a CPT visava estar a serviço dos trabalhadores para ajudar na organização e no avanço da sua consciência; contribuir
para de fato serem sujeitos de uma transformação, de uma mudança, sem
dependerem da Igreja 4.
A sede com o secretariado nacional está localizada em Goiânia – GO.
Possui um colegiado nacional, constituído de um bispo-presidente, um bispo
vice-presidente e mais seis membros (católicos e protestantes), escolhidos
nas grandes regiões do Brasil. Assim, encontramos uma estrutura ecumênica
e capilar. A CPT está organizada em 22 estados brasileiros: Grande Região
Noroeste - Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia; Grande Região Norte - Pará,
Amapá, Maranhão e Tocantins; Grande Região Nordeste - Ceará, Piauí, Bahia e
Sergipe; Grande Região Sudeste - Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro;
Grande Região Sul - São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul;
Grande Região Centro-Oeste – Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Em cada estado que compõe essas grandes regiões, há um bispo – indicado pela CNBB – responsável pelo acompanhamento dos trabalhos da
respectiva equipe de coordenação. Essa coordenação estadual normalmente
é composta, além do bispo, por padres, freiras, pastores protestantes e leigos,
estes últimos em menor número. Cabe a esta equipe de coordenação atuar
junto aos agentes de pastoral nas micro-regiões, verificar a realidade local,
apoiar as atividades, organizar encontros de formação, apoiar trabalhadores
(as), ribeirinhos, seringueiros, entidades como sindicatos, centrais sindicais,
movimentos sociais populares etc.
Como podemos observar, a CPT está presente em vários espaços do
país, especialmente “na base”. Seus membros a vêem como uma pastoral
de fronteira. Entendem que a sua missão é ir “aonde ninguém vai”, é trabalhar e atuar junto aos trabalhadores pobres, marginalizados e excluídos do
campo, e também da cidade. Ela atua, portanto, com um universo bastante
heterogêneo.
4 Entrevista concedida em 16/ago. 2002.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Trabalho escravo contemporâneo
Os homens, pervertendo a igualdade da natureza, a distinguiram com
dois nomes tão opostos, como são os de Senhor e Escravo. (VIEIRA, 1999)
A existência da escravidão precede a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948). No processo histórico, ela assumiu, em cada período, contornos
diferenciados; apresentou nuances e elementos variáveis relacionados a
fatores geográficos, econômicos, políticos, sociais, culturais e religiosos.
Mas, a sua característica reveladora de uma prática desumana que reduz o
outro a objeto a ser apropriado, se manteve.
A escravidão é tão antiga quanto a história da humanidade, sendo, portanto, quase impossível determinar o período e o local exato onde se iniciou
e quais as suas causas reais nos primórdios. Na Bíblia Sagrada, há relatos
de pessoas que já viviam na condição de escravos desde a época de Abraão,
conforme relato de Gn 9, 20-29, presumidamente por volta do século XIX
a.C. (Cf. PEDROSO, 2006).
Na Antiguidade Clássica, na Grécia, particularmente na polis ateniense,
muito embora o sistema político fosse a democracia, havia grande número
de escravos por volta dos séculos V e IV a.C. As mulheres e os estrangeiros
(metecos) não eram considerados cidadãos, constituindo, a maioria da
população ateniense. Estavam excluídos da participação política e da sua
respectiva cidadania.
Na península Itálica, a expansão romana ocorreu entre os séculos V
a.C. e III a.C. A expansão deu dinâmica própria à estrutura escravista que,
estabelecida, passou a exigir novas conquistas para aumentar o número
de cativos que passavam cada vez mais a ser indispensáveis à estrutura
socioeconômica do mundo romano, conforme entende o historiador Vicentino (1997).
Pelos registros arqueológicos, sabe-se que na denominada Antiguidade
Oriental existiam seres humanos que já viviam na condição de escravos no
Egito há pelo menos 3 000 a.C. (CARDOSO, 2003). Na Idade Média, a escravidão também existiu, mas de forma reduzida, prevalecendo, na essência,
a servidão. Na Idade Moderna e Contemporânea, o regime de escravidão
fez-se presente, com elementos comuns e particularidades, permanecendo,
de alguma forma, em quase todas as sociedades contemporâneas.
A partir de 1531, os africanos são trazidos para o Brasil na condição de
escravos. Na modernidade (século XVI), o sequestro de pessoas do continente
africano e sua subsequente escravização nas terras americanas tornaram-se
176
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
um negócio altamente lucrativo para setores da elite colonial e da burguesia
das grandes metrópoles europeias.
O tráfico de escravos para o continente americano foi intenso, especialmente para o Brasil. Os escravos, no Brasil colonial, foram os principais
responsáveis pela produção de riquezas, na cidade e no campo, especialmente na cultura açucareira e, séculos depois, na atividade mineradora. Os
senhores da Casa Grande dependiam dos escravos para desempenharem
quase todos os tipos de trabalhos manuais no engenho, desde o preparo
das roças até o fabrico do açúcar.
Na colônia, o trabalho braçal foi socialmente visto pela elite branca
com desdém. Era entendido como “coisa de negro”. Aliás, ainda hoje há essa
percepção na sociedade brasileira, tendo o homem branco a primazia do
trabalho intelectual.
Os escravos sempre lutaram; nunca aceitaram a situação de miséria,
humilhação, submissão, exploração e preconceito a que eram submetidos.
É importante destacar que a resistência e a luta dos escravos receberam o
apoio do conhecido movimento abolicionista5, o qual ganhou força a partir
de 1880 com a aparição de associações, jornais e o avanço da propaganda
abolicionista.
No Brasil, a escravidão perdurou oficialmente por mais de três séculos, sendo abolida pela Lei Áurea6 no dia 13 de maio de 1888. Por este
documento, a escravidão teria chegado ao fim, sendo o Brasil o último país
(exceção à África) a acabar com a escravidão no mundo7.
Sob um olhar crítico, pode-se constatar que essa é a perspectiva da
história oficial. Mas é possível outra leitura, feita a partir da história real,
na qual a escravidão não é uma realidade do passado; faz-se presente hoje
em escala mundial, no meio rural e urbano; convive com o agronegócio e as
novas tecnologias e alimenta os ganhos dos donos do capital global.
Segundo a escritora inglesa Binka Le Breton (2002), a quantidade de
pessoas que vivem atualmente como escravos é muito elevada. Ela cita a
organização Anti-Slavery International, onde aponta que existam no mundo
5 O movimento abolicionista foi composto por pessoas de condição social diversa, como intelectuais e
escravos, negros e mestiços, que lutaram pela erradicação da escravidão no Brasil.
6 A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, que governava interinamente o
país na ausência de seu pai, extinguindo a escravidão no Brasil.
7 Conforme o Jornal Folha de S. Paulo, 09 jun.2002, A 18, “O Brasil e Cuba foram os últimos países a abolir
a escravidão. Foram apenas os últimos países não-africanos a fazê-lo. Em 1903 havia cerca de 1 milhão
de escravos na região do Sudão. Lá os ingleses só impuseram uma lei de ventre livre em 1901. Serra
Leoa aboliu a escravidão em 1928. A Etiópia, em 1942. Na Arábia Saudita, velha compradora de escravos
africanos, a escravidão acabou em 1962”.
177
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
milhões e milhões de homens, mulheres e crianças prisioneiros da escravidão,
forçadas a lidar com os piores trabalhos, sob as mais degradantes condições,
sujeitos a toda sorte de violência e destituídos do mais fundamental dos direitos: o direito de ir e vir. Em linhas gerais, o entendimento de Le Breton é que a
escravidão é uma realidade histórica presente em muitos lugares. De um lado,
a procura por mão-de-obra barata; do outro, pessoas desesperadas e famintas
oferecendo-se para trabalhar de forma submissa e com baixo salário.
O Brasil já deu passos no sentido de erradicar a escravidão contemporânea, mas ainda há grande quantidade de pessoas nessa condição. Segundo
a Comissão Pastoral da Terra, hoje há no mínimo 25 mil pessoas, vítimas de
trabalho escravo no Brasil (Piovesan, 2006). Apontar com precisão o número
de trabalhadores(as) escravos(as) no mundo, e particularmente no Brasil, é
tarefa muito difícil, quase impossível. Isso ocorre por fatores que vão desde a
dimensão continental deste país até a variedade das culturas agrícolas onde
se verifica esse tipo de situação, que muitas vezes é camuflada.
Destarte, entendo que é fundamental analisar o assunto, sob uma perspectiva histórica. As discussões, no que tange ao conceito e aos principais
personagens e entidades envolvidas precisam ser feitas considerando-se a
intrínseca relação existente entre o trabalho escravo e os direitos humanos
no Brasil contemporâneo.
Nos meios acadêmicos, na literatura, nos movimentos sociais e em
outros espaços há um grande debate sobre o conceito de escravidão na
contemporaneidade. Não é apenas uma discussão semântica, mas trata-se
de uma preocupação concreta com esse problema e com tudo o que ele
envolve em termos de causas e consequências para os sujeitos e a sociedade em geral. O assunto levanta uma série de desafios que implicam, por
exemplo, a formulação de políticas públicas em sintonia com a participação
de organismos nacionais e internacionais para enfrentar o problema da
escravidão em nossos dias.
O tema em questão é referido com diversas expressões e conceitos,
entre os quais: situação análoga à escravidão, escravidão, semi-escravidão,
escravidão branca, trabalho escravo, trabalho forçado, superexploração. A
multiplicidade e variação dos termos utilizados indicam que os critérios
de análise estão em discussão tanto no campo político-ideológico quanto
no que diz respeito ao seu enquadramento na legislação trabalhista e nos
códigos de defesa dos direitos humanos.
Como podemos constatar, não há consenso acerca do conceito entre
os atores que se encontram envolvidos – de forma direta ou indireta – nas
178
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
relações trabalhistas. Mesmo entre os atores governamentais há percepções
diferenciadas. Isso também ocorre com entidades da sociedade civil e particularmente nos diversos setores midiáticos. Entre os próprios trabalhadores
existem níveis muito variados de consciência sobre o grau de exploração e
coerção a que estão sujeitos.
A respeito da escravidão contemporânea, Ricardo Rezende Figueira
(2004) esclarece que há quatro aspectos fundamentais a serem considerados: a) Nela a pessoa é tratada como se fosse mercadoria; b) há, mesmo que
temporariamente, uma totalidade de poder exercida sobre ela; c) a vítima é
alguém de fora, um “estrangeiro”; c) os donos de escravos temporários não
têm criadouros de escravos. As pessoas não se reproduzem onde trabalham,
mas no local mesmo do aliciamento, do sequestro ou da guerra. Figueira
(2005:183) afirma que, para a CPT, trabalho escravo contemporâneo é a
sujeição física ou psicológica de um homem por outro. No caso brasileiro, o
instrumento mais comum de sujeição é a dívida crescente e impagável.
As personagens envolvidas na rede da escravidão contemporânea no
Brasil são muitas. Diversificadas quanto ao gênero, à identidade, às formas
de atuar, aos principais objetivos e ao grau de violência utilizada. A rede está
constituída por vários “nós”, sendo que em uma de suas extremidades se
acha o trabalhador pobre – potencialmente escravo – e, na outra, encontrase o patrão, um personagem “invisível”. Por ser complexa e demandar uma
análise aprofundada, irei apontar, de forma sintética, os principais elementos
da rede da escravidão contemporânea, a começar pelos trabalhadores.
No que tange ao perfil dos trabalhadores, Patrícia Audi8 (2006, p.75)
esclarece que estes humildes brasileiros, recrutados em municípios muito carentes, de baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), são oriundos
principalmente dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. A respectiva
autora ressalta que esses trabalhadores são pessoas iletradas, analfabetas
ou com pouquíssimos anos de estudo.
Segundo as características apresentadas acima, esses homens e mulheres se tornam presas fáceis dos aliciadores9. Estes têm como função
principal arrebanhar trabalhadores, pelo aliciamento, nesses estados
8 Patrícia Audi possui formação acadêmica em Administração de Empresas com especialização em Políticas Públicas. Foi coordenadora nacional do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil – OIT,
no período de 2002 a 2007.
9 Ao consultarmos o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, encontraremos para o verbete aliciar
os seguintes significados: 1.“Atrair a si; seduzir, atrair, ‘Em São Paulo, Luís Gama, Raul Pompéia e outros
aliciavam escravos para que se rebelassem e fugissem para o Rio, onde encontrariam guarida e liberdade´.
2. Peitar, subornar; atrair, angariar”
179
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
citados e também em outros, para os transformarem em futuros escravos.
Por serem habilidosos, oferecerem altos salários, muitas vezes com adiantamento em dinheiro para a família do trabalhador e passarem a ideia de
passivos e benevolentes, são conhecidos em muitas regiões do país como
atravessadores ou gatos10.
A figura do gato é fundamental para a permanência e a dinâmica da escravidão. Este personagem paga o transporte do trabalhador, as despesas com
alimentação, a bebida alcoólica (eles estimulam o consumo), a estadia nas
pensões dos peões etc. Ao chegar no local do trabalho, o trabalhador estará
endividado, não recebendo o salário combinado e ainda deverá pagar o “que
deve”, acrescentando às dívidas o que ele porventura necessitar: remédios,
ferramentas, equipamentos de proteção (quando existem) etc.
A Drª Ruth Vilela11 destaca a inteligência desse sistema e aponta a
existência dele também nos EUA, geralmente com os imigrantes:
O sistema, na verdade, é bastante inteligente: os trabalhadores são
recrutados em seu local de origem, não sabem o seu destino certo e,
portanto, não deixam informações com a família; a maioria não porta
documentos; são conquistados com falsas promessas; entram no
sistema de endividamento contínuo e crescente e, portanto, não têm
como voltar; ficam fragilizados pelo distanciamento da sua origem e
referências pessoais/familiares e até mesmo sofrem ameaças físicas
e psicológicas; não têm como sair do local, nem como pedir auxílio.
Esse mesmo sistema é utilizado, por exemplo, em algumas regiões dos
Estados Unidos, geralmente em relação aos imigrantes, aliciados pelo
coiote (que corresponde ao nosso “gato”) para execução de atividades
agrícolas e outras.12
Na rede da escravidão, outro personagem intermediário são os donos de
pensão. Mantêm uma relação muito próxima aos “gatos” e funcionam como
ponto de recepção dos trabalhadores, denominados peões, oferecendo-lhes
hospedagem, alimentação, bebidas alcoólicas e mulheres, na condição de
prostitutas.
10 Gato: empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou outros
serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado, trabalha
com parentes e com uma rede de “fiscais”, e são acusados de diversos crimes, inclusive homicídios. Em
geral os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem prestar serviço por anos
consecutivos para as maiores empresas. (FIGUEIRA, 2004, p.17). Na região Norte do Brasil a designação
“gato” é mais usual. Em minhas pesquisas no estado da Paraíba constatei com mais frequência o uso da
designação “atravessador”.
11 Ruth Beatriz de Vasconcelos Vilela, formada em Direito, chefiou o serviço de fiscalização do Ministério
do Trabalho e comandou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF).
12 Entrevista concedida em 16 de janeiro de 2008.
180
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
A questão em si é desafiadora, não somente para os trabalhadores
escravizados, mas para toda a sociedade. Vários órgãos governamentais e
organizações da sociedade civil lutam pela erradicação do trabalho escravo,
sendo a grande referência para eles a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Sobre essa temática especifica irei tratar agora; entretanto, entendo que se faz necessário, a priori, uma breve reflexão sobre os direitos
humanos na atualidade.
Direitos humanos e trabalho escravo
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos – Art. 1.º)
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de
dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), teve como
referência a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), produzida pela vitoriosa Revolução Francesa, deflagrada no mesmo ano e gestado
no contexto das ideias iluministas, da Declaração de Independência dos
EUA (1776) e da França revolucionária (1789-1799). Colocou em relevo os
direitos que protegiam as liberdades civis e políticas dos cidadãos contra a
prepotência dos órgãos estatais.
No mundo ocidental, os Direitos do Homem e do Cidadão formam respeitados aproximadamente por um século e meio. No século XX, o mundo
passaria por inúmeros conflitos regionais e duas guerras mundiais, violando
direitos, comprometendo a plena participação política e colocando em xeque
a importância do referido documento.
Ao analisarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, constatamos que é uma construção recente na história da humanidade. Foi escrita
após a derrota de regimes políticos totalitários, como o nazismo de Adolf
Hitler, na Alemanha, e o fascismo de Benito Mussolini, na Itália. A Segunda
Guerra Mundial violou os direitos humanos mais essenciais, destruindo
a dignidade das pessoas na forma de holocaustos, migrações forçadas,
genocídios, escravidão, sexismo etc. Como consequência das guerras e dos
totalitarismos, milhões de pessoas das mais diferentes etnias, religiões e
culturas se tornaram apátridas – povos sem Estado (ARENDT, 1989).
Na compreensão de Comparato (1999), a criação do universo concentracionário, no século XX, veio demonstrar tragicamente a justeza da visão
ética kantiana. Antes de serem instituições penais ou fábricas de cadáveres,
181
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
o Gulag soviético e o Lager nazista foram gigantescas máquinas de despersonalização de seres humanos. Ao dar entrada num campo de concentração
nazista, o prisioneiro não perdia apenas a liberdade e a comunicação com
o mundo exterior. Não era, tão-só, despojado de todos os seus haveres: as
roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele era, sobretudo, esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com a substituição
altamente simbólica do nome por um número, frequentemente gravado no
corpo, como se fora a marca de propriedade de um gado. O prisioneiro já
não se reconhecia como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas
as suas energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão.
E nesse esforço puramente animal, tudo era permitido: o furto da comida
dos outros prisioneiros, a delação, a prostituição, a bajulação sórdida, o
pisoteamento dos mais fracos (COMPARATO, 1999).
O pós-guerra foi marcado pela reconstrução dos direitos humanos. Como
elemento central, enfatizou-se o valor da dignidade humana, compreendida
como o ponto de partida e o ponto de chegada, pois é um valor intrínseco à
condição humana. No aspecto político, as reivindicações são plurais, sendo a
tríade europeia – Direitos Humanos, Estado de Direito e Democracia – uma
das mais valorizadas.
Em linhas gerais, a construção e reconstrução dos direitos humanos
no mundo contemporâneo apresenta desafios, como a necessidade de implementação de políticas públicas eficazes voltadas aos mais vulneráveis,
ao fim do racismo, da escravidão e do preconceito contra os indígenas, às
mulheres, os homossexuais etc. Por outro lado, abre novas e interessantes
perspectivas com a participação de organismos internacionais, nacionais e
regionais, no combate às mais diferentes e graves questões como a fome, a
falta de moradia, o desemprego estrutural, o trabalho degradante e escravo,
a prostituição infantil etc.
No Brasil, há setores sociais que negam a existência do trabalho escravo.
Este já se constitui em um primeiro e grande desafio para a sua erradicação.
Esta é percepção de militantes dos movimentos populares, das pastorais sociais e de ativistas dos direitos humanos. Os militantes da CPT entendem que
a Declaração Universal é um instrumento muito importante que precisa ainda
ser mais evocado e utilizado, tanto pela sociedade civil quanto pelos poderes
públicos para que, de fato, a humanidade consiga recriar formas de convivência, onde os direitos básicos da pessoa humana possam ser respeitados.
Nas últimas décadas, constatam-se avanços no respeito aos direitos humanos do trabalhador escravizado, porém ainda há muito que fazer. Nessa
182
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
direção, é importante ressaltar, além do papel do Estado, os relevantes trabalhos desenvolvidos por várias organizações, entre outras: a Organização
Internacional do Trabalho (OIT-Brasil)13; a ONG Repórter Brasil14 e a CPT.
Esta última, na percepção dos entrevistados desta pesquisa, é o organismo
mais ativo da sociedade civil no campo em questão. Ajudou a despertar atores
importantes dos organismos estatais e da sociedade civil para o problema
da escravidão contemporânea e sempre esteve ao lado dos escravizados,
ouvindo-os e denunciando as graves violações aos seus direitos enquanto
seres humanos portadores de dignidade.
O combate ao trabalho escravo pela CPT
A CPT é uma defensora histórica dos direitos humanos dos sem-terra,
dos ribeirinhos, dos seringueiros, dos posseiros, dos lavradores, dos trabalhadores escravizados. Como sublinhado anteriormente, para atingir os seus
objetivos ela se ampara na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
denuncia de diferentes formas, a situação do trabalho escravo.
A CPT historicamente sempre esteve próxima da realidade dos trabalhadores, acompanhando os fugitivos. A partir dessa realidade tão grave
– com a inoperância dos órgãos públicos – atua denunciando, dentro e fora
do Brasil, e também busca mostrar na mídia os problemas. 15
As denúncias dessa organização são plurais, não se limitando somente ao
trabalho escravo. Ela também luta contra diversas outras formas de injustiças
sociais, contra a globalização neoliberal excludente, a atual estrutura fundiária,
a concentração da renda, o agronegócio, a mercantilização da terra, da água,
do ar, da flora e fauna, das pessoas e a degradação ambiental em geral.
Nesta perspectiva, o coordenador dessa pastoral, no estado do Maranhão, Inaldo Serejo, afirma: Numa sociedade, onde tudo é transformado em
mercadoria, é fundamental que as pessoas tenham seus direitos garantidos
de forma universal. O ativista entende que o trabalho escravo é a ponta do
processo de espoliação e saque realizado pelo capital.16
13 A OIT-Brasil atua de várias formas para que os direitos humanos não sejam violados: promove campanhas
e elabora projetos de combate ao trabalho escravo no Brasil; estimula a igualdade de gênero e raça, a
erradicação da pobreza e geração de emprego; denuncia e luta contra o abuso e a exploração sexual de
crianças e adolescentes, entre outros.
14 A ONG Repórter Brasil denuncia os maus-tratos a que os trabalhadores escravizados são submetidos;
aponta os políticos e empresários que apoiam a escravidão contemporânea; divulga on-line as propriedades onde trabalhadores escravizados foram libertados etc.
15 Ana de Souza Pinto. Entrevista concedida em 03 jul. 2008.
16 Entrevista concedida em 09 jul.2007.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Uma das estratégias de luta da CPT é tornar público o problema do trabalho
escravo. Este, por pressão dela, inicialmente, e depois com a atuação da OIT e
outros organismos, foi ganhando espaço nos meios de comunicação17, com denúncias das condições concretas dos trabalhadores escravizados, como foi o caso
do jornal Folha de S. Paulo de 29 de abril de 2007, B1, que publicou a seguinte
reportagem: Cortadores de cana têm vida útil de escravo em SP. Pressionado a
produzir mais, trabalhador atua cerca de 12 anos, como na época da escravidão.
A superexploração e o trabalho escravo fazem parte da realidade do estado da Bahia, conforme afirmaram frei Luciano Bernardi e Maria A. Caputo,
ambos, membros da CPT daquele estado. Eles receberam uma denúncia de
trabalho escravo em 2003 e junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
a encaminharam para os órgãos competentes. Com essa denúncia, a equipe
móvel do Ministério do Trabalho, em ação conjunta com a Delegacia Regional
do Trabalho e a Polícia Federal, resgatou 46 trabalhadores em situação análoga a de escravo, que laboravam principalmente na capina de algodão.18
Como na Bahia, também no estado de Goiás constata-se ampla e profunda violação aos direitos humanos dos trabalhadores escravizados. Nas
palavras da professora e pesquisadora Adonia A. Prado,19 o que a gente
encontra realmente é um total desrespeito aos direitos dos trabalhadores,
superexploração, negação de condições mínimas de sobrevivência nos locais
de trabalho e de higiene onde eles fazem as refeições. Ela enfatiza que há falta
de pagamento pelas tarefas executadas e de conhecimento em relação ao que
eles tinham a receber na quase totalidade dos casos.20
As condições concretas do cotidiano desses sujeitos “invisíveis” são de
extrema carência e de vulnerabilidade, seja nas atividades da cana-de-açúcar
em vários estados do país ou em tarefas como o desmatamento na Amazônia
para a implementação de projetos agropecuários ou noutras atividades21.
Em sua grande maioria, além de pobres, os trabalhadores escravizados são
17 Conforme Ana de S. Pinto, nos últimos três ou quatro anos, a OIT fez um estudo sobre isso. A porcentagem
de reportagens sobre o assunto aumentou mais de 1000%.. Entrevista concedida em 03 jul.2008.
18 Entrevista concedida em 08 ago. 2007
19 Adonia Antunes Prado, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) da UFRJ. Participou de duas operações do Grupo
Móvel nos estados da Bahia e Goiás, como pesquisadora e membro de uma equipe de pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) do Brasil. O objetivo era colher informações para traçar um
perfil dos sujeitos envolvidos com a prática de trabalho escravo e, naquele momento, particularmente,
no que se referia a trabalhadores e gatos.
20 Entrevista concedida em 07 jun. 2008.
21 “Na Amazônia, 72,7% dos peões são empregados no desmatamento da floresta virgem para posterior
formação de pastagens para o gado. Fora da Amazônia, apenas 26,2% dos peões são ocupados em
desmatamento ou reflorestamento. Ambas as atividades dizem respeito à formação da fazenda, isto é, à
transformação da natureza bruta em base de um empreendimento econômico lucrativo, processo que
na indústria nem é tão dramático nem tão demorado e nem tão extenso.” (MARTINS, 1997, p. 94-95).
184
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
migrantes, muitas vezes vistos como “estrangeiros” por serem oriundos de
outras regiões do Brasil.
Na compreensão de Ruth Vilela,22 [...] os primeiros casos de trabalho escravo denunciados coincidem
com o período inicial da expansão da fronteira agrícola na região
da chamada Amazônia Legal. A prática de recrutar trabalhadores e
conduzi-los a regiões remotas e de difícil acesso revelou-se altamente
produtiva e econômica e, assim, essa cultura permaneceu.
Ao serem transportados de seus estados de origem para territórios
estranhos – como as florestas das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte
– os trabalhadores tornam-se pessoas desenraizadas do seu meio. Ficam,
portanto, confinados nas matas extremamente distantes da cidade, às vezes
necessitando de barcos ou mesmo de helicópteros para saírem de lá, conforme relataram os entrevistados.
No que tange à alimentação dos trabalhadores escravizados, além de
escassa, é de péssima qualidade e manipulada sem o mínimo de cuidados
com a higiene. Maria Antonieta Vieira23 aponta que a abertura da floresta é
feita com o trabalho escravo. Na Amazônia havia situações aonde os trabalhadores eram levados de avião para determinadas regiões e depois jogavam o
alimento lá de cima, e aí eles ficavam ‘ao Deus dará’ na mão daqueles gatos.24
No entendimento da pesquisadora Adonia Prado, há um flagrante
desrespeito aos direitos humanos desses trabalhadores, porque recebem
alimentação insuficiente para reposição das energias despendidas durante
a o trabalho e sempre numa situação que eles consideram de humilhação.
São maltratados, insultados pelo empreiteiro, pelo gato ou pelo gerente. A
palavra humilhação é muito presente na fala desses trabalhadores, sendo
compreendida por eles como sinônimo de escravidão.
As condições a que essas pessoas são submetidas são as mais adversas,
como estamos sublinhando. Os latifundiários do agronegócio capitalista,
com seus respectivos prepostos (gato, fiscal, capanga, gerente...) são muito
criativos e eficazes no que diz respeito às formas de superexploração, humilhação e crueldade praticadas sobre esses seres humanos.
22 Entrevista concedida em 16 jan. 2008.
23 Maria Antonieta da Costa Vieira é antropóloga, doutora e pesquisadora. Assessora a CPT. Desenvolveu
pesquisas para a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) da USP e coordenou uma pesquisa
sobre o trabalho escravo no Brasil, encomendada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
24 Entrevista concedida em 17 jul. 2008.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A crueldade dos senhores do agronegócio remonta ao escravismo colonial, sob as mais diversas formas, técnicas e tecnologias:
“Daí ter sido usual a prática de marcar o escravo com ferro em brasa
como se ferra o gado. Os negros eram marcados já na África, antes do
embarque, e o mesmo se fazia no Brasil, até no final da escravidão.
No século XIX, anúncios de jornal comunicavam ao público a marca
gravada na carne do escravo fugitivo, em regra com as iniciais do
nome e sobrenome do proprietário. E foi certamente inspirado nos
costumes brasileiros que Nassau propôs a marcação dos escravos
vendidos a crédito pela Companhia das Índias Ocidentais a fim de
coibir fraudes dos compradores” (GORENDER, 1978, p. 64).
Podemos verificar esta crueldade conforme ilustra a reportagem:
Trabalhador escravo é torturado com ferro quente no Pará. A fiscalização
encontrou 35 pessoas em situação análoga à escravidão em área de fazendeiro reincidente no crime. Denúncia partiu de trabalhador que diz ter sido
marcado com ferro quente quando reclamou de salários atrasados. (www.
reporterbrasil.com.br - 17/02/2008).
Vale destacar também outros fatores que nos dão uma dimensão
das atrocidades e da tipificação dos crimes praticados contra os trabalhadores escravizados na Amazônia: eles não têm liberdade de deixar o local
no qual trabalham, mesmo abrindo mão de qualquer ganho, pois estão
endividados. Essa consciência emerge quando os pistoleiros da fazenda
exibem suas armas ostensivamente; quando torturam na frente dos demais
os que eventualmente tenham tentado escapar sem pagar o débito; quando
matam o fugitivo e deixam o cadáver exposto ou então o retalham e o dão
aos porcos para aterrorizar e dissuadir da fuga os outros peões (MARTINS,
1997, p. 109). Ana de Souza Pinto25 confirma a ocorrência dessas atrocidades
e as repudia: O trabalho escravo é um crime. Ele não diz respeito só às leis
trabalhistas. É um atentado contra a dignidade do ser humano 26.
A violação aos direitos humanos dos trabalhadores escravos acontece
de várias maneiras: o cerceamento da liberdade (próprio da condição de
escravidão)27, a alimentação deficiente e muitas vezes imprópria para o
25 Ana de Souza Pinto, formada em Ciências Sociais, atua na CPT desde a sua graduação, 1975. Atualmente
é membro da equipe de coordenação da CPT Regional Pará.
26 Entrevista concedida em 03 jul. 2008.
27 “Às vezes, principalmente por alguns setores, o trabalhador escravo é visto como a vítima incapaz. Ele
não tem recurso, é absolutamente dependente, não pensa, não é um ator social. Eu acho que a coisa não
é assim. Pelo que tenho observado nas pesquisas, esse trabalhador tem problemas, dificuldades, mas ele
luta, enfrenta, tem as suas estratégias; ou seja, ele não é simplesmente uma vítima. Penso que o resgate
dessa condição é muito importante para nós pesquisadores porque senão podemos cair num discurso da
vitimização do trabalhador e deixar de considerá-lo como um ator social, um sujeito” (Maria Antonieta
da Costa Vieira. Entrevista concedida em 17 jul.2008).
186
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
consumo, a água contaminada, humilhações com palavras e gestos, violências
diversas, marcas com ferro quente sobre os seus corpos, assassinatos etc. O
entendimento comum dos militantes que procuram combater e erradicar
essa “chaga social” é o de que a dignidade humana é o elemento essencial
que está em jogo. Ela está sendo violada e roubada sob as mais diferentes
e terríveis formas:
“Ora, a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela,
diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim
em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional,
só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de
guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou
o filósofo Kant que todo homem tem dignidade e não um preço, como
as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua
individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente,
não pode ser trocado por coisa alguma” (COMPARATO, 1999, p. 20).
Frei Xavier Plassat, membro da CPT Nacional, observa que:
[…] trabalho escravo é atentado contra o que cada ser humano tem
de mais precioso e inviolável: a sua dignidade de ser um humano.
Portanto, ao degradar este bem universal em qualquer pessoa, ela
fica reduzida ao estado de coisa, usável, abusável e finalmente descartável 28.
Há uma relação estreita entre o capitalismo e a coisificação das pessoas.
No processo de desenvolvimento do sistema capitalista de produção – a partir
da revolução industrial inglesa (século XVIII) – se intensificou de forma jamais
vista a diversidade de mercadorias produzidas e a exploração dos trabalhadores nas indústrias, transformando-os em coisas. Karl Marx os denominou
de proletários e, a partir de pesquisas científicas, descobriu e denunciou os
mecanismos utilizados pela burguesia para enriquecer-se, utilizando-se, sobretudo, da exploração do proletariado por meio da mais-valia.
Sobre a violação da dignidade do ser humano pelo sistema capitalista
de produção, Comparato (1999:22-23) afirma:
[…] como denunciou Marx, ele implica a reificação (Verdinglichung)
das pessoas; ou melhor, a inversão completa da relação pessoa-coisa.
Enquanto o capital é, por assim dizer, personificado e elevado à
dignidade de sujeito de direito, o trabalhador é aviltado à condição
de mercadoria, de mero insumo no processo de produção, para ser
28 Entrevista concedida em 10 jul.2007.
187
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
ultimamente, na fase de fastígio do capitalismo financeiro, dispensado
e relegado ao lixo social como objeto descartável.
As potencialidades da CPT no combate ao trabalho escravo são enormes.
Enquanto pastoral de serviço à causa dos mais necessitados do campo, teve
e tem um papel fundamental. Antes mesmo da sua sagração como bispo,
D. Pedro Casaldáliga já denunciava abertamente, em uma carta pastoral,
na região de São Félix do Araguaia – MT, os crimes praticados contra os
trabalhadores na Amazônia Legal (CASALDÁLIGA, 1971), denominando
aquela situação de trabalho escravo. Tornou-se, assim, um dos precursores
na construção desse conceito. 29
A partir de meados da década de 1970, a cortina que escondia a existência de trabalho escravo no Brasil foi sendo aberta. Porém, a maioria da
sociedade e o Estado ainda não davam a devida importância às denúncias.
Teimavam em ignorá-las ou, quando muito, um Ministro da Justiça, premido
pela pressão, determinava a abertura de investigação que não chegava a termo. A CPT era voz isolada e, com frequência, acusada de falta de patriotismo
e de ser detratora da imagem do país no exterior (MORAES, s/d).
A Pastoral da Terra (como era inicialmente conhecida), no entendimento
de Ricardo Figueira, foi uma espécie de consciência crítica:
Ela denunciou o trabalho escravo e levantou questões oportunas e
sensatas a respeito dos mecanismos para a sua erradicação. A maior
parte das pessoas que estavam em determinado momento discutindo
o assunto, o faziam a partir da teoria, de aspectos conceituais, mas
ela tinha experiência prática”. E complementa: “Então, quando algo
não funcionava, a pastoral tinha capacidade imediata de percepção;
era capaz de falar e apontar o problema. 30
Para Adonia Prado, a CPT tem um papel fundamental pela sua combatividade e denodo como tem coligido e recolhido informações sobre o trabalho
escravo. Então, hoje, as informações mais confiáveis que são publicadas por
ela, anualmente, no Caderno de Conflitos no Campo Brasil, servem de base
para diversas atividades como a pesquisa, denúncia... 31
A CPT possui um acúmulo histórico sobre os problemas cotidianos dos
trabalhadores rurais, com uma capilaridade em quase todos os estados do país.
Intervém em realidades nas quais o Estado brasileiro não pode ou não quer
intervir. Já são quase quatro décadas de lutas, denúncias, romarias, protestos,
29 Ver, em especial, p.104-18.
30 Entrevista concedida em 12 nov.2007.
31 Entrevista concedida em 07 jun.2008.
188
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
apoio às ocupações de terras, pressão sobre os órgãos governamentais, ações
conjuntas com entidades e organismos nacionais e internacionais etc.
É importante destacar que a CPT, por um lado, apresenta potencialidades
no combate ao trabalho escravo, mas, por outro, tem limites em vários aspectos. Para Patrícia Audi, a CPT é a principal denunciante no combate ao trabalho
escravo, mas ela tem limitações geográficas. Nós quase não verificamos, por exemplo, denúncias no estado do Amazonas, onde a CPT não está. Ela afirma ainda:
Não existe uma hegemonia da CPT com relação à atuação no combate
ao trabalho escravo. Nós conhecemos três CPT’s muito atuantes – Xinguara, Araguaína e Piauí – e uma quarta tentando se tornar atuante
no Mato Grosso. As demais nós quase não ouvimos informações com
relação à sua atuação no combate ao trabalho escravo.32
Como fator positivo, Patrícia Audi destaca a determinação dos vários
“heróis” da CPT e as campanhas nacionais no combate ao trabalho escravo.
Entretanto, ela acredita que a atuação da Pastoral é limitada no espaço. A
compreensão de Leonardo Sakamoto33 vai ao encontro das afirmações de
Patrícia Audi. Ele entende que a importância está no ator social que coordena
cada escritório da CPT. Portanto, a sua força tem que ser medida em cada
local para o combate do trabalho escravo. Em suas palavras:
Tem estado que é inoperante. Depende de quem é que está operacionalizando isso no momento, em torno do que o “negócio” gira. Tanto é
que a maior quantidade de denúncias de trabalho escravo são exatamente próximas dos escritórios da CPT mais atuantes. É uma relação
de causa e efeito. Então você precisa de atores fortes da CPT 34.
Em linhas gerais, encontra-se o desafio de combater o trabalho escravo
para preservar a dignidade da pessoa humana. Outros elementos perpassam
a leitura do fenômeno do trabalho escravo na atualidade. Entre eles, a percepção do Estado como um Estado burguês; o capitalismo como um sistema
altamente excludente e com grande poder de coisificar tudo e todos. A defesa
dos direitos humanos aponta a necessidade de valorizar e respeitar a vida
de todos os seres vistos como parte de um grande e unitário organismo
vivo (a Mãe-Terra). Paulatinamente está havendo maior conscientização
da humanidade e, em particular, da sociedade brasileira, na perspectiva de
lutar pela erradicação do trabalho escravo.
32 Entrevista concedida em 30 jul.2008.
33 Leonardo Sakamoto, formado em jornalismo, é doutor em Ciência Política e coordenador da ONG Repórter
Brasil.
34 Entrevista concedida em 19 set.2006.
189
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Considerações finais
O que é, exatamente por ser tal como é,
não vai ficar tal como está (Bertolt Brecht)
O trabalho escravo no Brasil contemporâneo é uma questão emblemática, abrangente, complexa e desafiadora. Reinventado pelo capitalismo,
manteve elementos do escravismo colonial, ao mesmo tempo em que lhe
conferiu novas formas de dominação e exploração. No processo histórico
ele se metamorfoseou. Aliás, as questões estruturais do sistema capitalista
estão diretamente relacionadas a essas metamorfoses. Significa dizer que,
acerca do trabalho escravo, existem mudanças e permanências.
Em nosso país, no escravismo colonial, o ser humano podia ser propriedade de outra pessoa. Agora isso é proibido por lei. O custo de aquisição de
escravos era alto e a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade
de escravos que possuía. Agora, o custo é baixo e, raramente há compra. Em
alguns casos, custa apenas o valor do transporte. Na atualidade, como ocorre
com certa frequência, se o escravo adoece pode ser mandado embora sem
nenhum direito trabalhista.
No escravismo colonial, a mão-de-obra era escassa, dependendo do tráfico negreiro, da prisão de índios ou da reprodução. O escravo era muito caro,
ao passo que hoje há abundância de mão-de-obra em várias regiões devido
ao alto número de desempregados, sem-terra, sem-teto, marginalizados e
excluídos. O relacionamento entre escravo e senhor durava a vida inteira,
podendo, às vezes, permanecer até com os descendentes. Na atualidade é
muito curto o período de relacionamento. Terminado o serviço geralmente
o trabalhador é despedido.
Há aspectos da escravidão colonial que permanecem na escravidão
contemporânea, tais como: ameaças, violência, coerção física, punições
exemplares, fugas e até assassinatos. Para agravar o quadro, na atualidade
os escravos são tratados como devedores do patrão ou de seu respectivo
representante – o gato – e são levados à submissão moral segundo a qual
“quem deve tem que pagar”. Portanto, passam a ser também escravos da
sua consciência. Assim, em repetidas vezes, quando são libertados pelo
Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do governo federal e recebem
o montante financeiro pelos serviços prestados na fazenda, muitos desses
trabalhadores voltam e pagam a sua “dívida”.
Os trabalhadores entendem que é uma questão de honra ter o nome “limpo”, não dever nada para ninguém. Sem opções de conseguir outro trabalho,
muitos retornam à mesma fazenda ou vão se hospedar nas pensões e boates.
190
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Lá se embriagam e se relacionam com prostitutas, até que outro “gato” os procure e os leve para outra fazenda, normalmente já na condição de devedores.
O objeto em pauta traz vários questionamentos. Está articulado a uma rede
complexa que envolve o agronegócio, o dono da fazenda (político, banqueiro,
empresário etc.), o “gato”, o dono da pensão, o motorista do veículo que transporta os trabalhadores aos locais mais distantes deste país, entre tantos outros.
A defesa dos direitos humanos é a questão central que leva ativistas,
militantes, intelectuais, juristas etc. à luta pela erradicação do trabalho
escravo contemporâneo. Com o trabalho dos ativistas em geral, bem como
as ações específicas de religiosos (as), padres e bispos da CPT, verificam-se
avanços significativos. Denúncias de trabalho escravo a organismos internacionais (ONU, Organização dos Estados Americanos – OEA - e OIT) têm
como desdobramento a indenização das vítimas pelo governo brasileiro. É
importante destacar também o trabalho de conscientização e as denúncias
que vêm sendo feitas por ONGs, e especialmente pela CPT, nos estados mais
pobres do Brasil como Pará, Maranhão e Piauí, onde os aliciadores agem
com mais frequência e liberdade.
As denúncias da CPT, além de proporcionar maior visibilidade – na mídia – ao problema do trabalho escravo, tornam-se fundamentais no sentido
de dar mais força à pressão dos organismos internacionais sobre o Estado
brasileiro para que este assuma suas responsabilidades. O reconhecimento
oficial pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, da existência desta
chaga social no Brasil em muito se deve ao trabalho realizado pela CPT e pelos
diversos organismos internacionais que visam garantir os direitos humanos.
Não são necessários grandes esforços para perceber que existem avanços sobre esta questão. Porém, os desafios ainda são muitos, tais como:
reforma agrária e agrícola democrática; aprovação de leis no Legislativo
Federal como o confisco da propriedade em que for constatado o trabalho
escravo (Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n° 438/2001); educação
de qualidade que conscientize alunos, pais e a comunidade em todo o país
sobre o problema; mudança cultural de mentalidade dos latifundiários
vinculados ao agronegócio, dos empresários, dos banqueiros e dos parlamentares; desburocratização do Estado brasileiro com o fito de concretizar
as políticas públicas nessa questão; ações articuladas e mais vontade política
dos ministérios públicos; maior empenho da sociedade civil e dos meios de
comunicação de massa no enfrentamento desse problema etc.
Vivemos em um mundo globalizado onde as novas tecnologias – como
a robótica e a telemática associadas ao consumo e ao individualismo – dão
o tom para o desenvolvimento capitalista.
191
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
O Brasil ainda é um país de grandes contrastes; de mudanças e permanências; de desenvolvimento e de atraso; de opulência e de miséria; de
conhecimento e de ignorância, de “avenidas paulistas” e de senzalas; de
trator e de enxada; de agronegócio e de trabalho escravo. Portanto, neste
contexto, trabalho escravo e direitos humanos marcham em direções diametralmente opostas.
Por outro lado, temos os defensores dos direitos humanos que colocam
em relevo a solidariedade e a dignidade humana. Sobressai-se a ação da CPT
e de um conjunto de entidades e organismos que lutam destemidamente
pela construção de outro mundo possível e necessário, onde haja trabalho
digo para todos e prevaleça a paz com justiça social.
A erradicação do trabalho escravo e a construção de uma “terra sem males” dependem de todos nós, sendo que cada um deve dar a sua contribuição.
Conforme Ana de S. Pinto, diante de tantas atrocidades, violência e exclusão
em que vivem os trabalhadores, o mínimo que precisamos fazer é acender a
nossa lâmpada. Se não tiver lâmpada, acendamos o nosso toco de vela; se não
tiver vela, a gente procura estar repetidamente buscando um fósforo.
Na perspectiva de muitos agentes de pastoral, é fundamental somar esforços com outras pessoas, outros companheiros e companheiras. Assim, será
possível tornar mais humana a convivência no Planeta, contribuindo para que a
justiça social se instaure e o Reino de Deus aconteça. O mínimo que a sociedade
pode fazer é compartilhar e apoiar as lutas de resistência dos trabalhadores
que têm a sua dignidade roubada e sua existência dilacerada.
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193
4 DEPOIMENTOS
4
Trabalho escravo contemporâneo
Marcelo Campos
Tratar desta questão relacionada à submissão de trabalhadores a condições de trabalho análogas à de escravo exige, inicialmente, de todos nós,
uma compreensão daquilo que é o trabalho escravo contemporâneo. Como
eu não tenho a expectativa de que todos tenham a mesma compreensão
sobre o tema, farei rapidamente uma abordagem daquilo que se constitui o
trabalho escravo contemporâneo na perspectiva do governo federal.
Farei rapidamente uma comparação entre as formas de escravidão
contemporânea e o que seria a escravidão clássica, que é aquela ocorrida
no Brasil no período da colônia e do império e que terminou há 118 anos
atrás.
A escravidão do ponto de vista histórico é algo muito presente e tão
presente que explica a escravidão contemporânea em suas mais variadas
modalidades. O primeiro paralelo a se fazer é que na escravidão clássica, a
da colônia e do império, ser escravo era ser objeto, era ser uma mercadoria
adquirida por um proprietário, por um senhor de escravos.
Então, a principal característica daquele ser humano, daquele trabalhador era estar submetido a um status jurídico que o definia como mera
mercadoria. O indígena, no início, logo abandonado porque não representava
interesse econômico para o modelo escravista internacional e depois os
negros capturados na África é que serão as vítimas desse odioso processo.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Para justificar a exploração do negro capturado no continente africano
foi construída uma série de argumentos ideológicos que desproviam esse
ente humano de qualquer conteúdo de humanidade. Disso, se ocupou inclusive a Igreja Católica ao afirmar que o escravo não era provido de alma,
para justificar e criar todo um arcabouço ideológico para a sua exploração.
O escravo clássico era um objeto, uma mercadoria legalmente explorada.
Já o escravo contemporâneo é um cidadão desprovido, na prática, de
direitos que lhe confeririam a necessária dignidade. Ele, em tese, tem status
jurídico de cidadão, é sujeito de direitos e obrigações e deveria estar sendo
protegido. No entanto, dele são retirados todos esses direitos trabalhistas
e humanos. Portanto, ele é desumanizado. A vítima não se torna escravo
do ponto de vista jurídico e clássico, porque ele não é sequer mercadoria,
transformando-se em mera coisa descartável. Na verdade, estará sendo
vítima de um crime.
Não é mais legal explorá-lo como escravo como se dava no passado.
Naquele período, aquele que tivesse dinheiro, fosse um proprietário rural ou
urbano, poderia se dirigir ao mercado de escravos e comprar um ser humano.
Esse ser humano passava a ser sua mercadoria, sua propriedade.
Como toda mercadoria adquirida, qual é a principal preocupação de seu
proprietário? Mantê-la em boas condições, pois ela possui valor de troca. Se
o proprietário viesse a necessitar iria ao mercado, venderia a mercadoria
e faria dinheiro.
Atualmente, ainda possuímos uma visão muito estereotipada do que era
a escravidão na colônia e no império. É claro que ser escravo era péssimo,
terrível e desumano. Mas, pelo menos o dono do escravo tinha a preocupação de mantê-lo como mercadoria com valor de troca, tendo um mínimo de
preocupação em alimentá-lo e vesti-lo.
Nas formas contemporâneas de escravidão quem explora e escraviza
os trabalhadores não está minimamente preocupado com a manutenção da
vida do trabalhador. O escravo é totalmente descartável não se preocupando
o explorador em alimentá-lo, em lhe dar roupa ou qualquer outra condição
para a garantia de sua saúde e segurança no trabalho. Se morrer hoje, amanhã
terá outros dez para ocupar o seu lugar.
É importante ter essa medida das diferenças e do status jurídico do
que era ser escravo no período da colônia e império e daquilo que é ser um
trabalhador em condições análogas à de escravo no Brasil contemporâneo.
O trabalhador contemporâneo vítima desse tipo de exploração não tem
status jurídico de escravo. Ao contrário, como já assinalado, possui status
198
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
jurídico de cidadão. Deveria estar protegido, deveria ter direitos tais como:
carteira assinada; alojamento digno; alimentação farta e sadia. Deveria ter
tudo isso e não tem. Por quê?
Porque um criminoso seja ele um usineiro da cana-de-açúcar ou um
fazendeiro criador de gado ou plantador de soja surrupiou tudo isso que a lei
garante ao cidadão trabalhador. Então a vítima foi desumanizada, enquanto
trabalhador com direitos trabalhistas, enquanto ser humano, sujeito dos
Direitos e Garantias Fundamentais garantidos pela Constituição Federal.
A vítima perde na prática seus direitos, estando no cotidiano de suas
atividades laborais em situação tão ou mais desprotegida que o trabalhador escravo clássico. Tal fato ocorrerá em atividades do roço de juquira, no
Maranhão e no Pará; no desmatamento no norte do Mato Grosso; nas usinas
de cana aqui no Rio de Janeiro, São Paulo ou Triângulo Mineiro; nos cafezais
lá no Espírito Santo ou no algodão no Mato Grosso. A esse trabalhador, as
condições dignas de trabalho são negadas.
E o que é oferecido para esses trabalhadores são condições de trabalho
análogas a do escravo na colônia e do império. Por que condições análogas?
Porque em muitas vezes elas até são piores. Isso porque, quem o explora
hoje não tem sequer a preocupação com o trabalhador enquanto mercadoria
como acontecia no passado.
A partir dessa observação é importante sabermos e percebermos essas
sutilezas, pois há muitas pessoas que mantêm a percepção de que quando
identificamos um trabalhador contemporâneo submetido a condições de superexploração ele deve ser um negro amarrado ao tronco e sendo açoitado.
Essa é uma visão estereotipada e que não colabora para a solução do
grave problema. Esses escravos idealizados ninguém irá encontrar. O que
encontraremos serão seres humanos brancos, negros, morenos, pardos
sendo desumanizados e expropriados de seus direitos. E tudo isso tanto no
passado como hoje, tem como característica comum o fato de que as vítimas
são inseridas no processo produtivo.
Quem utiliza o trabalho escravo contemporâneo em suas diversas modalidades não é um fazendeiro arcaico, atrasado, lá no interior do país e que não
sabe as obrigações que a lei lhe obriga cumprir. Ao contrário, quem explora
trabalhadores em condições análogas à de escravo são fazendeiros cujas fazendas são apenas uma parte dos seus negócios. Eles moram aqui no Rio de
Janeiro, São Paulo, Brasília, Goiânia ou Belo Horizonte. Moram muito bem.
Sendo a fazenda apenas parte dos seus negócios, quem comanda a exploração é o capataz e o “gato”, que possui a função de controlar e vigiar os trabalha199
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
dores. Enquanto isso, essas vitímas produzem aquilo que consumimos em nosso
cotidiano. Produzem o álcool que enche o tanque do nosso automóvel; o açúcar
com o qual adoçamos as nossas delícias; o aço produzido com carvão vegetal
lá do Pará e do Maranhão que está nos carros e nas geladeiras; o cafezinho tão
gostoso de cada dia.
Todos esses produtos não circulam apenas no âmbito do agronegócio,
mas por toda a cadeia da indústria brasileira e podem, se não devidamente
fiscalizados, estar contaminados com formas contemporâneas de trabalho
escravo. Pois, como não há controle social e nem visibilidade no processo
produtivo, em tese, você pode estar comprando, se não estiver bem informado, produto que pode estar contaminado pelo trabalho explorado.
A partir dessa reflexão, passemos a análise daquilo que é o trabalho
escravo contemporâneo. No Código Penal, o artigo 149 foi atualizado recentemente prevendo quatro hipóteses, quatro formas de trabalho escravo
contemporâneo.
A primeira delas é o trabalho forçado que ocorre quando alguém com
uso da força, violência ou arma, ordene que o trabalhador faça alguma
atividade laboral.
A segunda é a jornada exaustiva que tanto pode ser uma jornada para
além daquela jornada limite de oito horas com duas horas extras ou uma
jornada extenuante dentro do limite previsto pela lei e que, entretanto,
provoque a exaustão do trabalhador, situação esta identificada em casos
ocorridos no setor sucroalcooleiro. Pode ocorrer de existir um trabalhador
cortando cana por seis horas, mas o ritmo do corte da cana e as condições
de trabalho ser tão extenuantes que ele não resista e tenha sua saúde gravemente comprometida. A jornada exaustiva tem que ser vista não apenas
pela quantidade de horas, mas pela capacidade humana do trabalhador
dentro daquele contexto de trabalho.
E aí faço um parêntese para o setor sucroalcooleiro. Não há nada mais
fatigante nessas atividades do agronegócio do que aquelas desempenhadas
nas áreas de campo no setor sucroalcooleiro. Eu duvido que algum de nós
aqui, todos muito bem alimentados, bem hidratados, resistíssemos uma hora
sob o sol escaldante, com aquele facão cortando cana. Não resistiríamos
certamente. Isso porque o trabalho é exaustivo, o calor é muito grande e o
esforço físico empreendido pode se tornar quase desumano.
O quê que se esperaria? Que na frente de trabalho houvesse água
potável; que houvesse um local coberto prá comer a marmita na hora do
almoço, com uma sombra mínima. Que quando o trabalhador voltasse para
200
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
casa tivesse um chuveiro para tomar um banho, pudesse deitar no colchão
e dormir. Mas, nos casos identificados, não tem nada disso. Surrupiam dos
trabalhadores as condições mínimas de trabalho, para que a execução das
atividades laborais se dê em condições dignas.
A terceira forma de exploração em condições comparáveis à de escravo é
a servidão por dívida que é comum nas fazendas do interior do país. Ocorre
quando o “gato” ou capataz, representantes do fazendeiro vão anotando no
caderno de dívida tudo o que o trabalhador consome. Ressalte-se que, pela
lei, tudo deveria ser fornecido de graça, pois é um direito do trabalhador.
A dívida fica impagável e o trabalhador não é autorizado a sair do trabalho
enquanto não quitá-la.
E a última modalidade desse trabalho é aquela representada pelo trabalho degradante. Uma vez que, esse é exatamente aquilo que degrada o
trabalhador enquanto sujeito possuidor de direitos, enquanto cidadão.
Se o trabalhador possui direitos trabalhistas e lhe negam todos; se o
trabalhador tem direito a alojamento decente e lhe negam; se o trabalhador
tem direito a tomar banho e lhe sonegam a água para tomar banho; se o
trabalhador tem direito à comida e lhe dão comida azeda; se o trabalhador
tem direito a água potável para matar a sede na frente de trabalho e não
lhe dão a água; se o trabalhador tem direito a uma sombra para comer e
descansar e lhe dão sol escaldante; se o trabalhador tem direito a sentar
dignamente para fazer a refeição e lhe dão o chão ou a cana pra sentar, então
é trabalho degradante.
Não fornecem ao trabalhador o equipamento de segurança; não fornecem botina; não fornecem luva ou vendem os equipamentos de segurança.
Então, degradou-se, surrupiaram-se os seus direitos humanos e trabalhistas.
É certamente, conforme prevê o artigo 149 do Código Penal, uma forma de
trabalho análogo ao de escravo.
É com essa perspectiva de análise e com essas hipóteses legais de
trabalho análogo ao de escravo que nós temos trabalhado ao longo desses
anos, desde que em 1995, o governo brasileiro reconheceu a existência do
trabalho escravo no Brasil.
A partir de 2003, com o governo Lula e o lançamento do Plano Nacional
de Erradicação do Trabalho Escravo, houve uma aceleração nesse processo
de enfrentamento do crime. Passamos de uma média de 25 ações de fiscalização e repressão até 2003 para, no ano passado, 109 ações.
Não é fácil, fazer esse enfrentamento. Nossas equipes de fiscalização e
repressão são compostas por auditores fiscais do trabalho; procuradores
201
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
do Ministério Público do Trabalho; delegados e agentes da Polícia Federal
e, eventualmente, procuradores da república.
Trabalhamos fundamentalmente com base em denúncias que nos chegam por intermédio de nossos parceiros governamentais e da sociedade
civil. Vamos ao local denunciado, identificamos a situação. Se identificarmos
aquela situação como uma ou mais hipóteses de trabalho escravo contemporâneo, providenciaremos a retirada, a “libertação” dos trabalhadores com
uma série de consequências punitivas para o infrator.
Inicia-se, a partir da identificação da situação análoga à de escravo das
vítimas, uma série de atividades e providências em todos os níveis do Estado
brasileiro. No poder executivo; no Ministério Público Federal e no Poder
Judiciário com vistas a punir esses criminosos. Isto porque quem explora
trabalhador em condições análogas à de escravo deixa de ser apenas um
mau patrão. Ele será além de mau patrão um criminoso. O crime, como já
dito, está previsto no artigo 149 do Código Penal.
Apesar de todo esse nosso trabalho reconhecido, nacional e internacionalmente, somos vítimas de frequentes acusações do setor patronal de
sermos exagerados na identificação dos casos de trabalho análogo ao de
escravo; de vermos escravos onde não existem; de caracterizarmos como
escravo o que não é escravo. Entretanto, a realidade não se inventa. Cumprimos a lei e quem atualizou o artigo 149 do Código Penal não fomos nós. Foi
o Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Se quiserem que as práticas e condutas que atualmente são consideradas
trabalho escravo não o sejam, que mudem o texto da lei ou, o que é mais
desejável, deixem de praticar tais condutas contra os trabalhadores e nós,
agentes públicos, não acharemos mais escravos.
Entretanto, enquanto o artigo 149 do Código Penal disser que existem
aquelas quatro hipóteses de trabalho análogo ao de escravo e enquanto nós
possuirmos governabilidade política e compromisso de enfrentamento,
certamente nos dirigiremos aos locais de trabalho e levaremos a dignidade
ao trabalhador vítima de tão execrável crime.
É fundamental, quando se trata dessas formas contemporâneas de trabalho análogo a de escravo, que tenhamos capacidade de enxergar as condutas
como algo reprovável e criminoso. Muitas vezes, podemos ter todo um acúmulo
de discussão acadêmica e técnica, mas na hora em que chegamos ao campo
não teremos a capacidade de ver os fatos como realmente se mostram.
Como havia dito no início de minha fala, às vezes temos uma visão muito
estereotipada do que seja trabalho análogo ao de escravo. Nunca é demais
202
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
lembrar que somos bisnetos ou tataranetos de escravos ou de escravocratas.
Dificilmente fugiremos a esta regra.
Considerando que do ponto de vista histórico é muito recente a libertação dos escravos, são apenas 118 anos e isto não é nada, o gene da
escravidão ainda corre em nossas veias. Se nós não tomarmos cuidado
estaremos tratando os nossos empregados como escravos e achando tudo
muito normal.
Então precisamos nos exercitar diariamente, fazendo a crítica, inclusive sobre nós mesmos. Superar as formas de escravidão contemporânea
no Brasil não é uma tarefa fácil. Então, às vezes, vocês irão encontrar com
pessoas muito elegantes nos grandes salões sociais do Rio de Janeiro, grandes empresários e que nas suas fazendas estarão explorando pessoas em
condições análogas à de escravos.
Precisamos fazer essas reflexões para poder avançar. Afinal, apesar
de termos um gene escravocrata, talvez concordássemos em pagar alguns
centavos a mais pelo litro de álcool, pelo aço do carro, pelo cafezinho se
soubéssemos que estaríamos evitando trabalho análogo ao de escravo. É
verdadeiramente desumano conviver com essas práticas de exploração.
Não é tolerável.
203
5
Violação de direitos humanos
no campo: um enfoque a partir
da Amazônia1
José Batista Gonçalves Afonso
Nas últimas décadas, a sociedade brasileira (em especial os movimentos sociais) tem dado passos importantes na luta pela defesa dos direitos
humanos no Brasil, forçando dessa forma, o Estado brasileiro a reconhecer
e adotar políticas voltadas para efetivação desses direitos. O enfrentamento
à ditadura militar, a luta pela redemocratização do país, a defesa dos direitos civis e políticos, a mobilização popular pela construção de uma nova
Constituição, marcada pela garantia dos direitos individuais e coletivos,
constituíram passos importantes nesse processo.
As lutas sociais pós-ditadura, o processo de conscientização e organização da sociedade fizeram surgir uma grande rede de entidades ligadas à luta
pela defesa dos direitos humanos que, ao longo dos anos, tem contribuído
decisivamente nos procedimentos de denúncia da violação desses direitos, na
eclosão de lutas e manifestações, as quais têm compelido os poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário a adotarem políticas concretas de defesa e garantia dos
direitos em questão como, por exemplo: a Lei da Anistia, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha, etc.
1 Os dados apresentados neste capítulo foram atualizados pelo autor em janeiro de 2011.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Em termos de legislação, o Brasil é um dos países que mais avançou nesse
campo, pois além de ter codificado normas relativas a Direitos Humanos em
sua legislação constitucional e infraconstitucional, é signatário dos principais
tratados internacionais que versam sobre a proteção dos Direitos Humanos.
No entanto, a sociedade brasileira, principalmente sua menor parcela que
ainda vive e resiste no campo, não tem nada a comemorar. Saímos de uma
situação, de violações sistemáticas e generalizadas dos direitos humanos
dirigidas diretamente pelo Estado, durante o regime militar e, entramos
numa situação mais recente de violação dos direitos, em consequência da
ofensiva do capital que promove uma crescente exclusão social, da mesma
forma, violenta e desumana. Podemos, de certa forma, afirmar que as técnicas
de violação de direitos humanos, antes utilizadas para reprimir divergências
políticas, na atualidade são redirecionadas, e seus efeitos são: o agravamento
das injustiças, o aumento da exclusão social e a violência.
Temos que considerar, infelizmente, que os avanços se deram mais no
campo formal do que no campo prático. Há um enorme descompasso entre
a norma e sua aplicação que preceitua a Constituição, as Leis, os Tratados
Internacionais em que o Brasil é signatário e o que existe no campo brasileiro. Na prática os direitos dos trabalhadores estão sendo negados como bem
afirma Daniel Rech: “A realidade do povo brasileiro”, argumenta
“é bem diversa daquela delineada nas leis e autoriza a afirmação
de que a democracia é apenas formal e que os trabalhadores e trabalhadoras rurais não possuem total direito à vida, à liberdade e
ao trabalho. Trabalhar, comer, educar os filhos e morar, direitos de
primeira geração, são aspirações que parecem mais distantes as cada
ano (RECH, 2003, p. 107).
O Brasil sempre foi o país do latifúndio. Os proprietários de terras,
além de ter o poder econômico, também dominam politicamente grande
parte da sociedade brasileira. A terra não é só sinônimo de riqueza, mas
de poder e controle social. O atual modelo agrário concentrador foi sendo
gestado desde que os portugueses aqui chegaram. A promulgação da Lei nº
601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a primeira Lei de Terras,
regulamentou esse processo instituindo a propriedade privada da terra no
Brasil, consolidando ainda mais a desigualdade no campo ao estabelecer,
a compra, como a forma de acesso à terra. A Lei discriminou os pobres e
impediu que os escravos libertos se tornassem proprietários, pois nem uns
nem outros possuíam recursos para adquirir parcelas de terra da Coroa ou
para legalizar as que possuíam. A outra consequência social dessa Lei foi
206
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
a consolidação do grande latifúndio como estrutura básica da distribuição
de terra no Brasil.
Passaram-se os anos, mudaram-se formas de governo, superaram-se
períodos ditatoriais, mas, a concentração da terra nas mãos de poucos
continuou quase que intocável. Nem as históricas lutas dos trabalhadores
em defesa da reforma agrária, conseguiram acabar com o latifúndio e democratizar o acesso à terra no país. Hoje, segundo o Censo Agropecuário
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1996), existem no
país 4,8 milhões de estabelecimentos agrícolas, ocupando uma área de
353,6 milhões de hectares. Os minifúndios e as propriedades com menos
de 100 hectares representam 89,1% desses estabelecimentos e apenas 20%
da área total. Já as grandes propriedades, com área acima de mil hectares,
representam 1% do total de imóveis e ocupam 45% da área total.
Esse processo de concentração da terra tem sido a causa principal da
permanência dos conflitos nos campo e das variadas formas de violação de
direitos dos camponeses no Brasil. Os relatórios periódicos de avaliação e
monitoramento dos direitos humanos no campo, elaborados pelas diferentes entidades de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Pastoral
da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Rede Social, etc.,
vem, ano após ano, expressando essa realidade. De acordo com os dados divulgados no Caderno de Conflitos no Campo, da CPT, em 2009, por exemplo,
ocorreram 1.184 conflitos no campo, no Brasil, envolvendo 628.009 pessoas2.
Grande parte desses conflitos ocorreu, principalmente, em 290 ocupações
e 36 acampamentos organizados pelos diversos movimentos sociais com
atuação no campo. Ainda segundo a mesma fonte, 12.388 famílias foram
despejadas da terra por determinação judicial, 1.884 famílias foram expulsas sem ordem judicial, 25 pessoas foram assassinadas, 143 foram vítimas
de ameaças de morte e 204 foram presas pela polícia. Ocorreram ainda, no
campo, 45 conflitos pela água, envolvendo 201.625 famílias.
Os dados da CPT mostram ainda que, dos 1.184 conflitos, 622 deles ocorreram nos estados que compõem a Amazônia. Os estados do Tocantins, Pará,
Maranhão, Mato Grosso e Rondônia, juntos, concentram 516 dos conflitos,
demonstrando a continuidades e o agravamento dos conflitos e da violência
na região de fronteira de expansão do capital em direção à Amazônia. Os
dados revelam também que, em 2007, os sem terra correspondiam a 44%
do total das categorias envolvidas em conflito por terra, já em 2008, essa
2 Conflitos por terra (751), trabalho (373) e água (46).
207
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
proporção caiu para 36,3%, ocupando assim o segundo lugar entre as diversas categorias. Por outro lado, as populações tradicionais que ocupavam o
segundo lugar, em 2007, com 41% do total, passaram a ocupar o primeiro
lugar com 53% do total. É importante observar que, 65,4% das populações
tradicionais envolvidas em conflitos por terra estão na Amazônia Legal.
Os dados evidenciam claramente, por um lado, a gravidade da violência
no campo, pois os índices continuam altos, situação que persiste há décadas
e, por outro, a falência do processo oficial de democratização do acesso à
terra, através de um programa de Reforma Agrária. Essa bandeira, erguida
e defendida, pelos movimentos sociais do campo, continua fora da pauta de
prioridade dos sucessivos governantes, e o atual não constitui exceção. Em
2009, o Governo Federal, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) “assentou” apenas
55.498 mil famílias. Em 2010, a projeção é que o número de famílias assentadas fique na faixa de 30.000. O pior desempenho de todos os anos da era
Lula. Os números expressam o grau de importância da política de Reforma
Agrária no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ou seja, importância quase
nenhuma.
Por outro lado, permanece a prática do trabalho escravo no campo. A
situação continua grave e sem grandes alterações em função das tímidas
ações governamentais. Em 2009, foram registrado 240 casos denunciados,
envolvendo 6.213 trabalhadores. 2008 foi o ano com maior número decasos
denunciados, desde que a pesquisa começou a ser feita, 280 no total. O maior
número anteriormente registrado foi em 2005, com 275 denúncias. O número de pessoas libertadas alcançou, em 2008, seu segundo maior número
desde a criação, em 1995, dos Grupos Móveis de Fiscalização, do Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE).3 O maior número de casos denunciados está
vinculado à pecuária. De 2003 a 2009 essa atividade concentrou 65% dos
casos fiscalizados. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(2007), entre 2003 e 2006, a Amazônia concentrou 96% do crescimento
do rebanho bovino nacional (IBGE, 2007). O Pará é o estado com o maior
rebanho bovino. Não foi por acaso que 68,9% do total de casos registrados
de trabalho escravo no Brasil, em 2008, se localizava na Amazônia.
As políticas públicas, adotadas para a erradicação do trabalho escravo,
têm se mostrado notadamente ineficazes na medida em que são direcionadas, principalmente, para combater os efeitos e não as causas geradoras
3 As 280 denúncias envolveram 6.997 trabalhadores (CPT, 2008).
208
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
desta prática criminosa. Além das ações de governo ter ficado mais no campo
repressivo, ainda assim, estão muito aquém do que a realidade exige. Das 240
denúncias registradas em 2009, envolvendo 6.231 trabalhadores, os Grupos
Móveis, fiscalizaram apenas 169, libertando somente 4.283 pessoas.
