Apresentação da coleção - Blog PET História UFPR
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Apresentação da coleção - Blog PET História UFPR
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA Coleção Didática PET História UFPR v. 02, n. 02 O Cinema Western na Sala de Aula CURITIBA 2015 Endereço para correspondência Rua General Carneiro, n.º 460, 6º andar, sala 605 Centro – Curitiba – Paraná – Brasil CEP: 80060-150 e-mail: [email protected] Impresso com recursos do FNDE Organizadores: Josip Horus Giunta Osipi Maria Victória Ribeiro Ruy Michel Ehrlich Projeto Gráfico e Capa: Lauriane dos Santos Rosa Periodicidade: irregular ISSN: 2359-3393 Curitiba, PR: PET História UFPR, 2015. (Volume 2) Coleção Didática PET História UFPR O Cinema Western na Sala de Aula Renata Senna Garraffoni (tutora do PET História) Membros do PET História: Aguinaldo Henrique Garcia de Gouveia Alexandre Cozer Carolina Marchesin Moisés Douglas Figueira Scirea Felipe Barradas Correia Castro Bastos Gabriel Elysio Maia Braga Josip Horus Giunta Osipi Karin Barbosa Joaquim Lauriane dos Santos Rosa Luccas Abraão de Paiva Vidal Maria Victoria Ribeiro Ruy Mariana Fujikawa Maurício Mihockiy Fernandez Martinez Mayara Ferneda Mottin Michel Ehrlich Shirlei Batista dos Santos Suellen Carolyne Precinotto Willian Funke PET História Departamento de História Universidade Federal do Paraná UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. SISTEMA DE BIBLIOTECAS. BIBIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO ___________________________________________________________________ __________________ COLEÇÃO Didática PET História-UFPR / UFPR. Departamento de História; [organizadores: Josip Horus Giunta Osipi, Maria Victória Ribeiro Ruy, Michel Ehrlich; projeto gráfico e capa: Lauriane dos Santos Rosa]. – v. 2, n. 2 ( 2015-) . – Curitiba, PR: PET-História UFPR, 2015. V. 2, n. 2, 2015 Título do exemplar: O cinema Western na sala de aula Irregular ISSN: 2359-3393 1. História - Estudo e ensino - Publicações seriadas. I. Universidade Federal do Paraná. Departamento de História. PET. II. Osipi, Josip Horus Giunta. III. Rosa, Lauriane dos Santos Rosa. 981.07 ___________________________________________________________________ __________________ Sirlei do Rocio Gdulla CRB-9ª/985 Apresentação da coleção O PET-História da Universidade Federal do Paraná foi fundado em 1992. Durante mais de duas décadas o grupo tem desenvolvido uma série de atividades que visam explorar o eixo básico do Programa de Educação Tutorial do MEC/SESU: relacionar atividades de ensino, pesquisa e extensão. Nos últimos anos, em especial, alunos e alunas bolsistas e não bolsistas têm realizado uma série de atividades inovadoras e buscado torná-las públicas para que a comunidade extra acadêmica possa se beneficiar de seus resultados. Com auxílio das ferramentas da internet, por exemplo, cada vez mais o trabalho tem ganhado visibilidade nacional e muitas das atividades realizadas podem ser acessadas pelo blog do grupo http://pethistoriaufpr.wordpress.com/. Além disso, a publicação da Revista Cadernos de Clio - agora também integralmente on line http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/clio - tem permitido o contato de graduandos dos cursos de História do Brasil e do exterior, por meio da difusão e publicação de pesquisas desenvolvidas por acadêmicos. Dentro dessa perspectiva de disponibilizar materiais produzidos pelo grupo, no ano de 2014 decidimos criar uma Coleção exclusiva para publicação de Material Didático produzido no âmbito das atividades que envolvam alunos e alunas do PET-História da UFPR. A presente Coleção visa, portanto, trazer à luz pesquisas inovadoras realizadas por petianos e seus colegas de graduação no âmbito da Universidade com finalidade de divulgar o potencial desses trabalhos para o uso nas escolas. Escrita em uma linguagem acessível, a Coleção Didática 5 tem como objetivo central problematizar temas de historiografia de diferentes períodos, coletar documentos e propor reflexões que permitam aos professores da rede de ensino pública e privada acesso a um material inédito que proporcione uma maior aproximação e diálogo entre academia e escolas. Esperamos, com essa nova Coleção, estimular a todos, petianos, graduandos em História, professores e alunos das escolas brasileiras, a produção crítica do conhecimento sobre o passado, bem como explorar sua potencialidade de diálogo entre diferentes modos de viver. O trabalho se baseia em perspectivas plurais que incluem reflexões sobre temas que possam ajudar na construção de uma sociedade mais democrática, colaborando assim para a formação cidadã dos jovens brasileiros. 6 Índice Apresentação da coleção........................................................................... 5 Cinema Western: muito além do Bang-Bang .......................................... 7 Filmes e Propostas de Discussão No Tempo das Diligências (Stagecoach) (1939) ................................... 20 Rio Vermelho (Red River) (1948) ........................................................... 24 Flechas de Fogo (Broken Arrow) (1950) ............................................... 28 Ardida como Pimenta (Calamity Jane) (1953) ..................................... 33 Johnny Guitar (1954) ............................................................................... 38 Rastros de Ódio (The Searchers) (1956) ................................................ 43 7 CINEMA WESTERN: MUITO ALÉM DO BANG-BANG INTRODUÇÃO O presente material didático é fruto de uma pesquisa coletiva realizada pelo PET-História UFPR durante o ano de 2014. Além deste material, a pesquisa também resultou em um minicurso ministrado pelos petianos e aberto a comunidade em abril de 2015, uma apresentação de trabalho no ENAF-2015 da UFPR e uma nota de pesquisa na revista científica Cadernos de Clio. O material que segue contém indicações de seis atividades diferentes que podem ser desenvolvidas cada uma a partir de um filme de gênero Western diferente para serem utilizados em sala de aula, especialmente para abordar questões raciais e de gênero tanto no momento de realização dos filmes como também e talvez principalmente, na atualidade, além dos debates sobre o período histórico em si e outras questões a critério do professor ou da professora. Contudo, antes de passarmos aos filmes propriamente ditos, cabe uma reflexão sobre o cinema como fonte histórica e ferramenta em sala de aula e uma breve análise sobre o gênero Western, com destaque especial para os recortes que realizamos em torno das figuras das mulheres e dos indígenas no filme. O CINEMA COMO FONTE HISTÓRICA E FERRAMENTA DIDÁTICA O cinema já foi desprezado como fonte histórica, ocupando papel marginal numa concepção de história que hierarquizava as 8 fontes e perseguia uma única verdade. Mesmo que a escola de Frankfurt tenha estudado o que chamaram de indústria cultural, ainda assim entendiam o cinema como legitimador ideológico do status quo e alienador do público (KELLNER, 2001). Somente a partir da década de 1960, o cinema passa a ser mais valorizado como fonte, com destaque para o trabalho de Marc Ferro (1992). Mais recentemente, estudiosos passaram a atentar para a capacidade dessa indústria de promover não somente dominação, mas também resistência, acomodação e negociações. A partir desse momento, tornou-se possível utilizar o cinema como documento para propor compreensões sobre uma época, e o filme histórico (como o Western) especificamente, para entender a imagem de um passado que as pessoas dessa época (da produção do filme) afirmavam, contestavam e negociavam (ROSENSTONE, 2010). Nessa nova perspectiva, o cinema também tem recebido destaque como ferramenta educativa, pelo fascínio que exerce sobre o expectador, mas também em função das possibilidades de ensino que abre. Porém, tal qual para o historiador, deve ser aclarado para os alunos que o filme, como qualquer fonte histórica, não retrata uma verdade absoluta. Assim, a análise do conteúdo do filme