MUDARDEVIDA

Transcrição

MUDARDEVIDA
ÚLTIMA
12
Um desabafo
A propósito de textos que
publicámos em Outubro de 2008
e Fevereiro de 2010 sobre o
regime de trabalho dos
funcionários de call centers,
recebemos mais uma denúncia
que confirma o insuportável
regime laboral imposto aos
trabalhadores, a maioria deles,
se não todos, precários.
Fukushima e a luta de classes
Começou-se por dizer que a catástrofe de Fukushima não atingiria as
proporções de Chernobil. Claro, ficaria mal a um dos países-modelo
do capitalismo global ter construído centrais nucleares no enfiamento
de terramotos e maremotos. A imprevidência, para encaixar nos
padrões vigentes de correcção política, devia ser exclusiva da
burocracia soviética. Agora, já se admite que Fukushima pode ter
consequências tão graves ou mais que as de Chernobil.
D
epois da catástrofe, vieram os remendos.
E os de Fukushima não têm sido melhores
que os de Chernobil. Mas a nossa
imprensa mais entusiástica do "milagre
japonês" descobriu agora o seu entusiasmo pelo
sentido de organização do país do sol nascente. E
vá de louvar a protecção civil japonesa, a
solidariedade com as vítimas, os alojamentos
improvisados, o estoicismo do "homem da rua", a
simplicidade do imperador que até se dignou dirigir
pela televisão uma mensagem ao povo.
No meio deste entusiasmo de neófitos, os
propagandistas do novo "milagre japonês"
descobriram mesmo a sua veia de poliglotas,
certamente com cursos intensivos de japonês
técnico devorados à pressa para esta circunstância.
E houve até quem quisesse louvar os trabalhadores
da protecção civil, que têm levado a cabo os mais
diversos trabalhos na área de Fukushima, como "os
samurais do nosso tempo". Ora, com isto ignora-se
o que é ciência elementar para o povo japonês, que
não compara esses trabalhadores com os samurais
e sim com os kamikaze.
Os herdeiros da aristocracia guerreira japonesa não
estão hoje a trabalhar entre os destroços de
Fukushima, e sim sentados no conselho de
administração da Tepco, a empresa que gere a
central nuclear e que, para aumentar os seus lucros,
tratou de poupar nos custos de segurança. Esses
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
descendentes dos samurais já admitiram
negligências clamorosas. Mas, ao contrário dos
antepassados, não concluíram as suas confissões
em conferência de imprensa com nenhum
espectacular hara-kiri. No moderno capitalismo
japonês, já ninguém expia as suas culpas com esse
tipo de suicídio ritual.
A verdadeira tarefa suicida é aqui deixada a simples
trabalhadores, que dentro de poucos meses ou anos
poderão morrer em massa, das consequências das
radiações, tal como sucedeu em Chernobil. E o
povo que lhes chama kamikaze conhece a história
dos pilotos suicidas, que eram apenas treinados
para descolar e não para aterrar, que eram enviados
para o ar em aviões carregados de bombas, apenas
com combustível para a ida e não para a volta, e
acompanhados por caças que os abateriam se
tivessem a veleidade de voltar atrás. Também esses
kamikaze eram as vítimas duma guerra imperial que
não escolheram fazer.
Os "samurais" que escolheram a guerra e os seus
descendentes que decidiram construir as centrais
nucleares com risco para toda a população, esses,
continuam no poder. Todos somos, provavelmente,
ignorantes da língua japonesa. Mas confundir
samurais com kamikaze é querer ignorar a luta de
classes, para além de qualquer desculpável
ignorância linguística.
António Louçã
“Também eu trabalho num call
center da TMN, e ninguém faz
ideia do que é trabalhar lá. Das
coisas que ouvimos dos clientes,
da forma como nos tratam, e
ainda o que ouvimos dos
superiores só porque naquele dia
não conseguimos vender
nenhum serviço.
Simplesmente não têm ideia do
que é estar 9 horas, sim porque
são raras as vezes que faço 8
horas, a ouvir clientes a lamentar
as suas vidas e a despejar a fúria
sobre nós só porque não
conseguem enviar sms.
Sou também licenciada, e tenho
uma série de adjectivos que
conseguem definir o meu estado
psicológico neste momento, mas
resume-se em exaustão.
E, apesar de falar 9 horas por
dia, sinto que não estou a ser
ouvida e, pior ainda, sinto que o
nosso trabalho não é digno, nem
ninguém se interessa e muito
menos fazem ideia do que é
trabalhar num sítio como estes,
em que trabalhamos fins de
semana, sim porque só quem
está lá há mais de 3 ou 4 anos é
que tem direito a fins de semana
e a um horário diurno, não
sabem o que é trabalhar no dia
de Natal, na véspera de Natal e
todos os feriados, porque nem
isso é rotativo.
Há muito trabalho precário, mas
este é sem duvida um dos piores.
Fica aqui o meu desabafo.”
“Ana”
DITO
O objectivo dos bancos
é facilitar os negócios,
e tudo o que facilita os
negócios favorece
a especulação.
J.W.Gilbart, banqueiro
(1794-1863)
Editorial
Legítima resposta
Numa manifestação de precários
em Espanha, um cartaz da
“geração sem futuro” dizia: “Sem
casa, sem reforma, sem medo”.
Também em Lisboa, na
manifestação da “geração à
rasca”, um dístico perguntava:
“Quando não tiveres nada a
perder, o que serás capaz de
fazer?”. Estes dizeres revelam
uma disposição de luta que é
preciso incentivar. Indicam uma
viragem possível e desejável
para a resistência de massas, de
resposta ao terror social imposto
pelo patronato. O mesmo
exemplo de destemor se pode
tirar das revoltas populares
nos países árabes.
Os sinais do que aí vem em
resultado das medidas do FMI/
FEEF, em cima de tudo o que já
foi feito contra os assalariados,
não deixam margem para
hesitações: o capital leva a cabo
uma política de esmagamento
das classes trabalhadoras.
É esse o único caminho do
patronato para responder à crise
dos negócios. E um tal processo
só terá fim se deparar com uma
resistência maciça da parte dos
trabalhadores à altura da
agressão de que são alvo.
Os que se mostram preocupados
com a possibilidade de uma
“convulsão social” escamoteiam
o facto de estar em pleno curso
uma luta de classes em que, até
agora, só os de cima ditaram as
regras. A convulsão social que
temem é o nome que dão à
legítima resposta das massas
trabalhadoras à guerra de que
estão a ser vítimas. Tentar
impedir que esta resposta venha
ao de cima, em nome da ordem
e da paz social, é dar mãos livres
ao patronato para prosseguir a
desordem social em que colocou
o país e dar livre curso à guerra
de classe que desencadeou
contra os trabalhadores. Sob a
bandeira da ordem, do sossego,
da paz, o que as classes
dominantes querem é assegurar
condições para continuarem
a esmagar os de baixo.
Contra isso, é preciso declarar
a legitimidade da luta social sob
todas as suas formas. Não baixar
a cabeça. Não aceitar ser vítima
fácil. Não excluir nenhuma forma
de acção de massas. Sem medo.
MUDARDEVIDA
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Março-Abril 2011 / número 27
Sem trabalho, sem casa,
sem futuro... sem medo
“Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz
de fazer?” (cartaz na manifestação da geração à rasca)
A
crise política estalou, depois de
numerosas cenas de colaboração,
chantagem, zanga e disputa entre
PS e PSD. Mas foram os três
partidos do capital que, sozinhos ou
coligados nos diversos governos, em mais
de três décadas, conduziram o país a uma
forte dependência económica das
potências europeias e empurraram as
classes trabalhadoras para a situação de
sobre-exploração em que vivem.
Começando por defender um acordo
governativo entre PS e PSD (o chamado
bloco central) as forças do poder
económico apostam agora abertamente
num bloco de direita que não deixe de fora
o PS.
Com a política de que Sócrates foi o fiel
executor, o patronato viu amadurecerem as
condições para subir mais um patamar no
ataque aos assalariados. Foi a esta
viragem que o PS já veio dizer que sim,
pela voz do ministro Luís Amado.
Mas a realidade social pode tornar-se
muito diferente do que é agora desde que
seja reforçada a única oposição eficaz
nestas condições: o protesto de rua, a luta
de massas.
páginas 3 e 5
Iraque, 8 anos depois
págs. 8 a 9
Líbia: fortes suspeitas de
bombardeamentos com armas
radioactivas, tal como sucedeu
no Iraque
págs. 10 e 11
PAÍS
2
Vítor Bento, o moralista
Vítor Bento, presidente do Conselho de Administração da SIBS
– Sociedade Interbancária de Serviços (empresa que gere a
rede do Multibanco) – e há algum tempo nomeado por Cavaco
Silva para membro do Conselho de Estado, em substituição de
Dias Loureiro, apresentou recentemente o livro “Economia,
Moral e Política”, em que acusa os políticos como os maiores
culpados pela crise económica internacional.
O autor discorre sobre uma
Moralidade exterior à Economia,
pretendendo autonomizar
aquela do contexto económicosocial que a determina.
Lembramos que este é o mesmo
Vítor Bento que foi promovido no
Banco de Portugal, por
Constâncio, quando já lá não
estava há vários anos (que
moralidade?). O mesmo
Vítor Bento defensor da
flexibilização da legislação laboral
e do abaixamento do salário
dos trabalhadores, para melhorar
a “competitividade” da economia.
Publicado pela Fundação
Francisco Soares dos Santos, de
Alexandre Soares dos Santos
(Pingo Doce) e de António
Barreto, o livro considera que a
actual crise resultou de uma
crise de valores morais e que os
políticos falharam nas escolhas
que fizeram.
Atendendo aos antecedentes de
Vítor Bento, de que moralidade
fala o autor?
"No livro olhei para a crise
internacional não apenas do
ponto de vista estritamente
económico, mas enquanto
erupção de uma crise de valores
da própria sociedade. Há muitos
factores que contribuíram, mas
um deles é o facto de hoje
vivermos numa sociedade onde
os valores materiais são a
referência comum, que quase
toda a gente subscreve", declarou
Vítor Bento à agência Lusa.
O conselheiro de Cavaco afirma,
ainda, que "em última instância,
os políticos têm sempre mais
culpas, porque têm a obrigação
de gerir a casa comum, de ver
melhor e mais longe. Enquanto
os outros elementos privilegiam
muito o seu interesse particular,
os políticos têm a obrigação de
colocar o interesse comum acima
de tudo, de estar no cimo da
torre com uma visão mais ampla
e, portanto, limitar os estragos
que os interesses particulares
possam fazer".
Como se os políticos que têm
governado o País (representados
no Conselho de Estado) não
fossem homens de mão dos
capitalistas! Não serão estes
E se não pagarmos?
A banca, tão amiga e protegida
pelo governo fez-lhe um xequemate. E agora Sócrates?
Colonizados pela troika FMI/BCE/
UE para que servem as eleições
de 5 de Junho? Para branquear a
pardidocracia PS/PSD/CDS
cúmplice da sua intervenção no
país?
Os hipócritas e falsos interesses
superiores do País são
publicidade enganosa para
alimentar o carreirismo político
partidário e a orgia e ditadura do
poder.
Portugal precisa de um grande
sobressalto revolucionário contra
a globalização selvagem
capitalista representada na União
Europeia pelo eixo franco-alemão
com a cumplicidade dos partidos
do chamado arco do poder.
É urgente acabar com a
influência dos figurões
economistas neoliberais, os
políticos de pacotilha e os
responsáveis pela colonização
humilhante de Portugal e dos
portugueses.
políticos, em última análise, os
responsáveis directos pelas
escolhas e medidas dos diversos
governos da burguesia?
Responsabilizando os políticos
genericamente, o que Vítor Bento
pretende é escamotear a luta de
classes e a exploração capitalista,
que são, efectivamente, o motor
do sistema económico vigente.
E, por aquilo que Vítor Bento
tem dito e escrito, pelos
interesses a que sempre tem
estado ligado, não parece que a
moralidade de que fala no seu
livro possa representar mais que
uma tentativa de dar cobertura
ideológica à actual ordem
económica capitalista.
Carlos Completo
E se, à semelhança da Islândia,
os povos de Portugal, Irlanda e
Grécia não quiserem pagar as
dívidas contraídas pelos seus
governos aos agiotas
chantagistas dos mercados
capitalistas?
Fernando Barão
FICHA TÉCNICA
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MUNDO
11
Urânio empobrecido: as armas que não
ousam dizer o próprio nome
Há fortes suspeitas de que a Líbia, à semelhança do Iraque, esteja a ser bombardeada com armas radioactivas
Nas primeiras 24 horas do ataque à Líbia, aviões norteamericanos B-2 despejaram 45 bombas de mil quilos. Não
sabemos se estas bombas, mais os mísseis Cruzeiro lançados
dos aviões e navios franceses e britânicos, contêm ogivas de
DU. Mas se a prova do seu uso no passado pelas forças
militares dos EUA e Reino Unido serve de guia, pode muito
bem acontecer que essas armas façam parte do bombardeio
que a Líbia está a sofrer.
“O mísseis com ogivas de urânio
empobrecido (DU) encaixam
perfeitamente na descrição de
bomba suja... Eu diria que é
arma perfeita para matar montes
de gente” (Marion Falk, físicoquímica, Laboratório Lawrence
Livermore, Califórnia, EUA)
O
DU é um detrito do
processo de
enriquecimento do
minério de urânio. É
usado em armas nucleares e em
reactores. Por ser uma
substância muito pesada (1,7
vezes mais densa que o
chumbo), é muito valorizado
pelos militares pela capacidade
que tem de atravessar veículos
blindados e edifícios. Quando
uma arma com ogiva de DU
atinge um objecto maciço, como
o exterior de um tanque,
atravessa-o e estoira numa
nuvem de vapor. O vapor
assenta na forma de poeira que é
não só venenosa mas também
radioactiva.
Efeitos a prazo
No impacto, um míssil de DU
arde a 10 mil graus centígrados.
Quando atinge um alvo, 30%
fragmenta-se em pedaços. Os
restantes 70% vaporizam-se em
três óxidos altamente tóxicos,
incluindo o óxido de urânio. Esta
poeira negra fica suspensa no ar
e, conforme o vento e o clima,
pode viajar a grandes distâncias.
Se acharem que o Iraque e a
Líbia ficam muito longe,
lembrem-se que a radiação de
Chernobil atingiu o País de
Gales.
Partículas com menos de 5
mícrons de diâmetro são
facilmente inaladas e podem
permanecer nos pulmões ou
outros órgãos durante anos. No
corpo, o DU pode causar danos
no fígado, cancros nos pulmões
e ossos, perturbações de pele,
perturbações cognitivas,
alterações de cromossomas,
síndromes de imunodeficiência e
doenças raras dos rins e
intestinos. As mulheres grávidas
expostas ao DU podem dar à luz
a crianças com deficiências
genéticas. Depois da poeira
vaporizada não se espere que o
problema desapareça
rapidamente. Como emissor de
partículas alfa, o DU tem uma
semi-vida de 4,5 mil milhões de
anos.
O caso do Iraque
No ataque ao Iraque “Choque e
pavor”, só em Bagdad foram
lançados mais de 1500 mísseis
e bombas. Seymor Hersh
afirmou que só o Third Marine
Aircraft Wing dos EUA lançou
mais de “500 mil toneladas de
artilharia”. Todas elas com
ogivas de DU.
A Al-Jazira noticiou que as forças
invasoras dos EUA dispararam
200 toneladas de material
radioactivo contra edifícios,
habitações, ruas e jardins de
Bagdad. Um repórter do
Christian Science Monitor levou
um contador Geiger para locais
da cidade que tinham sido
sujeitas a severos
bombardeamentos por tropas
dos EUA. Encontrou níveis de
radiação 1000 a 1900 vezes
maiores do que o normal para
áreas residenciais. Para uma
população de 26 milhões, os
EUA lançaram uma bomba de
uma tonelada por cada 52
iraquianos ou 20 quilos de
explosivos por pessoa.