Em relação aos direitos das populações indígenas, conforme relatório
divulgado pelo CIMI4, em 2009, 53 povos indígenas sofreram alguma forma
de violência5e 60 indígenas foram assassinados, 45 sofreram tentativa de
assassinato, 17 sofreram ameaças de morte e 19 foram vítimas de suicídio.6
Ainda segundo este relatório,
Fica evidente que, mesmo com as garantias constitucionais, asseguradas a partir de muita mobilização e lutas dos povos indígenas
e da sociedade de modo geral, o poder público tem se negado, sistematicamente, a garantir a proteção dos direitos indígenas, principalmente, no que concerne à defesa de seus territórios. Constata-se
que, a maioria dos casos de violência praticados contra os indígenas,
advém da invasão de suas terras. Prova dessa omissão do Estado é
que mesmo diante das pressões, 324 terras indígenas ainda estão
sem qualquer tipo de providência para sua regularização. Em seus 8
anos de governo, Lula homologou apenas 78 terras indígenas, menos
que o governo FHC que homologou 146. Com as comunidades remanescentes de Quilombos, a situação não tem
sido diferente. Até o ano de 2008, existiam no Brasil, 3.524 comunidades
quilombolas registradas pelo Governo Federal7. Mesmo o artigo 68 dos Atos
das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988
estabelecendo que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, mais de 20 anos se passaram e o
que se percebe, nos últimos anos, é um crescente retrocesso na atuação do
poder público.
De acordo com o último relatório da Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos,
“recentes dados divulgados pelo INCRA revelam que o governo Lula
chegou ao seu último ano de mandato emitindo apenas 11 rítulos
às comunidades quilombolas, o que vem denunciar que o próprio
órgão tem cada vez mais descumprido sua meta, haja vista que até o
4 Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília, 2009.
5 Invasão de suas terras, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.
6 18 dos 192 indígenas vitimas de suicídio faziam parte povo Guarani Kaiowá.
7 Secretaria Especial de Políticas Promoção da Igualdade Racial. Disponível em <www.presidencia.gov.br.
209
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
final de 2010 era de 57 titulações. O número divulgado é ínfimo ante
a existência de mais de 300 comunidades em 24 estados brasileiros
e ainda é inexpressivo, se considerarmos que no mesmo período
(2003-2010) o estado do Pará emitiu 26 títulos deterras quilombolas, o Maranhão 19, o Piauí 5 e o de São Paulo 3 títulos.” (RAINHA e
LOPES, 2010, p. 92).
Os últimos anos têm sido marcados por uma ofensiva orquestrada pela
grande mídia, obedecendo a interesses de setores ligados à expansão do
capital no campo, contra a luta pelos direitos das comunidades quilombolas.
Reportagens seguidas, divulgadas a nível nacional, impuserem mudanças
nos procedimentos e a paralisação dos processos de reconhecimento de
seus territórios (CPT, 2007, p. 107).
A situação não tem sido diferente também para outras categorias de camponeses como posseiros, assentados, sem terras, ribeirinhos, entre outros.
Segundo os dados da CPT, em 2009 dos 528 conflitos registrados, 257 envolveram comunidades tradicionais e 173 envolveram famílias sem-terra.
Desse modo, como foi evidenciado, os dados comprovam a gravidade da
violência no campo e apontam as variadas formas de violação dos direitos
humanos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no Brasil. A violência
sempre fez parte da estratégia dos proprietários e empresários rurais na
tentativa de afastar os trabalhadores rurais do acesso aos diretos básicos
de sua sobrevivência. A terra é um deles.
Não obstante, essa realidade que perdura a séculos, nos últimos anos,
percebe-se que coadunam, talvez muito mais do que em épocas anteriores,
velhas e novas práticas de atores na violação dos direitos humanos no campo.
Práticas de velhos latifundiários como contratação de jagunços e pistoleiros
na defesa de suas propriedades são hoje evidenciadas por grandes grupos
econômicos na Amazônia. São proprietários defensores da modernidade, da
competitividade e da negociação, no entanto não abrem mão da violência
na defesa de suas propriedades e da prática do trabalho escravo. Inúmeros
trabalhadores continuam sendo ameaçados, espancados, assassinados,
expulsos de suas terras e escravizados. São empresários, nacionais e estrangeiros, que controlam a expansão das variadas frentes do capital no campo
e sustentam o atual modelo de desenvolvimento em curso no país. Entre
essas principais frentes estão:
1) Frente dos que controlam os monocultivos, principalmente
da soja, da cana de açúcar e do eucalipto. A monocultura da
soja já ocupa 22 milhões de hectares no Brasil. 1,2 milhões
de hectares de pastagem na Amazônia foram convertidos
210
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
em plantação de soja até o ano de 2004. Apenas no Mato
Grosso a área plantada teve aumento de 9,5% nas safras de
2006/07 a 2007/08. Já a cana-de-açúcar, até o ano de 2007,
possuía uma área plantada de 7,8 milhões de hectares. Em
2008, a área plantada pulou para 9,0 milhões de hectares.
64,7% da expansão da cana ocorreu em área de pastagem.8
O crescimento das monoculturas aprofunda o processo
de concentração da terra e da renda nas mãos de poucos
e provoca a desterritorialização de indígenas, ribeirinhos,
posseiros, quilombolas, etc. e vem acompanhado do aumento da exploração do trabalho e do trabalho escravo. Em
2008, 46% dos trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel
de fiscalização, do Ministério do Trabalho e Emprego, eram
escravizados nas plantações de cana-de-açúcar.
2) Frente da pecuária. Com a expansão das monoculturas sobre
áreas de pastagem, o gado vai sendo levado para as regiões
de floresta. O Norte já concentra quase 40% do rebanho do
país. 96% do crescimento do rebanho nacional verificado
entre 2003 a 2006, ocorreu na Amazônia. O crescimento
do rebanho bovino, em Rondônia, foi de 120% entre 2003 a
2006. No Pará foi de 111% no mesmo período.9 A atividade
é a principal responsável pelo desmatamento acelerado na
Amazônia e pelos flagrantes crimes ambientais e, também,
pelos assassinatos de trabalhadores rurais e emprego de mão
de obra escrava. Em 2009, 42% dos trabalhadores resgatados
foram encontrados nas fazendas de gado.
3) Frente da Mineração: atualmente, embora se possa constatar
que a exploração minerária esteja espalhada por vários Estados, é na Amazônia que essa prática tem sido mais intensa e
de efeitos trágicos às comunidades camponesas em quatro
grandes pólos: “Amapá” com a exploração de bauxita, manganês, caulim e ouro; “Oeste do Pará” com a extração da bauxita; “Carajás”, com a exploração de ferro, manganês, cobre,
níquel e ouro; e “Paragominas” com a retirada de bauxita e
caulim. A maior responsável por esse processo é Companhia
Vale do Rio Doce, a Vale. É visível que a Amazônia tem um
8 CONAB e Repórter Brasil, 2008.
9 Folha de São Paulo, 2008 e Amigos da Terra, 2008.
211
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
peso significativo na atividade de extração e transformação
mineral realizada em território brasileiro, considerando a
ocorrência na região de diversos minerais que influenciam
na balança comercial do país, sendo o Pará o segundo maior
Estado exportador de minérios. A situação dos minérios mais
extraídos na Amazônia é esta: em primeiro lugar, o ferro,
que em 2008, respondeu por 35,2% do total nacional. Em
segundo lugar, a alumina (bauxita) com 17,6%, em terceiro,
o alumínio com 15,1% e em quarto, o cobre com 11,3%.
(PEREIRA et al, 2008).
A expansão da atividade mineraria tem provocado, além de danos
ambientais, violações de direitos de populações locais. Em Oriximiná (PA),
a Mineração Rio Norte (MRN) que explora as reservas de bauxita nesse
município, provocou degradação do meio ambiente com os rejeitos da mineração a partir da emissão de partículas sólidas e material estéril, como
argila, bauxita fina e areia. O maior desastre foi causado no lago do Batata.
As populações locais, formadas em sua maioria por camponeses e ribeirinhos foram alijadas de seus direitos sobre as áreas de castanhais que ficam
ao norte da Floresta Nacional de Sacará-Taquera, onde a mineradora está
situada. A Vale tem trazido sérios prejuízos às comunidades de quilombolas
de Jambuaçú e outras comunidades dos municípios de Acará e Mojú com
a construção de 180 quilômetros de mineroduto (transporte de bauxita) e
linhas de transmissão de energia elétrica. Não só a produção agrícola foi
prejudicada, mas vilas e povoados foram impactados diretamente pelos
empreendimentos.
Em 2003, a mineradora Canico do Brasil, empresa canadense, proprietária dos direitos minerários do projeto de extração de níquel nas serras do
Onça e do Puma, no município de Ourilândia do Norte, sul do Pará, expulsou
82 famílias através de compra ilegal dos lotes nos projetos de assentamentos Campos Altos e Tucumã, danificou reservas florestais, contaminou os
igarapés e desestruturou a comunidade com os serviços de pesquisas. Em
2006, a Vale adquiriu o controle do projeto e continuou causando danos
ambientais, econômicos e sociais e inviabilizando a vida de centenas de
famílias assentadas que ainda resistem nos referidos assentamentos. Agora
essa empresa pleiteia a expulsão de mais 93 famílias assentadas.
Desse modo, tanto velhos latifundiários, que sempre utilizaram da lei
do gatilho e da pistolagem para garantir seus interesses e eliminar aqueles
que os contrariem, quanto os setores ditos modernos do agronegócio e
212
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
grandes empresas do capital privado com empreendimentos na área rural,
historicamente, tem se beneficiado da impunidade para acobertar os crimes
praticados, seja contra as pessoas ou ao meio ambiente. A título de exemplo,
no Estado do Pará, onde se concentra praticamente 2/3 dos assassinatos
no campo no campo no Brasil10, apenas um nmadante de crime se encontra
preso em razão de condenação. Nesse estado e em outros, a impunidade é
a regra para oscasosde crimes no campo e funciona como uma espécie de
“licença para matar.”
Dentre os quarenta municípios que compõem as regiões sul e sudeste do
Pará, onde concentra maioria absoluta dos crimes, apenas seis (Rio Maria,
Curionópolis, Parauapebas, Eldorado do Carajás, Rondon do Pará e Marabá),
não possuem taxa de 100% de impunidade em relação aos assassinatos de
trabalhadores rurais nos últimos trinta e sete anos (1971-2009). Uma cidade
como Xinguara, com mais de 80 assassinatos de trabalhadores rurais nesse
período, ainda não teve nenhum crime definitivamente julgado. Isso representa uma taxa de impunidade de 100%. Os municípios de São Geraldo do
Araguaia, São Félix do Xingu com mais de 50 assassinatos cada, no mesmo
período, há idêntica taxa de impunidade.
Esse quadro, portanto, não pode ser relacionado aos problemas de
ordem estrutural (falta de recursos humanos e financeiros), que alega o
judiciário, mas, advêm de uma relação promiscua de determinadas autoridades do judiciário e do governo com os grupos que comandam os
crimes. Exemplo de impunidade e parcialidade do Poder Judiciário se deu
no julgamento dos acusados pelo massacre de Eldorado. Após a anulação
do primeiro julgamento, em que os comandantes da operação foram escandalosamente absolvidos, o júri teve que ser anulado e o juiz que presidia
o processo afastado. Surpreendentemente, todos os 12 juízes da capital se
negaram a presidir o processo, alegando razões de foro íntimo. A juíza, que
ao final acabou aceitando a condução do processo, teve que se afastar do
caso três dias antes do julgamento devido seu comportamento, declaradamente tendencioso, em favor dos militares. Já passados 15 anos do massacre
não há um sequer preso em razão dos assassinatos. Os dois comandantes
da operação, únicos condenados, aguardam em liberdade o julgamento de
recurso de suas sentenças pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em relação aos crimes praticados por outros setores do capital (mineradoras, guseiras, etc.) com empreendimentos no campo, a regra tem sido a
10 Dados da CPT do Pará informam que foram mais de 800 assassinados nos últimos 40 anos.
213
Ricardo Rezende Figueira
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(Orgs.)
mesma. Muito raramente são processados ou sofre alguma condenação por
crimes praticados contra pessoas e ao meio ambiente. Grilagem, desmatamento ilegal, invasão de terras indígenas, poluição de rios e igarapés, etc.,
são todos crimes com penas elevadas, no entanto, seus infratores escapam
ilesos em quase totalidade dos casos. O discurso do progresso, da modernidade e do desenvolvimento acoberta os crimes e ofuscam os olhos dos
responsáveis pela aplicação da lei.
No centro de toda essa expansão está a terra, cada vez mais concentrada, mas também, reivindicada pelos camponeses como território de
enfrentamento à expansão devastadora do capital. Como o Estado brasileiro,
tem se negado a garantir esse direito àqueles que o reclamam, por estar
historicamente comprometido com as oligarquias rurais, os movimentos
sociais rurais, comunidades camponesas e indígenas, tem chamado para si
a responsabilidade de forçar o governo a reconhecer esse direito. Isso tem
sido feito, através de muita luta e muito sangue. A estratégia dos movimentos
sociais e das populações camponeses tem sido a de promover a ocupação dos
latifúndios improdutivos que não cumprem com a função social e que são
de interesse do agronegócio, exigir a demarcação de terras indígenas, terras
de quilombolas, ribeirinhos, demarcação de áreas de proteção ambiental,
reservas extrativistas, entre outros, como forma legítima de defesa de seus
territórios e pressão, para forçar o governo a cumprir com o que determina
a Constituição Federal.
Os avanços, no entanto, têm provocado uma reação violenta, principalmente, dos novos atores que, concentram as terras, tem grande poder econômico e fortes influencias sobre os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário
e do Ministério Público. As novas (e algumas já velhas) formas de violação
dos direitos dos camponeses tem sido em vários sentidos:
1)Contratação de Empresas de Segurança para impedir as
ocupações. Embora o uso da pistolagem e das milícias privadas, por parte dos latifundiários, ainda continue sendo
a principal causa das ameaças, das expulsões violentas e
dos assassinatos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais
que lutam pelo direito à terra, principalmente, nas regiões
de fronteira da Amazônia,11 é crescente a contratação das
empresas de segurança, por setores ligados ao agronegócio
11 De acordo com os dados do Caderno de Conflitos no Campo da CPT, são mais de 400 assassinatos nos
últimos 10 anos e mais de 4.000 famílias expulsas por ação violenta de pistoleiros e milícias entre os
anos de 2006 a 2008.
214
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
da cana, da soja, do eucalipto, da pecuária, etc., como meio
de impedir ou expulsar trabalhadores das ocupações.
É uma nova estratégia que tem como objetivo privatizar a
segurança e legalizar as ações violentas cometidas contra os
trabalhadores. Por trás da suposta legalidade das empresas,
estão vários crimes: muitos pistoleiros são incorporados aos
grupos dos seguranças contratados, no momento das ações
criminosas contra os trabalhadores; muitas armas utilizadas
pelos seguranças não possuem porte legal e as empresas, além
de não terem qualquer preparo para lidar com problemas
sociais - pois seus funcionários são treinados para enfrentar
quadrilhas em transporte de valores, fazer segurança de bancos, empresas, etc. – muitas delas atuam de forma irregular
ou na ilegalidade.
No Pará, o grupo Santa Bárbara, do conhecido banqueiro
Daniel Dantas, maior proprietário de fazendas e de gado
do Estado,12 contratou empresas de seguranças para vigiar
suas fazendas contra ocupações dos movimentos sociais.
Nos meses de abril e maio de 2008, os seguranças das empresas Marca e Atalaia, abriram fogo contra dois grupos
de sem terra, ligados ao MST, nas fazendas Espírito Santo
e Maria Bonita, ferindo gravemente, 12 trabalhadores. As
investigações feitas pelas polícias federal e civil do Estado,
concluíram que: a empresa Atalaia não tinha autorização
para atuar no Estado do Pará e nas ações criminosas contra
os trabalhadores, usaram armas não autorizadas e pistoleiros
atuaram junto com os seguranças.
2) Imposição de medidas “legais” repressivas e de restrição de
direitos. Essa estratégia, se intensificou a partir do governo
Fernando Henrique Cardoso (FHC), com o objetivo de
interromper as crescentes lutas dos movimentos sociais do
campo e desconstruir o direito dos trabalhadores à terra, já
assegurados em Lei, em consequência de lutas históricas da
categoria.
Nos dois mandatos do então presidente FHC, o Governo Federal lançou
uma série de medidas que vinham na contramão dos direitos já assegura12 Em menos de 3 anos o grupo comprou mais de 50 fazendas nas regiões sul e sudeste do Estado, acumulando uma área, aproximada, de 600 mil hectares de terra.
215
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
dos pelos trabalhadores. A principal delas foi: a Medida Provisória - MP
- nº 2.183/56, que alterou a Lei nº 8.629/93,13 que normatiza o processo
de desapropriação de imóveis para a reforma agrária. Com a alteração,
o INCRA ficou impedido de ingressar nos imóveis para fazer as vistorias
para avaliar a produtividade do imóvel e, nos casos de improdutividade ou
descumprimento da função social (conforme prevê o artigo 186 da CF/88),
desapropriá-lo para o devido assentamento de famílias sem terra. Consta
ainda das alterações impostas pela Medida Provisória (MP), a exclusão dos
trabalhadores, que forem identificados nas ações, do programa de reforma
agrária, além das penalidades impostas pela legislação penal. A MP foi
convertida em Lei já no governo Lula, o qual não se opôs aos interesses da
bancada ruralista na aprovação da medida.
Em nível de Congresso Nacional, a ofensiva tem sido coordenada pela
bancada ruralista, em várias frentes, dentre elas: a criação da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da terra e da Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) das ONGs. As duas CPIs foram articuladas pela bancada
ruralista no congresso, com objetivos bem definidos. A primeira visava
criar obstáculos para a aprovação de leis favoráveis à reforma agrária no
congresso, propor a criação de novas leis que impedissem a organização
dos movimentos sociais no processo de ocupação de latifúndios, adotando penalidades mais graves dos casos na esfera criminal. A segunda, teve
como objetivo desarticular as organizações de sustentação financeira dos
movimentos e de comercialização de sua produção, impedindo-as de terem
acesso aos recursos públicos. No caso da CPMI, o relatório paralelo apresentado pelos parlamentares da bancada ruralista, propôs a alteração da
legislação no sentido de classificar a ocupação de terras como ato terrorista,
entre outros.
3) A criminalização dos movimentos sociais. A trincheira
principal de articulação das forças do latifúndio na estratégia
de criminalização passa pela a atuação do Poder Judiciário,
tradicional aliado desse setor, do Ministério Público e das
polícias. Na área cível, todas as garantias constitucionais
ligadas aos direitos fundamentais individuais e coletivos,
a obrigatoriedade do cumprimento da função social da
13 Parágrafo 6º do Artigo 2º da Lei 8.629/93: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de
esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não será
vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse
prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa e quem
concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.”
216
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
propriedade não são levadas em conta quando, em pauta,
estão as ações possessórias. A Lei Maior é desconsiderada
em nome da proteção ao direito absoluto de propriedade.
É na área do direito penal que, de fato, se estrutura com maior força,
o processo de criminalização. Na luta justa dos Movimentos Sociais, típica
de uma sociedade democrática, são imputados aos trabalhadores um rol
de crimes: formação de quadrilha, esbulho, cárcere privado, roubo, furto,
desobediência, incitação ao crime, resistência, etc. com o único objetivo de
cercear-lhes o direito à terra e proteger o latifúndio. Baseado neste fundamento é decidida a prisão e instauradas ações penais e a condenação de
dezenas de trabalhadores a cada ano nesse país.
Mesmo lidando com o direito positivo, historicamente construído para
proteger o patrimônio das elites, em muitos casos, as decisões vão além
dos parâmetros do positivismo jurídico, expressando uma visão ideológica
classista e preconceituosa de quem é responsável pela administração da
justiça.
A criminalização é, justamente, transformar a luta dos movimentos sociais organizados por um direito, em prática de crime. Essa prática ocorre
de forma mais intensa nas instâncias de primeiro grau do Poder Judiciário
e do Ministério Público e é adotada, na maioria das vezes, desconsiderando
completamente o estabelecido na Constituição e na legislação infraconstitucional, bem como, nas decisões de instâncias dos tribunais superiores.14
Em 2008, a criminalização dos movimentos sociais do campo e de suas
lideranças se propagou pelo Brasil. No Pará, o autor deste depoimento e o
Ex-coordenador regional da FETAGRI, Raimundo Nonato Santos da Silva,
foram condenados a uma pena de 2 anos e 5 meses de prisão. A motivação
principal usada para condená-los foi o fato de terem, assessorado (no caso
do Advogado) e organizado os trabalhadores (no caso do sindicalista) em
uma ocupação do INCRA para negociar benefícios para famílias acampadas e
assentadas no sudeste do Pará; Em Alagoas, ex-coordenadores do Movimento
Terra Trabalho e Liberdade (MTL), Valdemir Augustinho de Sousa e Ivandeje
Maria de Sousa, foram condenados a 24 anos de prisão, por terem coordenado a ocupação da Usina Conceição do Peixe por cerca de 300 trabalhadores
rurais sem terra; Em Santa Catarina, Néri Fabris, do MST, foi condenado a 2
14 “Movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio.
Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático...” (STJ, 6ª Turma,
HC 5.574/SP, Rel. Min. Juiz Vicente Cernicchiaro, DJU 18 ago.1997, in RT 747/608).
217
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
anos de prisão por coordenar um acampamento de sem terras às margens
de uma rodovia daquele estado, no Município de Gaspar. O juiz acatou o
argumento do Ministério Público de que o líder do MST era “profissional
de invasão”. Mas, o que mais provou indignação em 2008, foi a ação de um
grupo de procuradores do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que, à
revelia do disposto na Constituição Federal, propôs a dissolução do MST e a
decretação de sua ilegalidade. Propôs ainda a dissolução de acampamentos,
o fechamento de todas as escolas em assentamentos do MST, alegando que
as crianças estavam aprendendo lições ideológicas segundo o pensamento
do Movimento. A ação do Ministério Público gaúcho afronta a Constituição
na medida que seu artigo 5º, garante a liberdade de associação, de reunião
e de locomoção; Em 2008, dezenas de trabalhadores rurais sem terra e
lideranças foram indiciados ou denunciados criminalmente, com base na
Lei de Segurança Nacional. Um entulho autoritário da época da ditadura,
cuja inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo
em seus julgados.
Outra frente de atuação do poder judiciário no processo de criminalização é a de atingir o que resta de patrimônio dos movimentos sociais e de
suas lideranças. E tudo isso, para defender o patrimônio de quem concentra
a terra, o dinheiro e o poder. Neste sentido são impostas multas milionárias
às organizações e aos trabalhadores, através das ações possessórias, por
ocupação ou ameaça de ocupação de latifúndios, estradas, órgãos públicos,
etc. O objetivo é inviabilizar financeiramente os movimentos sociais e suas
lideranças. Em 2008, três lideranças: Eurival Martins Carvalho, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Raimundo Benigno e
Luiz Salomé, do Movimento dos Trabalhadores da Mineração (MTM), foram
condenadas, pelo juiz federal de Marabá, ao pagamento de uma multa milionária no valor de R$ 5.200.000,00 (cinco milhões e duzentos mil reais),
devido a terem coordenado um acampamento de trabalhadores sem terra
e garimpeiros que ocupou a Estrada de Ferro Carajás, usada pela Vale, no
município de Parauapebas (PA). O argumento usado pelo juiz para justificar a condenação foi devido eles serem lideranças. O juiz, em sua decisão,
assim afirmou: os réus lideraram diversas pessoas na invasão da estrada de
ferro e, por esta razão, devem responder pela totalidade dos danos causados
e arcar com a multa imposta caso a turbação ocorresse. A conclusão do juiz
contraria, portanto, o próprio Código Civil que, nesses casos, estabelece que
a multa é pessoal, ou seja, deveria sem imposta a cada um dos milhares de
trabalhadores que participaram da mobilização.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Os relativos avanços conseguidos nas instâncias superiores do Judiciário
não tem sido suficiente para barrar o processo de criminalização, em curso,
contra os movimentos sociais do campo e da cidade. Isto devido o lugar social
dos integrantes do Poder Judiciário e do papel histórico dessa instância de
poder na manutenção dos privilégios das oligarquias rurais desse país.
Alguns fatores devem ser considerados para que se entenda esse excessivo conservadorismo do Judiciário brasileiro. Um aspecto é o histórico
individualismo presente na prática da maioria dos magistrados, que se traduz
pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos
do indivíduo estão acima dos direitos da coletividade. O que prevalece é o
mercado, onde as relações sociais e econômicas são travadas; outro aspecto
é o formalismo na visão de mundo, ou seja, o apego a um conjunto de ritos
e procedimentos burocratizados e impessoais, não estando preparados
técnica e doutrinariamente para compreender os aspectos subjetivos dos
pleitos a eles submetidos. Enfrentam dificuldades para interpretar e aplicar
novos conceitos de textos legais típicos da evolução das conquistas sociais,
principalmente os que estabelecem direito coletivos. Somam-se as esses
aspectos, as ligações históricas que sempre teve o Poder Judiciário com a
classe dominante e o papel que o Órgão cumpre garantindo os interesses
dos mais abastados em detrimento dos mais pobres.
Uma crítica bastante contundente, e verdadeira, é feita ao Poder Judiciário por Boaventura de Sousa Santos, em artigo citado por Jacques Távora
Alfonsin, no livro, A Questão Agrária e a Justiça:
Segundo Jacques Távora Alfonsin,
Nesse contexto, Boaventura de Sousa Santos critica duramente a atuação do Judiciário nos chamados países periféricos, e soma sua voz
aos muitos que clamam por uma presença mais eficaz das disposições
constitucionais, no julgamento das ações que são submetidas ao seu
julgamento. (...) A distância entre a Constituição e o direito ordinário
é, nesses países, enorme e os tribunais têm sido tíbios em tentar
encurtá-la. Os fatores desta tibieza são muitos e variam de país para
país. Entre eles podemos contar sem qualquer ordem de precedência: o conservadorismo dos magistrados, incubados em Faculdades
de Direito anquilosadas, dominadas por concepções retrógradas da
relação entre direito e sociedade; o desempenho rotinizado assente
na justiça retributiva, politicamente hostil à justiça distributiva e
tecnicamente despreparada para ela; uma cultura jurídica ‘cínica’ que
não leva a sério a garantia dos direitos, caldeada em largos períodos
de convivência ou cumplicidade com maciças violações dos direitos
219
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
constitucionalmente consagrados, inclinada a ver neles simples declarações programáticas mais ou menos utópicas; uma organização
judiciária deficiente, com carência enorme tanto em recursos técnicos
e materiais; um Poder Judiciário tutelado por um Poder Executivo,
hostil à garantia dos direitos ou sem meios orçamentários para levar
a cabo; a ausência de opinião pública forte e de movimentos sociais
organizados para a defesa dos direitos; um direito processual civil
hostil e antiquado (Alfonsín, 2000, pp. 220-221).
De fato, esse é um retrato fiel da atuação do Poder Judiciário brasileiro,
com raras exceções. As ocupações de terras resultam de um grave problema
social, oriundo da injusta distribuição de renda que provocou um crescente
empobrecimento e marginalização da maioria da população brasileira. Não
se trata de um simples conflito entre particulares. Portanto, tem que ser
tratadas como questão social, objeto de políticas e não de polícia. Banidos
do campo, sem terra, sem emprego e sem moradia, é quase inevitável o destino dessa população: a morte, seja por fome, doenças ou bala, prostituição,
alcoolismo ou drogas.
Vale considerar, enfim, que, apesar desses posicionamentos refletirem
importantes setores do pensamento jurídico nacional, prevalece na mídia, de
modo esmagador e quase unívoco, a ideia oposta, como se fosse unânime a
opinião dos juristas em favor da tese da ilegalidade das ocupações de terras
e da criminalização dos trabalhadores rurais como observa Frei Betto:
O processo de criminalização dos trabalhadores rurais tem causado
prejuízos incalculáveis à vida e à luta dos movimentos sociais camponeses.
Trata-se de uma ofensiva das oligarquias brasileiras com o objetivo de frear
a luta histórica dos trabalhadores pelo direito à terra. É uma das formas de
violência do latifúndio e seus aliados na luta de classe que se estabeleceu
no campo brasileiro. Apesar desses entraves, os camponeses prosseguem
na luta, para fazer valer esse direito, como se diz popularmente, “na lei ou
na marra”.
4) O papel dos meios de comunicação. Toda essa política de
desconstrução dos direitos dos trabalhadores e de criminalização dos movimentos e lideranças encontra fortes aliados
nos grandes meios de comunicação. Na maioria dos estados,
os que controlam o capital no campo são também proprietários das empresas de comunicação, portanto, divulgam
apenas o que lhes interessam. E quando não são proprietários
exercem influências fortíssimas sobre as mesmas em razão
do poder econômico e político que possuem.
220
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
No Brasil os meios de comunicação, de modo geral, se comportam mais
como empresa de comunicação do que com imprensa de verdade. Publicam
geralmente notícias de quem, de certa forma, as compram antecipadamente
ou concordam ideologicamente, nesses casos, nem o princípio básico de ouvir
os dois lados da notícia é respeitado. As informações são manipuladas para
responder aos interesses dos que detêm o poder econômico.
Os movimentos sociais e as populações camponesas que fazem o enfrentamento com os setores do capital no campo enfrentam um processo
violento de calúnia e difamação por parte dos meios de comunicação. O
objetivo é sempre deslegitimar os direitos conquistados pelos trabalhadores,
desconstruir suas lutas e isolá-los do conjunto da sociedade, fragilizar suas
organizações e, dessa forma, garantir os interesses daqueles que controlam
as terras e as riquezas.
Nos últimos anos, presenciamos inúmeras reportagens, dos principais
veículos de comunicação do país que expressam bem essa estratégia. Houve
uma campanha orquestrada por setores da imprensa contra comunidades
quilombolas em vários estados15 no sentido de questionar sua própria identidade, manipular a opinião pública e criar condições favoráveis à derrubada
do Decreto 4.887/03, que estabeleceu o princípio do autor-reconhecimento
para a demarcação de suas terras. O MST, o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) e a Via Campesina também tem sido vítimas de reportagens
tendenciosas orquestradas pela mídia, com maior intensidade, nos Estados
do Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Em Altamira, no Pará, a atuação do
bispo Dom Erwin ao lado dos índios e contra a construção da hidrelétrica de
Belo Monte, no rio Xingu, fez despertar uma campanha violenta de parte da
mídia contra o religioso, culminando inclusive em ameaças de morte contra
sua pessoa. Mesma agressividade e violência enfrentaram as organizações
indígenas, o CIMI, ONGs e as igrejas que sustentaram a luta pela demarcação
das terras indígenas nos diversos estados. Essa ofensiva, de parte da mídia,
visa sempre proteger os interesses de fazendeiros, madeireiros, mineradoras,
sojicultores, usineiros, dentre outros.
No atual governo, os setores que comandam a expansão das frentes do
capital no meio rural e sustentam o atual modelo de desenvolvimento para
o campo, estão cada vez mais fortalecidos. Além de manterem em curso a
15 Comunidade de Acauã, município de Poço Branco (RN); comunidade Machadinho, Paracatu (MG); comunidade São Francisco do Paraguassu, Cachoeira (BA).
221
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
política de desconstrução de direitos já conquistados,16 de perseguição e
criminalização dos movimentos sociais e das populações camponesas, estão
conseguindo impor na pauta do Congresso, inúmeros projetos que tem como
objetivo, aumentar o controle e a concentração da terra, se apropriarem das
riquezas do solo e subsolo, eliminar obstáculos que possam comprometer
essa expansão e apropriação. Entre as principais medidas estão: o Projeto
de Lei (PL) que reduz a reserva legal na Amazônia de 80 para 50%; o PL
6.424/05 que permite o reflorestamento na Amazônia com espécies exóticas
(visa livrar os proprietários de reflorestar as áreas devastadas ilegalmente
com espécies nativas e, com isso, abrir caminho para expandirem as monoculturas do eucalipto, palma, etc.); O PL que propõe diminuir a faixa de fronteira do país de 150 para 50 km, permitindo assim, as empresas estrangeiras
a adquirirem terras até esse limite; A regularização das terras griladas na
Amazônia através da aprovação da MP 458 (já sancionada pelo presidente
da República); o PL 1610/96 com o objetivo de regulamentar o art. 231 da
Constituição Federal, permitindo dessa forma, a exploração mineraria em
terras indígenas; a retirada do Maranhão, do Tocantins e do Mato Grosso da
área denominada Amazônia Legal, para que não seja necessário obedecer a
leis mais restritivas de preservação do meio ambiente, etc.
Muitas são as pressões do capital e, maioria delas, direcionadas para
a Amazônia onde existem ainda muitas riquezas em água, terra, madeira,
biodiversidade e minerais. Essas e outras medidas visam abrir caminho para
a expansão da soja, da cana, da pecuária, do eucalipto, da mineração, etc. Os
impactos sobre a natureza e as populações que ali residem são incalculáveis.
Consequentemente aumentarão os conflitos e as violações dos direitos dos
camponeses e indígenas.
O atual governo, que aderiu incondicionalmente a esse modelo econômico e se aliou politicamente a esses setores, tem feito sua parte, no sentido de
usar o dinheiro público para o investimento em grandes obras respondendo
aos interesses do capital, em detrimento do direito dos camponeses. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está em sintonia perfeita com as
frentes de expansão do capital no campo, centrando seus investimentos na
16 O partido Democratas ajuizou uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN), em junho de 2004,
contra o Decreto 4.887/03 que regulamenta a demarcação de terras Quilombolas; Desde 1991/92
tramitam na Câmara dos Deputados proposições legislativas que visam dispor sobre uma nova legislação indigenista, superando o atual Estatuto do Índio e a Lei nº6.001/73; o STF impôs 19 condições no
processo que julgou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, que impactará os territórios
indígenas. Um conjunto de outros projetos tramita no congresso e Ações no STF refletem a ofensiva
contra a demarcação de terras indígenas.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Amazônia na abertura de rodovias, na implantação de hidrovias, ferrovias,
portos, aeroportos e na construção de barragens que possam estimular maiores investimentos do capital nacional e internacional. São projetos previstos
para viabilizar o transporte de minério, grãos e madeira e, que implantados,
causará sérios impactos negativos do ponto de vista ambiental, social e
cultural. Calcula-se que no Brasil a área de influência das obras do PAC será
de 2,5 milhões de Km2, atingindo 137 unidades de conservação, 107 terras
indígenas e 484 áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade
brasileira. Na Amazônia, 322 áreas entre as mais ricas em espécies estarão
expostas a pressões antrópicas.
A construção de barragens garante energia barata e subsidiada para
mineradoras e outras atividades econômicas de grande porte; a abertura
de novas estradas barateia o custo do escoamento de produtos: minérios,
grãos, etanol, madeira, entre outros. Para a Amazônia, segundo o MAB, estão
previstas as construções de 258 hidrelétricas. Por outro lado, a abertura de
estradas tem viabilizado a expansão migratória, o aumento da grilagem e
o desmatamento. É o que está acontecendo, por exemplo, com as rodovias
BR- 364, BR-230, BR-319 e BR-163.
O governo, por seu lado, não potencializou a atuação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, fragilizou a Legislação Ambiental com a Lei de Concessão de Florestas Públicas
e a Medida Provisória 458, convertida em lei, que regulariza a grilagem
de terras de até 1.500 hectares. Esta última resultará na transferência de
terras públicas ou de posse tradicional para o agronegócio. É a MP da legalização do crime. A Lei de Concessão de Florestas Públicas que autoriza o
uso de grandes áreas de florestas, por longos anos, em vista da exploração
“sustentável” dos produtos madeireiros e não madeireiros pode provocar o
aumento do desmatamento e dos conflitos: ela facilita a ocupação das terras
por parte de empresas de capital nacional e estrangeiro e agiliza a obtenção
de licença ambiental. Porém, a crônica dificuldade de fiscalização, por parte
do poder público, pode causar ainda mais violência aos camponeses e povos
indígenas na Amazônia.
Assim, a política desenvolvimentista governamental, para a Amazônia,
fortalece os grandes grupos econômicos e provoca a concentração da terra,
a migração, o êxodo rural, o aumento dos conflitos e da violência e a degradação ambiental e das culturas de povos tradicionais e indígenas.
Para garantir os acordos políticos com esses setores, o governo trata ainda
de engavetar projetos e políticas de interesse dos movimentos sociais, dos
223
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
camponeses e indígenas. Excluiu a reforma agrária das prioridades de governo,
não assumindo inclusive o Plano Nacional de Reforma Agrária; não assumiu
compromisso com a campanha do limite da propriedade da terra; engavetou
a proposta de mudanças nos índices de produtividade para as grandes propriedades; não priorizou a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) 438 que autoriza o confisco das propriedades onde fora flagrado crime
de trabalho escravo; retrocedeu na efetivação do programa de demarcação e
homologação das terras indígenas e territórios quilombolas, etc.
Em síntese, podemos afirmar que, estamos frente a um cenário marcado por conflitos e violência constante no campo, resultando em violação
de direitos humanos permanentes, com forte tendência de agravamento
dessa situação frente à expansão do atual modelo de desenvolvimento,
principalmente, em direção à Amazônia. A situação se mostra ainda mais
preocupante na medida em que os movimentos sociais organizados passam
por um processo de desaceleração das lutas e, consequentemente, da diminuição de sua capacidade de pressão para garantir seus direitos. Ainda mais
preocupante é o cenário político, a tendência para os próximos anos é de um
governo ainda mais aliado com os interesses do capital. Havendo dessa forma
um fortalecimento da ofensiva contra os movimentos sociais, as populações
camponesas e indígenas que os colocarão, certamente, em uma situação de
maior vulnerabilidade em relação à defesa de seus direitos.
O respeito aos direitos humanos no campo, passa necessariamente, pelo
enfrentamento à concentração da terra e das riquezas, à luta contra a violência
e a impunidade e pela defesa de outro modelo de desenvolvimento para o
campo e para o país pautado não na racionalidade do capital, mas no respeito
à dignidade da pessoa humana, à natureza e à cultura e aos modos de vida das
populações camponesas e indígenas, sobretudo. Isso só será possível com o
povo organizado e fazendo lutas. A conquista dos povos indígenas da reserva
Raposa Serra do Sol, em Roraima, é um exemplo desse processo.
Referências
ALFONSIN, Jacques Távora. A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2000.
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas
no Brasil. Brasília, 2008.
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e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos,
2007.
224
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
PEREIRA, Airton dos Reis et al. A exploração mineraria e suas consequências
na Amazônia brasileira. Caderno de Conflitos, CPT, 2008, p.72-78.
RAINHA, R. e LOPES, D. S. A titulação dos territórios quilombolas: uma breve
leitura dos oito anos do governo Lula. In: Direitos humanos no Brasil 2010.
Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social
de Justiça e Direitos Humanos, 2010. PP. 87-93.
RECH, Daniel. Ceris e Misereor. Direitos Humanos no Brasil Diagnóstico e
Perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
225
III PERSPECTIVA DE TRABALHO E DIREITO
Atuação do ministério público federal no
combate ao crime de trabalho escravo no
meio rural e políticas públicas para erradicar
a escravidão contemporânea
Neide M. C. Cardoso de Oliveira
Introdução
O Brasil assiste nos últimos anos à crescente mobilização da sociedade
civil na luta pelos direitos das mais diversas minorias. Não obstante, há um
universo de cidadãos carentes que continua ao desamparo e que estão, neste
momento, submetidos ao regime de escravidão em nosso País. E é verdade
que, com maior ou menor intensidade, o problema está em todos os Estados
da Federação. Após o advento da Constituição de 1988, a par da atuação
como fiscal da lei, o Ministério Público passou a atuar de forma mais efetiva
como órgão agente. Diversas denúncias sobre crimes de trabalho escravo e
crimes correlatos foram ou estão sendo propostas pelo Ministério Público
Federal em todo o território nacional.
As dificuldades no combate ao crime de trabalho escravo são imensas,
seja pela morosidade do processo penal; seja pela até então recente indefinição sobre o juízo competente para o julgamento de tais crimes; pelas penas
reduzidas; pelos entraves legislativos; seja, principalmente, pela ausência
de uma política pública de reinserção dos trabalhadores, que libertos do
trabalho escravo, a este retornam por falta de outra opção.
A existência do trabalho escravo, independentemente de seu vulto
estatístico, fere a consciência pública do País, por violar direitos humanos
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
fundamentais e privar milhares de pessoas da cidadania e da participação
na vida nacional.1
1 Crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo
O Código Penal de 1940, em seu Artigo 149: “Reduzir alguém a condição
análoga à de escravo” previa ao infrator pena de reclusão, de dois anos a oito
anos, o que permanecia como uma incógnita na nossa legislação penal diante
da subjetividade com que este artigo era descrito, e dos doutrinadores que
pouco redigiam sobre este assunto. Aliás, houve críticas, à época, dirigidas
a este dispositivo penal – quando taxado de supérfluo por grande parte da
doutrina, diante da suposta inexistência do delito de fato.
Prado (2006, p. 323), em especial aos art. 121 a 183, afirma que: “Criticase a inserção de tipo desse gênero nos códigos modernos, alegando-se a
ausência de fatos dessa natureza nas nações civilizadas hodiernas.” Costa e
Silva (1962, p. 10) defende esse mesmo posicionamento. Todavia, tais autores
na realidade desconheciam a verdade que se fazia e, infelizmente, que ainda
se faz presente no interior do território nacional, em inúmeras fazendas,
conforme mostram as reportagens publicadas respectivamente no jornal O
Globo: Fazenda de cana tinha 1.108 com escravos (2007a, p. 12), Empresas
ainda lucram com trabalho escravo (2007b, p. 13) e Trabalho escravo sem
punição (2006, p.29), entre outras.
A essência do delito de reduzir alguém a condição análoga à de escravo
residia na sujeição de uma pessoa à outra, no domínio no sentido psicológico e físico. A liberdade do sujeito passivo é suprimida de fato, mesmo que
permaneça como estado de direito. A relação que se estabelece entre os
sujeitos do delito é análoga (semelhante) à de escravidão, pois visa tornar
a pessoa totalmente submissa à vontade de outrem, como se escravo fosse.
Não é também o simples encarceramento ou constrangimento que seriam
crimes menos graves.2 Cuida-se de privação de liberdade em sua acepção
mais ampla. O crime consiste em apoderar-se de um homem para reduzi-lo
à condição de coisa, como servir-se de outrem, sem lhe reconhecer direito
correlativo às suas prestações. Como exemplo, e quando se fala da escravidão
1 O trabalho escravo é de difícil mensuração estatística, entre outros motivos por se apresentar, frequentemente, como fato transitório (empreitada para desmatamento, limpeza de terras, colheita etc). A
Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2005) no relatório Uma aliança global contra o Trabalho
Forçado estima a existência de 25 mil trabalhadores nessa condição, concentrados preliminarmente na
agricultura (80%) e na pecuária (17%).
2 Hungria (1958, p. 200) afirma, que: “Entre o agente e o sujeito passivo se estabelece uma relação tal,
que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido, de fato,
a um estado de passividade idêntica à do antigo cativeiro.”
230
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
contemporânea, ressalta-se ao que ocorre nos imóveis rurais do Brasil, onde
como forma mais comum comparece a “servidão por dívida”.
Esta amplitude conceitual, que vinha sendo suprida pela doutrina, foi
substituída por uma enunciação exaustiva, explicitada pela alteração legislativa, promovida pela Lei 10.803 de 2003, que especificou a conduta, ao
fechar o tipo penal, passando a exigir uma das seguintes condutas descritas
por Prado (2006, p. 323), todas elas referentes à sujeição ou submissão de
alguém a:
a) trabalhos forçados, ou seja, a trabalhos ou serviços exigidos sob
ameaça de alguma punição e/ou contra a sua vontade;
b) jornada exaustiva, esgotante, além da que é considerada aceitável
por qualquer ser humano.
c) sujeição (submissão) a condições degradantes, em que se pode
identificar péssimas condições de trabalho e de remuneração e,
por fim,
d) restrição (limitação), por qualquer meio, da locomoção em razão
de dívida contraída com o empregador ou preposto, chamada servidão por dívida, consistente no aprisionamento do trabalhador
por dívidas contraídas em decorrência do trabalho.
O que se percebe é que, no meio rural, se unem as quatro figuras do
tipo penal de forma a caracterizar o sistema de escravidão contemporânea,
embora para isso não seja necessária a presença das quatro figuras juntas
para a configuração deste delito.
1.1 Tratados internacionais
O Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o crime de trabalho
escravo no meio rural, a saber, a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura (1926)3 e as Convenções n. 29 (1930)4 e n. 105 (1957)5, estas duas últimas
da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Toda essa base normativa
internacional encontra-se incorporada ao sistema jurídico brasileiro.
3 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 66, de 1965, ratificada pelo Brasil em 6 de junho de 1966 e promulgada pelo Decreto n. 58.563, de 1 de junho de 1966, com as emendas introduzidas pelo Protocolo
de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956. Foi ratificada em 12 de
setembro de 1958 pelo Decreto Legislativo n. 6, de 11 de junho de 1958. (Decreto de Promulgação n.
49.981, de 8 de setembro de 1959.
4 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 24, de 29 de maio de 1956, ratificada em 25 de abril de 1957 e
promulgada pelo Decreto n. 41.721, de 25 de junho de 1957.
5 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 20, de 30 de abril de 1965, ratificada em 18 de julho de 1965 e
promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14 de julho de 1966.
231
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
1.2 Da ação penal
Para o Ministério Público Federal, o autor do crime é compreendido na
pessoa do empregador final, o proprietário do imóvel rural, responsável pelo
que acontece em seus domínios. Não podemos dissociar a figura do fazendeiro
da responsabilidade criminal, quando ele se utiliza de um terceiro para fraudar
a legislação trabalhista e submeter seus empregados à escravidão, com fins de
lucro. É o que ocorre, em caso de o proprietário do imóvel rural contratar prepostos para se eximir de qualquer responsabilidade trabalhista. No entanto, como
não se exclui a responsabilidade trabalhista, não se exclui também a criminal.
Tanto o conhecimento, pelo fazendeiro, da situação degradante em que
laboram os trabalhadores, como a falta de cumprimento dos direitos trabalhistas, mediante fraude6, podem ser esclarecidos pelos auditores fiscais
do Trabalho, entre médicos, advogados e outros, na qualidade de testemunhas. Ninguém melhor que os próprios fiscais para explicar esses direitos
e verificar como os trabalhadores foram enganados naquele caso concreto,
porque estes agentes tiveram contato pessoal e ouviram as reclamações dos
trabalhadores, e são os responsáveis pela lavratura dos autos de infração
trabalhista. As declarações dos trabalhadores, reproduzidas nos formulários
de verificação física, servem para confirmar a forma de fraude utilizada pelo
empregador por meio de seus prepostos, que, ao contratá-los, os seduzem
com promessas fantasiosas sobre salários e condições de trabalho.
O depoimento das vítimas é importante, entretanto, a praxe demonstra
ser de difícil consecução produzir a prova, já que o processo penal tramitará,
por mais célere que seja, em data muito posterior (cerca de 2/3 anos) àquela
em que o crime foi descoberto. As vítimas, como decorrência de sua condição
social e por, normalmente, não serem oriundas do local em que o crime se
consumou, dificilmente são localizadas e, muitas, por ocasião do processo,
já se encontram submetidas à nova situação de trabalho escravo.
O relatório da fiscalização é instruído com os formulários de verificação
física, que contêm: as declarações e assinaturas dos trabalhadores sobre todos os aspectos da relação trabalhista vivenciada no local de trabalho; fotos
dos locais degradantes em que eles trabalham; e os autos de infração com
a descrição das multas aplicadas. Constitui-se como prova documental no
processo suficiente para confirmar a prática do crime de trabalho escravo
e outros contra a organização do trabalho.
6 Art. 203: “Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho. Pena
– detenção, de 1 (um) ano a 2 (dois) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.”
232
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
O inquérito é importante para instruir a denúncia, especialmente quando
ocorre a prisão em flagrante de quem esteja submetendo os trabalhadores
à escravidão, já que o crime é permanente. Junto com o relatório da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) corrobora a denúncia,
que pode incluir outros crimes, como o porte de arma sem autorização,
crimes ambientais etc.
1.3 Competência
Entre os anos de 1999 e 2006, o maior problema jurídico no combate
ao trabalho escravo junto ao Poder Judiciário girou em torno do questionamento sobre qual jurisdição criminal seria a mais competente para o seu
processo e julgamento.
Embora o Brasil seja signatário das Convenções 29 e 105 da OIT, que
visam combater o trabalho escravo, quando ocorre, em áreas rurais, este
delito não consegue alcançar repercussão internacional, prevista pelo art.
109, inc. V, da Constituição Federal (CF) para caracterizar a competência
da Justiça Federal.7
Interpretação sistêmica e mesmo literal conduzem à competência da
Justiça Federal todos os delitos contra a organização do trabalho, conforme
o art. 109, inc. VI, da Constituição8 Federal, motivo pelo qual, enquanto não
era prevista literalmente a competência da Justiça Federal para o julgamento
do crime de trabalho escravo, as denúncias incluíam na capitulação dos
crimes contra a organização do trabalho (art. 197 a 207, todos do Código
Penal - CP).
No entanto, na esteira da Súmula 115, do extinto Tribunal Federal de
Recursos (TFR), anterior à CF/88, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu essa competência. Esse era o entendimento que vinha sendo seguido
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e demais tribunais do país, no sentido de que os crimes contra a organização do trabalho somente eram de
competência da Justiça Federal quando os delitos atingissem ao sistema de
órgãos e instituições que preservassem, coletivamente, os direitos e deveres
dos trabalhadores e não quando estes eram considerados individualmente.
7 “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no
estrangeiro, ou reciprocamente” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
8 “Art.109. Aos juízes federais compete processar e julgar: VI – os crimes contra a organização do trabalho
e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
233
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Então, sempre que se pudesse determinar o número de trabalhadores atingidos pelos delitos contra a organização do trabalho, a competência era da
Justiça Estadual, sob a alegação da ínfima estrutura da Justiça Federal para
abarcar tais crimes.
No caso do trabalho escravo, o crime é pluriofensivo e lesa, também, os
princípios basilares que devem orientar o sistema do trabalho coletivamente,
entre eles, o respeito à dignidade da pessoa humana.
Não se trata, portanto, de mera lesão a direito individual do trabalhador
explorado. Ainda que isoladamente considerado, já se via sólida doutrina
e parte da jurisprudência no sentido de que, embora se tratasse de crime
contra a liberdade individual, por sua natureza de atentado contra os direitos humanos, e em face dos compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil a esse respeito, o julgamento deste delito deveria ser de competência
da Justiça Federal.
Esse dilema chegou ao fim com a decisão do STF, em um Recurso Extraordinário (n. 398041/PA), julgado em 30 de junho de 2006, cujo Relator,
Ministro Joaquim Barbosa, determinou o processamento e julgamento de
crime de redução à condição análoga à de trabalho escravo pela Justiça
Federal. Neste julgamento, o STF considerou que o crime previsto no art.
149, do Código Penal (CP) devia ser classificado como crime contra a organização do trabalho, inserindo-o na competência da Justiça Federal (art.
109, inc. VI, da CF).
Esta decisão indicou o abandono da posição anterior do STF, que
implicava um desarrazoado esvaziamento do art. 109 da CF, que define a
competência da Justiça Federal, motivada, no passado, por uma visão utilitarista, que via na pequena interiorização da Justiça Federal um entrave à
persecução penal.
Se é certo que o artigo 149 do CP não se encontra no capítulo dos crimes
contra a organização do trabalho, mais certo ainda é que, se não há como
negar sua vinculação a tais tipos e, agora, com a redação restritiva do atual
tipo, fica evidente a sua vinculação com as relações de trabalho.
2 Importância da fiscalização dos auditores do ministério do
trabalho e emprego (mte) para a prova do crime
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), instituído pela Portaria
n. 632 de 20 de junho de 1996, é coordenado pela Secretaria de Inspeção
do Trabalho e Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego e constituído
de sete equipes integradas por: auditores-fiscais do trabalho, delegados
234
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
e agentes da Polícia Federal (PF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
(IBAMA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e
procuradores do Trabalho. Os auditores fiscais do Trabalho são nomeados
como coordenadores regionais em localidades diferentes de sua lotação
original, com o objetivo de impedir, ou pelo menos dificultar, a pressão ou
ameaça que possam vir a sofrer, em razão da influência que possa exercer
a pessoa física ou jurídica, que pratica este delito.
O Grupo Móvel se constituiu em resposta à necessidade de se ter no
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) um comando centralizado para:
diagnosticar o problema do trabalho escravo; garantir a padronização dos
procedimentos de supervisão direta dos casos fiscalizados; assegurar o
sigilo absoluto na apuração de denúncias e garantir que a fiscalização local
se visse livre das pressões e ameaças (VILELA, maio 2009).9
A finalidade precípua das operações é retirar os trabalhadores dos locais, em que estão sendo explorados, assegurar o recebimento das verbas
devidas e, através de relatórios circunstanciados, acionar outros Poderes
para as demais providências cabíveis (VILELA, maio 2009).
No período compreendido entre 2007 e 2008, o Grupo Móvel realizou
270 operações (em 496 fazendas) que resultaram na libertação de 11.015
trabalhadores submetidos ao trabalho escravo. Em até 05/2009, 40 operações foram executadas e 1.037 trabalhadores foram libertos (em 130
fazendas) (VILELA, 2009). O Pará é o estado que registra o maior número de
violações no campo. Das 540 operações realizadas em 12 anos de existência
do Grupo Móvel, 160 ocorreram no Pará. E, das 1.753 fazendas fiscalizadas
neste período, 423 estão naquele Estado (O GLOBO, 22 set. 2007).10
Explicado o tipo penal, a atuação criminal do Ministério Público Federal
(MPF), a competência do Poder Judiciário e a fiscalização do Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), não se poderia esquecer do Poder Legislativo.
As propostas legislativas, de cunho constitucional e infraconstitucional, e
que ora estão em tramitação no Congresso Nacional, demonstram a preocupação do legislador brasileiro com o tema e este estudo vai se ater ao
mais importante.
9 Relatório “A experiência do TEM e instituições no combate ao trabalho escravo contemporâneo”, da Secretaria da Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego MET, Ruth B. V. Vilela, atualizado
em 04/05/2009.
10 Trecho de matéria publicada no jornal “O GLOBO”, caderno O PAÍS, sob a manchete “Fiscais denunciam
pressão de senadores”, de 22 fev.2007, por Evandro Éboli.
235
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
3 Proposta de Emenda Constitucional n. 438 / 2001:
PEC do trabalho escravo
A Proposta de Emenda Constitucional n. 438/2001, conhecida como
“PEC do Trabalho Escravo”, permitia ao governo expropriar (sem indenização), para fins de reforma agrária, terras onde fosse constatado o uso
de trabalhadores em regime análogo à escravidão. Hoje, o governo pode
desapropriar ressarcindo o proprietário pela perda do imóvel.
A primeira e maior dificuldade que se coloca é decidir qual órgão será
competente para afirmar que há exploração de trabalho escravo no local e
que, portanto, tal gleba pode e deve ser expropriada. Os fazendeiros e, por
conseguinte, a bancada ruralista, no Congresso Nacional não aceitam que tal
decisão advenha da fiscalização do Ministério do Trabalho, sob a alegação de
que aquele órgão estaria substituindo a atribuição só cabível ao Judiciário.
Por outro lado, submeter a prova da existência do trabalho escravo à decisão
judicial, transitada em julgado, seja da Justiça Federal ou Trabalhista, como
requisito para a expropriação, seria frustrar a imediata eficácia pretendida
pela proposta de emenda constitucional em questão.
As entidades governamentais e as não governamentais, que atuam na
erradicação da escravidão, defendem a aprovação dessa PEC que vem sendo considerada um ícone do combate à escravidão contemporânea, como
resposta à impunidade ao trabalho escravo no Brasil, no momento em que
o país busca o reconhecimento internacional como nação preocupada com
as graves violações de direitos humanos e de crimes contra a humanidade.
4 Políticas públicas ou apenas políticas de governo?
Não obstante os compromissos internacionais e constitucionais, a prática
do trabalho escravo e, por conseguinte, a violação ao princípio da dignidade
da pessoa humana persiste e chega a ser intensa em certas regiões do País,
sobretudo (porém, não exclusivamente), nas áreas de expansão agrícola, no
chamado “arco do desmatamento,” na região amazônica. Não há um diagnóstico preciso sobre o número de pessoas que foram ou estão submetidas
ao trabalho escravo. As estatísticas oficiais se referem apenas ao número
de trabalhadores resgatados nas operações de fiscalização do MTE. 4.1 Políticas adotadas pelo Governo brasileiro no combate ao trabalho escravo
Visando cumprir os compromissos internacionalmente assumidos,
embora tardiamente, a eliminação do trabalho escravo transformou-se em
prioridade nacional a partir de 1995, quando o Governo brasileiro reconhe236
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
ceu a existência deste delito no País, e criou pelo Decreto Presidencial nº
1.538, de 27 de junho de 1995, o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho
Escravo (GERTRAF), dirigido pelo Ministério do Trabalho e Emprego,11 incumbido de realizar ações integradas de combate à escravidão, abrangendo
aspectos trabalhistas, sociais, econômicos, ambientais e criminais. Instituiu,
também, no âmbito do MTE, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, em
1996, apresentado anteriormente.
No Ministério da Justiça foi criada, no âmbito do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), por meio da Resolução n. 05, de 28
de janeiro de 2002, uma Comissão Especial para propor mecanismos que
garantissem maior eficácia na prevenção e repressão à violência no campo
e à exploração do trabalho escravo e infantil.12
Malgrado sua política neoliberal, o governo do então Presidente Fernando
Henrique Cardoso lançou, em 13 de maio de 1996, o Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH), destinado a agir na prevenção e repressão do
trabalho escravo, cujas tarefas foram ampliadas com o lançamento, em 13 de
maio de 2002, do Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH II). A relevância que este tema assumiu para o Governo nos últimos anos, foi expressa
ao estabelecer 10 (dez) metas entre as 518 integrantes do Programa.
A Resolução do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (CODEFAT) n. 306, de 6 de novembro de 2002, estabeleceu a concessão
de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado na condição análoga à
escravidão, confirmada pela Lei 10.608/2003. Este benefício é concedido
em 3 (três) parcelas, de um salário mínimo cada, aos resgatados que não possuam renda suficiente à sua sobrevivência e à de sua família, nem recebam
benefício previdenciário de prestação continuada. O seguro-desemprego foi
concedido a 9.193 trabalhadores de janeiro de 2003 a dezembro de 2006, o
que representa 58 % do total de libertados no período. A relação segurados/
libertados tem crescido de forma acentuada, saltando de 16%, no primeiro
ano, para 92,83%, em 2007 (VILELA, 2009).
11 Os integrantes eram: Ministérios da Justiça, da Previdência Social, do Meio Ambiente, da Agricultura, da
Reforma Agrária e da Indústria e Comércio, além do Ministério Público Federal e da Polícia Federal.
12 Os integrantes, entre membros e convidados, eram: Secretaria Nacional de Justiça (SNS); Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE); Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); Ministério Público
Federal (MPF); Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC); Ministério Público do Trabalho
(MPT); Associação dos Juízes Federais (AJUFE); Departamento de Polícia Federal (DPF); Departamento
de Polícia Rodoviária Federal (DPRF); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Centro pela Justiça e o
Direito Internacional, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Confederação Nacional da Agricultura
e Pecuária (CNA) e Universidade de São Paulo (USP).
237
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Em 2003, o Governo lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo, abrangendo 76 ações, que expressam e articulam os papéis dos entes públicos e da sociedade civil no enfrentamento do problema. No mesmo
ano, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a Comissão Nacional para
Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), um órgão colegiado, cuja função primordial é de monitorar a execução do Plano Nacional, integrado por
ministros de várias pastas, entre eles, o do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), e por até nove representantes de entidades não-governamentais que
possuam atividades relevantes relacionados ao tema (Vilela, 2009).
Considerado como a primeira ação nacional de prevenção, cabe citar
o Projeto Escravo, nem Pensar! Coordenado pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos (SEDH), pela ONG Repórter Brasil e pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que tem atuado desde 2004 nos estados
do Maranhão, Piauí, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Bahia, visando diminuir
o aliciamento de trabalhadores por meio da educação de crianças e adolescentes e capacitação de lideranças populares.
Em 8 de março de 2004, o Governo Brasileiro foi pioneiro em reconhecer,
perante a Organização das Nações Unidas (ONU), a existência de um número
estimado de 25 mil trabalhadores escravos no País.
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) criou, pela Portaria n. 540, de
15 de outubro de 2004, o Cadastro de Empregadores, formado por pessoas
físicas e jurídicas autuadas pela fiscalização na prática de trabalho escravo.
Conhecido como “Lista Suja”, este cadastro é atualizado semestralmente pelo
MTE e encaminhado aos Ministérios da Fazenda, da Integração Nacional,
do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e à Secretaria Especial de
Direitos Humanos, a fim de que cada instituição adote as medidas oportunas
em seu âmbito de competência. A inclusão do nome do infrator no cadastro
acontece somente após a conclusão do processo administrativo originário
dos autos de infração lavrados no decorrer das inspeções. A exclusão depende da conduta do infrator, monitorada pela inspeção do trabalho, ao
longo de dois anos. Não havendo, nesse período, reincidência, se pagas todas
as multas (resultantes da ação fiscal) e quitados os débitos trabalhistas e
previdenciários, o nome é retirado do cadastro. Em sua última atualização
datada de maio/2009, o cadastro relacionava 200 pessoas entre físicas e
jurídicas.13
13 Informação veiculada em meio eletrônico. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/trab_escravo/
cadastro_trab_escravo.asp>. Acesso em: 4 jun. 2009.
238
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Um dos principais efeitos do cadastro é impedir o acesso de empregadores, que dele constam, às linhas de crédito e aos incentivos fiscais junto
aos bancos oficiais e agências regionais de desenvolvimento. Uma decisão
do Ministério da Integração Nacional impede que essas pessoas físicas e
jurídicas, desde o final de 2004, tenham acesso aos recursos dos Fundos
Constitucionais de Financiamento concedidos pelos Bancos do Brasil, da
Amazônia e do Nordeste do Brasil.
Em 13 de dezembro de 2005, o Governo Federal lançou a Campanha
pela Erradicação do Trabalho Escravo, executada em parceria entre o MTE
e a OIT - de formato de declaração de intenções assinada pela Federação
Brasileira dos Bancos (FEBRABAN) e visa orientar os associados a adotarem
restrições cadastrais aos exploradores de trabalho escravo. Essa Campanha
também promoveu a assinatura do Acordo de Cooperação Técnica entre o
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) para inclusão, dos trabalhadores resgatados, no Programa Bolsa Família. Segundo Ruth B. V. Vilela, atual Secretária
de Inspeção do Trabalho, tal Acordo não funcionou efetivamente, pois as
famílias de muitos trabalhadores resgatados já faziam parte do Programa
Bolsa Família ou não puderam efetivamente ingressar neste Programa, por
falta ou de algum documento ou de resolução de problema burocrático.
Efetivamente, o Programa Bolsa Família, na prática, não contribuiu para a
erradicação do trabalho escravo, como política de governo.
Visando impulsionar o desenvolvimento de áreas afligidas pela miséria e pelo desemprego, o Governo Federal lançou a linha de crédito Terra
para Liberdade, destinada a viabilizar o acesso à terra pelos trabalhadores
resgatados e a apoiar seus projetos produtivos. O crédito pode atingir R$
18.000,00 por tomador. Os trabalhadores resgatados de fazendas, onde
seriam vítimas de trabalho escravo, serão o público prioritário de outros
programas de crédito, como o Programa Nacional de Agricultura Familiar
(PRONAF), gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. O mesmo
MDA decidiu que financiaria, a partir de 2006, projetos de assistência técnica
e capacitação de agricultores e familiares libertos, abrindo a estes possibilidades concretas de emancipação pela via da produção, do trabalho e da
renda. No entanto, segundo informação da mesma Ruth Vilela, por falta de
verba estes programas não foram implementados.
Existe, ainda, segundo Ruth Vilela, projeto de oferta de cursos de qualificação profissional para os egressos do trabalho escravo ou para vítimas
potenciais, mas sem previsão de verbas para sua implantação efetiva.
239
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Dentre todas as políticas de Governo descritas, o Plano Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo se destaca, como marco histórico mais
importante. Este Plano atende às determinações do Plano Nacional de
Direitos Humanos e reflete uma política “pública” permanente que deveria
ser fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do
trabalho escravo. No entanto, como esse órgão não foi criado, a fiscalização
do Plano acaba ficando a cargo de entidades relacionadas ao tema, mas de
forma pulverizada.14
Em mais uma atuação pontual do Governo, encontra-se, em estudo, o
Projeto de Intermediação de Mão-de-Obra, que quando implantado será
mais um importante passo no combate ao trabalho escravo.
4.2 Projeto de Intermediação de Mão-de-obra
O Projeto piloto de intermediação de mão-de-obra rural executado no
âmbito do sistema público de emprego, é uma aposta do Governo Federal
visando prevenir a prática do trabalho escravo, nos Estados do Pará, Maranhão e Piauí. Por este projeto, os trabalhadores rurais serão orientados a se
inscreverem nas agências públicas de empregos, onde as empresas também
estarão cadastradas, e a intermediação entre a procura e a oferta de trabalho deverá ser realizada por essas agências. Esta política de Governo incide
sobre o aliciamento, momento inicial de eventos que conduzem ao trabalho
escravo. Ao proporcionar o encontro entre a demanda por mão-de-obra e a
força de trabalho, a intermediação pública visa tornar desnecessária a figura
do aliciador (popular “gato”) e fomentar a adoção de práticas trabalhistas
de acordo com a lei. O trabalhador intermediado pelo sistema público terá
previsibilidade sobre as condições de trabalho de sua futura ocupação e a
certeza de que, a princípio, não será enganado. O empregador, por outro lado,
terá à disposição, junto aos centros de intermediação, um meio de encontrar
os trabalhadores que sua atividade produtiva demanda, de acordo com o
perfil ocupacional desses.
Em novembro de 2007, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
iniciou as primeiras providências para colocar em operação os serviços de
intermediação e de acordo de cooperação com os estados do Maranhão,
Pará e Piauí visando realizar um projeto piloto em 7 (sete) municípios
desses estados. Mas já está em vigor, pela sociedade civil, por meio de uma
14 As metas do Plano e sua análise constam do Anexo ao Relatório Trabalho Escravo no Brasil do Século
XXI, da OIT, no site http://www.ilo.org/declaration.
240
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
organização não-governamental, o Projeto Carvão-Cidadão, bem similar ao
que se propunha o Governo a implantar com o projeto de intermediação de
mão-de-obra rural, não assinado até hoje.
4.3 Projeto Carvão-Cidadão
O Instituto Carvão-Cidadão, uma organização não governamental, criada em setembro de 2005, reúne 14 (quatorze) empresas siderúrgicas dos
estados do Pará e Maranhão e visa reinserir o trabalhador resgatado do
trabalho escravo pela fiscalização do MTE em empregos nas siderúrgicas
que integram o Instituto.
De posse da relação dos trabalhadores resgatados enviada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Instituto Carvão-Cidadão começou
enviando funcionários da às casas dos trabalhadores, oferecendo-lhes emprego naquelas siderúrgicas.
Tal sistema funcionou, em parte de forma amadora, devido a falta de
especialização e metodologia dos auditores de campo, entre 09/2005 a
09/2006, e apesar de só ter conseguido inserir cerca de 60 (sessenta) trabalhadores, provenientes de uma lista de 600 (seiscentos) enviada pelo MTE,
e desses 60 (sessenta), apenas cerca de 6 (seis) se mantiveram trabalhando,
esse resultado chamou a atenção da Organização Internacional do TrabalhoOIT. A OIT tem dado forte suporte às iniciativas brasileiras de implementação
da legislação internacional e nacional para erradicar o trabalho escravo e
começou a procurar patrocinadores para o projeto Carvão-Cidadão, a fim
de aperfeiçoá-lo, expandir sua atuação e acompanhar a manutenção dos
trabalhadores nas siderúrgicas.
A OIT obteve a partir de 2007, o patrocínio da Embaixada da Alemanha
o que a possibilitou (porque que a proposta é da OIT) estabelecer como
meta a reinserção de 100 trabalhadores no mercado formal de trabalho no
curso de um ano, e também a contratação de profissional especializado em
recursos humanos como responsável pela abordagem, entrevista e triagem
dos trabalhadores daquela lista. Pois, tal função quando realizada pelo
auditor de campo, sem especialização, não obteve o êxito que se esperava,
em face dos contratempos surgidos diante da falta de capacitação para tal
trabalho (medo dos trabalhadores em receber o auditor; a desconfiança
sobre o oferecimento de trabalho; a falta de compromisso do trabalhador
após a contratação etc).