propriamente dito só têm sentido quando acompanhada da análise das intencionalidades, mensagens e subjetividades por trás da película. Efetivamente, esse é o real objeto de uma atividade pedagógica envolvendo cinema. Para tal é vital conhecer especialmente o contexto histórico de produção do filme, além de ter em mente quem é o diretor, os produtores, e como esse filme impactou o público que o assistiu na sua época, tomando o cinema como, simultaneamente, fruto da sociedade que o produz e, também, uma força de influência sobre 9 a mesma. Questionando as imagens cinematográficas como cenas do real, os filmes podem ser problematizados no cotidiano escolar através da noção de representação isto é, o cinema nem ilustra nem reproduz a realidade, mas a reconstrói com base em uma linguagem própria, produzida em determinado momento histórico. O filme histórico não possui nenhum comprometimento com a produção de um conhecimento sobre o passado. Ao retratar uma temática histórica, o cinema produz um discurso sobre o passado e é este discurso que deve ser analisado com os alunos. (MARTINS, 2008)1 Portanto, ao utilizar o cinema, desenvolve-se nos alunos justamente a capacidade de problematizar as fontes. Assim, questões como ‘Quem fez o filme?’ ‘Onde?’ ‘Quando?’ ‘Qual a intenção?’ tornam-se centrais e enriquecem análise. A partir disso, os alunos poderão não somente aprimorar seu conhecimento em termos de conteúdo, como também desenvolver seu senso crítico ao assistir filmes em seu cotidiano, tendo em vista a penetração do cinema na sociedade contemporânea. No caso desse volume da Coleção Material Didático focaremos no Western, pois conforme já comentado, foi tema da pesquisa coletiva realizada em 2014 e acreditamos que seria uma oportunidade interessante refletir sobre a relação desse gênero em específico e sua Esta citação provém de um material didático elaborado pelo PETHistória/UFPR em 2008, de título “O Cinema na Sala de aula”, que aborda com mais detalhes a questão que explanamos brevemente aqui. 1 10 potencialidade para discussões de questões sobre raça e gênero. Vale ressaltar que o cinema Western compõe um gênero clássico do cinema norte-americano, mas por ter sido muito difundido no Brasil, é uma ferramenta interessante para pensar, também, a circulação de ideias e visões de mundo. André Bazin (1991; p. 199) defende que o Western é o “cinema americano por excelência”. As obras que versam sobre esse gênero passam no período que precede a Guerra Civil Americana até a virada do século XX, tornando-se, portanto, uma fonte importante e acessível para pensar os conflitos sociais desse período da história, bem como do momento em que os filmes foram feitos. Os temas centrais costumam ser o tempo da ocupação de terras; o estabelecimento de grandes propriedades dedicadas à criação de gado; as lutas com os índios e a sua segregação; as corridas ao ouro na Califórnia; a demanda das terras prometidas e a guerra no Texas. O Western surge do encontro de uma mitologia com um meio de expressão: a Saga do Oeste, que já existia na literatura e no folclore, com o cinema. Passamos a analisar, mesmo que de maneira resumida, seu histórico. UM BREVE HISTÓRICO A origem do cinema Western praticamente se mistura com a do próprio cinema, com o primeiro Western remontando a 1903. O auge do gênero, foi atingido no período 1937-1940, devido muito a “tomada de consciência nacional que preludiava a guerra” (BAZIN, 1991, p. 209). Esse Western, que Bazin denomina de clássico, segue as características fundamentais que tornaram o gênero notório: o herói forte, branco, masculino, perfeito, que compreende o mundo hostil 11 em que vive (cowboy); a mulher frágil, pura, inocente e boa, ingênua, com a função de redimir o homem, mas quase sempre como personagem subalterna; o indígena que não chega a ser um vilão, é mais um obstáculo da natureza; o grande banqueiro ou latifundiário, este ganancioso, representa os vícios do leste. Os personagens são simples e coerentes, encarnando na totalidade os valores a eles associados. Em relação a ideais transparece a ideia de progresso, como o homem branco civilizando o oeste, a família nuclear e de pequena propriedade liderada pelo “self-made men” como o modelo a ser seguido (DURGNAT e SIMMON, 1998). Stagecoch, de John Ford (1939) é talvez o exemplo máximo desse momento. Nele, notam-se os principais personagens clássicos: o cowboy (John Wayne), cassado pela justiça mas necessário na proteção contra ladrões e índios, e que deseja vingar a morte do irmão, o banqueiro arrogante, a mulher com compaixão pelo sofrimento, personagens que dão um toque de humor (o médico bêbado e o cocheiro). Após a Segunda Guerra Mundial o gênero é retomado, porém com questionamentos. Mesmo os EUA saindo vitoriosos da guerra, os soldados mortos e o relato dos que voltaram fizeram com que o trauma do conflito atravessasse o Atlântico. Os questionamentos e críticas à sociedade moderna que os efeitos da guerra e dos regimes totalitários provocaram na intelectualidade geram também uma reflexão nas artes de um modo geral. Assim, muitos diretores se deparam com a obrigação de não fazer mais um Western na perspectiva apontada, mas de inserir nele maior profundidade e senso crítico. Surge assim o que Bazin chama de MetaWestern. Nesses filmes, o Western é de certa forma usado como um molde no qual se 12 inserem críticas e questionamentos sociais. Assim, o indígena e a mulher passam a assumir novos papéis, a figura do cowboy é problematizada. Surge a necessidade de explicar por que o cowboy é solitário, e, portanto, ele perde a perfeição (WORSHOW, 1998), o amor verdadeiro aparece, bem como o erotismo e até críticas ao Mcartismo. Com a década de 1950 os personagens ganham maior profundidade psicológica. É importante destacar que essas mudanças não ocorreram de forma brusca, nem linear. Um filme que questiona um elemento do Western não necessariamente altera os demais. Além disso, o Western clássico permaneceu, especialmente nas chamadas produções B, filmes de menor orçamento com fim exclusivamente comercial. Visando analisar os filmes em termos acadêmicos e também como meio de direcionar seu aproveitamento em sala de aula, optamos por nos aprofundar em três personagens típicos do Western que representam características recorrentes no gênero e que permitem problematizar especialmente as questões já apontadas, de gênero e raça: o cowboy, as mulheres e os indígenas. O COWBOY As tramas de Western desenvolviam-se, primariamente, em torno da figura do cowboy, conforme mencionamos. Ainda que no decorrer das décadas tenha sido modificado em seu visual, atitude e ideologia, tais alterações foram sendo feitas numa tentativa de adequar a imagem do personagem ao cenário histórico mundial da época e aos ideais norte-americanos de comportamento, indicando que o Western é muito mais um retrato da época em que foi produzido do 13 que da época que ele pretendia retratar. Num primeiro momento, o Western clássico, que teve seu auge logo antes da Segunda Guerra Mundial, retratou o cowboy como um herói portador de excelentes qualidades morais. O cowboy clássico é um homem que deixou o conforto de seu lar para desbravar novas terras, defender seus iguais e propagar a civilização e o progresso. Apesar de durão, o cowboy tem bom coração e sempre se vale de seu código de honra para pautar suas decisões. As diferenças entre o bom e o mau, o certo e o errado são bem claras, sendo o cowboy obviamente um advogado do bem. Isso, por sua vez, é o que legitima o uso da violência, tão característica do Western clássico, pois, como define Bazin (1991, p. 205) “Para ser eficaz, a justiça deve ser aplicada por homens tão fortes e temerários quanto os criminosos”. No contexto pós-guerra, seu comportamento passa a ser problematizado. O cowboy torna-se um sujeito que começa a dividir seu protagonismo com outras personagens que se tornam mais humanizadas (como mulheres e indígenas, por exemplo). Dicotomias deixam de ser claras e o cowboy começa a ser um sujeito