Negócio de milhões
Nas primeiras 24 horas do
ataque dos EUA e seus aliados
foi lançada sobre a Líbia
artilharia no valor de 115 milhões
de euros. Muita dela, sem
dúvida, destruiu armamento e
instalações militares vendidas à
Líbia pelos mesmos países que
agora a bombardeiam.
O relatório de controlo de armas
da União Europeia diz que os
estados membros passaram
licenças em 2009 para venda de
armas e equipamento militar à
Líbia no valor de mais de 330
milhões de euros.
A Grã-Bretanha passou licenças
a empresas de armamento para
venda de 25 milhões de euros
de armas e foi igualmente paga
pelo coronel Gadafi para enviar
as SAS (forças especiais) para
treinar a sua 32.ª Brigada.
Forte suspeita
No Iraque, é amplamente
reconhecido (mas não pelos
governos ou pelos militares) que
houve uso extensivo de
armamento radioactivo, como
DU. Isto é provado de forma
irrefutável pelo imenso
crescimento do número de
crianças nascidas com defeitos
genéticos e de pessoas que
contraem cancros e outras
doenças. Esperamos que, no
caso da Líbia, o silêncio de
todos os governos acerca deste
assunto signifique que não foram
usadas armas de DU.
Mas a tragédia é que só o
podermos saber anos após os
bombardeamentos, como o povo
de Faluja, no Iraque, está agora
a descobrir através das horríveis
consequências do
bombardeamento da cidade, em
2004, com armas de DU e de
fósforo branco.
David Wilson, Stop the War
Coalition
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
MUNDO
10
A conspiração para derrubar Gadafi
Petróleo, negócio de armas e novos mercados na mira das potências imperialistas
A invasão da Líbia pela coligação da Nato é outra face da
mesma guerra. Importa à França dominar o petróleo líbio, claro;
importa dinamizar o negócio do armamento, também; importa
eliminar qualquer modelo político e económico dissidente e,
sobretudo, importa expandir uma democracia representativa
(sempre controlável) e um capitalismo neo-liberal, porque novos
mercados são vitais para a sobrevivência, não dos povos, mas
dos que, à custa deles, decidem quais são as regras do jogo.
Gadafi sempre foi mal amado
pelos líderes europeus e norte-americanos. Nunca lhe foi
perdoado o apoio às guerrilhas
urbanas nos anos 70, a
nacionalização do petróleo, ou a
sua independência em relação ao
modelo económico dominante,
recusando-se a transformar o país
em mais um maná para
investidores e especuladores. A
Líbia será dos poucos lugares do
mundo onde a saúde, a educação
(até universitária – todos os
estudantes recebem bolsas de
estudo), a habitação, a água e a
energia são absolutamente
gratuitas.
A sublevação de Fevereiro
A rebelião na Líbia é-nos
imediatamente apresentada como
uma sublevação popular pela
democratização do país, como as
ocorridas no Egipto e na Tunísia.
A denúncia, nunca provada, de
que Gadafi estaria a cometer um
massacre contra o seu povo,
serviu de pressuposto à
intervenção da Nato, e permitiu
ganhar o apoio ou o silêncio
conivente da opinião pública
europeia. É absolutamente
ignorado o facto de, ao contrário
do ocorrido naqueles dois países,
se tratar de uma sublevação
armada e militarizada; as
explicações oficiais para os que,
mais desconfiados, chamavam a
atenção para o “pormenor”,
consistiam na afirmação de que
alguns militares do exército líbio
se teriam aliado aos revoltosos,
levando consigo armas roubadas
ao arsenal militar líbio. Começam
então as mentiras, mais uma vez,
a tecer a sua teia.
Num interessante trabalho de
investigação fotográfica, Nickolay
Starikov, demonstra, a partir de
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Os serviços secretos norte-americanos conheciam, portanto,
a verdadeira origem desta revolta.
Sabiam também que, desde 2010,
o governo francês, utilizando os
movimentos anti-Gadafi,
preparava a queda do regime,
O protesto de rua, a luta de massas
A única oposição eficaz
O ministro Luís Amado, no lugar de Sócrates, disse tudo: para
efeitos de futuro governo, as alianças do PS serão com a direita.
Nada que não se previsse já, mas fica sublinhado para que não
sobrem dúvidas. A afirmação, de resto, vem corresponder às
pressões feitas pelos porta-vozes directos do capital desde que
a crise dos negócios se agudizou e desde que o receio de
convulsões sociais se começou a perfilar.
C
Ligações ao Ocidente
A conspiração francesa
3
Luís Amado foi claro: as alianças do PS serão com a direita
fotografias dos rebeldes da
agência Reuters, que as armas
por eles usadas não poderiam ter
sido retiradas dos arsenais do
exército Líbio, pelo simples facto
de este não as possuir. Na
verdade, as armas do seu exército
são russas e chinesas. As usadas
pelos rebeldes, as FN-FL, são de
fabrico belga, utilizadas pelos
EUA e diversos países europeus.
De onde surgiram então as armas
e estes revoltosos armados?
Após a revolução de 1969, Gadafi
reestrutura o sistema político e
instaura o estado laico. Esforça-se
por promover a igualdade entre os
sexos e os direitos das mulheres.
O regime vê-se confrontado com
sistemáticas oposições internas
de origem islamita, embora sem
grande impacto ou expressão
popular. A Frente Nacional para a
Salvação da Líbia e o Exército
Nacional Líbio são dois dos
grupos mais importantes da
oposição a Gadafi, com ligações
ao Ocidente, nomeadamente
EUA e Grã-Bretanha, onde se
encontram sediados. Em 1990
surgem diversos grupos islâmicos,
precisamente na zona oriental da
Líbia. A sua actividade, no
entanto, nunca gerou qualquer
impacto. Será no seio destes
opositores islamitas que nasce em
2007 o Grupo Islâmico de
Combate Anti-Gadafi que se viria
a declarar oficialmente como
subsidiário da Al-Qaeda.
PAÍS
procurando ganhar vantagens na
exploração petrolífera.
É, pois, a pretexto da protecção
de um povo ameaçado pelo seu
líder, com base num massacre
nunca demonstrado (nem um
documento, nem um vídeo sobre
este massacre virtual é possível
encontrar), mas
peremptoriamente confirmado por
Sarkozy e por Cameron, que, em
mais uma grandiosa missão
humanitária, o grande Ocidente
ratifica a intervenção da Nato na
Líbia, através da imposição de
uma “No-Fly Zone”. Na realidade,
o que veio a suceder violou o
princípio estabelecido: a Nato
desencadeou uma série de
bombardeamentos, com inúmeras
vítimas civis. A violação legal do
que se compreende por uma “NoFly Zone” (naturalmente protegida
pela subtileza prevista na
resolução aprovada, com a
declaração de que seriam
tomadas “todas as medidas
necessárias para proteger a
população civil”), tornou evidente
que o seu objectivo não era
proteger o povo líbio. Era reforçar
o poder e a força beligerante dos
rebeldes. Mais grave de tudo,
utilizando projécteis de urânio
empobrecido nos seus ataques,
que comportam contaminação
radioactiva.
Orquestração
Se dúvidas existissem, elas
seriam esclarecidas quando foi
conhecido o Conselho de
Transição Nacional Líbio,
imediatamente reconhecido pelas
forças da coligação como único
interlocutor entre a Líbia e a UE/
EUA. O seu líder, e auto-proclamado primeiro-ministro no
governo de sucessão a Gadafi, é
Mahmoud Jibril, professor durante
muitos anos nos Estados Unidos
e um convicto apologista do
neoliberalismo. O chefe dos
rebeldes, Khalifa Hifter, é um
antigo agente da CIA. E Ali
Tarhouni, indigitado ministro das
finanças do Conselho, é professor
de economia na Universidade de
Washington e regressou à Líbia
há pouco mais de um mês, depois
de trinta e cinco anos a viver no
estrangeiro.
Não falamos de uma revolta
popular. Falamos de uma
orquestração concertada entre
França, Grã-Bretanha e EUA, com
a conivência da comunidade
europeia, para a queda do regime
de Gadafi.
Cristina Paixão
omeçando por
defender um acordo
governativo, ou “de
regime”, entre PS e
PSD – o chamado bloco central –
as forças do poder económico
apostam agora abertamente num
bloco de direita que não deixe de
fora o PS. É a esta viragem que
o PS, através de Luís Amado,
vem dizer que sim.
Recordemos que, ainda há
poucos meses, os principais
banqueiros e homens de
negócios fizeram romarias à
sedes partidárias do PS e do
PSD e desdobraram-se em
declarações em apoio do
Orçamento de Estado e dos PEC
dando isso como fundamental
para salvar “o país”.
Conseguiram assim, com a
disponibilidade incondicional de
Sócrates, que mais uns passos
fossem dados no sentido de
reduzir os apoios sociais aos
mais pobres, baixar salários,
facilitar despedimentos e o mais
que se sabe.
Nova guinada à direita
A actual gritaria dos homens do
capital sobre a “incompetência”
do governo Sócrates tem, pois,
de ser vista como uma barragem
de propaganda que visa justificar,
aos olhos da população, mais
uma guinada política para a
direita. O governo do PS sempre
aplicou sem qualquer rebuço
(tirando as inevitáveis querelas
de interesses entre este ou
aquele grupo económico) as
medidas políticas que o
patronato foi exigindo. O que se
passa agora é que, com essa
política de que o PS foi o fiel
executor, amadureceram as
condições para subir mais um
patamar no ataque aos
assalariados.
Ver no PS um travão, mesmo
que frouxo, da investida do
patronato, ou um factor
moderador das medidas antisociais que CDS e PSD
anunciam, seria inverter por
completo o papel por ele
desempenhado. Contrariamente
à imagem que querem dar de si
próprios, o PS e Sócrates – na
linha, aliás, do que o PS sempre
foi nos momentos críticos! –
foram sim os batedores do
capital encarregados de
desarticular as poucas
protecções sociais do Estado,
minar as defesas legais do
Trabalho e criar, passo a passo,
as condições para um governo
abertamente de direita.
O espectro da “convulsão”
Este é o desenlace que está à
vista nas actuais condições, seja
qual for o vencedor nominal das
próximas eleições, haja ou não
maioria absoluta de algum dos
partidos da direita. E foi em
resposta a mais este balanço das
classes dominantes para a direita
(a que o próprio PS deu toda a
colaboração!) que a declaração
de Luís Amado veio afirmar :
“Estamos nessa”.
Há porém um outro lado da
questão. A pressão exercida pelo
capital e pelo poder sobre as
classes trabalhadoras vai-se
tornando cada vez mais
insuportável e, do ponto de vista
social, faz acumular matéria
explosiva. A luta de classes tem
condições objectivas para se
agudizar. É isso mesmo que
vários personagens do capital
expressam ao temer “uma
convulsão social”, com o
espectro de assaltos a
supermercados, violência nas
ruas, maiores protestos de
massas.
Mais que a maioria formal
Para obviar a estes riscos, a
burguesia precisa de mais do
que uma maioria governativa.
Não lhe basta a legitimidade
formal de um governo com
maioria absoluta no parlamento,
porque, para usar uma
expressão usada por Adriano
Moreira, a fome não está prevista
na Constituição. Precisa de forjar
uma espécie de “legitimidade
social” que lhe permita debelar,
tanto pela violência policial, como
pela propaganda, como ainda
pela caridade, os impulsos da
população em resposta às
medidas terroristas de ataque ao
trabalho.
Para isso a burguesia não pode
dar-se ao luxo de alienar o PS,
de o remeter ao papel de força
de oposição e deixar que muitos
dos seus apoios populares, sem
nada a defender, engrossem as
manifestações de rua, passem a
gritar “abaixo o governo” e
resistam às medidas brutais de
“austeridade” que estão a ser
negociadas com o FMI/FEEF.
Daí a necessidade, para a
burguesia portuguesa, de uma
ampla coligação de forças entre
PS, PSD e CDS (que não tem
necessariamente de assumir a
forma de um governo partilhado)
com a missão de impedir o
engrossar da oposição popular e
de desarticular quanto possível a
resistência de rua. É a este
chamamento, vestido com a capa
de “interesse nacional”, que, uma
vez mais, a declaração de Luís
Amado vem responder com um
sim inequívoco.
Via única
A realidade política do lado do
poder, depois das eleições de 5
de Junho, não fugirá muito a este
quadro. Mas a realidade social
pode tornar-se substancialmente
diferente do que é agora. A já
escassa capacidade de, pela via
parlamentar, fazer frente aos
ataques do capital será ainda
mais diminuída. O que permite
reforçar a única oposição eficaz
nestas condições: o protesto de
rua, a luta de massas.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
PAÍS
4
Um embaixador diligente
Ainda os telegramas de Lisboa da WikiLeaks
Os documentos da WikiLeaks
sobre o Ministério da Defesa e o
governo português, recentemente
divulgados pelo jornal Expresso,
apesar da sua utilidade, devem
ser encarados com um olhar
crítico. Na correspondência dos
embaixadores dos EUA há que
distinguir aquilo que tem algum
fundo de verdade daquilo que é
ditado pelos interesses próprios
dos embaixadores ou pela defesa
dos negócios daquela potência
imperialista.
Thomas Stephenson, embaixador
dos EUA em Lisboa, entre
Novembro de 2007 e Junho de
2009, critica o Ministério da
Defesa não por fazer gastos com
o militarismo e a guerra mas,
essencialmente, por estar a
preterir as compras militares aos
EUA em favor das compras
europeias.
Igualmente, deprecia os militares
portugueses, em parte por não
corresponderem de modo
suficiente às solicitações dos
norte-americanos.
Por outro lado, é de destacar a
existência de vários telegramas
de Lisboa para Washington, que
evidenciam a habitual
colaboração de gente
responsável do aparelho de
estado português com a
Embaixada dos EUA. Numa suja
e subserviente cumplicidade.
Stephenson escreveu em 5 de
Março de 2009, num telegrama
para Washington, que "no que diz
respeito a contratos de compras
militares, as vontades e acções
do Ministério da Defesa parecem
ser guiadas pela pressão dos
seus pares e pelo desejo de ter
brinquedos caros". "O Ministério
compra armamento por uma
questão de orgulho, não importa
se é útil ou não. Os exemplos
mais óbvios são os seus dois
submarinos (actualmente
atrasados) e 39 caças de
combate (apenas 12 em
condições de voar)", afirmava a
propósito dos dois submarinos
alemães adquiridos por Portugal,
em 2005.
O diplomata americano criticou
também a preferência de
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Portugal, em 2006, pela
aquisição de fragatas
holandesas, em vez das vendidas
pelos EUA. "O Ministério da
Defesa optou por gastar mais de
300 milhões de euros em fragatas
holandesas usadas. As
americanas teriam exigido
apenas cerca de 100 milhões de
euros na sua modernização e
apoio logístico".
O embaixador, na sua
correspondência com
Washington, acrescentava, ainda,
que a opção portuguesa por
“comprar europeu” também
aconteceu com os helicópterospatrulha, onde mais uma vez
foram preteridos os americanos
em favor dos europeus, estes
sem contratos de manutenção.
Num outro telegrama, o
embaixador fala num país de
"generais sentados", afirmando
que o Ministério da Defesa não é
capaz de tomar decisões e que
"os militares têm uma cultura de
status quo, em que as posiçõeschave são ocupadas por
carreiristas que evitam entrar em
controvérsias". E Stephenson
afirma que Portugal tem mais
almirantes e generais por soldado
do que quase todas as outras
forças armadas.
Das pressões sobre diplomatas e
políticos portugueses (incluindo
Cavaco Silva), a propósito do
Kosovo, falam os telegramas do
embaixador Alfred Hoffman, em
Outubro de 2007, e de Thomas
Stephenson, em 2008. Aqui,
também ressalta das várias
centenas de telegramas enviados
de Lisboa nos últimos quatro
anos que mais de 80 pessoas
colocadas em posições-chave no
aparelho de estado português
eram utilizadas pelos diplomatas
americanos como informadores
ou elementos de pressão a favor
dos EUA.
