CATAR E CATAR-SE: APROXIMAÇÕES ENTRE AGNÈS VARDA E

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CATAR E CATAR-SE: APROXIMAÇÕES ENTRE AGNÈS VARDA E
CATAR E CATAR-SE: APROXIMAÇÕES ENTRE AGNÈS VARDA E VICK
MUNIZ
Marinyze Prates de Oliveira1
Resumo: Neste artigo, procura-se refletir sobre os documentários Os Catadores e eu
(2000), de Agnès Varda, e Lixo extraordinário, dirigido por Lucy Walker (2010), que
tematizam a situação de habitantes da periferia das cidades, cuja sobrevivência depende
dos restos descartados pelos potenciais consumidores de bens e produtos. Através da
análise desses filmes, intenta-se flagrar aproximações entre a diretora belgo-francesa e o
artista plástico Vik Muniz, que, a pretexto de falarem sobre pessoas subalternizadas por
um sistema econômico que as exclui, acabam por falarem também a si mesmos.
Palavras-chaves: lixo; consumo; subalternização
A adoção de uma ideologia do crescimento ilimitado e da produção acelerada de
bens materiais, que acompanhou a modernização dos mais diferentes países, sobretudo
ao longo dos dois últimos séculos, refletiu-se, significativamente, nas práticas de
consumo e modos de vida contemporâneos. Tal processo foi acompanhado pela
produção de quantidades cada vez maiores de lixo, capazes de superar as expectativas
mais pessimistas em termos dos prejuízos causados ao meio ambiente, e cujo destino
constitui hoje enorme desafio para as sociedades.
Basta ligar a televisão ou abrir um jornal para se encontrarem notícias frequentes
sobre a poluição de rios invadidos por garrafas pet, móveis e eletrodomésticos; artigos a
respeito da morte de baleias, golfinhos e peixes engasgados com sacos plásticos;
reportagens que tratam das camufladas doações, pelos países do dito primeiro mundo,
de pneus e computadores obsoletos a nações periféricas; comentários sobre a prática
adotada recentemente pelos países avançados de despachar de forma clandestina
toneladas de lixo para fora de suas fronteiras.
Nesse cenário, os depósitos de lixo das grandes cidades ganharam,
consequentemente, a feição de textos que permitem a leitura de múltiplos aspectos e
1
Professora Adjunta do IHAC/UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade.
E-mail: [email protected]
revelam claramente tanto o entusiasmo perante as inovações — com especial destaque
para os produtos tecnológicos — quanto o horror à obsolescência, ao fora de moda, ao
modelo superado em termos de eficiência ou beleza. Assiste-se, assim, a uma
permanente substituição de aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos, móveis e materiais
de construção, muitos dos quais já fabricados para terem uma vida útil curta e prédeterminada, processo que corrobora a observação de David Harvey:
No domínio da produção de mercadorias, o efeito primário foi a ênfase nos valores e
virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e rápidos e outras
comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres embalagens, guardanapos,
roupas etc.). A dinâmica de uma sociedade “do descarte”, como a apelidaram escritores
como Alvin Toffler (1970), começou a ficar evidente durante os anos 60. Ela significa mais
do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema sobre o que fazer
com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida,
relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de
agir e ser.2
Se a maioria absoluta da população das metrópoles jamais teve o desejo ou a
oportunidade de visitar um desse lixões, localizados nas periferias das cidades, por meio
dos filmes que exploram essa questão tornou-se possível ler nos restos despejados
nesses depósitos — provenientes de bairros “nobres” ou periféricos — imagens do
paradoxo que emerge dos materiais descartados nas cidades. Por um lado, nele
transbordam signos de uma cultura da superabundância e do desperdício, e, por outro,
da escassez e exclusão. Ao refletir sobre a sociedade urbana, Milton Santos chama a
atenção para o fato de que ela
é dividida entre aqueles que têm acesso às mercadorias e serviços numa base
permanente e aqueles que, embora tendo as mesmas necessidades, não estão em
situação de satisfazê-las, devido ao acesso esporádico ou insuficiente ao dinheiro. Isso
cria diferenças quantitativas e qualitativas de consumo.
3
É certo que, nas duas últimas décadas, tomou vulto a preocupação com o rápido
esgotamento dos recursos naturais promovido pelo excesso de produção e consumo de
bens materiais e seu fácil descarte. Por meio da ação de ONGs que lutam em prol da
ecologia, de algumas autoridades preocupadas com um crescimento sustentável, de
campanhas veiculadas pelos meios de comunicação e de um trabalho de conscientização
2
3
HARVEY, David. Condição pós-moderna, p. 123.