241
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Considerações finais
A impunidade ainda é a principal mancha da política de combate ao trabalho escravo, apesar do crescimento das operações de repressão realizadas
pelo Governo. A responsabilidade pela impunidade é, em parte, do Judiciário,
que demorou cerca de 8 (oito) anos para decidir qual de suas jurisdições
seria competente para o processo e julgamento do crime de trabalho escravo. Urge que os escravagistas sejam punidos com os rigores da lei, desde
o pagamento de multas trabalhistas, prisões exemplares, expropriação. A
atuação judiciária é sempre associada à impunidade, que se deve também
às legislações penal e processual penal brasileiras, que preveem penas pequenas, a prescrição da pena e uma infinidade de recursos. Os criminosos
mais abastados obtêm nas leis processuais instrumentos suficientes para
impedir que qualquer processo chegue ao fim em menos de dez ou vinte
anos, quando muitos crimes já prescreveram.
A sociedade não tem sido educada em direitos humanos e, por isso, ignora a realidade de trabalho escravo, nega e protege-a sob o argumento de
se tratar de costume, ou da melhor alternativa possível. Chega-se a afirmar
que é melhor o trabalho sob qualquer condição do que a falta dele.
A inclusão no mercado de trabalho do trabalhador proveniente da
escravidão é urgente, bem como é necessário reconhecê-lo como cidadão,
garantir-lhe os direitos básicos, por meio da alfabetização, da qualificação
profissional, instituir políticas públicas de geração de renda com a fixação
desse homem ao campo, proporcionando-lhe, e à família, assistência médica, odontológica, psicológica, escola adequada e digna para seus filhos,
terra, transporte, crédito, assistência técnica, enfim, uma reforma agrária
competente e real.
Referências
COSTA E SILVA, A. J. da. Plágio. In: Justitia, (Órgão da Procuradoria Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público), São Paulo, n. 39, p.10, 1962.
EMPRESAS ainda lucram com trabalho escravo. O Globo, Rio de Janeiro, 13
maio 2007b. p. 12.
FAZENDA de cana tinha 1.108 com escravos. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jul.
2007 a. p.12.
FISCAIS denunciam pressões de senadores. O Globo, Rio de Janeiro, 22 de Jul.
2007. p. 10
242
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1958. v. VI.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Trabalho escravo no
Brasil do século XXI. Disponível em: <http://www.ilo.org/declaration>. Acesso
em: 04 jun. 2009.
RODRIGUES, Valderez Maria Monte. Uma chaga aberta. In: FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2003, Porto Alegre. Anais da Oficina sobre Trabalho Escravo, jan. 2003.
TRABALHO escravo sem punição. O Globo, Rio de Janeiro, 21 set. 2006. p. 29.
VILELA, Ruth B. A experiência do MTE e instituições parceiras no combate ao
trabalho escravo contemporâneo. Dia da Abolição, n. V, jun. 2009.
243
Tratados e convenções internacionais
e seus reflexos (e inconsistências)
no tratamento da escravidão
pós-abolição
Nanci Valadares de Carvalho
“Nós ficamos agradecidos com o que os senhores já fizeram por nós,
mas como as pessoas desta província parecem estar imbuídas dos
princípios de igualdade e justiça, nós não podemos senão esperar
que esta Assembléia, mais uma vez, levará em alta consideração o
nosso deplorável caso, para nos dar aquele alívio maior a que como
seres humanos, temos um direito natural”.1
1. A convenção de 1926 e a definição paradigmática da
escravidão da pessoa humana
O instituto da escravidão acompanhou, por muitos séculos na Antiguidade, a vida doméstica legal dos diferentes povos, entre os gregos e os romanos,
encontrado nos textos sagrados na descrição do hebreu Moisés que conduziu
seu povo à liberação da escravidão, ou segundo um retrato psicanalítico
detalhado por Freud, o Moisés egípcio que juntou-se ao povo escravo para
semear o monoteísmo em terra distante, livre do sistema escravagista.
1 Carta escrita por quatro escravos e, encabeçada por Peter Bestes, dirigida ao Presidente da Assembléia
de Boston nos Estados Unidos da América em 20 de abril de 1773, com o pedido de libertação para
voltarem à África.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Ainda hoje em alguns pontos do mundo, encontra-se em seus elementos
arcaicos, quando na presença da submissão da mulher à família do marido,
no incesto praticado no âmbito dos lares contra as crianças, na receptividade
do inimigo derrotado em batalha ou conquista como servo, ou na recusa da
igualdade essencial de algum grupo minoritário ou simplesmente vulnerável,
a exemplo dos dalits, os Harijan, filhos de Deus, como os chamava Ghandi,
grupo étnico excluído do sistema de castas do Hinduísmo, moldado de antemão para o emprego nas atividades que lidam com os restos da vida humana,
como os detritos e a morte – ação de discriminação criminalizada na Índia
secular, desde a Constituição de 1950, sob a inspiração do Primeiro Ministro
da Justiça Bhimrao Ramji Ambedkar, ele mesmo do grupo de intocáveis.
A Europa conheceu internamente o Feudalismo na Idade Média baseado num complexo sistema de vassalagem em cuja base situava-se a mão
de obra servil.
O pleno despertar dos Estados Centrais, condição dos empreendimentos que propiciaram as descobertas de novos mundos, junto à ciência e à
tecnologia propulsionou a mercantil e universal escravidão dos africanos.
Iniciada nos quatrocentos, representou um movimento que acompanhou
o impulso da primeira mundialização, primeiramente pelo mercantilismo
ibérico. Esse movimento, fortalecido posteriormente na ação ultramarina
das Companhias das Índias Orientais (a Holandesa, a Francesa e a vitoriosa
The British Indian Trading Company), passou incólume aos reclames das
revoluções democráticas Americana e Francesa, esbarrando finalmente
na dinâmica operativa requerida pela Revolução Industrial e seu apelo em
favor do trabalho livre.2
Os motivos econômicos que fundamentaram a proibição da escravidão
somavam-se à repulsa moral e ética suscitada pela novel consciência de
que ninguém a ela fosse submetido, pois o sendo estaria perdendo a sua
essência humana.
As formas contemporâneas de escravidão ou servidão confundem-se
com as remanescências de sistemas despóticos asiáticos, da exploração
colonial nas Américas, e na Ásia, da dominação territorial na Europa e da
escravidão doméstica sem fim mercantil no Continente Africano.
Talvez essa ausência de distinção entre o residual e o novo confira uma
das razões porque os acordos internacionais encontrem muita dificuldade e
2 Embora a noção de trabalho livre seja teoricamente controvertida, sua utilização aqui atende ao senso
comum da interpretação histórica. Cabe notar a presença de traços mercantis na escravidão do Islã
(CHEBEL, 2007).
246
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
sejam plenos de inconsistências, quando se trata da tipificação da escravidão
e da servidão contemporâneas.
Os mais importantes tratados internacionais com referência à escravidão situam-se temporalmente entre dois marcos, a Convenção de 1926 e o
Protocolo de Palermo, de 2000, que se fincam, o primeiro, qual uma conjuração dos povos contra o próprio passado que encerrava os quatro séculos
de escravidão mercantil dos africanos; e o segundo, que se demonstra como
um libelo e uma precaução no período iniciado pela globalização.
A consciência de ontem se elevava contra a indignidade da propriedade
de uma pessoa sobre outra, transformando-a assim em coisa. A de hoje, se
alça contra, principalmente, o horror da submissão de levas de imigrantes
traficados para suprir o afã de lucro e lust a qualquer preço, de pessoas
privadas que cumprem, indiretamente, o desígnio de competitividade dos
países na nova arena internacional.
Ainda mesmo em 18 de fevereiro de 1815 surge durante o Congresso
de Viena a Declaração Relativa à Abolição Universal do Tráfico de Escravos
então representando o primeiro de dezenas de atos e acordos internacionais
que se fazem seguir contra a escravidão mercantil, que por séculos lastreou
a expansão no novo mundo e a acumulação capitalista da Europa.
Na data de 1919 é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT),
destinando-se a oferecer amparo ao trabalhador e proteção às condições
de vínculo do emprego e da remuneração para a metade que permanecia
capitalista depois da Revolução de 1917. Reconhecia-se também aqui uma
mítica valorização do trabalhador assalariado, e mesmo algumas constituições nacionais, como a Mexicana de 1917 e a da República de Weimar
de 1919, consagraram os direitos trabalhistas e a previdência social como
uma preocupação permanente que deságua na Convenção sobre a Proteção
do Salário, de n. 95, em 1949 e a Convenção n. 182, de 1999, sobre as Piores
Formas de Trabalho Infantil. A cada passo da organização internacional, conquistada pela Sociedade de Estados Nações, a regulação contra a escravidão
avança, mas também retrocede.
Durante o período demarcado pela Convenção de 1926 no marco da
Liga das Nações e o Protocolo de Palermo, ato adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o crime organizado transnacional e, na medida em
que se iam denunciando novas situações de constrangimento impostas às
pessoas, o conceito de escravidão viu-se amplamente modificado. Alguns
novos caminhos foram descortinados ao largo, e em consequência surgem
emendas, atos suplementares, declarações e protocolos dos organismos
247
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
internacionais que intentavam criar alternativas e possibilidades face aos
contextos políticos que se vieram sucedendo.
A Convenção Sobre a Escravatura proclamada pela Liga das Nações,
assinada em Genebra em vinte e cinco de setembro de 1926, entrando em
vigor em 9 de março de 1927 com o título Slavery, Servitude, Forced Labor
and Similar Institutions and Practices, Convention of 1926 (LEAGE OF NATIONS, v. 60, p. 252) 3 define a escravidão como o estado ou condição de um
indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do
direito à propriedade e o tráfico de escravos como aquele que compreende:
todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito
de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de
vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de
escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim como em geral, todo
ato de comércio ou de transporte de escravos Caberia então promover a
abolição completa da escravidão e impedir e reprimir o tráfico de escravos
onde ainda reinasse.
O debate filosófico e prático entreaberto pela convenção inicial da Liga
das Nações foi absorvido, juntamente com as edificações majestosas de
Genebra, pela Organização das Nações Unidas (ONU), sua sucedânea. Perdura nos dias de hoje, em todas as regiões mundiais, resultando em número
significativo de especificações legais nacionais e internacionais, secundado
pela ação informada de um conjunto de organizações da sociedade civil que
se dedicam a estudar e denunciar a permanência bárbara da escravidão,
A Organização Internacional do Trabalho, que antecedeu a fundação
da ONU, constitui-se hoje como uma agência deste sistema de segurança
global e direitos humanos, ocupando-se do combate ao trabalho forçado
(ou trabalho escravo contemporâneo, como o chamamos no Brasil) no plano
internacional.
Alguns atos, como a Convention Concerning Forced or Compulsory Labour de 28 de junho de 1930 (LEAGUE OF NATIONS,1932, P. 55) admitem
diversas exceções à condenação tácita e absoluta à escravidão declinada pela
Convenção de 1926. A intencionalidade da Convenção n. 29, de 1930 que foi
ratificada pela quase totalidade dos estados partes, por cento e cinquenta e
oito países, era deixar determinado que uma vez que uma relação de trabalho
não houvesse sido compulsória, não caberia a aplicação de qualquer forma
de sanção ao empregador.
3 Ver Introduction UN LDN. Historical Information Index Full-text search chapter XVIII.
248
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Mas os legisladores de vinte e seis pareciam tomados pela euforia da
abolição universal, tanto quanto os legisladores de trinta que se limitavam
e se enquadravam à situação de guerra que presidiu e presidiria a primeira
metade do Século Breve.
Data de 8 de junho de 1949 a Convenção Relativa à Proteção do Salário,
a Convenção n. 95, na qual o Brasil se subscreve como Estado Membro e,
como tal, apto a excluir algumas categorias da condição de assalariada, a
exemplo do trabalho de pessoas condenadas pela Justiça e feitas prisioneiras.
Em todos os outros casos, o trabalho assalariado nasce de contrato jurídico
determinado.
O afã desse permanente debate motivou a formação de três grupos de
trabalhos pela própria ONU. São eles: o estudo de Mohamed Award datado
de 1966, o de Benjamin Whitaker, de 1984, o Abolishing Slavery and its
Contemporary Forms, de David Weissbrodt e a Anti-Slavery International,
de 2002.
Weissbrodt considera que tendo a Convenção de 1926 incluído todas as
formas de escravidão, demonstrou-se insuficiente na indicação de procedimentos contra esse instituto no interior dos diversos países, ao deixar de
criar um organismo próprio e responsável na prevenção,vigilância e punição
dos atos ilegais.
Assim, em 1949, o ECOSOC - Conselho Econômico e Social da ONU em geral dando voz aos organismos da Sociedade Civil, indicou o caminho
para emenda de 1956. Tratava-se de delimitar com clareza os termos antes
referidos de uma maneira geral. Pontuava-se o trabalho escravo doméstico,
a escravidão por débito, a escravidão de mulheres na relação com o marido, pai ou outros parentes seus e do cônjuge, e de crianças supostamente
adotadas, bem como a venda de meninas por dote, pagamento ou interesse
na busca de vantagens ou compensações. Em seguida ocorre a convocação
da Convenção Relativa à Abolição do Trabalho Forçado, pelo Conselho de
Administração do Secretariado da OIT, reunida em Genebra, em 5 de junho
de 1957, por ocasião da sua Quadragésima reunião.
Aquela Convenção Suplementar Sobre a Abolição da Escravidão, o
Tráfico de Escravos e as Instituições e Práticas Similares à Escravidão, a
Convenção Suplementar de 1956 responsabilizou os Estados Membros pelo
abandono e pela extirpação dessas práticas consideradas de estatuto servil.
No documento E/AC. 43/L1 (UNITED NATIONS, 1956, p.82) são nomeadas
e descritas as práticas de:
249
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
a) debt bondage, ou o vínculo de trabalho por dívida, o qual
se apresente como estado ou condição pela qual em razão de
uma dívida, exerça-se a cobrança da mesma pela prestação de
serviços próprios ou de outrem, declinado pelo devedor, como
forma de garantia de pagamento, especialmente quando o valor
desses serviços não estiver razoavelmente estipulado, ou quando
o tempo e a natureza desses serviços, não estiverem claramente
estipulados para a plena liquidação da dívida;
b) institutos ou práticas análogas à situação de escravidão, que se
encontra na condição ou estado de um arrendatário, a quem por
lei, costume ou acordo, se obriga a viver e trabalhar numa terra
pertencente a outra pessoa, ou a prestar serviço remunerado
ou não, que seja determinado por outrem, sem que a primeira
tenha a possibilidade de mudar sua condição; e
c) todas as formas de alienação da mulher e da criança, inclusive
no seio da família, quando postas a serviço do marido ou de seus
parentes, ou quando se as considera como herança, em todos
os casos, visando à exploração.
A Convenção de 1926 e o Ato Suplementar de 1956 ainda que se constituam
num claro libelo contra as diversas formas de escravidão, não conseguiram
abarcar em sua totalidade os traços da escravidão contemporânea. O termo servidão foi evitado e equiparado às formas análogas à escravidão e às pessoas no
estado servil. A Convenção de 1926 e o Ato Suplementar de 1956 não lograram
incorporar a conceituação recomendada pelo Documento das Nações Unidas E/
CN/.4/Sub.2/1982/20 que define escravidão como o exercício de qualquer ou
todas as formas de propriedade sobre outra pessoa, incluindo o tráfico.
As formas tradicionais de servidão ou escravidão seguem acontecendo
ainda hoje e junto a novas formas de exploração se classificam na seguinte
tipologia segundo o Informe I (B) de 2005 da OIT4: - trabalho forçado imposto pelo Estado; – trabalho forçado imposto por agentes privados para fins
sexuais; – trabalho forçado imposto por agentes privados com a finalidade
de exploração econômica.
O conceito mesmo de exploração resta em aberto no debate político e
acadêmico contemporâneo. A inexistência da especificação desse delito nos
4 Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado, Informe Global em prosseguimento à declaração da OIT
relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho. OIT, 93ª. reunião, 2005. Ver também: OIT.
Conferência Internacional do Trabalho, 89ª. Reunião, Genebra, 2001. Observar o informe de especialistas
convocado pela União Européia sobre o trabalho forçado em 2003.
250
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
códigos penais de alguns países vem adicionar novos desafios, especialmente
quando associados ao impacto da migração na presente fase da globalização.
Pode-se afirmar que a exploração de apresenta sob a égide da legalidade.
Aqui vão alguns exemplos: quando se trata do trabalho forçado pelo
Estado, os governos do Tajaquistão e no Uzbequistão convocam campanhas
de mobilização de estudantes para o trabalho nos algodoais sob pena de
perda de matrícula nas universidades. O caso mais dramático de imposição pelo Estado encontra-se no Myanmar, antiga Birmânia, por meio da
prática frequente do trabalho forçado à população pelo Estado, em geral
pelo braço das Forças Armadas (OIT, 1988). A China admite a reabilitação
de prisioneiros pelo trabalho, mas denega realizar a exploração econômica
do produto resultante.
Na Índia a utilização de mão de obra servil, comum no âmbito doméstico,
penaliza principalmente as mulheres, além da servidão por dívida que se
pode encontrar nas indústrias, entre os ladrilheiros, os pescadores, os entalhadores de pedras preciosas, os tecelãos e os trabalhadores no cortume,
em geral arregimentados nas chamadas castas inferiores. O governo indiano tem-se mostrado consistentemente apto a investigar e impor sanções,
sendo de sua autoria a pesquisa levada a efeito na Região do Rajastão, parte
da Índia histórica dos Marajás, denunciando a servidão por dívida. Ali as
minas constituem-se numa concessão estatal a pequenos empreendedores
que empregam cerca de três milhões de pessoas. Quase cem por cento dos
empregados são provenientes da scheduled castes e 93% deles se encontram, devido ao alto endividamento que contraíram com seus patrões, em
estado de servidão.5 Contra essas e outras práticas os governantes da Índia
5 Mine Labour Protection Campaign: bonded labour in small scale mining, Jodhpur, Rajastan, India, citado
no Informe I (B), nota 53. O governo da Índia por sugestão de uma comissão especialmente dedicada ao
tema da discriminação, chamada Mandal Comission, instituiu em 1980 um “sistema de discriminação
positiva” para os harijans (dalits ou intocáveis) e outros grupos atrasados enlistados – scheduled - de modo
a preencher cotas de 50% nas instituições educacionais e nos empregos públicos. Além dos intocáveis,
incluem-se no sistema de cotas na Índia também as tribos remanescentes e outros grupos em atraso
relativo em proporção à população por eles representada na sociedade. Para o conjunto desses grupos
mais indefinidos, a Suprema Corte estabeleceu uma cota total de 27%. Na Índia clássica,os dalits tinham
as seguintes ocupações: os cándala, cremavam e carregam os cadáveres e eram algozes de criminosos
condenados à morte. Somente poder-se-iam vestir com as roupas deixadas por esses mortos, ornarem-se
apenas com apetrechos de ferro e comer em vasilhas quebradas. Depois havia os nisadas, que eram os
caçadores—portanto, matavam. E os pescadores, chamados kaivartas e aqueles que trabalham curtume,
tirando o couro de diferentes animais. Todos estavam supostos a viverem em colônias mal cheirosas e
sujas em decorrência de sua própria ocupação. Os pukkusa são os limpadores de privadas e de chão. Ver
(AL BASHAUM, 2004). Também os que fazem os cestos e as charretes pertencem a essas castas. Cantores,
dançarinos e apresentadores de teatro de bonecos são também intocáveis e além do mais são nômades.
Nunca recebem diretamente o dinheiro do seu pagamento, pois devem sempre cobrir a parte da mão que
recebe o dinheiro ganho. Assim como recuam ao encontrar pessoas e não entram nas partes principais
das casas onde prestam serviços. Todos são considerados almas poluídas pela poluição do que fazem, e
sua presença carrega um sinal de má sorte, quebrando a corrente de qualquer rito que se celebre. Nos
tempos antigos antes de entrarem nas vilas tinham que se anunciar batendo claquete.
251
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
tomam medidas como, por exemplo, a criação da Comissão Nacional de
Direitos Humanos.
O relatório da Aliança Global Contra o Trabalho Escravo, acima mencionado, aponta para cifras surpreendentes, pois 12.300.000 (doze milhões
e trezentas mil) pessoas encontram-se nas situações de escravidão contemporânea em todo o mundo, sendo que 360.000 (trezentas e sessenta
mil) nos países industrializados e 210.000 (duzentas e dez mil) nos países
emergentes ou em vias de industrialização plena. Fica caracterizado que este
mal parece pertencer a humanidade em geral, distribuindo-se por todos os
tipos de países, indiferente à forte desigualdade na distribuição da riqueza
no mundo. Ainda que a pobreza e o analfabetismo estejam correlacionados
com a vulnerabilidade do trabalhador, a dominação de uns sobre outros
parece surgir como uma variável independente.
A pertinência do Protocolo de Palermo, assinado em 15 de Novembro de
2000, que compôs uma série de três atos adicionais à Convenção do Crime
Organizado Transnacional, retrata a realidade última dos países industrializados isoladamente ou organizados em macro-regiões, como no caso da
União Européia. Sendo incontáveis os casos de tráfico de pessoas das regiões
mais pobres do globo, seja da distante China para o Reino Unido, ou dos
poloneses para o resto da Europa, ou de mulheres russas transportadas
sem destino pelas fronteiras mal delimitadas com a União, mas especialmente em razão do sequestro de crianças, com as finalidades mais torpes e
desumanas, surge esse instrumento de combate, O Protocolo para Prevenir,
Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e de Crianças,
uma chamada, um alerta contra o crime contra a pessoa humana, quando
a situação desvantajosa de alguns pretende ser explorada pela ilegalidade
dos mais fortes e melhor informados.
A assinatura e a ratificação do Protocolo de Palermo pelo Brasil não nos
escusa da indiferença quanto à Convenção de Proteção dos Direitos de Todos
os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, proclamada pelas Nações Unidas,
em 1990. Respondendo aos desafios da globalização tanto quanto o tráfico,
a imigração ilegal atinge-nos regionalmente em maior grau do que aquele.
2. Inconsistências paradigmáticas
O trabalho forçado segundo a OIT engloba a escravidão contemporânea.
Ao se constituir em abuso contra a pessoa humana, requerendo sua abolição e, embora sejam quase duzentas as resoluções da OIT que o restrinjam,
ainda caracteriza a vida de muitas formas e em muitas partes, atingindo
252
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
adultos, de ambos os sexos e crianças menores de dezoito anos de idade. A
Convenção pela Abolição do Trabalho Forçado de 1957, (UN, 1957, v. 320, p.
291) busca responder a esse desafio aos governos do mundo, mas somente
responde à ação impositiva dos Estados.
No que respeita a presença de trabalho forçado ou vinculado à dívida
quando relativos a qualquer outra forma de analogia à escravidão no mundo
contemporâneo, não se vê tratado por esta Convenção que, de certo modo
(exclusão feita às críticas práticas e teóricas à apropriação do trabalho e ao
instituto da mais valia e suas consequências no modo de vida), justamente
deveria regular sobre o devido respeito ao trabalhador no campo da economia privada e não apenas em razão da ação estatal
Observa-se mesmo que algumas lacunas da paradigmática Convenção
de 1930 ficam expostas quando, por exemplo, o artigo 4 admite ainda que
sob enormes restrições, o pagamento parcial do salário em gêneros; e no
artigo 7, que em lugares inaccessíveis, o patronato possa manter lojas e
prestar “economatos”: serviços estabelecidos pelos patrões. Também, sob
a tutela da Autoridade Competente serão eventualmente permitidas a venda
de produtos ou a prestação de serviços de moradia, transporte, acesso à
comunicação e à eletricidade por meio de descontos no salário.
O artigo 8 e o artigo 17 consente que quando o Estado Membro contiver
vastas regiões, ou devido ao caráter disperso da população, poder-se-ia
abrir exceções à aplicação da Convenção, sempre é claro, com o consentimento previsto da mencionada autoridade competente que isentasse certas
empresas e certos trabalhos das boas condições cotidianas no caso em suas
obrigações trabalhistas estivessem legalizadas e documentadas.
Ora as condições de isolamento e rusticidade da vida permitem a
afirmação que a selva amazônica funciona como um imã para o trabalho
forçado (Informe I (B), 2005, p. 45). À atuação privada na exploração da
mão de obra no plantio e na pecuária presentes nessa região, nos moldes de
uma coerção de extrema violência, que tem vitimizado líderes ecologistas e
comunitários, religiosos ou não, acrescenta-se o lucro fácil dos balcões de
venda de suprimento, método certeiro para o prolongamento de um vínculo
não voluntário a um trabalho, no mais das vezes, realizado em condições
degradantes (SUTTON, 1994; REZENDE, 2008).
Alguns autores admitem que a incompletude dos atos jurídicos internacionais se deva menos à insuficiência conceitual do que à própria natureza
dinâmica das situações concretas da escravidão que aparecem nas diversas
partes do mundo hoje.
253
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Bales e Robbins (2001) resumem a condição da escravidão contemporânea sempre que se encontrem em situações nas quais uma pessoa exerça um
completo controle sobre outra, ou que se aproprie da força de trabalho de
alguém ou quando a violência ou a ameaça seja empregada para se manter
aquele estado de coisas. Nesses autores, uma situação de escravidão contemporânea somente se caracteriza pela presença do elemento da coação.
A literatura brasileira, de há muito, aborda o tema da coação abusiva como o do discrime, a linha divisória, teórica e prática, no combate à
escravidão contemporânea. Existiria o elemento da subalternização do
trabalhador na ausência do isolamento da sua comunidade? As condições
degradantes para o exercício do trabalho, alcançando crescente desumanização, poderiam ser vistas como uma forma de coação psicológica e moral?
A coação caracterizar-se-ia apenas quando a violência contra o trabalhador
se apropria dos recursos das armas e da força?
A coação se exerce física, moral e psicológicamente, em ambientes que
a favorecem pela distanciamento territorial e social, condena o trabalhador
e a mulher a perderem ou a não reproduzirem laços afetivos, e seu espectro
se faz ver pela imobilização da mão-de-obra (ESTERCI, 1994).
Considere-se portanto que nos tratados paradigmáticos, a escravidão
fica basicamente definida pela subjugação de uma pessoa a outra para
cumprimento de finalidades da primeira em detrimento da liberdade da
segunda.
Os elementos de coação pelo agente ativo da relação escravagista somado
à falta de informação ou ingenuidade, ou ausência de alternativas do sujeito
da submissão, não parecem pertencer a esse enquadramento legal.
3. A declaração dos direitos humanos como ruptura paradigmática
O Século XX foi o primeiro século a condenar a escravidão de uma pessoa por outra como um crime contra toda a humanidade, que dependendo
da situação, pode ser tipificado como crime de guerra, como crime contra
a humanidade se cometido por Estados ou seus agentes ou crime comum
internacional quando resultado da ação de pessoas privadas.
Que ninguém será mantido em escravidão ou servidão, que a escravidão
e o tráfico de escravos sejam proibidos em todas as suas formas formula-se
como uma norma geral que une o direito positivo e a consciência humana
num mesmo ato jurídico internacional.Um libelo que contrasta com a caracterização positivista da condição de escravo ou estado de servidão como
a de uma pessoa explorada por outra, excluindo-se da definição aquelas
254
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
condições de vulnerabilidade em que se encontra a pessoa humana, e que
justamente geram as razões que antecedem as relações de assimetria e
exploração; contrasta também com o clamor de que, quando se trata de
compreender o fenômeno da escravidão contemporânea, já de difícil determinação nos casos concretos em que sucedam, o foco moral da questão
não pode ser obliterado.
No livro Ética, Fábio Comparato discorre sobre a pessoa humana esclarecendo que o uso desse termo se justifica, em decorrência da comparação
com a pessoa divina no Cristianismo (COMPARATO, 2006, p.457). Sob a
luz de suas reflexões que ligam Rousseau a Kant, filósofos da igualdade, há
que se pensar na situação do escravo como uma anteposição à noção de
pessoa humana. Pois a pessoa seria aquela que portasse uma racionalidade
peculiar à espécie humana, segundo a qual se definiria por suas próprias
finalidades.
Na medida em que ao escravo se toma como um meio para concretizar
objetivos que lhes sejam alheios ou não, quando a subjugação não deriva
da autonomia da pessoa, resta negada, por princípio, a substância humana.
A definição de pessoa implica nessa racionalidade substantiva pela qual a
pessoa nasce dotada de razão, humanamente, indiferentemente da personalidade que venha a cumprir em sociedade, em função ou papel social.
Na Carta das Nações Unidas, a marca do genocídio de milhões de judeus
sob o holocausto nazi-fascista reflete-se como uma profissão de fé fundamental nos direitos humanos, na dignidade e no valor da pessoa humana, independente das diferenças de gênero, raça, origem social e escolha religiosa.
À luz da psicanálise e das ciências sociais, a consideração ética não
alcança incluir a ideia de processo em direção à plena formação da racionalidade própria da pessoa humana, à luz da psicanálise e das ciências sociais,
permitindo-se conceber o pleno desenvolvimento de uma pessoa, por meio
da instrução, da saúde, da participação, da informação, da comunicação e da
associação, motivo das diversas assertivas das leis internacionais no campo
dos direitos políticos, civis, econômicos e culturais, a partir de 1948.
Em 1948, no Sistema Internacional, afirma-se o consenso sobre os Direitos Humanos Universais, agenda de uma convivência ainda em construção
num mundo que se deseja melhor. Na Declaração Universal dos Direitos
Humanos se finda moralmente a escravidão
A Declaração Universal dos Direitos Humanos -DUDH- foi proclamada na
terceira sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU, reunida em Paris em
10 de dezembro de 1948 contando oito abstenções.Seguem-se nos vinte anos
255
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
desse consenso internacional do pós-guerra inúmeras celebrações. Primeiramente, depois em Viena, no dia 25 de junho de 1993, aconteceu a Segunda
Conferência Mundial que antecedeu os cinquenta anos, reafirmados pelo
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de
Direitos Civis e Políticos lançados, outra vez na Assembléia Geral, no dia 16 de
dezembro de 1998. Acrescentam-se algumas outras Resoluções esta DUDH:
Resolução de 1997/44 em Genebra, 29 de fevereiro de 2000 (UN, 2000) e a
Declaração e o Programa de Ação de Viena adotada na Conferência Mundial
dos Direitos Humanos em 25 de junho de 1993 (Un, 1993, p. 908).
Agora, uma pessoa sequestrada ou enganada, mediante falsas promessas ou duplicidade que envolvam a violação de sua liberdade ou segurança,
passa a ser sujeito de direito internacional. Igualmente aquele que for
maltratado, ou submetido a tratamento desumano e degradante torna-se
apto a reclamar diretamente nas Cortes Internacionais e a obter um justo
julgamento. Também a impossibilidade de definir por critério próprio seu
local de residência e o impedimento de estar abrigado no seio de sua família
constituem privação de direito.
Em quase todos os casos de escravidão contemporânea, servidão ou trabalho forçado, alguns desses elementos podem ser encontrados, dificultando
a classificação penal do abuso na intricada fábrica dos atos internacionais
quando singularizados.
Os centros de estudos em várias partes do mundo dentre os quais se
inclui o Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (GPTEC) apontam inúmeros casos concretos contendo
alguma ou muitas dessas violações.
Rezende (2004) divisa na complexidade de fatores, encontrados nos
numerosos casos pesquisados, os traços de ‘um sistema de subjugação e
controle” no qual a rede de aliciamento parece surgir como um substituto
funcional das sociedades escravagistas mercantis. Um sistema que incluiria
na sua tecetura de ilusões e perplexidades, o encontro das subjetividades
que se espreitam em posições de elevação distintas na corrente de um
mesmo rio: dos agentes diretos da coação, gatos e fiscais ou pistoleiros, dos
empreiteiros, gerentes de fazendas, trabalhadores e seus parentes, líderes
sindicais, fazendeiros e empresas industriais proprietárias de terras.
Com clareza, pode-se afirmar que no tempo histórico ou no tempo presente, todos os casos contêm violações dos direitos humanos das pessoas.
Segundo Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda entre 1990 e 1997, e
Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, nomeada pelo Secretário Geral,
256
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Sr. Kofi Annan em 1997, DUDH se distingue pelo atributo da criação de uma
base comum para a compreensão dos direitos do homem (UN, 1998).
Por esta magna declaração todos possuem o direito à vida, à liberdade
e à segurança de sua pessoa. Ninguém deve ser mantido em escravidão
ou servidão, formas que devem ficar para sempre abolidas. A tortura e o
tratamento cruel, desumano e degradante ficam abolidos e estigmatizados,
pois em qualquer parte cada um deve ser reconhecido como uma pessoa
em plena posse dos seus direitos.
Estas prerrogativas sendo indivisíveis estabelecem a soma dos direitos
políticos, econômicos, sociais e culturais. A escassez de riqueza, educação,
informação e participação excluem a pessoa humana dos atributos do mundo
contemporâneo. Os direitos humanos são também universais e representam
uma síntese dos valores budistas, hinduístas, cristãos e judaicos, a definir
o bem e a solidariedade na família humana e aplicam-se a qualquer pessoa,
em qualquer parte.
Ainda que Mary Robinson chame a atenção para o fato de que a DUDH se
propõe como um farol iluminando o futuro de nossa espécie, distintamente
das práticas de desigualdade e violência presentes na vida dos povos; fica
impossível negar nesse mesmo mundo a indivisibilidade negativa da servidão
com a discriminação; da escravidão com o crime ambiental e da exploração
com a vulnerabilidade econômica.
Este enfoque propugna uma mudança conceitual que supera as definições paradigmáticas contidas nos tratados sobre o trabalho forçado.
Nem todos os países do mundo estão aptos a aceitar ainda hoje essa nova
matriz de definição dos direitos humanos com as suas formalizações técnicas
de aplicação concreta de reparações para uns e punições para outros.
Ao compreender as especificações associadas aos pactos concernentes à
DUDH que conjugam direitos e sistematizam punições para a efetiva aplicabilidade dos princípios gerais nela contidos, o Primeiro Ministro da Malásia,
secundado por outros representantes presentes ao 30º Encontro da ASEAN
(Associação de Nações do Sudeste Asiático) em Kuala Lampur, em 24 a 29 de
julho de 1997, conclamou a necessidade da revisão daquela Magna Declaração.
A base para tal o argumento foi de que a maioria dos países que compõe o Concerto Internacional permanecia sob o jugo colonial de alguns dos cinquenta e
oito países presentes em Paris em 1948. Deixou o triste alerta para o fato de que
os valores relativos à pessoa e à razão, cunhados em longos séculos pela história
do Ocidente, não se coadunariam com a realidade comunitária e religiosa de
muitos dos povos ora constituídos em estadosnação (BRANDÃO,1998,).
257
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
O certo no entanto, ao contrário de Pandora, é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos abre a caixa do bem, onde se enlista a Declaração
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª
Sessão da Conferência Geral da UNESCO em 1999, pela qual se reconheceu
o Mar Comum, em Montego Bay, na Jamaica em 10 de dezembro de 1982.
Este conteúdo está refletido na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos
Direitos dos Povos de 1981, que conclama o direito exclusivo de cada povo
sobre seus recursos naturais.
A forma mais atualizada dos princípios contidos na DUDH se apresenta
na Declaração de Princípios sobre a Tolerância adotada pela 28ª ConferênciaGeral da UNESCO em 1995, em Paris.
A tolerância passa a ser vista como norma positiva e jurídica que atinge
pessoas e instituições que se obrigam a aceitação ativa das diferenças. A
tolerância vem a ser a via ativa para a garantia dos Direitos Humanos, sustentáculo da Democracia, do Pluralismo e do Estado de Direito. A tolerância
somente se rivaliza à discriminação e à injustiça social.
“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e em
todos os lugares deve ser reconhecido como pessoa perante a lei” - sem
dúvida, espelha o artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem de
1789 que afirma: “as distinções sociais não podem senão ser fundadas na
utilidade comum.”
Considerações finais
O Pacto de Westphalia ao ter iniciado a convivência regulada da vida
dos povos, ao atribuir consistência a todos os atos bilaterais e multilaterais
estabeleceu, desde sempre, que o sujeito de demandas seriam os governantes dos estados nacionais. Por todos esses séculos, a pessoa portadora
ou não de uma cidadania, ou as organizações civis que são os porta-vozes
de indivíduos e grupos na esfera internacional não teriam jurisdicidade
própria, concedida somente àquela que se derivasse da nacionalidade e da
representação internacional do estado de origem.
A tipificação de qualquer abuso como a tortura, a posse de uma pessoa
por outra e a exploração de seres vulneráveis no sistema internacional
assumia-se como violação dos direitos individuais tratados caso a caso nos
tribunais nacionais competentes.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos concebe que o indivíduo
de qualquer país se assuma na arena internacional como parte, e que tenha
voz, direito a juízo, sentença e opinião.
258
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Uma norma geral segundo a qual se deixam entrever o mundo e uma
cidadania comum: a Terra Pátria de Edgar Morin e a governabilidade global
em formação na Era do Direito. Nesse espaço, a escravidão contemporânea,
mesmo que seja difícil de definir-se em cada caso em questão, não mais
representa um crime contra uma pessoa ou um grupo de trabalhadores
“dispensáveis”. A escravidão de cada um subscreve um crime contra toda a
humanidade na medida em que: pela exploração, engano, abuso e crueldade,
o fazer humano fica destituído de sua dignidade própria. Assim como no
caso do genocídio, os casos contemporâneos de escravidão devem ser conduzidos aos tribunais internacionais, sempre que as autoridades nacionais,
ou os acomodem ou se tornem indiferentes à sua reparação e à sua punição
criminal dos responsáveis para além do resgate e da recompensa às vítimas
quando liberadas
O recurso ao alcance dos tribunais internacionais tem a competência de
suprir a impossibilidade jurídica de aplicar o artigo 149 do Código Penal Brasileiro nos crimes que remetem às condições análogas à escravidão no emprego
da mão-de-obra no Brasil (AUDI, 2006, p. 85). O empregador que cometesse
o ato ilícito atentatório contra a liberdade pessoal teria que cumprir pena de
até 8 (oito) anos de encarceramento. Porém em mais de trinta anos apenas 4
(quatro) casos foram levados à julgamento, e todos os outros permaneceram
em relativa impunidade (ESTERCI; RESENDE, 2001, p. 205-220).
Para alguns fazia-se mister a criminalização de certas práticas patronais
como consequência de uma projetada reforma do Código Penal (CASTILHO,
2000). Um esforço assim visaria contornar o fato de que Justiça Federal com
base na RE n. 90042 (o trabalho forçado então não caracterizaria um crime
contra a organização do trabalho) remetia sistematicamente os casos em
julgamento para à esfera da Justiça Comum Estadual, onde os culpados,
devido ao poder local, em geral, permaneciam impunes. (CAMARGO DE
MELO, 2003).
Trilhando o caminho do meio, o Supremo Tribunal Federal, (tendo sido
relator o Ministro Joaquim Barbosa, em 30 de novembro de 2006 entendeu,
por maioria que o Recurso Extraordinário n. 398041 aplicado às condutas
ilícitas de trabalho forçado, dever-se-ia enquadrar na categoria dos crimes
contra a organização do trabalho. Considerou-se que a situação de trabalho análogo à escravidão conferia à vítima a titularidade do princípio da
dignidade humana, eixo do Sistema Jurídico – Constitucional. Esta singular
interpretação passou a remeter o julgamento dos casos de escravidão contemporânea à Justiça Federal, retirando-os da esfera da Justiça Comum.
259
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Essa inclusão, de um princípio compatível com a DUDH, tem possibilitado
uma crescente mobilização do Ministério Público do Trabalho, juntamente
aos antigos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel e de outras instâncias
da autoridade pública—auditores fiscais, procuradores, polícias federais.
Soma-se à densidade da ação oficial, a dedicação civil da Comissão Pastoral
da Terra e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, de
outras organizações nacionais e internacionais.
Ainda que o escopo deste trabalho seja de natureza exploratória, cabe
aqui uma indagação: em caso de intolerância interna qual o grau de determinação nacional da norma internacional? Os tratados e as convenções
representam de fato o último recurso do apelo à Justiça? Aqui me refiro aos
estudos de Hans Kelsen e à interpretação contrária presente no Brasil.
Num certo sentido Kelsen teria tido a antevisão do nosso presente
quando advogava a união essencial da norma jurídica, do local ao global. No
entanto, o Supremo Tribunal Federal no Brasil se responsabilizou por algumas declarações que proclamaram “a inquestionável supremacia jurídica da
ordem constitucional sobre as prescrições emergentes de qualquer tratado
internacional...” (BORJA, 2006, p 12). Desta forma o Jurista Célio Borja advoga
a supremacia da Constituição e do Controle Jurisdicional interno sobre os
tratados e convenções internacionais.
Tal posição parece fundamentar-se no princípio da reserva legal pelo
qual o Parlamento contribuindo com a lei ordinária desponta como a fonte
legítima em última instância na definição de crimes e penas. Esse mesmo
Parlamento no Brasil que excede na representação de uma bancada ruralista
expressiva sempre disposta à preservação dos direitos abstratos da classe
de proprietários rurais no Brasil, hoje mais que nunca bastante responsável pelo agrobusiness e, por destino do Brasil na Nova Ordem Global, pelo
crescimento do Produto Interno Bruto.
Mais ainda quando Westphalia parece colocar-se entre parêntesis na
quadra em que se insere a Guerra do Iraque (e para cuja desconstrução contase com todo o futuro do Governo Obama), espera-se a respeito do trabalho
escravo contemporâneo, que a sociedade civil brasileira saiba inserir-se no
mundo de hoje de forma audaz e criativa. Situando-se em consoância com a
ética e o direito, agora unificados na nova norma geral dos direitos humanos,
o Brasil deve seguir num sentido humano e universal, capaz de reconhecer
sua face desigual e conjurar contra suas fraquezas.
260
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
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263
Tráfico de pessoas: cenário, atores e crime.
Em busca do respeito à dignidade humana
Introdução
Waldimeiry Corrêa da Silva
Quando falamos de Direitos Humanos tecnicamente estamos fazendo
referência à condição natural do homem (CANÇADO TRINDADE, 2006a, p.
15-36)1, ou de seu poder ou da sua faculdade de atuar, ou, em alguns casos,
da sua manobra para exigir determinada conduta de outro sujeito. A tipificação humana vem do fato de pertencer à raça humana, ou seja, o homem é
o único destinatário de direitos, que são inerentes à pessoa, caracterizados
como inalienáveis e imprescindíveis. Assim, pode-se reclamar seu reconhecimento, respeito, tutela e promoção da parte de todos, e especialmente da
autoridade nacional, o Estado (CARBONARI, [19]).
Para que estes direitos humanos possam se realizar e serem reconhecidos dentro de um âmbito real, devemos ter em conta a democracia como
forma de governo de um Estado. Nesse contexto, podemos dizer que o Estado
cumpre um papel fundamental, visto que as autoridades devem, além de
reconhecê-los - para que possa ser defendido -, colocá-los em prática, para
que possam desenvolver-se em um ambiente próspero. E também, respeitados para que possam efetivamente proteger a dignidade humana.
Por serem direitos universais, já que pertencem a todos os homens e
mulheres, independentemente de seu tempo ou lugar2, garante-se a possibilidade de que diante de situações similares a solução seja sempre a mesma. Sua
1 Nesta obra, o autor traça uma linha de reflexões sobre o despertar da consciência social para os imperativos de proteção da pessoa humana e de reparação dos agravos contra esta perpetrados. Refere-se à
tríade responsabilidade-perdão-justiça, como manifestação da consciência jurídica universal, esta última
como fonte material de todo direito. Para uma melhor compreensão do tema de expansão dos regimes
de proteção jurídica direitos humanos, ver também CANÇADO TRINDADE, 2006b.
2 Ver Declaração de Viena de 1993. Conferência Mundial de Direitos Humanos. A/CONF.157/23.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
internacionalização começou depois da segunda metade do século XX, através
do desenvolvimento do direito internacional público, que veio a desenvolver
estes direitos na arena internacional em fóruns internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e os tratados internacionais.
Dentro do conjunto de assuntos direitos humanos, a escravidão e suas
formas análogas foram os primeiros temas a despertar a atenção da comunidade internacional, visto que passaram de um modo de utilização do
trabalho para um modo de exploração3. A escravidão se encontra tipificada
como um crime contra a humanidade4.
Diante dessa perspectiva, podemos observar que a escravidão contemporânea passou a ser um problema social que alcança níveis globais e cobra
uma resposta adequada e coordenada para vir a alcançar resultados que
venham a primar pelo respeito à dignidade humana.
Neste presente estudo buscaremos verificar se o Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) 5 é apresentado como uma
resposta eficaz ao lamentável problema mundial do tráfico de seres humanos.
Ou seja, buscaremos verificar se este plano corresponde a um resgate dos
princípios de proteção direitos humanos, e se caracteriza como um mecanismo que prima pelo respeito aos direitos humanos. Para isso, faremos
inicialmente uma breve contextualização do que vem a ser a escravidão
contemporânea, na perspectiva de desrespeito aos direitos humanos, e
analisaremos se os atores nacionais e internacionais oferecem resposta
local como forma de combater um problema global.
1 Em plena era da globalização quando se ressalta tanto os direitos
humanos, ainda pode se falar de escravidão?
Depois da Segunda Guerra Mundial temos o estabelecimento dos direitos
humanos no direito internacional decorrente da necessidade de se estabelecer documentos destinados à proteção do ser humano. Assim, podemos
verificar a emergência desta temática em meados de século XX, através do
desenvolvimento de muitos tratados e convenções internacionais.
3 Deste modo, a condição de escravo significa não dispor livremente de sua pessoa, com privação de seus
movimentos, visto que este era considerado uma “coisa”, uma mercadoria, objeto e propriedade. Ver
Finley, 1991; Saco, 1974. e Nabuco, 1998.
4 Conforme estabelecido pelo Estatuto de Roma de 1998 Parte II Art. 7.
5 DECRETO Lei N. 6.347/2008 - Aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP.
266
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Como um conjunto de princípios, direitos e deveres criados ao longo da
historia6, os direitos humanos foram configurados por determinados acontecimentos e circunstancias que vieram a evidenciar a necessidade de um
conjunto de valores que fossem comuns e viessem a proteger a dignidade
de todos os Seres humanos, independente de sua condição social, política,
religiosa, cultural, econômica, opção sexual, idade, etnia ou raça.
Esses direitos conferem então a titularidade a todos os seres humanos,
visto que são produto do desenvolvimento histórico da civilização e vem
evoluindo juntamente com a mesma. Dentro da ordem social cumpre uma
função determinada já que dão uma orientação necessária ao buscar salvaguardar direitos que formam parte de um bem comum dentro da sociedade, tendo como base a dignidade da pessoa e garantir o desenvolvimento
necessário de todas elas.
Seguindo esta busca por salvaguardar os direitos humanos, podemos
observar que a definição de escravidão7 não foi, desde sua tipificação em 1926,
substancialmente mudada. Manteve-se o conceito de propriedade, adicionado
ao significado de privação de liberdade e uso para fins de lucro, no qual se
exerce o controle absoluto sobre a vítima. Vale ressaltar que os elementos
de controle e propriedade são essenciais para determinar existência ou não
de escravidão. Tendo em conta que se trata de um processo que implica na
violação sistemática de muitos direitos fundamentais - nos quais figuram
como principais a privação do direito à liberdade e a segurança da pessoa8 temos neste contexto ausência do recebimento de um trato humano, tal como
o direito a não ser submetido a práticas cruéis, inumanas ou degradantes.
A complexidade e dinamismo do mundo contemporâneo evidenciam
que, mesmo proibida, a escravidão segue existindo, e sendo cada vez mais
diversificada e mascarada dentro da sociedade. Neste novo contexto, é
possível alcançar mais lucro e menos gastos.
Se fizermos um retrocesso ao tráfico negreiro de escravos, os encontramos aí como uma “mercadoria” cara e que gerava muito custo aos traficantes.
6 Por motivos que estão vinculados ao seu reconhecimento histórico, os direitos humanos podem ser classificados em diferentes formas, mas a classificação mais comum os separa em três gerações: 1ª - direitos.
civis e políticos; 2ª - direitos. econômicos sociais e culturais; e, 3ª – direitos. da solidariedade. N.A.
7 A tipificação da escravidão internacionalmente aceita veio com a Convenção sobre a Escravidão de
1926, que foi considerada controvertida por parte da sociedade internacional por não especificar quais
as práticas que podem ser consideradas escravidão, bem como estar em desacordo sobre as estratégias
mais apropriadas para erradicá-la. O Convênio para Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração
da Prostituição Alheia, de 1949, inseriu a questão do tráfico de pessoas e exploração sexual no marco da
escravidão na Convenção Suplementaria sobre a Abolição da Escravidão, de 1956, o que vem a evidenciar
a necessidade de ampliar a definição de escravidão existente.
8 Art. 9 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “$ 1… ninguém poderá ser privado de sua liberdade
salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.”
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Muito do seu investimento era “desperdiçado” com a morte dos negros no
transporte até as Américas. No atual contexto, temos uma grande oferta de
“mercadoria” proveniente da exclusão social, que cai nas mãos das “máfias”
que traficam pessoas que buscam melhorar sua qualidade de vida, sem
compreender, na grande maioria dos casos, estão entregando sua liberdade
e vida como produto a ser negociado, uma vez que estarão obrigadas a trabalhar, mediante ameaças psicológicas e/ou físicas. Serão convertidas em
propriedade, compradas ou vendidas como propriedade de e por alguém
que nega sua condição humana ao tratá-las como mercadoria9.
1.1 O Tráfico de Pessoas em seu Contexto Contemporâneo: a necessidade de
salvaguardar os Direitos Humanos
Desde princípios do século XX, o mundo vem presenciando o aumento
de uma forma moderna de escravidão, tráfico de seres humanos, sendo o
Tráfico de Pessoas a forma mais comumente difundida. Neste cenário, os
traficantes contemporâneos violam massivamente os direitos humanos ao
tratar a mulheres, crianças e homens como produtos básicos e ao explorar,
comercializar e transportar através de fronteiras nacionais e transnacionais,
como se fossem uma mercadoria ilegal, em similar a drogas e armas roubadas. Esse tipo de tráfico não relaciona somente a exploração sexual, mas
também o abuso mediante o trabalho em condições semelhantes à escravidão e à servidão - tais como a prostituição forçada, a servidão doméstica,
trabalho em fábricas e outros lugares com condições de exploração, assim
como trabalhos agrícolas em regime de servidão-. Esses traficantes mantém
suas vítimas submetidas através de dívidas que estas “têm” que pagar (a
título de custo da viagem), confiscam seus passaportes (em geral o único
documento que possuem ao viajar ao exterior), causam-lhes maus tratos
físicos e psicológicos, assim como violações, torturas, e ameaças de deportação, além de ameaças aos seus familiares. Frequentemente, as vítimas se
encontram isoladas do mundo exterior, já que desconhecem o idioma local,
os costumes, e não têm documentos que as identifiquem.
O Tráfico de Pessoas na atualidade pode ser considerado o equivalente
moderno do tráfico de escravos do século XIX (Kevin Tessier, apud DOCONU: HR/PUB/02/, 2002, p. 19). Porém, no atual contexto contemporâneo,
ele já não é “bem visto” (ou regulado) pelo Estado e comunidade interna9 “Para o antropólogo americano K. Bales (2000: 19-22), na escravidão contemporânea a pessoa é tratada
como mercadoria, mesmo não havendo recibo, sendo ilegal e disfarçada”. Apud Figueira, 2004. p.41.
268
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
cional. Vem sendo condenado em função da emergência dos princípios de
direitos humanos, que faz com que a escravidão (e suas formas análogas)
seja vislumbrada como um ultraje a toda ordem, uma vez que a liberdade e
dignidade da pessoa são usurpadas. Por conseguinte, cabe ao Estado proteger e salvaguardar o patrimônio individual de cada um, que por sua vez
faz parte de um patrimônio coletivo, responsável pela manutenção de uma
ordem social que prima pelo bem comum, respeito à liberdade, à dignidade,
aos direitos e aos deveres.
O aumento dos fluxos migratórios em nível mundial faz com que seja
cada vez mais difícil controlar e vigiar o tráfico de pessoas. Existe a grande
dificuldade de visibilizar esta violação aos direitos humanos, tornando o problema cada vez mais complexo, visto que em muitos dos casos as vítimas são
camufladas em meio a uma massa de turistas. Pelo alcance transnacional do
Tráfico de Pessoas, a alternativa de combate mais eficaz será aquela que soma
os esforços nacionais ao internacional, por meio da cooperação internacional,
de modo a defender o interesse comum, salvaguardar a dignidade humana.
De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual e comercial no Brasil (2002, PESTRAF,
LEAL) pode se perceber iniciativas coordenadas entre governos, organismos
internacionais, organizações da sociedade civil e universidades, objetivando
esclarecer distintos aspectos do tráfico de pessoas, como a identificação de
rotas, causas, o papel da exclusão social, questões de gênero, os conflitos
internacionais que geram uma grande massa de seres humanos fragilizados por distintas situações e que se tornam “presas fáceis” para as redes
de tráfico e exploração sexual. Dentro desta configuração, o debate acerca
do tráfico se encontra conduzido a partir de uma perspectiva de direitos,
em que os países e organismos promovam “uma mudança de paradigma
na atenção individual e coletiva no combate ao fenômeno, e na atenção às
vítimas do tráfico, da violência do trabalho escravo, e de outras formas de
violação dos direitos humanos.” (LEAL, PESTRAF, p. 29).
Nas primeiras décadas do século XX os instrumentos internacionais10
relativos ao tráfico de pessoas estavam centrados em condenar os atos que
10 “Estos instrumentos eran el Acuerdo Internacional para asegurar una protección eficaz contra el tráfico
criminal denom)inado trata de blancas, de 18 de mayo de 1904, entró en vigor en 18/07/1905, League of
Nations Trety Series, vol. 1, pág. 83; o Convenio internacional para la represión de la Trata de brancas, de 4
de mayo de 1910, United Nations Treaty Series, vol. 98,p. 101; el Convenio internacional para la represión
de la trata de mujeres y niños, de 30 de septiembre de 1921, League of Nations Treaty Series, vol. 9, p.415
(entró en vigor para cada país en la fecha de su ratificación o adhesión); y el Convenio Internacional para la
represión de la trata de mujeres mayores de edad, de 11 de octubre de 1933. La Sociedad de las Naciones
elaboró en 1937 un nuevo proyecto de convenio, pero no fue aprobado.” HR/PUB/02/4, op. cit. p. 20.
269
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
envolvessem o transporte ilegal de mulheres e crianças através de fronteiras
internacionais com fins de prostituição. A Convenção sobre Escravidão de
192611, apesar de ser marco jurídico internacional sobre a Escravidão, no
tocante ao Tráfico não apresenta nenhuma definição inovadora ou qualquer
traço que venha a merecer destaque a este presente estudo.
Já a Convenção para Repressão do Tráfico de Pessoas e Lenocínio12 de
1949, conseguiu promover a unificação dos instrumentos jurídicos anteriores e definir como delito a exploração da prostituição13 ao ressaltar a
não importância do consentimento da vítima e também, o fato de não ser
necessário cruzar fronteiras para ser caracterizado como tráfico de pessoas.
Ainda, obriga os estados membros a adotarem os meios necessários para
proteger as vítimas e a ajustarem suas legislações internas14. Uma das fortes
limitações deste Convênio foi vincular o tráfico à prostituição, restringindo
assim a exploração do trabalho apenas à esfera sexual15. Observamos que o
a Convenção de 1949 busca valorizar a dignidade do ser humano, como o
bem afetado pelo tráfico. Já que este, coloca em ameaça o bem-estar tanto
do individuo, como da família e da sociedade.
A Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico
de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura de 195616
tampouco traz um avanço conceitual ao tema do tráfico, ela segue condenando o tráfico de escravos como um delito e exige aos estados que fomentem
um intercâmbio de medidas para combatê-la.
11 “todo ato de captura, aquisição ou disposição de uma pessoa com intenção de submetê-la à escravidão;
(...) cessão por venda ou troca de uma pessoa, adquirida com intenção de vendê-la ou trocá-la, e em geral,
todo ato de comércio ou de transporte de escravo”. Convenção sobre a Escravidão de 1926, parágrafo 2
do artigo Primeiro.
12 A versão consultada para o presente foi a versão em espanhol: Convenio para la represión de la trata de
personas y de la explotación de la prostitución ajena, 1949. Adotado pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, em sua resolução 317 (IV), de 2 de dezembro de 1949. Entrada em vigor: 25 de julho de 1951.
Este foi ratificado pelo Governo brasileiro em 05/10/1951 e promulgada pelo decreto nº 46.981, de
08/10/1959.
13 “Las Partes en el presente Convenio se comprometen a castigar a toda persona que, para satisfacer las
pasiones de otra: 1) Concertare la prostitución de otra persona, aun con el consentimiento de tal persona; 2) Explotare la prostitución de otra persona, aun con el consentimiento de tal persona.” Art. 1. 1.
do Convenio para la Represión de la trata de 1949.
14 Art. 17
15 DOC-NU: E/CN.4/2000/68 (2000), parágrafo 13 – Informe da Sra. COOMARASWAMY, Radhika (Relatório
especial sobre a violência contra a mulher, com inclusão de suas causas e consequências, sobre a trata
de mulheres, a migração de mulheres e a violência contra a mulher, apresentado conforme a resolução
1997/44 da Comissão de Direitos Humanos).
16 Do original em Español: Convención Suplementaria sobre la Abolición de la Esclavitud, la Trata de esclavos
y las instituciones y prácticas Análogas a la Esclavitud. Adotada por una Conferencia de Plenipotenciários
convocada pelo Conselho Econômico e Social na sua resolução 608 (XXI), de 30/04/1956. Em Genebra
07/09/1956, com entrada em vigor: 30/04/1957. Ratificada pelo Brasil, mediante o Decreto Nº 58.563,
de 01/06/1966.
270
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Em virtude da necessidade de ampliar a definição do tráfico, de forma
que englobasse também as formas de captação e o movimento transfronteiriço de pessoas com a finalidade de exploração, foi elaborada uma resolução
da ONU17 que condena estas práticas.
Com o objetivo de promover a cooperação entre os Estados para o
combate conjunto do tráfico como um crime de caráter transnacional foi
realizada uma série de estudos que resultou em instrumento jurídico de
combate ao crime internacional organizado: a Convenção das Nações Unidas
contra a Delinquência Organizada Transnacional18. Esta vem a representar
um importante passo no combate ao crime organizado internacional, já que
os países se comprometeram a prestar assistência mútua entre os Estados
partes estabelecendo medidas práticas que facilitem a cooperação judicial19,
investigações conjuntas20, técnicas especiais de investigação21 políticas públicas de controle, vigilância, apoio e combate aos delitos tipificados em seu
artigo primeiro. Para Gallanger esta decisao representa a primeira tentativa
séria por parte da comunidade internacional de utilizar as armas do direito
internacional em sua batalha contra a delinquência organizada transnacional
(DOC-ONU: HR/PUB/02/. 2002, p. 23).
Podemos observar que a Convenção de Palermo oferece um enfoque
verdadeiramente global e confere a base jurídica internacional para o combate ao crime organizado. Oferece também incentivo aos Estados a adotarem
internamente mecanismos necessários para que este tipo de crime seja
17 A/RES749/166 de 24 de febrero de 1995: “el movimiento ilícito y clandestino de personas a través
de las fronteras nacionales o internacionales, principalmente de países en desarrollo y algunos países
con economías en transición, con el fin último de forzar a mujeres y niñas a situaciones de opresión y
exploración sexual o económica, en beneficio de proxenetas, tratantes y bandas criminales organizadas,
así como otras actividades ilícitas relacionadas con la trata de mujeres, por ejemplo, el trabajo doméstico
forzado, los matrimonios falsos, los empleos clandestinos y las adopciones fraudulentas”. (Preámbulo
5) (94ª sesión plenaria 23/12/1994).
18 A Convenção das Nações Unidas contra a Delinquência Organizada Transnacional, também conhecida
como Convenção de Palermo, foi suplementada por três protocolos: Protocolo para Prevenir, Eliminar
e Castigar o Tráfico de Pessoas, especialmente mulheres e crianças; Protocolo contra o Contrabando de
Imigrantes por terra, ar e mar; y, Protocolo contra fabricação ilegal e o trafico de armas de fogo, incluso
peças, acessórios e munições. Foi realizada em Palermo, Itália, em 2000. Adotada pela Assembléia Geral
das Nações Unidas em 15 de Novembro de 2000, mediante a Resolução: A/RES/55/25. Tal convenção
foi ratificada pelo Brasil, foi promulgada por meio do Decreto 5.015 de 12 de Março de 2004.
19 Conforme determina o art. 18 “Os Estados prestarão a mais ampla assistência judicial recíproca a respeito
das investigações, processos e atuações judiciais relacionadas com os delitos compreendidos na presente
Convenção.”
20 Art. 19 “... as investigações conjuntas poderão ser realizadas mediante acordos concertados caso a caso.
Os Estados Parte participantes velarão para que a soberania do Estado Parte, em cujo território haja
sido efetuada a investigação seja plenamente respeitada”.
21 Art. 20 “… a utilização de outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou de
outra índole e as operações encobertas, pelas suas autoridades competentes em seu território com objeto
de combater eficazmente a delinquência organizada.”
271
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
combatido eficazmente. Exemplo disto é a afirmação que são os “mínimos
obrigatórios aos Estados partes” 22. Desta Convenção surge o Protocolo para
Prevenir, Eliminar, Castigar o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e
Crianças – Protocolo de Palermo.
1.2 Protocolo de Palermo: Uma ferramenta para salvaguardar os direitos humanos no
tráfico de Pessoas
O Protocolo de Palermo surge como uma necessidade de resposta frente
aos novos desafios e metas que se apresentam no mundo globalizado, bem
como às complexidades da vida contemporânea. Com a assinatura e ratificação deste Protocolo, a comunidade internacional se direciona a assegurar
que o crime do tráfico de pessoas seja reconhecido universalmente. Segundo Raymond (2002, p. 491) este Protocolo instaura uma linguagem e uma
legislação global para definir o tráfico de pessoas.
Os Governos que o assinaram concordam que o tráfico de pessoas é um
grave problema internacional e não é o mesmo que introduzir imigrantes
ilegalmente23. Na comunidade internacional considera-se que o Protocolo
de Palermo expressa uma opinião moderna e progressista abafada, e manifesta também, a realidade um tanto escondida do crime de tráfico. Ele
engloba todas as formas do movimento documentado e não-documentado
de pessoas através ou dentro das fronteiras, por qualquer meio cujo objetivo
seja a exploração.
O Protocolo de Palermo pretende tipificar o crime do tráfico de pessoas
por meio da clara definição do que vem ser esta prática24. Visa o estabelecimento de uma legislação global para o tema, por meio de uma harmonização
entre as legislações nacionais, regionais e internacionais 25. Busca promover
a assistência às vitimas26, a prevenção27, e os intercâmbios de informação
entre países28.
22 Para este assunto, Sandro Calvani, representante da Oficina de las Naciones Unidas Contra la Droga
y el Delito (UNODC), Bogotá Colombia, faz um comentário pormenorizado sobre a Convención de las
Naciones Unidas Contra la Delincuencia Organizada Transnacional. http://www.sandrocalvani.com/
speech/Conv.%20Palermo.pdf)
23 A partir deste Protocolo definiu-se trafficking como tráfico com fins de exploração seja para fins sexuais,
laborais ou trabalhos forçados e smuggling para tráfico ilegal de pessoas, tal como se pode observar no
art. 3 do Protocolo de Palermo. Para maiores comentários, ver Gallagher, 2001, p. 25-27.
24 Cf. Art. 3
25 Art. 2, 4, 5, 7 e 8
26 Art. 6
27 Art. 9
28 Art. 10
272
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Neste Protocolo, pode se perceber a extensão da busca da defesa dos
direitos humanos, ao concertar a proteção e assistência às vitimas, com os
recursos da prevenção, perseguição, repressão e cooperação judicial com
vistas a salvaguardar os direitos da pessoa humana. O referido Protocolo,
define o tráfico como:
a) A captação, transporte, translado, recepção de pessoas, recorrendo a ameaça ao uso da força ou outras formas de coação,
rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma situação de
vulnerabilidade ou a concessão ou recepção de pagos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra, com fins de exploração. Essa exploração
incluirá, como mínimo, a exploração da prostituição alheia ou
outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços
forçados, a escravidão ou as praticas análogas a escravidão, a
servidão ou a extração de órgãos;
b) o consentimento dado pela vítima da trata de pessoas a toda
forma de exploração que se tenha a intenção de realizar (...) não
se terá em conta quando haja recorrido a qualquer dos meios
enunciados neste apartado; e
c) a captação, o transporte, o translado, a acolhida o a recepção de
uma criança com fins de exploração se considerará “tráfico de
pessoas” incluso quando não se recorra a nenhum dos meios
enunciados no apartado a) do presente artigo.29
Deste modo, a definição do tráfico contém três elementos30 separados
que se interrelacionam, já que é uma ação que assentada na captação,
transporte, acolhida/recepção de pessoas. Utiliza-se da ameaça31, da força
ou de outras formas de coação, do rapto, da fraude, e do engano, do abuso
de poder ou de uma situação de vulnerabilidade, bem como da concessão
ou da recepção de pagos ou de benefícios, para obter o consentimento de
uma pessoa que tenha autoridade sobre outra. Tem como fim a exploração,
incluindo, no mínimo, a exploração da prostituição alheia ou outras formas
29 Cf. Art. 3 do Protocolo de Palermo – DOC. UN - A/RES/55/25.
30 “1. Captación, transporte, traslado, acogida o recepción de personas; 2. Uso de la amenaza; 3.Fines de explotación” CEPAL, 2003. p. 46. A mesma questão é destacada em: DOC-ONU: HR/PUB/02/. op. cit. p. 23.
31 Idem: “El segundo elemento de esta definición establece una asociación entre el Protocolo sobre la trata
y los instrumentos internacionales anteriores relativos a la esclavitud, por cuanto entre los medios mencionados figuran la amenaza o el uso de la fuerza u otras formas de coacción La definición de situaciones
de abuso en el Protocolo sobre la trata va más allá de los medios de control y coacción mencionados en
las convenciones sobre la esclavitud para incluir el engaño y el abuso de poder y la vulnerabilidad.”
273
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou suas
práticas análogas, assim como a servidão ou a extração de órgãos.
Segundo a tipificação do Protocolo de Palermo, o tráfico de pessoas se
encontra configurado sob dois aspectos: o material, mediante condições
objetivas tais como o recrutamento, pagamentos ou benefícios de transporte
e alojamento de pessoas; e o subjetivo (formas de coação), com a sedução,
submissão, escravidão. Estes dois, somados aos indicadores macro-sociais,
podem ajudar a compreender as várias dimensões existentes no tráfico de
seres humanos e as razões que determinam sua resistência. Essa estrutura
de exploração é retroalimentada devido à demanda existente nos países de
destino por “novidade no mercado sexual”, por necessidade de “mercadoria
exótica fresca”, abusando-se, assim, da situação de vulnerabilidade (pouca
ou nenhuma chance de ascensão social, desemprego, pouco qualificação
profissional, etc.) a que estão submetidas muitas mulheres em seus países
de origem.
O Protocolo de Palermo confere às pessoas traficadas, sejam mulheres,
crianças ou homens, a denominação de vítimas e não delinquentes. Todas
estas ficam protegidas pelo Protocolo, sendo seu consentimento ao tráfico
um fator irrelevante, já que a exploração é o elemento chave no processo
de tráfico32. Deste modo, temos a visão da vítima como sujeito portador de
direitos, e nessa trabalhando a perspectiva dos direitos humanos, na qual
se afirma a garantia dos direitos humanos fundamentais como o princípio
orientador da explicação e do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes
para fins de exploração sexual comercial. Tem-se então uma visão inclusiva
e baseada nos princípios fundamentais que advogam que todas as vítimas
sejam protegidas.
Raymond (2001) declara que devemos fazer uma interpretação responsável do Protocolo para que o ele possa ser efetivamente utilizado como
suporte para as novas legislações sobre o tema, seja em nível nacional, regional ou internacional. Assinala também que é preciso separar a questão
do tráfico da prostituição33, ainda que exista uma relação direta entre eles.
Outro ponto interessante e a questão de penalizar aos compradores, “mudar
o comportamento masculino”, com políticas de igualdade de gênero, meios
32 “Do ponto de vista jurídico, a pessoa traficada para fins de exploração sexual é vítima, ou seja, sujeito
passivo do ilícito penal e/ou pessoa contra quem se comete o crime ou contravenção. A dimensão social,
por seu lado, tenta desgarrar esta percepção vitimizadora, a fim de não reforçar a ideia de submissão e
de ênfases no lado apenas subjetivo e moralista da questão” (PESTRAF, 2002, p. 46).