portador de um caráter psicológico mais complexo, por vezes posicionando-se contra a “civilização” tradicional; deixa de ser o advogado de uma causa externa, para lutar pelo que somente ele, apesar de seus defeitos, sabe ser o certo. O cowboy torna-se muito mais um pacificador do que um desbravador e não raramente começa sua jornada assim como termina: sozinho, porém fiel aos seus valores. A MULHER NO WESTERN A mulher no Western costuma ser reduzida a alguns estereó14 tipos limitados, que desempenham papéis coadjuvantes ao do protagonista homem. Porém a mulher no Western tem um papel contraditório - ao mesmo tempo em que ela é uma personagem periférica, que por si mesma não tem importância, por outro lado, “um Western sem uma mulher simplesmente não funcionaria” (Anthony Mann apud COOK, 1998, p. 293). Frequentemente a mulher representa o leste, a civilização, e o homem o oeste indomado. É após conhecer a mulher e casar-se que o homem deixa a vida nômade, se estabelece e passa a construir uma nova sociedade. André Bazin (1991) afirma que a divisão entre bons e maus só existe para os homens. As mulheres, em qualquer lugar da escala social, são sempre dignas de amor ou pelo menos estima ou piedade. A sua bondade ou inocência não são resultado de uma escolha, mas características inerentes à sua natureza. A degradação da mulher seria resultado da falha dos homens: a frequente personagem da prostituta (por exemplo, em Stagecoach – 1939) é apresentada como uma vítima das circunstâncias e, após se apaixonar pelo cowboy, se redime de todos os seus pecados e assume o papel de força civilizadora, como todas as outras mulheres. Bazin justifica esse mito da mulher através da sociologia primitiva e do ambiente inóspito do Western: o respeito à mulher é necessário porque ela contém em si não apenas o futuro físico, mas os fundamentos morais da ordem familiar. Após os anos 1950, alguns filmes Western começam a questionar os estereótipos das personagens femininas, assim como dos outros personagens. Essas distorções não são radicais – Pam Cook (1998) sugere que o declínio do gênero Western se deu, em parte, graças a sua resistência com o impacto das mudanças sociais. 15 IMAGENS DOS INDÍGENAS Durgnat e Simmon (1998) afirmam que o indígena do Western primitivo (ainda no cinema mudo), mesmo que retratado de forma totalmente estereotipada, ainda era o “bom selvagem”. É a partir de fins da década de 1920 que a situação muda. Com a crise de 1929 e com a ato anti-imigração Johnson-Reed de 1924, o populismo norteamericano alimenta o medo de que grupos étnicos de fora do WASP2 tomassem o poder. O índio do Western clássico sequer pode ser classificado como um autêntico vilão. Este normalmente tem um plano ardiloso ou faz parte de uma conspiração maior. O índio do Western, ao contrário, é apresentado como uma força hostil da natureza que obstrui o fluxo natural do progresso, como se fosse um animal selvagem. No Western clássico ele raramente fala, tem sentimentos ou racionalidade, além de ser apresentado como um todo homogêneo. Em Stagecoach (1939) não é apontado nenhum motivo para o ataque dos índios à diligência, o fazem porque é de sua natureza. Também não sentem compaixão nem pelos seus companheiros, prosseguindo quando outros índios são atingidos, enquanto os brancos cuidam de seus feridos. Após a Segunda Guerra Mundial essa imagem começa, também, lentamente, a mudar. Flechas de Fogo (1950) é um dos primeiros filmes a apresentar o índio de forma positiva. O líder Cochise é apresentado como um pragmático homem de palavra. Além disso os indígenas aparecem como seres plurais, discutindo e discordando 2 Sigla para White, Anglo-Saxan, Protestant, (Branco, Anglo-Saxão, Protestante). 16 entre si. Outra comparação é relativa aos matrimônios. Tanto em Stagecoach como em Flechas de Fogo há um homem branco casado com uma índia. No primeiro, no entanto, é um personagem secundário que levou sua mulher para onde mora e praticamente não se comunica com ela, que é tratada como um produto exótico. Ao final, ela ainda foge e rouba um cavalo. Em Flechas de Fogo o cowboy se casa com uma índia, mas aceita os costume locais de casamento e vai viver com ela entre seu povo. CONCLUSÃO Ao final da pesquisa, pudemos concluir que o cinema Western é muito mais multifacetado do que uma primeira impressão poderia dar a entender. Ao longo do tempo, o gênero passou por transformações que refletem, mas também influenciam as mudanças na sociedade a sua volta. O cinema como mídia de amplo alcance e participante na circulação de ideias e identidades, nos permite observar e discutir as transformações sociais e a diversidade de sujeitos envolvidos nessas produções através de seus impactos culturais. O Western, especialmente por ser um dos gêneros filmográficos mais ricos e fenômeno essencial para a identidade norte-americana, pode ser uma ferramenta para ensino de História que foge das fontes e métodos tradicionais e possibilita uma visão mais plural do passado. Em termos de utilização em sala de aula, acreditamos que o cinema Western pode ser muito útil para reflexões que permeiam nossa sociedade, justamente pelo fato do Western ser um gênero que procurava os grandes públicos e refletia muito dos comportamentos e ideais médios de seus expectadores, que abrangia muito mais do 17 que a sociedade americana, tendo sucesso no mundo inteiro. As particularidades do Western permitem que, em especial questões raciais (e especificamente indígenas) e de gênero possam ser trabalhadas, visto que a imagem dos indígenas e das mulheres são objetos em disputa no cinema e seu retrato muitas vezes bastante problemático, pode justamente por isso, ser muito aproveitado para o debate em sala de aula, visando questionar não somente seus retratos no filme, mas como estes ainda são atuais, visando, junto aos alunos, uma transformação do meio a sua volta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAZIN, Andre. O Cinema: Ensaios. Editora Brasiliense.São Paulo: 1991 COOK, Pam. Women and the Western. In: KITSES, Jim; RICKMAN, Gregg. (Orgs). The Western Reader. Limelight Editors. New York: 1998 DURGNAT , Raymond; SIMMON, Scott. Six Creeds than won the Western. In: KITSES, Jim; RICKMAN, Gregg. (Orgs). The Western Reader. Limelight Editors. New York: 1998 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. KELLNER, Douglas. A Cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001 18 MARTINS, Ana Paula Vosne (coord.). O Cinema na sala de aula: uma abordagem didática. Curitiba: UFPR, PET-História, 2008. ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. WORSHOW, Robert. Movie Chronicle: The Westerner. In: KITSES, Jim; RICKMAN, Gregg. (Orgs). The Western Reader. Limelight Editors. New York: 1998 19 FILMES E PROPOSTAS DE DISCUSSÃO No Tempo das Diligências (Stagecoach) (1939) No Tempo das Diligências (Stagecoach) Direção: John Ford País: EUA Duração: 96 minutos Produção: United Artists Stagecoach é um excelente exemplar de Western Clássico. O filme conta a história de diversas pessoas que, por diferentes motivos, precisam viajar para o oeste e acabam vivendo uma aventura juntas. Cada um dos personagens da trama é um bom representante dos vários estereótipos dos filmes de Western e demonstram, claramente, as ideologias do gênero na época em que foi produzido. Dirigido pelo lendário John Ford, Stagecoach tem como vaqueiro principal da trama o famoso ator de Western John Wayne, e foi premiado na época com dois Oscars. Foi também o filme que tornou o ator John Wayne famoso. A trama começa com uma pequena diligência que chega a uma vila distante no estado de Arizona. Lá ela faz uma parada para reabastecer-se e algumas pessoas decidem unir-se à ela em viagem. Um banqueiro, capitalista e idealista do Estado mínimo, junta-se à diligência para cuidar de negócios seus no oeste. Outro personagem que se junta é o médico, que apesar de competente, está sempre bêbado e é expulso da vila. Uma prostituta é igualmente destratada pelas damas da alta sociedade daquela vila, e