SANTOS, Milton. Pobreza urbana, p. 45.
nas escolas, a reciclagem vem ganhando repercussão como uma possibilidade de
amenizar os efeitos deletérios do acúmulo de detritos. O cinema, inclusive, notadamente
nas duas últimas décadas — dentro ou fora do Brasil — vem aderindo cada vez mais ao
empenho de mostrar, em fortes e assustadoras imagens, os efeitos da produção
desenfreada de lixo sobre a saúde do planeta nestes tempos de capitalismo globalizado.
No Brasil, o curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989),
inaugurou não só o interesse pela temática do lixo, quanto um novo modo de produzir
documentários, com base na montagem de resíduos e fragmentos. A partir de um
processo de apropriação, reciclagem e ressignificação de imagens apanhadas em
enciclopédias e livros científicos; de objetos colhidos no lixo; de versos do Cancioneiro
da Inconfidência, de Cecília Meireles, dentre outros tantos materiais, o diretor compôs
um mosaico textual que, perpassado por uma fina ironia, mostrou quanto no sistema
capitalista seres humanos miseráveis podem estar abaixo dos porcos em termos do
direito básico de alimentar-se. Enquanto estes “têm donos”, aqueles foram relegados a
sua própria impotência diante de um poder perverso que ignora suas necessidades. Para
Bauman,
[a] produção do ‘refugo humano’ ou mais propriamente, de seres humanos refugados
(os ‘excessivos’, e ‘redundantes’, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser
reconhecidos ou obter permissão para ficar) é um produto inevitável da modernização, e
um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da
construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população como
‘deslocadas’, ‘inaptas’ ou ‘indesejáveis’) e do progresso econômico que não pode
ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de ‘ganhar a vida’
e que, portanto, não consegue senão privar seus participantes dos meios de subsistência.
Em Boca de lixo, Eduardo Coutinho (1992) trouxe à tona a existência de
integridade em um ambiente hostil, degradado e feio — o lixão de Itaoca, em São
Gonçalo, no Rio de Janeiro — de pessoas que cultivam valores e, entre a vergonha e o
orgulho de sobreviverem das sobras que outros habitantes da metrópole rejeitam,
garantem o direito de manterem-se vivas. O impactante Estamira, de Marcos Prado
(2004), também gira em torno de imagens de pessoas que vivem do lixo, embora sua
temática principal seja mesmo a intrigante personagem que dá nome ao documentário.
Neste trabalho, elegeremos como objetos mais pontuais de análise os
documentários Os catadores e eu, da diretora belgo-francesa Agnès Varda (2000), e
Lixo extraordinário, dirigido por Lucy Walker (2010). Tais filmes, além de
transportarem as incômodas imagens do lixo e dos “refugos humanos” — para usarmos
aqui a expressão plasmada por Bauman — da invisibilidade da periferia dos grandes
centros urbanos para as telas do cinema, permitem, suplementarmente, uma exploração
das relações dialógicas que guardam entre si, embora tenham sido realizados com uma
década de distância e em países diversos tanto em termos geográficos quanto
econômicos.
Agnès Varda, a catadora
Incitada por uma reprodução do famoso quadro As respigadoras, publicada na
Enciclopédia Larousse, Agnès Varda estabelece, em seu documentário Os catadores e
eu, um paralelo entre as respigadeiras da pintura de Jean-François Millet — mulheres
que, após a colheita, saem para catar as sobras deixados no solo, por não terem valor
comercial — e os catadores de lixo e restos nas ruas da Paris contemporânea e seus
arredores.
Em sua peregrinação por plantações de maçã, couve, milho, tomate e uva; por
despejos onde são jogadas toneladas de batatas refugadas por possuírem tamanhos e
formas inadequados para serem oferecidas aos consumidores; por supermercados,
depósitos e latões de lixo nas ruas, a própria Varda transforma-se na protagonistacatadora de seu filme. Tal condição é assumida expressamente no momento em que,
diante do quadro de Jules Breton, A respigadora, a cineasta pousa imitando a
personagem, no gesto de carregar um feixe de trigo sobre os ombros.