33 Neste ponto incide que é necessário voltar a incluir a prostituição nas agendas políticas e combater a
tendência a legalizar/regular a prostituição como trabalho.
274
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
educativos e culturais, através de uma legislação que penalize os homens
pelo delito de exploração sexual.
Para Jesus (2003, p. 9)34 um dos principais aspectos sugeridos pelo
Protocolo é a referência aos inumeráveis e separados abusos cometidos
durante o curso do tráfico, bem como a concessão de garantias às vítimas
que elas não sejam tratadas como criminosas. Enfatiza o tráfico de crianças
e o considera um capítulo separado, dentro do foco conferido à Convenção
sobre os direitos das crianças35 e seus protocolos opcionais. Aponta, ainda,
que o trabalho forçado e outras práticas similares de escravidão devem todos
ser englobados dentro do conceito de tráfico.
Já para Leal (2002, p.44), esta tipificação jurídica feita no Protocolo comprova sua orientação limitada, uma vez que este se encontra caracterizado pelo
uso da violência, pelo abuso de autoridade e pela coação. Deste modo,
Não se permite uma descrição mais detalhada das pressões estruturais e das estratégias de ação subjetivas inerentes ao fenômeno. É
muito genérico, preso ao texto da violência criminal e fora de lugar
de uma analise macro-social e cultural do fenômeno.
Para essa autora trata-se de uma definição ampla que não leva em
consideração a idade e o sexo. Segundo seu posicionamento, para um incremento da tipificação do tráfico seria necessário definir a exploração sexual
comercial como:
“... uma violência sexual que se realiza nas relações de produção e
mercado (consumo, oferta e excedente) através da venda dos serviços
sexuais das crianças e adolescentes pelas redes de comercialização
do sexo, por pais ou similares, ou por via do trabalho autônomo. Esta
prática é determinada não apenas pela violência estrutural (plano de
fundo), como pela violência social e interpessoal. É o resultado, também, das transformações ocorridas nos sistemas de valores arbitrados
nas relações sociais, especialmente o patriarcalismo, o racismo, e a
separação social, antíteses da ideia de emancipação das liberdades
econômico/culturais e das sexualidades humanas”
De acordo com o Informe da Guarda Civil Espanhola, de 2003/2004, a
complexidade do fenômeno do tráfico de pessoas se deve ao fato de referirse a condutas criminais heterogêneas que têm como objetivo comum a
exploração de pessoas em suas distintas formas se destacam: prostituição,
34 Esses possíveis abusos sofridos pelas vítimas também se encontram destacados em: OIT, Trafico de
pessoas para fins de exploração sexual, Brasília, 2006, p. 61.
35 Adotada pela AG/NU em 20/11/1989, ratificada pelo Brasil em 21/11/1991.
275
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
exploração laboral, adoção ilegal, venda de crianças, pornografia infantil ou
trafico de órgãos. (ESPAÑA, Informe Criminológico Tráfico de Seres Humanos,
2003/2004, p. 3).
Entretanto, podemos observar que essa definição fica sujeita a críticas
por traduzir tipificação muito genérica para ao Tráfico, por estar mais “presa
ao texto da violência criminosa e fora de lugar em uma analise macro-social
e cultural do fenômeno” (Leal, 2002, p. 44). Também o referido Protocolo
falha em não definir quais são as formas consideradas coercitivas, ou o que se
considera por “uma situação de vulnerabilidade”, de “a exploração sexual dos
outros” e “outras formas de exploração sexual” (PISCITELLI, 2004, p. 7).
Apesar de que o Protocolo tenha a devida representatividade na arena
internacional, ainda não se encontra totalmente incorporado às normas
internacionais de direitos humanos, de modo a garantir a todas as pessoas
traficadas o acesso a justiça e serviços de assistência básica (albergue temporal, serviço médico-psicológico e alimentação).
É válido ressaltar a notável atuação de muitos países na busca pela prestação serviços de assistência legal e proteção temporária às vitimas. Também,
merece devido destaque a atuação de outros atores, como as Organizações
não Governamentais (ONGs) que são os atores que têm relevante papel por
estarem diretamente em contato com a vítima e garantir-lhes os serviços de
assistência legal, social, econômica, psicológica e sanitária.
Também atuando, tanto no âmbito da prevenção quanto na articulação
dos Estados, temos as organizações internacionais que buscam funcionar
como interlocutores e, em alguns casos, como agentes de promoção da
política que o Estado deve desenvolve. Nestas duas esferas comparecem
articulação da OIT como interlocutor entre a sociedade e o Estado, e da
ONU, por meio do UNDOC, como agente dos mecanismos internacionais de
promoção dos direitos humanos, ambos organismos convidando os Estados
a harmonizar suas legislações e a se cooperarem internacionalmente de
modo que venham a erradicar todas formas de Escravidão e a promover a
defesa da dignidade humana.
Diante do contexto apresentado sobre Tráfico de Pessoas, podemos
perceber que houve avanços conceituais significativos, tanto em nível internacional quanto em nível nacional, estes últimos fundamentados na busca
de estruturas internas que possibilitaram internalizar os mecanismos internacionais. Todavia, faltam ainda mecanismos e ações mais contundentes, no
campo da repressão, da visibilização do tráfico como crime e, de prestação
de assistência às vitimas.
276
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Em muitos países (EUA, Itália, Bélgica, França, Espanha, Suécia), o Tráfico de Pessoas foi reconhecido como delito e violação grave dos direitos
humanos. Foram ratificados convenções e protocolos internacionais e, ainda
assim, o Tráfico de Pessoas, nestas localidades, segue crescendo.
Para Skrobanek, Boonpakdi e Janthakeero (1997), algumas das razões
pelas quais as legislações nacionais ou internacionais não são eficazes no
combate ao tráfico de mulheres, porque as leis não são aplicadas aos beneficiários e traficantes, não se atacando, assim, diretamente a demanda e as
vítimas. A situação de clandestinidade (ou ilegalidade) em que se encontra a
maioria dessas mulheres também dificulta a investigação porque as mulheres
vítimas não delatam seus maltratadores. A esta situação, acrescenta-se o fato
de que as prostitutas não são consideradas merecedoras de credibilidade
pelos tribunais, mesmo quando depõem frente aos acusados, em acareações
ou não. Tais situações também são reconhecidas pela PESTRAF.
O Protocolo de Palermo reconhece a necessidade de que a proteção dos
direitos humanos e a ajuda prestada às vítimas sejam frutos da integração
entre as políticas de prevenção, perseguição e punição aos traficantes, mediante uma cooperação judicial efetiva. Afinal, é sabido que quando aliciadas
e sujeitas a um regime de exploração em outro país, as vítimas dificilmente
conseguem sair do circulo mafioso que se encontram. Urge que os estados e
demais entidades envolvidas no combate ao tráfico busquem salvaguardar
a proteção e conferir um tratamento devido às vitimas36. Neste sentido,
podemos observar a articulação do Estado brasileiro tanto provocando
o debate dentro da sociedade civil, quanto articulando com outros atores
internacionais (a exemplo do Escritorio das Naçoes Unidas Sobre Drogas
e Crime -UNODC e da OIT) e também capacitando profissionais para o enfrentamento deste problema.
36 A OIT assinala como padrões mínimos de proteção e tratamento das vitimas: principio da nãodiscriminação; segurança e tratamento justo; acesso à justiça – observar os direitos das vítimas que
são violados; direito à propositura de ações civis, indenizações; estatuto de residente e, saúde e outros
serviços. Organização Internacional do Trabalho, 2006. p 41.
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(Orgs.)
2 Legislação brasileira: lacunas para o crime?
O Brasil foi um dos 120 países que assinaram a Convenção e o Protocolo
de Palermo. Ambos foram assinados em 2000 e ratificados em 200437. Essas
ratificações significam que o País vem adaptando sua legislação interna e
promovendo políticas públicas no sentido do combate ao crime organizado,
e consequentemente ao tráfico de pessoas, práticas de escravidão e suas
formas análogas. A exemplo disto comparecem as sucessivas alterações
sofridas pelo Código Penal de 194038 e sua reforma em 2005, especialmente
no que diz respeito ao tráfico39 internacional de pessoas. Até a aprovação
da Lei n. 11.106, de março de 2005, somente considerava a mulher como
sujeito passivo.
A assinatura de tratados internacionais e multilaterais, e a consequente incorporação destes ao ordenamento jurídico fez com que a regulação
normativo-jurídica do sobre o tráfico de seres humanos seja restringida
a fins de exploração sexual, à prostituição. Isso significa que a legislação
atual revela necessidade de sofrer profundas modificações, especialmente
no que diz respeito às medidas jurídicas efetivas de proteção do traficado e
de responsabilização do traficante.
Explicando, artigo 231 do CP brasileiro, define o tráfico internacional de
pessoas quando: Promover, intermediar ou facilitar a entrada, em território
nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa
para exercê-la no estrangeiro. 40 O Art. 131 do CP foi alterado por meio da Lei
n.11.106 de 200541, ampliando a definição para todos os gêneros e idades
e, acrescentado o Art. 131-A que caracteriza o tráfico interno de pessoas.
37 Foi Promulgado no Brasil, através do Decreto nº 5.017, de 12 de Março de 2004. Sobre a incorporação
de normas jurídicas internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro, ver PIOVESAN, 2002 e CANÇADO
TRINDADE, 1996.
38 O Tráfico Internacional encontra-se tipificado no ordenamento jurídico brasileiro desde a edição do
Código Penal Republicano, de 1890, em seu art. 278, como a seguir: Induzir mulheres, seja abusando
de sua debilidade ou miséria, seja provocando-lhe o constrangimento por intimidações ou ameaças a
se utilizar no tráfico da prostituição. Do CP de 1890 ao de 1940, podemos observar que a legislação
brasileira continuou a restringir a tutela penal ao sexo feminino. Com a modificação do art. 231 do CP
de 1930, mediante a Lei n. 11. 106, de 28 de março de 2005, o tráfico deixa de ser restrito às mulheres,
alcançando qualquer pessoa, seguindo as orientações do Protocolo de Palermo.
39 O CP brasileiro utiliza o termo tráfico para fazer referencia a qualquer tipo de translado de pessoas.
Somente a partir de maiores debates e discussões de políticas públicas em 2006 começou a utilizar
tráfico para fazer referência à exploração sexual.
40 Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005 que altera os arts. 231 (entre outros) e acrescenta o art. 231-A
(do tráfico interno de pessoas).
41 “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição
ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”. LEI Nº 11.106, DE 28 DE MARÇO DE 2005 Altera os
arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 – Código Penal e dá outras providências.
278
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Desse modo, ampliou a tipificação para todas as pessoas, mas continuou
restrito em relação à questão do exercício da prostituição.
Para Wiecko (2006, p 1-6), no Código Penal Brasileiro existem três situações em que o trânsito de pessoas se encontra tipificado: 1- nos términos
do art. 231 do CP promover e facilitar42 a entrada ou saída de pessoas no
território brasileiro constitui tráfico no caso de ter como objetivo a prostituição, e, a pena consiste em privação de liberdade (3 a 8 anos) – Tendo como
objetivo o lucro, também se aplicará multa; 2 – com base no art. 207 do CP, o
recrutamento ilegal de trabalhadores constitui fraude, está dominado como
agenciamento (o ato de recrutar a mulher com objetivo de exploração) para
fins de emigração, e tem como punição a condenação de privação de liberdade (1 a 3 anos), podendo ser substituída por pena restritiva de direitos;
3 – situações tipificadas no art. 245 do CP, referentes ao menor, que neste
presente estudo não se configura como objeto de análise.
No tráfico de pessoas se encontra mais de um sujeito do delito (Noronha, 1986, p. 275), pois entre o recrutamento, tramitação de documentos
necessários para a viagem e sua realização (as vezes como acompanhante,
outras como subsidiando o bilhete e outros custos), recepção, alojamento e
colocação nos prostíbulos para a exploração, as vítimas do tráfico contatam
com mais de um agente criminal. Segundo a legislação brasileira, no seu
art. 29 do CP, a participação em qualquer de uma dessas etapas implica na
culpabilidade, que envolverá algum nível de participação no tráfico. Para a
doutrina, as formas ilícitas de obter o consentimento de uma pessoa também
são delitivas, embora os abusos de situação de vulnerabilidade, pressão psicológica e corrupção no âmbito privado não estejam nela contempladas.
O crime do Trafico de Pessoas deve ser praticado intencionalmente e
de forma a obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro
benefício material. Acrescenta-se a isso a obrigação de considerar como
agravantes das infrações estabelecidas as circunstâncias que coloquem em
perigo ou ameacem pôr em perigo a vida e a segurança dos emigrantes; bem
como culminem ao tratamento desumano ou degradante deles, incluindo
exploração. (WIECKO, 2006, p. 8).
Jesus (2003, p.101) considera o tráfico de mulheres um crime comum
(pode ser praticado por qualquer pessoa, sem distinção de gênero), instantâneo (se consuma com a entrada ou saída da mulher do território nacional,
42 “Promover: significa causar, diligenciar para que se realize. Enquanto Facilitar: tornar mais fácil, auxiliando, ajudando ou desenvolvendo”. JESUS, 2003, p. 89.
279
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
sem continuidade temporal definida), e pluri-subsistente (pois são necessários vários atos do sujeito para sua configuração de condenação.
Por seu caráter extraterritorial, nos términos do § 2º do art. 7 do Código Penal, se encontra fixado, exigindo para a aplicação a lei brasileira o
concurso das seguintes condições: a) entrar o agente em território nacional;
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime
incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d)
não haver sido o agente não condenado no estrangeiro ou não ter ali cumprido a condena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro, ou por
outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável
(JESUS, 2003, p. 106).
No atual contexto, pode-se perceber que a legislação brasileira vem
passando por algumas modificações objetivando tanto tutelar a dignidade
do ser humano (WIEKO, 2006, p. 11), quanto harmonizar-se com o Protocolo
de Palermo. Porém, ainda se faz necessário construir um tipo básico para o
tráfico de pessoas e os tipos derivados, conforme a finalidade da exploração
e não conforme os sujeitos passivos. Esta solução vem sendo elaborada pelos
legisladores mediante a criação de um capítulo específico que abarque os
crimes contra a dignidade da pessoa humana43.
Diante do exposto, podemos perceber a carência de uma legislação “mais
dura”, mais repressiva, com penas mais pesadas, que venham a incluir, além
da reclusão de no mínimo cinco anos, um valor significativo de multa a ser
pago à vítima do tráfico como reparação, e o confisco de bens sob investigação jurídica por prática de crime organizado internacional.44
Percebe-se, também, a falta de harmonização com o Protocolo de Palermo - principal referência internacional sobre o Tráfico - que recomenda
levar em consideração os movimentos de pessoas que usam a coerção ou
engano e que exploram ou violam os direitos humanos da pessoa envolvida
no processo do tráfico. Neste sentido destacamos que no Tráfico de Pessoas
o objeto de tutela jurídica é a moral pública sexual. O traficante é o sujeito
ativo, e a condição moral da vítima não é relevante. A promoção ou facilita-
43 Ver Anteprojeto de 1992 de Reforma da Parte Especial do Código Penal. A proposta classificava como
crimes contra a dignidade da pessoa humana os crimes relativos ao estado de escravidão; os crimes em
matéria de prostituição; os crimes de comércio do corpo humano de pessoa viva, entre outros. Do mesmo
modo aponta Leal (2002) sobre a necessidade do mudar o sentido que o restringe a prostituição, para o
de exploração sexual, e do conceito restritivo de coação ou ameaça para o conceito mais amplo de abuso,
que gera a situação de vulnerabilidade da pessoa traficada, cabendo aos estados a proteção das vítimas.
PESTRAF, 2002, p 187.
44 As penas na Itália variam de 8 a 20 anos, e também está prevista a multa. Na Bélgica também o período
vária de 5 – 15 anos. Já na Áustria, pode ir até 10 anos (nos casos de tráfico com fins de exploração).
(DOC-ONU: HR/PUB/02 - Op. cit. p. 90 –93). Na Espanha são estabelecidas penas de 2 a 4 anos (Cf. Art.
188, CP Español).
280
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
ção da entrada ou saída da vítima são motivos suficientes para configurar a
existência do tráfico, não existindo a forma culposa do tráfico, ou seja, por
negligência, imperícia ou imprudência, podendo o Ministério Público suscitar
uma Ação Penal Pública. Ainda que a mulher consinta em seu deslocamento
para exercício da prostituição, deve-se reprimir a prática do tráfico sexual,
mesmo com a anuência desta, já que a vitima não tem real noção sobre as
condições a que estará submetida para o exercício do seu trabalho, e a isto
denomina-se fraude. Recomenda ainda, não reduzir o Tráfico à exploração
sexual mas considerar vítima qualquer pessoa que esteja sob uma situação
vulnerável, submetida à escravidão ou a práticas análogas.
2.1 O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos:
Prima pelo respeito aos Direitos Humanos?
A reação brasileira de combate ao Tráfico de Pessoas é uma ação conjunta
formada de um lado, pela parte governamental, composta por um grupo
de trabalho interministerial45 e, por outro, pela representação de outros
atores importantes, formados pela sociedade civil, seja através de ONGs,
especialistas, ou mesmo pela colaboração de organismos internacionais,
como a OIT e o UNDOC.
Por meio do Decreto nº 5.948 de 26 de outubro de 2006 foi aprovada a
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e também instituído o grupo interministerial formado por 14 órgãos federais, cujo objetivo era
o estabelecimento de princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão
ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas 46, com vistas à aplicação
dos conceitos do Protocolo de Palermo.
Com essa política, a tipificação do Tráfico de Pessoas não sofre alterações
legais em comparação com os documentos já internacionalmente aceitos.
Os princípios e diretrizes dispostos em seu Capítulo II também respeitam
os preceitos de dignidade da pessoa, a não discriminação por gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça, religião, situação
geográfica ou outro status. Também visa garantir proteção e assistência integral às vitimas, promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos,
45 Conforme o Decreto Lei 5.948 de 26/10/2006: “Art. 3o O Grupo de Trabalho será integrado por um
representante, titular e suplente, de cada órgão a seguir indicado: I - Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; II - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência
da República; III - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da
República; IV - Casa Civil da Presidência da República; V - Ministério da Justiça; VI - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; VII - Ministério da Saúde; VIII - Ministério do Trabalho e Emprego;
IX - Ministério do Desenvolvimento Agrário; X - Ministério da Educação; XI - Ministério das Relações
Exteriores; XII - Ministério do Turismo; XIII - Ministério da Cultura; e XIV - Advocacia-Geral da União.”
46 Art. 1º do Decreto n. 5948 de 26 de outubro de 2006.
281
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos e
enfatiza a necessidade de atuação em rede.
Com o objetivo de constituir uma norma de conduta, as diretrizes47
desta política, formatam ações que incentivam programas de cooperação,
de articulação local e global de distintos atores que compõem as operações
internacionais, de assistência devida às vitimas e sua reinserção social, de
incentivo à formação e capacitação de profissionais para a prevenção e
repressão ao tráfico de pessoas.
Na Seção III, são definidas medidas de prevenção48, repressão49 e atendimento às vítimas50. Desse modo, observamos a preocupação em cobrir
os três eixos de combate ao tráfico de pessoas, tal como já ocorre na arena
internacional.
Dando seguimento ao combate ao tráfico de seres humanos, foi elaborado o PNETP, que visa pôr em prática as diretrizes, políticas e ações devidas
para implementação, no cenário nacional, das medidas necessárias para
atuar de forma efetiva no combate ao Tráfico de Pessoas. Este Plano, tal
como definido pelo próprio Ministério da Justiça, é fruto de um trabalho
que vem amadurecendo há alguns anos no âmbito do governamental e da
sociedade brasileira e culmina com a realização da Política Nacional de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em junho de 2006 com vistas a “servir
de ferramenta para um enfrentamento mais efetivo ao tráfico de pessoas
no Brasil”. (PNETP, p.6).
Desse modo, o Plano Nacional resultou de debates, realizados desde o
fim de 2006 até 2007, que contaram com a participação de instituições do
Estado e entidades da sociedade civil, tal como define o Decreto nº 6.347
de 08 de janeiro de 2008, o PNETP como um todo deve ser executado no
prazo de dois anos. Seu objetivo é combater todas as formas de Tráfico de
Pessoas, independente de seus fins, seja trabalho escravo ou exploração sexual ou laboral. Porém, para o presente estudo nos limitamos aos elementos
relativos ao Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual, o tráfico de
mulheres51.
47 Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Seção II, Art. 4
48 Idem, art. 5º
49 Ibidem, art. 6º
50 Ibidem, art. 7º
51 É válido ressaltar que entre os alvos do Plano está a criação de centros públicos de intermediação de
mão-de-obra rural, para evitar o aliciamento de trabalhadores por gatos (contratadores de serviço a
mando de fazendeiros) nas cidades com alta incidência do problema. Também estão previstos estudos
para identificar a dimensão e a natureza do aliciamento e de outras formas de tráfico de pessoas.
282
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Diante do exposto, percebemos que num primeiro momento o PNETP,
pretende colocar em prática os acordos internacionais a respeito do tema
do Tráfico, com formas específicas de atuação, buscando visibilizar o crime
para assim diminuir a vulnerabilidade das vítimas. Ao mesmo tempo, a
realização de debates evidencia a preocupação e a necessidade de adequar
a legislação nacional à normativa internacional.
Foi instituído o Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do Plano, sendo uma espécie de comissão formada por membros de distintas
instâncias governamentais52, além de membros da sociedade civil, conforme
disposto no referido Decreto nº 6.34753. Esse Grupo tem a função de definir
as linhas de trabalho para que o Estado possa intervir de forma mais concreta
e inter-setorialmente (PNETP, 2008, p. 1-2).
Este Plano apresentado à sociedade brasileira e internacional no ano
de 2008 possui prazo de execução determinado para dois anos54. Todavia,
ainda é muito cedo para fazer uma análise de seus impactos no cenário
brasileiro. Contudo, podemos perceber como foi preliminarmente exposto,
que se trata de um projeto ambicioso, que visa a atacar os três âmbitos do
tráfico (Prevenção, Repressão e Assistência) podendo contribuir de forma
muito positiva no combate eficaz dessa mancha social.
Com a Política Nacional e o PNETP, o governo brasileiro busca produzir
internamente a harmonização da legislação com as exigências internacionais de combate ao Tráfico de Pessoas e proteção dos direitos humanos.
Tal como vimos anteriormente, este processo se encontra em fase inicial
de debate e reforça a opinião de que a legislação brasileira ainda necessita
de mudanças, que segundo as prioridades da PNETP serão encaminhadas
ao Grupo de especialistas, para estudar posturas mais incisivas quanto às
penas e contra as “máfias” e redes de agenciamento.
Observa-se, também, que com a delimitação das prioridades se conhecem as lacunas existentes para o combate mais forte ao Tráfico de Pessoas
e a busca de acordos de cooperação entre os países amplia o espaço para a
52 Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do PNETP, instituído no âmbito do Ministério da Justiça,
é constituído pelos seguintes órgãos: Ministério da Justiça, que o coordena; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ministério da Saúde; Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da
Educação; Ministério das Relações Exteriores; Ministério do Turismo; Ministério da Cultura; Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial da Presidência da Republica; e Advocacia-Geral da União. PNETP, p. 18
53 Decreto Lei nº 6.347 de 08/01/2008 - Além de aprovar o PNETP, também institui Grupo Assessor de
Avaliação e Disseminação do referido Plano
54 O Presente artigo foi escrito em Outubro de 2008, momento em que todavía no se conhece os impactos
do Plano, resultados que seram apresentados pela Coordenaçao do mesmo somente ao final do seu prazo
de execuçao em 2010.
283
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
repressão ao crime e expõe a necessidade de garantir a proteção às vítimas.
Trata-se de um plano muito discutido, bem elaborado e alicerçado, que
necessita mecanismos eficazes para que seja bem executado55.
Carece cobrar maior atenção ao problema, pois o mesmo engloba várias
questões existentes dentro da sociedade, além do que há que se levar em
consideração que o PNETP tem o desafio de estruturar o sistema nacional
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, o qual por sua vez engloba parcerias
tanto a nível governamental (governos estaduais e municipais e distintos
setores do Governo Federal), quanto o nível da sociedade civil (seja através
de instituições internacionais (como o caso da OIT e UNODC, como das
ONGs).
Vale destacar que o PNETP entra como parte do Programa Nacional
de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)56, atuando propulsor à
incorporação do tema de Tráfico de Pessoas nas políticas estaduais e tentará
facilitar a criação de núcleos específicos que atuarão conforme prioridades
locais próprias e diferenciadas.
Considerações finais
A partir da Convenção sobre a Escravidão de 1926, a comunidade internacional se organizou para elaborar normas que viessem garantir inicialmente a proteção às vítimas de exploração do trabalho, e posteriormente,
em 1949, salvaguardar os direitos das vítimas do Tráfico. Em sequência,
no ano de 2000 foi elaborado no seio das Nações Unidas o Protocolo de
Palermo que é parte do Convênio contra o crime organizado, que veio a
proporcionar a primeira tipificação internacionalmente reconhecida para
o Tráfico de Pessoas.
Cada Estado do sistema das Nações Unidas assumiu o compromisso
de garantir em seu domínio a defesa dos direitos e da dignidade do ser
humano.
55 Para a especialista Marina de Oliveira em tráfico de pessoas do UNODC, o PNETP é um avanço importante, pois “embora o Brasil ainda não tenha uma adaptação completa legislativa do Protocolo da ONU
contra o tráfico de pessoas, o plano permite o trabalho integrado em prevenção, repressão e proteção
às vítimas, ainda que algumas questões não sejam respaldadas na legislação”. Para Marina Oliveira, “o
plano também facilita a integração dos projetos do governo com organizações internacionais dentro do
marco estratégico do plano, o que permite ações integradas e mai efetivas”. Disponível em: (http://www.
unodc.org/brazil/pt/ungift_portuguese_plano.html)
56 Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(PRONASCI) marca uma iniciativa inédita no enfrentamento à criminalidade no país. O projeto articula
políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à
violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública. (www.mj.gov.br).
284
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
No Brasil foram empreendidos esforços a nível nacional para a interpretação do Protocolo de Palermo e sua consequente aplicação no cenário
nacional o que resultou na proposta da Política e do PNETP. Vale reiterar que
tal como se apresenta, foi um trabalho coordenado pelo Governo, no qual
se encontram envolvidos quatorze órgãos públicos, com a colaboração do
UNDOC e da OIT como atores importantes neste cenário, representando os
organismos internacionais, bem como a intensa participação da sociedade
civil, seja através de especialistas no tema, seja por meio da colaboração de
distintas organizações não governamentais. Esta ação coordenada busca
resultados pontuais, como o entendimento do Tráfico como um problema
social, e delito pelo qual os direitos das vítimas são violados. Defende a
necessidade de assistir as vitimas e trabalhar pela repressão que leve à penalização dos traficantes, como modo de impedir que este crime continue
crescendo.
Diante do contexto apresentado, se pode observar que na luta global
contra o Tráfico de Seres Humanos mostra-se imprescindível a ratificação do
Protocolo de Palermo, afirmando-se que o tráfico de pessoas não é somente
uma forma de migração forçada, mas uma violação dos direitos humanos e
um crime transnacional que os Estados têm o dever de combater de forma
a respeitar as leis e conferir proteção às vitimas. Ainda que existam avanços conceituais significativos dos instrumentos de direito internacional, os
mecanismos criados para a proteção dos direitos humanos das vítimas do
Tráfico ainda são insuficientes. Deste modo, é necessário que os Estados
sigam revendo suas legislações internas, objetivando cumprir e aplicar os
compromissos adquiridos ao ratificar o Protocolo de Palermo e, também,
supervisionar as normas de operação das instituições responsáveis por
sua aplicação. Percebe-se a necessidade do compromisso de assumir as
políticas públicas que diminuam a vulnerabilidade das vitimas, bem como
aplicar as normas de direitos humanos já existentes. Nota-se ainda, a falta
de cooperação nos distintos níveis para que o combate seja mais efetivo.
Neste sentido, vale ressaltar a importância das normas de “boas práticas”, ou
seja, usar internamente mecanismos desenvolvidos com sucesso em outros
países, ou mesmo em situações similares.
A luta pela garantia dos direitos fundamentais do ser humano se dá
pela necessidade de preservação da dignidade da pessoa. De acordo com
este preceito, o Estado deve mobilizar-se para a criação de mecanismos e
medidas necessárias para proteção de todo o ser humano que se encontra
sob sua jurisdição. Neste sentido, pode-se observar que no decorrer dos
285
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
tempos, vários foram os instrumentos de proteção dos direitos humanos
criados e postos em prática no cenário internacional no sentido de proteger
a dignidade inerente a pessoa humana. Mas se o Estado não atua ativamente
na promoção e proteção destes direitos o crime organizado encontra as
lacunas perfeitas para sua atuação.
Diante deste contexto, podemos observar que o PNETP é uma tentativa
de conciliar internamente a orientação internacional de combate ao tráfico
de pessoas, conferindo atenção aos três eixos necessários: prevenção, assistência e repressão, evidenciando que o tráfico não é um ato isolado, devendo,
portanto, ser enfrentado como tal. Assim, percebe-se o porquê da articulação de distintos órgãos para o combate a esse crime. O PNETP é um ponto
de partida, de onde poderemos assentar bases eficazes para conscientizar
a sociedade do problema, bem como prevenir, reprimir e conferir devida
assistência à vítima, como fim de salvaguardar os direitos humanos.
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288
IV MIGRAÇÃO E TRABALHO
Mecanização do corte de cana crua e políticas
públicas compensatórias: indo direto ao ponto
Introdução
Francisco Alves
É digno e não é verdade
cortar cana e quebrar
é uma barbaridade
trabalho que o homem faz
por pura necessidade....” 1
A discussão sobre a mecanização do corte de cana tende a ocorrer, com
maior ênfase, em dois momentos: quando o Complexo Agroindustrial Canavieiro – CAI - Brasileiro entra numa fase expansiva, ou quando a sociedade
exige ações contra os danos sociais e ambientais causados pela atividade.
Neste momento, em que o Complexo Agroindustrial Canavieiro atravessa
mais uma de suas muitas fases expansivas, a discussão sobre a mecanização
completa do corte de cana voltou à agenda. Há dois fatores novos e articulados nesta discussão, neste momento, além, é claro, do grande aumento
da produção de cana, de açúcar e de álcool. O primeiro, é a repercussão na
imprensa nacional e internacional das péssimas condições de trabalho dos
cortadores de cana; o segundo, é a possibilidade do álcool vir a tornar-se uma
nova commodity do complexo, com isto, os países, potenciais importadores de
1
Pedro Costa, repentista e poeta popular do Piauí, citado por Novaes, J.R.; Alves, F. (2007).
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
álcool brasileiro, estão condicionando as suas compras a que o CAI demonstre
boas práticas sociais, trabalhistas e ambientais2, na produção de álcool.
No início da década de 1970, quando o CAI Canavieiro passava por uma
outra fase de expansão, antes do Proálcool, os usineiros iniciaram a mecanização do corte. Esta iniciativa foi dos usineiros, sem consulta à sociedade, e
se deu em decorrência da possibilidade de vir a faltar braços para a colheita
de cana. Naquele momento, a economia brasileira atravessava uma fase expansiva, chamada de Milagre Econômico, na qual houve forte aumento dos
empregos urbano/industriais. Os usineiros temiam, naquela oportunidade,
pela falta de força-de-trabalho, ou que viessem a concorrer pagando salários
urbano/industriais a cortadores de cana.
Naquele momento, a mecanização total não se deu, porque a dinâmica
populacional, com a expulsão de trabalhadores da agricultura de subsistência
no Vale do Jequitinhonha e outras regiões do país, resolveu o problema da
possibilidade de falta de força de trabalho (MORAES SILVA, 2000; ALVES,
1991). As máquinas desenvolvidas e adquiridas, naquela oportunidade,
transformaram-se em máquinas de vitrine, usadas apenas para ameaçar
os trabalhadores no início da safra, e pressionar os salários para baixo
(GRAZIANO DA SILVA, 1981).
No final da década de 1980 as usinas empreenderam novo processo
de mecanização do corte de cana. Naquele momento, a mecanização foi a
resposta patronal às greves dos cortadores, que se iniciaram em Guariba,
em 1984 e levaram a que os trabalhadores tivessem conquistas salariais e
trabalhistas (ALVES, 1991).
Na década de 90, logo após a Conferência Rio 92, há, novamente, a retomada da discussão sobre a necessidade de mecanização do corte de cana. A
diferença deste momento em relação aos dois momentos anteriores (1970
e 1980) é que a discussão foi posta por iniciativa da sociedade, através de
Associações Ambientalistas e dos Promotores Públicos, reivindicando o fim
da queimada de cana, devido a seus efeitos deletérios sobre o meio ambiente,
à saúde dos trabalhadores e da população em geral. Os usineiros, em defesa
da permanência da queima, impuseram, como verdade absoluta, que o fim
da queimada de cana só poderia ocorrer com a mecanização do corte, isto
é, com a substituição de trabalhadores por máquinas.
2 Na última visita da Chanceler Alemã ao Brasil, em junho de 2008, ela deixou claro, falando não apenas em
nome da Alemanha, mas da Comunidade Européia, que a inclusão do álcool brasileiro à matriz energética
alemã e européia, depende dos produtores demonstrarem que não há exploração de trabalho escravo e
infantil e que não há plantação de cana na Amazônia.
294
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Naquele período, o CAI Canavieiro passava por um momento econômico difícil, provocado por um conjunto de acontecimentos, como a crise de
abastecimento do álcool e a abertura comercial, que serão detalhados na
segunda seção deste trabalho. O que importa destacar aqui é que na década
de 90 os usineiros é que foram
pressionados pela sociedade e responderam à pressão ameaçando com
o risco do desemprego de milhares de trabalhadores. Portanto, é a partir
de 1990 que os usineiros juntaram duas questões que estavam separadas:
uma era a necessidade de acabar com a queima de cana, que era reivindicado pela sociedade, a outra era a mecanização do corte de cana crua com
ameaça de desemprego.
A partir de 2004, a discussão sobre mecanização voltou à agenda. Para
a sociedade, a reivindicação era pela necessidade de eliminação das queimadas e pela melhoria das condições de vida e de trabalho dos cortadores
de cana. Para os empresários, a mecanização se comportava como uma
alternativa para aumentar as exportações de álcool. Ou seja, as exportações
de álcool brasileiro para se expandirem, dependiam do CAI demonstrar para
os importadores internacionais que a produção deste ”biocombustível”3
não agride ao meio ambiente e não degrada as condições de trabalho dos
trabalhadores, porque a parcela de trabalhadores mais atingida pelas péssimas condições de trabalho, a dos cortadores de cana, deixaria de existir,
pela mecanização.
Os inúmeros casos documentados de abusos sobre os trabalhadores,
que vão desde a contratação em condições análogas a escravo, até às mortes
por excesso de trabalho, colocavam os usineiros diante do seguinte dilema:
ou de se melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores ou de não se
conseguir exportar álcool. Para resolver este dilema, os usineiros optaram
por adotar a mecanização completa do corte.
A questão que precisa ser respondida pela sociedade é: Como deverá se
dar a expansão do Complexo Agroindustrial Canavieiro, de forma a preservar
e melhorar as condições de vida dos trabalhadores e o meio ambiente? Ou
seja, a sociedade deve decidir se aceita esta forma de expansão predatória
às condições de trabalho e ao meio ambiente, ou se impõe condições para
a expansão da canavicultura?
3 Biocombustível está com aspas porque é necessário datar este termo. Este termo passa a ser usado no
Brasil após a visita do Presidente dos EUA, em março de 2007. A partir desta data o álcool passa a ser
etanol e combustíveis renováveis passam a ser chamados de biocombustíveis. Esta nova denominação
tem um forte apelo de marketing, pois une bio, que significa vida, com combustível, energia, opondo este
aos chamados combustíveis fósseis, que derivam de matéria orgânica morta.
295
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Para os usineiros, a expansão da produção e do mercado externo podem
ser conseguidas apenas com a erradicação do corte manual, eliminando
milhares de postos de trabalho, e com a consecução de certificações sociais
e ambientais, que atestem que o álcool está sendo produzido em condições
sociais e ambientais justas e sustentáveis. Mas será que, na sociedade brasileira, as certificações são garantias de desenvolvimento sustentável?
O objetivo deste trabalho é mostrar que não adianta a mera substituição
de trabalho vivo por máquinas para melhorar as condições de trabalho dos
trabalhadores e as condições ambientais das regiões canavieiras. Este trabalho defende a posição que, na perspectiva do desenvolvimento sustentável,
o corte manual de cana deve ser eliminado. Porém, a sociedade não pode
ficar inerte a esta decisão, de trocar trabalhadores por máquinas. A sociedade precisa apresentar suas propostas de como esta substituição deverá se
processar. Neste sentido, este trabalho apresenta um elenco de propostas de
políticas públicas compensatórias, que objetivam impor condições à ampliação do complexo e à mecanização do corte de cana. Essas políticas públicas
devem compensar a perda de postos de trabalho e, ao mesmo tempo, atuar
para a melhoria não só das condições de vida e de trabalho dos cortadores
de cana, como também para a melhoria e preservação do meio ambiente.
Na perspectiva aqui apresentada, que difere da perspectivas patronal,
o ritmo da mecanização deve ser igual ao ritmo da adoção das políticas
públicas compensatórias. Além disto, propomos que, enquanto as políticas
públicas não se materializem em ações, sejam implementadas, imediatamente, novas relações de trabalho, que tenham como eixo fundamental: o
fim da terceirização; a adoção do controle da produção pelos trabalhadores,
através da quadra fechada e o fim do pagamento por produção.
Consideramos que a mecanização total do corte de cana deve ser
implementada, porque não cabe à sociedade a defesa e a preservação de
subempregos. A sociedade deve se mobilizar pela criação de novos e bons
empregos, que promovam a melhoria das condições de trabalho, o respeito
aos direitos humanos e preservem o meio ambiente. O trabalho no corte de
cana é uma atividade penosa, que aleija e mata trabalhadores, como diz o
poeta popular:...”dizem que todo trabalho
Este trabalho está dividido em quatro partes, além desta introdução. Na
seção 1, discutimos a evolução recente do Complexo Agroindustrial Canavieiro, e apresentamos as origens e causas desta fase expansiva e como se
colocam os desafios a esta expansão.
296
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Na seção 2, A Modernização Perversa, apresentamos os elementos componentes do processo de mecanização do corte de cana, como parte do que
aqui chamamos de modernização perversa, porque as novas tecnologias de
produto de processo ao serem implementadas, preservam e aprofundam a
exploração do trabalho.
Na seção 3, Processo de Trabalho, veremos as características do processo
de trabalho no corte de cana e a forma como o mesmo interage com o valor
da força de trabalho, porque é esta integração entre o processo de trabalho e
a forma de pagamento que subsidiam as propostas de políticas públicas. Na
seção 4, apresentamos as propostas de políticas públicas compensatórias,
que se postas em prática, acreditamos, criarão novas formas de trabalho
e renda, que compensarão as perdas de postos de trabalho impostos pela
mecanização. Nesta seção apresentamos também, propostas de mudanças
imediatas nas relações de trabalho, que têm por objetivo a melhoria das condições de trabalho, enquanto a mecanização completa não se processa.
1 Evolução econômica recente do complexo agroindustrial canavieiro
Na presente seção faremos um breve retrospecto da evolução do Complexo Agroindustrial Canavieiro, com ênfase na fase atual, que se inicia em
2002. A realização deste retrospecto não só permitirá a avaliação dos rumos
tomados pelo Complexo, no que tange à qualidade das relações de trabalho,
como também justificar as propostas de políticas públicas aqui apresentadas,
com base nas relações de trabalho levantadas.
A inversão em novas tecnologias de processo e de produto tiveram
importância no dinamismo do Complexo Agroindustrial Canavieiro, porém,
a combinação destas com as tecnologias de organização do trabalho, permitiram enorme crescimento da produtividade do trabalho pelo aumento
da intensidade do trabalho. Como resultado dessa situação, temos o comprometimento da saúde dos trabalhadores.
Na década de 1990, dois fatores diminuíram o ritmo de expansão do CAI
Canavieiro: o PROÁLCOOL, perde a credibilidade, provocada pelo desabastecimento de álcool nas bombas; e o Estado, promoveu a abertura comercial
e a desregulamentação parcial do CAI Canavieiro.
A partir dessa nova realidade, as empresas do CAI adotaram um conjunto de modificações que vão desde a mudança da base técnico produtiva,
conseguida pela introdução de novas tecnologias de processo e produto, até
a área organizacional da produção e do trabalho.
297
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A saída parcial do Estado, através do fim do Instituto do Açúcar e do
Álcool (IAA) em 1990, e do fim da fixação dos preços da cana praticadas por
este instituto, transferiu a concorrência para o interior do próprio CAI. Com
esta medida, a adoção e o ritmo do progresso técnico passaram a ser o carro
chefe para o estabelecimento dos ganhos diferenciais de produtividade entre
as usinas (ALVES; ASSUMPÇÃO, 2005).
A partir de 2002, o CAI Canavieiro entra em grande dinamismo em seu
processo de crescimento, o que faz lembrar o período áureo do PROÁLCOOL
(1974-1983).
Ao contrário do PROÁLCOOl, o CAI Canavieiro não recebeu subsídios
diretos e exclusivos do Estado, e foi tema de amplo debate entre diferentes
setores da sociedade.
Vale a ressalva que, embora não havendo subsídios diretos e exclusivos
ao setor, os investimentos em novas unidades produtivas de açúcar e álcool
são financiados pelo BNDES, portanto, gozam de taxas de juros inferiores às
praticadas no mercado e têm elevado prazo de carência. A diferença é que
os investimentos, no período do Proálcool, vinham de recursos oriundos do
tesouro e eram exclusivos ao CAI canavieiro. Hoje, os recursos são do BNDES
captados em várias fontes4, dentre elas o tesouro, e estão disponíveis para
qualquer setor de atividade.
O mercado externo para o açúcar e para o álcool, desempenha papel importante para o crescimento do CAI Canavieiro, e o mercado interno contribui
com as crescentes vendas de carros Flex Fluel. No plano externo, devido as
questões decorrentes do aquecimento global, o álcool, agora chamado de
etanol, é incentivado para reduzir a queima de combustíveis fósseis. Nesta
medida, o etanol passa ser a nova commodity do Complexo Agroindustrial
canavieiro e tem sua produção incentivada.
Para atender a esta demanda, está havendo a retomada de investimentos,
tanto na parte agrícola, quanto na parte industrial. Até 2009 serão instaladas
89 novas destilarias/usinas, sendo 38 no oeste paulista. Há a expectativa
que o Brasil venha a produzir 100 bilhões de litros de álcool a partir de
2025, praticamente quadruplicando a produção atual, que está na casa dos
20 bilhões de litros.
4 A principal fonte de recursos do BNDES e a que tem mais baixo custo de captação é o Fundo de Amparo
aos Trabalhadores (FAT), que tem como fonte principal os recursos do PIS e do PASEP, portanto, pertencem, em última instância, aos trabalhadores. O que não se entende é o seguinte: se os recursos são do
BNDES e se pertencem aos trabalhadores; pois são oriundos de um fundo pertencente aos trabalhadores,
por que o banco não impõe rígidas normas sociais e ambientais que reduzam o enorme passivo social
e ambiental do CAI canavieiro?
298
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
2 A modernização perversa
A denominação desta fase como Modernização Perversa se deve ao fato
dela modificar a base técnica de produção sem alterar o essencial das relações
de trabalho. A forma de contratação de trabalhadores por tempo determinado,
a prevalência de pagamento por produção, elevada informalidade, a terceirização são a herança das relações de trabalho do período anterior. A forma de
contratação dos trabalhadores combinada com o pagamento por produção,
que levam, como veremos a seguir, ao aumento de horas de trabalho, com
consequência para a saúde culminando em mortes por excesso de trabalho.
As inovações tecnológicas no processamento agroindustrial se deram
na direção da automação total com a introdução dos Sistemas Digitais de
Controle Distribuídos (SDCD). Isto provocou o aumento da produtividade
do trabalho industrial e o aumento da integração dos processos gerenciais e
logísticos (ASSUMPÇÃO, 2001). Na área agrícola, as mudanças tecnológicas
e organizacionais mais nítidas são marcadas pelas seguintes características:
aumento da intensidade do trabalho, maior rigor na seleção de trabalhadores, logística de integração agricultura/indústria; mecanização do plantio e
do corte de cana e terceirização de atividades.
2.1 A mecanização do corte a passos lentos
Após o ciclo de greves, iniciado em Guariba em 1984, as usinas implementaram um vigoroso processo de mecanização do corte de cana queimada (ALVES, 1991). Este processo introduziu máquinas colheitadeiras, operadas por
um pequeno conjunto de homens, substituíram, a um só tempo, o trabalho dos
cortadores de cana e de operadores de máquinas carregadeiras (guinchos).
A mecanização da colheita de cana, que inicialmente se deu com cana
queimada e em decorrência do crescimento do poder de barganha dos trabalhadores, com as greves, foi empregada pelos empresários, no final dos
anos 80 e início da década de 1990, com canas queimadas.
A luta contra a queima de cana mobilizou, e ainda mobiliza, um amplo
conjunto de organizações da sociedade civil (ONGs ambientalistas, promotores públicos, vereadores e outras organizações sociais). Mesmo com
esta ampla mobilização não logrou o fim das queimadas de cana. Porém,
provocou a celebração de um pacto, em 1998, chamado Acordo dos Bandeirantes5. Este acordo (protocolo de intenções de adesão voluntária), firmado
5 Acordo dos Bandeirantes foi o nome dado ao acordo selado entre o Governador do Estado de São Paulo,
Mário Covas, Representantes das usinas do Estado, Representantes dos fornecedores de cana e representantes dos trabalhadores, em 1988, no Palácio dos Bandeirantes, que acordava o fim da queima de
cana em todo o Estado de São Paulo para 2006.
299
Ricardo Rezende Figueira
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(Orgs.)
no Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do Governador do Estado
de São Paulo, previa o fim da queima de cana, para 2006, portanto, 8 anos
após a sua celebração. Este tempo, foi estipulado para que, de um lado, as
unidades produtivas promovessem a aquisição das máquinas e adequassem
seus sistemas de corte a esta nova modalidade (ALVES,1995). De outro
lado, este tempo considerava a necessidade de criação de alternativas de
trabalho e renda para os trabalhadores, que seriam desempregados com a
mecanização do corte e com a consequente substituição do trabalho manual.
Porém, naquela oportunidade também não foram determinadas políticas
públicas compensatórias.
Posteriormente, os deputados estaduais de São Paulo julgaram que a
mecanização do corte era tão relevante, para o Estado, pois envolvia os interesses de um setor importante da economia que deveria ser objeto de uma
lei específica e não de um mero acordo de cavalheiros. Como resultado foi
elaborada a lei de 2004, e a queima da cana foi estendida para 2034. Porém,
esta legislação não definiu políticas públicas compensatórias.
Em 2007, após a visita do Presidente dos Estados Unidos, José Serra,
Governador de São Paulo, celebrou um novo acordo com a UNICA (entidade
de representação dos usineiros de São Paulo), abreviando o fim da queima
para 2015, para as áreas mecanizáveis e para 2020, para as áreas não mecanizáveis.
Agora, novamente, o fim da queima é objeto de um acordo (Protocolo
de Intenções, com adesão voluntária) e, como o anterior, não tem força de
lei. Isto significa dizer, que não necessariamente será cumprido daqui a 8
anos6. Porém, não há, no que tange ao emprego, nenhum movimento, do
governo do Estado e dos empresários, no sentido de gerar políticas públicas
compensatórias às perdas de emprego prenunciadas pela mecanização.
Os empresários, através da UNICA, juntamente com a FERAESP estabeleceram, em 2007, um Protocolo de Intenções, com adesão voluntária,
para qualificação de trabalhadores desempregados (JANK, M.; NEVES, E.,
2008). Porém, este protocolo não detalha o número de trabalhadores que
serão qualificados, frente ao número dos que serão demitidos e nem o que
deverá ocorrer com os trabalhadores que não serão qualificados. O Protocolo
faz menção apenas à quantidade de novos empregados que serão gerados
com a mecanização.
6 É interessante perceber, que tanto o acordo de 1998, quanto o de 2007 estabeleceram 8 anos como prazo
para a mecanização e fim da queima para as áreas mecanizáveis.
300
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
É necessário ter claro que a sociedade reivindica o fim da queima e os
trabalhadores reivindicam a melhoria de suas condições de vida e trabalho,
principalmente através do cumprimento da legislação trabalhista. A iniciativa
de juntar o fim da queima de cana com o corte mecanizado é uma iniciativa
patronal. Isto é, na perspectiva dos usineiros, só é possível o fim da queima
de cana, se for adotada a mecanização, devido ao aumento de custos ocasionados pela necessidade de aumentar os gastos com salários.
Para entendermos este binômio criado pelos usineiros; fim da queima de
cana e mecanização, é necessário termos claro o momento político em que
isto se dá: início da década de 1990. Neste período, os trabalhadores assalariados rurais ainda detinham algum poder de barganha, capaz de impedir
a implantação do corte manual de cana crua. Isto porque, os trabalhadores
recusaram ver seu trabalho aumentado sem o aumento da remuneração.
O corte de cana pode ser crua, sem queimar, ou em 7 ruas. No corte em
7 ruas os trabalhadores trabalham mais e ganham menos, porque têm que
andar mais 3 metros lateralmente e cortar duas linhas a mais. No corte de
cana crua, um cortador corta, no máximo, 4 toneladas de cana por dia (66
metros)7, ao passo que, com cana queimada, corta 12 toneladas por dia (mais
ou menos 200 metros de cana).
Para sairmos deste binômio, imposto pelos empresários, é necessário
termos claro que, embora o corte manual de cana gere trabalho e renda, é
uma atividade penosa, que compromete a saúde e a vida dos trabalhadores,
portanto, não deve ser preservado. A sociedade tem que promover em suas
ações a criação de bons empregos; que remunerem bem os trabalhadores e
permitam-lhes desfrutar de condições de vida dignas e cidadãs. O processo
de trabalho no corte de cana é, na palavra dos trabalhadores:
“... trabalho ruim, que encurta a vida....
Cortar cana não é trabalho de gente, é trabalho de bicho...
Só corto cana porque não tenho outra coisa pra fazer...
... se não cortar cana, morro de fome...”8
Vejamos a seguir, como o processo de trabalho de corte manual de
cana é lesivo à saúde dos trabalhadores e causa de mortes por excesso de
trabalho.
7 Esta complicada transformação de tonelada em metro será explicada mais adiante.
8 A primeira vez que ouvi estas frases foi em Guariba, em 1988, quando fazia uma pesquisa sobre a
mecanização do corte de cana, foi dita por um trabalhador cortador de cana, hoje assentado. Depois,
ao longo destes mais de 20 anos, ouvi esta frase, com pequenas diferenças, pronunciada por outros
trabalhadores.
301
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
3 Processo de trabalho
O Quadro 1 mostra que, ao longo da década de 1990, embora tenha havido redução do número de trabalhadores empregados, o trabalho manual
do corte de cana não apenas não foi plenamente substituído pelas máquinas,
como houve um forte aumento da produtividade do trabalho no corte e uma
gritante piora na qualidade de trabalho (o que será mostrado a seguir).
ANOS
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
TOTAL
PNAD
625,16
645,78
451,08
455,44
450,13
415,09
451,36
448,88
494,08
519,52
Com Carteira
396,05
409,98
294,36
302,06
342,99
270,20
310,94
309,00
343,67
378,38
PNAD
Sem Carteira
229,11
235,80
156,72
153,38
107,14
144,89
140,42
139,88
150,41
141,14
RAIS CNAE 1.139
Formais (31/12)
146,91
134,14
144,83
159,23
147,44
144,94
133,29
147,34
149,79
155,24
Total *
380,29
329,10
360,21
378,79
356,99
400,32
367,62
382,68
388,14
414,67
Quadro 1 - Cana-de-açúcar: evolução do nº de empregados formais e informais no
Brasil (mil)
Fonte: DELGADO; SANTANA (2008).
O processo de produção da cana, mesmo com a mecanização, permaneceu ainda com características de produção extensiva. Nesta, o aumento
da produção de cana, e consequentemente de açúcar e de álcool no Brasil
exige aumento da área plantada com cana e esta depende por sua vez, de um
lado, da existência de terras disponíveis a serem incorporadas pela cultura
e, de outro, da disponibilidade de força-de-trabalho.
A disponibilidade de força-de-trabalho é, no caso brasileiro, resolvida
pelo contínuo processo de expulsão de pequenos produtores de suas regiões de origem pela ocupação destas terras pela agricultura comercial do
agronegócio. A expansão do agronegócio para novas áreas, leva a que os
pequenos produtores percam suas terras e as áreas de florestas, que são
destruídas pelo agronegócio.
A expulsão provocada pelo agronegócio é o primeiro elemento para a
migração, o segundo elemento é a decisão de para onde migrar. Esta é decidida pela concentração do Capital demandante de força-de-trabalho (MARX,
1975). Outra decisão será como se dará esta migração. Isto é, se esta dar-se-á
302
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
de forma permanente ou de forma pendular. Esta decisão dependerá das
condições da demanda de força-de-trabalho nas regiões de destino e das
condições de permanência da família nas regiões canavieiras de origem.
No caso da cana, como a demanda por força de trabalho é sazonal; mais
concentrada na safra, isto faz com que a maior parte dos migrantes optem
pela migração sazonal, especialmente os homens jovens (ALVES, 2007).
A fase de colheita da cana-de-açúcar é composta em três atividades:
corte; carregamento e transporte. Na maioria das usinas brasileiras a mecanização incidiu primeiro sobre as duas últimas etapas.
O corte de cana consiste no trabalhador cortar toda a cana de um retângulo que só tem previamente definida a sua largura (seis metros), e de
comprimento a ser definido pela capacidade de trabalho de corte de cada
trabalhador e medido pelo apontador no final da jornada de trabalho. Este
retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito e está contido no retângulo
maior que é o talhão9.
Além do corte, o trabalhador tem que realizar as seguintes atividades:
i) limpeza da cana, com a eliminação da palha que ainda permanece na cana, mesmo depois de queimada;
ii) retirada da ponteira;
iii)transporte da cana cortada para a linha central do eito e;
iv)arrumação da cana depositada na terceira linha, na forma de
esteira ou em montes separados um do outro por 1 metro de
distância.
Pelo demonstrado acima, verifica-se que o trabalhador é contratado
para cortar a cana contida em um retângulo, o eito, e é pago de acordo com a
produção realizada, isto é, a quantidade de cana existente neste eito, porém,
medido em metros lineares. Como é um retângulo, com largura e comprimento, ele deveria ser medido em metros quadrados (largura multiplicada
pelo comprimento)10 e não em metros lineares. A medição do eito em metros
9 Talhão é a área onde é plantada a cana e esta é delimitada pelos carreadores, ou vias, onde trafegam os
caminhões e as máquinas agrícolas. Em geral os talhões são retangulares, porque esta forma possibilita
o melhor tráfego das máquinas e caminhões, mas dependendo das condições do terreno estes podem
ser trapézios, losangos ou um outro polígono qualquer.
10 Pagamento por metro quadrado é fartamente utilizado em setores de produção que trabalham com
área, tais como construção civil, nestas, a medida do trabalho é a área construída e os trabalhadores são
remunerados pelo valor do metro quadrado. Na agricultura, inclusive, o metro quadrado é utilizado para
vários pagamentos, tais como: pagamento para atividades mecanizadas; pagamento de arrendamento
de terra. Portanto não há justificativas plausíveis para a não utilização do metro quadrado como medida
da produção no corte de cana..
303
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
lineares é feita através de um compasso, com 2 metros de raio. O comprimento aí apurado é multiplicado pelo valor do metro. Porém, esse valor só
será conhecido pelo trabalhador quando este recebe o hollerit, no final do
mês, após a transformação do valor da tonelada em valor do metro.
Para a transformação do valor da tonelada em valor do metro linear11 é
realizado um complexo conjunto de operações matemáticas, que só podem
ser explicados se o objetivo for o de enganar os trabalhadores. Esta complexa
operação se dá desta forma:
1º são colhidas canas de três pontos do talhão, que devem representar toda a diversidade de canas existentes;
2º esta cana colhida destes três pontos é medida em metros e
deve ter o mesmo comprimento, para não afetar a média;
3º um caminhão, chamado de campeão, é enchido com a cana
colhida destes três pontos;
4º o caminhão é pesado na balança da usina;
5º depois de aferido o peso do caminhão que transportou esta
amostra, este peso é dividido pela quantidade de metros de
cana que foram colhidas em 1º., obtendo-se desta divisão a
quantidade de quilos de cana contidas em um metro;
6º divide-se o valor da tonelada de cana por mil e obtém-se o
valor do quilo de cana em Reais;
7º multiplica-se o valor obtido em 6º. (valor do quilo de cana
em Reais) pelo valor obtido em 5º (quantidade de quilos
de cana contida em um metro), obtém-se assim o valor do
metro de cana em Reais.
Verifica-se, desta forma, que o pagamento por produção praticado na
cana é completamente diferente do pagamento por produção ainda efetuado
em outros setores de produção, tais como indústria, comércio e serviços,
que pagam por peça e o valor desta é previamente conhecido pelos trabalhadores antes da realização do trabalho. Esta complexidade de cálculos,
absolutamente incompreensível pelos trabalhadores, reveste, com uma aura
falsamente científica, um procedimento lesivo aos trabalhadores.
11 No Estado de São Paulo desde a Greve de Leme de 1986 ficou convencionado o pagamento dos trabalhadores por preço da tonelada de cana convertido em preço do metro de cana. Esta conversão é feita
através de um método de amostragem utilizando-se um caminhão de carregamento de cana, que é
chamado de campeão. Este caminhão depois de enchido com cana de três pontos do talhão é pesado na
usina e a partir desta pesagem converte-se o valor da tonelada em valor do metro.
304
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Em apenas um sindicato no Estado de São Paulo, o Sindicato dos Empregados Rurais de Cosmópolis, o sistema de conversão de valor da tonelada
de cana para valor do metro linear é realizado através do método do talhão
fechado. Neste sistema o sindicato fiscaliza e participa da conversão, porque
conseguiu:
i) instalar um computador próprio junto a balança da usina;
ii) o fornecimento pelas usinas dos mapas dos talhões, porque assim
é possível conhecer a quantidade de metros de cada talhão;
iii)que os caminhões transportem para pesagem, cana de um único
talhão por viagem;
iv)que a usina divulgue pela manhã, no início do corte o valor do
metro de cana e;
v) que a usina pague os trabalhadores pelo valor mais alto; pelo
valor anunciado pela manhã, ou pelo valor definido após pesagem de toda a cana do talhão (NOVAES, 2007).
Segundo o SER de Cosmópolis, a introdução do talhão fechado significou
um aumento de cerca de 30% na remuneração dos trabalhadores (NOVAES,
2007). Há outras usinas em São Paulo que declaram praticar o talhão fechado.
Mas, nestas o talhão fechado não é fiscalizado pelos trabalhadores e, desta
forma, a possibilidade de roubo permanece.
Embora o sistema de pagamento dos trabalhadores pelo método do
talhão fechado, com controle dos trabalhadores, tal como empregado pelo
SER de Cosmópolis, seja mais avançado para coibir o roubo no pagamento
dos trabalhadores, ele continua sendo um sistema de pagamento por produção. Sendo um sistema de pagamento por produção ele mantém o os
mecanismos de pressão sobre os trabalhadores. O pagamento por produção
que está na causa das mortes por excesso de trabalho (ALVES, 2006, 2007
e 2008). Portanto, a melhoria das condições de trabalho dos cortadores de
cana, impõe a eliminação do pagamento por produção.
4 Propostas de políticas públicas
As políticas públicas para a melhoria das condições de trabalho do corte
de cana devem apontar, como dissemos, para o desenvolvimento sustentável12 e para isto será necessário:
12 Adota-se aqui os três pressupostos básicos do desenvolvimento sustentável: viabilidade econômica
da produção; preservação e melhoria das condições ambientais e a melhoria das condições de vida e
trabalho dos trabalhadores e da população em geral, submetidos ao critério transgeracionalidade.
305
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
a) o fim da queima de cana; e a
b) completa mecanização do corte de cana crua.
Estas duas medidas, porém, contam com a oposição de sindicatos de
trabalhadores e de usineiros.
A mecanização sempre foi um problema para os sindicatos dos trabalhadores, na medida em que esta reduz postos de trabalho e, os reduzindo,
reduz o poder de barganha e reduz a arrecadação, que ainda se baseia,
fundamentalmente, na contribuição confederativa.
Do lado dos usineiros a supressão da queima através da mecanização, além
de envolver novos custos, ainda não está tecnicamente completamente resolvida.
Existem problemas, tais como: a ainda reduzida longevidade do canavial quando
submetido ao corte mecânico, a ocorrência de novas pragas e o não aproveitamento da palha para geração de energia elétrica, que retardam a mecanização.
Esses problemas técnicos elevam os custos da produção mecanizada e, quando
comparada com a forma de trabalho manual, de elevada produtividade e baixa
remuneração, fazem com que usineiros e fornecedores prefiram o corte manual.
Sugestão: rever este parágrafo para melhor compreensão da mensagem
Isto significa que, embora baseados em argumentos diferenciados, parte
dos sindicatos de trabalhadores, quanto parte dos usineiros, opõem-se à
mecanização. Porém, como o fim da queima e a mecanização são reivindicações do conjunto da sociedade, baseada na necessidade de apontar para
o desenvolvimento sustentável, a implementação destas duas medidas
necessitará de negociações. Estas para ocorrerem, deverão contar com a
participação de todos os envolvidos: o conjunto da sociedade, os sindicatos
de trabalhadores, os usineiros e o Estado.
A participação do Estado, no Brasil, é questionada, por dois motivos: o
primeiro, é que o Estado, nos três seus níveis e nos seus poderes, é bastante
permeável aos interesses do agronegócio. O segundo motivo é a respeito do
nível em que o Estado deverá estar representado (se Federal, estadual ou
municipal) Isto porque questões relacionadas à emprego e ao meio ambiente,
têm maior impacto a nível local e regional do que a nível federal.
O que tem que se colocar em foco, para o estabelecimento de políticas
públicas compensatórias de empregos que foram diminuídos com o processo de mecanização é o ritmo da mecanização, que deverá se dar no mesmo
ritmo com o da criação de novos postos de trabalho. A adequação dos ritmos
entre a adoção de novas tecnologias e o estabelecimento de políticas públicas
compensatórias aos empregos perdidos é um dos resultados fundamentais
do processo de negociação.
306
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Do lado dos empresários, é necessário um tempo para a adoção do fim
da queima de cana, porque a mecanização requer a introdução de um novo
sistema de corte. Este novo sistema é composto por máquinas e trabalhadores qualificados para esta operação. Do lado dos sindicatos de trabalhadores,
é necessário que a eliminação de postos de trabalho pela mecanização se
dê no mesmo ritmo da criação de novos empregos, o que requer tempo
necessário para qualificação do trabalhador e seu re-emprego.
No Estado de São Paulo existem, aproximadamente, entre 180.000 e
250.000 trabalhadores cortando cana13, sendo que deste total, aproximadamente 70%14, são migrantes pendulares. O grande número de migrantes
temporários faz reduzir o contingente de trabalhadores que necessitarão de
políticas compensatórias, estimado entre 54.000 e 75.000 trabalhadores.
Para os migrantes pendulares que querem permanecer em suas regiões
de origem, o fundamental é que haja nestas regiões outras políticas públicas. Estas devem contemplar inevitavelmente a Reforma Agrária porque a
impossibilidade de acesso à terra e o processo de expulsão que estão na
causa da expulsão e da emigração pendular.
Também Serão necessárias, nas regiões de origem, outras políticas públicas compensatórias, que assegurem os meios para que os trabalhadores
se sustentem com a agricultura familiar. Mas estas políticas deverão ser
localmente e regionalmente pensadas e negociadas entre os atores sociais
e não cabem neste texto, cujo foco é a proposição de políticas públicas compensatórias em São Paulo.
4.1 Políticas públicas compensatórias em São Paulo
1 qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que
estes ocupem os novos postos de trabalho gerados pela
mecanização;
2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de
trabalho e renda para os trabalhadores desempregados pela
mecanização.
13 Não há números precisos sobre a quantidade de trabalhadores na atividade de corte de cana. Para isto seria
necessário que as empresas fornecessem tais dados, porque a captação de informações sobre trabalhadores
temporários e migrantes é imprecisa pelos instrumentos de pesquisas existentes. Do lado dos empresários só
há a divulgação de dados sobre o número de trabalhadores formais, como existe uma elevada terceirização
e uma elevada informalidade na contratação destes trabalhadores, estes dados são parciais.
14 A quantidade de migrantes e, dentre estes os pendulares, isto é, aqueles que vêem para safra e retornam
na entre-safra, é calculada em 70% pelo Serviço da Pastoral do Migrante de Guariba.
307
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
4.1.1 Justificativas e viabilidade
1 - qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que estes
ocupem os novos postos de trabalho gerados pela mecanização.
As usinas alocam suas máquinas colheitadeiras em frentes de corte
mecanizado. Estas frentes de corte são áreas próximas, onde toda a cana
está apta ser cortada mecanicamente numa mesma época (semana ou mês).
Nestas frentes de corte estão concentradas todas as máquinas colheitadeiras e as demais máquinas, que lhes dão apoio. Em cada frente de corte
mecanizado são alocados conjuntos de 4 ou 5 máquinas colheitadeiras e
um outro conjunto de máquinas e equipamentos, que lhes dão apoio. Este
outro conjunto é composto de:
• caminhão oficina, responsável pelo conserto de todas as máquinas
operantes na frente de trabalho, conduzido por um motorista, e que
trabalha com um mecânico qualificado e mais dois ajudantes;
• caminhão comboio, que faz o abastecimento de óleo combustível
e óleo lubrificante em todas as máquinas da frente;
• caminhão pipa, que tem que estar sempre presente, quando se
opera com cana crua, onde a presença de palha aumenta o risco
de incêndios;
• trator de esteira, que auxilia as colheitadeiras em terrenos com
risco de atoleiros e;
• veículo de ligação campo/usina, responsável pelo suprimento do
campo com peças e pneus sobressalentes.
Para a operação de todas estas máquinas são necessários, cerca de, 66
trabalhadores diretos15 por frente de corte.
Considerando que a produção de cana em São Paulo atingirá 516.000.000
toneladas e 6.000.000 de hectares na safra 2009/2010, a mecanização
completa requererá 1.194 máquinas. Como cada grupo de 4 máquinas gera
66 empregos diretos, esta mecanização gerará 78.800 novos postos de trabalho. Como a mecanização em São Paulo, segundo a UNICA, atingirá nesta
safra a 50% da cana colhida, logo, os novos postos de trabalho gerados pela
mecanização exigirão 39.400.
15 Este cálculo se baseia em jornada de trabalho de 6 horas diárias como determina a Constituição de
1988, para empresas que operam diuturnamente, e na necessidade de trabalhadores adicionais para
suprir as pausas e afastamento de trabalhadores com isto cria-se a necessidade de:: 20 operadores de
colheitadeiras; 20 mecânicos e auxiliares; 10 operadores de caminhões comboios; 10 operadores de
caminhões pipa e 6 operadores de trator esteira, além de operadores que operam veículos leves, que
transportam peças e material sobressalente às máquinas operadoras de cada frente de corte.
308
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Considerando a Política Pública 1 (Qualificação dos trabalhadores
desempregados pela mecanização), esta deverá significar dotá-los de habilidades técnico-cognitivas e práticas. A qualificação em habilidades técnicocognitivas passa pela escolaridade (mínima de 8 anos ou equivalente). Parte
dos trabalhadores já detêm esta escolaridade, porque uma das políticas públicas que deu certo nas décadas de 80 e 90 foi a da massificação do ensino.
Porém, outra parcela de trabalhadores ainda não detêm esta escolaridade e
a política de qualificação aqui proposta deverá assegurá-la. Essa qualificação de trabalhadores em habilidades técnico-cognitivas poderá ser objeto
de parcerias entre usinas, onde estes trabalhadores estão empregados, e
instituições de ensino público próximas.
As habilidades práticas requerem a qualificação destes trabalhadores
nos locais de trabalho, tanto nas usinas, demandantes destes trabalhadores,
quanto nas fábricas produtoras de tais equipamentos e interessadas nas suas
vendas. Tanto para a qualificação técnico-cognitiva quanto para a qualificação prática para o trabalho poderão ser proporcionadas através de parcerias
entre usinas, instituições de ensino e empresas fornecedoras de máquinas
agrícolas. Para isto, será necessário o estabelecimento de negociações entre
estas empresas e instituições que disponibilizem financiamentos.
