MUDARDEVIDA
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MUDARDEVIDA
ÚLTIMA 12 Um desabafo A propósito de textos que publicámos em Outubro de 2008 e Fevereiro de 2010 sobre o regime de trabalho dos funcionários de call centers, recebemos mais uma denúncia que confirma o insuportável regime laboral imposto aos trabalhadores, a maioria deles, se não todos, precários. Fukushima e a luta de classes Começou-se por dizer que a catástrofe de Fukushima não atingiria as proporções de Chernobil. Claro, ficaria mal a um dos países-modelo do capitalismo global ter construído centrais nucleares no enfiamento de terramotos e maremotos. A imprevidência, para encaixar nos padrões vigentes de correcção política, devia ser exclusiva da burocracia soviética. Agora, já se admite que Fukushima pode ter consequências tão graves ou mais que as de Chernobil. D epois da catástrofe, vieram os remendos. E os de Fukushima não têm sido melhores que os de Chernobil. Mas a nossa imprensa mais entusiástica do "milagre japonês" descobriu agora o seu entusiasmo pelo sentido de organização do país do sol nascente. E vá de louvar a protecção civil japonesa, a solidariedade com as vítimas, os alojamentos improvisados, o estoicismo do "homem da rua", a simplicidade do imperador que até se dignou dirigir pela televisão uma mensagem ao povo. No meio deste entusiasmo de neófitos, os propagandistas do novo "milagre japonês" descobriram mesmo a sua veia de poliglotas, certamente com cursos intensivos de japonês técnico devorados à pressa para esta circunstância. E houve até quem quisesse louvar os trabalhadores da protecção civil, que têm levado a cabo os mais diversos trabalhos na área de Fukushima, como "os samurais do nosso tempo". Ora, com isto ignora-se o que é ciência elementar para o povo japonês, que não compara esses trabalhadores com os samurais e sim com os kamikaze. Os herdeiros da aristocracia guerreira japonesa não estão hoje a trabalhar entre os destroços de Fukushima, e sim sentados no conselho de administração da Tepco, a empresa que gere a central nuclear e que, para aumentar os seus lucros, tratou de poupar nos custos de segurança. Esses Mudar de Vida . Março-Abril 2011 descendentes dos samurais já admitiram negligências clamorosas. Mas, ao contrário dos antepassados, não concluíram as suas confissões em conferência de imprensa com nenhum espectacular hara-kiri. No moderno capitalismo japonês, já ninguém expia as suas culpas com esse tipo de suicídio ritual. A verdadeira tarefa suicida é aqui deixada a simples trabalhadores, que dentro de poucos meses ou anos poderão morrer em massa, das consequências das radiações, tal como sucedeu em Chernobil. E o povo que lhes chama kamikaze conhece a história dos pilotos suicidas, que eram apenas treinados para descolar e não para aterrar, que eram enviados para o ar em aviões carregados de bombas, apenas com combustível para a ida e não para a volta, e acompanhados por caças que os abateriam se tivessem a veleidade de voltar atrás. Também esses kamikaze eram as vítimas duma guerra imperial que não escolheram fazer. Os "samurais" que escolheram a guerra e os seus descendentes que decidiram construir as centrais nucleares com risco para toda a população, esses, continuam no poder. Todos somos, provavelmente, ignorantes da língua japonesa. Mas confundir samurais com kamikaze é querer ignorar a luta de classes, para além de qualquer desculpável ignorância linguística. António Louçã “Também eu trabalho num call center da TMN, e ninguém faz ideia do que é trabalhar lá. Das coisas que ouvimos dos clientes, da forma como nos tratam, e ainda o que ouvimos dos superiores só porque naquele dia não conseguimos vender nenhum serviço. Simplesmente não têm ideia do que é estar 9 horas, sim porque são raras as vezes que faço 8 horas, a ouvir clientes a lamentar as suas vidas e a despejar a fúria sobre nós só porque não conseguem enviar sms. Sou também licenciada, e tenho uma série de adjectivos que conseguem definir o meu estado psicológico neste momento, mas resume-se em exaustão. E, apesar de falar 9 horas por dia, sinto que não estou a ser ouvida e, pior ainda, sinto que o nosso trabalho não é digno, nem ninguém se interessa e muito menos fazem ideia do que é trabalhar num sítio como estes, em que trabalhamos fins de semana, sim porque só quem está lá há mais de 3 ou 4 anos é que tem direito a fins de semana e a um horário diurno, não sabem o que é trabalhar no dia de Natal, na véspera de Natal e todos os feriados, porque nem isso é rotativo. Há muito trabalho precário, mas este é sem duvida um dos piores. Fica aqui o meu desabafo.” “Ana” DITO O objectivo dos bancos é facilitar os negócios, e tudo o que facilita os negócios favorece a especulação. J.W.Gilbart, banqueiro (1794-1863) Editorial Legítima resposta Numa manifestação de precários em Espanha, um cartaz da “geração sem futuro” dizia: “Sem casa, sem reforma, sem medo”. Também em Lisboa, na manifestação da “geração à rasca”, um dístico perguntava: “Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz de fazer?”. Estes dizeres revelam uma disposição de luta que é preciso incentivar. Indicam uma viragem possível e desejável para a resistência de massas, de resposta ao terror social imposto pelo patronato. O mesmo exemplo de destemor se pode tirar das revoltas populares nos países árabes. Os sinais do que aí vem em resultado das medidas do FMI/ FEEF, em cima de tudo o que já foi feito contra os assalariados, não deixam margem para hesitações: o capital leva a cabo uma política de esmagamento das classes trabalhadoras. É esse o único caminho do patronato para responder à crise dos negócios. E um tal processo só terá fim se deparar com uma resistência maciça da parte dos trabalhadores à altura da agressão de que são alvo. Os que se mostram preocupados com a possibilidade de uma “convulsão social” escamoteiam o facto de estar em pleno curso uma luta de classes em que, até agora, só os de cima ditaram as regras. A convulsão social que temem é o nome que dão à legítima resposta das massas trabalhadoras à guerra de que estão a ser vítimas. Tentar impedir que esta resposta venha ao de cima, em nome da ordem e da paz social, é dar mãos livres ao patronato para prosseguir a desordem social em que colocou o país e dar livre curso à guerra de classe que desencadeou contra os trabalhadores. Sob a bandeira da ordem, do sossego, da paz, o que as classes dominantes querem é assegurar condições para continuarem a esmagar os de baixo. Contra isso, é preciso declarar a legitimidade da luta social sob todas as suas formas. Não baixar a cabeça. Não aceitar ser vítima fácil. Não excluir nenhuma forma de acção de massas. Sem medo. MUDARDEVIDA www.jornalmudardevida.net jornal popular / apoio: 0,50 ! Março-Abril 2011 / número 27 Sem trabalho, sem casa, sem futuro... sem medo “Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz de fazer?” (cartaz na manifestação da geração à rasca) A crise política estalou, depois de numerosas cenas de colaboração, chantagem, zanga e disputa entre PS e PSD. Mas foram os três partidos do capital que, sozinhos ou coligados nos diversos governos, em mais de três décadas, conduziram o país a uma forte dependência económica das potências europeias e empurraram as classes trabalhadoras para a situação de sobre-exploração em que vivem. Começando por defender um acordo governativo entre PS e PSD (o chamado bloco central) as forças do poder económico apostam agora abertamente num bloco de direita que não deixe de fora o PS. Com a política de que Sócrates foi o fiel executor, o patronato viu amadurecerem as condições para subir mais um patamar no ataque aos assalariados. Foi a esta viragem que o PS já veio dizer que sim, pela voz do ministro Luís Amado. Mas a realidade social pode tornar-se muito diferente do que é agora desde que seja reforçada a única oposição eficaz nestas condições: o protesto de rua, a luta de massas. páginas 3 e 5 Iraque, 8 anos depois págs. 8 a 9 Líbia: fortes suspeitas de bombardeamentos com armas radioactivas, tal como sucedeu no Iraque págs. 10 e 11 PAÍS 2 Vítor Bento, o moralista Vítor Bento, presidente do Conselho de Administração da SIBS – Sociedade Interbancária de Serviços (empresa que gere a rede do Multibanco) – e há algum tempo nomeado por Cavaco Silva para membro do Conselho de Estado, em substituição de Dias Loureiro, apresentou recentemente o livro “Economia, Moral e Política”, em que acusa os políticos como os maiores culpados pela crise económica internacional. O autor discorre sobre uma Moralidade exterior à Economia, pretendendo autonomizar aquela do contexto económicosocial que a determina. Lembramos que este é o mesmo Vítor Bento que foi promovido no Banco de Portugal, por Constâncio, quando já lá não estava há vários anos (que moralidade?). O mesmo Vítor Bento defensor da flexibilização da legislação laboral e do abaixamento do salário dos trabalhadores, para melhorar a “competitividade” da economia. Publicado pela Fundação Francisco Soares dos Santos, de Alexandre Soares dos Santos (Pingo