Com sua câmera digital, que lhe permite possibilidades de experimentações que
não nos deixam esquecer de sua condição de precursora da nouvelle vague, a diretora
vai catando imagens inusitadas, evidenciadoras de situações tanto de superabundância e
privilégios, por parte daqueles que descartam objetos em plena condição de uso, quanto
de escassez e subalternização extrema dos que perderam a capacidade de auto-sustentarse. As imagens de Os catadores e eu, ao mostrarem franceses ainda hoje alimentado-se
de restos e lixo, têm a capacidade de surpreender os espectadores habituados às
construções discursivas que durante séculos vêm plasmando a idéia de uma Europa rica,
que já superou as desigualdades extremas.
A diretora destaca, com sutileza e em momentos precisos, a dupla exclusão a que
principalmente negros e orientais pobres são muitas vezes submetidas nas sociedades
européias, conforme se pode atestar por meio da condição de Salomon, um afrodescendente idoso que busca abrigo no barraco de tábuas e papelão construído por um
velho chinês. Em sua “estrangeiridade”, ambos procuram aliar-se para enfrentar as
adversidades, mas, mesmo nessa condição, a situação do negro é ainda de maior
abandono. Coerente com suas preocupações políticas, que a levaram no passado a
engajar-se na luta pelo reconhecimento dos direitos civis de mulheres, negros e
imigrantes, Agnès Varda transforma Os catadores e eu em um atestado da coisificação a
que são submetidas tantas pessoas nas sociedades contemporâneas.
Paralalelamente, uma segunda busca se instaura no filme de Varda: a de pinturas
que tematizam a ação de respigadeiras e repousam em museus, ou se encontram
esquecidas em galerias e antiquários. Ao trazer essas obras para a frente da câmera, ela
resgata a beleza de suas formas e potencializa a importância da temática para o filme
que deseja construir, oferecendo-as ao olhar de um público amplo e diversificado. Com
esse gesto, a cineasta tece, adicionalmente, laços entre arte e restos, arte e sobras,
inserindo-se, de certa forma, na prática da reciclagem de materiais pertencentes à
tradição.
Além disso, no que se configura como uma terceira busca, ela recupera os
registros de uma prática que, ao longo da história, não só persistiu, mas agravou-se
gradativamente, à medida que o sistema capitalista foi-se tornando globalmente
dominante e igualando, em sua impotência, miseráveis do primeiro ao quarto mundo. Se
antes a atividade de respigar muitas vezes era adotada como forma de lazer — segundo
revelam alguns depoimentos de pessoas entrevistadas pela diretora, as quais guardam
desses momentos de convívio com amigos uma memória doce e saudosa — hoje o
ímpeto que move os catadores de lixo da capital parisiense e seus arredores são
principalmente a fome e a necessidade de sobrevivência.
A quarta busca que Varda empreende em Os catadores e eu — mas não
necessariamente nessa ordem — é em relação a si mesma, às memórias de uma mulher
que, aos 72 anos, lê em suas mãos enrugadas as marcas implacáveis da passagem do
tempo e o anúncio inconfundível da finitude da vida. Sobre esse aspecto, através da
decisão de trazer do lixo para sua própria casa duas cadeiras e um relógio sem ponteiro,
ela constrói uma das mais belas metáforas do filme. Se as cadeiras remetem à idéia de
quietude e espera, o relógio sem ponteiro evoca, ao contrário, o desejo de parar o correr
do tempo, reter a memória e o envelhecimento, despistar a morte que ronda seus passos
e ameaça retirá-la de cena — tanto do cinema quanto da própria vida.
Muniz: do lixo ao luxo
Lixo extraordinário, por sua vez, é centrado na ação do artista Vik Muniz, um
brasileiro de 49 anos, que na juventude trocou a periferia de São Paulo por Nova York,
onde se tornou famoso e rico. O documentário, embora tenha sua direção creditada a
Lucy Walker, contou com interferências diretas de Vik Muniz e corresponde ao registro
do desejo do artista de usar um pouco de seu prestígio e dinheiro para mudar a vida de
alguns brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. Para realizar esta ação, ele
escolheu um dos maiores aterros sanitários do mundo — o Jardim Gramacho — onde
centenas de pessoas transformaram a atividade de catar materiais recicláveis em forma
de garantir seu sustento.