O financiamento para a qualificação profissional deverá ter duas finalidades: a primeira, para permitir a liberação do trabalho aos cortadores de cana
para que estes possam se qualificar, porque é impossível cortar 12 toneladas
de cana durante o dia e estudar durante a noite. A segunda finalidade, para
arcar com os custos advindos do processo de qualificação, como aquisição
de materiais, equipamentos e investimentos em recursos humanos.
A questão do financiamento será, obviamente, um calcanhar de Aquiles
desta política pública. As entidades patronais atribuem ao Estado o dever
da qualificação e o Estado e os sindicatos atribuem este ônus às usinas. O
Estado e os sindicatos defendem, que os recursos do Programa de Assistência
Social (PAS)16 sejam usados para este fim. As usinas não aceitam, porque
contestam a existência do PAS, embora a lei continue em vigor e não seja
cumprida. Desta forma, o pagamento pela qualificação deverá ser objeto de
negociações entre sociedade, Estado e Usinas.
16 PAS - Programa de Ação Social, existente em lei desde 1937, que determina a aplicação de 1% do faturamento em cana e açúcar e 2% do álcool.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho
e renda para os trabalhadores desempregados pela mecanização
Esta política pública compensatória destina-se a geração de trabalho e
renda para os trabalhadores desempregados, que não serão admitidos nos
empregos gerados pela mecanização do corte da cana. Esta política objetiva
destinar as áreas que não poderão permanecer ocupadas com cana, após a
mecanização, ou para a produção de produtos alimentares em propriedades familiares, ou para a conversão destas áreas em reservas ecológicas de
proteção permanente.
O Estado de São Paulo terá 6 milhões de hectares de cana plantados, na
safra 2009/2010, porém, segundo esta política, terá de deixar de utilizar,
aproximadamente, 20% de toda esta área. Isto porque, 20% da terra hoje
ocupada com cana em São Paulo, segundo o IEA (Instituto de Economia
Agrícola do Estado de São Paulo) está em áreas impróprias à mecanização,
devido a: declividade superior a 12%; existência de acidentes pedológicos
(buracos, pedras e vossorocas) e existência de limitações à regularidade e
comprimento dos talhões, impostas por cercas, cursos d’água etc.17 Desta
forma, 1 milhão de hectares hoje ocupados com cana serão liberados para
outros usos.
Uma parte destas áreas liberadas deverão ser utilizadas para assentamentos de reforma agrária para os trabalhadores que perderam seus
empregos na colheita de cana. Em um milhão de hectares é possível o assentamento de 30.000 famílias (considerando um módulo rural médio de
30 hectares). Em um lote deste tamanho cria-se, pelo menos, 2,5 empregos
diretos, o que poderá gerar 75.000 novos postos de trabalho.
O aumento da produção de cana no Estado de São Paulo está pondo em
risco a segurança alimentar estadual, porque grande parte dos alimentos
aqui consumidos estão vindo de regiões mais distantes. Desta forma, urge
que as áreas de assentamento rural sejam direcionadas para a produção
de alimentos e não para converterem-se em novas áreas produtores de
cana, como, infelizmente, vem ocorrendo em alguns assentamentos de São
Paulo.
A conversão de áreas de assentamento em áreas de produção de cana
está acontecendo devido a carência de instrumentos de políticas públicas
agrícolas para pequenas propriedades familiares assentadas pela Reforma
17 Para o corte mecanizado é necessário, além de baixa declividade e eliminação de acidentes pedológicos,
que os talhões sejam longos e retangulares, para evitar excesso de manobras das máquinas, o que eleva
o gasto com combustível e necessidade de manutenção.
310
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Agrária. Desta forma, é necessário que as áreas de cana destinadas a assentamentos sejam amparadas por políticas agrícolas para a pequena produção
familiar de alimentos.
Políticas Públicas para a produção familiar de assentamentos produtores
de alimentos:
• políticas de incentivo à agroindustrialização de produtos alimentares;
• políticas de incentivos a compras institucionais de prefeituras e
governos estaduais e mesmo federal dos produtos alimentares
produzidos pela produção familiar;
• políticas para a venda direta regional, evitando-se a elevada intermediação;
• política de crédito específica para produtos alimentares;
• política de qualificação profissional para converter cortadores de
cana em produtores familiares de alimentos seguros.
Desta forma, a política de conversão de terras desocupadas pela cana
em assentamentos rurais de reforma agrária resolve, a um só tempo, dois
dos problemas apontados acima: a geração de postos de trabalho e a insegurança alimentar paulista.
Em algumas regiões de São Paulo, com baixa cobertura de mata nativa
e com elevados problemas hídricos resultantes do desmatamento, poderão
preferir converter estas áreas desocupadas pela cana em reservas ecológicas
de proteção permanente, através da restauração da mata nativa.
A recomposição ambiental, dependendo da forma de manejo, também
pode criar novos postos de trabalho, tais como: coleta e produção de mudas
de árvores nativas; replantio destas mudas e na manutenção desta vegetação.
Ou seja, a destinação das áreas liberadas pela cana em áreas de reservas
ecológicas não é incompatível com a de geração de trabalho e renda.
O que é necessário é que a sociedade decida localmente o que vai fazer
com as áreas, que não mais serão ocupadas com cana. O destino que estas
áreas terão, deverão ser socialmente e localmente decididos, de forma a gerar
trabalho e renda, segurança alimentar e recomposição ambiental. Tanto a utilização destas áreas em assentamentos de produtores de alimentos, quanto
em reservas ecológicas são destinações legítimas, não excludentes.
Em relação ao uso do solo, a Constituição Federal já assegura aos municípios a prerrogativa de legislarem sobre isto, porém, este direito constitucional ainda não é usufruído pelos municípios brasileiros, que, no máximo,
311
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
apenas regulamentam o uso do solo urbano. Acreditamos, que a sociedade,
tomando para si a tarefa de destinar o uso social para áreas desocupadas
com cana, crie a prática de vir a decidir sobre o uso do solo rural, determinando os usos agrícolas e não agrícolas necessários ao desenvolvimento
sustentável de sua área não urbana.
4.1.2 Síntese das propostas de políticas públicas compensatórias
1 qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que estes
ocupem os novos postos de trabalho gerados pela mecanização;
2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho
e renda para os trabalhadores desempregados pela mecanização.
Como desdobramento de 1 (qualificação de trabalhadores cortadores
de cana) propõe-se:
a) o estabelecimento de fóruns de discussão e negociação locais
e estaduais visando: adequar o ritmo da mecanização à qualificação e determinar a distribuição de responsabilidades pela
qualificação;
b) elaboração de um Plano Estadual de Qualificação Profissional
de Cortadores de Cana.
Como desdobramento de 2 (destinação das áreas desocupadas pela cana
para projetos de trabalho e renda), propõe-se:
1) a localização das áreas, em cada município, que não poderão
ser ocupadas com cana, devido a problemas técnicos e de
uso do solo;
2) criação de fóruns sociais, com a participação do Estado (nível
municipal e estadual), dos sindicatos de trabalhadores, dos
movimentos de luta pela terra, de entidades de defesa do
meio ambiente, de usinas e fornecedores de cana, objetivando
determinar as possibilidades de reconversão destas terras e
das formas de financiamento para estes usos e;
3) elaboração do Plano de Reconversão Produtiva de áreas de
cana em outros usos, com elaboração de Política de Qualificação dos Trabalhadores cortadores de cana em gestores e
produtores de reservas ecológicas locais.
312
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
4.2 Adoção de medidas imediatas para mudança das relações de trabalho em regiões
canavieiras
O fim da queima com a total mecanização do corte só ocorrerá se usineiros e fornecedores de cana aderirem ao protocolo de intenções do Governo
estadual. Neste, o fim da queima e a mecanização se dará em 2014, nas áreas
mecanizáveis, e em 2020, nas não mecanizáveis. Dado este intervalo de
tempo, propomos que se iniciem as políticas propostas em 1 e 2 e, se adote
de imediato o que se segue, visando a introdução de uma nova Política de
Relação de Trabalho:
I – Fim das terceirizações com o contrato direto de trabalho, sem
intermediários, entre usinas/fornecedores de cana com os trabalhadores;
II - Introdução do controle da produção com base na quadra fechada,
sob controle dos trabalhadores;
III – Fim do pagamento por produção, com a introdução do pagamento de
salário fixo, baseado em horas trabalhadas para todas as atividades
agrícolas e não agrícolas do Complexo Agroindustrial Canavieiro.
As medidas I e II podem ser adotadas imediatamente, mas a III, o fim
do pagamento por produção, necessita ser negociada entre as partes, sindicatos e usinas. Além disto, o fim do pagamento por produção dispensará
a introdução da quadra fechada, porque a quadra fechada embora menos
sujeita a roubo, continua sendo forma de pagamento por produção e será
eliminada pela terceira medida.
O fim do pagamento por produção significa a substituição desta cruel
relação de trabalho, por uma relação na qual os trabalhadores sejam remunerados pelo tempo dedicado ao trabalho.
O objetivo da mudança nas relações de trabalho é impedir a continuidade de um processo que aleija e mata os seus trabalhadores. Isto só poderá
acontecer, quando cessarem os mecanismos de super-exploração dos trabalhadores e nesta direção é que se justifica os três itens colocados acima:
fim da terceirização, implantação do talhão fechado e fim do pagamento
por produção.
Conclusão
Acreditamos que é crucial que a sociedade aproveite esta fase expansiva
do Complexo para apresentar suas propostas na direção do desenvolvimento
sustentável. Nos momentos de expansão, em que está havendo crescimento
313
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
dos lucros, a obtenção de conquistas são mais frequentes do que nos períodos
de recessão. Desta forma, a sociedade não pode deixar que a expansão da
canavicultura seja decidida apenas pelos empresários, é necessário que as
demandas sociais sejam apresentadas e sejam implementadas, porque senão
teremos um novo ciclo de expansão igual aos anteriores, que provocaram
aumento dos passivos sociais e ambientais.
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315
Acre, desenvolvimentismo
e reservas extrativistas
Introdução
Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior
O Estado do Acre localiza-se no extremo ocidental da Amazônia brasileira e faz fronteira com a Bolívia e o Peru. Na segunda metade do séc. XIX,
foi ocupado por brasileiros e, na primeira década do séc. XX, incorporado
definitivamente ao território nacional do Brasil. A Região Amazônica é cada
vez mais representada como internacionalmente estratégica, pois abriga a
maior floresta tropical do mundo e é alvo de interesses relativos, por um
lado, à exploração de seus recursos naturais, incluindo a extraordinária biodiversidade, e, por outro, à manutenção do ameaçado equilíbrio ambiental
do planeta.
Do final do século XIX até meados do século XX, a principal forma de
ocupação econômica da Amazônia brasileira foi a empresa seringalista,
destinada à produção de borracha natural, a partir da extração do látex da
Havea brasilienses (popularmente conhecida como seringueira). A empresa
seringalista, ao mesmo tempo em que propiciou um modo de apropriação
de riquezas florestais de baixo impacto ambiental, pois pressupunha a manutenção da floresta em pé para extração do látex, afirmou-se a partir de
um modo de exploração da mão-de-obra que pode ser percebido como uma
das modalidades contemporâneas de trabalho escravo1.
1 A manutenção no mundo contemporâneo de formas de exploração da mão-de-obra que podem ser interpretadas como trabalho escravo, em suas várias modalidades e diferentes denominações (escravidão,
servidão, trabalho escravo, redução de pessoas a condições análogas à de escravo, trabalho escravo por
dívida, semi-servidão, trabalho forçado) é estudada por uma série de estudiosos. No Brasil, podemos
destacar Esterci (1994), Martins (1994), Figueira (2004), dentre outros.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A produção da borracha na Amazônia, desde seus primórdios, aconteceu
a partir do já bastante estudado sistema de aviamento (ALMEIDA, 1992;
CUNHA, 1946 e 1994; PAULA, 1991; TOCANTINS, 1979, v.I), que, em linhas
gerais consistia na manutenção da dependência do produtor direto,
no caso o seringueiro, através do fornecimento, a crédito, de bens de
consumo e instrumentos de trabalho. “O seringueiro ficava obrigado
a vender sua produção ao barracão do seringalista (dono do seringal) que lhe aviava (fornecia) as mercadorias de que necessitava”
(DUARTE, 1987, p.19, grifo do autor).
Assim, o seringueiro encontrava-se, via de regra, preso por dívidas que,
dificilmente, eram saldadas, pois a elas sempre eram acrescentadas novas
fontes de débitos, graças à manipulação do peso da borracha e das contas
relativas às despesas no barracão, tornando a produção sempre insuficiente
para suprir as dívidas já empenhadas. Para garantir o sistema, os seringueiros eram mantidos sob estrita vigilância, através de capangas contratados
para este fim, e severamente castigados ou mortos, nas tentativas de fuga
ou de burla do estabelecido (SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
A empresa seringalista brasileira, desde a década de 1910, passou por
várias crises, consequentes da concorrência internacional e, gradativamente,
foi perdendo importância na economia nacional. No último meio século, a
Amazônia tem sido marcada por políticas de desenvolvimento regional e
ambientais – às vezes complementares, quase sempre contraditórias entre
si – implementadas pelas várias instâncias do Estado, em aliança ou não
com o capital privado; com apoio técnico e financeiro ou não de grandes
agências internacionais de cooperação; contando ou não com a participação
de movimentos sociais e sindicais e de organizações não-governamentais.
O centro de nossa atenção, neste artigo, está em um modelo de Unidade
de Conservação, as Reservas Extrativistas, que surgiram com o movimento
socioambiental originado no Acre, como forma de enfretamento ao modelo
de desenvolvimento concebido pelos governos ditatoriais implantados no
Brasil a partir de 1964. O modelo de desenvolvimento ditatorial pode ser
associado ao desenvolvimentismo, pois se pautava pela intervenção estatal
na economia, visando garantir a industrialização do país, concebida como
condição para o crescimento econômico (MANTEGA, 1984).
Para a Amazônia brasileira, este modelo de desenvolvimento previa,
principalmente, sua integração à dinâmica econômica que se afirmava no
país, através de grandes projetos de desenvolvimento destinados à exploração mineral, florestal, agrícola e pecuária, visando ampliar a pauta de
318
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
exportações brasileiras e garantir matéria-prima e alimentos para a expansão
da indústria que acontecia, prioritariamente, no sudeste do país.
No caso específico do Acre, graças à sua proximidade do Peru e à possibilidade de construção de estradas que ligassem o estado aos portos do
Oceano Pacífico, no correr da década de 1970, o projeto era de pecuarização
da economia local (até então centrada no extrativismo da borracha e da
castanha), com vistas à derrubada de florestas para instalação de grandes
fazendas de gado bovino (SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
Neste artigo, buscamos, então, recuperar a trajetória de criação e constituição das duas primeiras experiências de Reserva Extrativista criadas no
Estado do Acre, a Reserva Extrativista do Alto Juruá e a Reserva Extrativista
Chico Mendes, procurando percebê-las como fruto da luta histórica de resistência do movimento dos seringueiros, de um lado, ao sistema de aviamento
e seus desdobramentos e, de outro, ao modelo de desenvolvimento baseado
na pecuarização.
1 O Vale do Rio Acre e o Vale do Juruá
Os Vales dos Rios Juruá e Acre, apesar de comporem o mesmo Estado da
Federação, são marcados por significativas diferenças ambientais, históricas
e sociais. Uma diferença ambiental relevante e com consequências imediatas nas atividades extrativistas, é a pequena quantidade de castanheiras
no Vale do Juruá, o que faz com que a apropriação de produtos da floresta
seja, prioritariamente, através do corte das seringueiras para extração do
látex. É importante destacar também o fato geográfico de que os rios Juruá
e Purus (o rio Acre é afluente deste rio) correm paralelos e vão desaguar
no rio Amazonas, já no estado do Amazonas. Esta característica geográfica
sempre foi determinante para a dificuldade de comunicação entre as duas
regiões e um relativo isolamento mútuo. No início do século XX, uma viagem
entre Rio Branco (capital do Acre), localizada nas margens do rio Acre, e
Cruzeiro do Sul, localizada nas margens do rio Juruá, poderia chegar a 2
meses de duração e, no período das secas, quando a navegabilidade dos
rios diminui, tornava-se praticamente impossível. Este elemento geográfico foi significativo na constituição de histórias diferenciadas entre as duas
regiões do Estado.
A partir da década de 1960, outro interveniente histórico tornou-se
relevante: as posições político-ideológicas da Igreja Católica Apostólica
Romana passam a ser bastante distintas. No Vale do Rio Acre, na Prelazia
de Cruzeiro do Sul, com marcante presença de padres franciscanos de ori319
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
gem alemã, foi mantida uma linha pastoral que, nos confrontos internos da
Igreja Católica, passou a ser reconhecida como conservadora. Já no Vale do
Rio Acre, na Prelazia de Rio Branco, constatava-se a crescente influência
de uma orientação pastoral identificada com o que viria a ser chamada de
corrente progressista da Igreja, associada à, então em formação, Teologia
da Libertação.
1.1 O Vale do Rio Acre
A Igreja no Vale do Rio Acre, na década de 1970, se caracteriza pelo
estímulo à formação de Comunidades Eclesiais de Base, com forte ênfase na
organização e atuação partidária e sindical de seus membros. Desta forma,
há uma nítida aproximação de padres, freiras e agentes pastorais com os
núcleos de resistência de seringueiros à exploração da mão-de-obra no sistema de aviamento2 e, principalmente, às ameaças de expulsão da floresta
advindas com a nascente perspectiva de pecuarização do Acre (PAULA, 1991;
ALMEIDA, 1992; SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
É também no Vale do Rio Acre que se inicia a expansão das Rodovias,
marca típica dos Planos de Integração Nacional (PIN), implementados a
partir do final dos anos 1960, pelo regime ditatorial. A BR 317, que liga o
Brasil ao Peru, segue paralela ao Rio Acre, ligando as sedes dos municípios
de Rio Branco, Senador Guiomard, Capixaba, Xapuri, Epitaciolândia, Brasiléia
e Assis Brasil. Já a BR 364, cujo trajeto final liga as cidades de Rio Branco e
Cruzeiro do Sul, é marcada por dificuldades operacionais decorrentes do
grande número de rios que deve atravessar e da ausência de pedras no entorno de seu trajeto para confecção do asfalto e de sua base. Tem boa parte
de seu percurso ainda sem asfaltamento, tornando-se trafegável somente
no período das secas.
Desta forma, as estradas que efetivamente ligam o Acre ao restante do
país e que, desde a sua construção lograram produzir um grande interesse
em empreendimentos pecuários, chegaram primeiro ao Vale do Rio Acre e,
nesta região, provocaram processos de desmatamento, com consequentes
expulsão de seringueiros da floresta e conflitos sociais daí resultantes.
Os desmatamentos e expulsão de seringueiros estavam diretamente
relacionados com o projeto do Governo Federal, encampado pelo Governo
2 Como a empresa seringalista, desde o final da Segunda Grande Guerra (1939), gradativamente, perdia sua
importância econômica, no Vale do Rio Acre, principalmente, o controle sobre a mão-de-obra seringueira
passou por processos relaxamento, o que permitiu uma autonomização crescente dos seringueiros e
o estabelecimento de um modo de vida próprio, ampliando a resistência ao sistema de aviamento
(SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
320
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
do Estado do Acre, de pecuarizar a economia acreana. Houve uma intensa
campanha de divulgação no centro-sul do país que estimulava a compra de
terras e incentivava o investimento na pecuária, a partir de slogans como
“Amazônia: uma terra sem homens para homens sem terra” ou “Produza
no Acre e exporte pelo Pacífico”, slogan esse que associava terras baratas,
incentivos fiscais e a construção de estradas que ligariam a Amazônia ocidental aos portos peruanos do Oceano Pacífico.
A chegada dos primeiros fazendeiros vindos de outras regiões, denominados localmente (independentemente de sua origem) de “paulistas”, e as
consequentes derrubadas de trechos da floresta, chamadas de “limpeza de
áreas”, para implantação de pastagens redundaram em amplos processos de
expulsão de seringueiros que sobreviviam nas e daquelas florestas.
A “limpeza de área” implicava, então, em retirar árvores, animais e
pessoas. Todo este processo gerou movimentos de resistência por parte dos
seringueiros e resultou em intensos e prolongados conflitos pelo controle
e uso de territórios. Perguntado sobre estes conflitos, Osmarino Amâncio,
líder seringueiro, referindo-se ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Brasiléia e ao movimento de resistência às derrubadas de floresta realizado
pelos seringueiros, comandado inicialmente por este Sindicato e denominado “empate”, lembra que
“foi fundado o Sindicato em 1975 e o primeiro empate se deu em
1976. No Seringal Carmem, que tem uma história muito bonita, esse
empate começou com 16 famílias e terminou com 92. Então, teve uma
adesão. E o que foi mais importante é que o empate durou dois meses
de conflito, de enfrentamento, trincheiras dos dois lados. Enfrentouse o exército, polícia, tudo e foi vitorioso. Então, isso foi assim como
um querosene que pingou e espalhou, porque aí virou... deu uma
infecção de empate na Amazônia, no Acre, principalmente, porque aí
foi exportado os empates pra Boca do Acre, pra Assis Brasil, Xapuri.
Aí eles não podiam mais vencer, porque a resistência começou em
Brasiléia, já organizada. Porque antes a resistência era desorganizada.
Mas aí, com os sindicatos, o sindicato só organizou essa resistência”
(Entrevista realizada pelo autor do artigo em 5 ago. 1999).
Estes conflitos, com os empates, assumiram um contorno local e o nome
dado a esta modalidade de resistência foi criado por seus próprios agentes,
mais precisamente, segundo Osmarino Amâncio, pelo Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, Wilson Pinheiro, líder sindical
que viria a ser assassinado em 1980.
321
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Foi o Wilson Pinheiro quem surgiu com a ideia do empate... O quê que
era o empate? Empatar significa: nós, para sobreviver aqui na floresta, nós
não precisamos desmatar, nos não precisamos fazer o desmatamento. Mas,
também, se eles desmatarem nós não temos como ficar aqui, porque o que
nós sabemos fazer é cortar seringa, quebrar castanha, trabalhar no extrativismo. Ninguém está adaptado à agricultura. Então, vamos empatar: nem nós
derrubamos nem eles derrubam, então está empate. Nós não derrubamos,
mas eles também não derrubam. Só que para nós era uma vitória, porque se
a floresta ficasse em pé, nós sobrevivíamos (Entrevista realizada pelo autor
do artigo em 05 ago. 1999).
Nos conflitos resultantes da resistência à expulsão e contra a derrubada
da floresta, os seringueiros contaram com o apoio da Igreja Católica e com
a presença da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), através de seu delegado sindical, João Maia, que foi deslocado
para o Acre com a missão de contribuir para a organização de sindicatos de
trabalhadores rurais e, posteriormente, da Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Acre – FETACRE.
Entre 1975 e 1977 foram fundados sindicatos nos sete municípios que,
então, existiam no Acre (PAULA, 1991; SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Concomitantemente à constituição do movimento sindical e das Comunidades
Eclesiais de Base (CEB), aconteceu a discussão sobre a criação do que viria
a ser o Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo Osmarino Amâncio, “tanto
fazia o cara ser da Igreja, como ser do PT, como ser do sindicato, na hora de
discutir estavam ali as mesmas pessoas. Então, quando fazia uma reunião,
para não perder tempo, fazia logo as reuniões do sindicato, do partido e da
Igreja” (Entrevista realizada em 4 ago. 1999).
No PT, além dos militantes ligados à Igreja Católica, podemos destacar a
presença de militantes vinculados a grupos e partidos clandestinos, que se
abrigavam sob sua legenda. Dentre estes, no Acre, o Partido Revolucionário
Comunista (PRC) teve bastante influência e contou entre seus membros com
Chico Mendes e Marina Silva, por exemplo. Toda esta mobilização política e
social era mais expressiva no Vale do Rio Acre, tendo os municípios de Brasiléia e Xapuri, que estavam na rota de expansão da BR 317­, como principais
centros das lutas dos seringueiros.
O movimento de seringueiros, ao insurgir-se contra os desmatamentos
demandados para implantação da pecuária extensiva, buscava garantir a
manutenção das condições da reprodução social e econômica da categoria. A
luta contra os desmatamentos, mesmo que inicialmente de forma não inten322
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
cional, acabou constituindo-se em um apelo forte de preservação ambiental,
o que redundou numa aproximação cada vez maior com os movimentos
ambientalistas que se fortaleciam em todo o mundo na década de 1970.
Este movimento contou com muitos aliados e aspectos conjunturais
favoráveis, conseguindo um nível bastante significativo de organização,
de capacidade propositiva, de articulação com outras forças sociais e
de obtenção de resultados. Os seringueiros ampliaram a eficácia de seu
movimento quando passaram a incorporar, em meados dos anos 1980, o
discurso ambientalista, para justificar suas lutas e como instrumento de
consolidação de alianças políticas para além da Região Amazônica, articulando seus interesses particulares e locais com características universais e
mobilizações globais.
Os “empates” tornaram-se emblemáticos para a defesa da floresta e,
na busca de ampliar suas alianças e conseguir apoio externo para suas
reivindicações, o movimento dos seringueiros do Vale do Acre passou a
incorporar a questão ambiental no cerne da justificação de suas posições
na luta travada na região.
Segundo Osmarino Amâncio:
quando esse movimento surgiu, agente não sabia o que era essa
história de ecologia, essa história de defender o meio ambiente. Aí
nós descobrimos que os ambientalistas e os ecologistas estavam
querendo uma coisa, porque eles explicavam pra gente que se a mata
fosse desmatada ia aumentar a temperatura, o que eles chamam de
efeito estufa. Tinha uma camada de gelo acumulada não sei onde e
se o efeito estufa aumentasse a camada de gelo ia se dissolver e as
cidades na beira-mar iam ficar debaixo d’água, iam sumir, o mar ia
subir 12 a 14 metros, o sol... tinha um buraco na camada de ozônio.
A gente nem sabia o que diabo era isso, essas coisas. Eles vinham
falando essas coisas e a gente mandava depois eles trocarem em
miúdo, pra gente, o que que era isso... Então esse pessoal veio e, aí, a
gente passou a ir descobrindo que eles eram os aliados importantes.
Porque a nossa briga aqui era pela reforma agrária. Agente queria o
direito de ficar na terra (Entrevista realizada pelo autor do artigoem
05 ago. 1999).
O modelo de desenvolvimento econômico proposto para o Acre a
partir dos governos ditatoriais enfrentou uma oposição que, ao aliar-se
com o crescente movimento ambientalista, assumiu um caráter cada vez
mais propositivo e começou a elaborar alternativas de desenvolvimento
que incluíssem o extrativismo, a qualidade de vida dos extrativistas, bem
como, a preservação ambiental. É possível perceber que uma crescente
323
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
“ambientalização do conflito social”, pois, houve: “uma interiorização das
diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”. Essa incorporação
e essa naturalização de uma nova questão pública poderiam ser notadas
pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua
institucionalização parcial.” (LEITE LOPES, 2004, p. 17).
A partir desta organização interna e do conjunto de apoios obtidos junto
a movimentos e personalidades de outras regiões do país e do mundo, foi
possível realizar o I Encontro Nacional de Seringueiros, realizado em 1985,
em Brasília. Este encontro decidiu pela criação do Conselho Nacional dos
Seringueiros e teve, entre seus resultados, a elaboração da proposta de
criação das reservas extrativistas3.
1.2 O Vale do Juruá
Já na região do Vale do Juruá, o atraso na abertura de grandes estradas
fez com que a especulação imobiliária em torno das terras só chegasse
posteriormente. Assim, o processo de pecuarização da economia ainda
não é verificável no final da década de 1970 e durante a década de 1980; o
sistema de aviamento continua existindo; e, como não há aqui a chegada de
fazendeiros do sul (“paulistas”), os velhos “patrões”, como eram chamados os
seringalistas, permanecem no controle da maior parte das terras ou mantêm
prepostos ou arrendatários, também denominados de “patrões”. A economia
do Vale do Juruá continuava sendo dominantemente marcada pela extração
da borracha e pela persistência de práticas de exploração da mão-de-obra
semelhantes ao modelo dos seringais implantados no final do século XIX.
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, não era possível manter
mais o sistema de aviamento em sua integralidade, pois a perversidade do
sistema já havia sido por demais denunciada e as condições de manutenção
da exclusividade da compra de mercadorias necessárias para a sobrevivência
dos seringueiros no interior da floresta e da venda borracha no barracão do
“patrão”, já não mais existiam. Apesar disso, mesmo não havendo exclusivi-
3 As reservas extrativistas, posteriormente, tornaram-se uma categoria de unidade de conservação ambiental prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), do Ministério do Meio Ambiente,
criado pela Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2.000. O SNUC prevê dois grupos de unidade de conservação: Unidades de Proteção Integral (“preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto
dos seus recursos naturais” – BRASIL, 2000, p. 13) e Unidades de Uso Sustentável (“compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais” – BRASIL, 2000,
p. 13). Compondo o segundo grupo, a Reserva Extrativista é definida, no SNUC, como sendo: “(...) uma
área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e,
complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem
como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso
sustentável dos recursos naturais da unidade” (BRASIL, 2000, p. 17).
324
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
dade de negociação, ainda era muito comum a prática do endividamento dos
seringueiros, mantida através da conta desigual entre o que ele consumia
(mercadorias) e o que ele vendia (borracha e demais produtos florestais)
para o seringalista.
Numa região com fraca presença de órgãos fiscalizadores do Estado,
com dificuldades na difusão de informações e forte controle social e político
exercido pelos seringalistas, a exploração da mão-obra dos seringueiros
persistia através da cobrança da “renda”. Como lembra Franco (1994), a
capacidade dos patrões de fornecer as mercadorias diminuiu, em função
da crise da borracha, mas continuavam a cobrar renda de terras, das quais
em muitos casos, nem detinham a posse cartorial. Isto é confirmado por
Francisco Barbosa de Melo (Chico Ginu), Coordenador do Conselho Nacional
dos Seringueiros no Vale do Juruá e líder seringueiro naquela região desde
os anos 1980:
a cobrança da renda, que não era uma lei, era uma espécie de acordo
que tinha sido feito com os mateiros4 e depois foi tomando força de
lei... As pessoas que tinham título de terra, como umas empresas que
cobravam a renda no valor de 70.000 hectares de terra que era ocupado pelos seringueiros, sendo que documentado, com título definitivo
eles só teriam 30.000 hectares. Isso aconteceu muito. Os seringueiros
foram muito usados, com a cobrança de renda em terras da união, 60
a 90 quilos de borracha por estrada5 (Entrevista realizada pelo autor
do artigo em 9 nov. 2006).
No Vale do Juruá, os conflitos envolvendo seringueiros, no final da década
de 1970 e início da década de 1980, portanto, aconteciam majoritariamente
em função da persistência das práticas típicas do sistema de aviamento e/
ou pela cobrança de renda por parte dos seringalistas. Naquela região, a cobrança de renda sem uma contrapartida em termos de assistência, provocou
cisões nos acordos tácitos que garantiam a legitimidade daquela forma de
dominação. Esta seria, então, a expressão mais visível do conflito no qual
estavam envolvidos os seringueiros do Vale do Juruá.
Em 1976, foi criado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro
do Sul (SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Este Sindicato, inicialmente, buscou organizar a resistência ao pagamento da renda. No entanto, gradativamente
4 Especializado em abrir estradas de seringas (trilhas abertas na floresta ligando várias seringueiras) e
distribuí-las para os seringueiros.
5 Cada seringueiro explora, em média, três estradas de seringa. Normalmente, no verão, período de poucas
chuvas, cada estrada de seringa é percorrida de três em três dias, para o corte e colheita do látex. A renda
era cobrada anualmente e correspondia a aproximadamente um terço da produção.
325
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
os “patrões” conseguiram “comprar” os Delegados Sindicais através da
sublocação da cobrança da renda. Segundo Chico Ginu:
“Os seringalista tiveram muita ousadia, que era de comprar os delegados sindicais. Quando eu assumi nos anos 806, mas quando foi em
85 e 86 eu estava sozinho, pois eles compraram os outros delegados
todos, ou pelo contrário, eles tinham se vendido, que é como se chamava na época, aos patrões. Se comprava um delegado, normalmente
oferecendo emprego de cobrador de renda. Então, por várias vezes,
eles tentaram me comprar da seguinte forma: naquela época, daria
em torno de 60 a 90 toneladas de borracha, só de renda, eu ganharia
em torno de 15%, se eu recebesse a renda como delegado sindical, eu
receberia em torno de 15% do valor. A mesma coisa eram as contas, os
débitos. Então, eles passavam a tentar me convencer com isso. A gente
assina aqui e se tu for no seringal e dizer que o pessoal deve pagar a
renda, então nós te damos tantas toneladas de borracha (Entrevista
realizada pelo auto do artigo em 9 nov. 2006).
A cooptação da grande maioria dos Delegados Sindicais por parte
dos “patrões” enfraqueceu o movimento de resistência dos seringueiros
e desacreditou o Sindicato. O Conselho Nacional dos Seringueiros decidiu,
então, que deveria apoiar mais firmemente a organização da resistência dos
seringueiros no Alto Juruá. Segundo Chico Ginu:
Em 1988 chegou o Conselho Nacional dos Seringueiros. Em 1987, eu
tive algumas reuniões com o Mauro Almeida7 no interior dos seringais
e ele já me falava do Conselho Nacional dos Seringueiros e já falava
também nas reservas extrativistas, um tipo de reforma agrária dos
seringueiros, que tinha sido uma coisa criada pelo idealista Chico
Mendes. Aí o Chico Mendes pega o Macedo8 e bota o Macedo para ir
para o Juruá para trabalhar a proposta. Nessa época o Macedo cruza
com o Mauro e o Mauro me indica para o Macedo como o Delegado
Sindical que estava lá trabalhando. Eu não conhecia o Macedo, eu já
tinha ouvido falar do Macedo por rádio, porque ele trabalhava na
FUNAI nessa época, com comunidades indígena, e daí, eu pego uma
mensagem pelo rádio, do Macedo, para encontrar com ele no Bajé. Eu
digo: ‘eu não conheço esse cara, mas eu vou encontrar’. Tive que viajar
6 Chico Ginu se refere ao período em que foi eleito Delegado Sindical no Sindicato de Trabalhadores Rurais
de Cruzeiro do Sul.
7 Mauro Almeida é acreano e professor e pesquisador da UNICAMP. Sua tese de doutorado foi sobre os
seringueiros do Alto Juruá e vem atuando como assessor do Conselho Nacional de Seringueiros, desde
sua criação, com especial atenção ao movimento de seringueiros no Alto Juruá.
8 Antonio Luiz Batista de Macedo, atuou como indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e participou do processo de implantação do Conselho Nacional dos Seringueiros no Vale do Rio Juruá, tendo
sido o primeiro Coordenador daquela regional.
326
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
um dia por dentro dos rios alagados para poder encontrar. Daí nós
começamos os trabalhos com as comunidades (Entrevista realizada
pelo autor do artigo em 9 nov. 2006).
Com a presença de Antonio Macedo e o envolvimento de Chico Ginu, foi
criado o Conselho Nacional dos Seringueiros/Vale do Juruá (CNS/VJ), que
era uma regional do Conselho Nacional. Esta regional buscou articular o
que havia de resistência dos seringueiros e, em 1989, foi criada a primeira
associação de seringueiros, a Associação dos Seringueiros e Agricultores da
Bacia do Rio Tejo. Esta Associação conseguiu articular um financiamento do
BNDES para criação de micro-cooperativa, que pudesse garantir o fornecimento de mercadorias para os seringueiros no interior da floresta e, desta
forma, criar alternativas ao controle que os “patrões” ainda exerciam sobre
os seringueiros9. A criação da Cooperativa era um passo rumo ao objetivo
assumido pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, que era a criação das
Reservas Extrativistas. Segundo Chico Ginu, “nesse período de 89, nós já trabalhávamos totalmente com o propósito de criação da Reserva Extrativista”
(Entrevista realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006).
1.3 O processo de criação das Resex Chico Mendes e Alto Juruá
Enfrentamentos constantes, conflitos, “empates”, mortes e perseguições
intensas, levaram os seringueiros à re-significar sua identidade, então ligada ao empreendimento seringalista decadente e, portanto, desvalorizada.
Procuram, então, relacioná-la, cada vez mais, com a defesa da floresta,
apresentando-se como “guardiões da floresta” (ESTEVES, 1999, p. 231-238),
de forma que permitiu uma rápida articulação com movimentos ambientalistas e sociais locais, nacionais e internacionais.
A crescente ambientalização dos conflitos sociais (LEITE LOPES, 2004)
provocou a emergência de novas práticas e conceitos nestes mesmos movimentos, permitindo o surgimento do que hoje vem sendo chamado de
socioambientalismo.
Os movimentos sociais no Estado do Acre assumiram um forte papel na
consolidação do socioambientalismo, como movimento, e atuaram como
protagonistas na construção de uma modalidade de Unidade de Conservação
que se constituiu em uma novidade jurídica, que é a Reserva Extrativista.
9 Para uma análise detalhada do processo de criação desta cooperativa, dos passos dados e dos problemas
surgidos, ver Franco (1994).
327
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Em 1985, no I Encontro Nacional dos Seringueiros, a proposta de criação
das Reservas Extrativistas, que já vinha sendo discutida nos encontros de
base preparatórios, foi aprovada como uma das principais reivindicações dos
extrativistas ali presentes.10 A ideia era que, semelhantemente às Reservas
Indígenas, os extrativistas deveriam lutar para que o Estado brasileiro criasse
uma modalidade de legalização da ocupação de território que mantivesse a
propriedade da terra no Estado, mas fosse dada a concessão do direito de
uso às associações de extrativistas e estas manteriam sua forma tradicional
de uso do território.
Assim, seria implantado um novo modelo de reforma agrária: “a reforma agrária do seringueiro”. Este modelo se distingue das formas usuais
de reforma agrária por não contemplar a distribuição de lotes individuais
ou familiares de terras, além de incluir o compromisso dos membros das
associações beneficiadas com a prestação de serviços ambientais, garantidos através de planos de manejo dos recursos naturais, a serem definidos
coletivamente. Além disso, o órgão federal encarregado de gerir o processo
não seria o INCRA, mas o IBAMA, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
A proposta de reforma agrária do seringueiro é um mecanismo resultante
da ambientalização da luta pela permanência na terra e pela garantia de
acesso aos recursos naturais.
A primeira Reserva Extrativista do país foi a Reserva Extrativista do Alto
Juruá, criada em 23 de janeiro de 1990, pelo Decreto Presidencial nº 98.863,
abrangendo uma área de 506.186 ha, no recém emancipado município de
Marechal Thaumaturgo, desmembrado do município de Cruzeiro do Sul.
Chico Ginú, referindo-se a esta reserva afirma:
“foi nos anos 90, ela foi criada. Foi um trabalho muito difícil, que foi
tentar desenhar um modelo de reforma agrária para os seringueiros
com características ambientais, ninguém tinha... Então, ali não foi feita
nenhuma consulta pública, não foi feita nenhuma reunião comunitária, não foi feito nenhum trabalho preparatório, como a lei obriga
que seja feito hoje. Então, foi feita uma coisa assim, porque, ou fazia
daquele jeito ou então não saía. Porque não tinha nenhuma modalidade de reservas extrativistas. Daí, foi quando começou (Entrevista
realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006).
No dia 12 de março de 1990, portanto, no mesmo ano da anterior, foi
criada, pelo Decreto Presidencial nº 99.144, a Reserva Extrativista Chico
10 Apesar de ser denominado de Encontro Nacional dos Seringueiros, participaram do evento outras
categorias de extrativistas como quebradeiras de coco do babaçu, pescadores artesanais, ribeirinhos.
328
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Mendes, no Vale do Rio Acre, abrangendo 970.570 ha dos municípios de
Xapuri, Brasiléia e Assis Brasil.
As primeiras Reservas Extrativistas (RESEX) foram criadas em um momento em que o país passava pelo encerramento do processo de transição
dos governos ditatoriais para governos eleitos diretamente pelo voto popular.
O primeiro presidente eleito após a ditadura de 1964, Fernando Collor de
Melo, assumiu como diretriz de seu governo a orientação conhecida geralmente como neoliberal e que prevê o enxugamento do tamanho do Estado,
a redução de sua intervenção na economia e das políticas públicas.
Houve um incentivo inicial à constituição das Reservas Extrativistas,
em boa parte assegurado pelo processo de preparação da Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD)11,
prevista para ser realizada entre 3 e 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, o que fazia com que o Governo brasileiro, como anfitrião de evento tão
importante, tivesse que apresentar resultados significativos em termos de
iniciativas de defesa ambiental.
Mas, com o passar do tempo, predominou a concepção de que o Estado
deveria assumir um papel cada vez menos ativo na sociedade e de que,
com relação à garantia de qualidade de vida e de condições de produção
econômica no interior das Reservas Extrativistas, aos extrativistas restaria
a alternativa de buscar criar as condições de sua própria sobrevivência,
aprendendo a lidar com o mercado (experiências não existente anteriormente, pois as relações comerciais feitas com o mundo externo aos seringais
se davam por mediação dos seringalistas, do barracão). Hoje, enfrentam os
desafios próprios de qualquer iniciativa inovadora, buscando garantir as
condições para sua consolidação (PINTON E AUBERTIN, 1997, p. 268-283;
FRANCO, 1996, p. 50).
2 As Resex e os desafios contemporâneos: o modelo desenvolvimentista
não morreu e as ameaças da incorporação ao mercado
Os desafios de sobrevivência, num mundo hegemonizado pelo mercado e em situação de monetarização crescente da vida12, fazem com que as
pessoas se tornem mais dependentes do acesso ao dinheiro, para garantir
sua sobrevivência. A falta de apoio estatal, tanto no âmbito da fiscalização
11 Também conhecida pelos nomes ECO-92, Rio-92, Cúpula ou Cimeira da Terra.
12 Isto é, a sobrevivência individual e familiar torna-se cada vez mais dependente do acesso à moeda, forçando
as pessoas e grupos sociais a se dedicarem cada vez mais à produção de valores de troca, sobrando cada
vez menos tempo para a produção para o próprio uso (sobre valores de uso e de troca, ver MARX, 1983).
329
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
quanto do apoio às práticas produtivas, remete os extrativistas localizados
em reservas à sua própria sorte. Segundo Chico Ginu:
“Não existe nenhuma política pública adequada às populações tradicionais, que venha a possibilitar que as pessoas encontrem entre eles mecanismos de sustentabilidade econômica e social e ambiental, que evite,
que possa prevenir a aceleramento do desmatamento, provoque ação ao
meio ambiente e que, acima de tudo, venha a garantir uma vida digna para
quem está dentro da mata.” (Entrevista realizada em 9 nov. 2006).
A constituição das Reservas Extrativistas não é garantia definitiva de
que a conservação ambiental será efetiva em suas áreas de implantação. A
recente retomada do poder de investimento do Estado brasileiro, redunda
em retomada, também, de projetos desenvolvimentistas concebidos no período ditatorial e relativos à construção de infra-estrutura (principalmente
estradas e hidroelétricas) para garantir as condições de implementação de
grandes projetos econômicos no país e, em especial, na Amazônia. Retoma-se
a perspectiva de integração da Amazônia à dinâmica capitalista. No caso do
Acre, há uma ênfase na extração de madeira e na pecuária.
O momento político é outro. Indubitavelmente, há considerável ampliação das possibilidades de conservação ambiental, com a constituição, nos
últimos anos, do Sistema Nacional de Nacional do Meio Ambiente e de um
número considerável de Reservas Indígenas e demais Unidades de Conservação. No entanto, o efeito objetivo parece não mudar, pois os índices de
desmatamentos não diminuem de forma expressiva e não se verifica uma
alteração expressiva nos modelos de apropriação de territórios e de suas
riquezas naturais, carregados por fortes impactos ambientais e sociais.
Com a crescente monetarização da vida, em boa parte das situações,
o grande devastador não tem mais uma cara visível, como era o caso dos
“paulistas” e do apoio que recebiam nas políticas públicas, no final da década de 1970 no Vale do Acre. O devastador, hoje, está disfarçado em práticas cotidianas, movidas por motivos simples e imediatos, que permitem
transferir, sempre, a outrem (quase sempre um homem genérico, sem cara
e sem corpo: “o Homem está destruindo a natureza” (GONÇALVES, 2005) a
responsabilidade pela devastação. Assim, não se coloca em questão o modo
de vida. Há uma lógica que não permite enfrentar efetivamente as causas
do problema.
Por parte das populações locais, principalmente da crescente população
urbana, a demanda por desenvolvimento e modernização é cada vez maior
e legitima ações modernizadoras governamentais e da iniciativa privada.
330
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Estas ações, normalmente, implicam em concentração de renda e degradação ambiental.
As Reservas Extrativistas, aqui estudadas, têm sofrido um processo
crescente de pecuarização por dentro, na medida em que há forte oscilação
dos preços da borracha, da castanha e outros produtos da extração.
Não tendo garantidas outras possibilidades de ganho financeiro, os
extrativistas passam, gradativamente, a investir na criação de gado bovino.
É comum ouvir, entre os seringueiros, que a criação de algumas cabeças de
gado seria uma espécie de constituição de uma poupança para o enfrentamento de necessidades imediatas de dinheiro, pois há grande facilidade de
transformação do gado em papel moeda: é só colocar no varadouro13 e levar
para cidade que se obtém o dinheiro necessário e/ou desejado. Daí crescente
a solicitação, por parte dos seringueiros, da ampliação das áreas de desmate
no interior das Reservas, com vistas à ampliação da criação de gado.
Segundo Rosildo Rodrigues de Freitas, então Presidente do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia:
“Nós temos exemplo aqui de várias comunidades que estão com sua
colocação inteirinha e têm dificuldade até para tomar o café da manhã.
Já outros que desmataram a área deles inteirinha, eles têm o carro na
porta, eles têm o seu crédito, eles têm o seu filho estudando lá fora.
Isso dá uma contradição muito grande e às vezes isso está chamando
o próprio produtor a pensar desta forma: “eu não tenho nada ainda
porque não desmatei minha floresta, mas até quando vou poder continuar a fazer isso?” Isso a gente ouve todo dia. Isso eu ouço todo dia
aqui na minha mesa”. (Entrevista realizada em 18/08/2004).
Em função desta situação, Rosildo afirma ainda que:
“Nossos parceiros hoje estão dentro do Governo e o Governo tem suas
leis que têm que ser cumpridas e, aí, se limita na burocracia das leis do
Estado, do país e às vezes as entidades não têm como romper, porque
estão desmobilizadas e com isso nós temos sofrido muitos fracassos
nesta questão da preservação ambiental, da organização social. E se
nós não tivermos uma política voltada para esta questão, a Reserva
Chico Mendes vai estar ameaçada e, daqui a dez anos, nós não vamos
ter mais a Reserva (Entrevista realizada em 18 ago. 2004).
13 Caminhos abertos no interior da floresta.
331
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Conclusão
A discussão atual sobre as Reservas Extrativistas não pode passar ao
largo de uma discussão sobre o papel do Estado na consolidação destas
reservas enquanto espaço de garantia da convivência entre produção e
conservação ambiental. Tanto na fiscalização das práticas produtivas e das
ações de agentes sociais externos às reservas, quanto no incentivo e suporte a práticas produtivas não degradantes e na remuneração por serviços
ambientais, o Estado não pode se ausentar, sob pena de colocar em risco
a viabilização das Reservas Extrativistas. Estes territórios não podem ser
submetidos às leis do mercado, pois o mercado moderno, centrado no lucro
individual e imediato, não é e, por esta característica, não pode ser uma
instância a ser acionada para garantia da conservação.
Por outro lado, a simples culpabilização das populações extrativistas não
corresponde a uma leitura sociológica séria dos processos sociais nos quais
estão inseridas. A monetarização da vida, o crescente apelo a novas formas
de consumo, a ampliação das necessidades relativas à educação e à saúde,
aliados à expansão da demanda por recursos naturais e de incorporação de
novos territórios às práticas produtivas necessárias à ampliação do consumo
pressionam fortemente estas populações a alterarem sua forma de viver e
produzir, ameaçando formas tradicionais de organização da produção e,
consequentemente, a conservação ambiental
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
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333
Notas sobre o mundo do trabalho
rural no estado de Mato Grosso
em fins da primeira década
do século XXI
Introdução
Vitale Joanoni Neto
Os estados do Nordeste têm sido os grandes fornecedores de mão de obra
sazonal para o Mato Grosso, sendo o corte de cana a atividade básica nessa
modalidade de migração. São oito áreas com nove unidades produzindo
520.989 toneladas de açúcar e 770.584m3 de álcool (anidro e hidratado).
As rodovias federais abertas na Amazônia funcionam como corredores
migratórios, estimulando a busca dessas áreas e, também do trabalho dito
não qualificado do peão no desmate, formação e roço de pastos, construção
de cercas entre outras atividades.
Esses trabalhadores, como já está fartamente demonstrado pela literatura, vivem em situação de pobreza, ou com renda de dois dólares ou menos
por dia, situação que atinge boa parte da população trabalhadora do atual
mundo globalizado segundo dados da Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (CEPAL), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí
demonstrou-se que: 71% dos trabalhadores daquele estado tinham renda
familiar de menos de 1 salário mínimo; 93% dos que migram são homens;
51,7% são analfabetos ou possuem o primeiro nível do ensino fundamental;
90,8% migram para o trabalho temporário e apenas 23% declararam ter
migrado para trabalhar uma única vez, entre 1999 e 2004.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A grande motivação para a saída é a necessidade de dinheiro para
sustentar a família (43,3%), ou a falta de trabalho no local (52,2%). Os destinos mais visados são os Estados do Centro-Oeste (55,6%) e as atividades
realizadas estão em grande parte ligadas ao meio rural (83,9%), sendo que
a cana-de-açúcar, no caso desses trabalhadores comparece como grande
atrativo (64%).
Um dado que chama a atenção é que 31,9% dos entrevistados declararam migrar mediante o pagamento de um adiantamento do gato, um forte
indicador de aliciamento, primeiro passo para enredar o trabalhador na
teia do trabalho escravo contemporâneo (CPT/PI; FETAG/PI; PASTORAL
DO MIGRANTE/PI; DRT/PI, [2004]).
São os “redundantes”, na expressão de Bauman (2005, p. 20), pessoas
de quem o mundo moderno deixou de precisar, força de trabalho de baixo
padrão. Ao contrário do exército de reserva de mão-de-obra, com quem o
capitalismo contava para uma possível inserção, os redundantes são o refugo,
sobrevivem dos “benefícios” destinados pelos Governos.
“Nenhum objeto é ‘refugo’ por suas qualidades intrínsecas, e nenhum
pode tornar-se refugo mediante sua lógica interna. É recebendo o
papel de refugo nos projetos humanos que os objetos materiais,
sejam eles humanos ou inumanos, adquirem todas as qualidades
misteriosas, aterrorizantes, assustadoras e repulsivas relacionadas
acima (BAUMAN, 2005, p. 32).
Seria ingenuidade pensar que essa condição é mera construção teórica,
que essas pessoas a desconhecem. Conhecem e expressam suas opiniões e
análises quando nos dispomos a ouvi-las. Seus relatos falam de um mundo
de carências profundas, de violências em múltiplas faces, mas longe de
serem vítimas, aprenderam a viver nessa estreita fronteira que os separa
do mundo. Nosso mundo, com sua organização específica, traçou normas,
leis. Estas constroem espaços circunscritos e por extensão, dão existência
à margem, o lugar dos excluídos.
Em contato com uma dessas pessoas, conversamos sobre sua vida, seu
trabalho, partilhamos da memória do mundo visto por ele, marcado por
violências cotidianas, estratégias de sobrevivência aprendidas no contato
com os desafios diários, relatos de enfrentamentos que valorizam a coragem
e a força. Ele expõe de modo simples, como trabalhadores se tornam peões
rodados. No seu caso, tornou-se um sem terra, agrupou-se a outros acampados em área de conflito no Araguaia. Mas sua reflexão sobre como ocorreu
336
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
essa passagem e suas consequências é singular por sua compreensão acerca
da degradação da pessoa e dos efeitos disso:
“A roupa vai acabando, a dignidade da pessoa vai acabando, a vergonha, a pessoa quando entra no Sem Terra a primeira vez, tem vergonha de carrega uma cesta, um homem forte, às veis, que nem nóis
aqui com uma cesta do governo, quantas criança com fome, um que
mereceria comer como no Nordeste ou como numa favela. Um Sem
Terra forte carregando uma cesta e o Governo Federal pagano isso, é
uma vergonha. [e logo em seguida arremata]... é mais fácil o homem
virá um Sem Terra do que um Sem Terra virá homem...”1
Quando se torna um rodado, um peão sem rumo, que migra de empreita
em empreita, vivendo em pensões peoneiras ou mesmo em praças ou ruas
à espera do gato, o trabalhador atravessa a fronteira da dignidade humana
e se expõe a toda sorte de exploração. Desconsiderado socialmente, usado
em sua capacidade de trabalho, o que mostra de si aos outros é a força e a
valentia dentro do grupo, sem o que não consegue sobreviver. Esconde-se
na bebida, na droga, na falta de cuidados com seu corpo, na atitude agressiva
para com aqueles que teimam em lhe dirigir o olhar.
Quando conseguimos ouvi-lo que se rompe o disfarce e aparece a pessoa
e sua história:
Eu to aqui há um ano e oito méis sem vê meu filho, minha mulher,
minha filha, tá vivendo de favor. Não tá de favor porque minha família
tá mais ou menos no Rio Grande do Sul, mas eu voltá prá lá desse
jeito com o saco nas costa? Volto não [...] Meu filho tá com 15 anos,
fazendo técnico agrícola, 2º ano [...] Não. Não volto [...] Não. Depois
que sai, não. É melhor não saí, fica em grupo ou (pausa)...depois que
sai e voltá com problema, não.
Pode ser de difícil compreensão que uma pessoa que tenha uma vida
organizada, mesmo que marcada pela necessidade econômica, abra mão
disso por orgulho, mas essa explicação aparece com frequência entre esses
trabalhadores. Uma vez migrados, eles relutam em voltar para suas casas
e para o convívio de seus familiares, quando a viagem não deu o resultado
esperado, mesmo que a responsabilidade pelo insucesso não lhe caiba. Se
o endividamento na empreita consumiu seu salário, se a fatalidade de uma
malária o atingiu e o obrigou a gastos maiores, qualquer que seja a razão,
é frequente ouvir em seus relatos que sem o dinheiro buscado, não voltam.
1 Depoimento colhido no Centro de Pastoral para o Migrante em Cuiabá, da Arquidiocese de Cuiabá, em
30 mar. 2007.
337
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Preferem rumar para outra empreita na expectativa de que dessa vez consigam juntar algum recurso.
Bastante lúcida é sua percepção sobre os locais nos quais terão chances de trabalho. Sabem que nas áreas já abertas, mecanizadas, os espaços
profissionais estão tomados. Sabem que, mesmo enfrentando as situações
descritas acima, a fronteira é o lugar aonde ainda têm espaço:
No Sul hoje, com o que eu sei fazê, eu não me arriscava. Eu não trabalho
mais lá. Não tenho mais mercado de trabalho. E aqui eu tenho. [...] Aqui
o meu trabalho eu já não posso mais fazê isso, mas no Pará eu posso, no
Amazonas eu posso, no Acre, prá lá, prá qualquer lugar aonde tá difícil.
Onde tá a malária, aonde tá o pistolêro, onde tá o gato, onde tá o povo
é aonde o peão vai achá o serviço, porque o que é especializado não vai
querê tá nesse meio. Então vai essas pessoas menos capacitada. Por
isso que o pessoal diz: - mas vem do Maranhão. Aquilo tudo é gente
de coragem. Que o que não tem coragem de estabilizá não vem. Vem
aquele que tá com problema lá no Piauí, no Maranhão, no Tocantins,
então êle vem pra cá prá enfrentá a vida e a maioria não volta. Por
algum motivo uns morre. Outros fica com vergonha de voltá, que êle
acha que veio prá ganhá um dinherão, acaba não ganhando nada e
cada vez vai tocando a cara mais prá frente que nunca mais volta. E
nunca ninguém sabe dele. Nunca mais dá notícia.2
íntese da situação dos trabalhadores migrantes nessas áreas de fronteira mostra que estão ali não por opção, mas por imposição. Os estudos
da CPT do Piauí demonstram claramente que a maioria (95,5%), dos que
viajam assim fazem por falta de alternativa financeira e destes, 56% viajam
com grupos de trabalhadores contratados por empresas ou aliciados por
empreiteiros. Muitos caem nesse círculo das migrações, outros migram para
cidades maiores em busca de trabalho e há ainda os que retornam para seus
Estados para migrar no próximo ano.
A grande Cuiabá possui um grande cinturão de pobreza à sua volta
a saber que 41% da população de Várzea Grande (MT), município desta
região com pouco mais de 200 mil habitantes, está na condição de miséria,
25% da população do Estado vive com R$ 80,00 por mês ou menos. (MATO
GROSSO TEM..., 2002).
As taxas de abandono do ensino fundamental chegam a 29%, famílias
desestruturadas vivem em barracos feitos com pedaços de madeira. Alguns
2 Depoimento colhido no Centro de Pastoral para o Migrante em Cuiabá, Arquidiocese de Cuiabá, em 30
mar. 2007.
338
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
vão para o trabalho diário nas propriedades rurais do entorno metropolitano
recebendo R$ 6,00 por dia de trabalho na capina (DRUMOND, 2002, p. 6).
Esta periferia, onde vivem centenas de milhares de pessoas com histórias de vida como as já narradas, é o ponto de confluência da ineficácia do
poder público com a ação incontrolada das forças do mercado. Ali viceja a
cidade clandestina na qual uma gama de soluções alternativas substitui a
ausência deliberada do Estado. As “gambiarras” substituem a rede elétrica
e o fornecimento de água, a arquitetura da invasão constrói a não-casa, o
perueiro dirige o não-ônibus (MOURA, 2000, p. 202). Ali é o espaço do nãocidadão. A convivência entre desiguais acabou por gerar um inconformismo
verbal e um conformismo prático. Uma sociedade que se quer moderna e
uma modernidade que prescinde daqueles que a constroem.
Vivemos como os habitantes de Leônia, uma das cidades invisíveis de
Ítalo Calvino (1990). Ansiamos cotidianamente pelo novo de descartar na
mesma proporção o antigo, que odiamos, que gostaríamos que não existisse, mas para que isso fosse possível, seria preciso que ele nunca tivesse
sido produzido. Desenvolvemos planos, políticas, projetos (re)pensando o
futuro. Nascem fadados ao fracasso enquanto rejeitarmos o passado e não
mudarmos nossa forma de pensar o presente.
Esses trabalhadores, desconsiderados socialmente, ficam à mercê da
superexploração das “pessoas de bem”, e submetidos aos caprichos do empreiteiro. Nas áreas de trabalho, são facilmente surpreendidos pela mata.
Se os dados oficiais são trágicos ainda nestes primeiros anos do séc. XXI, as
narrativas tendem ao fantástico quando falam de paus que pulam, galhos
que caem inesperadamente da alta copa das árvores, troncos que dançam,
ou coiceiam. É como se a natureza resistisse empreendendo uma luta corpo
a corpo, procurando derrotar seus adversários.
As histórias de vida dessas pessoas passam, invariavelmente, por seguidas migrações, desrespeito aos direitos mais fundamentais do ser humano
e abandono por parte do poder público. Dona Alice e Seo Hilário são casos
exemplares. Nascidos na Bahia, migraram rumo ao Sul em busca de trabalho
no campo e melhores condições de vida. “Iludiram a gente com toda aquela
bobagem. Falaram até que a gente ia rastelar dinheiro debaixo dos pés de
café.” No interior de São Paulo, foram submetidos ao trabalho escravo na
lavoura por quase doze meses, cinco dos quais trabalharam sem receber
nenhuma alimentação: “comia mamão cozido e sem sal, porque não tinha”.
Hoje, aos 78 anos, Dona Alice conta uma longa rota de migração que inclui
passagem pelo garimpo, onde uma de suas filhas desapareceu, até a chegada
339
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
à periferia de Cuiabá. Vive com um salário mínimo, aposentadoria de Seo
Hilário (PIMENTEL, 2001).
Em Alta Floresta, ainda no ano de 2007 foi possível encontrar pela cidade,
entre os dias 5 e 10 de cada mês, trabalhadores trazidos pelos gerentes ou
capatazes das fazendas para fazerem compras ou frequentarem bordéis.
Esse é também o período do mês em que os pontos de chapa ficam mais
frequentados à espera da contratação, da empreita. As empresas entretanto,
já não estão mais utilizando essa mão de obra na própria região. A frente de
trabalho está depois da fronteira estadual com o Pará a pouco mais de 35km
em linha reta ou 65km de estrada de chão. É comum as contratações por
gatos prestando serviços para empresas agropecuárias, os hotéis peoneiros,
o sistema de caderneta e o pagamento com vales.
As informações coletadas nos levaram à existência de contratos de
prestação de serviços temporário feito entre o trabalhador e a empresa que
são enviados para um escritório de contabilidade e mantidos em gaveta. Em
caso de complicações, como por exemplo, acidente de trabalho, o contrato
assinado serve para dar cobertura ao empregador.
Vale a pena chamar a atenção para esta situação de exploração da mãode-obra migrante, e de peões rodados no Mato Grosso ainda que Conhecidos
centros receptores de trabalhadores, dentre estes Nobres ou Sorriso, já não
mais assim atuam. Agora, a linha divisória dessa fronteira de exploração e
migração corta o norte de Mato Grosso e chega às terras do Meio no Pará.
Nestas áreas da fronteira amazônica, a modernização proporcionou
mais que o desenvolvimento do agrobusiness; gerou a acumulação e a concentração de determinada riqueza, que alija os empregadores de responsabilidades trabalhistas de modo diretamente proporcional ao de seu avanço.
Os números fantásticos da produtividade da soja matogrossense, a riqueza
dos garimpos, o potencial madeireiro, têm em seu avesso a promoção de
acentuada desigualdade social. Um grande contingente de migrados foram
reduzidos à condição de excluídos e outros tantos continuam a chegar atraídos pela ilusão do Eldorado. Isso porque a fronteira construída em nome
da modernidade, símbolo do avanço da frente de expansão do capital faz
uso indiscriminado de relações de trabalho excludentes.
Há no Brasil, um triste histórico de arbitrariedades cometidas contra
os trabalhadores rurais. Mais de 50% das mortes do ano de 2002 estão em
áreas consideradas de fronteiras - Maranhão, Pará e Mato Grosso –53,74%
(CAVALCANTI, 2002, p. 63). Nestas áreas, os conflitos políticos, as disputas
legais, reivindicações básicas, transformam-se com frequência em assassina340
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
tos e outros crimes contra a pessoa. No Brasil, entre 1985 e 2001 morreram
no campo 1.237 pessoas.3 Somente em 2006 foram registradas 207 ameaças
de morte, 72 tentativas e 36 assassinatos (ALMEIDA, 2006)
Em relação ao trabalho escravo, os números oficiais do Ministério do
Trabalho Emprego relativos a 2006 indicam que do total de 3.075 trabalhadores libertados no Brasil, 376 estavam em Mato Grosso. Em 2008, a
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) do Mato Grosso/
MT registrou 154 trabalhadores resgatados até julho.
Nessas áreas o processo de tornar natural a violência e o desconhecimento ou descrença no poder do estado, se fazem presentes. A isto somase o fato de que os poucos representantes do poder público nesses locais,
com honrosas exceções, ou sentem-se impotentes para fazerem frente às
situações que se lhes apresentam ou assumem a função de reafirmadores
dessa conduta.
Uma senhora que havia sido dona de um bordel, quando procurada
para conversar sobre um fato particular com o qual havíamos tido contato
em outros depoimentos, responde-nos com narrativa de cotidiano de vida
familiar e de muito trabalho. Se houve tráfico humano, se ela esteve envolvida, por mais que as evidências exteriores nos permitam constatá-las, em
sua memória, sua vida aparece marcada por outras cores. O mesmo ocorre
quando o assunto é exploração do trabalho dos peões. Hoje os discursos
sobre direitos trabalhistas, a legalidade, estão incorporados e fluem com
facilidade em qualquer conversa com empreiteiros ou proprietários rurais,
mesmo que as operações do Grupo Móvel continuem a encontrar todos os
problemas trabalhistas aqui tratados.
No Brasil, Os principais traços encontrados na relação trabalhista de
exploração de trabalho são: predominância de uso pelo setor privado, no
setor primário; endividamento induzido como método de coação; precariedade da situação jurídica de milhões de pessoas expressa no Brasil pela
falta de certidão de nascimento; ausência de leis mais eficientes para coibir
e punir tais crimes.
Nessas áreas de fronteira, são outras as estruturas de poder que se articulam, outras as redes de solidariedade, que muitas vezes fazem um trabalho
extremamente importante, pois representam o fio de esperança para milhares de pessoas marginalizadas, mas estão constituídas em uma fragilidade
3 472 pessoas no Pará (38,15%), 107 no Maranhão (8,64%), 89 na Bahia (7,19%), 86 no Mato Grosso
(6,95%), 68 em Minas Gerais (5,49%). Os dados são da Comissão Pastoral da Terra.
341
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
impressionante apoiadas na ação individual, em iniciativas abnegadas, uma
luta de Davi contra Golias. As esferas do público e do privado se confundem.
Não raro o primeiro, apropriado por grupos dominantes, serve aos interesses
do segundo. Quando não, podem ocorrer conflitos entre diferentes esferas
do poder público em razão das pessoas investidas de autoridade assumirem
posições divergentes no quadro político local.
No mês de fevereiro de 2006, o Grupo Móvel de Fiscalização composto
por vários órgãos do Governo Federal, entrou na fazenda Zankara, município
de Nova Lacerda para averiguar a exploração de trabalhadores e foi recebido
a tiros por policiais militares, alguns à paisana, chamados pelo fazendeiro
para defender sua propriedade.
As redes de conivência à exploração do trabalho desses homens e mulheres migrantes têm podido contar, em alguns casos, com representantes do
Estado, colocando os poucos órgãos que deveriam ser canais de viabilização
dos direitos do cidadão, a serviço da manutenção de uma ordem peculiar,
que naturaliza a violência.
A concentração do poder político local nas mãos de poucas pessoas, geralmente associado ao poder econômico, se constitui no principal elemento
dessa rede de conivência que assenta a exploração de homens e mulheres,
invade áreas indígenas para a exploração de madeira e minério ou mesmo
para a ocupação de terras, que se defende das ameaças utilizando-se dos
recursos à mão na preservação de seus interesses.
Em 1986 teve uma invasão de terra numa fazenda grande aqui pro lado
de Fontanillas [...] a polícia judiou deles uma barbaridade [...] no dia que
pegaram um ônibus que tava chegando cheio de gente para grilar mais terra
[na verdade, a expressão “grilo” aparece aqui empregada para fazer menção
à ocupação, apossamento e não no sentido acadêmico...] botaram dentro de
um curral e surra cedo e surra de tarde e tava chegando mais ônibus, inclusive tem um padre [...] padre João [nome fictício] levou uma surra tão grande
quase morreu. Eu como médico examinei e fiz uma descrição, um laudo, e
tinha caroço e hematoma no corpo inteiro [...] a polícia parou o ônibus [...] ai
já faz aquele corredor e o cara desce ali é soco na orelha e pontapé na bunda.
Ai diz que chegou um cara, diz que era um mundo dum cara e na hora que
ele foi descer ele fez uma cara feia, o manda chuva da polícia falou “esse tem
cara de limão. Traz lá meia dúzia de limão pra ele”. Correram lá num pé de
limão rosa, deram uns cascudos nele, fizeram ele descer, pegaram o limão,
abriram esfregavam bem na terra assim e fala “come meu compadre” e o cara
“nham, nham, nham”, com casca e tudo, com terra, com limão, “gostou?” e se
342
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
fizer cara feia ainda leva uns tabefes [...] diz que o bicho comeu meia dúzia
de limão [gargalhada] e ia pro curral e ficava lá ajoelhado [rindo bastante]
aqui tem um cara, não vou nem falar o nome dele [risos] é um cara aqui que
acharam que ele tinha cara de cantor. Então perto do curral tinha uma árvore
bem alta, diz que passaram a mão numa metralhadora, “sobe lá na árvore”
[gritando] “mas como eu vou subir lá?” “Sobe seu desgraçado!” e “pá!” [som
de tiro] e o cara subiu na árvore, virou um macaco e subiu lá. “e agora você
não me para de cantar, se parar leva bala” diz que o cara cantou Fuscão Preto
lá um bom tempo. Até uma hora a polícia deu uma bobeira e ele enfiou o pé no
mato [...] descalço, diz que ele ficou sumido mais de semana no meio da mata,
parece que ele ficou meio alterado [...] tudo machucado, tudo desgraçado e
meio tantan, mas hoje ele já melhorou um pouco.4
O entrevistado, um representante do poder local narra em tom de “batepapo” um episódio permeado de irregularidades. Em sua fala as surras, o
curral, a tortura, aparecem como naturalizadas. A violência policial aparece
banalizada. Aos torturados nada além da constatação do merecido castigo.