Doce) e de António Barreto, o livro considera que a actual crise resultou de uma crise de valores morais e que os políticos falharam nas escolhas que fizeram. Atendendo aos antecedentes de Vítor Bento, de que moralidade fala o autor? "No livro olhei para a crise internacional não apenas do ponto de vista estritamente económico, mas enquanto erupção de uma crise de valores da própria sociedade. Há muitos factores que contribuíram, mas um deles é o facto de hoje vivermos numa sociedade onde os valores materiais são a referência comum, que quase toda a gente subscreve", declarou Vítor Bento à agência Lusa. O conselheiro de Cavaco afirma, ainda, que "em última instância, os políticos têm sempre mais culpas, porque têm a obrigação de gerir a casa comum, de ver melhor e mais longe. Enquanto os outros elementos privilegiam muito o seu interesse particular, os políticos têm a obrigação de colocar o interesse comum acima de tudo, de estar no cimo da torre com uma visão mais ampla e, portanto, limitar os estragos que os interesses particulares possam fazer". Como se os políticos que têm governado o País (representados no Conselho de Estado) não fossem homens de mão dos capitalistas! Não serão estes E se não pagarmos? A banca, tão amiga e protegida pelo governo fez-lhe um xequemate. E agora Sócrates? Colonizados pela troika FMI/BCE/ UE para que servem as eleições de 5 de Junho? Para branquear a pardidocracia PS/PSD/CDS cúmplice da sua intervenção no país? Os hipócritas e falsos interesses superiores do País são publicidade enganosa para alimentar o carreirismo político partidário e a orgia e ditadura do poder. Portugal precisa de um grande sobressalto revolucionário contra a globalização selvagem capitalista representada na União Europeia pelo eixo franco-alemão com a cumplicidade dos partidos do chamado arco do poder. É urgente acabar com a influência dos figurões economistas neoliberais, os políticos de pacotilha e os responsáveis pela colonização humilhante de Portugal e dos portugueses. políticos, em última análise, os responsáveis directos pelas escolhas e medidas dos diversos governos da burguesia? Responsabilizando os políticos genericamente, o que Vítor Bento pretende é escamotear a luta de classes e a exploração capitalista, que são, efectivamente, o motor do sistema económico vigente. E, por aquilo que Vítor Bento tem dito e escrito, pelos interesses a que sempre tem estado ligado, não parece que a moralidade de que fala no seu livro possa representar mais que uma tentativa de dar cobertura ideológica à actual ordem económica capitalista. Carlos Completo E se, à semelhança da Islândia, os povos de Portugal, Irlanda e Grécia não quiserem pagar as dívidas contraídas pelos seus governos aos agiotas chantagistas dos mercados capitalistas? Fernando Barão FICHA TÉCNICA ASSINATURAS Redacção Cristina Meneses, Manuel Raposo, Pedro Goulart Colaboradores António Louçã, Carlos Completo, Carlos Simões, François Pechereau, Manuel Vaz, Rita Moura, Urbano de Campos Site David Raposo Contactos Apartado 50093 S. João de Brito 1702-001 Lisboa [email protected] www.jornalmudardevida.net 10 números / Donativo mínimo: 15! Apoio: o mais possível Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Como fazer uma assinatura: No site www.jornalmudardevida.net (>Assinaturas): indique nome, morada, código postal, indique o número a partir do qual inicia a assinatura e transfira o seu contributo numa caixa Multibanco (seleccionando “Outras Operações” e “Transferências”), para o NIB 0007 0000 00682481622 23. Envie-nos um e-mail a comunicar a transferência. Por correio: envie nome, morada, código postal, indique o número a partir do qual inicia a assinatura e junte um cheque traçado, ao portador. MUNDO 11 Urânio empobrecido: as armas que não ousam dizer o próprio nome Há fortes suspeitas de que a Líbia, à semelhança do Iraque, esteja a ser bombardeada com armas radioactivas Nas primeiras 24 horas do ataque à Líbia, aviões norteamericanos B-2 despejaram 45 bombas de mil quilos. Não sabemos se estas bombas, mais os mísseis Cruzeiro lançados dos aviões e navios franceses e britânicos, contêm ogivas de DU. Mas se a prova do seu uso no passado pelas forças militares dos EUA e Reino Unido serve de guia, pode muito bem acontecer que essas armas façam parte do bombardeio que a Líbia está a sofrer. “O mísseis com ogivas de urânio empobrecido (DU) encaixam perfeitamente na descrição de bomba suja... Eu diria que é arma perfeita para matar montes de gente” (Marion Falk, físicoquímica, Laboratório Lawrence Livermore, Califórnia, EUA) O DU é um detrito do processo de enriquecimento do minério de urânio. É usado em armas nucleares e em reactores. Por ser uma substância muito pesada (1,7 vezes mais densa que o chumbo), é muito valorizado pelos militares pela capacidade que tem de atravessar veículos blindados e edifícios. Quando uma arma com ogiva de DU atinge um objecto maciço, como o exterior de um tanque, atravessa-o e estoira numa nuvem de vapor. O vapor assenta na forma de poeira que é não só venenosa mas também radioactiva. Efeitos a prazo No impacto, um míssil de DU arde a 10 mil graus centígrados. Quando atinge um alvo, 30% fragmenta-se em pedaços. Os restantes 70% vaporizam-se em três óxidos altamente tóxicos, incluindo o óxido de urânio. Esta poeira negra fica suspensa no ar e, conforme o vento e o clima, pode viajar a grandes distâncias. Se acharem que o Iraque e a Líbia ficam muito longe, lembrem-se que a radiação de Chernobil atingiu o País de Gales. Partículas com menos de 5 mícrons de diâmetro são facilmente inaladas e podem permanecer nos pulmões ou outros órgãos durante anos. No corpo, o DU pode causar danos no fígado, cancros nos pulmões e ossos, perturbações de pele, perturbações cognitivas, alterações de cromossomas, síndromes de imunodeficiência e doenças raras dos rins e intestinos. As mulheres grávidas expostas ao DU podem dar à luz a crianças com deficiências genéticas. Depois da poeira vaporizada não se espere que o problema desapareça rapidamente. Como emissor de partículas alfa, o DU tem uma semi-vida de 4,5 mil milhões de anos. O caso do Iraque No ataque ao Iraque “Choque e pavor”, só em Bagdad foram lançados mais de 1500 mísseis e bombas. Seymor Hersh afirmou que só o Third Marine Aircraft Wing dos EUA lançou mais de “500 mil toneladas de artilharia”. Todas elas com ogivas de DU. A Al-Jazira noticiou que as forças invasoras dos EUA dispararam 200 toneladas de material radioactivo contra edifícios, habitações, ruas e jardins de Bagdad. Um repórter do Christian Science Monitor levou um contador Geiger para locais da cidade que tinham sido sujeitas a severos bombardeamentos por tropas dos EUA. Encontrou níveis de radiação 1000 a 1900 vezes maiores do que o normal para áreas residenciais. Para uma população de 26 milhões, os EUA lançaram uma bomba de uma tonelada por cada 52 iraquianos ou 20 quilos de explosivos por pessoa. Negócio de milhões Nas primeiras 24 horas do ataque dos EUA e seus aliados foi lançada sobre a Líbia artilharia no valor de 115 milhões de euros. Muita dela, sem dúvida, destruiu armamento e instalações militares vendidas à Líbia pelos mesmos países que agora a bombardeiam. O relatório de controlo de armas da União Europeia diz que os estados membros passaram licenças em 2009 para venda de armas e equipamento militar à Líbia no valor de mais de 330 milhões de euros. A Grã-Bretanha passou licenças a empresas de armamento para venda de 25 milhões de euros de armas e foi igualmente paga pelo coronel Gadafi para enviar as SAS (forças especiais) para treinar a sua 32.ª Brigada. Forte suspeita No Iraque, é amplamente reconhecido (mas não pelos governos ou pelos militares) que houve uso extensivo de armamento radioactivo, como DU. Isto é provado de forma irrefutável pelo imenso crescimento do número de crianças nascidas com defeitos genéticos e de pessoas que contraem cancros e outras doenças. Esperamos que, no caso da Líbia, o silêncio de todos os governos acerca deste assunto signifique que não foram usadas armas de DU. Mas a tragédia é que só o podermos saber anos após os bombardeamentos, como o povo de Faluja, no Iraque, está agora a descobrir através das horríveis consequências do bombardeamento da cidade, em 2004, com armas de DU e de fósforo branco. David Wilson, Stop the War Coalition Mudar de Vida . Março-Abril 2011 MUNDO 10 A conspiração para derrubar Gadafi Petróleo, negócio de armas e novos mercados na mira das potências imperialistas A invasão da Líbia pela coligação da Nato é outra face da mesma guerra. Importa à França dominar o petróleo líbio, claro; importa dinamizar o negócio do armamento, também; importa eliminar qualquer modelo político e económico dissidente e, sobretudo, importa expandir uma democracia representativa (sempre controlável) e um capitalismo neo-liberal, porque novos mercados são vitais para a sobrevivência, não dos povos, mas dos que, à custa deles, decidem quais são as regras do jogo. Gadafi sempre foi mal amado pelos líderes europeus e norte-americanos. Nunca lhe foi