decide procurar outro 20 lugar para viver e, por isso, se junta à diligência. Também um vendedor de uísque pretende viajar; este porta vestes finas e tem atitudes consideradas afeminadas e frouxas por outros personagens. A tudo isso, junta-se uma dama, que pretende encontrar seu marido, general do exército que está em luta contra os índios Apaches. É notável, já dentro da diligência, a discrepância gritante entre o modo delicado e cavalheiresco com o qual a dama é tratada, enquanto que a prostituta é desprezada ou simplesmente ignorada. Logo que a diligência parte em viagem, ela é parada na rota por Ringo Kid, procurado pela polícia, mas que convence o cocheiro da diligência que ele não fará nenhuma mal a ninguém e que só deseja chegar até o destino deles, pois tem contas pessoais para acertar com alguns homens. A diligência chega a um posto de reabastecimento, onde deveria estar o marido da dama. Entretanto, a dama fica sabendo que seu marido teve de ir para o fronte de batalha e que o exército não poderia acompanhá-los em sua viagem. Mesmo diante do perigo, o vendedor de uísque é o único que sente vontade de voltar; ainda assim, ele segue em frente com o resto da diligência. Ringo Kid é o único que trata a prostituta com dignidade, que por sua vez não diz que é prostituta, mas que deseja ir procurar moradia e trabalho no oeste. Continuada a viagem, mesmo diante do perigo eminente de um ataque de Apaches, a diligência opta por uma rota de neve, pois, segundo o cocheiro, os Apaches não gostam do frio. Os índios são tratados como inimigos naturais do homem americano. Chegando a um segundo posto de abastecimento, a dama recebe notícia de que seu marido não se encontrava lá, mas que esta21 va gravemente ferido. Ela desmaia, e o médico, mesmo bêbado, resolve ajudá-la. Todos então descobrem que ela estava grávida, e o bebê nasce. A dama, entretanto, pouca atenção dá ao seu bebê, que é cuidado pela prostituta. Enquanto isso, a esposa do mexicano que cuidava do posto de abastecimento, que era também Apache, rouba os cavalos da diligência, que por sua vez precisa usar outros cavalos. Após uma nova discussão sobre se deveriam continuar ou não a viagem, todos parecem ser inamovíveis em seus objetivos, razão pela qual eles dão continuidade a viagem. A rota se torna mais perigosa e hostil. Durante uma das conversas dos passageiros, o vendedor de uísque recebe uma flechada, e a diligência se dá conta de que está prestes a ser atacada por um bando de índios Apache. Dá-se início a uma guerra. Os índios, à cavalo, vão atrás da diligência como animais irracionais, gritando e atirando. Entretanto, a diligência sobrevive, pois tinha munição e seus passageiros eram muito bons de mira: cada tiro que davam derrubava um índio de seu cavalo. Mesmo assim, os índios são muitos, e a munição acaba; porém, a diligência é vista pelo exército americano, que por sua vez vai ao resgate da diligência e neutraliza a tropa indígena. Chegando a diligência ao seu destino, cada um de seus passageiros toma seu rumo, exceto por Ringo, que ainda não resolvera seus problemas pessoais com outros três vaqueiros daquela cidade. Não se sabe qual era o problema entre eles, mas fica claro que os três vaqueiros pretender matar Ringo. Os passageiros da diligência tentam impedi-los, porém, eles insistem em vingar-se, mas acabam sendo mortos por Ringo. Ringo entrega-se então à polícia, que, ao ver sua honestidade e palavra, decidem deixá-lo escapar, acompanhado da prostituta, que se apaixonara por ele. 22 Questões que podem ser debatidas com os alunos: Cada personagem da trama é representante de um tipo social que o cinema pretende retratar naquela época. Que mensagem cada um deles passa para o expectador? Quem são os personagens “honrados” da trama? E os “desonrados”? Porque você acha que eles são tratados assim? Qual é a ideologia defendida pelo banqueiro e qual a reação dos outros passageiros á suas ideias? Qual a relevância desse debate, tendo em vista o contexto histórico em que o filme foi produzido? O filme mostra uma clara dicotomia entre selvageria e civilização. Mexicanos e índios, principalmente, são tratados com desprezo e têm sua capacidade intelectual reduzida o tempo todo durante o filme. Que tipo de discurso implícito é esse? Como é que esse mesmo discurso é reproduzido em nossa sociedade hoje em dia? O ser humano é considerado por si mesmo como racional e capaz de dialogar. Por que então os índios são retratados como inimigos naturais do homem branco? Em nossa sociedade hoje, existem grupos inimigos que estão em constante conflito, sem que haja um diálogo? Perceba o modo como a dama trata a prostituta, que é a mesma prostituta que cuida do filho da dama. Perceba também a diferença de tratamento que a prostituta recebe de todos os passageiros e de Ringo. Que mensagem o filme pretende passar para o expectador com essa contraposição? 23 Rio Vermelho (Red River) (1948) Rio Vermelho (Red River) Direção: Howard Hawkes e Arthur Rosson País: EUA Duração: 133 minutos Produção: United Artists O filme Rio Vermelho, dirigido por Howard Hawkes e Arthur Rosson, é um belo exemplo de Western Clássico, que conta em seu roteiro com o lendário ator John Wayne. A trama se dá a partir de dois personagens, Thomas Dunson (John Wayne) e o jovem Matt Garth (Montgomery Cliff). Apesar de poder ser considerado um Western Clássico, o filme choca por causa das ações ambíguas de seus personagens. Dunson é um ambicioso vaqueiro, que decide não mais ir à Califórnia, então destino da diligência da qual ele fazia parte, mas sim de buscar uma terra para começar sua fazenda de criação de gado. Sua mulher, a única que ele amou em toda a vida, suplica para que ele não vá, mas Dunson não é flexível e tampouco deixa que ela o acompanhe. Logo após a partida de Dunson, que se despede acompanhado de um amigo e seu único boi, ele se dá conta de que a diligência que dirigia-se à Califórnia é atacada por indígenas, e sua mulher é morta. Entretanto, Dunson se depara com um jovem rapaz sobrevivente ao ataque, Matt Garth, que conseguira escapar com sua única vaca. Após uma primeira interação um tanto hostil, Matt re24 solve juntar-se à Dunson, e eles partem em busca de uma terra para a fazenda de gado que desejam criar. Depois de três semanas de viagem, Dunson e Garth estabelecem-se na borda norte do estado do Texas. Entretanto, aquela terra já fora concedida a um senhor espanhol desde a época em que aquela região fazia parte do México, razão pela qual Dunson começa muito cedo uma briga por propriedade. Quatorze anos depois, a fazenda de Dunson tinha prosperado muito e contava com quase dez mil cabeças de gado. Muitos foram mortos por questões fundiárias e políticas por causa daquela fazenda. Dunson sente que é chegada a hora de levar seu gado para vender, entretanto, depara-se com a má notícia de que o gado naquela região valia muito pouco, razão pela qual ele decidiu levar seu gado até o Missouri, região onde melhor se pagaria pelo gado. No entanto, tratava-se de uma viagem extremamente longa e perigosa, que precisaria contar com a bravura de muitos homens. Enquanto Dunson decide marcar seu gado, Matt avisa-o que entre o gado de Dunson existe gado de outros proprietários. Dunson se recusa a devolver o gado, mas promete dar um bom retorno aos outros proprietários caso o gado seja vendido. Em uma dessas negociações, o jovem Cherry Valance (John Ireland), que trabalhava para um desses outros senhores, pede para juntar-se à caravana que irá para o Missouri. Nesta ocasião, os três melhores atiradores da região, Dunson, Matt e Valance se reúnem numa mesma diligência. Quando a viagem começa, logo aparecem os desafios. O maior destes, contudo, era a tirania de Dunson, que se revelou um senhor inflexível e pouco preocupado com o bem-estar dos homens que haviam assinado um contrato para levar o gado até o Missouri. 