Concluindo.
Daquilo que afirmam os
embaixadores americanos nos
seus telegramas, pode deduzir-se
como eles dispõem facilmente de
ampla informação do interior das
Forças Armadas e das polícias e
da diplomacia (Luís Amado é um
grande amigo dos EUA), assim
como de vários outros sectores
da vida económica e política
portuguesa. Para além dos fortes
indícios de que a CIA faz escutas
em Portugal, os agentes
americanos têm tido aqui não
apenas boas possibilidades de
informação mas também de
infiltração/intervenção a favor dos
interesses americanos, contando,
inclusive, com a colaboração dos
Serviços de Informação de
Lisboa. Esta é uma situação
repugnante, que temos de
condenar firmemente.
Por outro lado, as razões das
diversas críticas que temos feito
às compras militares levadas a
cabo pelos diversos governos da
burguesia, aos generais e
almirantes portugueses, assim
como a outro pessoal do
aparelho de estado, não se
confundem com as do
embaixador americano. Por
estarmos radicalmente contra as
guerras e a ordem económica,
política e social do capitalismo,
por considerarmos que grande
parte dos dinheiros actualmente
gastos com o armamento e a
tropa deve ser transferida para a
saúde, a segurança social, a
educação e a luta contra a fome.
Pedro Goulart
Pobreza, um retrato
Há dois milhões de pobres em
Portugal e, com as chamadas
medidas de austeridade, a
situação agrava-se. Segundo a
Assistência Médica Internacional
(AMI), 2010 foi o "pior ano em
termos de pobreza em Portugal",
com os pedidos de apoio a
aumentarem 24% face a 2009.
Apenas aos espaços da AMI, em
2010, recorreram mais de 12 300
pessoas, um "valor sem
precedentes". A maioria das
pessoas (69%) está em idade
activa, enquanto 23% tem menos
de 16 anos e 18 por cento tem
mais de 65 anos.
Haja esperança!
Arrancou em Lisboa,
Entroncamento e Feira um
“projecto-piloto” de distribuição
de refeições a pessoas com
“dificuldades económicas”, isto é,
fome. Promovida pela
Associação da hotelaria e
restauração, a iniciativa já
garante 230 (!) refeições por dia,
5 (!) por cada restaurante
aderente. Dos mais de 2 milhões
de pobres do país, 230 já têm,
pois, comidinha garantida – e
de restaurante. A coisa tem o
patrocínio do presidente da
República e conta com uma
comissão de honra que
ambiciona levar o exemplo a
outros países! É assim: primeiro,
despedimentos e corte de apoios
sociais; depois, entram as almas
condoídas com a sua caridade.
Para ver se evitam o que mais
temem: a revolta dos pobres.
Os vampiros
Vêm em bandos sem pés de
veludo. São os dirigentes do FMI,
da OCDE, da UE, do BCE, dos
partidos do patronato, a maioria
dos analistas dos média que nos
listam os itens ditos necessários
para “sair da crise”: tábua-rasa
das leis laborais, redução de
salários e pensões,
despedimentos mais baratos,
menos subsídio de desemprego,
entrega da saúde e da educação
aos privados, subida dos
impostos... Não podemos
franquear-lhes as portas à
chegada. Com os meios
necessários, há que correr
com todos eles!
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
9
Solidariedade activa com os povos árabes
Excertos da intervenção de Eduardo Maia Costa
Um vendaval percorre o mundo árabe. Uma imensa onda genuinamente popular
invade as ruas, exigindo o fim de regimes políticos repressivos e caducos, ou, no
mínimo, mudanças profundas no sistema político. Uma tão vasta e pertinaz luta de
massas, enfrentando dias e dias seguidos a repressão impiedosa e sangrenta da
polícia, traduz necessariamente um generalizado sentimento popular de revolta, que
ultrapassou já a fronteira do medo, revelando um agravamento tal das condições de
vida, económicas, sociais e políticas, que a única saída é a expressão frontal dessa
revolta, mesmo com o preço do sangue, ou da vida.
U
ma tal revolta tem realmente
características novas no mundo
árabe, que vale a pena analisar.
Desde logo, o protesto assume a
forma de movimento de massas, traduzido
em manifestações de rua, sem recurso à
violência, enfrentando corajosamente a
polícia, a repressão.
É um movimento inorgânico e espontâneo,
no sentido de que não responde a
convocatórias de forças políticas, religiosas
ou sindicais, ou claramente as excede, pela
amplitude da participação de vastíssimos
sectores da população.
Tem objectivos puramente políticos (derrube
ou modificação do regime político), e não
religiosos, muito menos xenófobos.
Nas manifestações participam estratos muito
diversos da população, unidos no objectivo
comum de lutarem pela mudança política, ou
mesmo pelo derrubamento do regime.
Por último, importa salientar a presença
permanente e activa de mulheres nas ruas,
ao lado dos homens, e também a presença
de famílias inteiras confirmando esse
sentimento de unidade popular.
Ponto de viragem?
Toda esta movimentação revela uma
alteração radical da resistência popular nos
países árabes.
Por um lado, na forma: manifestações
pacíficas de massas, enfrentando a polícia,
e não acções armadas, ou simplesmente
bombistas, praticadas por grupos
clandestinos.
No conteúdo: luta puramente política, laica,
por objectivos políticos e sociais, sem
motivação ou expressão religiosas, sem
hostilização de quaisquer religiões.
É uma verdadeira revolução na história da
resistência popular no mundo árabe que abre
perspectivas novas de libertação, quer das
classes dominantes internas, quer da tutela
ou do domínio estrangeiros.
É ainda difícil prever o desenlace final, pelo
menos a nível global, desta gigantesca onda
popular, mas ninguém duvidará de que pode
vir a constituir-se como um ponto de viragem
na história do povo árabe, um movimento de
libertação só comparável com o fim da
dominação colonial otomana, francesa e
inglesa.
O caso da Líbia
Uma referência especial merece a Líbia. Os
protestos assumiram neste país
características especiais. Ao contrário do que
aconteceu em todos os outros países árabes,
o movimento de protesto foi sobretudo
regional (Cirenaica) e rapidamente assumiu a
natureza de movimento armado, que ocupou
militarmente a região oriental, constituindo
em poucas semanas um “contra-exército”,
que imediatamente investiu (sob o pendão da
monarquia…) contra o exército oficial, num
cenário de guerra civil, procurando o derrube
do regime pela força das armas.
Também ao contrário do que aconteceu com
outros países, nomeadamente com a Tunísia
ou com o Egipto, na Líbia, a “preocupação”
com a sorte dos “civis” foi levada ao
Conselho de Segurança da ONU pelas
potências do Ocidente. Após uma primeira
resolução de “aviso”, o CS aprovou a
resolução 1973, que permitiu a adopção das
“medidas necessárias” para a “protecção de
civis e zonas povoadas que estejam sob
ameaça do exército líbio”, assim como o
estabelecimento de uma zona de exclusão
aérea, também apenas para “protecção dos
civis”, excluindo expressamente a ocupação
militar do território.
O pretexto humanitário
A autorização estava dada para a intervenção
militar das potências ocidentais mais
belicosas, destacando-se a França e a
Inglaterra, que não escondem a pretensão de
derrubar o regime de Khadafi, o que é
confirmado pelas operações militares
desenvolvidas, que se destinam a
enfraquecer o exército oficial e a facilitar a
progressão do exército rebelde, e de modo
nenhum a “proteger civis”, o que viola
frontalmente a Resolução.
Sabemos bem que o pretexto humanitário
tem constituído o título invocado para as
intervenções militares do Ocidente (quando
não pode alegar legítima defesa, ou defesa
contra o terrorismo), que mais não visam do
que salvaguardar os seus próprios
interesses. As imensas riquezas naturais da
Líbia, subtraídas pelas nacionalizações ao
domínio das grandes companhias ocidentais,
estão sob a mira gulosa delas e dos
governos que as protegem e promovem. A
satisfação dessa gula, por meio da instalação
de um regime dócil e colaborante na Líbia,
será, não tenhamos dúvidas, o grande
objectivo “humanitário” das potências
intervenientes, com a passividade do CS da
ONU. A instalação de um regime “amigo” do
Ocidente na Líbia não deixaria aliás de
condicionar a evolução política nos demais
países da região.
Esta situação é inaceitável. A intervenção
militar, nos moldes em que se vem
desenrolando, é ilegítima e constitui uma
intromissão ilícita nos destinos da Líbia. O
destino do regime líbio deverá caber, como
sucedeu nos outros países árabes, ao próprio
povo, sem intromissão estrangeira.
Solidariedade
Neste momento crucial da sua história, os
povos árabes merecem a solidariedade
activa de todos os cidadãos e movimentos
progressistas do mundo.
Como vimos, a ambiguidade foi a
característica principal das reacções das
potências ocidentais. Uma ambiguidade
“estratégica” entre a demagogia da ideologia
da liberdade que apregoam (e não praticam
fora dos seus limites territoriais) e a
necessidade de não perder posições no
“terreno”, quer os seus amigos árabes
percam quer ganhem a batalha. Esta
hipocrisia, que caracteriza sempre a
actuação dos impérios, deve ser
desmascarada. Os governos que nos
representam devem assumir frontalmente
uma atitude de condenação da repressão
popular e de apoio aos legítimos anseios
populares.
Devemos recusar e condenar toda e qualquer
intervenção militar, ainda que sob a capa
humanitária, ainda que coberta por uma
decisão da ONU. Não é a “credencial formal”
que esta confere que modifica a natureza da
intervenção. A “protecção de civis” é hoje
uma máscara (uma das máscaras) que o
intervencionismo imperialista assume.
MV
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
8
A situação no Iraque não pode ser esquecida
Excertos da Decisão Final da 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque
A
Decisão dos jurados constata que, oito anos depois da
invasão, está por criar o regime democrático prometido pelos
invasores, que as instituições criadas e mantidas à sombra
da ocupação não representam o povo iraquiano e que se
assiste a uma grave regressão nos direitos das pessoas.
A responsabilidade de tal situação é da Autoridade Provisória da
Coligação. Os órgãos do Estado mostram-se inaptos para defender os
interesses do povo iraquiano e tornam-se instrumentos de violência
sobre a população, especialmente as mulheres e as crianças, vítimas
de todos os abusos.
A continuada utilização, pelos ocupantes, de armas químicas e
radioactivas, cujas horríveis consequências se vão prolongar por várias
gerações, configura um crime contra a humanidade.
Reiterando as decisões das anteriores audiências (2005 e 2008),
nomeadamente de condenar a invasão e a ocupação do Iraque, bem
como o apoio dos governos de Portugal aos agressores, a Decisão
reafirma o direito do povo iraquiano à resistência, sob todas as formas,
e apoia a constituição de um parlamento, de um governo e de um
sistema judiciário efectivamente representativos, como foi reclamado
nas manifestações recentes por todo o Iraque, que respondam às
exigências prementes da população.
A Decisão lembra ao Governo português a sua incumbência de
desenvolver todos os esforços políticos e diplomáticos para que sejam
respeitados os direitos básicos da população do Iraque e assegurado
condigno acolhimento dos refugiados/as iraquianos/as. E aponta a
responsabilidade dos organismos das Nações Unidas, especialmente
os dedicados às questões das mulheres e crianças, e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, de adoptarem
medidas que defendam as crianças, as mulheres e os refugiados
iraquianos, dentro e fora do país.
Por fim, a Decisão apela à Comunicação Social que não esqueça a
situação no Iraque, nomeadamente os graves crimes cometidos contra
mulheres e crianças; e exorta as organizações portuguesas
(partidárias, sindicais, cívicas, de defesa dos direitos humanos,
designadamente as organizações de mulheres) a denunciarem a
intolerável situação em que vive a população iraquiana, as suas
mulheres e as suas crianças e a solidarizarem-se por todos os meios
possíveis com o povo iraquiano que luta por reverter o desastre em
que o Iraque está mergulhado.
Os Jurados
Alípio de Freitas (professor), Ana Benavente (professora,
investigadora, ex-SE Educação e ex-deputada do PS), Diana Andringa
(jornalista), Eduarda Dionísio (professora), Fernanda Mestrinho (jurista,
jornalista, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), Helena
Carrilho (advogada, CGTP), Isabel do Carmo (médica), Isabel
Lourenço (tradutora), João Loff Barreto (advogado), Jorge Figueiredo
(economista), José Charters Monteiro (arquitecto), José Gonçalves da
Costa (juiz-conselheiro jubilado do STJ), Judite Almeida (professora,
Sindicato Professores Norte), Luanda Cozetti (cantora), Margarida
Vieira (funcionária pública, Associação Abril), Natacha Amaro (MDM),
Paula Santos (deputada do PCP), Regina Marques (MDM), Sandra
Silvestre (activista do BE, dirigente da Acção para a Justiça e Paz),
Susana Sousa Dias (cineasta).
Depoimento de Haifa Zangana
<< cont. da pág. anterior
origem na água são as que mais crianças
matam.
Contaminação radioactiva
Narmin Othman, o ministro iraquiano do
Ambiente, reconhece que 350 locais do
Iraque estão contaminados em resultado dos
bombardeamentos da guerra e que 140 mil
iraquianos contraíram cancro em
consequência de exposição ao Urânio
Empobrecido (DU).
No entanto, nenhuma acção foi até agora
promovida para neutralizar ou limpar esse
locais. O DU é uma arma que provoca
cancros e que origina malformações de
nascença muito depois da data de impacto –
e é, por isso mesmo, uma arma ilegal.
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Reportagens de TV emitidas em Maio de
2008 sobre as deformações de nascença
verificadas na cidade de Faluja, na sequência
da devastação da cidade em Novembro de
2004, mostraram que bebés deformados
nascem à razão de 4 a 5 por semana.
Silêncio é cumplicidade
Os iraquianos sofrem presentemente os
efeitos de um regime brutal, degradante e
ameaçador para as suas vidas, instalado e
patrocinado pelos EUA.
A paz não é concebível no Iraque sem a total
retirada das tropas estrangeiras, sem o fim
de todos os planos de permanência de tropas
e sem que acabe a interferência na indústria
do petróleo nacional.
Nada disto pode ser alcançado sem a
contínua solidariedade e sem o apoio do
movimento internacional contra a guerra aos
movimentos iraquianos. Incluindo o Tribunal
português sobre o Iraque que tem sido activo
no apontar da responsabilidade do governo
português na preparação da invasão e tem
denunciado o seu silêncio a respeito dos
crimes que são a ocupação de um país e a
violação dos direitos humanos.
Acreditamos que, para construir uma relação
durável entre os povos iraquiano e português,
temos de nos basear na igualdade, na justiça
e no reconhecimento do direito à resistência
por parte de um povo submetido a ocupação.
O silêncio, tanto dos governos como dos
indivíduos, é cumplicidade. Derrubar os
muros do silêncio é um acto de solidariedade.
É uma responsabilidade moral.
MV
PAÍS
Sem medos
Depois das grandes
manifestações de 12 e 19 de
Março, em que centenas de
milhares de trabalhadores,
desempregados e jovens
exprimiram o seu
descontentamento e
apresentaram as suas
reivindicações, a luta tem
prosseguido nas ruas e nas
empresas. Embora em menos
locais e com menos força do que
seria necessário para barrar a
ofensiva do capital.
Em Março e Abril, milhares de
trabalhadores lutaram contra os
cortes de salários, a supressão
de direitos no trabalho, a intenção
de alguma empresas avançarem
com as privatizações, assim
como a defesa das liberdades. E
em 6 de Maio estarão em greve
os trabalhadores da Função
Pública.
Como habitualmente, realizam-se
em 25 de Abril e em 1 de Maio
diversas sessões públicas e
manifestações de rua. Tanto
numa como noutra data, é de
superar as perspectivas
saudosistas ou meramente
evocativas, procurando integrar
as comemorações nas lutas que
é necessário desenvolver face à
grave situação das classes
trabalhadoras.