perdoado o apoio às guerrilhas urbanas nos anos 70, a nacionalização do petróleo, ou a sua independência em relação ao modelo económico dominante, recusando-se a transformar o país em mais um maná para investidores e especuladores. A Líbia será dos poucos lugares do mundo onde a saúde, a educação (até universitária – todos os estudantes recebem bolsas de estudo), a habitação, a água e a energia são absolutamente gratuitas. A sublevação de Fevereiro A rebelião na Líbia é-nos imediatamente apresentada como uma sublevação popular pela democratização do país, como as ocorridas no Egipto e na Tunísia. A denúncia, nunca provada, de que Gadafi estaria a cometer um massacre contra o seu povo, serviu de pressuposto à intervenção da Nato, e permitiu ganhar o apoio ou o silêncio conivente da opinião pública europeia. É absolutamente ignorado o facto de, ao contrário do ocorrido naqueles dois países, se tratar de uma sublevação armada e militarizada; as explicações oficiais para os que, mais desconfiados, chamavam a atenção para o “pormenor”, consistiam na afirmação de que alguns militares do exército líbio se teriam aliado aos revoltosos, levando consigo armas roubadas ao arsenal militar líbio. Começam então as mentiras, mais uma vez, a tecer a sua teia. Num interessante trabalho de investigação fotográfica, Nickolay Starikov, demonstra, a partir de Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Os serviços secretos norte-americanos conheciam, portanto, a verdadeira origem desta revolta. Sabiam também que, desde 2010, o governo francês, utilizando os movimentos anti-Gadafi, preparava a queda do regime, O protesto de rua, a luta de massas A única oposição eficaz O ministro Luís Amado, no lugar de Sócrates, disse tudo: para efeitos de futuro governo, as alianças do PS serão com a direita. Nada que não se previsse já, mas fica sublinhado para que não sobrem dúvidas. A afirmação, de resto, vem corresponder às pressões feitas pelos porta-vozes directos do capital desde que a crise dos negócios se agudizou e desde que o receio de convulsões sociais se começou a perfilar. C Ligações ao Ocidente A conspiração francesa 3 Luís Amado foi claro: as alianças do PS serão com a direita fotografias dos rebeldes da agência Reuters, que as armas por eles usadas não poderiam ter sido retiradas dos arsenais do exército Líbio, pelo simples facto de este não as possuir. Na verdade, as armas do seu exército são russas e chinesas. As usadas pelos rebeldes, as FN-FL, são de fabrico belga, utilizadas pelos EUA e diversos países europeus. De onde surgiram então as armas e estes revoltosos armados? Após a revolução de 1969, Gadafi reestrutura o sistema político e instaura o estado laico. Esforça-se por promover a igualdade entre os sexos e os direitos das mulheres. O regime vê-se confrontado com sistemáticas oposições internas de origem islamita, embora sem grande impacto ou expressão popular. A Frente Nacional para a Salvação da Líbia e o Exército Nacional Líbio são dois dos grupos mais importantes da oposição a Gadafi, com ligações ao Ocidente, nomeadamente EUA e Grã-Bretanha, onde se encontram sediados. Em 1990 surgem diversos grupos islâmicos, precisamente na zona oriental da Líbia. A sua actividade, no entanto, nunca gerou qualquer impacto. Será no seio destes opositores islamitas que nasce em 2007 o Grupo Islâmico de Combate Anti-Gadafi que se viria a declarar oficialmente como subsidiário da Al-Qaeda. PAÍS procurando ganhar vantagens na exploração petrolífera. É, pois, a pretexto da protecção de um povo ameaçado pelo seu líder, com base num massacre nunca demonstrado (nem um documento, nem um vídeo sobre este massacre virtual é possível encontrar), mas peremptoriamente confirmado por Sarkozy e por Cameron, que, em mais uma grandiosa missão humanitária, o grande Ocidente ratifica a intervenção da Nato na Líbia, através da imposição de uma “No-Fly Zone”. Na realidade, o que veio a suceder violou o princípio estabelecido: a Nato desencadeou uma série de bombardeamentos, com inúmeras vítimas civis. A violação legal do que se compreende por uma “NoFly Zone” (naturalmente protegida pela subtileza prevista na resolução aprovada, com a declaração de que seriam tomadas “todas as medidas necessárias para proteger a população civil”), tornou evidente que o seu objectivo não era proteger o povo líbio. Era reforçar o poder e a força beligerante dos rebeldes. Mais grave de tudo, utilizando projécteis de urânio empobrecido nos seus ataques, que comportam contaminação radioactiva. Orquestração Se dúvidas existissem, elas seriam esclarecidas quando foi conhecido o Conselho de Transição Nacional Líbio, imediatamente reconhecido pelas forças da coligação como único interlocutor entre a Líbia e a UE/ EUA. O seu líder, e auto-proclamado primeiro-ministro no governo de sucessão a Gadafi, é Mahmoud Jibril, professor durante muitos anos nos Estados Unidos e um convicto apologista do neoliberalismo. O chefe dos rebeldes, Khalifa Hifter, é um antigo agente da CIA. E Ali Tarhouni, indigitado ministro das finanças do Conselho, é professor de economia na Universidade de Washington e regressou à Líbia há pouco mais de um mês, depois de trinta e cinco anos a viver no estrangeiro. Não falamos de uma revolta popular. Falamos de uma orquestração concertada entre França, Grã-Bretanha e EUA, com a conivência da comunidade europeia, para a queda do regime de Gadafi. Cristina Paixão omeçando por defender um acordo governativo, ou “de regime”, entre PS e PSD – o chamado bloco central – as forças do poder económico apostam agora abertamente num bloco de direita que não deixe de fora o PS. É a esta viragem que o PS, através de Luís Amado, vem dizer que sim. Recordemos que, ainda há poucos meses, os principais banqueiros e homens de negócios fizeram romarias à sedes partidárias do PS e do PSD e desdobraram-se em declarações em apoio do Orçamento de Estado e dos PEC dando isso como fundamental para salvar “o país”. Conseguiram assim, com a disponibilidade incondicional de Sócrates, que mais uns passos fossem dados no sentido de reduzir os apoios sociais aos mais pobres, baixar salários, facilitar despedimentos e o mais que se sabe. Nova guinada à direita A actual gritaria dos homens do capital sobre a “incompetência” do governo Sócrates tem, pois, de ser vista como uma barragem de propaganda que visa justificar, aos olhos da população, mais uma guinada política para a direita. O governo do PS sempre aplicou sem qualquer rebuço (tirando as inevitáveis querelas de interesses entre este ou aquele grupo económico) as medidas políticas que o patronato foi exigindo. O que se passa agora é que, com essa política de que o PS foi o fiel executor, amadureceram as condições para subir mais um patamar no ataque aos assalariados. Ver no PS um travão, mesmo que frouxo, da investida do patronato, ou um factor moderador das medidas antisociais que CDS e PSD anunciam, seria inverter por completo o papel por ele desempenhado. Contrariamente à imagem que querem dar de si próprios, o PS e Sócrates – na linha, aliás, do que o PS sempre foi nos momentos críticos! – foram sim os batedores do capital encarregados de desarticular as poucas protecções sociais do Estado, minar as defesas legais do Trabalho e criar, passo a passo, as condições para um governo abertamente de direita. O espectro da “convulsão” Este é o desenlace que está à vista nas actuais condições, seja qual for o vencedor nominal das próximas eleições, haja ou não maioria absoluta de algum dos partidos da direita. E foi em resposta a mais este balanço das classes dominantes para a direita (a que o próprio PS deu toda a colaboração!) que a declaração de Luís Amado veio afirmar : “Estamos nessa”. Há porém um outro lado da questão. A pressão exercida pelo capital e pelo poder sobre as classes trabalhadoras vai-se tornando cada vez mais insuportável e, do ponto de vista social, faz acumular matéria explosiva. A luta de classes tem condições objectivas para se agudizar. É isso mesmo que vários personagens do capital expressam ao temer “uma convulsão social”, com o espectro de assaltos a supermercados, violência nas ruas, maiores protestos de massas. Mais que a maioria formal Para obviar a estes riscos, a burguesia precisa de mais do que uma maioria governativa. Não lhe basta a legitimidade formal de um governo com maioria absoluta no parlamento, porque, para usar uma expressão usada por Adriano Moreira, a fome não está prevista na Constituição. Precisa de forjar uma espécie de “legitimidade social” que lhe permita debelar, tanto pela violência policial, como pela propaganda, como ainda pela caridade, os impulsos da população em resposta às medidas terroristas de ataque ao trabalho. Para isso a burguesia não pode dar-se ao luxo de alienar o PS, de o remeter ao papel de força de oposição e deixar que muitos dos seus apoios populares, sem nada a defender, engrossem as manifestações de rua, passem a gritar “abaixo o governo” e resistam às medidas brutais de “austeridade” que estão a ser negociadas com o FMI/FEEF. Daí a necessidade, para a