25 Dunson ouvira rumores de que em uma cidade mais próxima havia uma trilha de trem que poderia levar seu gado para Missouri mais rapidamente, mas ele simplesmente ignorou isso e preferiu passar pela rota tradicional, que cruzava uma região indígena perigosa. Várias são as brigas entre Dunson e os homens que trabalham para ele, o que resultou na morte desses homens. O último exagero de Dunson foi querer enforcar um homem que, por estar cansado demais, deixara a boiada se perder. Nesse momento, Matt e Valance se voltam contra Dunson e roubam seu gado para continuar a jornada, só que dessa vez à cidade que possuía a linha de trem. Dunson jura Matt de morte, e vai para a cidade mais próxima contratar homens e comprar armas para reaver seu gado. Agora em nova rota, Matt e Valance encontram uma diligência de mercadores e dançarinas, que estava sendo atacada por indígenas. Eles salvam a diligência e, depois, festejam. Nesta ocasião, Matt conhece uma garota e ambos se apaixonam. A garota sente vontade de acompanhá-lo, mas não o faz, uma vez que seria muito perigoso, pois Dunson em breve chegaria armado para vingar-se. A caravana segue em frente e chega até a cidade de Abilene, que contava com uma recém-construída estrada de ferro. Lá, um comerciante demonstra interesse pelo gado, e faz uma oferta muito maior do que os rapazes imaginavam pelo gado. Contudo, as coisas iam mal, pois sabiam que logo Dunson chegaria: Dunson chega enfim à cidade, e vai atrás de Matt. Eles se encontram, mas Matt se recusa a brigar com ele, e Dunson começa a socá-lo. Apesar da raiva de Dunson, a briga não resulta em morte, mas ele e Matt acabam se reconciliando, e a trama tem um final feliz para seus protagonistas. 26 Questões que podem ser debatidas com os alunos: Perceba o modo hostil como os personagens interagem uns com os outros quando se conhecem. Porque você acha que o diálogo é tão raso e com frequência os embates são resolvidos com violência? Que mensagem isso transmite sobre o vaqueiro e sobre o Oeste? Que paralelos podem ser feitos com o Brasil atual? Como a ausência de representantes da lei influenciava as ações dos personagens? Dunson tinha uma personalidade tirânica e sentia-se no direito de matar e castigar todos os que o desagradavam; de fato, quando Dunson matava alguém, ele o enterrava e rezava por ele. O que fazia Dunson sentir-se legitimado em suas ações? Que órgãos e/ou instituições poderiam evitar tais abusos? O que você acha das atitudes dele? O que o filme ensina sobre a ética da época da expansão para o Oeste? Dunson não era somente o patrão dos vaqueiros, mas também o juiz e a lei deles. Entretanto, depois de múltiplos abusos seus, os vaqueiros restantes decidem se voltar contra seu chefe por considerarem injustas suas ações. Que paralelos podemos traçar com situações semelhantes atuais, em que populações se voltam contra os abusos e injustiças dos representantes da lei? 27 Flechas de Fogo (Broken Arrow) (1950) Flechas de Fogo (Broken Arrow) Direção: Delmer Davis País: EUA Duração: 93 minutos Produção: 20th centry Fox Flechas de Fogo é um filme norte-americano baseado em fatos reais, ainda que livremente romanceados, lançado em 1950. É importante localizar o filme no ambiente de transformações nas artes do pós-guerra. Portanto, é uma obra que foge bastante dos padrões comuns do Western. Na década de 1870, a expansão para o Oeste dos Estados Unidos, intensificada após o fim da guerra civil norte-americana, Guerra de Secessão (1861-1865), gerava confrontos entre a população majoritariamente branca vinda do Leste e a população indígena nativa. Flechas de Fogo retrata esse conflito no estado do Arizona, palco de tensão entre brancos, nesta região em especial em busca de metais, principalmente cobre e prata, e indígenas apaches, comandados pelo famoso e temido líder Cochise, personagem que efetivamente existiu. O personagem principal do filme, e que também foi um personagem real, é Tom Jeffords (James Stewart). Este pode ser descrito como um cowboy pacifista. Logo no início do filme ele salva a vida de um jovem apache ferido. Ao ser descoberto pelos companheiros desse indígena, tem também sua vida poupada em retribuição. A partir 28 desse primeiro episódio humanizando ambas as partes do conflito, Jeffords decide que irá estabelecer a paz entre apaches e brancos, porém, não pela via da subjugação militar, mas pela negociação, o diálogo e um acordo que seja aceitável para ambos. Por isso, Jeffords decide, ao contrário de todos os brancos até então, procurar Cochise (Jeff Chandler) pessoalmente e, em paz, propor o início de uma negociação. Nasce, a partir disso, uma improvável relação de respeito – e até de amizade – entre Jeffords e Cochise. A trama passa a se desenrolar em torno do trabalho de Jeffords de convencer os demais brancos de que um acordo é possível e que os Apaches são confiáveis, enquanto Cochise procura fazer o mesmo entre seu povo, de modo a garantirem que um acordo seja cumprido. Nesse processo, o filme inclusive retrata os indígenas como mais cumpridores de sua palavra que os brancos. Jeffords e Cochise enfrentam diversas dificuldades para convencer seus pares, mas acabam conseguindo firmar um histórico acordo entre brancos e Apaches, contando com a participação do general Oliver Howard (Basil Ruysdael), conhecido como o general cristão, e outro personagem real. Paralelo a isso, Jeffords e uma jovem do grupo de Chochise, Sonseeahray (Debra Paget) se apaixonam. O aspecto mais interessante desse romance – e que definitivamente o diferencia dos Western clássicos - é que, demonstrando respeito pela cultura apache, Jeffords, ao pedi-la em casamento, segue o costume local, é aceito e vai viver com sua esposa entre os indígenas. Ao final, seguindo a estética comum da época, Sonseeahray morre assassinada por um grupo de brancos que pretendiam sabotar o acordo de paz, de modo que 29 Jeffords – assim como muitos cowboys do Western pós-guerra – termina o filme da mesma maneira que iniciou, cavalgando solitário, mas fiel a seus princípios e ciente de que cumpriu ao máximo sua missão pacificadora. Flechas de Fogo se enquadra nos Westerns mais profundos, críticos e reflexivos que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Particularmente, é um dos primeiros filmes do gênero a retratar os indígenas de forma positiva, recebendo por isso o Globo de Ouro de Melhor filme promovendo o entendimento universal, além de três indicações ao Oscar, incluindo melhor roteiro e melhor ator coadjuvante para Jeff Chandler pela sua atuação como Cochise. O filme já se inicia de forma não convencional. O cowboy aparece cavalgando solitário e apresenta o contexto: “Esta é a história de uma terra, do povo que vivia nela no ano de 1870, e de um homem cujo nome era Cochise. Ele era um índio – o líder da tribo chiricahua apache. Eu participei da história e o que vou contar aconteceu exatamente como vocês vão ver – a única mudança é que, quando os apaches falarem, vão falar na nossa língua.” Já nessa frase inicial rompe-se com o Western clássico. A trama não será sobre a luta entre bem e mal, civilizados contra selvagens, mas, pelo contrário, será sobre o povo indígena e seu líder. Apesar de não ser o personagem principal, é Cochise, mais até do que Jeffords, que é retratado como um herói. Outro detalhe é que, o filme atenta para o fato dos índios terem um idioma próprio (ainda que não seja utilizado no filme), o que é revolucionário diante de filmes nos quais os indígenas sequer falas tinham, somente grunhidos bestiais. Apesar do retrato da violência, como fruto essencialmente da falta de confiança mútua entre indígenas e brancos, poder ser enten30 dido como um tanto ingênua e minimizadora da correlação assimétrica de forças, Flechas de Fogo é bastante inovador ao apontar a justiça das reivindicações indígenas e retratá-los como racionais e honestos. A cena na qual os líderes indígenas se reúnem para discutir se aceitarão ou não os termos do acordo proposto entre Cochise e Jeffords é emblemática do retrato dessa racionalidade, além de, ao contrário do Western tradicional, mostrar a diversidade de opiniões entre os índios. Outra cena marcante é o primeiro