Em declarações recentes, o
secretário-geral da CGTP,
afirmou que "o tempo não é de
medos, nem de silêncios. O
tempo tem de ser de protesto, de
acção, de resposta". E
acrescentou: “Sem qualquer
hesitação, a CGTP apela à
mobilização de todos
trabalhadores e tudo faremos
para rejeitar as receitas da FMI e
UE. Não pode haver qualquer
hesitação, é preciso rechaçar
estas medidas”.
Perfeito. Em todo o caso,
Carvalho da Silva não deixou de
balizar esta mobilização pelo
calendário eleitoral dizendo que
até 5 de Junho decorre “um
período de intervenção política,
para introduzirmos o conteúdo
social na agenda política".
De acordo que seja “introduzido
conteúdo social na agenda
política”. Mas aquilo de que os
trabalhadores menos precisam é
que a sua luta de classe seja
colocada a reboque das eleições!
5
A crise política do regime
Sem varrer PS, PSD e CDS da área do poder não há melhoria das condições de vida
das classes trabalhadoras
Depois de numerosas cenas de
colaboração (no Orçamento, nos
PECs, etc.), chantagem, zanga e
disputa dos dois maiores partidos
do regime – PS e PSD – a crise
política estalou. Com a recusa na
AR (embora por motivos
diferentes) do PEC 4 de
Sócrates/UE/FMI, o primeiro-ministro demitiu-se, conduzindo
a eleições legislativas
antecipadas. E Passos Coelho
parece ter encontrado agora o
momento oportuno para “ir ao
pote” (ou à gamela?). Perante a
situação criada, disse Sócrates:
“Às vezes penso como foi
possível fazerem isto ao país?”
Que farsante!
Destes dois actores, infelizmente,
os trabalhadores e o País ainda
podem ter muito a esperar, no
domínio da farsa e da tragédia,
em que ambos parecem peritos.
O PSD e Passos Coelho (basta
ver a corja de capitalistas e
banqueiros que o cercam)
pretendem, entre outras
malfeitorias, terminar as tarefas
que o PS e Sócrates encetaram e
desenvolveram – a precarização
do trabalho e a entrega da
Saúde, da Educação e das
Empresas Públicas ao capital
privado.
Foram os três maiores partidos
da burguesia – PS, PSD e CDS –
que, sozinhos ou coligados nos
diversos governos, conduziram o
País ao longo de mais de três
décadas a um forte estado de
dependência económica e
política em relação às potências
imperialistas e empurraram as
classes trabalhadoras para a
actual situação de sobre-exploração em que vivem.
Iremos, assim, assistir em breve
a mais uma demagógica
campanha eleitoral,
procurando esta gente do regime,
outra vez, arrastar uma
significativa parte dos
trabalhadores e do povo
português ao voto nos mesmos
três partidos altamente
responsáveis pelo actual estado
de coisas. Percebe-se que os
patrões votem no PS, PSD ou
CDS. Também se percebe que o
pessoal dos aparelhos destes
partidos candidatos a gestores do
capital neles votem. Idem, para
os seus boys, mercenários e
amigos. Pois eles são cúmplices
e também defendem os seus
próprios interesses.
Claro que será importante
dificultar o “trabalho” dos partidos
do capital e a sua determinação
em encontrar um governo
maioritário do conjunto PS/PSD/
CDS, disposto a pôr em prática
as graves medidas pretendidas
pela UE/FMI. Uma fraca votação
em cada um destes três partidos
(e dos três no seu conjunto)
enfraqueceria a estratégia da
direita.
Embora não correspondendo as
eleições parlamentares a um
campo fundamental da luta
das classes exploradas, não se
compreende que os
trabalhadores e o povo, que
sofrem na carne as
consequências desta política do
capital ou que hoje têm acesso a
um mínimo de informação,
possam votar nesta gente que,
sistematicamente, os têm
enganado. Vivem agarrados à
política ilusória e mesquinha do
mal menor? Ou querem mesmo
voltar a ser enganados?
Dada as actuais condições
económicas, políticas e sociais
em que se encontra o País, e
aquilo que as classes dominantes
nos prometem nos próximos
tempos, os trabalhadores, os
precários, os desempregados, os
estudantes, os utentes do SNS
ou dos transportes públicos…
têm motivos fortes para continuar
e aprofundar a luta pelos
objectivos delineados nas
manifestações dos dias 12 e 19
de Março e prosseguidos em
diversas greves pontuais.
A unidade, a organização, o
espírito combativo e criador dos
explorados e oprimidos são,
desde já, elementos
indispensáveis para fazer frente à
ofensiva do patronato e às
“eleições” em que as classes
dominantes procurarão impor-se
aos trabalhadores e ao povo. Não
é momento de parar o combate.
Pedro Goulart
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
6
7
Realizou-se em Lisboa, em 26 de Março, na sede da Associação Abril, a 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal
Mundial sobre o Iraque. Evocando os 8 anos da invasão, a sessão foi dedicada à situação actual das mulheres e das crianças
no Iraque e contou com o depoimento presencial de Haifa Zangana. Um grupo de 20 jurados aprovou no final da audiência
uma declaração. Interveio ainda na sessão Eduardo Maia Costa, magistrado, que analisou a actual revolta popular no mundo
árabe. No dia 28, Haifa Zangana deslocou-se ao Porto onde teve lugar uma sessão pública promovida por activistas do
Tribunal-Iraque e Movimento da Paz. Damos conta nestas páginas e nas seguintes das intervenções da sessão de Lisboa.
Haifa Zangana
A situação das mulheres
e das crianças no Iraque ocupado
Excertos do depoimento de Haifa Zangana na 3.ª sessão da Audiência Portuguesa
do Tribunal Mundial sobre o Iraque
“N
Num passado ainda recente, as
mulheres iraquianas eram das
mais emancipadas da região,
com um elevado nível de
educação e presentes em todas
as esferas da vida profissional. Hoje, estão
empurradas para um canto, apertadas entre o
esforço de sobreviver à destruição provocada
pela guerra e as políticas feudais e sectárias
(em nome da religião) promovidas pela classe
política instalada no poder desde 2003.
Casamento “a termo”
Temos um fenómeno novo no Iraque chamado
Mut’ah, o casamento temporário, que significa
que um homem se casa com uma mulher na
presença de uma figura religiosa e especifica
por quanto tempo vai durar o casamento,
podendo ir desde algumas horas até muitos
anos. É um contrato a termo, onde um homem
paga a uma mulher um pequeno dote (mehr).
Tais casamentos não têm nenhuma protecção
ou garantias para as mulheres e/ou para os
seus descendentes. A maioria das mulheres que
aceitam casamentos temporários fazem-no
apenas por necessidades materiais. Esta prática
é vista por muitos como uma forma de
prostituição religiosa.
Poligamia
Outro fenómeno que não é a norma no Iraque é
a poligamia. No entanto, foi agora promovida por
alguns funcionários e políticos. Em Anbar, uma
província que testemunhou duros combates
entre as forças de resistência e de ocupação,
por exemplo, o partido islâmico e algumas
autoridades estão a oferecer dinheiro a homens
dispostos a ter mais do que uma esposa como
forma de resolver o problema do crescente
número de mulheres viúvas e solteiras. A
instituição da poligamia tem sido vista por
muitas mulheres e organizações de defesa dos
direitos humanos como uma manobra política
para encobrir a situação das mulheres mais
vulneráveis no Iraque.
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
As primeiras vítimas
Em qualquer situação de conflito, as primeiras
vítimas são as mulheres e as crianças. As forças
de defesa e de segurança iraquianas violam
sistematicamente o direito internacional
humanitário sempre que impõem actos de
punição colectiva ao levarem a cabo
“operações de segurança”.
As forças dos EUA e iraquianas instalam “um
anel de aço” em torno de cidades e aldeias
inteiras, não deixando entrar suprimentos
médicos e ajuda humanitária, cortando a
electricidade e a água e não permitindo a
deslocação de ambulâncias. Tal situação foi
relatada na CNN, referindo zonas de Baquba em
Julho de 2007.
Áreas densamente povoadas são então
submetidas a um bombardeio pesado e
implacável, como no caso de Arab Jebour, onde
50 toneladas de explosivos foram lançados
sobre a povoação durante 10 dias, em Janeiro
2008, destruindo bairros por completo e
exterminando famílias inteiras. Os habitantes
locais tiveram então que desenterrar os corpos
dos escombros com as próprias mãos. Não foi
feito qualquer inquérito sobre tais
acontecimentos pelo governo iraquiano.
As famílias queixam-se muitas vezes de que
lhes são, por rotina, roubadas jóias, objectos de
valor, dinheiro, documentos de identidade
durante ataques daquele tipo. Tais violações dos
direitos humanos são geralmente perpetradas
por raides das forças iraquianas, muitas vezes
sob a supervisão ou protecção das forças de
ocupação dos EUA.
Represálias e chantagens
Muitas organizações iraquianas de direitos
humanos assinalam a prática de detenções e
prisões de mulheres in lieu, isto é, no lugar dos
seus homens, identificados como suspeitos.
Uma medida de punição colectiva é, assim,
imposta a famílias inteiras, só porque um
membro está sob suspeita. Isto, segundo o
direito internacional, é um crime de guerra.
Nos 12 meses que antecederam as eleições
provinciais de Janeiro de 2009, houve uma
campanha organizada de detenções arbitrárias.
As detenções não excluíam as crianças que, tal
como os seus familiares adultos, foram
submetidas a torturas horríveis e viram negados
os seus direitos legais.
As mulheres (mães, esposas ou irmãs dos
presos) que se dirigem às esquadras de polícia
ou aos centros de detenção para perguntar
pelos seus familiares são humilhadas através de
sugestões de prestação favores sexuais, ou do
pagamento de resgates que podem ir de 2 mil a
20 mil dólares norte-americanos em troca da
liberdade dos familiares ou da redução dos
maus tratos que eles sofrem na prisão.
Detenção de crianças
Um relatório da UNICEF datado de Abril 2008
indicou que 1 500 crianças estavam sob
custódia das forças oficiais iraquianas e dos
EUA. Em alguns casos, as crianças são
mantidas presas no mesmo espaço dos adultos,
expondo-as a mais riscos de agressão e abuso.
Relatórios dos meios de comunicação sobre a
prisão para crianças de Al Karkh revelam uma
longa lista de maus tratos, abusos e violações.
Morte de civis
Frequentemente, os ocupantes culpam os
“insurgentes” da morte de civis, especialmente
mulheres e crianças.
Contudo, um estudo recente feito por
investigadores britânicos e suíços, usando
dados fornecidos pelo grupo de direitos
humanos Iraq Body Count, analisou as mortes
de civis no Iraque desde Março de 2003 a Março
de 2008 e descobriu que a maior parte das
mortes de mulheres e de crianças, entre os
civis mortos por certos tipos de armas, foi
provocada pelas “forças da coligação”, em
particular por ataques aéreos das forças de
ocupação.
Ruptura do sistema de Educação
“Cerca de dois milhões de crianças iraquianas
enfrentam ameaças diárias de má nutrição,
doença e falta de escola”, de acordo com a
UNICEF. 92% das crianças iraquianas são alvo
de obstruções à aprendizagem devidas à
violência e à instabilidade criadas no Iraque, de
acordo com a Oxfam (Oxford Committee for
Famine Relief).
Em 2006/7 crianças de Bagdad e dos arredores
tinham de passar sobre cadáveres no caminho
para a escola. Viram esses corpos serem
comidos por cães vadios. Recolheres
obrigatórios repentinos e explosões de violência
também afectam as crianças e interrompem a
sua educação. Têm de viver passando de um
trauma para outro. Muitas crianças têm de
suportar o abandono da casa, a separação dos
seus amigos e do meio que lhes é familiar para
enfrentarem um futuro incerto como
‘refugiados’ sem rendimentos ou apoio.
Bombardeamentos aéreos pelas forças de
ocupação causaram danos estruturais
profundos a escolas situadas em áreas onde
ocorrem operações militares. Todos estes
factores significam que o sistema de educação,
já de si à beira do abismo, sofreu ainda mais
rupturas.
Trabalho, em vez de escola
Números do governo iraquiano dizem que o
Iraque tem hoje 5 milhões de órfãos. 43% dos
iraquianos vivem numa pobreza abjecta.
As crianças são nestes casos postas a
trabalhar em vez de irem à escola, outras
tornam-se pedintes nos locais públicos e nos
mercados. Estas crianças trabalham longas
horas e não têm nenhuma protecção contra a
exploração e os abusos. Nenhuma protecção
contra a exposição a doenças sociais como a
prostituição infantil e o uso de drogas. Este
problema particular é especialmente agudo para
as crianças ‘refugiadas’ nos países vizinhos do
Iraque.
Iliteracia crescente
Há um crescimento importante da iliteracia entre
as mulheres, a qual se situava em apenas 5%
no final dos anos setenta do século passado.
Existe um número crescente, nunca antes
atingido, de raparigas que são retiradas da
escola por falta de segurança ou por
incapacidade das famílias em fazer face às
despesas de escolarização. Presentemente,
temos nas áreas urbanas uma geração de
raparigas que são menos instruídas que as suas
mães e avós.
Saúde em estado catastrófico
Os relatórios humanitários descrevem o estado
do sistema de Saúde no Iraque como
“catastrófico”.
O Governo iraquiano não tratou de manter os
hospitais como zonas neutrais e seguras para a
população ferida e doente. Não protegeu os
profissionais da Saúde: 75% deles deixaram os
seus postos de trabalho e muitos abandonaram
o país.
Os hospitais foram alvos de bombardeamentos
aéreos ou foram deliberadamente danificados.
Relatos da comunicação social sobre
campanhas militares conduzidas por forças dos
EUA e iraquianas evidenciaram um ostensivo
desprezo pelos direitos humanos e pelas leis
humanitárias internacionais.
O acesso a água potável e a saneamento
adequado piora de ano para ano.
Presentemente, 70% dos iraquianos não têm
acesso adequado a água potável e 80% não
dispõem de condições sanitárias adequadas
(Oxfam). Por isso, a diarreia e as doenças com
Haifa Zangana (nascida em 1950 em Bagdad)
é uma escritora, artista e activista política
iraquiana. Cresceu em Bagdad e licenciou-se
em 1974 na faculdade de Farmácia da
Universidade de Bagdad.
No início da década de 1970, enquanto
membro do Partido Comunista Iraquiano, foi
presa pelo regime do Partido Baas. Depois de
libertada permaneceu no Iraque e terminou os
estudos.
Integrou-se na Organização de Libertação da
Palestina, tendo sido responsável pela equipa
farmacêutica, deslocando-se então entre a
Síria e o Líbano em 1975.
Foi para o Reino Unido em 1976.
Como escritora e como pintora, colaborou, nos
anos 1980, em várias publicações europeias e
norte-americanas e participou em exposições
colectivas e individuais em Londres e na
Islândia.
Desde 1991 publicou vários livros, o último dos
quais City of Widows, An Iraqi Woman's
Account of War and Resistance (2008, Seven
Stories Press NY).
Colabora regularmente em publicações
europeias e árabes como The Guardian, Red
Pepper, Al Ahram e Al Quds (onde publica
comentários semanais).
É membro fundador da Associação
Internacional de Estudos Iraquianos
Contemporâneos.
Faz parte do conselho consultivo do Tribunal
de Bruxelas sobre o Iraque.