Ele, médico da cidade, atendeu pessoalmente a algumas das vítimas daquela
ação. Foi testemunha ocular dos seus efeitos. O padre não contou com a
complacência dos seus algozes. Foi surrado duramente. A expressão “quase
morreu” utilizada no depoimento não é simplesmente um artifício retórico,
mas remete à pequena distância entre deixar viver ou não quem quer que
se coloque entre aquela elite local e seu projeto de ocupação.
Essas redes de conivência são também compostas por pequenos comerciantes, donos de pensões que fornecem a alimentação para os trabalhadores,
donos de hotéis que os alojam mesmo durante o período de desemprego,
donos de bordéis, donos de empresas clandestinas de transporte que trazem
os trabalhadores dos estados do nordeste para o Mato Grosso, disfarçadas
de empresas de turismo ou de fretamento, cooperativas de trabalhadores.
Estivemos em uma dessas empresas clandestinas na cidade de Sorriso.
Nesse caso, o transporte se dava entre cidades do Maranhão e aquele local.
Os proprietários cobravam pela viagem a metade do preço praticado pelas
empresas de transporte rodoviário credenciadas. O prédio do terminal clandestino não tem nada de discreto. Um grande salão com fachada amarela e
um enorme letreiro Maranhão-Sorriso a cem metros da BR-163 que corta
a cidade. Segundo os entrevistados houve tempos de trazerem duzentos
trabalhadores por semana e não atenderem a demanda.
4 Depoimento, Castanheira, 2003.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
As redes de resistência local à exploração do trabalho apresentam
natureza das mais variadas, a saber: a Igreja Católica representada pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista e Missionário
(CIMI), o Centro de Pastoral do Migrante, e comparecem como referência de
proteção e apoio para trabalhadores migrantes e marginalizados.
Os sindicatos de trabalhadores rurais nem sempre compõem essa rede
de resistência, mas há importantes representações dessas entidades no interior, em Confresa, por exemplo, onde a presidente da entidade luta contra
a exploração do trabalho compulsório e pela regulamentação do trabalho
do migrante. Alguns representantes dos poderes públicos são referências
nas suas áreas de atuação para inibir práticas até então comuns, mas ilegais.
Encontramos na região de Apiacás o Promotor Público Estadual que assumiu
a defesa de menores, peões, assentados e passou a contar com a ajuda de
professores, membros do Conselho Tutelar da Infância e da Juventude e se
tornou uma referência para as denúncias dos crimes. A região carrega uma
marca do garimpo que foi muito forte em toda aquela área, que são os crimes
de violência sexual contra crianças e adolescentes e a prostituição infantil.
Para muitos dos representantes da Igreja Católica destes locais, calar
diante de tais situações aberrantes seria coonestá-las. O que tornou esses
casos mais graves na Amazônia foi o fato de que os atingidos não tinham
opções ou alternativas para reagir. Os canais de denúncia e as autoridades
competentes, estavam muitas vezes a vários dias de viagem a pé, por entre
picadões, e nem sempre alcançá-los era promessa de sucesso.
A Igreja Católica, as Associações de Pequenos Produtores Rurais, os Sindicatos de Trabalhadores, entre outras organizações, apresentam-se como
espaços horizontalizados (SANTOS, 1998, p. 15), opostos, portanto aos espaços verticalizados produzidos pela mundialização, que tornam as fronteiras
fluídas e vulneráveis às influências sociais e econômicas exógenas.
Em Mato Grosso, a constituição do Fórum Estadual para a Erradicação
do Trabalho Escravo em 2004 deu impulso a essa causa de exploração de
trabalho e culminou na aprovação dos decretos nº 985 de 7 de dezembro de
2007, que criou a Comissão Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo
(COETRAE) e nº 1.545 de 29 de agosto de 2008 que aprovou o Plano de Ação
para a Erradicação do Trabalho Escravo para o Estado de Mato Grosso, avaliado pelos grupos da sociedade civil organizada, como importantes avanços
nesse diálogo com o governo de Mato Grosso.
O argumento de que o cumprimento da lei provocará o desemprego
desses trabalhadores é falacioso. As tarefas nas quais é empregada essa
344
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
mão-de-obra não são perenes. O desmatamento é atividade já descartada
em muitas das regiões do Estado; a catação de raízes já está sendo suprimida pelo uso de equipamentos desenvolvidos para esse fim, e nos parece
que mesmo no corte de cana, uma atividade que historicamente fez uso da
mão de obra sazonal, responsável pelas duas maiores ações de dos Grupos
Móveis de Fiscalização (Mato Grosso, Confresa em 2005, 1 008 trabalhadores
e Pará, Ulianópolis, em 2007, 1 064 trabalhadores), está caminhando para
a mecanização.
Não será o cumprimento da lei que promoverá o desemprego desses
trabalhadores, mas é a própria dinâmica do desenvolvimento do capital que
levará a substituição paulatina da mão de obra manual pela máquina. Outro
equívoco é falar da necessidade da reinserção social desse contingente, pela
simples razão de que eles nunca estiveram inseridos. Participam de nossa
sociedade de modo marginal, mão-de-obra barata.
O paradoxo do desenvolvimento econômico é que essa dinâmica é parteira de uma concepção retrógrada de progresso. No mundo contemporâneo
a industrialização trouxe o desenvolvimento para não mais que um terço
da população:
“Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB e da riqueza
dos países menos desenvolvidos para que se aproximem mais dos países desenvolvidos, é fácil mostrar que tal objetivo é uma miragem [...] se
por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB para assegurar
mais bem-estar às populações [...] é fácil mostrar que hoje o bem-estar
não depende tanto do nível de riqueza quanto da distribuição da riqueza. Em vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento
alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao
desenvolvimento.” (SANTOS, 2000, p. 28). (Grifos nossos).
Daí, em Mato Grosso, Governo e Sociedade Civil começam a tratar de
outra agenda, a do acesso ao Trabalho Decente, porque a criação de novos
empregos devem estar associada à promoção de vida digna. O Centro-Oeste
têm crescido em ritmo chinês enquanto o Brasil mantém índices africanos,
mas esse sucesso econômico só terá valia se vier acompanhado de desenvolvimento humano, equidade e trabalho decente.
Há muito mais para ser dito e muitos (e bastante divergentes) são os
argumentos acerca do tema em pauta. Pensamos ser correto o argumento de
que apenas uma pequena parcela dos trabalhadores migrantes é atingida por
essa relação, mas é inegável, assustadora e vergonhosa sua (re)existência.
345
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Referências
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no campo no Brasil 2006. Goiânia: CPT Nacional, 2006.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
CAVALCANTI, Klester. Viúvas da terra. Os caminhos da Terra, São
Paulo, ano 11, n.127, p.56-63, nov. 2002.
CPT/PI; FETAG/PI; Pastoral do Migrante e DRT/PI. Campanha de
prevenção ao trabalho escravo e combate ao aliciamento de
trabalhadores no Piauí. Mimeo., [nov. 2004].
DRUMOND, Ana. Bolsão no Jardim Esmeralda. A Gazeta, Cuiabá, 14
abr. 2002. Caderno B. p. 6.
MOURA, Rosa. Cinco séculos de desigualdades na apropriação do solo
urbano. In: SOUZA, Álvaro, SOUZA, Edson, MAGNONI Jr., Lourenço
(Orgs.). Paisagem, território e região: em busca da identidade.
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PIMENTEL, Carla. Desrespeito à lei são comuns no Brasil. A Gazeta,
Cuiabá, 25 jun. 2001. Caderno B, p. 1.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. São
Paulo: Cortez, 2000.
SANTOS, Milton. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA,
M.A.A.; SILVIERA, M.L. (Orgs.). Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1998.
346
Depoimento
Uma situação vivida por um imigrante de 1931
Mitiko Yanaga Une
O ano de 2008 foi o ano do centenário da imigração japonesa no Brasil.
Diversas comemorações aconteceram em diferentes partes do território
brasileiro culminadas com a chegada no Brasil do Príncipe herdeiro do trono
japonês: Sua Majestade Naruhito. Ele visitou várias cidades. Todos queriam
ver o Príncipe. Afinal, mesmo no Japão é difícil ver um membro da família
imperial devido o protocolo de sua segurança.
Afinal, existem motivos para comemorações? A imigração japonesa nos
primórdios foi bem recebida? Pode-se falar em sucesso? Todas as indagações
exigem uma reflexão. Exigem repensar a imigração japonesa.
Okubaro (2006) fala do tratamento discriminatório dispensado aos
imigrantes no navio Kasato Maru pelo capitão Stevens e sua tripulação. Isto
porque apesar da bandeira japonesa, o Kasato Maru era capitaneado por um
inglês. Descreve a ridicularização a que os imigrantes foram expostos diante
da obrigatoriedade de eles vestirem trajes ocidentais adquiridos em algum
bazar beneficente quando da sua chegada no porto de Santos.
Fala ainda da seleção dos imigrantes na Hospedaria dos Imigrantes pelos
representantes dos fazendeiros como se eles fossem gado em alguma feira agropecuária. Repensando a questão, do ponto de vista de vista deste representante,
os referidos imigrantes, na verdade, eram meros “braços” para tocar os afazeres
da fazenda. Hoje se fala em homens-dia para tocar qualquer trabalho. Mudou
o vocabulário e mudou a forma de entender o trabalhador.
É preciso lembrar que eles chegaram ao Brasil apenas vinte anos após
a promulgação da Lei Áurea. Época em que se admitia que todo trabalhador
rural não diferia do escravo. O tratamento dispensado a eles deveria ser idêntico. Entretanto, esses imigrantes precisavam receber uma remuneração. A
remuneração era o diferencial.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Vinte e três anos depois, quando o meu pai, Takeki Yanaga, então com 18
anos de idade, veio como imigrante trabalhar em uma fazenda de café, ele
passou e também presenciou várias situações constrangedoras.Antes disso,
gostaria de expor a real situação dele.
Meu pai descende de uma família de produtores rurais na zona rural da
cidade de Kurume, na Província de Fukuoka na ilha de Kyushu. Era o segundo
filho varão. Na época, todo primogênito ficava com a herança das terras. Ao
segundo filho homem cabia receber educação além do curso primário para
seguir uma carreira profissional intelectual. Ao terceiro e quarto filhos do sexo
masculino cabiam um dote para procurar uma profissão na cidade, geralmente
no comércio ou ingressar na carreira militar.
Meu pai concluiu o curso ginasial em 1930 em um famoso colégio de
Kurume. Enquanto estudante pretendia seguir carreira universitária. Como
não havia universidade em Kurume, teria então que ir para Tokyo.
Enquanto alimentava este sonho, certa vez viu que seu pai estava pagando
o ginásio com arroz e não com moeda corrente. Percebendo então que a família era pobre, candidatou-se a uma bolsa de estudos em Tókio. Não ganhou.
Então, tentou a carreira militar na marinha. Não foi aceito. Decidiu então,
desanimado, que viria para o Brasil. A família foi contra. Ele prometeu que
voltaria rico e ajudaria os pais. Jurou. Era a propaganda veiculada no Japão.
Seus amigos de colégio foram contra. Um deles foi a favor. Era o Imamurasan, o amigo aventureiro. Imamura-san decidiu acompanhar Yanaga. E foram
juntos para a primeira parte da grande aventura.
Ambos saíram pela primeira vez da modesta Kurume para a principal ilha
do arquipélago nipônico: a de Honshu, onde está situada a capital, Tokyo, rumo
ao porto de Kobe. Chegaram antes à Osaka, onde Imamura-san tinha uma tia e
ali pernoitaram gratuitamente. A última noite de todos juntos foi uma imensa
despedida. Imamura-san pediu uma garrafa de sake ao tio e juntos ingeriram
álcool pela primeira vez.
No Japão, menores de vinte anos de idade não podem ingerir álcool.
Alcoolizados se puseram a cantar e com os braços no ombro um do outro.
Cantaram músicas infantis, o hino do famoso Colégio Meizen e o Miyotookai,
hino que enaltece as conquistas militares japonesas pelas ruas de Osaka.
Yanaga se despediu ali do amigo dizendo que ele voltaria do Brasil vencedor
com uma imensa fortuna e ajudaria o amigo.
Seus pais deram uma ajuda financeira para os primeiros tempos no Brasil
e ele embarcou rumo ao Brasil no navio La Plata Maru com 18 anos. Chegou
a Santos no dia 29 de agosto de 1931 sendo responsável por ele mesmo. A
primeira aventura em terras santistas foi comprar banana. A banana era
fruta extremamente cara no Japão. Comprou uma porção. Comeu até enjoar.
Realizou um sonho. No momento seguinte não precisou ser escolhido como
gado. Tinha destino certo: Ourinhos. Era uma fazenda de café. Foi de trem
com outros companheiros que ele conheceu no navio. Ao chegar na fazenda,
inicia sua vida de colono.
350
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Como solteiro, tem de preparar sua própria refeição e lavar suas roupas.
O sino toca anunciando a hora de início do trabalho no cafezal. Logo depois
vinha o capataz fazer a inspeção em cada casa para ver se todos haviam saído
para as lides.
Os colonos eram chamados pelos prenomes. Prenome? TAKEKI! Que abuso!
Que desconsideração! No Japão sempre foi falta de respeito alguém chamar
outra pessoa pelo prenome. Usa-se o sobrenome. E ainda o termo “san” equivalente ao “senhor” ou “senhora”. Para as crianças se usa pospor ao nome os
termos diminutivos “chan” ou “kun”, este ultimo é exclusivo para meninos. Ser
chamado pelo prenome ainda é uma honraria dada aos muito íntimos seguido
naturalmente pelo respeitoso “san”. Amigos de família, primos, irmãos e pais
estão neste rol. Para os demais ainda constitui uma ofensa.
Foi o primeiro grande choque cultural. Observou-se, ao longo dos dias,
que os dorminhocos, os doentes ou as mães com filhos menores eram os retardatários. Para estes, havia a ameaça do chicote. Muitos homens com pena
das suas esposas se colocavam na frente e apanhavam no lugar das esposas.
As ordens eram passadas na demonstração e na mímica. Nem sempre era fácil
entender. Também nem sempre havia interprete.
No trabalho rural, havia a competição com os italianos. Estes eram ágeis
e pareciam adaptados à rotina. A alimentação era vendida no barracão. Eram
itens estranhos para os japoneses como feijão, fubá, banha, carne seca e bacalhau entre outros. Os colonos não tinham noção de preço pois desconheciam
os artigos. As ordens eram para adquirir no barracão. Além disso, eles não
tinham liberdade para irem ao comércio local.
O fazendeiro, ou o capataz, tinham a favor deles o fato de esses colonos
não entenderem o português e com isso não se arriscarem nas saídas. Meses
mais tarde inicia o verão brasileiro. O calor tropical era insuportável. Era um
verão extremamente longo e chuvoso. Todos os dias pareciam iguais. Sempre
muito quentes. Não houve cerimônia de ano novo e nem comidas típicas. Um
shoogatsu (ano novo) quente! Quente e sem neve e sem roupas típicas! Foi
uma entrada do ano de 1932 bastante dolorosa.
Havia trabalho o ano inteiro. As estações do ano, excetuados os meses de
junho a setembro que variavam de frescos a frios, todos os demais eram iguais.
O jovem Yanaga observou que não havia perspectivas de mudança. Não haveria
como enriquecer e voltar vitorioso para gabar junto aos seus pais e amigos.
Seria sempre pobre. Era preciso encarar a realidade. A realidade era ser colono
pobre e acatar as ordens do capataz e a ameaça do chicote. Escrevia para os
pais e amigos falando de um Brasil ideal enaltecendo o país para não deixar
os pais preocupados. A verdade era dita apenas para Imamura-san.
Acostumou-se lentamente com as comidas. A carne seca era suportável,
mas o bacalhau, não. Verduras? Não havia. Observando os arredores passou a
comer folhas de algumas árvores. A grande felicidade era poder comer arroz.
Alguns colonos provenientes de províncias mais pobres tinham, no Japão, a
batata doce como alimento principal. Um companheiro de viagem, também
351
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
solteiro, trabalhava feliz e dizia todo orgulhoso que podia comer arroz todos
os dias e ainda duas vezes ao dia. E, não só em dias de festa. Ele provinha da
ilha de Shikoku. Shikoku é a menor das quatro ilhas do arquipélago nipônico
e se localiza a leste da de Honshu onde fica a capital, Tokyo. Esse companheiro
dizia: O Brasil é um país fabuloso. Sinto-me feliz por poder comer arroz.
Enquanto estava feliz elogiando o Brasil, chegaram ambos capinando no
sol a pino embaixo de uma árvore onde havia um tronco seco caído. O companheiro, enxugando o suor foi se refrescar ao abrigo da árvore e sentou-se
no dito tronco. Uma cobra também havia tido a mesma ideia e sem cerimônia,
picou o rapaz. Yanaga levou um susto e gritou. Vieram outros colonos. Eles
não sabiam o que fazer. Desconheciam os animais perigosos do Brasil. Veio o
capataz. E nada foi feito. Eles perderam um companheiro no vigor da saúde e
com vinte e três anos de idade. E, principalmente elogiando o Brasil. Yanaga
se questionou se haveria razão para tamanho elogio após a morte do companheiro picado pela cobra. O Brasil era um país perigoso, foi a sua conclusão.
A grande lição do fato foi a de nunca deve se sentar em tronco de árvore
e de sempre olhar cuidadosamente o chão até mesmo o lugar em que se está
capinando. As cobras podem surgir de lugares em que menos se espera. A partir de então todos passam a fazer vigilância nas casas, a verificar onde andam
as crianças. Cuidado com a cobra! Era o alerta. Junto com o alerta, surgem nos
corações dos imigrantes as primeiras grandes decepções. E passam a avaliar
como estavam vivendo o dia-a-dia. E o que haviam deixado para trás lá no
longínquo Japão que pertencia a um passado muito distante.
Yanaga passou lentamente a gostar de comer carne. Sua mãe, budista,
jamais admitiu, em casa, o consumo de carne bem como de peixe. Proteína
animal para ela, era o ovo.
Certa vez, enquanto preparavam a terra viram um pequeno animal que
sumiu num buraco na terra. Eles ficaram com medo. Depois do incidente com
a cobra, qualquer bicho metia medo. O capataz explicou, através de gestos,
que era um tatu. O tatu podia ser comido. Os rapazes se puseram, depois do
expediente a caçar o tatu. Era um animal pequeno, mas era carne. E nada. No
outro dia, enquanto trabalhavam a terra pegaram o tatu. Não podiam matá-lo naquele momento pois tinham de trabalhar. Então pegaram um tambor
e cobriram o tatu. De tarde, depois do trabalho, já antegozando a comida da
nova carne foram pegar o tatu. Embaixo do tambor havia apenas um buraco.
Foram ludibriados pelo tatu. Eles desconheciam que o tatu cavava túneis com
a maior facilidade. E lá se foi a comida e veio uma nova lição: O tatu é hábil em
cavar túneis. Estes foram os primeiros contatos com a fauna brasileira. Foram
experiências frustrantes que se tornaram lendas entre os colonos. Mais um
ano se foi sem perspectivas de ascensão econômica e junto com ela a ascensão
social. Ter estudado no famoso colégio Meizen, que era o seu grande diferencial, não dizia nada mesmo entre os patrícios pois eles não haviam estado em
Kurume e muito menos ainda para a autoridade de todos os dias: o capataz.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Um belo dia, em 1933, no lugar do capataz, o fiscal era o filho do fazendeiro.
Ele tem um olho nos colonos e outro no caderno. Yanaga observa que o rapaz
está muito tenso. Yanaga vai ver o que o fiscal está fazendo e o porque de tanto
uso da borracha. Para seu espanto, o rapaz está nervoso resolvendo problemas
de matemática. Para quem havia estudado 11 anos no Japão, não havia dificuldade. Tentou falar em inglês com o rapaz. Não houve comunicação. Yanaga
pegou então o caderno e resolveu as questões. O rapaz ficou boquiaberto. Um
imigrante entendido em matemática era algo impensável!. No outro dia, ele
veio com outras questões. Foram resolvidas. E assim sucessivamente. Eles se
entendiam num inglês sofrível. O rapaz, através de gestos, convidou Yanaga
para ir para São Paulo e continuar os estudos. Foi o que Yanaga entendeu. Ficou
feliz com o convite, mas também receoso. Os amigos foram consultados. Eles
disseram não. Na fazenda onde todos estavam juntos, eles poderiam formar
um bloco e se autoprotegerem do chicote e da prisão que por ventura viesse
a ocorrer, mas Yanaga sozinho e ainda bem afastado ficaria muito vulnerável à
vontade do filho do fazendeiro ou de outros elementos da família. Afinal, eles
não entendiam o português o suficiente para se aventurarem sozinhos mundo
a fora. E Yanaga continuou na fazenda. E no trabalho braçal. O trabalho era
pesado para aquele ex-estudante. À noite havia o cachorro solto para evitar
que os colonos saíssem das casas até mesmo para as necessidades fisiológicas,
mas o objetivo era não permitir a fuga dos colonos.
As despesas no barracão eram sempre altas. O item sabão era muito caro.
Salário não havia. Yanaga pensou numa solução de fuga. Afinal, estavam vivendo uma situação de trabalho escravo. Escravo no sentido do cerceamento da
liberdade, do direito de ir-e-vir, de não poder adoecer e da ameaça constante
do chicote mais do que a exploração do barracão e do dinheiro que não via.
Era um cárcere privado.
Pior situação era a dos chefes de família. Eles tinham esposa e filhos sob
sua responsabilidade. Tinham de trabalhar bastante, muitas vezes tinham
de comer menos para sobrar mais para os pequenos, não podiam adoecer
e também não queriam apanhar do capataz na frente dos pequenos. Teriam
de ficar na fazenda até serem liberados. Liberados após cumprirem todas as
exigências. Enterrarem suas mágoas na bebida não resolvia. O dinheiro não
chegava para tanto. Além do mais, foram educados no Japão no sentido de
que o menor de vinte anos não podia ingerir bebida alcoólica. A noite, após
o jantar, restava deitar ao luar e cantar relembrando as músicas folclóricas
para não chorar já que a solidão era muito grande.
Quando reuniam vários rapazes, cada um contava vantagens dos seus
tempos japoneses. Falavam dos pais, do tipo de vida que haviam levado. E,
o pior, quase todos eles tinham a firme convicção de que o retorno ao Japão
seria pouco provável, mas não impossível. Era preciso não fazer despesas.
Yanaga agradecia aos céus por ser solteiro. Por ninguém depender econômica
e moralmente dele. Era dono do seu destino.
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Descobriu, ao acaso, conversando com colonos de diferentes levas que
havia um lugar chamado Bastos, no Estado de São Paulo, um patrício que
acolhia, no seu sítio, todos os colonos que estavam sendo explorados. Então,
ele escreveu para o patrício que se chamava Seiji Shimoide e pediu não só a
guarida, mas também como chegar de Ourinhos até Bastos. Um belo dia chegou
a resposta. Shimoide-san desconhecia os meandros das estradas de ferro e
teve de descobrir dentro do seu mundo nipônico quem os conhecia.
Yanaga não tinha coragem de empreender a longa fuga sozinho. Convidou
um amigo e juntos se preparam para a empreitada. Tinham de planejar cada
passo daí para frente. Tudo no maior sigilo. Ninguém deveria saber. Nem mesmo os demais colonos. Caso o capataz desejasse arguir alguém, não haveria
dedo duro. O primeiro passo era angariar a confiança do capataz. Decidiram
que começariam a trabalhar mais dedicadamente.
O segundo passo foi encerrar as tarefas do dia a qualquer preço no mesmo
dia. Fizesse calor ou chovesse. Mesmo quando tocava o sino eles continuavam a realizar suas tarefas. O capataz vinha buscá-los. Eles teimavam em
continuar trabalhando. O capataz ficava junto para testemunhar. Dias e dias
seguidos eles trabalharam. Certo dia, o capataz decidiu se afastar deixando-os
trabalhando. Eles concluíram suas tarefas. Foram gradativamente ganhando
a confiança do capataz.
No final de quase dois meses, o capataz ia embora e confiava na volta dos
dois rapazes. No dia seguinte, ele conferia a tarefa. Estava realizada. Ganharam
finalmente a confiança irrestrita. Esperaram uma noite de lua nova para a
grande fuga. Estaria tudo escuro. Era difícil vê-los. Foram levando durante uns
três dias, na hora do almoço, suas coisas para o meio do mato no caminho da
estação. Nessa bagagem, Yanaga levava com muito carinho, um elefante esculpido em madeira que havia comprado em Colombo, numa das paradas do navio,
na sua travessia rumo ao Brasil. Era um tesouro. Era o presente que adquira
para si mesmo. Cada vez que ele se sentira só, havia acariciado o mimo e dizia:
“nós dois estamos longe das nossas terras. Eu, por opção e você foi trazido por
mim. Sinto-me responsável por você.” Era o amigo confidente, o companheiro.
Afinal, Yanaga estava com apenas dezoito anos, e toda a bravata dele de
que se manteria só e enriqueceria parecia ter sucumbido nesses quase dois
anos de trabalho braçal no cafezal. Ele nunca comentou a distância entre o
cafezal e a estação. Pelos relatos, é de supor que fosse de cerca de umas duas
horas de caminhada. Compraram os bilhetes pois as instruções recebidas informavam os horários noturnos dos trens. E assim, munidos de coragem com
um tremendo medo de serem descobertos ficaram trabalhando arduamente
até quase a hora de o trem chegar. Pegaram suas bagagens e foram para a
estação, para a liberdade. Esta sensação de liberdade, eles sentiram quando
o trem chegou e eles entraram no trem. O medo deles era chegar alguém da
fazenda e reconhecê-los. Na ocasião, não havia telefone para comunicação
rápida. Este só chegou anos mais tarde.
354
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Que alívio na hora que o trem partiu! A primeira parte da viagem terminava na Estação da Luz. Ambos os fujões desconheciam como baldear. Falar
em japonês era gritar no vazio da multidão. Yanaga, por falar inglês se pôs a
gritar: Help me, please. Help me, please. Help me, please. E o tempo passava. E
ninguém oferecia ajuda. E eles não falavam português. Já estava quase na hora
de tomar o outro trem. E eles não podiam perdê-lo. Se perdessem a passagem,
não teriam recursos financeiros para comprar novo bilhete. Suavam frio. E
Yanaga gritava e gritava.
Depois de uns trinta berros finalmente apareceu alguém oferecendo ajuda.
E eles conseguiram tomar o trem e chegaram a Tupã. Daí, numa jardineira
por uma estrada de terra poeirenta rumaram para Bastos. Da sede de Bastos
não foi difícil encontrar o sítio de Shimoide-san. Foram recebidos com muitos
sorrisos, canecas de água tiradas de um poço e palavras de boas vindas. Fatos
estes que deram a eles a certeza de que estavam finalmente em liberdade e
ali começava a vida de imigrante no Brasil.
Muitos anos depois, Yanaga gostava de relembrar a façanha da fuga e
sempre colocou o mérito do sucesso da viagem à confiança ilimitada que
o companheiro depositou nele. Tamanha confiança só poderia gerar nele a
necessidade de não falhar. Era o mês de maio de 1934.
Referência
OKUBARO, Jorge. J. O súdito: Banzai Massateru! São Paulo: Terceiro Nome,
2006.
355
V ECONOMIA E RELAÇÕES DE TRABALHO
Nuevos estándares internacionales,
flexibilidad laboral y elementos de
trabajo esclavo en la horticultura de
exportación en México
Introducción
Boris Marañón-Pimentel
Este documento tiene por finalidad animar el debate sobre el carácter
cada vez más complejo que van asumiendo las relaciones laborales en esta
etapa de desregulación creciente del trabajo y destrucción de la ciudadanía,
a partir del análisis de los mercados de trabajo en la agricultura mexicana
de exportación en México, en los que coexisten relaciones laborales entre
trabajo y capital que se diferencian entre sí por el grado en que se cumplen los
derechos humanos y laborales básicos. Desde este punto de vista es posible
distinguir varios segmentos de empresas por la forma en que se estructuran los aspectos medulares de las relaciones laborales, destacando uno de
los agrupamientos por asemejarse al trabajo forzado, entendido según la
Organización Internacional del Trabajo - OIT (2005) como toda forma de
trabajo no voluntario impuesto bajo la amenaza de una sanción.
Para este fin, es importante recuperar la noción de nueva heterogeneidad
histórico-estructural, planteada por Quijano (1999), según la cual el movimiento de las sociedades latinoamericanas no sigue una pauta unilineal
acorde a lo registrado en la experiencia histórica europea de modo que no
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
se puede esperar un proceso de desarrollo capitalista que conduzca a un
creciente proceso de asalariamiento; por el contrario, se constata la coexistencia de diversas relaciones sociales de producción, donde la relación
capital-trabajo si bien es predominante, no es única ni homogénea. De este
modo es posible advertir otras relaciones sociales, entre ellas la producción
campesina y la producción artesanal, al mismo tiempo que se puede constatar la existencia de relaciones capital-trabajo variadas, algunas de ellas como
parte de un proceso acabado de asalariamiento con trabajo estable, otras
como expresión de procesos truncos de asalariamiento acompañados de un
manejo desregulado y flexible de la mano de obra, hasta llegar a relaciones
de servidumbre y esclavitud.
En este contexto, el objetivo del artículo es abrir el debate sobre la mayor
complejidad existente respecto del análisis de las relaciones laborales, pues
ya no se trata sólo de la pérdida de empleos asalariados con cierta estabilidad y prestaciones y por consiguiente de la extensión de las situaciones
de trabajo precario. En la actualidad es importante incorporar, además, el
surgimiento de modalidades laborales no estructuradas, no como situaciones
“atípicas”, sino como un rasgo histórico estructural de nuestras sociedades,
más allá del curso modernizador que se podría esperar a partir de una mirada evolucionista y dualista, de modo que junto al trabajo asalariado, en
diferentes modalidades de precariedad, pueden existir, y de hecho, existen,
otras relaciones sociales, entre ellas prácticas que podrían asemejarse al
trabajo esclavo.
Es importante resaltar que estas realidades laborales en la horticultura
de exportación siguen vigentes en un contexto en que, al nivel internacional,
se difunden nuevos estándares tanto laborales como de sanidad como la
Responsabilidad Social Empresarial y la Inocuidad Alimentaria, respectivamente, los que en términos discursivos significarían una mejora sustancial
en las relaciones laborales y son necesarios para legitimar socialmente la
oferta de hortalizas en los mercados mundiales.
El documento está estructurado en tres partes. La primera discute la
estructuración de los mercados de trabajo; la segunda analiza cómo dos
nuevos estándares internacionales, la responsabilidad social empresarial
y la inocuidad alimentaria, tienen escasos impactos sobre los mercados de
trabajo no estructurados, precarios y sujetos a una precariedad absoluta,
específicamente para el caso de Sinaloa, un estado ubicado en el noroeste
de México y que se caracteriza por ser el principal productor y exportador
de hortalizas del país. Al mismo tiempo se reflexiona sobre la existencia de
360
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
elementos de trabajo esclavo. Finalmente, se plantean algunas conclusiones. La investigación se realizó con base en entrevistas a diferentes actores,
como parte de un estudio más amplio en curso, sobre aspectos laborales en
la horticultura de exportación.
1 La estructuración de los mercados de trabajo:
del trabajo estructurado al trabajo esclavo
Con el cambio del modelo de desarrollo agrícola “hacia afuera”, a partir
de los ochenta, en América Latina, ha venido expandiéndose la llamada Agroexportación no Tradicional, la cual incluye una gama variada de productos
nuevos y otros viejos que se ofertan según los estándares de calidad del
mercado internacional, entre ellos las frutas, hortalizas y flores (RAYNOLDS,
1994; MARAÑÓN, 2004)1. Esta estrategia basada en el principio de las ventajas comparativas registra impactos positivos y negativos. Los primeros son
principalmente de tipo económico y tecnológico, pues se registra un fuerte
estímulo al cambio técnico en campo, poscosecha, empaque y cadena de
distribución física internacional; así como un crecimiento importante en el
valor y volumen de las exportaciones y la vinculación a exigentes mercados
internacionales en materia de calidad y oportunidad. Los segundos son de
carácter social y ambiental, pues por un lado, existe una concentración de
los beneficios en grandes empresas, transnacionales y nacionales, ya que los
cultivos son intensivos en tecnología y crédito, barreras de entrada para la
pequeña agricultura, con ciertas excepciones, como el caso de Guatemala; al
mismo tiempo existe un consenso respecto a la precariedad de los empleos
generados por esta actividad (THRUPP, 1995, 1999; SCHWENTESSIUS;
GÓMEZ, 2000; MARAÑÓN, 2002a), por otro lado, se ha criticado el efecto
negativo sobre los recursos naturales (agua y tierra) y sobre la salud de los
asalariados del uso intensivo de agroquímicos (SEEFÓ, 1995; MARAÑÓN,
2002a; THRUPP, 1995).
Se han realizado diversos estudios respecto de los aspectos laborales
en la agricultura de exportación latinoamericana destacando los procesos
de segmentación por sexo, tipo de contrato; de precarización, de exigencia
de realización de diversas tareas (MURMIS, 1993; LARA, 1998; BENENCIA;
QUARANTA, 1996; CAVALCANTI; BENDINI, 2001; MARAÑÓN,1993; MARAÑÓN, 2004), la utilización de mecanismos de reclutamiento y control de
1 Existen diferentes factores de tipo político, económico, social y cultural, internacionales y nacionales,
que han contribuido a esta nueva modalidad de flujos agrícolas internacionales. Al respecto puede verse
Teubal (2001); Thrupp (1995; 1999; Marañón (2004).
361
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
la mano de obra, como el enganche (MARAÑÓN, 2002b). No obstante, las
nociones de flexibilización, desregulación y precarización utilizadas en los
últimos tres lustros en el ámbito académico, no parecen calificar ni describir
adecuadamente situaciones extremas de abusos, explotación y violencia
que se están dando a conocer respecto de trabajadores, no sólo agrícolas,
en diversos países latinoamericanos y diferentes cultivos, como ocurriría en
Argentina (con los migrantes bolivianos que trabajan como medieros en la
producción de hortalizas y los jornaleros en la producción de ajos); en los
que se evidencia una ausencia total de derechos laborales (salarios ínfimos,
extensas jornadas de trabajo sin pago de horas extras, pago al destajo, carencia de prestaciones básicas). Todo lo anterior que podría ser calificado de
trabajo degradante, no sería suficiente para utilizar la categoría de trabajo
esclavo, la cual tendría su lugar indiscutible en situaciones en que el empleador maneja de manera discrecional las relaciones de trabajo y además el
trabajador no tiene libertad para dejar el trabajo que desempeña debido al
endeudamiento inducido, a la amenaza de violencia física, a la retención de
los documentos de identidad y de los pagos, como sucede en la producción
de caña de azúcar en Brasil (NOVAES, 2007). Por estas razones, el análisis
de las relaciones laborales en la agricultura debe incorporar estas situaciones extremas, estableciendo puentes y cortes entre lo que sería el trabajo
precario, degradante y el trabajo esclavo.
Una manera de analizar esta problemática es el enfoque de la estructuración de los mercados de trabajo, desde el empleo estable y formal, hasta el
trabajo esclavo pasando por diversas modalidades desreguladas de empleo.
En este sentido es necesario presentar tres categorías: mercado de trabajo
estructurado, mercado de trabajo no estructurado y trabajo esclavo, teniendo como punto de partida la existencia de mercados parciales, es decir de
relaciones laborales desiguales, segmentados, entre distintos grupos, entre
los cuales la movilidad laboral es reducida o nula y los salarios tienden más
a la dispersión que a la igualación; pues no existe un mercado singular, sino
más bien, una multiplicidad de mercados parciales o segmentos entre los
cuales existen relaciones laborales desiguales de carácter duradero y estable, producida y reproducida constantemente por el proceso del mercado
de trabajo (SENGENBERGER, 1988, p. 346)2.
Los mercados parciales tienden a cierto grado de estructuración, al
tejer un conjunto de normas formales observadas con regularidad por los
2 Para una discusión amplia sobre la estructuración de los mercados de trabajo puede verse Marañón, 2004.
362
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
empresarios y por los trabajadores en su trato mutuo y que pueden ser
establecidas mediante una ley, un acuerdo o por la empresa. Las normas
tienen como función básica regular la contratación y las condiciones de
empleo: salarios, horas, cambios, asignación de tareas, etc, y su principales
efectos consisten en limitar el arbitrio del empleador en el trato con sus
trabajadores y en aportar cierta seguridad y regularidad en el manejo del
personal, suministrando “normas estándar” para llevar a cabo los complicados procedimientos de contratación y mantenimiento de una fuerza laboral
(PHELPS, 1964, p. 55-56).
1. 1 Mercados de trabajo no estructurados y estructurados
El modelo neoclásico de funcionamiento del mercado de trabajo, signado
por una movilidad sin restricciones y por salarios que tienden a igualarse,
ha sido denominado por Fisher (1953) como un mercado de trabajo no estructurado, con base en su estudio de la cosecha californiana, ya que existían
empleos pocos seguros, reducidas posibilidades de mejoría y débiles lazos
que vincularan al trabajador con el puesto de trabajo (vínculos comunitarios,
antigüedad, pensiones, entre otros), y una desprotección desde el punto de
vista de la negociación colectiva y legal. Fisher planteaba que los mercados
no estructurados se caracterizaban por 1) inexistencia de sindicatos con sus
prácticas usuales de antigüedad, preferencia de empleo y otras limitaciones
en el acceso al mercado de trabajo; 2) inexistencia de relaciones personales
entre empleadores y asalariados que impedían establecer obligaciones informales y el desarrollo de formas de tenencia moral de los puestos de trabajo;
3) empleo productivo mayormente no calificado, y cuando la división del
trabajo fuera necesaria, no debía basarse en la jerarquía o calificación; 4)
forma de pago por unidad de producto (peso o volumen) y no por unidad de
tiempo; 5) proceso de trabajo poco mecanizado (FISHER, 1953, p.7-9).
En función del grado de estructuración Kerr (1985, p.50) plantea la
existencia de dos tipos de mercado de trabajo: el no estructurado y el
estructurado. En el primero, sostiene el autor, no hay otro vínculo entre el
trabajador y el empleado que el salario, ningún trabajador tiene derecho
alguno sobre un empleo, y ningún empresario tiene derecho a retener a
trabajador alguno. En el segundo hay una clara preferencia entre el mercado interno (la planta, el grupo de oficios) y el mercado externo de trabajo.
Las preferencias pueden estar basadas en un criterio (prejuicios, méritos,
igualdad de oportunidades, antigüedad) ó en una combinación de ellos.
El mercado externo es definido como los grupos de trabajadores activos o
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
pasivos disponibles para nuevos puestos de trabajo, situados dentro de un
espacio geográfico y ocupacional y por los puertos de entrada que les están
abiertos. Kerr añade que la estructura “entra en el mercado” cuando se da un
tratamiento distinto a los que están “dentro” y los que están “fuera” y afirma
que cuanto más estructurado sea el mercado laboral, más precisas serán las
reglas de asignación dentro del mercado interno, menores los puertos de
entrada y más rígidos los requisitos de admisión; y además precisa que las
normas institucionales no suelen introducir la estructura en el mercado,
pues con frecuencia esta surge de las preferencias de los trabajadores y
empresarios, aunque la refuerzan de manera uniforme.
Una característica central de los mercados no estructurados es la
precariedad de los empleos. Según Sánchez y Cano (1998), la precariedad
se define en oposición a la relación laboral habitual, al empleo estándar,
asociado con la formalización jurídica de la relación laboral individual y
con un conjunto de derechos laborales y sociales (SÁNCHEZ; CANO, 1998,
p. 226); y presentaría cuatro dimensiones a) incertidumbre sobre la continuidad en el trabajo (trabajos temporales e inciertos); b) insuficiencia de
ingresos salariales sobre todo si está vinculada a la pobreza y a una inserción social insegura, porque impide al trabajador planificar su futuro según
los niveles de vida socialmente aceptados; c) existencia de condiciones de
trabajo inferiores a la norma: jornada laboral (duración, distribución, horas
extraordinarias, vacaciones), organización del trabajo (ritmos de trabajo,
asignación de funciones, polivalencia), adquisición de calificaciones en el
puesto de trabajo, promoción dentro de la empresa, salud laboral (protección y compensación de riesgos) y participación en la acción sindical;
d) insuficiencia de protección social, pues esta representa un importante
elemento de reducción de la incertidumbre, destacando particularmente
los sistemas de prestaciones sociales y las normas reguladoras de las relaciones laborales, que reducen algunos riesgos asociados a la organización
capitalista del trabajo (discriminación laboral, discrecionalidad empresarial)
y compensan otros de difícil reducción (paro, jubilación) (SÁNCHEZ; CANO,
1988, p. 229-230). Por tanto, los elementos básicos que comportaría la relación estándar de empleo son: 1) estabilidad en el empleo; 2) promoción en
el puesto de trabajo y 3) protección social. Los autores (p. 227) proponen
tres modelos a partir de la presencia y combinación de las dimensiones de
precariedad en relaciones laborales concretas, que por sus características,
arrojan consecuencias diferentes sobre las condiciones de vida y laborales
de los trabajadores: a) precariedad absoluta, definida por la inestabilidad en
364
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
el empleo (trabajos temporales, con una tarea o fecha de duración determinados, subcontratación-relación triangular de empleo-, trabajo clandestino);
b) precariedad larvada, vinculadas con empleos formalmente típicos pero
que resultan precarios, debido a la incertidumbre sobre la continuidad en
el empleo o a la imposibilidad de adquirir una formación y una promoción;
c) precariedad marginal; los cuasitrabajos, definidos fundamentalmente
por la insuficiencia continuada de los salarios a causa de la corta duración
de la actividad laboral. Son empleos que no permiten vivir, ni en los casos
extremos, reconocer como trabajador- en el sentido socialmente habitual- a
quien las desarrolla (trabajos a tiempo parcial que suponen pocas horas de
trabajo a la semana) (SÁNCHEZ; CANO, 1998, p. 232-236).
1.2 El trabajo forzoso-esclavo
En el extremo de las variantes de relaciones de trabajo se puede ubicar el trabajo esclavo, el mismo que no tiene un significado semejante a
relaciones de trabajo con salarios bajos o condiciones de trabajo precarias
o degradantes en las que no existen derechos laborales. En su primer convenio relativo a este tema (Convenio sobre el trabajo forzoso, 1930, núm.
29), la OIT define el trabajo forzoso a los efectos del derecho internacional
como todo trabajo o servicio exigido a un individuo bajo la amenaza de una
pena cualquiera y para el cual dicho individuo no se ofrece voluntariamente
(artículo 2, 1), éste se lleva a cabo de forma involuntaria; la pena no tiene
por qué ser necesariamente una sanción penal, sino puede consistir en una
pérdida de derechos y privilegios (OIT, 2005). El trabajo forzoso constituye
una grave violación de los derechos humanos y una restricción de la libertad
personal, según la definición contenida en los convenios de la OIT relativos
a este tema y en otros instrumentos internacionales conexos relativos a la
esclavitud, a las prácticas análogas a la esclavitud, a la servidumbre por
deudas y a la condición de siervo (OIT, 2005).
Con el objetivo de plantear una imagen clara de lo que significa el trabajo
forzoso, la OIT ha desarrollado algunos criterios básicos para la determinación de situaciones de dicha índole, planteando dos dimensiones, la primera
referida a la ausencia de consentimiento y la segunda, a la amenaza de pena
(Ver recuadro No. 1). De este modo, el trabajo esclavo es una situación de
pérdida de libertad del trabajador, debido a diversos factores, entre ellos, el
endeudamiento inducido, retención de documentos, presencia de guardias
armados (REZENDE FIGUEIRA, 2004). En la legislación penal de Brasil, se
sostiene que la reducción de alguien a la condición análoga de esclavo, sig365
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
nifica tratar de someterlo a trabajos forzados o a una jornada prolongada,
querer sujetarlo a condiciones degradantes de trabajo, querer restringir,
por cualquier medio, su movilidad, en razón de una deuda contraída con el
empleador (ESTERCI, 1994).
Son evidentes las diferencias entre las relaciones laborales estructuradas, las no estructuradas y las vinculadas al trabajo esclavo. En las primeras
existe estabilidad en el empleo y reconocimiento de derechos humanos y
laborales. En las segundas, la precariedad es el signo más relevante, lo que
se traduce en inestabilidad en el empleo y en la carencia de derechos laborales y de algunos derechos humanos relativos al trabajo (discriminación,
trabajo infantil, ausencia de sindicalización y negociación colectiva). En la
tercera, existe precariedad en cuando al empleo, a las condiciones de trabajo, pero lo fundamental es la restricción a la libertad personal a través de
diversos mecanismos. Al mismo tiempo, es clara la diferencia entre empleo
estructurado y el no estructurado pues este último se caracteriza por la
precariedad y puede alcanzar el calificativo de degradante por la ausencia
de prestaciones, de condiciones dignas de trabajo, y en general por la inexistencia de derechos laborales. Sin embargo, hay una línea muy relevante,
aunque delgada y tenue, entre el empleo precario que puede denominarse
degradante y el trabajo esclavo: la conculcación de la libertad del trabajador
y su sometimiento a la plena discrecionalidad plena del empleador.
A) Ausencia de consentimiento (o falta de voluntad) para realizar el
trabajo
Inicio de la situación de trabajo forzoso.
• Nacimiento en la esclavitud o en la servidumbre o ascendencia
esclava o servil.
• Rapto o secuestro físico.
• Venta de una persona a otra.
• Confinamiento físico en el lugar de trabajo.
• Coacción psicológica, orden de trabajar acompañada de una
amenaza creíble de pena en caso de incumplimiento.
• Endeudamiento inducido (mediante la falsificación de cuentas,
el aumento exagerado de los precios, la reducción del valor
de los bienes o servicios producidos o el cobro de intereses
excesivos).
366
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
• Engaño o falsas promesas sobre el tipo y las condiciones del
trabajo.
• Retención e impago de salarios.
• Retención de documentos de identidad u otros efectos personales de valor.
B) Amenaza de pena (medios para mantener a alguien en una situación
de trabajo forzoso)
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Presencia real o amenaza creíble de:
Violencia física o sexual
(Amenaza de) represalias sobrenaturales
Encarcelación u otro confinamiento físico.
Penas financieras
Denuncia ante las autoridades (policía, autoridades de inmigración, etc.) y deportación
Despido del puesto de trabajo, exclusión de empleos futuros
Supresión de derechos o privilegios
Privación de alimento, cobijo u otras necesidades
Cambio a condiciones laborales todavía peores
Pérdida de condición social.
Recuadro1- Elementos del trabajo forzoso
Fuente: OIT (2005).
Por esta razón, es importante tener claridad sobre cómo calificar situaciones laborales indignas, de sobreexplotación incuestionable, pues puede,
como se hace en el periodismo de investigación, plantearse la denominación
de esclavitud moderna, hacia prácticas laborales de extrema precariedad,
degradantes, con fuertes presiones para incrementar la productividad, pero
que no significan la conculcación de la libertad del trabajador.
Sin embargo, también se utiliza la categoría de trabajo esclavo para
señalar situaciones de explotación sin límites y ausencia de humanidad,
pues determinadas relações de exploração son de tal modo ultrajantes que
la escravidão passou a denunciar a desigualdad no limite da desumanização;
especie de metáfora do inaceitável, expressão de un sentimento de indignação que, afortunadamente, sob esta forma afeta segmentos mais amplos
do que obviamente envolvidos en luta pelos direitos. (ESTERCI, 1994, p.
44-45, apud REZENDE FIGUEIRA, 2004), o en Argentina donde existen
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Talleres textiles con empleados bolivianos, extensión horaria en comercios
minoristas y en supermercados, condiciones precarias en call centers y en
la construcción, subcontratación y tercerización en medianas y grandes
industrias, precariedad en fileteros de pescado y en el sector agrícola.
Desde una posición moral se lo denomina “trabajo esclavo”. Pero todos
esos casos son de sobreexplotación, organización de las relaciones laborales
que busca ganancias extraordinarias3.
En América Latina, según un estudio de la OIT (2005) 1.3 millones de
personas (el 10.7 % del total mundial) se encuentran bajo condiciones de
esclavitud, principalmente en Brasil, Perú, Paraguay y México, realizando
actividades productivas agrícolas en las regiones alejadas de la Amazonía,
donde la presencia del Estado es débil y donde se recurre al endeudamiento
inducido (OIT, 2005), situación que está documentada para el caso brasileño
en las cadenas productivas de alcohol, soya, algodón, carne bovina, carbón
vegetal y café (SAKAMOTO, 2007). Sin embargo, también podría estar presente en centros urbanos importantes, donde se han presentado denuncias
respecto a la esclavitud de migrantes bolivianos que laboran en talleres textiles, como Sao Paulo, en Brasil4, y Buenos Aires, Argentina (LOTO, 2007).
Con excepción de Brasil5, no parece existir en el resto de América Latina,
un conjunto sistemático de investigaciones que traten de dar cuenta de este
gravísimo problema en el caso de la agricultura. Moraes (apud LARA, 2008),
habla de la existencia de trabajo esclavo en las fábricas de procesamiento
de cana de azúcar en Riberão Petro (São Paulo), la principal región en el
mundo productora de etanol, donde operan quinientas empresas (entre
ellas las transnacionales Cargill, Global Foods y USIAN) y los trabajadores
sometidos a fuertes presiones para cumplir y/o superar la productividad
exigida, ya que el pago es por tarea. Los jornaleros quedan sometidos a
3 Ver http://www.lafogata.org/06arg/arg5/arg_21-7.htm
4 Río de Janeiro. Más de 200.000 bolivianos trabajan ilegalmente y en condiciones de semi-esclavitud en
talleres clandestinos de São Paulo, a pesar de la posibilidad de regularización ofrecida hace dos años,
Según el presidente de la Asociación Nacional de Extranjeros e Inmigrantes de Brasil (ANEIB), “tan sólo
18.000” bolivianos “aprovecharon la oportunidad” de legalizar su situación en los últimos dos años.
Este número “dobla” al de trabajadores bolivianos en situación regular reconocidos por el gobierno del
estado de Sao Paulo, explicó a Efe el presidente de la (ANEIB), Grover Calderón. Calderón afirmó que
estos inmigrantes trabajan hasta 18 horas diarias para recibir, “en los mejores casos”, un salario “menor
al mínimo vital” y, en los peores, tan sólo un lugar donde dormir y algo de comida. El representante de la
asociación de inmigrantes subrayó que estos talleres están controlados por brasileños, coreanos y otros
bolivianos que, con la explotación de estas personas, consiguen ropa a precios “muy baratos” por lo que,
con sus ventas, se lucran a costa de los derechos de sus trabajadores (30/01/2008). http://www.soitu.
es/soitu/2008/01/30/info/1201732990_556015.html
5 En Brasil hay un conjunto de agrupaciones dedicadas al estudio de este problema, destacando el Grupo
de Pesquisa del Trabajo Esclavo Contemporáneo (GPTEC), en la Universidad Federal de Río de Janeiro,
al mismo tiempo que se ha aprobado una legislación para criminalizar este tipo de prácticas laborales.
368
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
condiciones degradantes y a trabajo esclavo, ya que no pueden salir de las
faziendas debido a la imposibilidad de pagar las deudas contraídas con
los contratistas, pieza fundamental en las relaciones laborales precarias,
degradantes y esclavistas.
1.3 Los mercados de trabajo no estructurados en la horticultura de exportación en
Sinaloa, México
En México, a consecuencia del ajuste estructural impulsado desde los
ochenta, la exportación de frutas y hortalizas ocupa un lugar importante en la
utilización de recursos productivos y en la generación de divisas. Anualmente
se exportan más de 4.5 mil millones de dólares de frutas y hortalizas, en su
mayoría al mercado estadounidense, y estos envíos externos constituyen
más de la mitad del valor exportado por el sector alimentario mexicano. En
general, la agricultura mexicana presenta mercados de trabajo que, de acuerdo a su grado de estructuración, pueden ser considerados no estructurados
y en una situación de precariedad absoluta, es decir, con inestabilidad en el
empleo, la insuficiencia de ingresos, pésimas condiciones de trabajo, falta de
acceso a la seguridad social y ausencia de organización independiente. Sólo
una escasa proporción de trabajadores se ubica en mercados estructurados,
situación que remite a una situación opuesta a la del trabajo decente6.
Por su parte, Sinaloa es el centro hortícola exportador más importante del país, no sólo por la escala de utilización de recursos productivos,
principalmente tierra, mano de obra y agua, sino también por producir
con tecnologías muy sofisticadas que permiten alcanzar los estándares de
calidad exigidos por el mercado estadounidense. La importancia de Sinaloa
se evidencia en que en las últimas dos décadas y media aportó la mitad de la
producción física total nacional de hortalizas a nivel nacional, y también la
mitad del valor de la producción, siendo las principales hortalizas el tomate,
pepino, berenjena chile, entre otras. Entre 1997 y 2007, el estado exportó
en promedio el 39.7% de la producción total de hortalizas, con un valor
promedio anual de 626.71 millones de dólares (SANDOVAL, 2007).
La fuerte presencia sinaloense en los mercados internacionales hortícolas, se explica, según Maya (2004), porque las empresas exportadoras
iniciaron en los noventa un proceso de reestructuración productiva para
mantenerse en los mercados internacionales combinando cinco estrategias
6 Ver Lara, 2008, para una discusión sobre el trabajo decente en la agricultura moderno-empresarial
mexicana.
369
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
para mantenerse competitivas: a) especialización productiva; b) innovación
constante en términos tecnológicos y organizativos, c) inocuidad alimentaria,
d) desarrollo de canales de comercialización eficientes, y e) política social7..
Estas iniciativas, económicamente exitosas, se mantienen en constante
revisión y cambio debido a las exigencias que a los empresarios plantea
el carácter monopsónico de la cadena hortícola, el mismo que lleva a los
compradores –grandes cadenas de supermercados- a una constante búsqueda por nuevas fuentes de oferta en diversos países subdesarrollados,
agudizándose la competencia con la consiguiente reducción de los márgenes
de ganancia (COOK, 2001 apud SANDOVAL, 2007).
La actividad hortícola exportadora sinaloense se asienta en la utilización
de 30,000 ha. de cultivo bajo riego, en la temporada otoño-invierno, y en el
empleo de alrededor de 200,000 jornaleros8, los mismos que son de variada
procedencia indígena y reclutados principalmente en las regiones pobres
del sur del país, a través de enganchadores que articulan las relaciones
entre jornaleros y empresarios, contribuyen a la existencia de mercados de
trabajo no estructurados y a situaciones de trato degradante a los jornaleros
(MARAÑÓN, 2002b y 2004).
Respecto de las relaciones laborales, en el escenario hortícola sinaloense
se ha registra una relación capital-trabajo caracterizada por la precariedad,
la desprotección de los jornaleros, mayormente indígenas, quienes tienen
condiciones de trabajo y vida degradantes, por la presencia de trabajo infantil, problemas con los enganchadores, ausencia de servicios básicos en
los campamentos, dificultades para organizarse de manera independiente,
bajos salarios (LARA, 1998; DE GRAMMONT; LARA, 2000; POSADA, 2003;
MARAÑÓN, 2002b; DÍAZ, 2004). Estos mercados de trabajo están segmentados por criterios de sexo, raza y calificación, siendo importante sostener que
la estructuración y no estructuración se pueden hallar de modo simultáneo
en una misma empresa (trabajo estable, gradaciones de trabajo precario y
trabajo estable).
La escasa estructuración es en si misma una construcción social y
política, pues la existencia de estos mercados “competitivos” no sólo es el
producto de la eliminación o atenuación de las restricciones a la venta de
7 Sobre esta problemática también puede verse Avendaño y Schwentesius, 2005 y Grammont, 1999.
8 El universo de jornaleros agrícolas en los valles hortícolas sinaloenses en impreciso, por la dificultad
para realizar estimaciones cuantitativas dadas su gran movilidad geográfica. El Programa Atención a los
Jornaleros Agrícolas (PAJA) sostenía que en 2000 existían unos 200,000 jornaleros migrantes. Cuatro
años después, a partir de los diagnósticos situacionales de los jornaleros agrícolas, tenía una estimación
mucho menor, de 112,000 trabajadores. En 2008 la mencionada institución sostuvo que la población
trabajadora ascendía a 190,000 personas.
370
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
mano de obra, sino de un proceso notable de coordinación entre el Estado
y los productores, primero, a través del debilitamiento de los sindicatos
independientes; y segundo, por medio del acuerdo negociado, a mediados
de la década del ochenta, entre la organización de los productores y la Central de Trabajadores de México, de corte corporativo y clientelar, para que
ésta se convirtiera en el intermediario laboral para el reclutamiento de los
jornaleros en los estados pobres del sur.9 De este modo, el funcionamiento
de los mercados no estructurados en Sinaloa, se apoya en una compleja
arquitectura económica y social, ya que la organización de los empresarios,
con el apoyo del Estado, opera y sostiene la desorganización del mercado
laboral en perjuicio de los jornaleros (KRIPPNER, 2001). En este sentido,
sigue vigente el pacto histórico entre los empresarios sinaloenses y el Estado, destacado por Mares (1991), que daba a los primeros el control de los
sindicatos y, por tanto, del manejo de las relaciones laborales de manera
discrecional, a cambio de la generación de empleos y de divisas, mientras el
Estado se encargaría de proveer de infraestructura de riego y otros incentivos
a través de diversos instrumentos de política económica.
2 Los nuevos estándares internacionales: la responsabilidad social
empresarial y la inocuidad alimentaria
En la última década dos factores de procedencia internacional podrían
ser significativos con el fin de construir relaciones laborales menos inequitativa y contribuir a la estructuración de los mercados de trabajo en la
horticultura de exportación. Se trata de la Responsabilidad Social Empresarial y de la Inocuidad Alimentaria. ¿Contribuyen estos dos estándares a
la edificación de otro modelo productivo basado en un control de la mano
de obra menos precario? ¿Mejoran los jornaleros su capacidad organizativa, de negociación de modo que su intervención en la configuración de las
relaciones laborales tiene alguna significación? ¿Se debilitan las prácticas
de segmentación sexual-racial y según calificación? ¿Se debilitan los mecanismos de discriminación de los trabajadores? En suma ¿la introducción
de los nuevos estándares disminuye las prácticas de minorización de la
fuerza de trabajo indígena? ¿ cuestiona la colonialidad del poder, es decir,
la edificación de un sistema de control del trabajo conformado por diversas
relaciones sociales de producción basado en la clasificación jerárquica de los
trabajadores, según el criterio de raza10?
9 Respecto a las formas de reclutamiento de mano de obra ver Marañón (2002b).
10 Ver Quijano, 2000, sobre la colonialidad del poder.
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Ricardo Rezende Figueira
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(Orgs.)
La Responsabilidad Social Empresarial es un discurso con distintos
orígenes, significados y fundamentos, esgrimido de modo principal por
organismos multilaterales (especialmente la Organización de Naciones
Unidas), gobiernos y organizaciones empresariales, que sostiene como
común denominador la búsqueda del desarrollo sostenible, mejorando los
actuales desequilibrios sociales, políticos, económicos y ambientales profundizados por el proceso de internacionalización del capital. La propuesta
se caracteriza por promover la realización de diversas acciones basadas
en la voluntariedad, definidas sin la participación efectiva de los sectores
sociales involucrados, especialmente los asalariados. Dichas iniciativas
tampoco son objeto de monitoreos independientes y no existen sanciones
en caso de incumplimiento. De este modo, es una propuesta que en esencia
trataría de legitimar el accionar empresarial, sin cambios fundamentales en
su desempeño, en este caso, en las relaciones de trabajo (Marañón, 2009).
En México, esta iniciativa es impulsada por el Centro Mexicano para la
Filantropía (CEMEFI) y la Alianza para la Responsabilidad Social Empresarial (ALIARSE). CEMEFI, una asociación civil sin fines de lucro, mientras
que ALIARSE es la unión de algunas de las más importantes organizaciones
empresariales del país (Coparmex, Consejo Coordinador Empresarial, CONCAMIN, Confederación Unión Social de Empresarios de México, Aval e Impulsa) comprometidas e interesadas en promover la responsabilidad social en
México. Ambas organizaciones crearon en 2001 un Distintivo ESR, a partir de
un proceso voluntario de autoevaluación que es validado por un comité de
especialistas representantes de las principales instituciones conformantes
de ALIARSE. Para obtener el Distintivo ESR, las empresas tienen que alcanzar los estándares establecidos y sustentar los 120 indicadores marcados
en la convocatoria, en las cuatro áreas básicas de la Responsabilidad Social
Empresarial: Calidad de vida en la empresa, Vinculación con la comunidad,
Ética empresarial y Cuidado y preservación del medio ambiente.
La certificación empezó en 2001, con 17 empresas, cantidad que creció
a 357 en 2008. Entre las empresas certificadas se encuentran algunas de
carácter transnacional como Coca Cola, Walmart, Grupo Financiero BBVA
Bancomer, Grupo Financiero Serfín-Santander, Grupo Modelo, Mc Donald´s
de México, Grupo Industrial Lala, Bonafont, Cementos Mexicanos, Ford Motor Company México, Teléfonos de México y General Electric México (www.
cemefi.org.mx).
Se ha destacado que las empresas mexicanas y CEMEFI a) tienen una
concepción autoritaria de la RSE, pues es una iniciativa construida, ejecutada
372
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
y evaluada sólo por sectores empresariales sin que estén representados los
trabajadores ni las organizaciones no gubernamentales; b) una orientación
filantrópica, pues sus acciones se caracterizan por no enfocarse en aspectos
centrales de su relación con sus trabajadores; c) el distintivo ESR se otorga
a partir de la evaluación de los documentos que las empresas presentan a
CEMEFI, sin que éste realice visitas de monitoreo in situ y recabe los puntos
de vista de los trabajadores (MARAÑÓN, 2006, 2009).
Por su parte, la Inocuidad Alimentaria es un estándar que ha tomado
importancia en el flujo internacional de productos alimentarios, ya que se
exige los alimentos estén libres de riesgos de contaminación física, química
y biológica. Los antecedentes de remontan a fines de los setenta, cuando en
el marco de las negociaciones comerciales multilaterales se firmó el acuerdo
sobre Barreras Técnicas al Comercio (BTC). Luego se estableció un acuerdo
sanitario y fitosanitario que sienta las reglas básicas y estándares para la
inocuidad alimentaria y la salud animal y vegetal, y permite a los países establecer sus estándares propios, pero establece que las regulaciones deben tener bases científicas11. Tradicionalmente, eran las agencias gubernamentales
las responsables por el monitoreo los estándares de inocuidad alimentaria
y los atributos de calidad de los alimentos. Sin embargo, la conformación
del sistema global alimentario, la consolidación de la etapa minorista y el
crecimiento de estándares minoristas, la gestión de esta actividad está siendo
encargada a certificadores de tercera parte. De este modo, la Certificación
de Tercera Parte (CTP) es un mecanismo regulatorio tanto en la esfera
pública como privada de las cadenas alimentarias, ya que los minoristas
exigen que sus proveedores sean certificados a través de criterios de acceso,
evaluación de la sanidad y calidad basados en conjuntos particulares de
estándares y de métodos de cumplimiento. La certificación provee certeza
de un producto a las partes interesadas al suministrar información acerca
de la fruta u hortaliza y de su proceso de producción. La especificidad de la
CTP es su proclamada independencia de los otros participantes, entre ellos,
los productores y los minoristas; así como su tecnocientificidad, objetividad
y transparencia, con el objetivo de incrementar la confianza y legitimidad
entre sus clientes. (HANAKATA et al, 2005).
11 Los grados y estándares consisten en un conjunto de especificaciones técnicas, términos, definiciones y
principios de clasificación y etiquetado; incluyen reglas de medición establecidas o reguladas por la autoridad (estándares) y sistemas de clasificación basados en atributos cuantificables (grados). Ambos pueden
referirse a productos o procesos relativos a calidad (apariencia, limpieza, sabor, etc.), seguridad (ausencia
de residuos de pesticidas en los productos, o libres de hormonas o de presencia bacteriana), autenticidad
(denominación de origen o el uso de un proceso tradicional, y bondad del proceso productivo, respecto a
la salud y seguridad del trabajador o de la contaminación ambiental. (AVENDAÑO et al, 2004).
373
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
En 1998, el gobierno de Estados Unidos estableció una ley respecto de la
inocuidad alimentaria, encargando a la Federal Drug Administration (FDA)
como la institución responsable y otorgándole facultades para prevenir la
distribución de alimentos importados, inseguros mediante el aseguramiento
de los mismos, hasta ser revisados por ella misma. La FDA estableció regulaciones a los laboratorios privados para la toma y análisis de muestras de
alimentos importados, exigiendo a los proveedores de alimentos el cumplimiento de las Buenas Prácticas Agrícolas (BPA) y a las Buenas Prácticas de
Empaque (BPE), especificadas en la Guía para reducir al mínimo el riesgo
microbiano en los alimentos en el caso de frutas y vegetales frescos. [Avendaño et al, 2004]. El cumplimiento de estas prácticas es indispensable, pues
el consumo de frutas y hortalizas frescas producidas sin BPA ha sido asociado
con brotes de infecciones intestinales y enfermedades crónicas.
En México, el proceso de certificación se caracteriza por su unilateralidad, pues son los supermercados estadounidenses, como ejes dominantes
de la cadena de producción internacional (GEREFFI, 2001) los que definen
los contenidos de la misma, y esta función se delega a una empresa privada
internacional. En el ámbito interno, en respuesta a las exigencias de los
mercados internacionales en materia de inocuidad alimentaria, el Estado, ha
establecido ciertas normas que establecen los estándares que deben cumplir
en materia de uso de plaguicidas, de higiene de los trabajadores del campo y
empaque. Por tanto, en el caso de las hortalizas de exportación, los actores
centrales son las cadenas de supermercados, la certificadora privada internacional y la Secretaría de Agricultura, Ganadería, Desarrollo Rural, Pesca
y Alimentación (SAGARPA). En este proceso no participan otros sectores de
interés, entre ellos sindicatos de jornaleros y organizaciones no gubernamentales. El foco de esta certificación es la minimización de los riesgos para
la salud de los productos exportados, y no hay referencia alguna al tipo de
relaciones de trabajo en los lugares de producción de hortalizas ni una firme
exigencia de erradicación del trabajo infantil. Respecto de los trabajadores
se despliegan ciertos procedimientos para el cuidado del aseo personal de
los jornaleros y que estos observen ciertas prácticas de higiene12.
12 Para mayores detalles sobre aplicación de la inocuidad alimentaria en México ver Avendaño et al (2004)
y en relación a su impacto en las relaciones laborales ver Marañón 2006 y 2009.
374
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
2.1 Impactos de los estándares en las relaciones laborales
En este apartado se compara el desempeño laboral de las empresas
socialmente responsables, las que, además, están certificadas en materia
de seguridad alimentaria, con las prácticas laborales comunes en la horticultura de exportación sinaloense. Diez de las setenta empresas hortícolas
exportadoras han obtenido el reconocimiento de Empresas Socialmente
Responsables (ESR) y han sido reconocidas por sus Buenas Prácticas Agrícolas y Buenas Prácticas de Manufactura. Este subconjunto de empresas
controla alrededor de 4,500 has (20%) de la superficie total dedicada a la
horticultura de exportación y 30,000 jornaleros (15%) de la mano de obra
asalariada total.
La comparación entre ambos universos sugiere que las relaciones
laborales en las empresas socialmente responsables no son muy distintas
de las que caracterizan a las empresas sinaloenses. Dicho de otro modo, la
condición de socialmente responsable no supone una modificación significativa en las relaciones laborales que pueda contribuir a un mayor bienestar
de los jornaleros.
Las coincidencias más importantes entre ambos grupos se registran
respecto al incumplimiento de disposiciones legales en cuanto al empleo
temporal, sin contrato firmado, con jornadas de trabajo que se prolongan
más allá de las ocho horas, pago a destajo, y ausencia de organizaciones
sindicales independientes y de contrato colectivo. Los jornaleros trabajan
en la temporada de invierno, entre tres y seis meses, cuando la oferta interna de hortalizas en la zona este de Estados Unidos se reduce por razones
climáticas; el concurso de los jornaleros es, por tanto, temporal, sin previa
firma de contrato, con pagos que se realizan de acuerdo al esfuerzo físico
(tarea en el campo y destajo en el empaque) y obligan al trabajador a laborar
entre 12 y 16 horas diarias, considerando el tiempo de desplazamiento de
los albergues a los campos (Ver cuadro 1).