burguesia portuguesa, de uma ampla coligação de forças entre PS, PSD e CDS (que não tem necessariamente de assumir a forma de um governo partilhado) com a missão de impedir o engrossar da oposição popular e de desarticular quanto possível a resistência de rua. É a este chamamento, vestido com a capa de “interesse nacional”, que, uma vez mais, a declaração de Luís Amado vem responder com um sim inequívoco. Via única A realidade política do lado do poder, depois das eleições de 5 de Junho, não fugirá muito a este quadro. Mas a realidade social pode tornar-se substancialmente diferente do que é agora. A já escassa capacidade de, pela via parlamentar, fazer frente aos ataques do capital será ainda mais diminuída. O que permite reforçar a única oposição eficaz nestas condições: o protesto de rua, a luta de massas. Manuel Raposo Mudar de Vida . Março-Abril 2011 PAÍS 4 Um embaixador diligente Ainda os telegramas de Lisboa da WikiLeaks Os documentos da WikiLeaks sobre o Ministério da Defesa e o governo português, recentemente divulgados pelo jornal Expresso, apesar da sua utilidade, devem ser encarados com um olhar crítico. Na correspondência dos embaixadores dos EUA há que distinguir aquilo que tem algum fundo de verdade daquilo que é ditado pelos interesses próprios dos embaixadores ou pela defesa dos negócios daquela potência imperialista. Thomas Stephenson, embaixador dos EUA em Lisboa, entre Novembro de 2007 e Junho de 2009, critica o Ministério da Defesa não por fazer gastos com o militarismo e a guerra mas, essencialmente, por estar a preterir as compras militares aos EUA em favor das compras europeias. Igualmente, deprecia os militares portugueses, em parte por não corresponderem de modo suficiente às solicitações dos norte-americanos. Por outro lado, é de destacar a existência de vários telegramas de Lisboa para Washington, que evidenciam a habitual colaboração de gente responsável do aparelho de estado português com a Embaixada dos EUA. Numa suja e subserviente cumplicidade. Stephenson escreveu em 5 de Março de 2009, num telegrama para Washington, que "no que diz respeito a contratos de compras militares, as vontades e acções do Ministério da Defesa parecem ser guiadas pela pressão dos seus pares e pelo desejo de ter brinquedos caros". "O Ministério compra armamento por uma questão de orgulho, não importa se é útil ou não. Os exemplos mais óbvios são os seus dois submarinos (actualmente atrasados) e 39 caças de combate (apenas 12 em condições de voar)", afirmava a propósito dos dois submarinos alemães adquiridos por Portugal, em 2005. O diplomata americano criticou também a preferência de Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Portugal, em 2006, pela aquisição de fragatas holandesas, em vez das vendidas pelos EUA. "O Ministério da Defesa optou por gastar mais de 300 milhões de euros em fragatas holandesas usadas. As americanas teriam exigido apenas cerca de 100 milhões de euros na sua modernização e apoio logístico". O embaixador, na sua correspondência com Washington, acrescentava, ainda, que a opção portuguesa por “comprar europeu” também aconteceu com os helicópterospatrulha, onde mais uma vez foram preteridos os americanos em favor dos europeus, estes sem contratos de manutenção. Num outro telegrama, o embaixador fala num país de "generais sentados", afirmando que o Ministério da Defesa não é capaz de tomar decisões e que "os militares têm uma cultura de status quo, em que as posiçõeschave são ocupadas por carreiristas que evitam entrar em controvérsias". E Stephenson afirma que Portugal tem mais almirantes e generais por soldado do que quase todas as outras forças armadas. Das pressões sobre diplomatas e políticos portugueses (incluindo Cavaco Silva), a propósito do Kosovo, falam os telegramas do embaixador Alfred Hoffman, em Outubro de 2007, e de Thomas Stephenson, em 2008. Aqui, também ressalta das várias centenas de telegramas enviados de Lisboa nos últimos quatro anos que mais de 80 pessoas colocadas em posições-chave no aparelho de estado português eram utilizadas pelos diplomatas americanos como informadores ou elementos de pressão a favor dos EUA. Concluindo. Daquilo que afirmam os embaixadores americanos nos seus telegramas, pode deduzir-se como eles dispõem facilmente de ampla informação do interior das Forças Armadas e das polícias e da diplomacia (Luís Amado é um grande amigo dos EUA), assim como de vários outros sectores da vida económica e política portuguesa. Para além dos fortes indícios de que a CIA faz escutas em Portugal, os agentes americanos têm tido aqui não apenas boas possibilidades de informação mas também de infiltração/intervenção a favor dos interesses americanos, contando, inclusive, com a colaboração dos Serviços de Informação de Lisboa. Esta é uma situação repugnante, que temos de condenar firmemente. Por outro lado, as razões das diversas críticas que temos feito às compras militares levadas a cabo pelos diversos governos da burguesia, aos generais e almirantes portugueses, assim como a outro pessoal do aparelho de estado, não se confundem com as do embaixador americano. Por estarmos radicalmente contra as guerras e a ordem económica, política e social do capitalismo, por considerarmos que grande parte dos dinheiros actualmente gastos com o armamento e a tropa deve ser transferida para a saúde, a segurança social, a educação e a luta contra a fome. Pedro Goulart Pobreza, um retrato Há dois milhões de pobres em Portugal e, com as chamadas medidas de austeridade, a situação agrava-se. Segundo a Assistência Médica Internacional (AMI), 2010 foi o "pior ano em termos de pobreza em Portugal", com os pedidos de apoio a aumentarem 24% face a 2009. Apenas aos espaços da AMI, em 2010, recorreram mais de 12 300 pessoas, um "valor sem precedentes". A maioria das pessoas (69%) está em idade activa, enquanto 23% tem menos de 16 anos e 18 por cento tem mais de 65 anos. Haja esperança! Arrancou em Lisboa, Entroncamento e Feira um “projecto-piloto” de distribuição de refeições a pessoas com “dificuldades económicas”, isto é, fome. Promovida pela Associação da hotelaria e restauração, a iniciativa já garante 230 (!) refeições por dia, 5 (!) por cada restaurante aderente. Dos mais de 2 milhões de pobres do país, 230 já têm, pois, comidinha garantida – e de restaurante. A coisa tem o patrocínio do presidente da República e conta com uma comissão de honra que ambiciona levar o exemplo a outros países! É assim: primeiro, despedimentos e corte de apoios sociais; depois, entram as almas condoídas com a sua caridade. Para ver se evitam o que mais temem: a revolta dos pobres. Os vampiros Vêm em bandos sem pés de veludo. São os dirigentes do FMI, da OCDE, da UE, do BCE, dos partidos do patronato, a maioria dos analistas dos média que nos listam os itens ditos necessários para “sair da crise”: tábua-rasa das leis laborais, redução de salários e pensões, despedimentos mais baratos, menos subsídio de desemprego, entrega da saúde e da educação aos privados, subida dos impostos... Não podemos franquear-lhes as portas à chegada. Com os meios necessários, há que correr com todos eles! IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 9 Solidariedade activa com os povos árabes Excertos da intervenção de Eduardo Maia Costa Um vendaval percorre o mundo árabe. Uma imensa onda genuinamente popular invade as ruas, exigindo o fim de regimes políticos repressivos e caducos, ou, no mínimo, mudanças profundas no sistema político. Uma tão vasta e pertinaz luta de massas, enfrentando dias e dias seguidos a repressão impiedosa e sangrenta da polícia, traduz necessariamente um generalizado sentimento popular de revolta, que ultrapassou já a fronteira do medo, revelando um agravamento tal das condições de vida, económicas, sociais e políticas, que a única saída é a expressão frontal dessa revolta, mesmo com o preço do sangue, ou da vida. U ma tal revolta tem realmente características novas no mundo árabe, que vale a pena analisar. Desde logo, o protesto assume a forma de movimento de massas, traduzido em manifestações de rua, sem recurso à violência, enfrentando corajosamente a polícia, a repressão. É um movimento inorgânico e espontâneo, no sentido de que não responde a convocatórias de forças políticas, religiosas ou sindicais, ou claramente as excede, pela amplitude da participação de vastíssimos sectores da população. Tem objectivos puramente políticos (derrube ou modificação do regime político), e não religiosos, muito menos xenófobos. Nas manifestações participam estratos muito diversos da população, unidos no objectivo comum de lutarem pela mudança política, ou mesmo pelo derrubamento do regime. Por último, importa salientar a presença permanente e activa de mulheres nas ruas, ao lado dos homens, e também a presença de famílias inteiras confirmando esse sentimento de unidade popular. Ponto de viragem? Toda esta movimentação revela uma alteração radical da resistência popular nos países árabes. Por um lado, na forma: manifestações pacíficas de massas, enfrentando a polícia, e não acções