Integra a organização Women Solidarity for an
Independent and Unified Iraq. Em nome desta
organização e da Iraq Occupation Focus,
apresentou, em Setembro de 2009, perante
o Comité dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, em Genebra, o documento A report
on the situation of women and children in
occupied Iraq. Uma verão actualizada deste
texto constitui o depoimento que prestou na
3.ª Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial
sobre o Iraque.
cont. pág. seguinte >>
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
6
7
Realizou-se em Lisboa, em 26 de Março, na sede da Associação Abril, a 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal
Mundial sobre o Iraque. Evocando os 8 anos da invasão, a sessão foi dedicada à situação actual das mulheres e das crianças
no Iraque e contou com o depoimento presencial de Haifa Zangana. Um grupo de 20 jurados aprovou no final da audiência
uma declaração. Interveio ainda na sessão Eduardo Maia Costa, magistrado, que analisou a actual revolta popular no mundo
árabe. No dia 28, Haifa Zangana deslocou-se ao Porto onde teve lugar uma sessão pública promovida por activistas do
Tribunal-Iraque e Movimento da Paz. Damos conta nestas páginas e nas seguintes das intervenções da sessão de Lisboa.
Haifa Zangana
A situação das mulheres
e das crianças no Iraque ocupado
Excertos do depoimento de Haifa Zangana na 3.ª sessão da Audiência Portuguesa
do Tribunal Mundial sobre o Iraque
“N
Num passado ainda recente, as
mulheres iraquianas eram das
mais emancipadas da região,
com um elevado nível de
educação e presentes em todas
as esferas da vida profissional. Hoje, estão
empurradas para um canto, apertadas entre o
esforço de sobreviver à destruição provocada
pela guerra e as políticas feudais e sectárias
(em nome da religião) promovidas pela classe
política instalada no poder desde 2003.
Casamento “a termo”
Temos um fenómeno novo no Iraque chamado
Mut’ah, o casamento temporário, que significa
que um homem se casa com uma mulher na
presença de uma figura religiosa e especifica
por quanto tempo vai durar o casamento,
podendo ir desde algumas horas até muitos
anos. É um contrato a termo, onde um homem
paga a uma mulher um pequeno dote (mehr).
Tais casamentos não têm nenhuma protecção
ou garantias para as mulheres e/ou para os
seus descendentes. A maioria das mulheres que
aceitam casamentos temporários fazem-no
apenas por necessidades materiais. Esta prática
é vista por muitos como uma forma de
prostituição religiosa.
Poligamia
Outro fenómeno que não é a norma no Iraque é
a poligamia. No entanto, foi agora promovida por
alguns funcionários e políticos. Em Anbar, uma
província que testemunhou duros combates
entre as forças de resistência e de ocupação,
por exemplo, o partido islâmico e algumas
autoridades estão a oferecer dinheiro a homens
dispostos a ter mais do que uma esposa como
forma de resolver o problema do crescente
número de mulheres viúvas e solteiras. A
instituição da poligamia tem sido vista por
muitas mulheres e organizações de defesa dos
direitos humanos como uma manobra política
para encobrir a situação das mulheres mais
vulneráveis no Iraque.
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
As primeiras vítimas
Em qualquer situação de conflito, as primeiras
vítimas são as mulheres e as crianças. As forças
de defesa e de segurança iraquianas violam
sistematicamente o direito internacional
humanitário sempre que impõem actos de
punição colectiva ao levarem a cabo
“operações de segurança”.
As forças dos EUA e iraquianas instalam “um
anel de aço” em torno de cidades e aldeias
inteiras, não deixando entrar suprimentos
médicos e ajuda humanitária, cortando a
electricidade e a água e não permitindo a
deslocação de ambulâncias. Tal situação foi
relatada na CNN, referindo zonas de Baquba em
Julho de 2007.
Áreas densamente povoadas são então
submetidas a um bombardeio pesado e
implacável, como no caso de Arab Jebour, onde
50 toneladas de explosivos foram lançados
sobre a povoação durante 10 dias, em Janeiro
2008, destruindo bairros por completo e
exterminando famílias inteiras. Os habitantes
locais tiveram então que desenterrar os corpos
dos escombros com as próprias mãos. Não foi
feito qualquer inquérito sobre tais
acontecimentos pelo governo iraquiano.
As famílias queixam-se muitas vezes de que
lhes são, por rotina, roubadas jóias, objectos de
valor, dinheiro, documentos de identidade
durante ataques daquele tipo. Tais violações dos
direitos humanos são geralmente perpetradas
por raides das forças iraquianas, muitas vezes
sob a supervisão ou protecção das forças de
ocupação dos EUA.
Represálias e chantagens
Muitas organizações iraquianas de direitos
humanos assinalam a prática de detenções e
prisões de mulheres in lieu, isto é, no lugar dos
seus homens, identificados como suspeitos.
Uma medida de punição colectiva é, assim,
imposta a famílias inteiras, só porque um
membro está sob suspeita. Isto, segundo o
direito internacional, é um crime de guerra.
Nos 12 meses que antecederam as eleições
provinciais de Janeiro de 2009, houve uma
campanha organizada de detenções arbitrárias.
As detenções não excluíam as crianças que, tal
como os seus familiares adultos, foram
submetidas a torturas horríveis e viram negados
os seus direitos legais.
As mulheres (mães, esposas ou irmãs dos
presos) que se dirigem às esquadras de polícia
ou aos centros de detenção para perguntar
pelos seus familiares são humilhadas através de
sugestões de prestação favores sexuais, ou do
pagamento de resgates que podem ir de 2 mil a
20 mil dólares norte-americanos em troca da
liberdade dos familiares ou da redução dos
maus tratos que eles sofrem na prisão.
Detenção de crianças
Um relatório da UNICEF datado de Abril 2008
indicou que 1 500 crianças estavam sob
custódia das forças oficiais iraquianas e dos
EUA. Em alguns casos, as crianças são
mantidas presas no mesmo espaço dos adultos,
expondo-as a mais riscos de agressão e abuso.
Relatórios dos meios de comunicação sobre a
prisão para crianças de Al Karkh revelam uma
longa lista de maus tratos, abusos e violações.
Morte de civis
Frequentemente, os ocupantes culpam os
“insurgentes” da morte de civis, especialmente
mulheres e crianças.
Contudo, um estudo recente feito por
investigadores britânicos e suíços, usando
dados fornecidos pelo grupo de direitos
humanos Iraq Body Count, analisou as mortes
de civis no Iraque desde Março de 2003 a Março
de 2008 e descobriu que a maior parte das
mortes de mulheres e de crianças, entre os
civis mortos por certos tipos de armas, foi
provocada pelas “forças da coligação”, em
particular por ataques aéreos das forças de
ocupação.
Ruptura do sistema de Educação
“Cerca de dois milhões de crianças iraquianas
enfrentam ameaças diárias de má nutrição,
doença e falta de escola”, de acordo com a
UNICEF. 92% das crianças iraquianas são alvo
de obstruções à aprendizagem devidas à
violência e à instabilidade criadas no Iraque, de
acordo com a Oxfam (Oxford Committee for
Famine Relief).
Em 2006/7 crianças de Bagdad e dos arredores
tinham de passar sobre cadáveres no caminho
para a escola. Viram esses corpos serem
comidos por cães vadios. Recolheres
obrigatórios repentinos e explosões de violência
também afectam as crianças e interrompem a
sua educação. Têm de viver passando de um
trauma para outro. Muitas crianças têm de
suportar o abandono da casa, a separação dos
seus amigos e do meio que lhes é familiar para
enfrentarem um futuro incerto como
‘refugiados’ sem rendimentos ou apoio.
Bombardeamentos aéreos pelas forças de
ocupação causaram danos estruturais
profundos a escolas situadas em áreas onde
ocorrem operações militares. Todos estes
factores significam que o sistema de educação,
já de si à beira do abismo, sofreu ainda mais
rupturas.
Trabalho, em vez de escola
Números do governo iraquiano dizem que o
Iraque tem hoje 5 milhões de órfãos. 43% dos
iraquianos vivem numa pobreza abjecta.
As crianças são nestes casos postas a
trabalhar em vez de irem à escola, outras
tornam-se pedintes nos locais públicos e nos
mercados. Estas crianças trabalham longas
horas e não têm nenhuma protecção contra a
exploração e os abusos. Nenhuma protecção
contra a exposição a doenças sociais como a
prostituição infantil e o uso de drogas. Este
problema particular é especialmente agudo para
as crianças ‘refugiadas’ nos países vizinhos do
Iraque.
Iliteracia crescente
Há um crescimento importante da iliteracia entre
as mulheres, a qual se situava em apenas 5%
no final dos anos setenta do século passado.
Existe um número crescente, nunca antes
atingido, de raparigas que são retiradas da
escola por falta de segurança ou por
incapacidade das famílias em fazer face às
despesas de escolarização. Presentemente,
temos nas áreas urbanas uma geração de
raparigas que são menos instruídas que as suas
mães e avós.
Saúde em estado catastrófico
Os relatórios humanitários descrevem o estado
do sistema de Saúde no Iraque como
“catastrófico”.
O Governo iraquiano não tratou de manter os
hospitais como zonas neutrais e seguras para a
população ferida e doente. Não protegeu os
profissionais da Saúde: 75% deles deixaram os
seus postos de trabalho e muitos abandonaram
o país.
Os hospitais foram alvos de bombardeamentos
aéreos ou foram deliberadamente danificados.
Relatos da comunicação social sobre
campanhas militares conduzidas por forças dos
EUA e iraquianas evidenciaram um ostensivo
desprezo pelos direitos humanos e pelas leis
humanitárias internacionais.
O acesso a água potável e a saneamento
adequado piora de ano para ano.
Presentemente, 70% dos iraquianos não têm
acesso adequado a água potável e 80% não
dispõem de condições sanitárias adequadas
(Oxfam). Por isso, a diarreia e as doenças com
Haifa Zangana (nascida em 1950 em Bagdad)
é uma escritora, artista e activista política
iraquiana. Cresceu em Bagdad e licenciou-se
em 1974 na faculdade de Farmácia da
Universidade de Bagdad.
No início da década de 1970, enquanto
membro do Partido Comunista Iraquiano, foi
presa pelo regime do Partido Baas. Depois de
libertada permaneceu no Iraque e terminou os
estudos.
Integrou-se na Organização de Libertação da
Palestina, tendo sido responsável pela equipa
farmacêutica, deslocando-se então entre a
Síria e o Líbano em 1975.
Foi para o Reino Unido em 1976.
Como escritora e como pintora, colaborou, nos
anos 1980, em várias publicações europeias e
norte-americanas e participou em exposições
colectivas e individuais em Londres e na
Islândia.
Desde 1991 publicou vários livros, o último dos
quais City of Widows, An Iraqi Woman's
Account of War and Resistance (2008, Seven
Stories Press NY).
Colabora regularmente em publicações
europeias e árabes como The Guardian, Red
Pepper, Al Ahram e Al Quds (onde publica
comentários semanais).
É membro fundador da Associação
Internacional de Estudos Iraquianos
Contemporâneos.
Faz parte do conselho consultivo do Tribunal
de Bruxelas sobre o Iraque.
Integra a organização Women Solidarity for an
Independent and Unified Iraq. Em nome desta
organização e da Iraq Occupation Focus,
apresentou, em Setembro de 2009, perante
o Comité dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, em Genebra, o documento A report
on the situation of women and children in
occupied Iraq. Uma verão actualizada deste
texto constitui o depoimento que prestou na
3.ª Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial
sobre o Iraque.
cont. pág. seguinte >>
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
8
A situação no Iraque não pode ser esquecida
Excertos da Decisão Final da 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque
A
Decisão dos jurados constata que, oito anos depois da
invasão, está por criar o regime democrático prometido pelos
invasores, que as instituições criadas e mantidas à sombra
da ocupação não representam o povo iraquiano e que se
assiste a uma grave regressão nos direitos das pessoas.
A responsabilidade de tal situação é da Autoridade Provisória da
Coligação. Os órgãos do Estado mostram-se inaptos para defender os
interesses do povo iraquiano e tornam-se instrumentos de violência
sobre a população, especialmente as mulheres e as crianças, vítimas
de todos os abusos.
A continuada utilização, pelos ocupantes, de armas químicas e
radioactivas, cujas horríveis consequências se vão prolongar por várias
gerações, configura um crime contra a humanidade.
Reiterando as decisões das anteriores audiências (2005 e 2008),
nomeadamente de condenar a invasão e a ocupação do Iraque, bem
como o apoio dos governos de Portugal aos agressores, a Decisão
reafirma o direito do povo iraquiano à resistência, sob todas as formas,
e apoia a constituição de um parlamento, de um governo e de um
sistema judiciário efectivamente representativos, como foi reclamado
nas manifestações recentes por todo o Iraque, que respondam às
exigências prementes da população.
A Decisão lembra ao Governo português a sua incumbência de
desenvolver todos os esforços políticos e diplomáticos para que sejam
respeitados os direitos básicos da população do Iraque e assegurado
condigno acolhimento dos refugiados/as iraquianos/as. E aponta a
responsabilidade dos organismos das Nações Unidas, especialmente
os dedicados às questões das mulheres e crianças, e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, de adoptarem
medidas que defendam as crianças, as mulheres e os refugiados
iraquianos, dentro e fora do país.
Por fim, a Decisão apela à Comunicação Social que não esqueça a
situação no Iraque, nomeadamente os graves crimes cometidos contra
mulheres e crianças; e exorta as organizações portuguesas
(partidárias, sindicais, cívicas, de defesa dos direitos humanos,
designadamente as organizações de mulheres) a denunciarem a
intolerável situação em que vive a população iraquiana, as suas
mulheres e as suas crianças e a solidarizarem-se por todos os meios
possíveis com o povo iraquiano que luta por reverter o desastre em
que o Iraque está mergulhado.
Os Jurados
Alípio de Freitas (professor), Ana Benavente (professora,
investigadora, ex-SE Educação e ex-deputada do PS), Diana Andringa
(jornalista), Eduarda Dionísio (professora), Fernanda Mestrinho (jurista,
jornalista, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), Helena
Carrilho (advogada, CGTP), Isabel do Carmo (médica), Isabel
Lourenço (tradutora), João Loff Barreto (advogado), Jorge Figueiredo
(economista), José Charters Monteiro (arquitecto), José Gonçalves da
Costa (juiz-conselheiro jubilado do STJ), Judite Almeida (professora,
Sindicato Professores Norte), Luanda Cozetti (cantora), Margarida
Vieira (funcionária pública, Associação Abril), Natacha Amaro (MDM),
Paula Santos (deputada do PCP), Regina Marques (MDM), Sandra
Silvestre (activista do BE, dirigente da Acção para a Justiça e Paz),
Susana Sousa Dias (cineasta).
Depoimento de Haifa Zangana
<< cont. da pág. anterior
origem na água são as que mais crianças
matam.
Contaminação radioactiva
Narmin Othman, o ministro iraquiano do
Ambiente, reconhece que 350 locais do
Iraque estão contaminados em resultado dos
bombardeamentos da guerra e que 140 mil
iraquianos contraíram cancro em
consequência de exposição ao Urânio
Empobrecido (DU).
No entanto, nenhuma acção foi até agora
promovida para neutralizar ou limpar esse
locais. O DU é uma arma que provoca
cancros e que origina malformações de
nascença muito depois da data de impacto –
e é, por isso mesmo, uma arma ilegal.
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Reportagens de TV emitidas em Maio de
2008 sobre as deformações de nascença
verificadas na cidade de Faluja, na sequência
da devastação da cidade em Novembro de
2004, mostraram que bebés deformados
nascem à razão de 4 a 5 por semana.
Silêncio é cumplicidade
Os iraquianos sofrem presentemente os
efeitos de um regime brutal, degradante e
ameaçador para as suas vidas, instalado e
patrocinado pelos EUA.
A paz não é concebível no Iraque sem a total
retirada das tropas estrangeiras, sem o fim
de todos os planos de permanência de tropas
e sem que acabe a interferência na indústria
do petróleo nacional.
Nada disto pode ser alcançado sem a
contínua solidariedade e sem o apoio do
movimento internacional contra a guerra aos
movimentos iraquianos. Incluindo o Tribunal
português sobre o Iraque que tem sido activo
no apontar da responsabilidade do governo
português na preparação da invasão e tem
denunciado o seu silêncio a respeito dos
crimes que são a ocupação de um país e a
violação dos direitos humanos.