contato entre Jeffords e o general Howard, quando este afirma: “Minha Bíblia não diz nada a respeito dos pigmentos da pele das pessoas”, ao mesmo tempo criticando a utilização da religião cristã como legitimadora dos massacres de indígenas e afirmando a possibilidade de outras leituras dos ensinamentos religiosos. Por fim, é importante também destacar alguns aspectos que, principalmente sob um olhar contemporâneo, podem ser problemáticos. Cochise é uma espécie de estadista ao estilo ocidental. Portanto, é questionável que o filme somente tenha sido capaz de retratar positivamente um indígena quando este se comporta como um ocidental. Outra crítica se refere ao fato de Cochise, Sonseeahray e os demais Apaches serem representados por atores brancos maquiados. Ainda assim, Flechas de Fogo quebra muitos paradigmas de sua época, especialmente dentro do cinema Western. Questões que podem ser debatidas com os alunos: Os indígenas dos filmes Western mais conhecidos são retratados da mesma forma que em Flechas de Fogo? Quais as dife31 renças? Por que na maioria dos filmes Western os indígenas são retratados de forma tão negativa? Quais seriam possíveis causas e possíveis consequências disso? O que será que estava mudando na sociedade que o criou para que filmes como Flechas de Fogo possam existir? De que forma os povos indígenas são tratados no cinema, na televisão e nas mídias em geral no Brasil? Se parecem mais com os de Flechas de Fogo ou com o Western tradicional? No Brasil também houve e há até hoje expansão de população e de atividades econômicas para áreas habitadas por povos indígenas, gerando conflitos que muitas vezes oprimem e até matam integrantes dos povos indígenas? Conhecem essa situação? O que fazer a respeito? Em Flechas de Fogo, brancos e indígenas tinham percepções muito negativas em respeito ao outro. Isso mudou quando puderam se conhecer e dialogar. O quanto realmente conhecemos dos indígenas brasileiros (ou outros grupos marginalizados) e quanto de nossa opinião sobre eles é baseada em preconceitos? O que podemos fazer para conhecê-los melhor e dialogar? 32 Ardida como Pimenta (Calamity Jane) (1953) Ardida como Pimenta (Calamity Jane) Direção: David Butler País: EUA Duração: 101 minutos Produção: Warner Bros Calamity Jane é um musical descontraído e cômico, estrelado pela icônica Doris Day e vencedor de um Oscar de Melhor Canção Original. O filme conta a história de Jane Calamidade, uma mulher que viveu nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX. De acordo com sua lenda Jane era uma aventureira, que vestia roupas de homem e trabalhava em funções normalmente masculinas, como nas ocupações ao redor das estradas de ferro e pode ser que tenha acompanhado expedições militares. Tornou-se um ícone do VelhoOeste americano, a calamidade em seu nome atribuída ao temperamento de Jane em relação aos homens que a importunavam e ao respeito que conquistara entre os índios Sioux, que se mantinham afastados dela.3 A Jane Calamidade do filme se veste com roupas masculinas e muito empoeiradas, fala grosso, e é considerada pelos colegas de saloon como outro homem. Porém, fica intrigada e desconfortável quando a foto de Adelaide Adams causa comoção entre eles, desme3 Calamity Jane. Disponível em: <http://womenshistory.about.com/od/Westernamerica/p/calamity_jane.htm> . Acesso em: 13 nov. 2015. 33 recendo a atriz e dizendo que “poderia ter uma aparência igual se quisesse”. Mais de uma vez Wild Bill Hickock, amigo com quem está sempre trocando provocações, a pergunta “por que é que ela nunca arruma o cabelo”. Mesmo que a protagonista desafie os estereótipos de gênero, a sua inadequação é sempre apontada e caçoada. O próprio tom cômico na interpretação Jane Calamidade é, de certa forma, uma maneira de pintar a personagem como uma aberração. Outra problemática é que suas habilidades como pistoleira são debochadas diversas vezes, e ela dificilmente é tratada como alguém temível - ao contrário de, por exemplo, Wild Bill Hickock. No musical, a história se passa em Deadwood Stage, uma cidadezinha em conflitos constantes com os índios das proximidades. O dono do saloon local desejava contratar uma atriz para realizar performances em seu estabelecimento. Por engano, acaba contratando um ator enquanto prometeu aos frequentadores do saloon uma beldade. Diante da plateia inconformada, que clamava por uma atriz, o desastrado dono do saloon promete trazer Adelaide Adams, uma das atrizes mais famosas do momento. Jane assume a responsabilidade de ir até Chicago buscar a artista. Chegando ao camarim de Adelaide Adams, Jane encontra a camareira da atriz, Katie Brown (Allyn Ann McLerie), que sonhava em seguir carreira artística. Valendo-se da confusão de Jane, que confunde a empregada com a patroa, Katie mente sobre sua identidade e aceita ir até Deadwood. Em seu primeiro show sua farsa é descoberta e a plateia fica, mais uma vez, furiosa. Jane então protege a moça, pedindo que a deixem cantar – Katie acaba fazendo muito sucesso, conquistando os habitantes da cidade. Assim nasce uma grande amizade entre as duas. 34 Já que Katie decide ficar em Deadwood, Jane a convida para morar em sua cabana. O estado da casa é deplorável, e com a canção “A Woman’s Touch” Katie ajuda a amiga a arrumar a casa. É o começo da feminização de Jane – entende-se que com a amiga Jane aprende a “ser mulher”. A protagonista conta sobre sua paixão pelo tenente Danny Gilmartin, explícita desde o começo do filme, mas em relação a qual Jane nunca conseguia tomar uma atitude. Katie decide ajudá-la renovando sua imagem, emprestando a ela vestidos e outros acessórios femininos. No entanto, o plano não é bem sucedido: Gilmartin se apaixona por Katie, assim como Wild Bill. Após um arranjo de Katie para que Wild Bill fosse o acompanhante de Jane, e Gilmartin o dela mesma, os quatro seguem para um baile. Jane naturalmente usa um vestido - Wild Bill demora a reconhecê-la em roupas tão femininas e não consegue disfarçar o espanto. Na mesma noite, Jane flagra um beijo entre Danny Gilmartin e Katie, e volta para casa furiosa jurando nunca mais perdoar a atriz. Mais tarde Jane desabafa com Wild Bill, contando dos seus sonhos em formar uma família com o tenente. Os dois então apaixonam-se. Na cena seguinte Doris Day canta “Secret Love”, a canção vencedora do Oscar e um clássico da década de 1950. Ela traja roupas de cowboy, porém limpas e mais bem-acabadas – uma diferença notável com seu figurino anterior. Katie se prepara para deixar a cidade por não suportar a ideia de ter magoado Jane. Esta, por sua vez, uma vez que o dilema se resolve com seu novo romance, sai cavalgando atrás da carruagem da atriz, e a traz de volta. Ao fim, Katie casa-se com o tenente Gilmartin e Jane com Wild Bill Hickcock. 35 Entre as mulheres de filmes Western que ao início da história estão usando calças e empunhando pistolas, é incomum que as mesmas continuam fazendo essas mesmas coisas ao fim do filme.4 Assim como costuma acontecer com o cowboy, a cowgirl conclui a sua trajetória com uma transformação: de fora da lei para “dentro da lei”, de selvagem para civilizado, de deslocado ou marginal para alguém que compõe uma família. Para essas personagens, faz parte deste processo de adequação mudar seu guarda roupa e seu comportamento para adequar-se ao que se espera de uma mulher. Com esse padrão em mente, podemos discutir como Calamity Jane se situa entre outros filmes Western. No decorrer da história, Jane passa por um processo de adequação parcial. Ela sofre uma transformação antes e depois de se apaixonar por Wild Bill, porém sem sacrificar totalmente sua identidade original. Possivelmente Jane destoa do padrão por causa das revisões pelas quais o Western passava em seu tempo (como comentado nas análises dos outros filmes), e também em respeito à lenda da Jane Calamidade, marcada na memória do Oeste norte-americano como uma mulher vestida como homem, empunhando armas e afugentando índios. Questões que podem ser debatidas com os alunos: No início do filme, por que Jane e Katie recebem tratamentos e atenções tão diferentes por parte dos homens? COOK, Pam. Women and the Western. In: KITSES, Jim; RICKMAN, Gregg. The Western Reader. Nova York: Limelight Editions, 1998. Página 294. 