armadas, ou simplesmente bombistas, praticadas por grupos clandestinos. No conteúdo: luta puramente política, laica, por objectivos políticos e sociais, sem motivação ou expressão religiosas, sem hostilização de quaisquer religiões. É uma verdadeira revolução na história da resistência popular no mundo árabe que abre perspectivas novas de libertação, quer das classes dominantes internas, quer da tutela ou do domínio estrangeiros. É ainda difícil prever o desenlace final, pelo menos a nível global, desta gigantesca onda popular, mas ninguém duvidará de que pode vir a constituir-se como um ponto de viragem na história do povo árabe, um movimento de libertação só comparável com o fim da dominação colonial otomana, francesa e inglesa. O caso da Líbia Uma referência especial merece a Líbia. Os protestos assumiram neste país características especiais. Ao contrário do que aconteceu em todos os outros países árabes, o movimento de protesto foi sobretudo regional (Cirenaica) e rapidamente assumiu a natureza de movimento armado, que ocupou militarmente a região oriental, constituindo em poucas semanas um “contra-exército”, que imediatamente investiu (sob o pendão da monarquia…) contra o exército oficial, num cenário de guerra civil, procurando o derrube do regime pela força das armas. Também ao contrário do que aconteceu com outros países, nomeadamente com a Tunísia ou com o Egipto, na Líbia, a “preocupação” com a sorte dos “civis” foi levada ao Conselho de Segurança da ONU pelas potências do Ocidente. Após uma primeira resolução de “aviso”, o CS aprovou a resolução 1973, que permitiu a adopção das “medidas necessárias” para a “protecção de civis e zonas povoadas que estejam sob ameaça do exército líbio”, assim como o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, também apenas para “protecção dos civis”, excluindo expressamente a ocupação militar do território. O pretexto humanitário A autorização estava dada para a intervenção militar das potências ocidentais mais belicosas, destacando-se a França e a Inglaterra, que não escondem a pretensão de derrubar o regime de Khadafi, o que é confirmado pelas operações militares desenvolvidas, que se destinam a enfraquecer o exército oficial e a facilitar a progressão do exército rebelde, e de modo nenhum a “proteger civis”, o que viola frontalmente a Resolução. Sabemos bem que o pretexto humanitário tem constituído o título invocado para as intervenções militares do Ocidente (quando não pode alegar legítima defesa, ou defesa contra o terrorismo), que mais não visam do que salvaguardar os seus próprios interesses. As imensas riquezas naturais da Líbia, subtraídas pelas nacionalizações ao domínio das grandes companhias ocidentais, estão sob a mira gulosa delas e dos governos que as protegem e promovem. A satisfação dessa gula, por meio da instalação de um regime dócil e colaborante na Líbia, será, não tenhamos dúvidas, o grande objectivo “humanitário” das potências intervenientes, com a passividade do CS da ONU. A instalação de um regime “amigo” do Ocidente na Líbia não deixaria aliás de condicionar a evolução política nos demais países da região. Esta situação é inaceitável. A intervenção militar, nos moldes em que se vem desenrolando, é ilegítima e constitui uma intromissão ilícita nos destinos da Líbia. O destino do regime líbio deverá caber, como sucedeu nos outros países árabes, ao próprio povo, sem intromissão estrangeira. Solidariedade Neste momento crucial da sua história, os povos árabes merecem a solidariedade activa de todos os cidadãos e movimentos progressistas do mundo. Como vimos, a ambiguidade foi a característica principal das reacções das potências ocidentais. Uma ambiguidade “estratégica” entre a demagogia da ideologia da liberdade que apregoam (e não praticam fora dos seus limites territoriais) e a necessidade de não perder posições no “terreno”, quer os seus amigos árabes percam quer ganhem a batalha. Esta hipocrisia, que caracteriza sempre a actuação dos impérios, deve ser desmascarada. Os governos que nos representam devem assumir frontalmente uma atitude de condenação da repressão popular e de apoio aos legítimos anseios populares. Devemos recusar e condenar toda e qualquer intervenção militar, ainda que sob a capa humanitária, ainda que coberta por uma decisão da ONU. Não é a “credencial formal” que esta confere que modifica a natureza da intervenção. A “protecção de civis” é hoje uma máscara (uma das máscaras) que o intervencionismo imperialista assume. MV Mudar de Vida . Março-Abril 2011 IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 8 A situação no Iraque não pode ser esquecida Excertos da Decisão Final da 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque A Decisão dos jurados constata que, oito anos depois da invasão, está por criar o regime democrático prometido pelos invasores, que as instituições criadas e mantidas à sombra da ocupação não representam o povo iraquiano e que se assiste a uma grave regressão nos direitos das pessoas. A responsabilidade de tal situação é da Autoridade Provisória da Coligação. Os órgãos do Estado mostram-se inaptos para defender os interesses do povo iraquiano e tornam-se instrumentos de violência sobre a população, especialmente as mulheres e as crianças, vítimas de todos os abusos. A continuada utilização, pelos ocupantes, de armas químicas e radioactivas, cujas horríveis consequências se vão prolongar por várias gerações, configura um crime contra a humanidade. Reiterando as decisões das anteriores audiências (2005 e 2008), nomeadamente de condenar a invasão e a ocupação do Iraque, bem como o apoio dos governos de Portugal aos agressores, a Decisão reafirma o direito do povo iraquiano à resistência, sob todas as formas, e apoia a constituição de um parlamento, de um governo e de um sistema judiciário efectivamente representativos, como foi reclamado nas manifestações recentes por todo o Iraque, que respondam às exigências prementes da população. A Decisão lembra ao Governo português a sua incumbência de desenvolver todos os esforços políticos e diplomáticos para que sejam respeitados os direitos básicos da população do Iraque e assegurado condigno acolhimento dos refugiados/as iraquianos/as. E aponta a responsabilidade dos organismos das Nações Unidas, especialmente os dedicados às questões das mulheres e crianças, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, de adoptarem medidas que defendam as crianças, as mulheres e os refugiados iraquianos, dentro e fora do país. Por fim, a Decisão apela à Comunicação Social que não esqueça a situação no Iraque, nomeadamente os graves crimes cometidos contra mulheres e crianças; e exorta as organizações portuguesas (partidárias, sindicais, cívicas, de defesa dos direitos humanos, designadamente as organizações de mulheres) a denunciarem a intolerável situação em que vive a população iraquiana, as suas mulheres e as suas crianças e a solidarizarem-se por todos os meios possíveis com o povo iraquiano que luta por reverter o desastre em que o Iraque está mergulhado. Os Jurados Alípio de Freitas (professor), Ana Benavente (professora, investigadora, ex-SE Educação e ex-deputada do PS), Diana Andringa (jornalista), Eduarda Dionísio (professora), Fernanda Mestrinho (jurista, jornalista, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), Helena Carrilho (advogada, CGTP), Isabel do Carmo (médica), Isabel Lourenço (tradutora), João Loff Barreto (advogado), Jorge Figueiredo (economista), José Charters Monteiro (arquitecto), José Gonçalves da Costa (juiz-conselheiro jubilado do STJ), Judite Almeida (professora, Sindicato Professores Norte), Luanda Cozetti (cantora), Margarida Vieira (funcionária pública, Associação Abril), Natacha Amaro (MDM), Paula Santos (deputada do PCP), Regina Marques (MDM), Sandra Silvestre (activista do BE, dirigente da Acção para a Justiça e Paz), Susana Sousa Dias (cineasta). Depoimento de Haifa Zangana << cont. da pág. anterior origem na água são as que mais crianças matam. Contaminação radioactiva Narmin Othman, o ministro iraquiano do Ambiente, reconhece que 350 locais do Iraque estão contaminados em resultado dos bombardeamentos da guerra e que 140 mil iraquianos contraíram cancro em consequência de exposição ao Urânio Empobrecido (DU). No entanto, nenhuma acção foi até agora promovida para neutralizar ou limpar esse locais. O DU é uma arma que provoca cancros e que origina malformações de nascença muito depois da data de impacto – e é, por isso mesmo, uma arma ilegal. Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Reportagens de TV emitidas em Maio de 2008 sobre as deformações de nascença verificadas na cidade de Faluja, na sequência da devastação da cidade em Novembro de 2004, mostraram que bebés deformados nascem à razão de 4 a 5 por semana. Silêncio é cumplicidade Os iraquianos sofrem presentemente os efeitos de um regime brutal, degradante e ameaçador para as suas vidas, instalado e patrocinado pelos EUA. A paz não é concebível no Iraque sem a total retirada das tropas estrangeiras, sem o fim de todos os planos de permanência de tropas e sem que acabe a interferência na indústria do petróleo nacional. Nada disto pode ser alcançado sem a contínua solidariedade e sem o apoio do movimento internacional contra a guerra aos movimentos iraquianos. Incluindo o Tribunal português sobre o Iraque que tem sido activo no apontar da responsabilidade do governo português na preparação da invasão e tem denunciado o seu silêncio a respeito dos crimes que são a ocupação de um país e a violação dos direitos humanos. Acreditamos que, para construir uma relação durável entre os povos iraquiano e português, temos de nos basear na igualdade, na justiça e no reconhecimento do direito à resistência por parte de um povo submetido a ocupação. O silêncio, tanto dos governos como dos indivíduos, é cumplicidade. Derrubar os muros do silêncio é um acto de solidariedade. É uma responsabilidade moral. MV PAÍS Sem medos Depois das grandes manifestações de 12 e 19 de Março, em que centenas de milhares de trabalhadores, desempregados e jovens exprimiram o seu descontentamento e apresentaram as suas reivindicações, a luta tem prosseguido nas ruas e nas empresas. Embora em menos locais e com menos força do que seria necessário para barrar a ofensiva do capital. Em Março e Abril, milhares de trabalhadores lutaram contra os cortes de salários, a supressão de direitos no trabalho, a intenção de alguma empresas avançarem com as privatizações, assim como a defesa das liberdades. E em 6 de Maio estarão em greve os trabalhadores da Função Pública. Como habitualmente, realizam-se em 25 de Abril e em 1 de Maio diversas sessões públicas e manifestações de rua. Tanto numa como noutra data, é de superar as perspectivas saudosistas ou meramente evocativas, procurando integrar as comemorações nas lutas que é necessário desenvolver face à grave situação das classes trabalhadoras. Em declarações recentes, o secretário-geral da CGTP, afirmou que "o tempo não é de medos, nem de silêncios. O tempo tem de ser de protesto, de acção, de resposta". E acrescentou: “Sem qualquer hesitação, a CGTP apela à mobilização de todos trabalhadores e tudo faremos para rejeitar as receitas da FMI e UE. Não pode haver qualquer hesitação, é preciso rechaçar estas medidas”. Perfeito. Em todo o caso, Carvalho da Silva não deixou de balizar esta mobilização pelo calendário eleitoral dizendo que até 5 de Junho decorre “um período de intervenção política, para introduzirmos o conteúdo social na agenda política". De acordo que seja “introduzido conteúdo social na agenda política”. Mas aquilo de que os trabalhadores menos precisam é que a sua luta de classe seja colocada a reboque das eleições! 5 A crise política do regime Sem varrer PS, PSD e CDS da área do poder não há melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras Depois de numerosas cenas de colaboração (no Orçamento, nos PECs, etc.), chantagem, zanga e disputa dos dois maiores partidos do regime – PS e PSD – a crise política estalou. Com a recusa na AR (embora por motivos diferentes) do PEC 4 de Sócrates/UE/FMI, o primeiro-ministro demitiu-se, conduzindo a eleições legislativas antecipadas. E Passos Coelho parece ter encontrado agora o momento oportuno para “ir ao pote” (ou à gamela?). Perante a situação criada, disse Sócrates: “Às vezes penso como foi possível fazerem isto ao país?” Que farsante! Destes dois actores, infelizmente, os trabalhadores e o País ainda podem ter muito a esperar, no domínio da farsa e da tragédia, em que ambos parecem peritos. O PSD e Passos Coelho (basta ver a corja de capitalistas e banqueiros que o cercam) pretendem, entre outras malfeitorias, terminar as tarefas que o PS e Sócrates encetaram e desenvolveram – a precarização do trabalho e a entrega da Saúde, da Educação e das Empresas Públicas ao capital privado. Foram os três maiores partidos da burguesia – PS, PSD e CDS – que, sozinhos ou coligados nos diversos governos, conduziram o País ao longo de mais de três décadas a um forte estado de dependência económica e política em relação às potências imperialistas e empurraram as classes trabalhadoras para a actual situação de sobre-exploração em que vivem. Iremos, assim, assistir em breve a mais uma demagógica campanha eleitoral, procurando esta gente do regime, outra vez, arrastar uma significativa parte dos trabalhadores e do povo português ao voto nos mesmos três partidos altamente responsáveis pelo actual estado de coisas. Percebe-se que os patrões votem no PS, PSD ou CDS. Também se percebe que o pessoal dos aparelhos destes partidos candidatos a gestores do capital neles votem. Idem, para os seus boys, mercenários e amigos. Pois eles são cúmplices e também defendem os seus próprios interesses. Claro que será importante dificultar o “trabalho” dos partidos do capital e a sua determinação em encontrar um governo maioritário do conjunto PS/PSD/ CDS, disposto a pôr em prática as graves medidas pretendidas pela UE/FMI. Uma fraca votação em cada um destes três partidos (e dos três no seu conjunto) enfraqueceria a estratégia da direita. Embora não correspondendo as eleições parlamentares a um campo fundamental da luta das classes exploradas, não se compreende que os trabalhadores e o povo, que sofrem na carne as consequências desta política do capital ou que hoje têm acesso a um mínimo de informação, possam votar nesta gente que, sistematicamente, os têm enganado. Vivem agarrados à política ilusória e mesquinha do mal menor? Ou querem mesmo voltar a ser enganados? Dada as actuais condições económicas, políticas e sociais em que se encontra o País, e aquilo que as classes dominantes nos prometem nos próximos tempos, os trabalhadores, os precários, os desempregados, os estudantes, os utentes do SNS ou dos transportes públicos… têm motivos fortes para continuar e aprofundar a luta pelos objectivos delineados nas manifestações dos dias 12 e 19 de Março e prosseguidos em diversas greves pontuais. A unidade, a organização, o espírito combativo e criador dos explorados e oprimidos são, desde já, elementos indispensáveis para fazer frente à ofensiva do patronato e às “eleições” em que as classes dominantes procurarão impor-se aos trabalhadores e ao povo. Não é momento de parar o combate. Pedro Goulart Mudar de Vida . Março-Abril 2011 IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 6 7 Realizou-se em Lisboa, em 26 de Março, na sede da Associação Abril, a 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque. Evocando os 8 anos da invasão, a sessão foi dedicada à situação actual das mulheres e das crianças no Iraque e contou com o depoimento presencial de Haifa Zangana. Um grupo de 20 jurados aprovou no final da audiência uma declaração. Interveio ainda na sessão Eduardo Maia Costa, magistrado, que analisou a actual revolta popular no mundo árabe. No dia 28, Haifa Zangana deslocou-se ao Porto onde teve lugar uma sessão pública promovida por activistas do Tribunal-Iraque e Movimento da Paz. Damos conta nestas páginas e nas seguintes das intervenções da sessão de Lisboa. Haifa Zangana A situação das mulheres e das crianças no Iraque ocupado Excertos do depoimento de Haifa Zangana na 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque “N Num passado ainda recente, as mulheres iraquianas eram das mais emancipadas da região, com um elevado nível de educação e presentes em todas as esferas da vida profissional. Hoje, estão empurradas para um canto, apertadas entre o esforço de sobreviver à destruição provocada pela guerra e as políticas feudais e sectárias (em nome da religião) promovidas pela classe política instalada no poder desde 2003. Casamento “a termo” Temos um fenómeno novo no Iraque chamado Mut’ah, o casamento temporário, que significa que um homem se casa com uma mulher na presença de uma figura religiosa e especifica por quanto tempo vai durar o casamento, podendo ir desde algumas horas até muitos anos. É um contrato a termo, onde um homem paga a uma mulher um pequeno dote (mehr). Tais casamentos não têm nenhuma protecção ou garantias para as mulheres e/ou para os seus descendentes. A maioria das mulheres que aceitam casamentos temporários fazem-no apenas por necessidades materiais. Esta prática é vista por muitos como uma forma de prostituição religiosa. Poligamia Outro fenómeno que não é a norma no Iraque é a poligamia. No entanto, foi agora promovida por alguns funcionários e políticos. Em Anbar, uma província que testemunhou duros combates entre as forças de resistência e de ocupação, por exemplo, o partido islâmico e algumas autoridades estão a oferecer dinheiro a homens dispostos a ter mais do que uma esposa como forma de resolver o problema do crescente número de mulheres viúvas e solteiras. A instituição da poligamia tem sido vista por muitas mulheres e organizações de defesa dos direitos humanos como uma manobra política para encobrir a situação das mulheres mais vulneráveis no Iraque. Mudar de Vida . Março-Abril 2011 As primeiras vítimas Em qualquer situação de conflito, as primeiras vítimas são as mulheres e as crianças. As forças de defesa e de segurança iraquianas