Já amplamente reconhecido por transformar detritos em obras de arte, Muniz se
propôs a criar, juntamente com os catadores do local, obras que seriam posteriormente
leiloadas e cuja renda se reverteria em benefício daquela comunidade. Se em Ilha das
Flores, de Jorge Furtado, não existem flores, também no Jardim Gramacho de Lixo
extraordinário, não há jardim. Entre o mau cheiro e o aspecto assustador de montanhas
de lixo, todavia, o filme vai resgatando pessoas e suas histórias de vida, com seus traços
de beleza, sensibilidade e inteligência. Enquanto alguns moradores da comunidade são
movidos pelo orgulho de realizarem um trabalho socialmente mal visto, porém honesto,
outros são marcados pela frustração e revolta em relação a suas precárias condições de
subsistência.
Como o documentário de Varda, Lixo extraordinário é também um filme
memorialístico, traço, aliás, que coaduna perfeitamente com a obra de Vik Muniz, que
se esforça para trazer para o presente, de forma revigorada, imagens de um passado que
deve ser resgatado. Isto é o que acontece nos muitos auto-retratos produzidos pelo
artista ao longo de sua carreira; na captura do rosto de personalidades famosas como
Guevara, Marilyn Monroe, John Lennon; na recriação de pinturas canonizadas pela
tradição, como a Monalisa de Da Vinci, e a Medusa de Caravaggio, ou até mesmo na
reconstrução que ele promove da morte de Marat, em uma banheira, usando o catador
Tião como uma espécie de modelo.
Complementa esse aspecto do filme o fato de o documentário dedicar boa parte
do tempo a mostrar ao espectador passagens da história de vida do próprio Vik Muniz,
como o retorno a suas raízes, na periferia de São Paulo, quando visita a sua antiga casa,
de aspecto humilde; apresenta aos espectadores a avó e o pai; narra a história do
dinheiro que ganhou como recompensa por ter levado um tiro, ao separar uma briga, e
que lhe possibilitou ir para os Estados Unidos em busca de novos caminhos. Nessa
tentativa de costurar os retalhos que fizeram dele, rapaz pobre e desconhecido, o artista
consagrado de hoje, fica clara, portanto, a mensagem pedagógica do filme: com esforço
e um pouco de sorte, é possível transpor a linha da exclusão e da subalternidade.
A obra de Vik Muniz, em seu conjunto, construída a partir de materiais pouco
convencionais — como areia, terra, poeira, serragem, chocolate, doce de leite, gel para
cabelo — suscita uma reflexão sobre a própria lógica do processo de produção artística
contemporânea, que em grande medida se realiza por meio da reciclagem de elementos,
materiais, procedimentos e temáticas. Embora esta não seja uma prática nova no campo
da produção artística, jamais se registrou uma intensificação tão generalizada do
trabalho de “reciclagem” de obras precedentes, quanto na contemporaneidade. Essa
relação entre arte e restos é levada às últimas conseqüências no documentário sobre a
ação de Muniz no Jardim Gramacho, que exibe a transformação do lixo em luxo, do
desprezível no apreciável, do invisível no que passa a ganhar uma visibilidade
privilegiada nos salões de museus consagrados, como acaba ocorrendo, aliás, com as
próprias obras produzidas no Jardim Gramacho, para comoção e catarse tanto dos
catadores que pousaram como modelos, quanto dos próprios espectadores do filme.
Ainda o “nós” e o “eles”
Ao investirem na abordagem da ação de catadores, Varda e Muniz conferem
visibilidade não apenas às pessoas socialmente excluídas mostradas em seus filmes, mas
a suas próprias preocupações e histórias pessoais. Deste modo, o ato de catar transmuta-
se, no decorrer de ambas as produções cinematográficas, em catar-se, na medida em que
os dois artistas trazem à cena dados autobiográficos que os elevam à condição de
importantes personagens de seus filmes.
Para a diretora belgo-francesa, falar dos catadores é também uma forma de falar
de si, da maneira como vê o mundo e as demais pessoas; das utopias que alimentou e
longe estão de ser atingidas. Embora ela reconheça o pouco tempo que lhe resta, deseja
deixar registrada em seu filme Os catadores e eu imagens de um mundo insatisfatório,
carente de reformas que contemplem “cada um segundo suas necessidades”, para
lembrarmos as palavras do velho Marx, que tanta sedução exerceu sobre o pensamento
da jovem militante Agnès Varda.