4 36 Na cena em que os personagens estão a caminho do baile, e Jane está sentada ao lado de Wild Bill Hickock, é ela quem segura as rédeas dos cavalos. Já na cena final, após os casamentos, os dois personagens estão novamente sentados lado a lado, mas quem guia o veículo é ele. O que você acha que essa mudança representa no filme? 37 Johnny Guitar (1954) Johnny Guitar (Johnny Guitar) Direção: Nicholas Ray País: EUA Duração: 110 minutos Produção: Republic Pictures Johnny Guitar é um filme Western fora do comum. Pam Cook o elegeu como possivelmente o mais próximo que um Western chegou de ser feminista5. A personagem principal do filme, Vienna (interpretada por Joan Crawford), é uma das mulheres mais interessantes do universo do faroeste e acumula características de diversos estereótipos femininos comuns à cultura Western, sem se encaixar perfeitamente em nenhum deles. Entretanto, Cook ressalta que o filme não chega se envolver diretamente com questões sociais de gênero. São a centralidade do papel e personalidade complexa de Vienna que chamam a atenção das críticas feministas. A maioria das personagens femininas no Western obedece a padrões bem previsíveis, passivos e são pouco complexas. Os principais desses estereótipos são a mãe, a virgem, a prostituta, a índia, entre outas. O Western é em geral uma narrativa baseada na missão masculina em busca da sua identidade, marginalizando as mulheres. Ainda que contraditoriamente, toda narrativa Western precisa de uma mulher em seu enredo, na maioria das vezes representando a 5 COOK, Pam. Women and the Western. In: KITSES, Jim; RICKMAN, Gregg. The Western Reader. Nova York: Limelight Editions, 1998. Página 298. 38 força civilizadora que doma o cowboy – faz com que ele deixe seu estilo de vida errante e selvagem para casar-se, criar raízes e começar uma família. O gênero cinematográfico passou por uma renovação no período pós-guerra, complexificando os seus personagens principais (o cowboy, o indígena, a mulher), porém ainda mantendo seus elementos clássicos. Para essa segunda geração de filmes Western, Johnny Guitar é uma importante referência. Vienna é dona de um saloon (uma espécie de casino, cenário frequente na cultura Western, local de convivência social predominantemente masculino) em uma cidadezinha do Arizona. Ela apoia a construção de uma estrada de ferro próxima à cidade, enquanto boa parte dos habitantes locais deseja o contrário. Há também a gangue de Dancin’ Kid, também indesejada e acusada de assaltar uma diligência, com a qual a protagonista tem alguns vínculos. Os opositores de Vienna são sempre manipulados pelas palavras raivosas de Emma Small (Mercedes McCambridge). Essa personagem é também bastante curiosa no que diz respeito aos estereótipos femininos. Ao mesmo tempo em que, assim como sua inimiga, ela atua em espaços e funções tipicamente masculinos (se envolve e lidera disputas políticas, cavalga, atira) sua rivalidade com Vienna é pouco justificada, aparentemente ligada apenas a ciúmes e inveja. A histeria no comportamento e nas motivações de Emma e a insistência numa rivalidade entre as duas únicas mulheres do filme não são vistas com bons olhos pelas críticas feministas – é válido comentar, porém, que a construção da antagonista é encarada como uma crítica do diretor Nicholas Ray ao Macartismo67 que assolava os Estados Unidos no 6 Ibidem. Página 299. 39 momento do lançamento do filme. Emma e os outros locais estão decididos a forçar que Vienna deixe a cidade. Logo na primeira cena do filme, chega ao saloon um homem chamado Johnny Guitar (Sterling Hayden), supostamente um músico contratado por Vienna. Mais tarde se descobre que o forasteiro é um pistoleiro e os dois são antigos amantes cujo romance fora interrompido – Johnny seguiu sua vida de cowboy e Vienna construíra seu saloon. O momento dessa revelação traz à tona uma face da personalidade da protagonista até então escondida: uma mulher apaixonada, que se rende ao seu amor e por ele esperou pacientemente. A Vienna apresentada na primeira parte do filme é confiante e destemida, não demonstra qualquer tipo de fragilidade. Um de seus empregados chega a dizer sobre a patroa: “Nunca conheci uma mulher que fosse mais homem. Ela pensa como um, age como um. E às vezes me faz pensar que eu não sou um”. Os conflitos se desenrolam até que os habitantes revoltados da cidade ordenam que Vienna, Johnny Guitar, Dancin’ Kid e sua trupe deixem a cidade em até vinte e quatro horas. A gangue rouba o banco para financiar sua fuga e Emma consegue culpar sua inimiga pelo roubo. Vienna é encontrada serenamente tocando piano em seu saloon deserto. Quase convence os locais da sua inocência quando um dos ladrões é encontrado debaixo da mesa – Vienna então é levada para a forca e o saloon, incendiado por Emma. No último se7 Macartismo ou em inglês McCarthyism foi a intensa perseguição aos comunistas nos Estados Unidos durante a Guerra Fria. O nome advém do político republicano Joseph McCarthy, tido como o principal responsável pelo desenvolvimento da histeria anticomunista. Os artistas e intelectuais que desejavam criticar o Macartismo precisavam fazê-lo de forma muito sutil, para que eles mesmos não sofressem perseguição. 40 gundo, é resgatada por Johnny Guitar da sentença de morte e o casal se une ao resto da gangue no refúgio de Dancin’ Kid. Porém não tardam a ser descobertos, e uma batalha sangrenta se inicia. Toda a gangue é assassinada, e Vienna e Emma duelam entre si – o duelo final é um encerramento clássico de filmes Western, porém raramente se dá entre duas mulheres. Vienna vence e foge com o seu amado. Apesar da sequência de tragédias, como a destruição do saloon, construído com muita luta, e a morte de seus amigos, a protagonista encerra o filme sorrindo e abraçado com Johnny Guitar, como que a caminho de um final feliz. O figurino de Vienna acompanha as variações da sua personalidade, como que alternando entre os polos de uma “masculinidade” e uma “feminilidade”. Na primeira parte do filme, enquanto mulher de negócios e mais tarde, em fuga e confrontando seus inimigos, a protagonista usa roupas tradicionalmente masculinas – camisa e calça. É somente em momentos em que não está numa posição dominante que Vienna traja vestidos. Quando se declara seu amor para Johnny e chora nos braços de seu amado usa uma camisola cor-de-rosa e, no momento em que é encurralada por Emma e seus seguidores e levada a forca, veste um vestido branco bufante. Apesar da insistência em uma dicotomia entre feminino e masculino, é notável que Vienna não passa por um processo de “domesticação”– alterna entre vestes masculinas e femininas ao longo do enredo, mas sem que isso envolva uma mudança da sua identidade. As poucas personagens mulheres “masculinizadas” do Western (cowgirls ou pistoleiras) costumam transformar-se durante a história, tornando-se “mulheres de verdade” ao fim de sua trajetória (que costuma incluir um casamento), quase uma mimetização do processo de civilização 41 do cowboy. Vienna, no entanto, ao fim do filme usa roupas muito parecidas com as que usava no início – não há nada a ser corrigido em seu caráter. Questões que podem ser debatidas com os alunos: Em alguns momentos os homens ao redor de Vienna apontam que ela não se comporta como a maioria das mulheres. O que você acha que se espera de uma mulher no contexto do filme? O comportamento de Vienna também seria estranho no seu contexto nos dias atuais? Como você acha que seria a reação das pessoas? Em mais de um momento os habitantes da cidade agem em função da paranoia instaurada pelos discursos de Emma. A personagem nunca tem provas de suas acusações contra Vienna, porém fala de um jeito firme e alarmado, que desperta o medo. Observando o seu dia a dia, você consegue encontrar pessoas agindo por pânico, motivado por discursos parecidos com de Emma? Se sim, no filme o medo quase fez com que pessoas inocentes fossem punidas – os exemplos do seu dia a dia também podem resultar em punições injustas? Podemos dizer que Vienna e Emma são os dois personagens mais importantes do filme – são elas as responsáveis por tomar as atitudes que guiam o enredo, na maior parte das vezes. O duelo final, por exemplo, é entre as duas. Entre os filmes que você assiste, os papéis principais costumam ser femininos? Entre os últimos filmes que você assistiu, ou entre seus filmes favoritos, quantos deles tem protagonistas mulheres? 