violam sistematicamente o direito internacional humanitário sempre que impõem actos de punição colectiva ao levarem a cabo “operações de segurança”. As forças dos EUA e iraquianas instalam “um anel de aço” em torno de cidades e aldeias inteiras, não deixando entrar suprimentos médicos e ajuda humanitária, cortando a electricidade e a água e não permitindo a deslocação de ambulâncias. Tal situação foi relatada na CNN, referindo zonas de Baquba em Julho de 2007. Áreas densamente povoadas são então submetidas a um bombardeio pesado e implacável, como no caso de Arab Jebour, onde 50 toneladas de explosivos foram lançados sobre a povoação durante 10 dias, em Janeiro 2008, destruindo bairros por completo e exterminando famílias inteiras. Os habitantes locais tiveram então que desenterrar os corpos dos escombros com as próprias mãos. Não foi feito qualquer inquérito sobre tais acontecimentos pelo governo iraquiano. As famílias queixam-se muitas vezes de que lhes são, por rotina, roubadas jóias, objectos de valor, dinheiro, documentos de identidade durante ataques daquele tipo. Tais violações dos direitos humanos são geralmente perpetradas por raides das forças iraquianas, muitas vezes sob a supervisão ou protecção das forças de ocupação dos EUA. Represálias e chantagens Muitas organizações iraquianas de direitos humanos assinalam a prática de detenções e prisões de mulheres in lieu, isto é, no lugar dos seus homens, identificados como suspeitos. Uma medida de punição colectiva é, assim, imposta a famílias inteiras, só porque um membro está sob suspeita. Isto, segundo o direito internacional, é um crime de guerra. Nos 12 meses que antecederam as eleições provinciais de Janeiro de 2009, houve uma campanha organizada de detenções arbitrárias. As detenções não excluíam as crianças que, tal como os seus familiares adultos, foram submetidas a torturas horríveis e viram negados os seus direitos legais. As mulheres (mães, esposas ou irmãs dos presos) que se dirigem às esquadras de polícia ou aos centros de detenção para perguntar pelos seus familiares são humilhadas através de sugestões de prestação favores sexuais, ou do pagamento de resgates que podem ir de 2 mil a 20 mil dólares norte-americanos em troca da liberdade dos familiares ou da redução dos maus tratos que eles sofrem na prisão. Detenção de crianças Um relatório da UNICEF datado de Abril 2008 indicou que 1 500 crianças estavam sob custódia das forças oficiais iraquianas e dos EUA. Em alguns casos, as crianças são mantidas presas no mesmo espaço dos adultos, expondo-as a mais riscos de agressão e abuso. Relatórios dos meios de comunicação sobre a prisão para crianças de Al Karkh revelam uma longa lista de maus tratos, abusos e violações. Morte de civis Frequentemente, os ocupantes culpam os “insurgentes” da morte de civis, especialmente mulheres e crianças. Contudo, um estudo recente feito por investigadores britânicos e suíços, usando dados fornecidos pelo grupo de direitos humanos Iraq Body Count, analisou as mortes de civis no Iraque desde Março de 2003 a Março de 2008 e descobriu que a maior parte das mortes de mulheres e de crianças, entre os civis mortos por certos tipos de armas, foi provocada pelas “forças da coligação”, em particular por ataques aéreos das forças de ocupação. Ruptura do sistema de Educação “Cerca de dois milhões de crianças iraquianas enfrentam ameaças diárias de má nutrição, doença e falta de escola”, de acordo com a UNICEF. 92% das crianças iraquianas são alvo de obstruções à aprendizagem devidas à violência e à instabilidade criadas no Iraque, de acordo com a Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief). Em 2006/7 crianças de Bagdad e dos arredores tinham de passar sobre cadáveres no caminho para a escola. Viram esses corpos serem comidos por cães vadios. Recolheres obrigatórios repentinos e explosões de violência também afectam as crianças e interrompem a sua educação. Têm de viver passando de um trauma para outro. Muitas crianças têm de suportar o abandono da casa, a separação dos seus amigos e do meio que lhes é familiar para enfrentarem um futuro incerto como ‘refugiados’ sem rendimentos ou apoio. Bombardeamentos aéreos pelas forças de ocupação causaram danos estruturais profundos a escolas situadas em áreas onde ocorrem operações militares. Todos estes factores significam que o sistema de educação, já de si à beira do abismo, sofreu ainda mais rupturas. Trabalho, em vez de escola Números do governo iraquiano dizem que o Iraque tem hoje 5 milhões de órfãos. 43% dos iraquianos vivem numa pobreza abjecta. As crianças são nestes casos postas a trabalhar em vez de irem à escola, outras tornam-se pedintes nos locais públicos e nos mercados. Estas crianças trabalham longas horas e não têm nenhuma protecção contra a exploração e os abusos. Nenhuma protecção contra a exposição a doenças sociais como a prostituição infantil e o uso de drogas. Este problema particular é especialmente agudo para as crianças ‘refugiadas’ nos países vizinhos do Iraque. Iliteracia crescente Há um crescimento importante da iliteracia entre as mulheres, a qual se situava em apenas 5% no final dos anos setenta do século passado. Existe um número crescente, nunca antes atingido, de raparigas que são retiradas da escola por falta de segurança ou por incapacidade das famílias em fazer face às despesas de escolarização. Presentemente, temos nas áreas urbanas uma geração de raparigas que são menos instruídas que as suas mães e avós. Saúde em estado catastrófico Os relatórios humanitários descrevem o estado do sistema de Saúde no Iraque como “catastrófico”. O Governo iraquiano não tratou de manter os hospitais como zonas neutrais e seguras para a população ferida e doente. Não protegeu os profissionais da Saúde: 75% deles deixaram os seus postos de trabalho e muitos abandonaram o país. Os hospitais foram alvos de bombardeamentos aéreos ou foram deliberadamente danificados. Relatos da comunicação social sobre campanhas militares conduzidas por forças dos EUA e iraquianas evidenciaram um ostensivo desprezo pelos direitos humanos e pelas leis humanitárias internacionais. O acesso a água potável e a saneamento adequado piora de ano para ano. Presentemente, 70% dos iraquianos não têm acesso adequado a água potável e 80% não dispõem de condições sanitárias adequadas (Oxfam). Por isso, a diarreia e as doenças com Haifa Zangana (nascida em 1950 em Bagdad) é uma escritora, artista e activista política iraquiana. Cresceu em Bagdad e licenciou-se em 1974 na faculdade de Farmácia da Universidade de Bagdad. No início da década de 1970, enquanto membro do Partido Comunista Iraquiano, foi presa pelo regime do Partido Baas. Depois de libertada permaneceu no Iraque e terminou os estudos. Integrou-se na Organização de Libertação da Palestina, tendo sido responsável pela equipa farmacêutica, deslocando-se então entre a Síria e o Líbano em 1975. Foi para o Reino Unido em 1976. Como escritora e como pintora, colaborou, nos anos 1980, em várias publicações europeias e norte-americanas e participou em exposições colectivas e individuais em Londres e na Islândia. Desde 1991 publicou vários livros, o último dos quais City of Widows, An Iraqi Woman's Account of War and Resistance (2008, Seven Stories Press NY). Colabora regularmente em publicações europeias e árabes como The Guardian, Red Pepper, Al Ahram e Al Quds (onde publica comentários semanais). É membro fundador da Associação Internacional de Estudos Iraquianos Contemporâneos. Faz parte do conselho consultivo do Tribunal de Bruxelas sobre o Iraque. Integra a organização Women Solidarity for an Independent and Unified Iraq. Em nome desta organização e da Iraq Occupation Focus, apresentou, em Setembro de 2009, perante o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, o documento A report on the situation of women and children in occupied Iraq. Uma verão actualizada deste texto constitui o depoimento que prestou na 3.