Acreditamos que, para construir uma relação
durável entre os povos iraquiano e português,
temos de nos basear na igualdade, na justiça
e no reconhecimento do direito à resistência
por parte de um povo submetido a ocupação.
O silêncio, tanto dos governos como dos
indivíduos, é cumplicidade. Derrubar os
muros do silêncio é um acto de solidariedade.
É uma responsabilidade moral.
MV
PAÍS
Sem medos
Depois das grandes
manifestações de 12 e 19 de
Março, em que centenas de
milhares de trabalhadores,
desempregados e jovens
exprimiram o seu
descontentamento e
apresentaram as suas
reivindicações, a luta tem
prosseguido nas ruas e nas
empresas. Embora em menos
locais e com menos força do que
seria necessário para barrar a
ofensiva do capital.
Em Março e Abril, milhares de
trabalhadores lutaram contra os
cortes de salários, a supressão
de direitos no trabalho, a intenção
de alguma empresas avançarem
com as privatizações, assim
como a defesa das liberdades. E
em 6 de Maio estarão em greve
os trabalhadores da Função
Pública.
Como habitualmente, realizam-se
em 25 de Abril e em 1 de Maio
diversas sessões públicas e
manifestações de rua. Tanto
numa como noutra data, é de
superar as perspectivas
saudosistas ou meramente
evocativas, procurando integrar
as comemorações nas lutas que
é necessário desenvolver face à
grave situação das classes
trabalhadoras.
Em declarações recentes, o
secretário-geral da CGTP,
afirmou que "o tempo não é de
medos, nem de silêncios. O
tempo tem de ser de protesto, de
acção, de resposta". E
acrescentou: “Sem qualquer
hesitação, a CGTP apela à
mobilização de todos
trabalhadores e tudo faremos
para rejeitar as receitas da FMI e
UE. Não pode haver qualquer
hesitação, é preciso rechaçar
estas medidas”.
Perfeito. Em todo o caso,
Carvalho da Silva não deixou de
balizar esta mobilização pelo
calendário eleitoral dizendo que
até 5 de Junho decorre “um
período de intervenção política,
para introduzirmos o conteúdo
social na agenda política".
De acordo que seja “introduzido
conteúdo social na agenda
política”. Mas aquilo de que os
trabalhadores menos precisam é
que a sua luta de classe seja
colocada a reboque das eleições!
5
A crise política do regime
Sem varrer PS, PSD e CDS da área do poder não há melhoria das condições de vida
das classes trabalhadoras
Depois de numerosas cenas de
colaboração (no Orçamento, nos
PECs, etc.), chantagem, zanga e
disputa dos dois maiores partidos
do regime – PS e PSD – a crise
política estalou. Com a recusa na
AR (embora por motivos
diferentes) do PEC 4 de
Sócrates/UE/FMI, o primeiro-ministro demitiu-se, conduzindo
a eleições legislativas
antecipadas. E Passos Coelho
parece ter encontrado agora o
momento oportuno para “ir ao
pote” (ou à gamela?). Perante a
situação criada, disse Sócrates:
“Às vezes penso como foi
possível fazerem isto ao país?”
Que farsante!
Destes dois actores, infelizmente,
os trabalhadores e o País ainda
podem ter muito a esperar, no
domínio da farsa e da tragédia,
em que ambos parecem peritos.
O PSD e Passos Coelho (basta
ver a corja de capitalistas e
banqueiros que o cercam)
pretendem, entre outras
malfeitorias, terminar as tarefas
que o PS e Sócrates encetaram e
desenvolveram – a precarização
do trabalho e a entrega da
Saúde, da Educação e das
Empresas Públicas ao capital
privado.
Foram os três maiores partidos
da burguesia – PS, PSD e CDS –
que, sozinhos ou coligados nos
diversos governos, conduziram o
País ao longo de mais de três
décadas a um forte estado de
dependência económica e
política em relação às potências
imperialistas e empurraram as
classes trabalhadoras para a
actual situação de sobre-exploração em que vivem.
Iremos, assim, assistir em breve
a mais uma demagógica
campanha eleitoral,
procurando esta gente do regime,
outra vez, arrastar uma
significativa parte dos
trabalhadores e do povo
português ao voto nos mesmos
três partidos altamente
responsáveis pelo actual estado
de coisas. Percebe-se que os
patrões votem no PS, PSD ou
CDS. Também se percebe que o
pessoal dos aparelhos destes
partidos candidatos a gestores do
capital neles votem. Idem, para
os seus boys, mercenários e
amigos. Pois eles são cúmplices
e também defendem os seus
próprios interesses.
Claro que será importante
dificultar o “trabalho” dos partidos
do capital e a sua determinação
em encontrar um governo
maioritário do conjunto PS/PSD/
CDS, disposto a pôr em prática
as graves medidas pretendidas
pela UE/FMI. Uma fraca votação
em cada um destes três partidos
(e dos três no seu conjunto)
enfraqueceria a estratégia da
direita.
Embora não correspondendo as
eleições parlamentares a um
campo fundamental da luta
das classes exploradas, não se
compreende que os
trabalhadores e o povo, que
sofrem na carne as
consequências desta política do
capital ou que hoje têm acesso a
um mínimo de informação,
possam votar nesta gente que,
sistematicamente, os têm
enganado. Vivem agarrados à
política ilusória e mesquinha do
mal menor? Ou querem mesmo
voltar a ser enganados?
Dada as actuais condições
económicas, políticas e sociais
em que se encontra o País, e
aquilo que as classes dominantes
nos prometem nos próximos
tempos, os trabalhadores, os
precários, os desempregados, os
estudantes, os utentes do SNS
ou dos transportes públicos…
têm motivos fortes para continuar
e aprofundar a luta pelos
objectivos delineados nas
manifestações dos dias 12 e 19
de Março e prosseguidos em
diversas greves pontuais.
A unidade, a organização, o
espírito combativo e criador dos
explorados e oprimidos são,
desde já, elementos
indispensáveis para fazer frente à
ofensiva do patronato e às
“eleições” em que as classes
dominantes procurarão impor-se
aos trabalhadores e ao povo. Não
é momento de parar o combate.
Pedro Goulart
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
PAÍS
4
Um embaixador diligente
Ainda os telegramas de Lisboa da WikiLeaks
Os documentos da WikiLeaks
sobre o Ministério da Defesa e o
governo português, recentemente
divulgados pelo jornal Expresso,
apesar da sua utilidade, devem
ser encarados com um olhar
crítico. Na correspondência dos
embaixadores dos EUA há que
distinguir aquilo que tem algum
fundo de verdade daquilo que é
ditado pelos interesses próprios
dos embaixadores ou pela defesa
dos negócios daquela potência
imperialista.
Thomas Stephenson, embaixador
dos EUA em Lisboa, entre
Novembro de 2007 e Junho de
2009, critica o Ministério da
Defesa não por fazer gastos com
o militarismo e a guerra mas,
essencialmente, por estar a
preterir as compras militares aos
EUA em favor das compras
europeias.
Igualmente, deprecia os militares
portugueses, em parte por não
corresponderem de modo
suficiente às solicitações dos
norte-americanos.
Por outro lado, é de destacar a
existência de vários telegramas
de Lisboa para Washington, que
evidenciam a habitual
colaboração de gente
responsável do aparelho de
estado português com a
Embaixada dos EUA. Numa suja
e subserviente cumplicidade.
Stephenson escreveu em 5 de
Março de 2009, num telegrama
para Washington, que "no que diz
respeito a contratos de compras
militares, as vontades e acções
do Ministério da Defesa parecem
ser guiadas pela pressão dos
seus pares e pelo desejo de ter
brinquedos caros". "O Ministério
compra armamento por uma
questão de orgulho, não importa
se é útil ou não. Os exemplos
mais óbvios são os seus dois
submarinos (actualmente
atrasados) e 39 caças de
combate (apenas 12 em
condições de voar)", afirmava a
propósito dos dois submarinos
alemães adquiridos por Portugal,
em 2005.
O diplomata americano criticou
também a preferência de
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Portugal, em 2006, pela
aquisição de fragatas
holandesas, em vez das vendidas
pelos EUA. "O Ministério da
Defesa optou por gastar mais de
300 milhões de euros em fragatas
holandesas usadas. As
americanas teriam exigido
apenas cerca de 100 milhões de
euros na sua modernização e
apoio logístico".
O embaixador, na sua
correspondência com
Washington, acrescentava, ainda,
que a opção portuguesa por
“comprar europeu” também
aconteceu com os helicópterospatrulha, onde mais uma vez
foram preteridos os americanos
em favor dos europeus, estes
sem contratos de manutenção.
Num outro telegrama, o
embaixador fala num país de
"generais sentados", afirmando
que o Ministério da Defesa não é
capaz de tomar decisões e que
"os militares têm uma cultura de
status quo, em que as posiçõeschave são ocupadas por
carreiristas que evitam entrar em
controvérsias". E Stephenson
afirma que Portugal tem mais
almirantes e generais por soldado
do que quase todas as outras
forças armadas.
Das pressões sobre diplomatas e
políticos portugueses (incluindo
Cavaco Silva), a propósito do
Kosovo, falam os telegramas do
embaixador Alfred Hoffman, em
Outubro de 2007, e de Thomas
Stephenson, em 2008. Aqui,
também ressalta das várias
centenas de telegramas enviados
de Lisboa nos últimos quatro
anos que mais de 80 pessoas
colocadas em posições-chave no
aparelho de estado português
eram utilizadas pelos diplomatas
americanos como informadores
ou elementos de pressão a favor
dos EUA.
Concluindo.
Daquilo que afirmam os
embaixadores americanos nos
seus telegramas, pode deduzir-se
como eles dispõem facilmente de
ampla informação do interior das
Forças Armadas e das polícias e
da diplomacia (Luís Amado é um
grande amigo dos EUA), assim
como de vários outros sectores
da vida económica e política
portuguesa. Para além dos fortes
indícios de que a CIA faz escutas
em Portugal, os agentes
americanos têm tido aqui não
apenas boas possibilidades de
informação mas também de
infiltração/intervenção a favor dos
interesses americanos, contando,
inclusive, com a colaboração dos
Serviços de Informação de
Lisboa. Esta é uma situação
repugnante, que temos de
condenar firmemente.
Por outro lado, as razões das
diversas críticas que temos feito
às compras militares levadas a
cabo pelos diversos governos da
burguesia, aos generais e
almirantes portugueses, assim
como a outro pessoal do
aparelho de estado, não se
confundem com as do
embaixador americano. Por
estarmos radicalmente contra as
guerras e a ordem económica,
política e social do capitalismo,
por considerarmos que grande
parte dos dinheiros actualmente
gastos com o armamento e a
tropa deve ser transferida para a
saúde, a segurança social, a
educação e a luta contra a fome.
Pedro Goulart
Pobreza, um retrato
Há dois milhões de pobres em
Portugal e, com as chamadas
medidas de austeridade, a
situação agrava-se. Segundo a
Assistência Médica Internacional
(AMI), 2010 foi o "pior ano em
termos de pobreza em Portugal",
com os pedidos de apoio a
aumentarem 24% face a 2009.
Apenas aos espaços da AMI, em
2010, recorreram mais de 12 300
pessoas, um "valor sem
precedentes". A maioria das
pessoas (69%) está em idade
activa, enquanto 23% tem menos
de 16 anos e 18 por cento tem
mais de 65 anos.
Haja esperança!
Arrancou em Lisboa,
Entroncamento e Feira um
“projecto-piloto” de distribuição
de refeições a pessoas com
“dificuldades económicas”, isto é,
fome. Promovida pela
Associação da hotelaria e
restauração, a iniciativa já
garante 230 (!) refeições por dia,
5 (!) por cada restaurante
aderente. Dos mais de 2 milhões
de pobres do país, 230 já têm,
pois, comidinha garantida – e
de restaurante. A coisa tem o
patrocínio do presidente da
República e conta com uma
comissão de honra que
ambiciona levar o exemplo a
outros países! É assim: primeiro,
despedimentos e corte de apoios
sociais; depois, entram as almas
condoídas com a sua caridade.
Para ver se evitam o que mais
temem: a revolta dos pobres.
Os vampiros
Vêm em bandos sem pés de
veludo. São os dirigentes do FMI,
da OCDE, da UE, do BCE, dos
partidos do patronato, a maioria
dos analistas dos média que nos
listam os itens ditos necessários
para “sair da crise”: tábua-rasa
das leis laborais, redução de
salários e pensões,
despedimentos mais baratos,
menos subsídio de desemprego,
entrega da saúde e da educação
aos privados, subida dos
impostos... Não podemos
franquear-lhes as portas à
chegada. Com os meios
necessários, há que correr
com todos eles!
IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS
9
Solidariedade activa com os povos árabes
Excertos da intervenção de Eduardo Maia Costa
Um vendaval percorre o mundo árabe. Uma imensa onda genuinamente popular
invade as ruas, exigindo o fim de regimes políticos repressivos e caducos, ou, no
mínimo, mudanças profundas no sistema político. Uma tão vasta e pertinaz luta de
massas, enfrentando dias e dias seguidos a repressão impiedosa e sangrenta da
polícia, traduz necessariamente um generalizado sentimento popular de revolta, que
ultrapassou já a fronteira do medo, revelando um agravamento tal das condições de
vida, económicas, sociais e políticas, que a única saída é a expressão frontal dessa
revolta, mesmo com o preço do sangue, ou da vida.
U
ma tal revolta tem realmente
características novas no mundo
árabe, que vale a pena analisar.
Desde logo, o protesto assume a
forma de movimento de massas, traduzido
em manifestações de rua, sem recurso à
violência, enfrentando corajosamente a
polícia, a repressão.
É um movimento inorgânico e espontâneo,
no sentido de que não responde a
convocatórias de forças políticas, religiosas
ou sindicais, ou claramente as excede, pela
amplitude da participação de vastíssimos
sectores da população.
Tem objectivos puramente políticos (derrube
ou modificação do regime político), e não
religiosos, muito menos xenófobos.
Nas manifestações participam estratos muito
diversos da população, unidos no objectivo
comum de lutarem pela mudança política, ou
mesmo pelo derrubamento do regime.
Por último, importa salientar a presença
permanente e activa de mulheres nas ruas,
ao lado dos homens, e também a presença
de famílias inteiras confirmando esse
sentimento de unidade popular.
Ponto de viragem?
Toda esta movimentação revela uma
alteração radical da resistência popular nos
países árabes.
Por um lado, na forma: manifestações
pacíficas de massas, enfrentando a polícia,
e não acções armadas, ou simplesmente
bombistas, praticadas por grupos
clandestinos.
No conteúdo: luta puramente política, laica,
por objectivos políticos e sociais, sem
motivação ou expressão religiosas, sem
hostilização de quaisquer religiões.
É uma verdadeira revolução na história da
resistência popular no mundo árabe que abre
perspectivas novas de libertação, quer das
classes dominantes internas, quer da tutela
ou do domínio estrangeiros.
É ainda difícil prever o desenlace final, pelo
menos a nível global, desta gigantesca onda
popular, mas ninguém duvidará de que pode
vir a constituir-se como um ponto de viragem
na história do povo árabe, um movimento de
libertação só comparável com o fim da
dominação colonial otomana, francesa e
inglesa.
O caso da Líbia
Uma referência especial merece a Líbia. Os
protestos assumiram neste país
características especiais. Ao contrário do que
aconteceu em todos os outros países árabes,
o movimento de protesto foi sobretudo
regional (Cirenaica) e rapidamente assumiu a
natureza de movimento armado, que ocupou
militarmente a região oriental, constituindo
em poucas semanas um “contra-exército”,
que imediatamente investiu (sob o pendão da
monarquia…) contra o exército oficial, num
cenário de guerra civil, procurando o derrube
do regime pela força das armas.