Em seu filme, a diretora tanto emite comentários passageiros sobre o desperdício
de alimentos na França, que poderiam ser destinados aos que passam fome, quanto
registra depoimentos indignados a esse respeito, proferidos muitas vezes enfaticamente
pelas pessoas que ela entrevista. Como lembram Eduardo Leone e Maria Dora Mourão,
[q]ueiramos ou não, diante de um espetáculo cinematográfico somos capazes de nos
envolver nesse sequência de planos montados, mesmo que saibamos tratar-se de uma
representação. Essa mexida na nossa emoção e no nosso intelecto só é possível através
do trabalho artesanal e artístico dessa figura chamada diretor; aquele que, partindo de
um texto, faz as suas escolhas fabricando imagens e nos devolvendo esse texto em
imagens articuladas. 4
Considerando-se que um filme, mesmo de caráter documental, resulta dos cortes
e eleições promovidos por seus realizadores e, consequentemente, do processo de
montagem do material selecionado, os depoimentos dos entrevistados por Varda
poderiam ser tomados como uma espécie de extensão da voz da própria diretora, que no
intuito de preservar o filme de um tom explicitamente pedagógico, apropria-se da voz
alheia para registrar seu protesto pessoal contra as injustiças sociais.
Já a atitude de Vick Muniz, ao produzir obras com peças resgatadas do lixo do
Jardim Gramacho e, consequentemente, registrar esse processo em um documentário,
revela o desejo, segundo sua própria declaração no filme, de mudar a vida de alguns
catadores de lixo, ou melhor dizendo, de “materiais recicláveis” – segundo a expressão
corretiva usada por Tião ao responder a uma pergunta feita por Jô Soares em seu
4
LEONE, Eduardo e MOURÃO, Dora. Cinema e montagem, p. 34.
programa apresentado no canal GNT. A ambição declarada de Muniz não é apenas
denunciar o abandono de tantas pessoas a sua própria sorte. É levar pelo menos algumas
delas a resgatar a dignidade e a auto-estima, possibilitar-lhes saber que além do aterro
sanitário do Jardim Gramacho, há outros modos de trabalhar e viver.
Desta forma, seria pertinente indagarmos se o desejo de Muniz em realizar um
trabalho de “assistência social” no Jardim Gramacho, não poderia ser visto também
como uma operação de reciclagem, não apenas de materiais, mas de “refugos
humanos”, para continuarmos com a expressão de Bauman. Da mesma maneira que
nem todos os materiais encontrados nos lixões se prestam à reciclagem industrial ou
artística, conforme evidencia o documentário, também nem todos os habitantes do
Jardim Gramacho podem ser “reciclados” por Muniz. Daí a necessidade de selecionar
entre os habitantes da comunidade, alguns que não apenas demonstram aptidão para
juntar restos e construir obras de arte — recebendo, para tanto, um pagamento diário de
setenta reais — como também para posarem como modelos e terem seus rostos
estampados em grandes telas cujas imagens correrão boa parte do mundo.
Estendendo um pouco mais a análise, poderíamos identificar em Os catadores e
eu e Lixo extraordinário, até mesmo um processo de catarse de ambos os artistas, em
seu desejo de cumprirem um dever político, ao estamparem na tela as disparidades que
separam “os que têm donos” — como afirma Jorge Furtado em Ilha das Flores — dos
que, sendo de pequena relevância para o sistema econômico, “deixa-se morrer5”, por
meio do emprego de tecnologias de subalternização, misturados aos detritos que
gostaríamos de ver longe de nossos olhos, ouvidos e consciência.
Nesses filmes, no entanto, por mais que transpareça aos olhos dos espectadores a
intenção de Varda e Muniz de estabelecerem laços de solidariedade com os subalternos
ou mesmo de promoverem a defesa de sua inclusão como beneficiários das riquezas
produzidas pelo sistema capitalista, eles não conseguem apagar a distância entre o
“nós”, referente aos sujeitos detentores do direito à voz, e o “eles”, que aí são falados
por artistas famosos, legitimados pela posição de destaque que ocupam na economia
social e discursiva vigente nas sociedades ocidentais. Deste modo, continua pertinente a
5
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade.
observação de Gayatri Spivak de que nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome
do subalterno, sem que esteja vinculado ao discurso hegemônico6.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Kahar, 2005.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Emantina Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e
Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LEONE, Eduardo e MOURÃO, Dora. Cinema e montagem. São Paulo: Ática, 1987.
SANTOS, Milton. Pobreza urbana. São Paulo: EDUSP, 2009.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG,
2010.
VARDA, Agnès. Os catadores e eu (2000).
WALKER, Lucy. Lixo extraordinário (2010).
6
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?

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