42 Rastros de Ódio (The Searchers) (1956) Rastros de Ódio (The Searchers) Direção: John Ford País: EUA Duração: 119 minutos Produção: Warner Bros Pictures Rastros de Ódio é considerado um dos grandes clássicos do cinema Western norte-americano e da história do cinema como um todo. É um filme daquela que talvez seja a dupla de diretor-ator mais conhecida do Western e uma das mais famosas do cinema: John Ford e John Wayne. Lançado em 1956, apresenta elementos do Western mais psicológico dos anos 1950, mas também características do Western clássico do período pré Segunda Guerra Mundial. A maior diferença entre esse filme e os do período clássico (por exemplo Stagecoach, de 1939, dos mesmos Ford e Wayne) está na profundidade da figura do cowboy, que se antes era um ser perfeito, é agora um personagem complexo, imperfeito e que, não é redimido no final do filme (ainda que herói, termina solitário e não se estabelecendo, geralmente através do casamento, como nos Western clássicos). Por outro lado, as personagens femininas seguem ainda o padrão clássico do Western. Em relação aos indígenas, não há um consenso, como será discutido mais adiante. A trama gira em torno da figura do ex-oficial do exército confederado Ethan Edwards (John Wayne), que após a derrota na guerra civil americana (1861-1865) e três anos obscuros, retorna a casa de 43 seu irmão Aaron no interior do Texas. Porém, pouco após seu retorno, o rancho é atacado por um grupo de índios Comanches, que matam Aaaron, sua esposa Martha e raptam as duas filhas, Lucy e Debbie (esta ainda criança). Com a ajuda de Martin Pawley (Jeffrey Hunter), mestiço de índio cherokee e branco, filho adotivo de seu irmão (relação de parentesco a qual Ethan não reconhece), Ethan sai em busca de suas sobrinhas. Após encontrar Lucy morta depois de pouco tempo, os dois continuam em uma busca implacável por anos atrás de Debbie. Ethan demonstra um ódio profundo pelos indígenas (direcionado por vezes inclusive a Martin, com quem tem uma relação ambígua). Por outro lado, demonstra conhecer muito bem seus costumes, táticas e inclusive o idioma. A complexidade desse cowboy leva a divergências sobre se o filme reforça o racismo através de seu herói ou se é uma crítica, visto o grau de ódio e a infelicidade que isso traz ao cowboy, permitindo afirmar que talvez o verdadeiro herói do filme seja o mestiço Martin. De uma maneira ou de outra, é um filme que permite discutir as formas de racismo infelizmente ainda comuns nos EUA (e suas diferenças, de formato, não de gravidade, em relação ao racismo no Brasil). Com o tempo não fica mais claro qual o propósito da perseguição empreendida por Ethan. Caso encontrem Debbie viva, o que farão com ela? Martin, que a vê como irmã, pretende trazê-la de volta ao “mundo branco” (mesmo ela tendo sido criada entre os indígenas). Já Ethan começa a demonstrar o desejo de matá-la para evitar que esta gere descendentes indígenas (já que descobrem que Debbie - agora uma jovem representada por Natalie Wood) vive com o líder daquele grupo Comanche, Scar (Henry Brandon). A mistura racial 44 parece, para Ethan, o pior dos temores, o que explica também o certo desprezo que dirige a Martin, que mesmo criado entre brancos, tem sangue indígena. Ao final do filme, Debbie é resgatada e volta a viver entre os brancos, o que acaba por aceitar de bom grado. Já Ethan retorna ao cotidiano errante e solitário. O final do filme é novamente ambíguo em relação ao racismo. Se por um lado, Martin cumpre o final do cowboy clássico, casando-se com Laurie Jorgensen (Vera Miles), uma moça branca que o esperara por todo esse tempo, em clássico estereótipo da mulher do Western, ou seja, sua origem indígena não o tornou menos herói, Debbie aceita retornar aos brancos e não demonstra que terá problemas de adaptação, reforçando a tese racista de que, sendo branca, sempre se sentirá acolhida na cultura branca, mesmo sendo criada entre os índios. Rastros de Ódio permite discutir a forma como se elaboram as relações raciais no EUA, neste caso contra indígenas, mas que se dirige também contra os negros e outros grupos étnicos. Muitos estudiosos apontam que, enquanto no Brasil prevalece um racismo “de marca” – no qual a pessoa é identificada e marginalizada ou privilegiada pela cor, aparência – nos EUA o racismo preponderante é “de origem”, portanto, a pessoa é identificada, no caso do filme como indígena – pelo fato de ter alguma ascendência daquele grupo marginalizado8. Essas duas formas diferentes de racismo, que podem Para informações mais detalhadas sobre racismo “de marca” e “de origem”, ver NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, nov./nov. 2006. (http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes 8 45 também se combinar – o fato de uma forma preponderar em um determinado local não significa a ausência da outra - também geram formas diferentes de expressão do mesmo, evidentemente uma forma de racismo não é mais grave ou amena do que a outra, porém é preciso considerar as diferenças entre as formas até para permitir um combate mais efetivo. Esse racismo “de origem” dos EUA é expresso com muita clareza em Ethan. Mais importante até do que a vida de Debbie, é evitar que esta gere descendentes com um homem indígena, filhos estes que seriam inevitavelmente indígenas de acordo com o racismo “de origem”, independente do ambiente de criação ou de sua aparência. É por isso também que Martin, mesmo criado entre brancos e de cor de pele branca, é visto com desconfiança por Ethan. A miscigenação é extremamente perniciosa para o racista “de origem” – especialmente se essa mistura se dá entre homens indígenas e mulheres brancas, pois naquela sociedade machista e patriarcal, a mulher é vista como uma espécie de propriedade do homem, enquanto o homem branco que se relaciona com mulheres indígenas ainda poderia formar família com uma branca. Por essa razão, o casamento por engano de Martin com uma índia é tratado com deboche, mas não com temor, por Ethan, ainda assim, caso houvesse filhos dessa relação, seriam marginalizados como índios e não aceitos como brancos, independentemente de sua aparência ou criação cultural. É /v191/v19n1a15.pdf) e SCHWARCZ, Lilia Moritz. A questão racial brasileira vista por três professores. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 168-179, dez./fev. 2006. (http://www.usp.br/revistausp/68/14-florestan-joaooracy.pdf) 46 também em função disso que Debbie, uma vez que não teve filhos com nenhum indígena, pode retornar facilmente aos brancos, já que, na visão do racismo “de origem”, sua pureza racial branca a faz pertencer naturalmente ao “mundo branco”, mesmo que criada no “mundo indígena”. Já Martin seguirá sofrendo preconceito. Questões que podem ser debatidas com os alunos: Qual a forma de racismo de Ethan? Por que ele trata tão mal Martin e depois tão bem Debbie (após ser resgatada)? Por que ele pretendia matar Debbie a certa altura do filme? Quais as diferenças entre o racismo de Rastros de Ódio (dirigido também a outros setores da sociedade, em especial a população negra) e as formas de racismo mais comuns no Brasil – discutir o racismo “de origem” e “de marca”. O que é feito e pode ser feito para que cada uma dessas formas de racismo seja combatida na nossa sociedade? (citar casos de políticas públicas, ações adotadas na própria escola ou outras que possam ser propostas a partir da discussão) 47