Também ao contrário do que aconteceu com
outros países, nomeadamente com a Tunísia
ou com o Egipto, na Líbia, a “preocupação”
com a sorte dos “civis” foi levada ao
Conselho de Segurança da ONU pelas
potências do Ocidente. Após uma primeira
resolução de “aviso”, o CS aprovou a
resolução 1973, que permitiu a adopção das
“medidas necessárias” para a “protecção de
civis e zonas povoadas que estejam sob
ameaça do exército líbio”, assim como o
estabelecimento de uma zona de exclusão
aérea, também apenas para “protecção dos
civis”, excluindo expressamente a ocupação
militar do território.
O pretexto humanitário
A autorização estava dada para a intervenção
militar das potências ocidentais mais
belicosas, destacando-se a França e a
Inglaterra, que não escondem a pretensão de
derrubar o regime de Khadafi, o que é
confirmado pelas operações militares
desenvolvidas, que se destinam a
enfraquecer o exército oficial e a facilitar a
progressão do exército rebelde, e de modo
nenhum a “proteger civis”, o que viola
frontalmente a Resolução.
Sabemos bem que o pretexto humanitário
tem constituído o título invocado para as
intervenções militares do Ocidente (quando
não pode alegar legítima defesa, ou defesa
contra o terrorismo), que mais não visam do
que salvaguardar os seus próprios
interesses. As imensas riquezas naturais da
Líbia, subtraídas pelas nacionalizações ao
domínio das grandes companhias ocidentais,
estão sob a mira gulosa delas e dos
governos que as protegem e promovem. A
satisfação dessa gula, por meio da instalação
de um regime dócil e colaborante na Líbia,
será, não tenhamos dúvidas, o grande
objectivo “humanitário” das potências
intervenientes, com a passividade do CS da
ONU. A instalação de um regime “amigo” do
Ocidente na Líbia não deixaria aliás de
condicionar a evolução política nos demais
países da região.
Esta situação é inaceitável. A intervenção
militar, nos moldes em que se vem
desenrolando, é ilegítima e constitui uma
intromissão ilícita nos destinos da Líbia. O
destino do regime líbio deverá caber, como
sucedeu nos outros países árabes, ao próprio
povo, sem intromissão estrangeira.
Solidariedade
Neste momento crucial da sua história, os
povos árabes merecem a solidariedade
activa de todos os cidadãos e movimentos
progressistas do mundo.
Como vimos, a ambiguidade foi a
característica principal das reacções das
potências ocidentais. Uma ambiguidade
“estratégica” entre a demagogia da ideologia
da liberdade que apregoam (e não praticam
fora dos seus limites territoriais) e a
necessidade de não perder posições no
“terreno”, quer os seus amigos árabes
percam quer ganhem a batalha. Esta
hipocrisia, que caracteriza sempre a
actuação dos impérios, deve ser
desmascarada. Os governos que nos
representam devem assumir frontalmente
uma atitude de condenação da repressão
popular e de apoio aos legítimos anseios
populares.
Devemos recusar e condenar toda e qualquer
intervenção militar, ainda que sob a capa
humanitária, ainda que coberta por uma
decisão da ONU. Não é a “credencial formal”
que esta confere que modifica a natureza da
intervenção. A “protecção de civis” é hoje
uma máscara (uma das máscaras) que o
intervencionismo imperialista assume.
MV
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
MUNDO
10
A conspiração para derrubar Gadafi
Petróleo, negócio de armas e novos mercados na mira das potências imperialistas
A invasão da Líbia pela coligação da Nato é outra face da
mesma guerra. Importa à França dominar o petróleo líbio, claro;
importa dinamizar o negócio do armamento, também; importa
eliminar qualquer modelo político e económico dissidente e,
sobretudo, importa expandir uma democracia representativa
(sempre controlável) e um capitalismo neo-liberal, porque novos
mercados são vitais para a sobrevivência, não dos povos, mas
dos que, à custa deles, decidem quais são as regras do jogo.
Gadafi sempre foi mal amado
pelos líderes europeus e norte-americanos. Nunca lhe foi
perdoado o apoio às guerrilhas
urbanas nos anos 70, a
nacionalização do petróleo, ou a
sua independência em relação ao
modelo económico dominante,
recusando-se a transformar o país
em mais um maná para
investidores e especuladores. A
Líbia será dos poucos lugares do
mundo onde a saúde, a educação
(até universitária – todos os
estudantes recebem bolsas de
estudo), a habitação, a água e a
energia são absolutamente
gratuitas.
A sublevação de Fevereiro
A rebelião na Líbia é-nos
imediatamente apresentada como
uma sublevação popular pela
democratização do país, como as
ocorridas no Egipto e na Tunísia.
A denúncia, nunca provada, de
que Gadafi estaria a cometer um
massacre contra o seu povo,
serviu de pressuposto à
intervenção da Nato, e permitiu
ganhar o apoio ou o silêncio
conivente da opinião pública
europeia. É absolutamente
ignorado o facto de, ao contrário
do ocorrido naqueles dois países,
se tratar de uma sublevação
armada e militarizada; as
explicações oficiais para os que,
mais desconfiados, chamavam a
atenção para o “pormenor”,
consistiam na afirmação de que
alguns militares do exército líbio
se teriam aliado aos revoltosos,
levando consigo armas roubadas
ao arsenal militar líbio. Começam
então as mentiras, mais uma vez,
a tecer a sua teia.
Num interessante trabalho de
investigação fotográfica, Nickolay
Starikov, demonstra, a partir de
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
Os serviços secretos norte-americanos conheciam, portanto,
a verdadeira origem desta revolta.
Sabiam também que, desde 2010,
o governo francês, utilizando os
movimentos anti-Gadafi,
preparava a queda do regime,
O protesto de rua, a luta de massas
A única oposição eficaz
O ministro Luís Amado, no lugar de Sócrates, disse tudo: para
efeitos de futuro governo, as alianças do PS serão com a direita.
Nada que não se previsse já, mas fica sublinhado para que não
sobrem dúvidas. A afirmação, de resto, vem corresponder às
pressões feitas pelos porta-vozes directos do capital desde que
a crise dos negócios se agudizou e desde que o receio de
convulsões sociais se começou a perfilar.
C
Ligações ao Ocidente
A conspiração francesa
3
Luís Amado foi claro: as alianças do PS serão com a direita
fotografias dos rebeldes da
agência Reuters, que as armas
por eles usadas não poderiam ter
sido retiradas dos arsenais do
exército Líbio, pelo simples facto
de este não as possuir. Na
verdade, as armas do seu exército
são russas e chinesas. As usadas
pelos rebeldes, as FN-FL, são de
fabrico belga, utilizadas pelos
EUA e diversos países europeus.
De onde surgiram então as armas
e estes revoltosos armados?
Após a revolução de 1969, Gadafi
reestrutura o sistema político e
instaura o estado laico. Esforça-se
por promover a igualdade entre os
sexos e os direitos das mulheres.
O regime vê-se confrontado com
sistemáticas oposições internas
de origem islamita, embora sem
grande impacto ou expressão
popular. A Frente Nacional para a
Salvação da Líbia e o Exército
Nacional Líbio são dois dos
grupos mais importantes da
oposição a Gadafi, com ligações
ao Ocidente, nomeadamente
EUA e Grã-Bretanha, onde se
encontram sediados. Em 1990
surgem diversos grupos islâmicos,
precisamente na zona oriental da
Líbia. A sua actividade, no
entanto, nunca gerou qualquer
impacto. Será no seio destes
opositores islamitas que nasce em
2007 o Grupo Islâmico de
Combate Anti-Gadafi que se viria
a declarar oficialmente como
subsidiário da Al-Qaeda.
PAÍS
procurando ganhar vantagens na
exploração petrolífera.
É, pois, a pretexto da protecção
de um povo ameaçado pelo seu
líder, com base num massacre
nunca demonstrado (nem um
documento, nem um vídeo sobre
este massacre virtual é possível
encontrar), mas
peremptoriamente confirmado por
Sarkozy e por Cameron, que, em
mais uma grandiosa missão
humanitária, o grande Ocidente
ratifica a intervenção da Nato na
Líbia, através da imposição de
uma “No-Fly Zone”. Na realidade,
o que veio a suceder violou o
princípio estabelecido: a Nato
desencadeou uma série de
bombardeamentos, com inúmeras
vítimas civis. A violação legal do
que se compreende por uma “NoFly Zone” (naturalmente protegida
pela subtileza prevista na
resolução aprovada, com a
declaração de que seriam
tomadas “todas as medidas
necessárias para proteger a
população civil”), tornou evidente
que o seu objectivo não era
proteger o povo líbio. Era reforçar
o poder e a força beligerante dos
rebeldes. Mais grave de tudo,
utilizando projécteis de urânio
empobrecido nos seus ataques,
que comportam contaminação
radioactiva.
Orquestração
Se dúvidas existissem, elas
seriam esclarecidas quando foi
conhecido o Conselho de
Transição Nacional Líbio,
imediatamente reconhecido pelas
forças da coligação como único
interlocutor entre a Líbia e a UE/
EUA. O seu líder, e auto-proclamado primeiro-ministro no
governo de sucessão a Gadafi, é
Mahmoud Jibril, professor durante
muitos anos nos Estados Unidos
e um convicto apologista do
neoliberalismo. O chefe dos
rebeldes, Khalifa Hifter, é um
antigo agente da CIA. E Ali
Tarhouni, indigitado ministro das
finanças do Conselho, é professor
de economia na Universidade de
Washington e regressou à Líbia
há pouco mais de um mês, depois
de trinta e cinco anos a viver no
estrangeiro.
Não falamos de uma revolta
popular. Falamos de uma
orquestração concertada entre
França, Grã-Bretanha e EUA, com
a conivência da comunidade
europeia, para a queda do regime
de Gadafi.
Cristina Paixão
omeçando por
defender um acordo
governativo, ou “de
regime”, entre PS e
PSD – o chamado bloco central –
as forças do poder económico
apostam agora abertamente num
bloco de direita que não deixe de
fora o PS. É a esta viragem que
o PS, através de Luís Amado,
vem dizer que sim.
Recordemos que, ainda há
poucos meses, os principais
banqueiros e homens de
negócios fizeram romarias à
sedes partidárias do PS e do
PSD e desdobraram-se em
declarações em apoio do
Orçamento de Estado e dos PEC
dando isso como fundamental
para salvar “o país”.
Conseguiram assim, com a
disponibilidade incondicional de
Sócrates, que mais uns passos
fossem dados no sentido de
reduzir os apoios sociais aos
mais pobres, baixar salários,
facilitar despedimentos e o mais
que se sabe.
Nova guinada à direita
A actual gritaria dos homens do
capital sobre a “incompetência”
do governo Sócrates tem, pois,
de ser vista como uma barragem
de propaganda que visa justificar,
aos olhos da população, mais
uma guinada política para a
direita. O governo do PS sempre
aplicou sem qualquer rebuço
(tirando as inevitáveis querelas
de interesses entre este ou
aquele grupo económico) as
medidas políticas que o
patronato foi exigindo. O que se
passa agora é que, com essa
política de que o PS foi o fiel
executor, amadureceram as
condições para subir mais um
patamar no ataque aos
assalariados.
Ver no PS um travão, mesmo
que frouxo, da investida do
patronato, ou um factor
moderador das medidas antisociais que CDS e PSD
anunciam, seria inverter por
completo o papel por ele
desempenhado. Contrariamente
à imagem que querem dar de si
próprios, o PS e Sócrates – na
linha, aliás, do que o PS sempre
foi nos momentos críticos! –
foram sim os batedores do
capital encarregados de
desarticular as poucas
protecções sociais do Estado,
minar as defesas legais do
Trabalho e criar, passo a passo,
as condições para um governo
abertamente de direita.
O espectro da “convulsão”
Este é o desenlace que está à
vista nas actuais condições, seja
qual for o vencedor nominal das
próximas eleições, haja ou não
maioria absoluta de algum dos
partidos da direita. E foi em
resposta a mais este balanço das
classes dominantes para a direita
(a que o próprio PS deu toda a
colaboração!) que a declaração
de Luís Amado veio afirmar :
“Estamos nessa”.
Há porém um outro lado da
questão. A pressão exercida pelo
capital e pelo poder sobre as
classes trabalhadoras vai-se
tornando cada vez mais
insuportável e, do ponto de vista
social, faz acumular matéria
explosiva. A luta de classes tem
condições objectivas para se
agudizar. É isso mesmo que
vários personagens do capital
expressam ao temer “uma
convulsão social”, com o
espectro de assaltos a
supermercados, violência nas
ruas, maiores protestos de
massas.
Mais que a maioria formal
Para obviar a estes riscos, a
burguesia precisa de mais do
que uma maioria governativa.
Não lhe basta a legitimidade
formal de um governo com
maioria absoluta no parlamento,
porque, para usar uma
expressão usada por Adriano
Moreira, a fome não está prevista
na Constituição. Precisa de forjar
uma espécie de “legitimidade
social” que lhe permita debelar,
tanto pela violência policial, como
pela propaganda, como ainda
pela caridade, os impulsos da
população em resposta às
medidas terroristas de ataque ao
trabalho.
Para isso a burguesia não pode
dar-se ao luxo de alienar o PS,
de o remeter ao papel de força
de oposição e deixar que muitos
dos seus apoios populares, sem
nada a defender, engrossem as
manifestações de rua, passem a
gritar “abaixo o governo” e
resistam às medidas brutais de
“austeridade” que estão a ser
negociadas com o FMI/FEEF.
Daí a necessidade, para a
burguesia portuguesa, de uma
ampla coligação de forças entre
PS, PSD e CDS (que não tem
necessariamente de assumir a
forma de um governo partilhado)
com a missão de impedir o
engrossar da oposição popular e
de desarticular quanto possível a
resistência de rua. É a este
chamamento, vestido com a capa
de “interesse nacional”, que, uma
vez mais, a declaração de Luís
Amado vem responder com um
sim inequívoco.
Via única
A realidade política do lado do
poder, depois das eleições de 5
de Junho, não fugirá muito a este
quadro. Mas a realidade social
pode tornar-se substancialmente
diferente do que é agora. A já
escassa capacidade de, pela via
parlamentar, fazer frente aos
ataques do capital será ainda
mais diminuída. O que permite
reforçar a única oposição eficaz
nestas condições: o protesto de
rua, a luta de massas.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
PAÍS
2
Vítor Bento, o moralista
Vítor Bento, presidente do Conselho de Administração da SIBS
– Sociedade Interbancária de Serviços (empresa que gere a
rede do Multibanco) – e há algum tempo nomeado por Cavaco
Silva para membro do Conselho de Estado, em substituição de
Dias Loureiro, apresentou recentemente o livro “Economia,
Moral e Política”, em que acusa os políticos como os maiores
culpados pela crise económica internacional.
O autor discorre sobre uma
Moralidade exterior à Economia,
pretendendo autonomizar
aquela do contexto económicosocial que a determina.
Lembramos que este é o mesmo
Vítor Bento que foi promovido no
Banco de Portugal, por
Constâncio, quando já lá não
estava há vários anos (que
moralidade?). O mesmo
Vítor Bento defensor da
flexibilização da legislação laboral
e do abaixamento do salário
dos trabalhadores, para melhorar
a “competitividade” da economia.
Publicado pela Fundação
Francisco Soares dos Santos, de
Alexandre Soares dos Santos
(Pingo Doce) e de António
Barreto, o livro considera que a
actual crise resultou de uma
crise de valores morais e que os
políticos falharam nas escolhas
que fizeram.
Atendendo aos antecedentes de
Vítor Bento, de que moralidade
fala o autor?
"No livro olhei para a crise
internacional não apenas do
ponto de vista estritamente
económico, mas enquanto
erupção de uma crise de valores
da própria sociedade. Há muitos
factores que contribuíram, mas
um deles é o facto de hoje
vivermos numa sociedade onde
os valores materiais são a
referência comum, que quase
toda a gente subscreve", declarou
Vítor Bento à agência Lusa.