Todas ellas, además, tienen prácticas discriminatorias respecto de los
trabajadores en función, en primer lugar de la raza y luego del sexo, segmentando los mercados de trabajo, además, bajo la óptica de la calificación. Así,
los indígenas tienen, en general, trabajo en el campo, ganando por tareas,
los mestizos, en los empaques y en labores jerárquicamente más elevadas.
Esta arquitectura sociolaboral, se funda, pues, en la colonialidad del poder.
Las diferencias se refieren a que las empresas con la distinción de
socialmente responsables si tienen a sus trabajadores registrados en el
Seguro Social, no contratan mano de obra infantil y sí reconocen los pagos
375
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de finiquito y reparto de utilidades. En ambos grupos se acepta el pago del
séptimo día (descanso). Con relación al acceso al seguro social por parte de
los jornaleros, existe un grave problema, pues en el país, la mayoría de ellos
no tiene cobertura médica, previsional, de accidentes de trabajo, maternidad,
entre otras. Una sintética revisión histórica muestra el desinterés del Estado
en velar por la aprobación y cumplimiento de este derecho vital para los
jornaleros, ya que los empresarios, muy organizados y con claras influencias en la esfera política, se han resistido a pagar las cuotas establecidas
por diversas reformas a la Ley del Seguro Social y no han incrementado de
manera significativa el número de trabajadores que gozan de este derecho
(GUERRA OCHOA, 1998). Hasta 1996, las empresas agrícolas sólo pagaban
sus cuotas en relación a la prima de enfermedades y maternidad para los
trabajadores estacionales del campo. En dicho año hubo una reforma a la
Ley del Seguro Social y los trabajadores del campo fueron asimilados al
régimen general de ley, de modo que se obligó a las empresas a cotizar por
enfermedad, maternidad, retiro, cesantía en edad avanzada y vejez, guardería y otros conceptos más. Los empresarios sostuvieron que las cuotas
resultantes eran muy elevadas y que el Seguro Social no prestaba servicios
de calidad, así que en 1998 por decreto presidencial se estableció un subsidio
para apoyar por un periodo de 6 años, una fracción de los pagos al seguro
social por parte de los empresarios. No obstante, al término del período,
en 2004, los empresarios, especialmente los del noroeste, presentaron un
recurso de amparo sosteniendo que el monto establecido era muy costoso
y que el Seguro Social no proporcionaba un servicio de calidad, pues no
tenía infraestructura, no proveía medicinas, no pagaba las horas extras a los
profesionales de la salud y no tenía guarderías. En 2005 se dio otra reforma
y se introdujo la subrogación, es decir la devolución por parte del IMSS de
los gastos realizados en infraestructura médica y guarderías, y también
un descuento del 20% en la base de cálculo del bono de productividad, ya
que la mayoría de los jornaleros trabaja al destajo, y se dispuso una base
de cotización equivalente a 2.1 salarios mínimos vitales (sm). Sin embargo,
los empresarios sostuvieron que la contribución al IMSS seguía siendo muy
elevada, a lo que se sumaba la cuota que debía pagarse al INFONAVIT. Se
inició, entonces, otro proceso de renegociación, con participación del Seguro
Social y la presidencia de la república por considerar que la reforma no era
beneficiosa para los empresarios, así que se buscó una nueva que permitiera
la viabilidad económica de las empresas. De este modo, en diciembre de 2005
se publicó otro decreto presidencial que aprobó una cuota fija equivalente
376
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
a 1.68 sm. Misma que se renovó en enero de 2007 con vigencia hasta enero
de 2010, junto con otros beneficios administrativos (presentación mensual
de altas y bajas y de movimientos salariales). No obstante, para los empresarios la contribución actual sigue siendo muy costosa, pues se ha elevado
de 2.59 pesos en 1996 hasta 20 pesos actualmente. Lo óptimo para ellos,
sería pagar 10 pesos y otros 4 pesos más por el INFONAVIT. En Sinaloa, la
práctica común es que las empresas no registren a sus trabajadores en el
Seguro Social, sin embargo, las empresas reconocidas como socialmente
responsables sí lo hacen. Tomando en cuenta el universo de trabajadores en
las empresas socialmente responsables, sólo el 30% del total de jornaleros
tendría acceso a la seguridad social y a sus múltiples beneficios.
Otro aspecto que diferencia a los dos conjuntos de empresas el problema
del trabajo infantil, situación de primer orden en la agricultura mexicana13
habiéndose hecho poco para evitar que, cada año, los niños jornaleros realicen labores pesadas, para ayudar al magro ingreso familiar, dejando de
lado su pequeño mundo y la escuela. En Sinaloa, según la UNICEF, en 2005
la población infantil trabajadora llegaba a 5,000 personas, pero esta cantidad parece muy conservadora, pues de acuerdo a la Dirección de Trabajo y
Previsión Social del gobierno del estado, en 2007 se registró una población
de 12,00014, mientras que desde el lado académico se estima que la cantidad
real es de 20,000 niños15. En 2007, comenzó el programa Monarca, destinado
a estimular, a través del otorgamiento de una despensa, el alejamiento de
los niños de los campos de cultivo y su asistencia a la escuela. Sin embargo, el programa no ha tenido el impacto esperado porque, por un lado, los
padres de los niños jornaleros, como parte de una racionalidad que trata
de alcanzar en cada temporada los mayores ingresos monetarios posibles
para ahorrar dinero y financiar el retorno a los lugares de origen y también
la producción agrícola de subsistencia, prefieren que los niños trabajen, ya
que, además, los niveles salariales, para el tipo de labor que realizan, son
muy reducidos. Por otro lado, las empresa, con algunas excepciones, entre
ellas las calificadas como socialmente responsables, dado lo intensivo en
13 El Instituto Nacional de Geografía e Informática (INEGI), estimó en 2002 que anualmente trabajaban en
el país 3.3 millones de niños, menores de 14 años, estableciendo que cerca de un tercio de ellos recibía
algún pago por su desempeño. Esta significativa cantidad de niños en el trabajo tiene su explicación en
el alto nivel de pobreza y desigualdad en el país. En el ramo agrícola, se estimó que habían 300,000 niños
jornaleros asalariados. Ver Inegi (2004).
14 Ver La Jornada, 17 de julio de 2007.
15 Entrevista con la especialista en empleo agrícola, Dra. Maria Teresa Guerra Ochoa, investigadora de la
Universidad Autónoma de Sinaloa, 15/01/09, en Culiacán.
377
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
mano de obra de la actividad hortícola, emplean a los niños por su destreza
y agilidad, tratando, además, de recuperar los gastos realizados en el traslado desde sus lugares de origen y el hospedaje brindado durante toda la
temporada. Al mismo tiempo, el suministro del servicio educativo para los
niños migrantes se torna complejo porque no hay correspondencia entre el
ciclo agrícola y el calendario escolar, la cobertura educativa alcanza apenas
a una quinta parte de la población y, además, en los campamentos con la
infraestructura correspondiente, las clases, en general, no se dan de acuerdo
al grado de cada niño, sino que estos son agrupados en aulas de primaría
y secundaria, con contenidos dictados en español, sin considerar que ellos
son bilingües, e impartidos por instituciones que tienen programas distintos
(SCHMELKES, 2006; INZUNZA; GONZÁLEZ, 2008).
Condiciones de trabajo
No hay cumplimiento por ninguna empresa
Práctica común
Práctica de ESR
•
Empleo permanente
No
No
•
Jornada 8 horas
No
No
•
•
•
Contrato firmado
No
Organización sindical independiente,
contrato colectivo
Vacaciones
Sí hay cumplimiento por parte de ESR
•
Seguro social
No
No
No
Si
No
•
Días de descanso
Sí
•
•
Participación en utilidades
No
Finiquito.
No
Si
No al trabajo infantil
Pago horas extras
No
No
•
•
No
No
Si
Si
Si
Si
Cuadro 1- México: Derechos laborales establecidos en la Ley Federal del Trabajo,
según su cumplimiento en la horticultura de exportación sinaloense
Fuente: Elaboración propia a partir de entrevistas realizadas con empresarios, dirigentes sindicales,
académicos, jornaleros agrícolas y funcionarios gubernamentales, en Sinaloa durante 2006-2008.
Las diferencias más claras entre el empresario promedio y los empresarios
socialmente responsables estarían en la política social, especialmente en las
condiciones de vida (infraestructura social) y en cuanto al reconocimiento de
los gastos de traslado y al libre tránsito de los jornaleros. En el aspecto específico
de condiciones de vida existe una situación muy grave para los jornaleros en la
mayoría de las empresas hortícolas sinaloenses, asunto que ha sido materia de
378
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
reclamos por parte de los jornaleros, de segmentos de la sociedad sinaloense
y de la Comisión Estatal de Derechos Humanos de Sinaloa (CEDHS).
En general, los jornaleros viven en pésimas condiciones en los campamentos de las empresas hortícolas (Lara, 1996; Guerra Ochoa, 1998). Se trata,
en general de campamentos en los que hay serias deficiencias en materia
de vivienda, salud y educación. En cuanto a vivienda, aunque propiamente
no existen tales, sino espacios construidos precariamente, muy reducidos
que propician el hacinameinto, con poca ventilación y con materiales inadecuados, sin que exista disponibilidad de agua potable.
Tampoco existen guarderías con infraestructura y atención adecuados.
En materia de salud, la atención médica puede ser muy variable en calidad,
ya que puede no haber acceso a medicamentos gratuitos y en ciertos campamentos las empresas se niegan a brindar a los jornaleros enfermos atención
especializada (Cuadro 2).
De este modo, en 2005, el Presidente de la CEDHS sostenía que sólo el
27% de los 160 campos agrícolas cubrían condiciones aceptables, añadiendo
que en coordinación con los agricultores, la Comisión que él presidía estaba
certificando las instalaciones de estos campos y encontró que, donde había
las guarderías estaban en malas condiciones, con construcciones de lámina
galvanizada donde la temperatura se elevaba 5 grados, lo cual agravaba las
de por sí altas temperaturas de Sinaloa16.
Obligaciones especiales para los trabajadores del campo.
Viviendas en buen estado, higiénicas, con espacio adecuado.
Agua potable y drenaje
Medicamentos y material de curación para primeros auxilios.
Asistencia médica y medicamentos gratuitamente.
Educación.
Gastos de traslado, ida y vuelta.
Permitir libre tránsito de trabajadores (en campos y campamentos).
Fomentar la creación de cooperativas de consumo entre trabajadores
Cumplimiento
Todas las
empresas
1)Reconocidas
como ESR
+
+++
+
+++
+
+++
+
+
+
+
+
+++
+++
+++
+++
+++
Cuadro 2 - México: Obligaciones especiales para los trabajadores del campo
establecidas por la Ley Federal del Trabajo, según su cumplimiento en la horticultura
de exportación sinaloense.
Fuente: Elaboración propia a partir de entrevistas realizadas con empresarios, dirigentes sindicales,
académicos, jornaleros agrícolas y funcionarios gubernamentales, en Sinaloa, 2007-2009.
16 Ver “Contratan a miles de menores en campos agrícolas de Sinaloa”, Boletín de Prensa N° 68/20052005
México, D.F a 12 de julio de 2005 http://www.cdhdf.org.mx/index.php?id=bol6805.
379
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
En esta materia, las empresas socialmente responsables han desarrollado un importante esfuerzo para modificar sustancialmente las condiciones
de vida de los jornaleros, con apoyo del Programa de Atención a Jornaleros
Agrícolas (PAJA)17, introduciendo diversos servicios, entre ellos, vivienda,
educación, salud y guardería, así como sanitarios móviles para las horas de
trabajo. Las empresas socialmente responsables han tomado estas iniciativas
para responder a las exigencias de los mercados internacionales y desarrollar
una imagen mejor ante la sociedad [MARAÑÓN, 2009; 2006]. Otro segmento de empresas está preocupado por mejorar la calidad de sus servicios y,
finalmente, hay un tercer agrupamiento, no cuantificado conformado por
propietarios que no estuvieron interesados siquiera en ser beneficiarios de
los apoyos dados por el PAJA para el desarrollo de infraestructura social,
donde las condiciones de vida son realmente pésimas.
De manera recurrente han surgido conflictos entre los jornaleros y
empresarios por incumplimiento de promesas que estos últimos realizan
a través de los contratistas en el momento de la contratación, así como por
malos tratos. Los conflictos más importantes giran en torno a las condiciones
bajo las cuales prestan sus servicios: la duración de la jornada laboral, el
monto del salario, la cobertura de los gastos de traslado, la duración mínima
del tiempo que deben permanecer trabajando. Igualmente, en relación a
los servicios médicos que son suministrados y las prestaciones en casos de
accidente o enfermedad, en otros.
Sobre todos estos asuntos, en general, no hay prácticas institucionalizadas y muchas veces los empresarios deciden, de manera arbitraria, qué y
como deben ser cumplidos los compromisos acordados con los jornaleros,
como es característico de los mercados no estructurados o desregulados.
Esto ha dado lugar a la existencia de abusos y violaciones a los derechos
humanos de los jornaleros, de manera corriente, situación se agravaba por
la escasa intervención de las autoridades laborales tanto federales como
estatales, de manera consistente con la construcción social y política de los
mercados no estructurados.
17 El PAJA es una iniciativa de la Secretaría de Desarrollo Social que tiene por objetivo contribuir al mejoramiento de las condiciones de vida y trabajo de los jornaleros agrícolas a través de procesos de promoción
y de coordinación entre diferentes niveles de gobierno y de concertación social con productores y organizaciones sociales. Al mismo tiempo, el Paja reúne aportes financieros de los gobiernos federal y estatal
y de los propios productores para realizar obras de infraestructura social. Este programa ha contribuido,
en los últimos años, a mejorar las condiciones de vida de los jornaleros en Sinaloa, al promover la construcción de viviendas y la introducción de servicios de agua potable, salud, educación y recreación. No
obstante, a partir de la actual administración federal su importancia ha ido en franco descenso, ya que
el gobierno actual tiene un enfoque diferente, centrado en el modelo de activos, respecto de la atención
a los grupos pobres y vulnerables.
380
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
En Sinaloa, a principios de este decenio, se sostenía que había un incumplimiento de la Declaración Universal de los Derecho Humanos, que
se hacía evidente en la manera en que vivían los jornaleros agrícolas, ya
que habían violaciones sistemáticas de sus derechos en materia de salud,
de vivienda, de educación para los niños migrantes los mismos que laboraban jornadas extenuantes, de seguridad en el transporte y en el trabajo
cotidiano, del disfrute de vacaciones y el pago de utilidades (GIL RAMÍREZ;
GASTELUM SOTO, 2000; REYES GARZÓN, 2000). Estos problemas contribuyeron a una mayor presencia de la CEDHS, la misma que legalmente tiene
facultades para emitir recomendaciones a instituciones públicas cuando se
comprueba una violación de los derechos humanos. En esta orientación, en
2003, la Comisión signó un acuerdo con su par de Oaxaca, con el objeto de
promover el desarrollo de la cultura y el respeto de los derechos humanos
de los jornaleros agrícolas migrantes procedentes de dicho estado sureño,
de modo que se estableciera un padrón de migrantes con datos básicos
de procedencia y llegada (nombre, domicilio, teléfono de la persona que
contrata y de la empresa en la que laborarán), definición por escrito de las
condiciones de trabajo (salario, duración de jornada, gastos de traslado,
atención médica, condiciones de vida; educación para los niños migrantes)18.
Posteriormente se han firmado acuerdos con las comisiones de Guerrero e
Hidalgo. En virtud de tales convenios se han realizado inspecciones físicas
a los campamentos y se han emitido quejas contra funcionarios públicos
por actos u omisiones presuntamente violatorios de derechos humanos de
jornaleros agrícolas, en materia laboral, educativa (CDHS, 2005, y entrevista
con funcionaria en enero 2009).
El análisis realizado muestra con claridad que en la horticultura de
exportación, la mayoría de los jornaleros tiene empleos no estructurados,
característicos de la precariedad absoluta (incertidumbre, insuficiencia de
ingresos, condiciones de trabajo por debajo de la norma y falta de acceso
a la seguridad social). Sí se ve desde el punto de vista del cumplimiento
de derechos humanos laborales fundamentales, todas las empresas tiene
prácticas discriminatorias (por sexo, raza) y no permiten la organización
independiente y la negociación colectiva de los trabajadores. La mayoría de
ellas utiliza el trabajo infantil. Muchas incumplen las obligaciones legales
respecto a dotar de condiciones dignas de vivienda, salud y educación a
18 Ver Convenio de colaboración entre las Comisiones de Derechos Humanos de los estados de Sinaloa y
Oaxaca, http://www.cedhsinaloa.org.mx/CEDH/pdfConvenios/Oaxaca.pdf
381
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
los trabajadores. Así, en 2008, según información de la Confederación de
Asociaciones de Agricultores del Estado de Sinaloa (CAADES), el 60% de
los campos tenía consultorios y el 25% algún tipo de guardería, que puede
no adaptarse a las exigencias que plantea el Seguro Social, pero cumple con
la función básica
No obstante, el análisis de las estructuras del mercado de trabajo no
concluye aún, pues si se tienen en cuenta la noción de heterogeneidad
estructural, y no una concepción evolucionista y dualista del derrotero de
la sociedad mexicana, otras relaciones laborales “atípicas”, como el trabajo
esclavo se suman a las no estructuradas o precarias.
Existen denuncias en la agricultura de situaciones de explotación descarnada, en ausencia de derechos laborales, de engaños a los jornaleros
por parte de contratistas, de pésimas condiciones de vida y trabajo que
son calificadas en la noticias periodísticas como de “esclavitud moderna”,
de “retorno a la época de la esclavitud”, de “esclavitud disimulada”, para
referirse a la situación de los niños jornaleros que laboran anualmente en
Nayarit, en el café, caña de azúcar y tabaco; de los jornaleros en San Quintín,
Baja California; de los trabajadores de Hidalgo que van a trabajar a Sinaloa,
Nayarit, Sonora y son engañados por los contratistas respecto a los pagos,
jornadas, condiciones de vida y, además, retenidos y maltratados por los
empresarios19.
Si se aplica rigurosamente la definición de trabajo esclavo, lo definitivo es, como ya se ha mencionado, la restricción a la movilidad personal,
a dejar libremente el trabajo que se está realizando. Sin embargo, existen
otros elementos que coadyuvan a la situación de trabajo esclavo, entre ellos,
como ha sido establecido por la OIT, la retención o impago de salarios, la
retención de documentos, el endeudamiento inducido, y el incumplimiento
de acuerdos en el momento de la contratación (salarios, prestaciones, condiciones de vida), así como un conjunto de amenazas (despido, violencia
física, supresión de derechos).
En la agricultura mexicana y en algunos casos de la hortifruticultura
de exportación se conocen en general, problemas entre empresas y jornaleros que tocan los puntos antes mencionados. En Sinaloa, es muy común
el endeudamiento inducido, a cargo del contratista, situación que puede
llevar, en algunos casos limitar la movilidad de los jornalero, también se
dan situaciones de retención o impago de salarios, y en general, el incumpli19 http://www.comfia.info/noticias/43889.html
382
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
miento de acuerdos entre empresarios y jornaleros sobre temas salariales,
contractuales, prestaciones, atención médica (Cuadro 3).
Motivo
a) Pago de traslado
Trabajadores del campo agrícola “La Primavera”, Agrícola Nueva Yamal solicitan apoyo para que quede
asentado ante esta Comisión que teme represalias de la parte patronal o de cualquier trabajador, dígase
mayordomos o encargados
Trabajadores del campo “Primavera 21”, en la curva de Villa Juárez, Navalato apoyo
para trasladarse a su lugar de origen
Son trabajadores del campo agrícola “San Emilio” piden se les apoye para lograr que el patrón les cumpla
para regresar a su lugar de origen
Son trabajadores de La empresa agrícola San Emilio, concluyó su contrato son 36 personas, regresar a
Veracruz e Hidalgo
Trabajadores del Empaque 5 Hermanos, apoyo para trasladarse a su estado de origen
Campo Agrícola Pune “Epsa”
Son personas que desean regresar a su lugar de origen, que laboran en el Campo Agrícola el Pony Tienen
varios años laborando y ellos pagaron el camión de venida, quieren que les paguen el flete de ida y venida
y una semana trabajada
Apoyo para regresar a su estado de origen, “Agrícola Pony”
Rancho Viejo; Campo agrícola que está a la entrada de Pericos, encargados Timoteo, desde el jueves les
están prometiendo trasladarlos
b) Retención o impago de salarios.
Les adeudan tres días y medio en la Agrícola “Nueva Yamal”, en razón de que abandonaron su lugar de
trabajo, actualmente laboran en la Agrícola Tricar, de Daniel Cárdenas Cevallos en el campo “El porvenir”
Lupita Rivera, señaló que el patrón quedó de liquidarles el día martes 23 de enero, sin haberlo cumplido,
solicita los apoyen para indagar porqué no les han pagado
Trabajadores del Campo “Patricia”,
Trabaja en Agrícola Epsa, S.A. de C.V., y no lê han pagado
Del Campo Agustina Ramírez, Campo Rosy
Apoyo para que les paguen las 4 semanas laboradas
c) Jornada de trabajo y tipo de pago
Jornalero del campo “Santa Fe”, cerca de “La 20”, por PRINSA
El ingeniero pretende que trabajen de las 6 de la mañana a las 5 de la tarde, por un salario mínimo
d) Atención médica
Trae documento en El que se señala que la agraviada necesita ser operada del oído, en el “Hospital General” y el patrón no se hace cargo de esos gastos
Solicita apoyo ya que estas personas, que son menores de edad, no han surtido ninguna receta, son trabajadores de Agrícola VIG Produce de Navolato
El 24 de febrero, ingresó niña de 1 año 2 meses, con tos, bronquitis, el doctor Martínez confirmó que la
niña traía complicaciones en un pulmón, mismo que fue operado
Jornaleros en Villa Juárez, Navalato, procedente de Tlapa, Guerrero, solicita apoyo para que dejen salir
del hospital a su esposa ya que carece de los recursos para liquidar la cuenta
Trabajador del Campo Batán –sordomudo-, necesita atención médica en el fémur, esta en la cama 512
del Hospital Civil
e) Sanitários
Jornaleros agrícolas que laboran en el Campo “Agrícola de Costa Rica”, propietario Alfredo Escobosa,
quien no cuentan con espacios para realizar sus necesidades fisiológicas, son diez personas, desde las 6
de la mañana a las 6 de la tarde, son cuatro o cinco personas, un operador y vigilantes
Cuadro 3 - Algunos reclamos presentados por jornaleros ante la Comisión de
Derechos Humanos de Sinaloa, 2008.
Fuente: Comisión de Derechos Humanos del Estado de Sinaloa.
383
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
La restricción a la movilidad personal es difícil de documentar y, no es
una práctica extendida, sino circunscrita a ciertas empresas que tienen un
manejo arbitrario de las relaciones laborales y no tienen reparos en transgredir las normas legales correspondientes. Existe cierta relación entre la
restricción a la movilidad y la intención de los empresarios de evitar que los
jornaleros se vayan del campo antes de cumplir los tres meses acordados
de trabajo, de acuerdo a la planificación realizada respecto de los requerimientos de mano de obra. Por esta razón, en algunos campamentos, sobre
todo de noche, se restringe la salida de los trabajadores, argumentando, no
sin razón, medidas de seguridad.
Una práctica, poco extendida, pero recurrente, es la retención de pagos
por parte del contratista, el mismo que se hace responsable ante el patrón
de un grupo de jornaleros, y recibe el dinero correspondiente a ellos durante
toda la temporada y, una vez de regreso en la zona de expulsión, les paga
descontándoles previamente los gastos que él ha efectuado en alimentación, hospedaje y transporte. En general, el contratista les da al principio un
enganche de 500 pesos, pero al final se queda con por lo menos la mitad del
salario del trabajador. En los campamentos los jornaleros son obligados a
comprar en tiendas de raya.
En casos como estos, la presencia de los contratistas, no sólo es un
elemento de desestructuración del mercado laboral y del incumplimiento
de los acuerdos pactados que conduce a la precariedad absoluta, al trabajo
degradante, el mismo que puede cambiar cualitativamente, a la situación de
trabajo esclavo, considerando los elementos ya mencionados.
Sin embargo, es importante mencionar que en la mayoría de empresas,
especialmente las socialmente responsables, el desempeño de los contratistas está más ceñido a políticas de recursos humanos que buscan crear
lazos más firmes con los trabajadores con el fin de mejorar el ambiente de
trabajo, disminuir la rotación y mejorar la productividad.
Conclusiones
- En esta ponencia se planteó la necesidad de abrir la mirada sobre
la mayor complejidad que va tomando la configuración de las relaciones
laborales en la agricultura de exportación, para poder describir y calificar
prácticas laborales que van más allá de lo que se conoce como trabajo precario, degradante y pueden dibujar los contornos del trabajo esclavo.
- En este sentido, puede ser pertinente una mirada desde el enfoque de
la estructuración de los mercados de trabajo que establezca puentes y cortes
384
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
entre los mercados de trabajo estructurados, no estructurados y el trabajo
esclavo, analizado la forma en que nuevos estándares internacionales, la
responsabilidad social empresarial y la inocuidad alimentaria impactan en
las relaciones laborales, en el caso concreto de la horticultura de exportación
sinaloense. Sin embargo, estas iniciativas tienen un escaso impacto sobre las
relaciones laborales, por la forma vertical y excluyente en que se conciben,
ejecutan y evalúan.
- Las relaciones laborales en la horticultura de exportación, se pueden
caracterizar por constituir mercados de trabajo no estructurados, con una
precariedad absoluta que conduce a una violación cotidiana de los derechos
humanos laborales fundamentales y a la explotación descarnada de los jornaleros. Los mercados no estructurados no funcionan de manera espontánea,
regidos por las fuerzas del mercado, sino a partir de una construcción social
y política que ha supuesto una alianza entre los empresarios y el Estado para
impedir la organización de los trabajadores y un acuerdo con las centrales
corporativas de trabajadores para el suministro de mano de obra.
- La diferencia entre las empresas socialmente responsables y las otras,
no radica en el tipo de empleo (temporal), en su formalidad (sin contrato),
en el tipo de pago (tarea y destajo) ni en la extensión de la jornada de trabajo
(entre 12 y 16 horas diarias). Las empresas socialmente responsables no
utilizan mano de obra infantil y en el pago del seguro social para los jornaleros. Ellas, además, han desarrollado, con importante apoyo gubernamental,
una significativa infraestructura social (vivienda, educación, salud) para los
jornaleros.
- Existen, en algunas empresas, sobre todo aquellas en las que el control
de la mano de obra es despótico y arbitrario, ciertas prácticas que tienen
ingredientes del trabajo esclavo, como la retención de los pagos, restricciones a la libre movilidad de los trabajadores por endeudamiento. Destaca,
además, la actividad de contratistas que manejan cuadrillas, a quienes se
les da un adelanto y se les paga, al final de la temporada, ya de vuelta en
los pueblos de origen, descontándoles, de manera arbitraria, los costos del
transporte, alimentación y hospedaje. Estos son algunos indicios respecto
de un problema, delicado por su naturaleza, que requiere una mayor investigación de campo.
- La presencia de las empresas reconocidas como socialmente responsables, en suma no conducen a un nuevo modelo productivo basado en un
control de la mano de obra menos precarios, que fortalezca la capacidad
organizativa y negociación de los trabajadores, permita una mayor movilidad
385
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
vertical sexual-racial y basada en la calificación. Por el contrario, más allá
del discurso de la nueva cultura laboral que busca una mejor calificación y
bienestar de la mano de obra, la responsabilidad social empresarial sigue
basándose en la minorización de la mano de obra, en su estigmatización,
para desvalorizarla y fragmentarla. En este sentido, la responsabilidad social empresarial en la horticultura de exportación basa su legitimidad en la
colonialidad del poder, en la utilización de la mano de obra indígena a partir
de una superioridad jerárquica racial, y en una visión paternalista según la
cual los trabajadores indígenas viven mucho mejor en Sinaloa que en sus
empobrecidos lugares de origen.
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390
Os acionistas da casa grande:
A reinvenção capitalista do trabalho escravo
no Brasil contemporâneo20
Introdução
Leonardo Sakamoto
Como o trabalho escravo contemporâneo insere-se no capitalismo, uma
vez que as formas não-contratuais de trabalho parecem negar elementos
fundamentais para o desenvolvimento do capital? Além disso, como é possível uma forma de exploração baseada em modos de produção exteriores
ao capitalismo manifestar-se em um contexto em que opera a acumulação
capitalista, através da reprodução ampliada?
O capitalismo redefine formas pré-capitalistas, englobando-as. Nesse
sentido, o trabalho escravo contemporâneo não é simplesmente um resquício
de práticas anacrônicas que sobrevivem dentro de um contexto moderno,
mas uma reinvenção destas, a forma mais degradante de exploração da força
de trabalho e negação de direitos que opera nos locais e momentos em que
o modo de produção se expande.
Para analisar como ocorre esse processo, primeiro é preciso compreender as variáveis que influenciam na formação do lucro do produtor rural,
como o aumento da produtividade do trabalho gerado pela acumulação
capitalista e sua consequente tendência de redução de preços. Em seguida,
20 Este artigo contém parte da tese de doutorado em Ciência Política do autor, defendida na Universidade
de São Paulo em junho de 2007.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
discutir como realidades aparentemente exteriores ao capitalismo são
fundamentais para o desenvolvimento do modo de produção, que delas se
alimenta para sobreviver. Analisa-se, então, como a acumulação primitiva
se imbrica na reprodução ampliada do capital em empreendimentos que
estão em regiões ou situações de expansão tornando-se ferramenta de
capitalização e concorrência.
1 Tendência de aumento da produtividade
A utilização de trabalho escravo está relacionada à busca de lucro pelo
produtor rural ou extrativista, como será visto adiante. Mas, se para isso ele
subverte regras do capitalismo dentro de sua propriedade, como o contrato
de trabalho e a relação de assalariamento, por outro lado, é obrigado a aceitar
imposições ao se relacionar com o mercado, ou seja, quando comercializa
mercadorias. Está sujeito a aceitar os mesmos preços pagos aos seus concorrentes e em condições semelhantes. Esses elementos externos contribuem
para definir o comportamento interno, não só de quem usa mão-de-obra
escrava, como também de todos os que baseiam sua produção em formas
contratuais de trabalho. O preço de mercado é um desses elementos.
O equilíbrio entre o preço almejado por aqueles que ofertam e o preço
almejado por aqueles que demandam pode ser alcançado através de negociações individuais e coletivas entre compradores e vendedores ou por
meio de mercados organizados, como as bolsas de mercadorias, em que
commodities1 são comercializadas (MARQUES E MELLO, 1999, p. 30-31).
Nesse caso, essas mercadorias são vendidas por um preço de mercado, ou
seja, um valor de referência que pode ser adotado mundialmente, definido,
grosso modo, pela relação entre a quantidade de produto à disposição dos
consumidores e a necessidade desses consumidores por esse produto.
Por consumidor, vale considerar não apenas o consumidor final, mas
principalmente, os consumidores diretos – indústrias de transformação,
tradings e demais setores que utilizam essas mercadorias como insumo
de seu processo de produção. Devido à sua força e ao seu poder dentro
das cadeias produtivas em que atuam, esses intermediários têm grande
influência na decisão de quanto pagarão por um produto, considerando a
necessidade de crescimento de sua taxa de lucro e as limitações dadas pela
renda disponível dos seus clientes.
1 Consideram-se commodities como produtos agropecuários que não possuem diferenciação, ou sejam
que passaram por um processo de padronização para facilitar a sua comercialização mundial. Algodão,
arroz, boi gordo, cacau, café, açúcar, milho, soja, suco de laranja são alguns exemplos de commodities
comercializados em bolsas de mercadorias.
392
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
O mercado “ideal” é aquele em que nem compradores nem vendedores
têm condições de, individualmente, influenciar nos preços de compra ou
de venda. Essa definição assume um grande número de vendedores e de
compradores negociando produtos não diferenciados. Sabemos que esta é
uma condição impossível de ocorrer na prática, daí nos contentamos com
situações “de concorrência”, em que os quatro maiores compradores ou vendedores detêm menos do que 75% do mercado (C4<75%) e o poder esteja
igualmente distribuído. Por outro lado, situações em que o mercado esteja
concentrado nas mãos de poucos vendedores ou de poucos compradores
favorecem a união dos mesmos para a imposição de preços de venda ou de
compra, respectivamente, desvantajosos para os demais setores do mercado
onde atuam. (MARQUES E MELLO, 1999, p. 32).
É possível discordar do “contentamento” de Marques e Mello, haja vista que
a detenção de 75% do mercado por um pequeno grupo de quatro empresas, na
prática, tende a se configurar como um oligopólio. No caso da soja, três grandes
companhias multinacionais controlam 60% de todo o financiamento da produção do grão no Brasil e, portanto, sua comercialização interna e externa – ADM,
Bunge e Cargill. Juntas, também controlam 80% da capacidade de processamento de derivados (farelo e óleo) na Europa. (GREENPEACE, 2006, p.17).
Nesse contexto, a grande quantidade de produtores individuais tem
pouca capacidade de controlar o mercado, tomando o preço comum determinado pelas empresas compradoras. Vale também considerar que muitos
desses produtores tornam-se dependentes dessas empresas porque têm
sua produção financiada por elas – recebem recursos antecipadamente
para o plantio, além de sementes e fertilizantes, cujo pagamento é feito na
forma de grãos após a colheita da safra,2 sob preços definidos previamente,
em um “equilíbrio” que, de acordo com as reclamações das associações de
produtores rurais, é mais favorável ao comprador do que ao vendedor.
Ainda tendo a soja como exemplo, pode-se analisar quais variáveis
operam na formação de seus preços:
“Observou-se que a formação de preços da soja em nível mundial
começa em Roterdã [porto holandês, principal porta de entrada da
soja na Europa], refletindo-se para a Bolsa de Futuros de Chicago
(CBOT). De lá, deriva-se a demanda pelo produto brasileiro, o qual
recebe um ágio ou deságio e deduzem-se os custos de frete, seguros e
outros, chegando-se ao preço no porto de Paranaguá. Desse preço no
2 Informação retirada da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), em fevereiro de 2007.
393
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
porto, são deduzidos custos de impostos, de transportes, de seguros e
outros, obtendo-se o preço no local da fábrica. De lá, deduzem-se novamente os fretes, despesas operacionais e outros custos, chegando-se
a formação da base de preço no local da produção rural, que, com a
concorrência em cada região, formará o preço final a ser oferecido
ao produtor (MARQUES E MELLO, 1999, p. 39-40). 3
Há outros elementos nesse processo que dependem da relação entre o
momento da safra brasileira com a safra norte-americana – maior produtor
mundial. Quando a soja dos Estados Unidos entra no mercado, a exportação
brasileira diminui devido à concorrência (e consequente redução no preço
pago no mercado externo devido à quantidade disponível) e o grão brasileiro
é destinado às indústrias de esmagamento para produção de óleo e farelo
instaladas no país. Esses subprodutos serão consumidos internamente ou
exportados (ANÁLISE EDITORIAL, 2006, p. 205) 4 Nesse período, o preço
pago ao produtor é formado internamente, com base na relação oferta/
demanda com a indústria.
Outro elemento a ser considerado é a elasticidade-preço da demanda.
Uma diminuição no preço de um determinado produto pode aumentar a
sua procura de forma elástica, ou seja, não proporcional, porque tende a
inserir um maior número de consumidores dentro de um mercado que, até
então, estava à margem de seu poder aquisitivo. Cada produto em cada país
e região possui um perfil de elasticidade diferente.
Por fim, esse processo de definição de preço é complexo e contínuo, com
variáveis previsíveis (como sazonalidades e ciclos) e imprevisíveis (como
quebra de safras) que implicam no aumento ou na redução do valor pago
ao produtor.
Analisando séries históricas de preços de commodities é possível
constatar que há uma trajetória de queda de valores. O desenvolvimento
tecnológico, ou seja, o aumento da produtividade através do crescimento
do capital constante, é o principal fator que influencia nesse processo, que
também conta com as diferentes taxas de crescimento na relação oferta/
demanda. As tendências de longo prazo são um instrumento útil, pois possibilitam analisar o mercado de preços sem os sobressaltos de curto prazo
decorrentes da sazonalidade ou dos ciclos de crescimento, apogeu e declínio
de determinados produtos.
3 Os autores indicam um esquema que mostra a formação de preços na fazenda: Chicago+- prêmio = FOB
estivado – custos de internalização – custos de armazenamento – frete interno – quebra de peso – risco,
juros etc. – benefícios de arbitragem financeira ou venda de performance de exportação +- outras variáveis (poder da indústria na região, condições locais de oferta e demanda) = preço local na fazenda.
4 Os itens mais vendidos nas exportações são: soja em grãos (56%), farelo de soja (30%), óleo de soja em
bruto (11%) e óleo de soja refinado (3%).
394
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Os gráficos de tendência a seguir foram produzidos com base em dados
sobre os preços pagos para três commodities: arroba boi gordo (região Noroeste do Estado de São Paulo), saca 60 kg de soja (Estado de São Paulo) e
arroba de algodão em caroço (Estado de São Paulo), representando cerca
de 30 anos de evolução de preços. Eles foram escolhidos por serem os três
produtos com maior incidência dentre as propriedades rurais que utilizaram
mão-de-obra análoga à de escravo na amostra escolhida pela pesquisa de
campo do autor.
Os dados foram encomendados pelo autor da pesquisa ao Instituto FNP5,
com valores corrigidos monetariamente e deflacionados, tendo como fator
multiplicador o mesmo índice inflacionário acumulado e o mês de janeiro
de 2007 como referência para essa atualização. Com isso, foi possível proceder com uma comparação histórica de preços e a identificação da curva
de tendência.
Para a produção dos gráficos de evolução e tendência, foram inseridos
os valores mês a mês.6 A curva em azul representa a evolução de preços e
a curva em preto a evolução da tendência dos preços.7 Analisou-se a correlação entre as três curvas de preços das séries históricas para verificar se o
padrão de similaridade entre as tendências não seriam originadas apenas
da taxa de deflação pela qual a série de preços foi submetida. As três correlações encontradas foram diferentes (Algodão e soja, 88,17%; Algodão e
boi, 65,80%; Boi e soja, 68,04%), o que mostra que a tendência é real e não
uma consequência da atualização de preços.
Para o boi gordo, a série histórica inicia-se em janeiro de 1977 e segue
até janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP
foram o Instituto de Economia Agrícola (IEA) e o próprio IFNP.
5
6
Instituto localizado em São Paulo (SP) e especializado em estatísticas agropecuárias.
No Anexo, estão as tabelas com todos os preços.
7 Os gráficos foram produzidos com a ajuda do programa Excel/Microsoft Office. Agradeço ao jornalista e
economista Thiago Guimarães que ajudou-me na construção desses gráficos e na análise da tendência.
395
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Evolução histórica do preço do boi gordo em São Paulo (jan 1977-jan 2007)
300
250
Valor atualizado (R$)
200
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7
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6
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5
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4
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/8
2
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0
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1
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9
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8
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ja
n
/7
7
0
Tempo
Gráfico 1 - Evolução histórica do preço do boi gordo em São Paulo em jan. 1977 - jan. 2007
Fonte: Instituto FNP); Instituto de Economia Agrícola (IEA).
Para a soja, a série histórica inicia-se em janeiro de 1976 e segue até
janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP foram
a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o próprio IFNP.
Evolução histórica do preço da saca de 60kg de soja em São Paulo (jan 1976-jan 2007)
180
160
Valor atualizado (R$)
140
120
100
80
60
40
20
jan/07
jan/06
jan/05
jan/04
jan/03
jan/02
jan/01
jan/00
jan/99
jan/98
jan/97
jan/96
jan/95
jan/94
jan/93
jan/92
jan/91
jan/90
jan/89
jan/88
jan/87
jan/86
jan/85
jan/84
jan/83
jan/82
jan/81
jan/80
jan/79
jan/78
jan/77
jan/76
0
Tempo
Gráfico 2 – Evolução histórica do preço da saca de 60 kg de soja em São Paulo em
jan.1976 – jan. 2007
396
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Fonte: Instituto FNP; Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB).
Para o algodão, a série histórica inicia-se em janeiro de 1976 e segue
até janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP
foram a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e o Instituto de
Economia Agrícola (IEA).
Evolução histórica do preço do algodão em caroço em São Paulo (jan 1976-jan 2007)
90
80
Valor atualizado (R$)
70
60
50
40
30
20
10
jan/07
jan/06
jan/05
jan/04
jan/03
jan/02
jan/01
jan/00
jan/99
jan/98
jan/97
jan/96
jan/95
jan/94
jan/93
jan/92
jan/91
jan/90
jan/89
jan/88
jan/87
jan/86
jan/85
jan/84
jan/83
jan/82
jan/81
jan/80
jan/79
jan/78
jan/77
jan/76
0
Tempo
Gráfico 3 – Evolução histórica do preço do algodão em caroço em São Paulo em jan.
1976 – jan. 2007
Fonte: Instituto IFNP; Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB); Instituto de Economia
Agrícola (IEA).
Nos três casos, houve amplitudes maiores nas variações de preços
dos primeiros 20 anos e o que, parece ser, uma suavização do processo de
declínio de preços nos últimos dez anos. Tomando novamente a soja como
exemplo, vale ressaltar que, ao contrário do que repete exaustivamente o
senso comum, o preço da soja vem caindo como as demais commodities e
não aumentando. O que houve, aparentemente, foi um ciclo de crescimento
dos preços entre a década de 90 e o início desta, estimulando os produtores
rurais a avançarem suas lavouras sobre áreas do Cerrado e da Amazônia.
Para o Quadro 1 abaixo, não se faz necessária a curva de tendência para
perceber o aumento da área plantada, ou seja, a ampliação de empreendimentos já existentes e o desenvolvimento de novos, além da produtividade
por hectare. Um crescimento, portanto, em duas frentes diferentes que fez
saltar a produção de soja no Brasil, contribuindo para o aumento da oferta
mundial e, portanto, para o declínio nos preços.
397
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Ano-safra
Área plantada
(mil hectares)
Produção
(mil ton)
Produtividade
(kg/hectere)
1982/83
8.412,0
14.532,9
1.728
1984/85
10.074,0
18.211,5
1.808
1986/87
9.221,7
1983/84
1985/86
9.162,9
9.644,4
1987/88
10.706,6
1989/90
11.551,4
1988/89
1990/91
1991/92
11.678,7
1997/98
1998/99
1999/00
2000/01
2001/02
2002/03
2003/04
2004/05
2005/06
18.127,0
23.929,2
20.101,3
15.394,5
9.582,2
1994/95
1996/97
17.071,5
9.742,5
10.717,0
1995/96
13.207,5
12.252,8
1992/93
1993/94
15.340,5
19.418,6
23.042,0
11.501,7
25.059,1
25.934,1
10.663,2
23.189,7
11.381,3
26.160,0
13.175,9
31.356,0
12.995,0
30.765,0
13.508,0
32.345,0
13.687,0
37.221,0
15.456,0
41.400,0
18.481,0
52.031,0
21.275,0
49.770,0
23.301,0
51.451,0
22.145,0
58.175,0
1.674
1.369
1.861
1.966
1.953
1.740
1.580
2.027
2.150
2.179
2.221
2.175
2.299
2.380
2.367
2.395
2.719
2.679
2.815
2.339
2.208
2.627
Quadro 1 - Evolução da área plantada, da produção e produtividade no Brasil 1982-2006
Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB); Associação Nacional dos Exportadores de Cereais
O exemplo da soja pode ser aplicado às demais mercadorias. Essa diminuição do preço da matéria-prima está diretamente relacionada ao aumento
de produtividade do trabalho e, portanto, do aumento da composição orgâ398
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
nica do capital, que cresce em proporção desigual entre o capital constante
e o capital variável, ou seja, entre o investimento em meios de produção
e o montante despedido para a massa salarial. Produtividade esta que se
apresenta através de mecanização de atividades, utilização de insumos
químicos, aplicação de novas técnicas de produção e no aprimoramento
genético do produto vivo.
O volume crescente dos meios de produção em comparação com a força
de trabalho neles incorporada expressa a crescente produtividade do
trabalho. O acréscimo desta última aparece, portanto, no decréscimo da
massa de trabalho proporcionalmente à massa de meios de produção
movimentados por ela ou no decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com os fatores objetivos.
(...) Com a crescente produtividade do trabalho, não apenas se eleva o
volume dos meios de produção por ele utilizados, mas cai o valor deles
em comparação com o seu volume. Seu valor se eleva pois de modo
absoluto, mas não só proporcionalmente ao seu volume. O crescimento
da diferença entre capital constante e capital variável é, por isso, muito
menor que o da diferença entre a massa dos meios de produção em que
o capital constante é convertido e a massa da força de trabalho em que
converte o capital variável. A primeira diferença cresce com a última,
mas em grau menor. (MARX,1985, v. 2, p. 194-195).
Uma quantidade sempre crescente de meios de produção pode ser
acionada por uma quantidade relativa cada vez menor de força de trabalho.
Como consequência, um número maior de mercadorias agrícolas pode ser
produzida com a mesma quantidade de horas de trabalho. Um aumento da
oferta de mercadorias produzidas com o mesmo custo de produção por um
capitalista individual pode levá-lo a oferecer um preço mais competitivo para
atrair clientes ou reter um lucro. Vale lembrar que, na prática, o seu lucro não
é obtido através da comercialização dos produtos, mas com a apropriação da
mais-valia obtida da diferença não acrescentada dessa produtividade ao salário dos seus empregados, ou seja, de horas trabalhadas sem remuneração.
A comercialização é apenas a realização dessa mais-valia em dinheiro. Se ele
foi o pioneiro na implantação dessa inovação em produtividade, isso vai lhe
garantir uma vantagem até que o desenvolvimento tecnológico e social que
ele utilizou possa ser reproduzido pelos demais capitalistas.
O capitalista que aplica o modo de produção aperfeiçoado apropria-se
portanto de maior parte da jornada de trabalho para o mais-trabalho
do que os demais capitalistas do mesmo ramo. Ele faz individualmente
o que o capital, na produção da mais-valia relativa, faz em conjunto.
399
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Mas, por outro lado, aquela mais-valia extra desaparece tão logo se
generaliza o novo processo de produção, pois com isso a diferença
entre o valor individual das mercadorias produzidas mais baratas e
seu valor social se desvanece. A mesma lei da determinação do valor
pelo tempo de trabalho, que se fez sentir ao capitalista com o novo
método na forma de ter que vender sua mercadoria abaixo de seu valor
social, impele seus competidores, como lei coercitiva da concorrência,
a aplicar o novo modo de produção.” (MARX,1988, v. 1, p. 241).
Para Marx, há um impulso imanente e constante do capital no sentido de
aumentar a capacidade produtiva do trabalho para baratear a mercadoria. E
com a redução do custo das mercadorias de maneira global através da repetição dos mesmos processos em outros setores – principalmente aqueles relativos à manutenção social e biológica da mão-de-obra – há o barateamento do
próprio custo do trabalhador. É importante ressaltar que os produtos agrícolas identificados nas cadeias de comercialização das fazendas que utilizaram
mão-de-obra análoga à escrava da amostra deste artigo são aqueles direta ou
indiretamente necessários para a reprodução social do trabalhador: carne
bovina (alimentação), soja (usada, principalmente, como óleo e farelo de ração
para gado - alimentação), algodão (vestuário), etanol (transporte), pimentado-reino (usado na indústria frigorífica – alimentação), café (alimentação)
e carvão (produção de aço para bens de consumo). Não por acaso produtos
que estão entre as principais demandas dos centros capitalistas nacional e
internacional e cuja área de produção está em expansão no país.
O valor absoluto da mercadoria é, em princípio, indiferente ao capitalista que a produz. Só lhe interessa a mais-valia contida nela e
realizável na venda. A realização da mais-valia implica, por si mesma, a
reposição do valor adiantado. Uma vez que a mais-valia relativa cresce
na razão direta do desenvolvimento da força produtiva do trabalho,
enquanto o valor das mercadorias cai na razão inversa desse mesmo
desenvolvimento, sendo, portanto, o mesmo processo idêntico que
barateia as mercadorias e eleva a mais-valia contida nelas, fica solucionado o mistério de que o capitalista, para quem importa apenas a
produção de valor de troca, tenta constantemente reduzir o valor de
troca das mercadorias. (MARX,1988, v. 1, p. 242).
Individualmente, se o comprador comercial ou industrial dessas matérias-primas puder reter a vantagem com o baixo preço obtido do produtor
rural, seja por razões de monopólio de mercado, seja por razões de dominação econômica e comercial de seu fornecedor ou outras aqui não descritas, e
os demais compradores não tiverem o mesmo sucesso, pode-se considerar
um aumento no seu ganho através dessa operação.
400
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Em Marx, a taxa de lucro (aqui assumida como L) manifesta-se através
da relação da mais-valia (m) com o capital global adiantado (C) (MARX,
1985, v. 2, p.116) que, por sua vez, decompõe-se em capital constante (c) e
capital variável (v), ou (c+v). Dependendo do custo da matéria-prima, um
dos componentes do capital constante, a taxa de lucro pode variar positiva
ou negativamente.
Tendo como referência uma situação em que a mais-valia é de 100 unidades de valor e o capital total de 1000, sendo que o c=600 e v=400, temos
uma taxa de lucro8 de 10%. Caso o preço do insumo de produção caia por
uma diferença (d) de 200 unidades, temos:
L = m/(C-d) = 100/(1000-200) ou
= m/[(c-d)+v] = 100/[(600-200)+400]
= 12,5% (>10%)
Porém, se o preço da matéria-prima tiver uma alta de 200 unidades:
L = m/(C+d) = 100/(1000+200) ou
= m/[(c+d)+v] = 100/[(600+200)+400]
= 8,33% (<10%)
Ou seja, a diminuição no preço da matéria-prima pode garantir um
aumento na taxa de lucro dos compradores de produtos agrícolas – pelo
menos individualmente, em um período de tempo até que essa redução
se generalize. No caso das tradings internacionais de soja, ou seja, um ambiente de baixa competitividade, o oligopólio atua semelhantemente como
um ator individual, garantindo para elas parte dessa redução no custo da
matéria-prima.
2 Acumulação capitalista e acumulação primitiva
Há duas formas de acumulação de capital: através de sua reprodução
ou de sua acumulação primitiva. Apenas a força de trabalho gera valor, uma
vez que a matéria-prima pura entra e sai do processo produtivo valendo o
mesmo que antes. Na primeira forma, a mais-valia obtida do mais-trabalho,
não remunerado, é reinvestida nos componentes constante e variável do
capital. Essa mais-valia pode crescer por meio do prolongamento da jornada
de trabalho (absoluta) ou, e aqui está a chave da acumulação capitalista, pela
8 Agradeço a contribuição do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP), que sugeriu o uso dessa
relação.
401
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
redução do tempo de trabalho e da mudança da proporcionalidade entre os
dois componentes do capital (relativa) (MARX, 1988, v. 1, p.239).
De acordo com Marx, a acumulação primitiva historicamente não é resultado do modo de produção capitalista, mas sim seu ponto de partida, o
processo histórico de separação entre o produtor e o seu modo de produção,
que leva a acumulação de recursos de produção nas mãos do capitalista.
Nesse momento há um processo de “libertação” do trabalhador, que, forçosamente, está livre da posse de meios de produção e, portanto, livre para
poder vender sua força de trabalho, garantindo ao capital a força motriz
para o seu ciclo de reprodução. (MARX, 1985, v. 2, p. 261-262). Seguindo a
mesma lógica, a acumulação primitiva também inclui a pilhagem de recursos naturais e de trabalho, com formas de exploração que não garantem a
reprodução social e biológica do indivíduo.
Contudo, na prática, há processos de acumulação do capital que seguem
a lógica da acumulação primitiva, que atua em regiões de implantação do
modo de produção, e da reprodução ampliada, que tende a operar em locais
onde a força de trabalho é negociada de forma contratual. Em alguns empreendimentos, principalmente os que estão em regiões ou situações de franja
do sistema, onde a modernização dos métodos de produção ou das relações
de trabalho está em andamento ou foi concluída de maneira incompleta, a
reprodução ampliada e a acumulação primitiva podem coexistir. Durante
um período de tempo para capitalizar mais rapidamente o empreendimento
ou de forma estrutural, como método de produção. A exploração de formas
não-contratuais, incluindo formas contemporâneas de escravidão, é uma
característica-chave dessas situações.
Antes de entrar na análise de como isso pode ocorrer, deve-se entender
o papel desenvolvido por essas regiões e situações para o próprio modo de
produção, tanto para a realização de mais-valia dos produtos dos centros
capitalistas quanto para a obtenção de matérias-primas a preços progressivamente mais baixos.
Uma das maiores críticas de Luxemburg à estrutura de reprodução ampliada de Marx foi a ausência de uma saída para a realização da mais-valia, considerando as relações comerciais entre os departamentos de bens de consumo
e de bens de produção em uma sociedade capitalista. Considerando apenas as
propostas presentes em O Capital, a conta simplesmente não fecha.9
9 Como não é o objetivo principal deste texto, preferiu-se não trazer à discussão as fórmulas da reprodução
ampliada de Marx e as provenientes da crítica de Luxemburg. Mas elas podem ser encontradas ao final do livro
segundo em O Capital (O Processo de Circulação do Capital), quanto em A Acumulação do Capital, de 11.
402
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
É impossível que a parte capitalizável da mais-valia venha a realizar-se
pelos próprios operários e capitalistas. A realização de mais-valia para
fins de acumulação em uma sociedade composta só por operários e
capitalistas é, portanto, um problema sem solução. A realização da
mais-valia exige como primeira condição um círculo de compradores
fora da sociedade capitalista. Referimo-nos a compradores, não a
consumidores. A realização da mais-valia não nos indica nada, previamente, sobre a forma material dessa mais-valia. O aspecto decisivo é
que a mais-valia não pode ser realizada nem por operários, nem por
capitalistas, mas por camadas sociais [grifo do autor] ou sociedades
que por si não produzam pelo modo capitalista. É, pois, possível imaginar dois casos distintos. A produção capitalista fornece meios de
consumo acima das próprias necessidades (ou seja, as dos operários
e as dos capitalistas), cujos compradores pertencem às camadas ou
países não-capitalistas. (LUXEMBURG,1984, v. 2, p.19-20).
Por “camadas sociais” entende-se que não se trata apenas de sociedades inteiras, mas de parcelas dessas sociedades. Cerca de um século
separa a época em que Luxemburg escreveu esse texto e hoje, período em
que o capitalismo fortaleceu sua hegemonia. Mas seus limites continuam
não obedecendo fronteiras políticas e, devido a isso, comportamentos de
“franja” podem ser encontrados mesmo na Europa e nos Estados Unidos,
com o trabalho forçado realizado em fazendas por imigrantes africanos e
latino-americanos, respectivamente.
A produção capitalista necessita de regiões não-capitalistas para se
desenvolver e, em função de sua natureza e forma de existência, não admite
limitações.10 Isso não é apenas uma situação localizada na evolução histórica
do capital, mas condição para a sua própria existência. Como discutido anteriormente, uma das formas mais importantes para elevar a taxa de lucro do
capital individual é através da tendência de barateamento dos elementos do
capital constante. Para o aumento contínuo da produtividade do trabalho,
que eleva a taxa de mais-valia, é necessária a utilização sem restrições de
todos os elementos que a natureza coloca à disposição.
Uma das condições prévias indispensáveis ao processo de acumulação, no referente a sua elasticidade e sua capacidade súbita de ampliação, é a rápida inclusão de novos territórios de matérias-primas, de
proporções ilimitadas, a fim de poder enfrentar tanto as vicissitudes
e interrupções eventuais no abastecimento de matérias-primas por
parte dos antigos fornecedores, quanto as ampliações súbitas das
necessidades sociais (LUXEMBURG,1984, v. 2, p.24).
10 Ibidem, p. 23.
403
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Em um curto espaço de tempo, de acordo com a sinalização de demanda
pelos centros capitalistas nacionais e globais, os empreendimentos em regiões de franja do sistema são capazes de se expandir sobre áreas, na maioria
das vezes, ocupadas por populações que vivem sob um modo de produção
não-capitalista. Em questão de anos, surgem grandes fazendas de gado,
lavouras de soja, algodão e cana-de-açúcar, entre outras culturas, na Amazônia e no Cerrado, produzindo matéria-prima e gêneros alimentícios para a
indústria e o comércio, onde antes viviam populações indígenas, posseiros e
comunidades quilombolas. Nessa expansão, coexistem tecnologia de ponta,
vendida e financiada pelos mesmos capitalistas nacionais e globais, e formas
não-contratuais de trabalho. O que parece contraditório na verdade expressa
um processo fundamental para o desenvolvimento desses empreendimentos,
acelerando sua capitalização e garantindo a capacidade de concorrência em
um contexto em que, apesar de escondidos no meio da fronteira agrícola,
eles estão conectados pelo comércio ao sistema global.
É somente o capital dotado dos respectivos meios técnicos que consegue executar a mágica de criar revoluções tão maravilhosas em tão
curto espaço de tempo. Somente em solo pré-capitalista, de relações
sociais mais primitivas, é que o capital consegue exercer tamanha
influência sobre as forças produtivas materiais e humanas, a ponto
de criar tais prodígios. (LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 24).
Luxemburg cita como exemplo o crescimento do consumo mundial de
borracha entre os séculos 19 e 20, cuja base econômica de produção era fornecida por sistemas primitivos de exploração que o capital europeu praticava
em colônias africanas e no continente americano. Sistemas que, segundo ela,
representavam formas diversas de escravatura e trabalho servil:
Assim, existem, entre cada período produtivo (em que a mais-valia
é produzida) e a acumulação que o sucede (em que a mais-valia é
capitalizada), duas transações distintas, ou seja, a transformação da
mais-valia em sua forma pura de valor e a realização e a transformação
dessa forma pura de valor em forma produtiva de capital, transações
que ocorrem entre a produção capitalista e o mundo não-capitalista
que a circunda. Sob ambos os pontos de vista, pois, da realização da
mais-valia, bem como da obtenção dos elementos do capital constante, o comércio mundial é por princípio uma condição histórica de
existência do capitalismo. Comércio este que, nas condições concretas
existentes, é, por natureza, uma troca que se verifica entre as formas
de produção capitalista e as não-capitalistas (LUXEMBURG,1984, v.
2, p.24-25).
404
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Não se trata apenas do comércio internacional, mas também do comércio
entre diferentes modos de produção de um mesmo país, quando este apresentar camadas sociais inseridas dentro do modo de produção e outras que
estão em processo de inserção ou que tiveram sua inserção mal-realizada e,
portanto, incompleta. Do ponto de vista da produção capitalista, há mercados internos e externos. O primeiro é o próprio mercado capitalista, em que
essa produção consome seus produtos e gera seus elementos de produção.
O segundo é o meio social não-capitalista que compra seus produtos e lhes
fornece força de trabalho e matéria-prima (LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 29).
Podem haver trocas entre diferentes países dentro do mercado capitalista e
trocas entre regiões dentro de um mesmo país que se configurem relações
de mercado externo, entre modos de produção capitalistas e outros não.
Contudo, à medida que esse processo de assimilação avança, as realidades não-capitalistas passam paulatinamente a ser parte integrante do modo
de produção, ou seja, transformam-se de mercado externo para interno:
Se o capitalismo, portanto, vive de formas econômicas não-capitalistas, vive, a bem dizer, e mais exatamente, da ruína dessas formas.
Necessitando obrigatoriamente do meio não-capitalista para a
acumulação, dele carece como meio nutriente, à custa do qual a
acumulação se realiza por absorção. Considerada, historicamente,
a acumulação de capital é o processo de troca de elementos que se
realiza entre os modos de produção capitalistas e os não-capitalistas.
Sem esses modos a acumulação de capital não pode efetuar-se. Sob
esse prisma, ela consiste na mutilação e assimilação dos mesmos, e
daí resulta que nem a acumulação do capital não pode existir sem
as formações não-capitalistas, nem permite que essas sobrevivam
a seu lado. Somente com a constante destruição progressiva dessas
formações é que surgem as condições de existência da acumulação
de capital. ((LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 63).
Luxemburg considera que há, aqui, um impasse. Com o fim de modos de
produção não-capitalistas para realização da mais-valia e fornecimento de
matérias-primas, o modo de produção invariavelmente entraria em declínio
– declínio causado por sua própria característica de acumulação de capital
através da reprodução ampliada e da destruição de modos de produção diferentes. Em outras palavras, à medida que o animal se alimenta, ele cresce
e necessita de mais alimento. Mas este é escasso e a voracidade do próprio
animal é apenas um catalisador do processo que o levará a um colapso.
Frente à adaptabilidade que vem demonstrando o capitalismo, podese encarar com desconfiança o destino a que a autora condena esse modo
405
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de produção. Mesmo considerando o processo histórico, é difícil prever
quando aconteceria o seu autocolapso.11 Contudo, a realidade tem comprovado que enquanto há relativa paz, prosperidade e igualdade dentro dos
centros capitalistas, encobrindo os já conhecidos problemas causados pela
acumulação, na periferia do sistema, onde o capital se choca com formas
não-capitalistas, violência, fraude, repressão e pilhagem são feitas de forma
aberta.12 Como na expansão da fronteira agrícola da Amazônia e do Cerrado
brasileiros. O que mostra que ela estava correta em afirmar que estas são
características dessa expansão e não suas consequências imponderáveis
e indesejáveis. E que as relações sociais e econômicas que operam dentro
dos centros capitalistas estão interligadas organicamente com as relações
das franjas do sistema.
2.1 Acumulação primitiva constante
O trabalho escravo contemporâneo não é um resquício de modos de
produção pré-capitalistas que serão extintos com o desenvolvimento do
modo de produção, mas um mecanismo utilizado racionalmente por empreendimentos para viabilizar a acumulação nas situações e ambientes de
expansão do capital. A super exploração do trabalho, da qual a escravidão
é a forma mais degradante, é deliberadamente utilizada em determinadas
circunstâncias como parte integrante do modo de produção capitalista. Sem
ela, empreendimentos mais atrasados em áreas de expansão, não teriam a
mesma capacidade de concorrer com sucesso na economia globalizada. Por
conseguinte, o crescimento da oferta de produtos agropecuários no mercado
seria mais lento, o que reduziria o ritmo de queda dos preços das matérias-primas em escala global, prejudicando o comércio e a indústria. Como
pode ser visto a seguir, seria contrário ao interesse do modo de produção a
erradicação dessas formas não contratuais de trabalho. Pelo contrário, ele
as absorve e recria sua função quando estas possuem características que
podem beneficiá-lo.
Todo o capital busca a taxa de lucro médio para continuar sendo viável,
não importando qual a sua composição orgânica. De acordo com Martins
11 Há uma discussão recente apontando que esse colapso ocorreria através da escassez de matéria-prima
ou da reação do meio ambiente ao processo de desenvolvimento capitalista.
12 Inclui, por exemplo, as condições como são feitos os empréstimos e financiamentos a produtores dessas
regiões, a política de ocupação de fronteiras agrícolas e o apoio ou envolvimento em conflitos armados
pelo controle de recursos naturais.
406
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
(2002), essa taxa, expressão da reprodução capitalista que se traduz como
cálculo racional, é regulada por cima, pelos empreendimentos que possuem
uma composição orgânica alta. Por propriedades rurais com crescente produtividade do trabalho.13 Em outras palavras, quem produz mais por menos,
com um progressivamente menor custo da força de trabalho diante de um
progressivamente maior perfil tecnológico, força a concorrência a adotar o
mesmo método de produção – o que demanda investimento.14
Porém, há ambientes ou situações de expansão do capital em que não
é viável ou desejável fazer tal investimento. A escassez de recursos, a marginalidade do setor econômico em que a propriedade está inserida ou da
atividade dentro da fazenda que necessita de investimento, a canalização do
capital para outras áreas do empreendimento por questões estratégicas, a
busca por lucros maiores estão entre os elementos que atuam na manutenção
de uma composição orgânica baixa do capital.15
A alternativa, nesse caso, é reduzir custos: aumentar a mais-valia absoluta através da exploração de mão-de-obra de forma degradante e diminuir
os recursos voltados à sobrevivência do trabalhador. Dessa forma, deprime-se a participação da parte variável na composição do capital ao invés de
aumentar a parte constante, como seria esperado num processo de reprodução ampliada. Emula-se uma composição orgânica alta, uma composição
moderna do capital, possibilitando alcançar a taxa de lucro média e manter
a competitividade.
13 Este texto não irá entrar na discussão dos limites que podem atingir o capital constante e variável. Antunes
(1999, p. 119-120) faz um longa discussão sobre a articulação do trabalho vivo com o trabalho morto
como condição para que o processo produtivo do capital se mantenha “Exatamente porque o capital
não pode eliminar o trabalho vivo do processo de criação de valores, ele deve aumentar a utilização e
a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração de sobretrabalho em tempo
cada vez mais reduzido. A diminuição do tempo físico de trabalho, bem como a redução do trabalho
manual direto, articulado com a ampliação do trabalho qualificado, multifuncional, dotado de maior
dimensão intelectual, permite constatar que a tese segundo a qual o capital não tem mais interesse em
explorar o trabalho abstrato acaba por converter a tendência pela redução do trabalho vivo e ampliação do trabalho morto na extinção do primeiro, o que é algo completamente diferente. E, ao mesmo
tempo em que desenvolve as tendências acima, o capital recorre cada vez mais às formas precarizadas
e intensificadas de exploração do trabalho, que se torna ainda mais fundamental para a realização de
seu ciclo reprodutivo num mundo onde a competitividade é a garantia de sobrevivência das empresas
capitalistas”. (ANTUNES, 1999 p. 119-120).
14 O custo desse investimento varia de acordo com países e regiões. A importação e a adaptação de técnicas e equipamentos é um custo a mais dos países periféricos em comparação aos países centrais. No
Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem garantido o desenvolvimento do
conhecimento agrário para o país, reduzindo os custos de investimento na produção.
15 Em entrevista, Sílvio Crestana, diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), discutiu a expansão agropecuária do ponto de vista ambiental. Como formas não contratuais
de trabalho são, muitas vezes, utilizados para essa expansão: “O grande jogo é aproveitar os 50 milhões
de hectares de pastagens pouco produtivas que temos. Nos próximos 30 anos, para atender toda a
demanda – e será necessária a produção de 100 bilhões de litros de biodiesel -, precisaremos de 40
milhões de hectares. Temos tecnologia para esse salto sem problemas. A questão pega no investimento.
Para recuperar 20 milhões de hectares pouco produtivos são necessários R$ 40 bilhões. Ainda é mais
barato derrubar floresta”. (GERAQUE, 2006).
407
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
A acumulação do capital através da reprodução ampliada deveria
acontecer em contextos onde há relações sociais reguladas pelo princípio
de igualdade jurídica e de liberdade. Ou seja, condições em que é possível
estabelecer contratos de compra e venda de força de trabalho, através de
relações de assalariamento, que podem ser rescindidos. Mas nos casos
extremos de redução do capital variável, a remuneração passa a ser insuficiente para a reprodução social ou, na pior das hipóteses, biológica do
trabalhador. Há casos em que o trabalhador é obrigado a obter sua própria
alimentação a partir da caça e construir seu próprio alojamento com folhas
de palmeiras:
Os peões, que haviam sido aliciados para derrubar a mata e limpar o
pasto, estavam submetidos a condições degradantes. Em certos poços,
a água – utilizada para beber, lavar roupa, tomar banho e preparar a
comida – exibia uma coloração escura, além de exalar um odor fétido.
Os trabalhadores estavam em barracas cobertas de lona ou palma de
babaçu, amontoados em redes, onde conviviam adultos, mulheres
e crianças. Carne só de caça, quando alguém conseguia acertar um
tatu, uma paca ou um macaco. Enquanto isso, mais de 3.000 cabeças
de gado pastavam na fazenda, que possui cerca de 7,5 mil hectares
de terra – parte dela não regularizada. O proprietário, Aloísio Alves
de Souza, afirmou que tem outra fazenda na região, com mais 1.500
hectares e outras 800 rezes. “Tem vez que a gente passa mais de mês
sem carne”, lembra Charles Monteiro, que prestava serviço há oito
anos na fazenda (SAKAMOTO, 2003, http://reporterbrasil.org.br/
exibe.php?id=204).
Nos casos de trabalho análogo ao escravo, a pessoa perde a liberdade de
rescisão contratual e fica impedida de se desligar do patrão até que termine
o serviço ou que não seja mais necessária:16
Nos setores periféricos das economias subdesenvolvidas, que tendem
à baixa composição orgânica do capital, a acumulação primitiva do
capital tende a se tornar um componente de acumulação originária
constante. Isto é, no sentido de que é lenta a superação da acumulação
originária por outras formas de acumulação do capital, não necessariamente muito avançadas. A forma da acumulação originária pode ser
outra, mas sua função permanece, recria-se nos setores e territórios
em que o capital se expande de modo insuficiente, onde a expansão
16 Xavier Plassat, da Coordenação da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral
da Terra, estima que o serviço dos trabalhadores em situação análoga à de escravo dura, em média, três
meses nas fazendas.
408
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
capitalista significa criar as condições de reprodução ampliada do
capital a partir de relações não-capitalistas de produção. É nesse
plano que tem lugar o reaparecimento da escravidão ou a recriação de
formas não-contratuais de emprego da força de trabalho. (MARTINS,
2002, p.154- 155).
Amin vê processo similar ao descrito por Martins. No setor agropecuário do continente africano a depreciação da força de trabalho também atua
com o objetivo de aumentar a competitividade. O problema não é restrito
à expansão do capital no Brasil, mas ocorre de forma global, como havia
alertado Luxemburg (1984), em todas as regiões de franja do sistema.
Este tipo de dominação do capital sobre a agricultura não é especialmente adiantado, embora seja altamente rentável já que, apesar
dos fracos níveis de produtividade que mantêm, as remunerações
pelo trabalho são tão baixas que os preços permanecem competitivos. Aí está o segredo do atraso da “revolução verde” na África
tropical. Esta rentabilidade é obtida ao preço da pilhagem do solo,
do desflorestamento, de formações de desertos, da laterização que
um dia a seca revela. A rentabilidade é obtida, também, ao preço de
uma remuneração inferior ao valor da força de trabalho, que acaba
sendo inutilizada – como demonstram o alto índice de mortalidade, a
desnutrição e a fome, devidas ao retrocesso das produções agrícolas,
êxodo rural etc. (AMIN, 1977, p. 38).
A função da acumulação originária é recriada nesses ambientes e situações para contribuir com o processo de reprodução ampliada. Ela deixa de
ser apenas o capital inicial necessário ao desenvolvimento do processo de
reprodução e torna-se um elemento concomitante a ele. A essa pilhagem
como elemento do capitalismo, Martins dá o nome de reprodução ampliada
anômala do capital (MARTINS, 2002, p. 155).
Como analisa Vergopoulos:
A acumulação primitiva é (...) a “referência às exterioridades” de toda
espécie. Não é uma lógica interna à reprodução que se encarrega disso,
mas sim uma lógica externa às “leis” econômicas, isto é, a lógica que assegura condições prévias externas da reprodução. Se nos abstrairmos
enfim, ainda que por um instante, dos processos extra-econômicos,
o sistema atual do capital não deveria funcionar: desmoronaria (...).
A acumulação primitiva não pertence apenas à pré-história, ou à história do capitalismo, mas é também um pressuposto indispensável à
recondução cotidiana atual do sistema. Isto é ainda mais válido para
o que diz respeito à reprodução ampliada do sistema, até mesmo seu
crescimento (VERGOPOULOS, apud AMIN, 1977, p. 46).
409
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Há condições sociais “externas” ao modo de produção que facilitam a
disponibilização de mão-de-obra para essa acumulação primitiva constante.
Em verdade, elas são consequências do próprio sistema, como o crescimento
do exército de reserva de mão-de-obra devido à progressiva redução da
participação da parte variável na composição do capital, simultâneo ao
aumento populacional. Ou o processo de grilagem e expulsão de posseiros
e de outras populações tradicionais de suas terras na região de fronteira
agrícola amazônica – frequente durante o regime militar nas décadas de
70 e 80 e que se mantém ainda hoje – que serviram tanto para aumentar o
contingente de mão-de-obra para o campo e as cidades, quanto para ampliar
o capital constante dos empresários:
O modus operandi do sistema é de negação-redução dos elementos que
lhe são exteriores. É precisamente a exterioridade desses elementos
que estimula o movimento do sistema. A negação dessa exterioridade
pelo sistema não se dá no sentido da liquidação, mas no sentido de
uma disputa interminável entre a redução da exterioridade e sua
constituição ampliada. É preciso que a exterioridade seja real para que
a redução seja verdadeira. Eis porque o capital assegura sua reprodução “exteriorizando” e “marginalizando” um número de elementos
sempre crescentes. É uma condição para que o movimento de redução
impulsione cada vez mais (VERGOPOULOS, apud AMIN, 1977, p. 46).
Isso gera um excedente populacional alijado de meios de produção e
emprego, diminuindo o valor de mercado a ser pago por um serviço. Os
trabalhadores são impelidos a aceitar a oferta de serviço do gato, mesmo
não recebendo garantias de que as promessas dadas no momento do recrutamento serão cumpridas. Baseado nesse contexto de fragilidade social,
criado pelo próprio modo de produção, o capitalista pode utilizar mão-de-obra necessária pagando o montante que desejar, que pode tender a zero
no caso do trabalho análogo ao escravo.
Esse processo de acumulação capitalista baseado em formas não-capitalistas de produção opera no momento de expansão do sistema, em que
este consome formas exteriores para crescer, depois as introduz no capital
e continua seu avanço. Essas formas de inserção não são automáticas, mas
sim um processo que varia em tempo e intensidade de acordo com o tipo
do empreendimento e seu grau anterior de modernização.17 Podem ser
divididos em três situações:
17 Considerando que a composição orgânica do capital tende a ficar mais alta com o tempo, Martins
afirma que ela impõe um limite social ao uso de formas contratuais de força de trabalho. Dessa forma,
nem todas as atividades econômicas e nem todos os momentos do processo de produção poderiam ser
desempenhados dentro de relações contratuais de trabalho. Martins,2002, p.159.
410
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
a) Há atividades que, por motivos técnicos, continuam excessivamente
dependentes de trabalho manual, seja porque não é possível a mecanização da atividade, seja porque a utilização de mão-de-obra demanda
menor investimento inicial. Nos casos registrados de escravidão
contemporânea, temos como exemplo desmatamento, limpeza de
antigas áreas abandonadas, mudança de ramo de atividade econômica, entre outras situações prévias que dizem respeito à preparação
de terreno para a introdução de empreendimentos agropecuários ou
extrativistas. A força de trabalho é utilizada para derrubada de mata
nativa, construção de cercas, plantação de pastos, produção de carvão
vegetal, catação de raízes para o cultivo da soja e do algodão.
Esses empreendimentos são capazes de gerar recursos já no momento
de sua abertura. Um exemplo são os pecuaristas proprietários de terras na
região de influência do Pólo Carajás, no Pará, que têm produzido carvão vegetal a partir do desmatamento realizado para a implantação ou ampliação
de pastagem.18 O carvão é vendido para usinas siderúrgicas no Maranhão e
Pará para a produção de ferro-gusa, matéria-prima do aço, exportado principalmente aos Estados Unidos, conforme demonstra pesquisa de campo.
O terreno fica limpo para a plantação de pastos e os recursos obtidos
da venda no mercado de carvão são usados para construir infra-estrutura
ou comprar gado. Nesses casos, as duas etapas, de carvoejamento19 e de
introdução da pecuária, têm sido realizados por trabalho análogo ao de
escravo. É clara a participação da acumulação primitiva no processo. Há
um gasto mínimo com a manutenção da mão-de-obra, superexplorada, enquanto a economia gerada pode ser utilizada para viabilizar a concorrência
ou aumentar o capital constante. Nesse caso, o ganho com a produção tem
18 De acordo com a atualização da lista suja de 12 de março de 2007, 12 das 167 propriedades rurais
relacionadas estavam nessa situação.
19 Vale ressaltar que boa parte desse carvão vegetal produzido é ilegal, com corte de áreas de floresta que,
por lei, deveriam ser preservadas. “De acordo com estudos realizados pelo historiador Maurílio de Abreu
Monteiro, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA),
o desmatamento não-autorizado fornece 57,5% da madeira que alimenta os fornos das carvoarias.
Monteiro pesquisa a produção carvoeira desde o final da década de 80, quando as primeiras indústrias
se instalaram nessa região sob a influência do projeto Grande Carajás. Ele afirma que o aumento da
demanda pelo ferro-gusa e a competição entre os fornecedores de carvão favorecem a exploração do
trabalho escravo nas carvoarias. Segundo o professor da UFPA, a produção de 3,5 milhões de toneladas
de carvão vegetal, consumida pelo setor siderúrgico brasileiro, requer um volume de 22,2 milhões de
metros cúbicos (m³) em toras de madeira. Esse valor é muito superior ao volume autorizado (9,4 milhões
de m³) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a
extração no Maranhão e Pará. Esses estados são produtores de carvão contam com usinas siderúrgicas
abastecidas com o minério de ferro da Serra dos Carajás. Ou seja, os mais de 12 milhões restantes são
fruto da exploração ilegal.” Camargo (2006, http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=622).
411
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
sido repassado a algumas usinas20 que aceitam essa mercadoria mesmo
com irregularidades.21
Ao utilizar mão-de-obra escrava e desmatamento ilegal, o carvão gera
ganhos ao carvoeiro e competitividade às indústrias. Há técnicas já desenvolvidas para a sua produção obedecendo a normas ambientais e trabalhistas,
mas elas requerem um alto custo de implantação. O menos danoso seria a
conversão da matriz energética para o carvão vegetal produzido através de
silvicultura, e não de corte de mata nativa.22 A Associação das Siderúrgicas
de Carajás já conta com 14 usinas e há planos de expansão, devido à procura
internacional pelo produto.23 A conversão da matriz demandaria a redução
do ritmo de crescimento do setor e no investimento em modernização de
tecnologia, e não em ampliação da produção, o que as usinas não parecem
dispostas a fazer no curto prazo.
20 A pesquisa de campo do autor constatou casos em que os preços de venda aplicados pelos empreendimentos que utilizaram trabalho escravo contemporâneo eram menores que os de mercado, mas apenas
no caso da cana-de-açúcar e do carvão vegetal que não estão inseridos em mercado de commodities
como os outros produtos analisados. Um exemplo é a Destilaria Gameleira, produtora de etanol, flagrada
pela equipe de fiscalização do governo federal empregando esse tipo de mão-de-obra em sua lavoura
de cana-de-açúcar no município de Confresa, Nordeste do Estado do Mato Grosso. Em entrevista ao
autor, um diretor (cujo nome foi resguardado) de uma importante distribuidora nacional de combustíveis identificada na rede de comercialização da usina, o preço cobrado pela destilaria era vantajoso se
comparado ao de seus concorrentes. Situações semelhantes ocorrem com a comercialização do carvão
vegetal obtido através do trabalho análogo ao escravo e do desrespeito à legislação ambiental em carvoarias no Maranhão e Pará. No início de 2007, cerca de 300 carvoarias estavam descredenciadas pela
Associação das Siderúrgicas dos Carajás (Asica) devido à utilização de mão-de-obra análoga à escrava.
De acordo com o diretor do Instituto Carvão Cidadão, braço social da Asica, André Câncio, carvoarias
descredenciadas estavam revendendo o material para outras terceiros credenciados que juntavam a
ele sua própria produção e revendiam as siderúrgicas. Isso, é claro, mostra que o carvão estava sendo
comercializado pelas carvoarias descredenciadas a um valor menor ainda que o preço já abaixo de
mercado que costumavam cobrar – o que significa mais exploração do trabalhador e do meio ambiente.
21 Em 2004, foi fundado o Instituto Carvão Cidadão, ligado à Associação das Siderúrgicas dos Carajás (Asica), com o objetivo de desenvolver práticas de responsabilidade social na área trabalhista. As indústrias
localizadas no Maranhão, devido à sua antiguidade, estão à frente das similares no lado paraense. Estas,
de acordo com os relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, têm mais carvoarias
irregulares como fornecedores. Vale ressaltar que o Pará Oriental ainda possui uma grande quantidade
de mata nativa a ser derrubada, enquanto o Maranhão não. A situação das usinas pode ser lida nos
relatórios do Instituto Carvão Cidadão no site www.carvaociadadao.org.br
22 De acordo com Maurílio Monteiro: “O preço do gusa é regulado pelo preço da sucata nos EUA. A oscilação é grande e desaconselha-se o investimento a longo prazo, como é o caso da silvicultura. O melhor é
mudar a base energética, substituindo o carvão vegetal por gás natural. A tecnologia já é usada, é mais
eficiente e mais barata. Ou melhor, o carvão hoje é mais barato porque existe transferência dos recursos,
mas se fosse feito como deveria ser, com silvicultura e tudo regulamentado, os gastos com gás natural
seriam menores. Se hoje o carvão é mais barato para as siderúrgicas, para a sociedade fica mais caro
porque está destruindo parcelas da floresta. Essa opção não tem contribuído para desenvolver de forma
economicamente sustentável a região. Os empresários deveriam tomar essa atitude e discutir alternativas
para as fontes de energia.” (Camargo, 2006, http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=622).
23 Segundo a Asica, as suas 14 empresas associadas respondem atualmente por mais de 60% da exportação
brasileira de ferro-gusa, correspondente a cerca de 3,6 milhões de toneladas anuais, e a US$ 2 bilhões
em divisas.
412
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
b) Outra situação é encontrada em empreendimentos já implantados,
mas que estão expandindo sua área, como as propriedades rurais
em funcionamento e que crescem em superfície cultivável a partir
da derrubada de mata nativa, limpeza de antigas áreas abandonadas,
mudanças de ramo de atividade econômica, entre outros contextos.
Nesse caso, o trabalho escravo contemporâneo adota a função de
ser o motor de expansão em empreendimentos consolidados.
Empregadores utilizam tecnologia de ponta em uma área da produção,
enquanto depreciam a mão-de-obra em outra. O grupo móvel de fiscalização
do governo federal encontrou 54 trabalhadores em condições análogas à
de escravo na fazenda Peruano, em Eldorado dos Carajás, Sudeste do Pará,
em dezembro de 2001. Eles trabalhavam em atividades de ampliação da
infra-estrutura e do pasto dessa fazenda que produz gado e é considerada
modelo no desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial
e comercialização de embriões. O proprietário é um dos maiores criadores
da raça nelore do estado.24 Esse não é o único caso: a pesquisa de campo traz
diversos exemplos de fazendas de soja e algodão, que utilizam tecnologia de
ponta na parte da produção de grãos e fibras, enquanto a preparação de solo
e ampliação de área é feita de forma arcaica, com baixo investimento.
Em operação de fiscalização iniciada no dia 20 de novembro [de
2003], foram libertados 22 trabalhadores que estavam em situação de
escravidão na fazenda Entre Rios, de arroz e soja, a 125 quilômetros
do município de Sinop, Norte do Estado de Mato Grosso. A ação foi
motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade.
Algumas pessoas não eram pagas há meses, recebendo apenas comida
e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam
famílias inteiras em redes. A água que utilizavam era imprópria e
servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa.
Inicialmente, 40 pessoas haviam sido contratadas para a empreitada.
Mas como não suportavam as duras condições impostas, muitos fugiram antes de a fiscalização chegar. O proprietário, Manoel Barbosa
Lopes Júnior, do grupo Rota-Oeste Veículos, representante da empresa
Scania, durante a operação de fiscalização tentou convencer os peões
a voltarem para a Entre Rios, afirmando que precisava dessa mão-de-obra para o serviço. Porém, apesar das alternativas oferecidas de
contratação por ele, os trabalhadores negaram-se a retornar. Teriam
medo de Clóvis, gerente da fazenda, de seu comportamento violento
24 O autor participou dessa ação de libertação, em dezembro de 2001, em Marabá (PA).
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Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
e das constantes ameaças de espancamento. Segundo os auditores do
Ministério do Trabalho e Emprego, os trabalhadores também eram
constantemente ameaçados pelos dois “gatos” da fazenda que, assim
como o gerente, andavam armados. De acordo com Valderez Monte,
auditora fiscal e coordenadora da operação, os trabalhadores sempre
ouviam dizer do gerente que “maranhense tem que apanhar mesmo
de facão”. Depois que motosserras tombam a floresta na região, levas
de trabalhadores percorrem a área desmatada para arrancar tocos de
árvores e raízes, limpando o terreno para receber a soja ou o arroz.
Na Entre Rios, uma grávida de quatro meses foi encontrada nessa
tarefa. A maior parte dos libertados são do Maranhão, trazidos de
lá por Chiquinho, o “gato” preso na ação (SAKAMOTO, 2003, http://
reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=208).
Dois modos de produção atuam de forma complementar e simultânea.
O modo arcaico serve ao moderno para garantir uma expansão do capital
(terras e benfeitorias). Mas sem que seja necessário capitalizar grandes
montantes de mais-valia provenientes da parte moderna, garantindo que ela
mantenha sua competitividade no mercado enquanto cresce. Essa expansão
poderia ocorrer dentro da reprodução ampliada, mas devido às condições
descritas anteriormente, o proprietário rural toma uma decisão racional
e opta por esse caminho, mantendo uma área com alta produtividade, e
outra com baixa.
Em outras palavras, após depreciar o seu capital variável, superexplorando a massa de trabalhadores sazonais ou não-especializados e considerando
que o capitalista possui uma determinada etapa da produção operando de
forma atrasada25, enquanto a outra se mantém sob relações capitalistas,
pode-se utilizar essa economia para ganhar capacidade de concorrência
(garantindo que o preço da mercadoria esteja nos patamares de mercado)
e reinvestir a mais-valia obtida no processo. Com isso, o produtor pode aumentar seu capital constante e mesmo sua força de trabalho para manter-se
competitivo ou acumular recursos para investir e operar de forma plenamente capitalista.
c) O mesmo vale para empreendimentos em situação de transição cristalizada, ou seja, cujo processo de modernização é muito lento ou
estagnou-se. Podem ser incluídos o plantio e a colheita de lavouras
como café, cana-de-açúcar, pimenta-do-reino, frutas, arroz, tomate
ou atividades de extração vegetal.
25 A utilização do corte manual da cana-de-açúcar ao invés de colheitadeiras enquanto o restante do empreendimento funciona com tecnologia de ponta, como na produção de açúcar, álcool e energia elétrica,
é um dos exemplos mais recorrentes.
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Encontra-se trabalho escravo contemporâneo não apenas em atividades
em área de expansão agropecuária, mas também em empreendimentos cuja
modernização foi incompleta26, em comparação com o restante do setor. Em
outras palavras, o desenvolvimento capitalista de uma propriedade rural
pode ter se estagnado e, sem aumento da produtividade do trabalho, ela
deprecia o capital variável para continuar operando de forma viável.
Nas regiões de fronteira agrícola encontra-se a maior incidência de trabalho escravo, mas esse tipo de exploração não está restrito à Amazônia ou
ao Cerrado. A ideia de fronteira não é apenas geográfica, da mesma forma
que não o são os conceitos de centro e periferia. Eles referem-se também ao
grau de implantação ou de consolidação do sistema e das relações hegemônicas que se estabelecem entre diferentes níveis. Vale lembrar que o capital
não se desenvolve de forma universal, mas em “ilhas”27, de acordo com as
singularidades de cada região ou momento histórico. Por isso, não é de se
estranhar que empreendimentos com modernização incompleta utilizem
mão-de-obra análoga à de escravo, como nas lavouras de cana-de-açúcar
em Campos dos Goytacazes28, Estado do Rio de Janeiro, ou em fazendas de
extração de resina, no interior de São Paulo.29
Esses dois momentos se chocam ou se completam devido à sua proximidade física. Durante uma ação de fiscalização em uma fazenda do Mato
Grosso, os auditores fiscais do trabalho presenciaram aviões pulverizarem
o campo com agrotóxicos enquanto os catadores de raízes ainda estavam
na área, deixando-os cobertos de veneno.30
Em empreendimentos pecuaristas, os vaqueiros recebem do proprietário
da fazenda e do gerente ou preposto tratamento melhor que os peões, muitas
26 Velho afirma que: “Um dos aspectos principais de uma ‘transição’ ao capitalismo é a chamada acumulação
primitiva. Historicamente a sua principal fonte tem sido o campo e as áreas sujeitas a um ‘colonialismo
interno’. Para os países que não têm possibilidades propriamente colonialistas são essas fontes praticamente as únicas. Se a ‘transição’ tende a cristalizar-se, então deveríamos esperar que o mesmo aconteça
com a acumulação primitiva. Aparentemente, esse foi o caso no Brasil e (...) o campesinato e a fronteira
parecem estar ganhando um papel novo e crescente nesse processo contínuo de acumulação primitiva.”
(VELHO,1979, p.173).
27 “No Brasil, a fronteira não é uma linha ou um limite, ou um avanço da civilização, ou um processo unilateral ou unilinear. Devemos na verdade falar não de uma fronteira, mas de experiências, transações e
mutações de fronteira múltiplas e complexas (...) A ocupação ocorreu e ainda ocorre em um padrão de
arquipélago.” (MORSE, 1967 apud VELHO 1979, p. 114).
28 Duas usinas do município entraram na lista suja devido a trabalho escravo contemporâneo encontrado
em suas lavouras de cana-de-açúcar: a Companhia Açucareira Usina Barcelo (com 35 trabalhadores
libertados) e a Companhia Açucareira Usina Cupin (com 73).
29 A Rezil Comércio e Exportação Ltda., em Iaras (SP), entrou na “lista suja” devido a 76 trabalhadores
encontrados em condições análogas à de escravo na extração de resina de pinus em sua propriedade
Estação Experimental de Águas de Santa Bárbara.
30 Entrevista com Marinalva Dantas, coordenadora de grupo móvel de fiscalização.
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(Orgs.)
vezes com contratos de trabalho. Isso se deve ao fato de serem profissionais
especializados e depositários de confiança por parte do proprietário (uma
vez que deles depende o investimento do capital). Em diversas ocasiões, o
grupo móvel de fiscalização encontrou vaqueiros atuando na vigilância dos
trabalhadores recrutados para o trato do pasto, evitando que fugissem até
o fim do serviço.
A utilização de formas extremas de exploração da força de trabalho, em
que os custos com a manutenção da mão-de-obra são insuficientes para a
reprodução social ou biológica do indivíduo, é restrita a uma parcela pequena da população economicamente ativa.31 Como exposto anteriormente, a
incidência de trabalho análogo ao escravo tem sido pequena comparada com
o universo de trabalhadores rurais. Com isso, ele não é capaz, diretamente,
de reduzir os preços de produtos em nível nacional e internacional, mas sim
os custos individuais de capitalistas, quando estes vendem commodities, ou
seja, mercadorias com um padrão e preço comum.32
Porém, por ser um instrumento de redução individual de custos, ele
contribui com a viabilização da implantação de novos empreendimentos e,
portanto, facilitando a expansão agropecuária sobre áreas não inseridas no
modo de produção. Mais áreas de produção significam aumento da oferta de
mercadorias. Retoma-se Luxemburg (1984) para afirmar que trabalho escravo
tende a continuar existindo enquanto houver áreas ou situações de inserção
no sistema.
A acumulação primitiva, adotada como instrumento de capitalização, foi
usada em larga escala na Amazônia para a implantação de fazendas durante
o período da ditadura militar, como afirma Ianni.33 E não foi devido a uma
suposta ausência estatal que essa forma a exploração teve condições de
se desenvolver,34 pelo contrário, é a ação direta de um Estado cúmplice ou
conivente que permite e incentiva esse laissez-faire no campo.
31 E nem poderia ser diferente, caso contrário colocaria em risco o próprio sistema, dependente da acumulação de capital através da força de trabalho, e da realização da mais-valia pelos trabalhadores.
32 O aço e o ferro-gusa são commodities. O carvão vegetal não.
33 Ianni, ao analisar a expansão capitalista sobre Amazônia na ditadura militar, afirma: “Está em curso
o desenvolvimento das relações capitalistas de produção no campo, juntamente com a acumulação
primitiva, como processo estrutural. Enquanto isso, expandem-se as propriedades e os negócios de
grileitos, latifundiários e empresários nacionais e estrangeiros. A Amazônia é reintegrada no subsistema
econômico brasileiro, amplamente determinado pelo imperialismo.” (IANNI,1986, p. 248).
34 “Pessoas e instituições envolvidas nessas providências humanitárias, urgente e necessárias, atuam geralmente na suposição de que a prática da escravidão nos dias de hoje resulta de um desvio de conduta
em relação aos princípios que a lei e a moral estabelecem. Essa interpretação seria compreensível se o
recurso ao trabalho escravo fosse apenas uma exceção ocasional no funcionamento deste ou daquele
estabelecimento agrícola ou industrial. No entanto, são claras as evidências de que o revigoramento e
a manutenção do trabalho escravo estão integrados na própria lógica essencial de funcionamento do
sistema econômico moderno e atual”. (MARTINS, 2002, p.154).
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Historicamente, esses empreendimentos têm conseguido recursos por
intermédio das esferas de governos35 federal, estaduais e municipais para
garantir um nível de capital constante que permite a sua atuação no mercado. As placas de financiamento da Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM), do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do Banco da
Amazônia (BASA),36 expostas na porteira das fazendas, provam que o Estado
se faz presente na fronteira agrícola para o capital, através de incentivos
fiscais, isenção de impostos, taxas e subsídios e infra-estrutura para os produtores rurais, e que há uma política pública apoiando aquelas práticas.
Além disso, deve-se considerar que a produção originada de empreendimentos que usam trabalho escravo contemporâneo, somada a de
outros que utilizam outras formas não-contratuais de trabalho em regiões
e situações de expansão agrícola, faz com que aumente a oferta geral dos
produtos. E diminua o seu preço internacionalmente. Ou seja, a escravidão
contemporânea é um componente de um processo maior, que traz ganhos
diretos ao produtor rural e indiretos ao mercado. Há uma demanda para essa
diminuição por parte da indústria e do comércio, que operam para forçar
os preços para baixo. Uma dessas pressões é realizada, por exemplo, pela
rede Wal-Mart – maior empregador do setor privado e o maior detentor de
mercado no varejo dos Estados Unidos. A rede também opera no Brasil e,
junto com outras grandes redes, como Carrefour e Pão de Açúcar, foi identificada no passado como pertencente à cadeia de comercialização de fazendas
que utilizaram mão-de-obra análoga à de escravo.37 Independentemente de
quem ganhe, o prejuízo será sempre do trabalhador.
Escravos contemporâneos e trabalhadores assalariados, elementos
antigos e novos, convivem dentro do capitalismo de forma complementar
e para o bem deste. Marx afirmava que o “morto apodera-se do vivo”. Com
35 Há também financiamento da produção pelo próprio mercado, ou seja, por atores financeiros e produtivos do
capital nacional e internacional. Isso extrapola o tema deste artigo, mas é importante essa observação uma
vez que, nesses casos, a expansão agrava, através do endividamento, a dependência do produtor ao capital.
36 Os proprietários rurais que são relacionados no cadastro de empregadores que utilizaram mão-de-obra
escrava, a “lista suja”, não têm acesso a novos créditos e financiamentos públicos do Banco do Brasil,
Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Banco da Amazônia (BASA), Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), de acordo com a portaria nº 1150, de 18 de novembro de 2003 do Ministério da Integração Nacional (que vedou o acesso aos fundos constitucionais de financiamento), do
Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, assinado por parte dessas instituições e por outras
orientações do governo federal. Porém, os empreendimentos que foram encontrados com irregularidades
mas ainda estão fora dessa relação, obtém o crédito.
37 “Sua estratégia de preços baixos, que se tornou dominante a ponto de forçar outras lojas a seguirem seu
exemplo mesmo que não concorram diretamente com ele, desempenha papel fundamental em manter baixa
a inflação do país; a pressão incansável por preços cada vez mais baixos que o grupo [Wal-Mart] exerce sobre
seus fornecedores se tornou um dos principais propulsores para a exportação de empregos industriais dos
EUA a China ou a outros locais.” (MEYER, 2006, p. 7). O original foi publicado na New Statesman.
417
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
base em mais de um século de experiência capitalista, com a manutenção
de antigas práticas dentro do sistema, constata-se que não são apenas as
velhas formas que se inserem nas novas, mas as novas recorrem às velhas.
Se é verdadeiro que o “morto apodera-se do vivo”, o inverso também é verdadeiro, ou seja, “o vivo também se apodera do morto” (VERGOPOULOS, apud
AMIN, 1977, p. 47).
Conclusão
Ao longo deste artigo, procurou-se demonstrar como a utilização de
formas não-contratuais de mão-de-obra, especialmente de trabalho escravo
contemporâneo, não é resquício de modos de produção pré-capitalistas
que sobreviveram provisòriamente à introdução do capitalismo, mas sim
um instrumento utilizado pelo próprio modo de produção para facilitar a
acumulação em seu processo de expansão. Esse mecanismo garante competitividade aos produtores rurais de regiões e situações de expansão agrícola,
o que contribui para o aumento da oferta de mercadorias e, portanto, a
redução de sua cotação no mercado internacional – favorecendo comércio
e indústria.
Considerando que a produtividade do trabalho é alta e tende a aumentar
constantemente, elevando a composição orgânica do capital e, consequentemente, a mais-valia relativa, as propriedades rurais mais atrasadas do
ponto de vista tecnológico tendem a compensar essa diferença através da
redução da participação do capital variável no capital total, emulando uma
taxa alta de composição orgânica. Outras se aproveitam dessa alternativa
não para gerar capacidade de concorrência, mas para capitalizar-se durante
um período de tempo ou aumentar sua margem de lucro.
Não é um desvio, portanto, e sim mais uma aparente contradição do
capital que utiliza formas que parecem negar a sua própria natureza, ignorando assalariamento e o contrato social estabelecido entre tomadores
e vendedores de força de trabalho. Essa aparente contradição não afeta o
sistema devido à forma de sua incidência.
É fundamental entender que há uma gradação da exploração do trabalhador. A escravidão contemporânea, a faceta mais degradante dessa
exploração, é utilizada por uma pequena parcela de produtores, enquanto
a incidência quantitativa de outras formas não-contratuais cresce à medida
que se aproximam das características das formas contratuais de trabalho. É
claro que se a agricultura brasileira fosse baseada em mão-de-obra cativa
haveria sérias consequências para o próprio sistema, pois não haveria classe
418
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
trabalhadora para a realização da mais-valia das mercadorias, impossibilitando a acumulação. Por isso o trabalho escravo se enquadra como um
mecanismo possível, que beneficia e não prejudica o sistema.
Não se superexplora o trabalhador apenas por um desvio de conduta do
capitalista, pois, se assim fosse, teríamos que considerar que a sua conduta
ideal do empresário é a de constante valorização do trabalhador, quando,
em verdade, ela atua na retenção do valor cada vez maior produzido por
este sem a justa remuneração.
A superexploração e o trabalho escravo estão vinculados a um cálculo
racional realizado pelo empregador, buscando uma lógica da acumulação. O
aparato repressivo que atua no combate à impunidade decorrente da utilização desse tipo de mão-de-obra e mesmo de outras formas não-contratuais
de trabalho funciona, dessa forma, de maneira localizada e pontual, mas
nunca sistemicamente. Por mais que haja uma parte do Estado deslocada
para essa função, será maior ainda a pressão interna e externa pelo aumento
da produtividade, forçando fazendeiros, mesmo aqueles não-capitalizados,
a acompanhar o setor e sua taxa de lucro média caso queiram continuar
existindo. No vetor resultante entre, de um lado, a expansão a qualquer
custo da produção agropecuária e, de outro, o processo de regularização
do trabalho, tem prevalecido o sentido da primeira força.
Erradicar o trabalho escravo contemporâneo passa por uma mudança
estrutural. Dado o nível de domínio do capital sobre a sociedade e a falta
de perspectivas de uma alteração no panorama em um horizonte visível de
eventos, é necessário adotar uma postura pragmática. Há a possibilidade de
atenuar o problema, diminuindo a incidência de trabalho escravo e mesmo
de formas não-contratuais de trabalho, através de alterações no modo de
produção e na sua forma de expansão. Não é o objetivo deste artigo analisar
as políticas de erradicação do trabalho escravo, mas para ter sucesso elas
precisam atingir de forma inequívoca a base econômica dessa estrutura.
A distribuição de terra não é a panacéia para o problema da exploração
do trabalho no país. Mas ela representa a mais importante mudança nessa estrutura e no modelo de expansão do modo de produção no campo brasileiro.
A socialização, pelo menos parcial, dos meios de produção no campo significaria um pesado golpe no capital que, direta ou indiretamente, se aproveita
do exército reserva de mão-de-obra disponível para superexplorá-las.
Uma reforma agrária não representaria o fim da transformação de seres
humanos em instrumentos descartáveis de trabalho. Mas seria um sinal de
que não precisaríamos esperar que a expansão do capital absorvesse todas
419
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
as realidades externas a ele, fechando por fim a última fronteira agrícola do
planeta e levando a um colapso do sistema. O processo histórico tem seu
curso, mas a classe trabalhadora pode intervir nessa marcha aparentemente
inexorável, libertando-se do capital e produzindo seu próprio destino.
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420
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
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421
Trabalho escravo - uma realidade na cadeia
produtiva de corporações com a chamada
“responsabilidade social”1
Introdução
Marcela Soares Silva
O presente trabalho tem como objetivo discutir brevemente o aparente
paradoxo da existência de unidades de produção2, ou mesmo, empresas que
estão ligadas direta ou indiretamente em sua cadeia produtiva com o “trabalho escravo”, e são também consideradas empresas socialmente responsáveis. Toma-se aqui a análise, a partir da totalidade social de um momento
histórico do capitalismo, configurado num contexto de “crise do capital em
crise”3, no qual se objetiva retomar as taxas de lucros do pós-guerra, pela
via do projeto neoliberal, trazendo como alternativa a reestruturação produtiva, a financeirização do capital e a contra-reforma do Estado, por meio
de reformas liberalizantes, orientadas para o mercado.
1 Este trabalho refere-se à minha Dissertação de Mestrado, intitulada: O fetiche da ‘Responsabilidade Social’: a
falácia de uma ‘nova consciência’, defendida em março de 2008, no Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/ESS/UFRJ).
2 O termo “unidade de produção” é o utilizado pelo banco de dados do grupo de pesquisa (GPTEC - Grupo de
Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo) do qual fiz parte, para a identificação destes empreendimentos que utilizam o trabalho “escravo”, pois nem sempre são fazendas, podem ser carvoarias, usinas, etc.
3 Mészáros (2009) identifica, de “crise do capital em crise”, o atual contexto com a eclosão da “bolha” financeira nos EUA, em setembro de 2008, com a quebra da Lehman Brothers. É importante entendermos
essa nomeação que o filósofo húngaro concede a situação atual da ordem burguesa, devido ao já existente
contexto de crise hegemônica do capital - deflagrada no início dos anos 1970. E afirma que “(...) essa grave
crise é estrutural precisamente porque não pode ser superada nem com os muitos trilhões das operações de
resgate dos Estados capitalistas. Ao contrário, aprofunda-se de maneira combinada ao fracasso comprovado
de medidas paliativas sob a forma de aventureirismo militar em escala inimaginável e faz com que o perigo
de autodestruição da humanidade seja ainda maior do que antes. Perigo esse que se multiplica conforme
as formas e instrumentos tradicionais de controle à disposição do status quo fracassam em sua missão”.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
1 Trabalho escravo por dívida
O processo de pesquisa realizado sobre o “Trabalho escravo por dívida”
nos permitiu uma breve análise da temática a partir dos fundamentos da
crítica da economia política. Permitindo-nos entender que, a base do atraso
da sociedade brasileira é a propriedade territorial capitalista, pois conforme
Martins (1994), a propriedade fundiária capitalista é responsável pela paralisação das transformações históricas no presente, o que permite reconhecer
estruturas sociais do passado na atualidade, havendo uma articulação do
progresso, em que o novo seja um desdobramento do velho.
Pretendemos aqui demonstrar, ainda que brevemente, o “trabalho
escravo”, enfocando a convivência do “moderno” com o “arcaico” no agronegócio, onde é o “palco” de tal retrocesso nas relações trabalhistas, conforme
Iamamoto (2001).
4
As desigualdades que presidem o processo de desenvolvimento do
país têm sido uma de suas particularidades históricas. O ‘moderno’
se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando nossa herança histórica
patrimonialista ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo tempo,
transformando-as no contexto de mundialização do capital sob a
hegemonia financeira. (...) A atual inserção do país de uma economia
dita ‘emergente’ em um mercado mundializado, carrega a história de
sua formação social, imprimindo um caráter peculiar à organização
da produção, às relações entre o Estado e a sociedade, atingindo a
formação do universo político-cultural das classes, grupos e indivíduos sociais. (IAMAMOTO, 2001, p. 101-102).
Podemos considerar o “trabalho escravo por dívida” como o “arcaico”,
que convive com a alta tecnologia, “moderno”, inscrito ou não5 sob os parâmetros da reestruturação produtiva na agropecuária, dentro da sociedade
do capital, que pressupõe a existência do trabalho “livre” para seu desenvolvimento e acumulação.
Entende-se que o capital tanto elimina relações sociais e produtivas
que impeçam sua reprodução ampliada, quanto incorpora a ela aquelas
persistentes relações que ainda não possam ser substituídas, recriando-as
em seu processo de reprodução. (MARTINS, 1994, p.6).
4 Pesquisa realizada no período da graduação em Serviço Social para o Trabalho de Conclusão de Curso,
sob o título O trabalho sob a ótica burguesa: do trabalho escravo a reestruturação produtiva, 2005.
5 É importante ressaltar que não são todos os setores produtivos que sofreram as modificações da reestruturação produtiva, como a siderurgia, a prospecção e refino de petróleo, cimenteiras, construção civil,
aqueles que não podem expandir territorialmente o processo produtivo.
428
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
No processo da formação da sociedade brasileira houve, desde seu tempo
colonial, uma extrema concentração fundiária, que expropriou um enorme
contingente de pessoas, tornando-as trabalhadoras assalariadas, ou peões6.
Esses peões, consequentemente, integram o “exército de reserva” (MARX,
1984), algo inerente e necessário à acumulação capitalista. Essa condição
obriga os peões a aceitarem qualquer proposta de emprego para sustentarem suas famílias, pois as alternativas que surgem, para essa população,
são empregos temporários de baixíssimos salários onde facilmente ocorre
a superexploração.
A partir da década de 1990, a reestruturação produtiva desencadeou
uma redução dos níveis de emprego, com a inovação tecnológica, e a desregulamentação das relações de trabalho, promovendo a precarização do
trabalho e a superexploração, que se exacerba no cenário em que o trabalho
escravo se repõe. Essa realidade, necessária a este momento histórico da
acumulação do capital, prejudicou ainda mais as condições de sobrevivência
desses peões.
Marx (1984, p. 203) refere-se ao sobretrabalho dos trabalhadores empregados, que aumenta “as fileiras de sua reserva”, ao mesmo tempo em
que, essa última, obriga à primeira “ao sobretrabalho e à submissão aos
ditames do capital”.
Situação semelhante ocorre no sul do Pará: esses peões, que são conhecidos também como peões de trecho 7 saem de seus locais de origem, onde
há uma extrema abundância de força de trabalho e escassez de emprego,
à procura de ocupação para sustentar a si e suas famílias, percorrendo o
Norte do país.
Conferimos que para o desenvolvimento do processo produtivo, o sistema do capital necessita alcançar a propriedade da terra, expressa através
da renda fundiária capitalista, para expandir o mercado interno, a partir da
expropriação dos camponeses, transformando-os em trabalhadores “livres”
de seus meios de produção e “livres” para vender sua força de trabalho ou
morrer de fome.
6 Rezende Figueira (2004, p. 18) identifica o peão, como “trabalhador rural em atividade braçal, levado
para empreendimentos agropecuários na Amazônia, onde deve executar trabalhos pesados, de baixa
qualificação profissional, em geral sob coerção. O termo é também utilizado para identificar as pessoas
em atividades de desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas, aliciadas pelo fazendeiro,
empreiteiro ou por um seu preposto”.
7 Trabalhador fora de seu lugar de origem, desligado das antigas relações familiares sem construir novas,
trabalha sucessivamente em fazendas atrelado a um ou diversos empreiteiros. Entre uma empreita e outra
cria débitos em pensões e cabarés, mantendo-se preso à rede de endividamento e ao trabalho coercitivo.
Em geral é analfabeto, sem qualificação profissional e tem problemas de alcoolismo. É também chamado
de peão rodado. (REZENDE FIGUEIRA, 2004, p. 18).
429
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Com a reestruturação produtiva, os trabalhadores passaram a se submeter com mais intensidade a qualquer ditame do capital para manter seu
emprego, assim intensificando sua produtividade, tornando-se multifuncionais e polivalentes, aceitando qualquer proposta, que consequentemente
gera um aumento do “exército de reserva”.
Podemos identificar atualmente que o agronegócio8 adquiriu extrema
importância político-econômica no favorecimento do superávit primário
nacional, e é onde se encontra a maior incidência do “trabalho escravo
por dívida”. Assim, os trabalhadores são convocados sazonalmente, nesse
regime de “escravidão por dívida”, principalmente no corte da cana-de-açúcar, na colheita de café e da semente de capim para a formação ou
manutenção de pastos.
O uso desse tipo de “trabalho escravo por dívida” em setores primordialmente agropecuários9, voltados para o mercado interno e para a
exportação, fez-nos entender que mecanismos da acumulação primitiva
podem estender-se pelo interior do processo da reprodução do capital, na
atualidade, permitindo a convivência do chamado trabalho “livre” com o
“trabalho escravo”.
Diante desse processo, entendemos que o “trabalho escravo por dívida”
é um elemento funcional ao processo de acumulação capitalista, uma vez
que a ordem burguesa não é só compatível com o trabalho “livre”, pois em
diversas situações prefere o uso de uma força de trabalho não livre.
Porém, é importante reconhecer que o “trabalho escravo por dívida”
apresenta-se de modo diferente em relação ao modelo escravista clássico,
pois esse estava no centro da economia, era legalizado e justificado ideologicamente. Esse tipo de “trabalho escravo contemporâneo” se for eliminado
não inviabilizará o modo de produção capitalista.
Nessas regiões onde o capital combina elementos “arcaicos” e ”modernos”
em seu processo de reprodução, percebe-se que as circunstâncias regionais,
sociais, políticas, históricas e culturais favoreceram tal ambiguidade10.
8 Trinta anos depois do início do PROÁLCOOL, o Brasil vive agora uma nova expansão dos canaviais com
o objetivo de oferecer, em grande escala, o combustível alternativo. O plantio avança além das áreas
tradicionais, do interior paulista e do Nordeste, e espalha-se pelos cerrados. A nova escalada não é
um movimento comandado pelo governo, como a ocorrida no final da década de 70, quando o Brasil
encontrou no álcool a solução para enfrentar o aumento abrupto dos preços do petróleo que importava.
A corrida para ampliar unidades e construir novas usinas é movida por decisões da iniciativa privada,
convicta de que o álcool terá, a partir de agora, um papel cada vez mais importante como combustível,
no Brasil e no mundo.
9 Este tipo de trabalho é utilizado também nos setores de serviços, como o caso da Telemar (Campos/RJ)
e de bolivianos “escravizados” por confecções terceiras da C&A (São Paulo).
10 Porisso constata-se a maior incidência de “trabalho escravo” no Sul do Pará.
430
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
O trabalho sob a ótica burguesa e os rumos que toma o modo da produção capitalista para manter sua acumulação, a partir da análise do uso do
“trabalho escravo por dívida” e da inovação tecnológica, presente tanto nas
indústrias quanto na agropecuária – permite-nos entender que esse processo, a combinação de elementos “arcaicos” e “modernos”, é algo inerente
à ordem burguesa.
1.1 A (ir)responsabilidade social das empresas
É notório perceber que estamos inseridos num momento histórico de
reversão conservadora – a refuncionalização da servidão, otimizada mediante a precarização das relações de trabalho, imposta pela reestruturação
do capital -, em que a égide neoliberal propõe uma redefinição do papel do
Estado.
Uma contra-reforma do Estado, que transfere para o setor privado
atividades que possam ser controladas pelo mercado, como exemplo, as
empresas estatais e as políticas sociais comercializáveis; outra forma é a
descentralização para o setor público não-estatal, de serviços que não envolvem o exercício do poder do Estado, mas devem ser subsidiados por ele.
Trata-se da produção de serviços competitivos ou não exclusivos do Estado,
estabelecendo-se parcerias com a sociedade civil para o financiamento e
controle social de sua execução (BEHRING, 2003).
O Estado reduz a prestação direta de serviços sociais, mantendo-se como
regulador e provedor, consiste na passagem de um suposto “setor” rígido,
burocrático e ineficiente para um “setor” flexível, de administração gerencial
e eficiente - o “Terceiro Setor”, como afirmam os neoliberais:
A “reforma” do Estado, tal como está sendo conduzida, é a versão
brasileira de uma estratégia de inserção passiva (FIORI, 200, p. 37
apud Behring, 2003) e a qualquer custo na dinâmica internacional e
representa uma escolha político-econômica, não um caminho natural
diante dos imperativos econômicos. Uma escolha, bem ao estilo de
condução das classes dominantes brasileiras ao longo da história,
mas com diferenças significativas: esta opção implicou, por exemplo,
uma forte destruição dos avanços, mesmo que limitados, sobretudo
se vistos pela ótica do trabalho, dos processos de modernização
conservadora que marcaram a história do Brasil, (...). O que a meu
ver, não permite caracterizar o processo em curso como modernização conservadora, mas como uma contra-reforma, que mantém a
condução conservadora e moderniza apenas pela ponta - a exemplo
a telefonia. Esse último aspecto demarca uma perda total de sentido
431
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
de nacionalidade e um componente destrutivo não visto nos saltos
para a frente promovidos em períodos anteriores (BEHRING, 2003,
p. 197-198).
A partir dessa refuncionalização do Estado (essa contra-reforma),
constatamos a legitimação e regulamentação do “Terceiro Setor” para a execução de políticas públicas sociais, por meio de uma parceria entre Estado,
Organizações Não Governamentais - ONG’S e entidades filantrópicas para a
implementação das políticas, que se combina com o serviço voluntário, o qual
se desprofissionaliza e despolitiza a intervenção nessas áreas, remetendo-as ao mundo da solidariedade mútua, da realização do bem-comum, por
intermédio de um trabalho voluntário não-remunerado -, isso se trata de um
verdadeiro retrocesso histórico em relação aos direitos sociais conquistados
pela classe trabalhadora.
Conforme Behring (2003), atualmente existe uma nova arquitetura
institucional, na qual o cidadão de direitos se torna cidadão-cliente, consumidor de serviços de organizações, cujo comportamento se pauta por uma
perspectiva empresarial, com a apresentação de resultados.
Diversos autores afirmam a necessidade de refuncionalizar o Estado à
égide neoliberal, o qual entendemos que tem como um de seus objetivos
ideológico-político: a desresponsabilização do Estado frente às sequelas da
“questão social”, que promove uma refilantropização e despolitização dessa,
transferindo a responsabilidade para o chamado “Terceiro Setor”, para o mercado e para a sociedade civil, via uma premissa de solidariedade e parceria.
Os apologetas do capital afirmam a necessidade de privatizar e minimizar as atribuições do Estado, de forma que “os cidadãos e as organizações
privadas devam assumir a responsabilidade pessoal pelo seu bem-estar e
pelo futuro da sociedade” (ROCKEFELLER apud PFEIFFER, 2001, p. 49).
Rockefeller considera essa uma nova forma de lidar com os “quase
intratáveis” problemas sociais com que o país se defronta. Assim, para ele,
diversas empresas brasileiras e estrangeiras devem atuar nos campos da
cultura, saúde, educação com o objetivo de tentar resolver os problemas
sociais, até então reconhecidos como de responsabilidade exclusiva do governo. E justifica que, para a construção de um país democrático e próspero,
é necessário o desenvolvimento de um:
mecanismo estabilizador de um sistema democrático, uma terceira
maneira de expressar e satisfazer necessidades, de agir e de alcançar
objetivos, sem ter que enfrentar a rigidez e as ineficiências da burocracia governamental ou de ter que esperar as reações do mercado
(ROCKEFELLER apud PFEIFFER, 2001, p. 50).
432
Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Destarte, declara-se a necessidade de fortalecer um “Terceiro Setor”,
que assuma a responsabilidade do Estado no trato das sequelas da “questão
social”, pois essa possibilidade, segundo o autor, além de ser a “base financeira indispensável à filantropia” parte também da iniciativa pessoal e do
envolvimento de um número incontável de pessoas, grupos e organizações
comunitárias a grandes movimentos de massa, cujos objetivos são os de
reformar a sociedade e abordar questões que afetem a qualidade de vida.
Refere-se, também, ao “Terceiro Setor” como a “reinvenção do Estado
e do mercado, a resolução de problemas de interesse comum”, um “setor”
mais “democrático, transparente e eficiente” do que o Estado tido como
corrupto, burocrático e ineficiente no atendimento às expressões da “questão social”.
Porém, podemos identificar a partir desse pressuposto: a despolitização
da “questão social”, uma vez que essas ações desenvolvidas pelas ONG (ou
“Terceiro Setor”) assumem essas demandas a partir de valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua, substituindo os valores de solidariedade social, universalidade e direito dos serviços sociais (MONTAÑO, 2002).
Aqui cabe discutir o interesse dessas empresas terem o título de responsabilidade social11, e aclarar como está ocorrendo a conformação desse
novo “paradigma” empresarial de “Responsabilidade Social”, que na verdade
sabemos que seu objetivo é otimizar os lucros a partir desse marketing social
e/ou de obter privilégios concedidos pelos órgãos governamentais (parcerias
público-privado), consequente primordialmente, dessa contra-reforma do
Estado configurada pelo projeto neoliberal.
A falácia inicia-se com as explicações dos empresários ao afirmarem
que suas ações resultam de comportamentos empresariais inspirados na
doutrina da responsabilidade social da empresa, especificamente, nas premissas de que as responsabilidades da empresa devem ir além do círculo
dos acionistas e das prescrições legais, e que devem orientar-se pela ética e
adequar-se às demandas sociais num dado ambiente sócio-econômico, seja
para garantir sua sobrevivência e rentabilidade a médio e longo prazos, ou
porque essas são responsabilidades de empresas “cidadãs”, de empresas
que têm direitos específicos e obrigações correspondentes, de empresas
que devem se interessar por problemas comunitários e contribuir para a
sua solução.
11 O objetivo aqui se trata de aclarar a funcionalidade da “responsabilidade social” empresarial em corporações envolvidas com o trabalho escravo em sua cadeia produtiva.
433
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
Alguns autores como Pfeiffer (2001) sugerem que tais ações traduzem
uma nova forma de filantropia empresarial - uma filantropia que não se
baseia em doações sem expectativa de retorno, mas em programas que
buscam colaborar concretamente para a solução de prementes problemas
sociais, pelo fato das empresas considerarem que o bem-estar dos negócios
depende de tal solução.
Sabemos que essas são estratégias de marketing institucional das empresas, ou seja, em estratégias para preservar e/ou melhorar a sua imagem, na
sociedade que vem questionando a sua utilidade social, a sua contribuição
para o bem comum. E que esse novo “paradigma” empresarial é parte do
projeto neoliberal, que caminha na direção de indicar a possibilidade das
ações empresariais resultarem de inovação no âmbito da política social. Essa
inovação consistiria no estabelecimento de novas relações entre o Governo,
o “setor privado lucrativo” e o “setor privado não-lucrativo” na produção e
distribuição de bens e serviços sociais.
Associam ainda que essas ações empresariais são importantes na
busca de soluções para o agravamento da violência nas cidades, que vem
ameaçando a liberdade de ir e vir dos empresários bem como o sucesso de
investimentos econômicos.
Esse novo comportamento empresarial é condição básica para mantê-las
no mercado globalizado, aumentando sua competitividade, que contribui no
alcance de um sucesso econômico sustentável em longo prazo. Em poucas
palavras, para os empresários, a “Responsabilidade Social” é o fator diferencial que ajuda a construir e a consolidar a marca.
“Com certeza, as empresas, com atitudes responsáveis se tornam mais
lucrativas, porque conquistam a fidelidade do consumidor e maior motivação
dos colaboradores.” (GRAJEW apud PEREIRA, 2001, p.57).
Por trás desse novo “paradigma empresarial”, está o que nos referimos
anteriormente, a reforma neoliberal do Estado, que desresponsabiliza esse
do trato das sequelas da “questão social”12, passando para o mercado as políticas que possam ser mercantilizadas e aquelas que não, são direcionadas
para o “Terceiro Setor”.
12 Entende-se por “questão social”, como problemas sócio-econômicos, culturais, políticos advindos da
relação de exploração do trabalho pelo capital, no momento em que a classe trabalhadora deixa de
ser “classe em si” para se tornar “classe para si”, havendo embate político entre as classes antagônicas.
(NETTO, 1999).
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Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea:
novas contribuições críticas
Cabe aqui ressaltar, que as formas de regulação13 do capital, típicas do
Estado Keynesiano –, são incompatíveis com o momento atual do sistema
capitalista. Todas as relações de reprodução da ordem capitalista, para que
ela permaneça, devem, neste atual momento histórico do capital, serem livres
de certas regulações14. Em outros termos, deve haver uma desregulamentação
dos mercados e uma contra-reforma do Estado, que privatize e desnacionalize setores estratégicos da economia, além da retirada sistemática de direitos
e garantias da classe trabalhadora promovida pela política neoliberal (que
tem cumprido o papel político e ideológico desse padrão de acumulação).
Na verdade o que o grande burguês e seus executivos desejam e pretendem,
em face da crise contemporânea da ordem do capital, é:
erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente democrática de controle do movimento do capital. O que
desejam e pretendem não é ‘reduzir a intervenção do Estado’, mas
encontrar as condições ótimas (hoje só possíveis com o estreitamento
das instituições democráticas) para direcioná-la segundo seus particulares interesses de classe. (NETTO, 2001, p. 81).
Entretanto, nessa mesma lógica neoliberal, setores progressistas15
da sociedade pressionam o sistema, incentivando e/ou criando órgãos e
mecanismos reguladores/fiscalizadores do sistema produtivo em prol dos
direitos humanos e da questão ambiental:
nenhum desses problemas pode ser resolvido sem modalidades de
controle social cuja racionalidade transcenda aquela que é inerente ao
capital; esses problemas só podem ser equacionados e solucionados,
sem a reiteração de vetores barbarizantes, mediante intervenções cuja
estratégia supere compulsoriamente as requisições específicas da
lógica de acumulação e valorização sem a qual o movimento do capital
13 O Estado Keynesiano, de caráter interventor, foi um modo de regulação do sistema, que “decorre primariamente, (...), da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor extra-econômico para assegurar
seus objetivos estritamente econômicos. O eixo da idade do monopólio é direcionado para garantir os
superlucros dos monopólios – e, para tanto como poder político e econômico, o Estado desempenha
uma multiplicidade de funções” (NETTO, 2005, p. 25). No entanto, prevalecem alguns mecanismos de
regulação necessários para a acumulação capitalista (para os ciclos do movimento de rotação do capital),
mecanismos que não impedem suas crises cíclicas, mas reduzem os seus impactos. Tais como a intervenção seletiva e sistemática do Estado, que teve início na fase monopólica do capital; o protecionismo
de alguns mercados, créditos a serviços dos monopólios, subsídios diretos e indiretos; planejamento e
investimentos estatais diretos na garantia das altas taxas de lucro; e por sua vez, a indústria bélica.
14 Basta-nos, para se ter uma percepção profunda dos riscos que isso representa, que toda e qualquer
forma de proteção ambiental (quando existem) são desrespeitadas, lembremos que o imperialismo
norte-americano não é sequer signatário do tratado de Quioto (que também não representa alteração
da relação destrutiva que o atual sistema metabólico tem com a natureza).
15 Muitos movimentos sociais, atualmente atrelados a Oganizações Não Governamentais - ONG e financiados
por grandes corporações acreditam na possibilidade da construção de um capitalismo mais humano, o
que sabemos ser inviável, ainda mais neste momento histórico de rearticulação do capital.
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é impensável. Curta e grosseiramente: no marco da ordem burguesa,
esses problemas tendem a cronificar-se, a receber pseudo-soluções
ou soluções de altíssimo custo sócio-humano, porque “o capitalismo e
a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente
incompatíveis.” (NETTO, 2001, p. 46).
Dessa forma, podemos analisar certas peculiaridades dessa “Responsabilidade Social” das empresas, que, muitas vezes, se caracteriza por uma
contradição formal, em certos setores. Isso porque temos diversos exemplos
de corporações que possuem o selo ou certificado16 de empresa socialmente
responsável, mas em sua cadeia produtiva estão envolvidas com o “trabalho
escravo por dívida”, trabalho infantil, entre outras irregularidades17.
No entanto, essas ocorrências aparentemente contraditórias estão inseridas num contexto de nova configuração do modo de produção capitalista,
modelo da “acumulação flexível” (HARVEY, 2004), no qual há uma extrema
precarização das relações de trabalho e flexibilização das relações de produção, como as terceirizações. Nessas constatamos a exacerbação da exploração da força de trabalho e como as grandes indústrias, constantemente,
conforme a esse novo padrão, terceirizam sua produção, frequentemente
são denunciadas a exploração de formas ultrajantes de trabalho.
Esses empresários diminuem os custos trabalhistas e ignoram os direitos
humanos para embolsar posições nesse cenário de grande concorrência. Os
intermediários da cadeia produtiva e exportadores nem sempre têm consciência desse crime. Sob o ponto de vista legal, esses intermediários, varejistas
e exportadores não possuem responsabilidade pelos seus fornecedores.
Além disso, esses grandes latifundiários e empresários que utilizam
“trabalho escravo” possuem um grande respaldo político. Como a bancada
ruralista, que no Congresso Nacional, consegue travar o andamento dos pro16 O balanço social é um demonstrativo publicado anualmente pela empresa reunindo um conjunto de informações sobre os projetos, benefícios e ações sociais dirigidas aos empregados,
investidores, analistas de mercado, acionistas e à comunidade. É também um instrumento estratégico para avaliar e multiplicar o exercício da responsabilidade social corporativa.
A SA8000 é uma norma que visa aprimorar o bem estar e as boas condições de trabalho bem como o
desenvolvimento de um sistema de verificação que garanta a contínua conformidade com os padrões
estabelecidos pela norma. A norma SA8000 apresenta-se como um sistema de auditoria similar ao ISO
9000, que atualmente é apresentado por mais de 300.000 empresas em todo o mundo. Seus requisitos
são baseados nas normas internacionais de direitos humanos e nas convenções da Organização Internacional do Trabalho -OIT.
17 Existem diversas grandes corporações com “Responsabilidade Social” ou que possuem o selo ou certificado de empresa “socialmente responsável”, mas em sua cadeia produtiva ou no produto final existem
algumas irregularidades como o “trabalho escravo por dívida”, o trabalho infantil, a redução salarial e
dos direitos trabalhistas, a degradação ambiental, a maquiagem de produtos entre outras coisas que não
condizem com a “ética e a moral dos padrões mínimos de conduta”. Tudo isso se apresenta de forma
aparentemente contraditória, meramente formal, porque sabemos que o discurso da “Responsabilidade
Social” é também de legitimação.
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novas contribuições críticas
jetos de leis fundamentais, como a proposta de emenda constitucional18 que
prevê o confisco das terras em que o “trabalho escravo” for encontrado.
A “ilusão jurídica”19 é algo inerente à sociedade do capital, o que favorece
esses inúmeros empresários na violação das leis em prol da acumulação, e
por isso temos várias figuras políticas20 envolvidas com esse crime.
Existem ainda diversas iniciativas ou projetos de ONG’S em parceria
com órgãos supranacionais (como a OIT), que visam a erradicação do trabalho escravo, a partir de selos sociais, ou como a lista do Pacto Nacional
de Erradicação do Trabalho Escravo21 lançado em maio de 2005, na qual 84
empresas são signatárias22, sendo que 9 dessas estavam envolvidas com o
trabalho escravo em sua cadeia produtiva. Contraditoriamente ao que se
propõe essa lista, que é o comprometimento dessas grandes empresas se
comprometerem com a sua cadeia produtiva.
O Pacto foi construído com a inclusão de medidas como: restrições
comerciais e financeiras às empresas e/ou pessoas que fizerem uso de
condições de trabalho caracterizadas como escravidão; regularização das
relações trabalhistas nas cadeias produtivas; apoio às ações de informação
aos trabalhadores mais vulneráveis ao aliciamento; treinamento e aperfeiçoamento profissional de trabalhadores libertados; monitoramento das
iniciativas adotadas e avaliação da aplicação das medidas em um ano. Porém, permanecem as denúncias sobre a violação às leis trabalhistas, formas
análoga a de escravo.
18 A Proposta de Emenda Constitucional 438/2001 estabelece nova redação ao art. 243 da Constituição
Federal “pena de perdimento de gleba onde for constatada a exploração de trabalho escravo, revertendo
a área a projetos de reforma agrária” (REZENDE FIGUEIRA, 2004, p. 47).
19 Verifique em Mészaros (1993, p. 204-206).
20 No Rio de Janeiro, por exemplo, o presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro - ALERJ, Jorge
Sayed Picciani, está em processo de julgamento porque, em junho de 2003, uma ação de um grupo móvel
de fiscalização libertou 39 trabalhadores de sua fazenda, no estado do Mato Grosso. Outro exemplo foi
o senador João Ribeiro (PFL-TO), condenado pela Vara do Trabalho do município de Redenção, sul do
Pará, por aliciar 38 trabalhadores rurais e sujeitá-los à condição de escravos em sua fazenda, chamada
Ouro Verde, localizada no município de Piçarra, no mesmo estado.
21 O Instituto Ethos, OIT e o Governo Brasileiro deram inicio ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que para os empresários distingue-se das ações governamentais por representar o esforço
voluntário das empresas e demais entidades signatárias para dignificar, formalizar e modernizar as
relações de trabalho em todos os segmentos econômicos no Brasil.
22 Última atualização da lista das empresas que compõe o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho
Escravo foi em 26 de maio de 2006.
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Considerações finais
Partimos da premissa de que essa aparente contradição do nosso objeto
de estudo, ou seja, esse “título” de “responsabilidade social” com a cadeia
produtiva de diversas empresas simultâneo com a superexploração da força
de trabalho, seja consequente dessa nova configuração da flexibilização como
um todo do processo produtivo e também é claro, decorre das particularidades do capitalismo brasileiro como esse se desenvolveu e se configurou, o que
permite entendermos essa incorporação de relações sociais arcaicas23 com
a inovação tecnológica. Esses capitalistas ignoram os direitos trabalhistas
para embolsar posições nesse cenário de grande concorrência.
É um contexto, que favorece integralmente o capital, uma intervenção
estatal que financia a reprodução do capital, mas não financia a reprodução
da força de trabalho – ou como afirma Netto (1999): um Estado máximo para
o capital e mínimo para o social, favorecidos com a desregulamentação trabalhista e social. A contemporaneidade está revestida em contra-reformas,
desregulamentações, como foi remetido anteriormente é a reversão conservadora e a regressão neoliberal que subjuga cada vez mais o trabalho ao capital.
O processo dessa pesquisa nos permitiu uma análise da temática a partir dos fundamentos da crítica da economia política e do método marxista.
Observamos algumas dificuldades quanto ao desvelamento do objeto de
estudo, devido às densas mediações que engendram a realidade social para
ultrapassar a aparência do real e apreender em sua concretude o objeto de
nossa pesquisa, a partir de diversas abstrações.
Assim, afirmamos que a “Responsabilidade Social” aparece como uma
estratégia24 para encobrir irregularidades que são necessárias e inerentes
à lógica da acumulação capitalista, com funcionalidade econômica, político-ideológica, cultural e social no atual contexto de restauração do capital.
Destarte, conferimos que o capital, em sua relação de exploração, degrada
o sujeito real da produção, fazendo com que o trabalhador reconheça outro
sujeito acima de si mesmo. Para obter a submissão do trabalhador no processo
produtivo, o capital necessita de suas personificações, com a finalidade de impor e mediar seus imperativos objetivos, a partir de sua (ir)racionalidade.
23 E podemos verificar que as relações sociais são atravessadas pelo compadrio, pelo favor e pelo clientelismo. E o que verificamos é que a assistência social vem se apresentando como espaço propício à
ocorrência de práticas assistencialistas e clientelistas, servindo também ao fisiologismo e à formação de
redutos eleitorais. Assim personalizam-se as relações com os subalternos, não reconhecendo o direito
desses e ainda esperando a lealdade pelos serviços recebidos.
24 Na conclusão da nossa pesquisa de Mestrado identificamos a funcionalidade político-ideológica e
econômica do mote “Responsabilidade Social” das empresas, em que se tenta consensualizar que é
possível uma “reforma ético-moral” do capitalismo deixando intocada a sua estrutura econômica, além
de amenizar o impacto social das irregularidades dessas empresas com “Responsabilidade Social”.
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Referências
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direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
HARVEY, D. A. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 13. Ed. São Paulo: Loyola, 2004.
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MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril, 1984.
MÉSZAROS, I. Desenvolvimentos capitalistas e “direitos do homem”. In: Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Ensaios de negação e afirmação. São Paulo:
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MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de
intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
NETTO, J. P. A construção do projeto ético-político contemporâneo. IN: Capacitação em Serviço Social e Política Social. Brasília: Cead/ABEPSS/CFESS,
1999. (Módulo 1)
PEREIRA, C. F. de J. Captação de recursos. Fund raiting. Conhecendo melhor
porque as pessoas contribuem. São Paulo: Mackenzie, 2001.
PFEIFFER,C. Por que as empresas privadas investem em projetos sociais e
urbanos no Rio de Janeiro?. Rio de Janeiro: Agora da Ilha, 2001.
REZENDE FIGUEIRA, R. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por
dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
Os autores
Adonia Antunes Prado: professora da Faculdade de Educação e pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo do Núcleo de Políticas
Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Alessandra Gomes Mendes: socióloga, mestre em Extensão Rural e Professora
Assistente da Faculdade Pitágoras de Belo Horizonte/MG.
Antonio Alves de Almeida: professor universitário; doutorando em História
pela PUC/SP e pesquisador das questões agrárias, especialmente movimentos
populares, trabalho escravo e direitos humanos no Brasil contemporâneo.
Benedito Lima: auditor Fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego e mestre
em Ergonomia.
Boris Marañon: professor pesquisador do Instituto de Investigaciones Económicas (IIEc)-UNAM-México.
Francisco Alves: professor Associado do Departamento de Engenharia de
Produção da UFSCar.
Gladyson S. B. Pereira: mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
Horácio Antunes de Sant´Anna Júnior: professor do Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPGCS) e Sustentabilidade de Ecossistemas (PGCSE) e Coordenador do
Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e pesquisador vinculado
ao GPTEC.
Jaqueline Gomes de Jesus: mestre e doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília e militante em direitos
humanos e psicólogo atuando no Serviço Público Federal.
Ricardo Rezende Figueira
Adonia Antunes Prado
(Orgs.)
José Batista Afonso: advogado e agente da Comissão Pastoral da Terra, em
Marabá, Sudeste do Pará.
José Damião de Lima Trindade: procurador do Estado em São Paulo e autor
de História Social dos Direitos Humanos (Editora Peirópolis, São Paulo).
Leonardo Sakamoto: doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo;
jornalista, coordenador geral da ONG Repórter Brasil e membro da Comissão
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Marcela Soares Silva: professora Assistente do Departamento de Serviço Social
da Universidade de Brasília e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGSS/ESS/UFRJ).
Marcelo Gonçalves Campos: auditor Fiscal do Trabalho e Assessor da Secretaria
de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Maria Antonieta Vieira: antropóloga, pesquisadora vinculada ao GPTEC.
Mitiko Yanaga Une: geógrafa pela USP, mestre em ciências pela Tokyo Kyoiku
Daigaku (fundida nos anos de 1970 para compor a Universidade de Tsukuba) e
geógrafa aposentada do IBGE onde trabalhou na área de meio ambiente.
Nanci Valadares de Carvalho: Ph. D em Ciência Política e Política Internacional pela New York University; mestre em Ciências Sociais pela Universidade de
Chicago, com Pós-Doutorado na Universidade de São Paulo e na Universidade
de Colônia; autora de diversos livros e artigos, dentre os quais se destaca “Autogestão, O Nascimento das Ongs, Editora Brasiliense,1983 e 1996.
Neide M. C. Cardoso de Oliveira: procuradora da República, bacharel em
Direito pela UERJ e Pós-graduada em Direitos Humanos-Relações de Trabalho,
pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Regina Bruno: socióloga; professora do CPDA-UFRRJ e pesquisadora vinculada
ao GPTEC.
Ricardo Rezende Figueira: antropólogo, professor da Escola de Serviço Social
da UFRJ e coordenador do GPTEC.
Vitale Joanoni Neto: historiador, professor da Universidade Federal de Mato
Grosso e pesquisador vinculado ao GPTEC.
Waldimeiry Corrêa da Silva: doutoranda em Direito Internacional pela Universidad de Sevilla-España, pesquisadora vinculada ao GPTEC e bolsista da
AECID (Becas-Mae).
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