O conselheiro de Cavaco afirma,
ainda, que "em última instância,
os políticos têm sempre mais
culpas, porque têm a obrigação
de gerir a casa comum, de ver
melhor e mais longe. Enquanto
os outros elementos privilegiam
muito o seu interesse particular,
os políticos têm a obrigação de
colocar o interesse comum acima
de tudo, de estar no cimo da
torre com uma visão mais ampla
e, portanto, limitar os estragos
que os interesses particulares
possam fazer".
Como se os políticos que têm
governado o País (representados
no Conselho de Estado) não
fossem homens de mão dos
capitalistas! Não serão estes
E se não pagarmos?
A banca, tão amiga e protegida
pelo governo fez-lhe um xequemate. E agora Sócrates?
Colonizados pela troika FMI/BCE/
UE para que servem as eleições
de 5 de Junho? Para branquear a
pardidocracia PS/PSD/CDS
cúmplice da sua intervenção no
país?
Os hipócritas e falsos interesses
superiores do País são
publicidade enganosa para
alimentar o carreirismo político
partidário e a orgia e ditadura do
poder.
Portugal precisa de um grande
sobressalto revolucionário contra
a globalização selvagem
capitalista representada na União
Europeia pelo eixo franco-alemão
com a cumplicidade dos partidos
do chamado arco do poder.
É urgente acabar com a
influência dos figurões
economistas neoliberais, os
políticos de pacotilha e os
responsáveis pela colonização
humilhante de Portugal e dos
portugueses.
políticos, em última análise, os
responsáveis directos pelas
escolhas e medidas dos diversos
governos da burguesia?
Responsabilizando os políticos
genericamente, o que Vítor Bento
pretende é escamotear a luta de
classes e a exploração capitalista,
que são, efectivamente, o motor
do sistema económico vigente.
E, por aquilo que Vítor Bento
tem dito e escrito, pelos
interesses a que sempre tem
estado ligado, não parece que a
moralidade de que fala no seu
livro possa representar mais que
uma tentativa de dar cobertura
ideológica à actual ordem
económica capitalista.
Carlos Completo
E se, à semelhança da Islândia,
os povos de Portugal, Irlanda e
Grécia não quiserem pagar as
dívidas contraídas pelos seus
governos aos agiotas
chantagistas dos mercados
capitalistas?
Fernando Barão
FICHA TÉCNICA
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Redacção Cristina Meneses, Manuel Raposo, Pedro Goulart
Colaboradores António Louçã, Carlos Completo, Carlos
Simões, François Pechereau, Manuel Vaz, Rita Moura,
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MUNDO
11
Urânio empobrecido: as armas que não
ousam dizer o próprio nome
Há fortes suspeitas de que a Líbia, à semelhança do Iraque, esteja a ser bombardeada com armas radioactivas
Nas primeiras 24 horas do ataque à Líbia, aviões norteamericanos B-2 despejaram 45 bombas de mil quilos. Não
sabemos se estas bombas, mais os mísseis Cruzeiro lançados
dos aviões e navios franceses e britânicos, contêm ogivas de
DU. Mas se a prova do seu uso no passado pelas forças
militares dos EUA e Reino Unido serve de guia, pode muito
bem acontecer que essas armas façam parte do bombardeio
que a Líbia está a sofrer.
“O mísseis com ogivas de urânio
empobrecido (DU) encaixam
perfeitamente na descrição de
bomba suja... Eu diria que é
arma perfeita para matar montes
de gente” (Marion Falk, físicoquímica, Laboratório Lawrence
Livermore, Califórnia, EUA)
O
DU é um detrito do
processo de
enriquecimento do
minério de urânio. É
usado em armas nucleares e em
reactores. Por ser uma
substância muito pesada (1,7
vezes mais densa que o
chumbo), é muito valorizado
pelos militares pela capacidade
que tem de atravessar veículos
blindados e edifícios. Quando
uma arma com ogiva de DU
atinge um objecto maciço, como
o exterior de um tanque,
atravessa-o e estoira numa
nuvem de vapor. O vapor
assenta na forma de poeira que é
não só venenosa mas também
radioactiva.
Efeitos a prazo
No impacto, um míssil de DU
arde a 10 mil graus centígrados.
Quando atinge um alvo, 30%
fragmenta-se em pedaços. Os
restantes 70% vaporizam-se em
três óxidos altamente tóxicos,
incluindo o óxido de urânio. Esta
poeira negra fica suspensa no ar
e, conforme o vento e o clima,
pode viajar a grandes distâncias.
Se acharem que o Iraque e a
Líbia ficam muito longe,
lembrem-se que a radiação de
Chernobil atingiu o País de
Gales.
Partículas com menos de 5
mícrons de diâmetro são
facilmente inaladas e podem
permanecer nos pulmões ou
outros órgãos durante anos. No
corpo, o DU pode causar danos
no fígado, cancros nos pulmões
e ossos, perturbações de pele,
perturbações cognitivas,
alterações de cromossomas,
síndromes de imunodeficiência e
doenças raras dos rins e
intestinos. As mulheres grávidas
expostas ao DU podem dar à luz
a crianças com deficiências
genéticas. Depois da poeira
vaporizada não se espere que o
problema desapareça
rapidamente. Como emissor de
partículas alfa, o DU tem uma
semi-vida de 4,5 mil milhões de
anos.
O caso do Iraque
No ataque ao Iraque “Choque e
pavor”, só em Bagdad foram
lançados mais de 1500 mísseis
e bombas. Seymor Hersh
afirmou que só o Third Marine
Aircraft Wing dos EUA lançou
mais de “500 mil toneladas de
artilharia”. Todas elas com
ogivas de DU.
A Al-Jazira noticiou que as forças
invasoras dos EUA dispararam
200 toneladas de material
radioactivo contra edifícios,
habitações, ruas e jardins de
Bagdad. Um repórter do
Christian Science Monitor levou
um contador Geiger para locais
da cidade que tinham sido
sujeitas a severos
bombardeamentos por tropas
dos EUA. Encontrou níveis de
radiação 1000 a 1900 vezes
maiores do que o normal para
áreas residenciais. Para uma
população de 26 milhões, os
EUA lançaram uma bomba de
uma tonelada por cada 52
iraquianos ou 20 quilos de
explosivos por pessoa.
Negócio de milhões
Nas primeiras 24 horas do
ataque dos EUA e seus aliados
foi lançada sobre a Líbia
artilharia no valor de 115 milhões
de euros. Muita dela, sem
dúvida, destruiu armamento e
instalações militares vendidas à
Líbia pelos mesmos países que
agora a bombardeiam.
O relatório de controlo de armas
da União Europeia diz que os
estados membros passaram
licenças em 2009 para venda de
armas e equipamento militar à
Líbia no valor de mais de 330
milhões de euros.
A Grã-Bretanha passou licenças
a empresas de armamento para
venda de 25 milhões de euros
de armas e foi igualmente paga
pelo coronel Gadafi para enviar
as SAS (forças especiais) para
treinar a sua 32.ª Brigada.
Forte suspeita
No Iraque, é amplamente
reconhecido (mas não pelos
governos ou pelos militares) que
houve uso extensivo de
armamento radioactivo, como
DU. Isto é provado de forma
irrefutável pelo imenso
crescimento do número de
crianças nascidas com defeitos
genéticos e de pessoas que
contraem cancros e outras
doenças. Esperamos que, no
caso da Líbia, o silêncio de
todos os governos acerca deste
assunto signifique que não foram
usadas armas de DU.
Mas a tragédia é que só o
podermos saber anos após os
bombardeamentos, como o povo
de Faluja, no Iraque, está agora
a descobrir através das horríveis
consequências do
bombardeamento da cidade, em
2004, com armas de DU e de
fósforo branco.
David Wilson, Stop the War
Coalition
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
ÚLTIMA
12
Um desabafo
A propósito de textos que
publicámos em Outubro de 2008
e Fevereiro de 2010 sobre o
regime de trabalho dos
funcionários de call centers,
recebemos mais uma denúncia
que confirma o insuportável
regime laboral imposto aos
trabalhadores, a maioria deles,
se não todos, precários.
Fukushima e a luta de classes
Começou-se por dizer que a catástrofe de Fukushima não atingiria as
proporções de Chernobil. Claro, ficaria mal a um dos países-modelo
do capitalismo global ter construído centrais nucleares no enfiamento
de terramotos e maremotos. A imprevidência, para encaixar nos
padrões vigentes de correcção política, devia ser exclusiva da
burocracia soviética. Agora, já se admite que Fukushima pode ter
consequências tão graves ou mais que as de Chernobil.
D
epois da catástrofe, vieram os remendos.
E os de Fukushima não têm sido melhores
que os de Chernobil. Mas a nossa
imprensa mais entusiástica do "milagre
japonês" descobriu agora o seu entusiasmo pelo
sentido de organização do país do sol nascente. E
vá de louvar a protecção civil japonesa, a
solidariedade com as vítimas, os alojamentos
improvisados, o estoicismo do "homem da rua", a
simplicidade do imperador que até se dignou dirigir
pela televisão uma mensagem ao povo.
No meio deste entusiasmo de neófitos, os
propagandistas do novo "milagre japonês"
descobriram mesmo a sua veia de poliglotas,
certamente com cursos intensivos de japonês
técnico devorados à pressa para esta circunstância.
E houve até quem quisesse louvar os trabalhadores
da protecção civil, que têm levado a cabo os mais
diversos trabalhos na área de Fukushima, como "os
samurais do nosso tempo". Ora, com isto ignora-se
o que é ciência elementar para o povo japonês, que
não compara esses trabalhadores com os samurais
e sim com os kamikaze.
Os herdeiros da aristocracia guerreira japonesa não
estão hoje a trabalhar entre os destroços de
Fukushima, e sim sentados no conselho de
administração da Tepco, a empresa que gere a
central nuclear e que, para aumentar os seus lucros,
tratou de poupar nos custos de segurança. Esses
Mudar de Vida . Março-Abril 2011
descendentes dos samurais já admitiram
negligências clamorosas. Mas, ao contrário dos
antepassados, não concluíram as suas confissões
em conferência de imprensa com nenhum
espectacular hara-kiri. No moderno capitalismo
japonês, já ninguém expia as suas culpas com esse
tipo de suicídio ritual.
A verdadeira tarefa suicida é aqui deixada a simples
trabalhadores, que dentro de poucos meses ou anos
poderão morrer em massa, das consequências das
radiações, tal como sucedeu em Chernobil. E o
povo que lhes chama kamikaze conhece a história
dos pilotos suicidas, que eram apenas treinados
para descolar e não para aterrar, que eram enviados
para o ar em aviões carregados de bombas, apenas
com combustível para a ida e não para a volta, e
acompanhados por caças que os abateriam se
tivessem a veleidade de voltar atrás. Também esses
kamikaze eram as vítimas duma guerra imperial que
não escolheram fazer.
Os "samurais" que escolheram a guerra e os seus
descendentes que decidiram construir as centrais
nucleares com risco para toda a população, esses,
continuam no poder. Todos somos, provavelmente,
ignorantes da língua japonesa. Mas confundir
samurais com kamikaze é querer ignorar a luta de
classes, para além de qualquer desculpável
ignorância linguística.
António Louçã
“Também eu trabalho num call
center da TMN, e ninguém faz
ideia do que é trabalhar lá. Das
coisas que ouvimos dos clientes,
da forma como nos tratam, e
ainda o que ouvimos dos
superiores só porque naquele dia
não conseguimos vender
nenhum serviço.
Simplesmente não têm ideia do
que é estar 9 horas, sim porque
são raras as vezes que faço 8
horas, a ouvir clientes a lamentar
as suas vidas e a despejar a fúria
sobre nós só porque não
conseguem enviar sms.
Sou também licenciada, e tenho
uma série de adjectivos que
conseguem definir o meu estado
psicológico neste momento, mas
resume-se em exaustão.
E, apesar de falar 9 horas por
dia, sinto que não estou a ser
ouvida e, pior ainda, sinto que o
nosso trabalho não é digno, nem
ninguém se interessa e muito
menos fazem ideia do que é
trabalhar num sítio como estes,
em que trabalhamos fins de
semana, sim porque só quem
está lá há mais de 3 ou 4 anos é
que tem direito a fins de semana
e a um horário diurno, não
sabem o que é trabalhar no dia
de Natal, na véspera de Natal e
todos os feriados, porque nem
isso é rotativo.
Há muito trabalho precário, mas
este é sem duvida um dos piores.
Fica aqui o meu desabafo.”
“Ana”
DITO
O objectivo dos bancos
é facilitar os negócios,
e tudo o que facilita os
negócios favorece
a especulação.
J.W.Gilbart, banqueiro
(1794-1863)
Editorial
Legítima resposta
Numa manifestação de precários
em Espanha, um cartaz da
“geração sem futuro” dizia: “Sem
casa, sem reforma, sem medo”.
Também em Lisboa, na
manifestação da “geração à
rasca”, um dístico perguntava:
“Quando não tiveres nada a
perder, o que serás capaz de
fazer?”. Estes dizeres revelam
uma disposição de luta que é
preciso incentivar. Indicam uma
viragem possível e desejável
para a resistência de massas, de
resposta ao terror social imposto
pelo patronato. O mesmo
exemplo de destemor se pode
tirar das revoltas populares
nos países árabes.
Os sinais do que aí vem em
resultado das medidas do FMI/
FEEF, em cima de tudo o que já
foi feito contra os assalariados,
não deixam margem para
hesitações: o capital leva a cabo
uma política de esmagamento
das classes trabalhadoras.
É esse o único caminho do
patronato para responder à crise
dos negócios. E um tal processo
só terá fim se deparar com uma
resistência maciça da parte dos
trabalhadores à altura da
agressão de que são alvo.
Os que se mostram preocupados
com a possibilidade de uma
“convulsão social” escamoteiam
o facto de estar em pleno curso
uma luta de classes em que, até
agora, só os de cima ditaram as
regras. A convulsão social que
temem é o nome que dão à
legítima resposta das massas
trabalhadoras à guerra de que
estão a ser vítimas. Tentar
impedir que esta resposta venha
ao de cima, em nome da ordem
e da paz social, é dar mãos livres
ao patronato para prosseguir a
desordem social em que colocou
o país e dar livre curso à guerra
de classe que desencadeou
contra os trabalhadores. Sob a
bandeira da ordem, do sossego,
da paz, o que as classes
dominantes querem é assegurar
condições para continuarem
a esmagar os de baixo.
Contra isso, é preciso declarar
a legitimidade da luta social sob
todas as suas formas. Não baixar
a cabeça. Não aceitar ser vítima
fácil. Não excluir nenhuma forma
de acção de massas. Sem medo.
MUDARDEVIDA
www.jornalmudardevida.net
jornal popular / apoio: 0,50 !
Março-Abril 2011 / número 27
Sem trabalho, sem casa,
sem futuro... sem medo
“Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz
de fazer?” (cartaz na manifestação da geração à rasca)
A
crise política estalou, depois de
numerosas cenas de colaboração,
chantagem, zanga e disputa entre
PS e PSD. Mas foram os três
partidos do capital que, sozinhos ou
coligados nos diversos governos, em mais
de três décadas, conduziram o país a uma
forte dependência económica das
potências europeias e empurraram as
classes trabalhadoras para a situação de
sobre-exploração em que vivem.
Começando por defender um acordo
governativo entre PS e PSD (o chamado
bloco central) as forças do poder
económico apostam agora abertamente
num bloco de direita que não deixe de fora
o PS.
Com a política de que Sócrates foi o fiel
executor, o patronato viu amadurecerem as
condições para subir mais um patamar no
ataque aos assalariados. Foi a esta
viragem que o PS já veio dizer que sim,
pela voz do ministro Luís Amado.
Mas a realidade social pode tornar-se
muito diferente do que é agora desde que
seja reforçada a única oposição eficaz
nestas condições: o protesto de rua, a luta
de massas.
páginas 3 e 5
Iraque, 8 anos depois
págs. 8 a 9
Líbia: fortes suspeitas de
bombardeamentos com armas
radioactivas, tal como sucedeu
no Iraque
págs. 10 e 11