ª Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque. cont. pág. seguinte >> Mudar de Vida . Março-Abril 2011 IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 6 7 Realizou-se em Lisboa, em 26 de Março, na sede da Associação Abril, a 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque. Evocando os 8 anos da invasão, a sessão foi dedicada à situação actual das mulheres e das crianças no Iraque e contou com o depoimento presencial de Haifa Zangana. Um grupo de 20 jurados aprovou no final da audiência uma declaração. Interveio ainda na sessão Eduardo Maia Costa, magistrado, que analisou a actual revolta popular no mundo árabe. No dia 28, Haifa Zangana deslocou-se ao Porto onde teve lugar uma sessão pública promovida por activistas do Tribunal-Iraque e Movimento da Paz. Damos conta nestas páginas e nas seguintes das intervenções da sessão de Lisboa. Haifa Zangana A situação das mulheres e das crianças no Iraque ocupado Excertos do depoimento de Haifa Zangana na 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque “N Num passado ainda recente, as mulheres iraquianas eram das mais emancipadas da região, com um elevado nível de educação e presentes em todas as esferas da vida profissional. Hoje, estão empurradas para um canto, apertadas entre o esforço de sobreviver à destruição provocada pela guerra e as políticas feudais e sectárias (em nome da religião) promovidas pela classe política instalada no poder desde 2003. Casamento “a termo” Temos um fenómeno novo no Iraque chamado Mut’ah, o casamento temporário, que significa que um homem se casa com uma mulher na presença de uma figura religiosa e especifica por quanto tempo vai durar o casamento, podendo ir desde algumas horas até muitos anos. É um contrato a termo, onde um homem paga a uma mulher um pequeno dote (mehr). Tais casamentos não têm nenhuma protecção ou garantias para as mulheres e/ou para os seus descendentes. A maioria das mulheres que aceitam casamentos temporários fazem-no apenas por necessidades materiais. Esta prática é vista por muitos como uma forma de prostituição religiosa. Poligamia Outro fenómeno que não é a norma no Iraque é a poligamia. No entanto, foi agora promovida por alguns funcionários e políticos. Em Anbar, uma província que testemunhou duros combates entre as forças de resistência e de ocupação, por exemplo, o partido islâmico e algumas autoridades estão a oferecer dinheiro a homens dispostos a ter mais do que uma esposa como forma de resolver o problema do crescente número de mulheres viúvas e solteiras. A instituição da poligamia tem sido vista por muitas mulheres e organizações de defesa dos direitos humanos como uma manobra política para encobrir a situação das mulheres mais vulneráveis no Iraque. Mudar de Vida . Março-Abril 2011 As primeiras vítimas Em qualquer situação de conflito, as primeiras vítimas são as mulheres e as crianças. As forças de defesa e de segurança iraquianas violam sistematicamente o direito internacional humanitário sempre que impõem actos de punição colectiva ao levarem a cabo “operações de segurança”. As forças dos EUA e iraquianas instalam “um anel de aço” em torno de cidades e aldeias inteiras, não deixando entrar suprimentos médicos e ajuda humanitária, cortando a electricidade e a água e não permitindo a deslocação de ambulâncias. Tal situação foi relatada na CNN, referindo zonas de Baquba em Julho de 2007. Áreas densamente povoadas são então submetidas a um bombardeio pesado e implacável, como no caso de Arab Jebour, onde 50 toneladas de explosivos foram lançados sobre a povoação durante 10 dias, em Janeiro 2008, destruindo bairros por completo e exterminando famílias inteiras. Os habitantes locais tiveram então que desenterrar os corpos dos escombros com as próprias mãos. Não foi feito qualquer inquérito sobre tais acontecimentos pelo governo iraquiano. As famílias queixam-se muitas vezes de que lhes são, por rotina, roubadas jóias, objectos de valor, dinheiro, documentos de identidade durante ataques daquele tipo. Tais violações dos direitos humanos são geralmente perpetradas por raides das forças iraquianas, muitas vezes sob a supervisão ou protecção das forças de ocupação dos EUA. Represálias e chantagens Muitas organizações iraquianas de direitos humanos assinalam a prática de detenções e prisões de mulheres in lieu, isto é, no lugar dos seus homens, identificados como suspeitos. Uma medida de punição colectiva é, assim, imposta a famílias inteiras, só porque um membro está sob suspeita. Isto, segundo o direito internacional, é um crime de guerra. Nos 12 meses que antecederam as eleições provinciais de Janeiro de 2009, houve uma campanha organizada de detenções arbitrárias. As detenções não excluíam as crianças que, tal como os seus familiares adultos, foram submetidas a torturas horríveis e viram negados os seus direitos legais. As mulheres (mães, esposas ou irmãs dos presos) que se dirigem às esquadras de polícia ou aos centros de detenção para perguntar pelos seus familiares são humilhadas através de sugestões de prestação favores sexuais, ou do pagamento de resgates que podem ir de 2 mil a 20 mil dólares norte-americanos em troca da liberdade dos familiares ou da redução dos maus tratos que eles sofrem na prisão. Detenção de crianças Um relatório da UNICEF datado de Abril 2008 indicou que 1 500 crianças estavam sob custódia das forças oficiais iraquianas e dos EUA. Em alguns casos, as crianças são mantidas presas no mesmo espaço dos adultos, expondo-as a mais riscos de agressão e abuso. Relatórios dos meios de comunicação sobre a prisão para crianças de Al Karkh revelam uma longa lista de maus tratos, abusos e violações. Morte de civis Frequentemente, os ocupantes culpam os “insurgentes” da morte de civis, especialmente mulheres e crianças. Contudo, um estudo recente feito por investigadores britânicos e suíços, usando dados fornecidos pelo grupo de direitos humanos Iraq Body Count, analisou as mortes de civis no Iraque desde Março de 2003 a Março de 2008 e descobriu que a maior parte das mortes de mulheres e de crianças, entre os civis mortos por certos tipos de armas, foi provocada pelas “forças da coligação”, em particular por ataques aéreos das forças de ocupação. Ruptura do sistema de Educação “Cerca de dois milhões de crianças iraquianas enfrentam ameaças diárias de má nutrição, doença e falta de escola”, de acordo com a UNICEF. 92% das crianças iraquianas são alvo de obstruções à aprendizagem devidas à violência e à instabilidade criadas no Iraque, de acordo com a Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief). Em 2006/7 crianças de Bagdad e dos arredores tinham de passar sobre cadáveres no caminho para a escola. Viram esses corpos serem comidos por cães vadios. Recolheres obrigatórios repentinos e explosões de violência também afectam as crianças e interrompem a sua educação. Têm de viver passando de um trauma para outro. Muitas crianças têm de suportar o abandono da casa, a separação dos seus amigos e do meio que lhes é familiar para enfrentarem um futuro incerto como ‘refugiados’ sem rendimentos ou apoio. Bombardeamentos aéreos pelas forças de ocupação causaram danos estruturais profundos a escolas situadas em áreas onde ocorrem operações militares. Todos estes factores significam que o sistema de educação, já de si à beira do abismo, sofreu ainda mais rupturas. Trabalho, em vez de escola Números do governo iraquiano dizem que o Iraque tem hoje 5 milhões de órfãos. 43% dos iraquianos vivem numa pobreza abjecta. As crianças são nestes casos postas a trabalhar em vez de irem à escola, outras tornam-se pedintes nos locais públicos e nos mercados. Estas crianças trabalham longas horas e não têm nenhuma protecção contra a exploração e os abusos. Nenhuma protecção contra a exposição a doenças sociais como a prostituição infantil e o uso de drogas. Este problema particular é especialmente agudo para as crianças ‘refugiadas’ nos países vizinhos do Iraque. Iliteracia crescente Há um crescimento importante da iliteracia entre as mulheres, a qual se situava em apenas 5% no final dos anos setenta do século passado. Existe um número crescente, nunca antes atingido, de raparigas que são retiradas da escola por falta de segurança ou por incapacidade das famílias em fazer face às despesas de escolarização. Presentemente, temos nas áreas urbanas uma geração de raparigas que são menos instruídas que as suas mães e avós. Saúde em estado catastrófico Os relatórios humanitários descrevem o estado do sistema de Saúde no Iraque como “catastrófico”. O Governo iraquiano não tratou de manter os hospitais como zonas neutrais e seguras para a população ferida e doente. Não protegeu os profissionais da Saúde: 75% deles deixaram os seus postos de trabalho e muitos abandonaram o país. Os hospitais foram alvos de bombardeamentos aéreos ou foram deliberadamente danificados. Relatos da comunicação social sobre campanhas militares conduzidas por forças dos EUA e iraquianas evidenciaram um ostensivo desprezo pelos direitos humanos e pelas leis humanitárias internacionais. O acesso a água potável e a saneamento adequado piora de ano para ano. Presentemente, 70% dos iraquianos não têm acesso adequado a água potável e 80% não dispõem de condições sanitárias adequadas (Oxfam). Por isso, a diarreia e as doenças com Haifa Zangana (nascida em 1950 em Bagdad) é uma escritora, artista e activista política iraquiana. Cresceu em Bagdad e licenciou-se em 1974 na faculdade de Farmácia da Universidade de Bagdad. No início da década de 1970, enquanto membro do Partido Comunista Iraquiano, foi presa pelo regime do Partido Baas. Depois de libertada permaneceu no Iraque e terminou os estudos. Integrou-se na Organização de Libertação da Palestina, tendo sido responsável pela equipa farmacêutica, deslocando-se então entre a Síria e o Líbano em 1975. Foi para o Reino Unido em 1976. Como escritora e como pintora, colaborou, nos anos 1980, em várias publicações europeias e norte-americanas e participou em exposições colectivas e individuais em Londres e na Islândia. Desde 1991 publicou vários livros, o último dos quais City of Widows, An Iraqi Woman's Account of War and Resistance (2008, Seven Stories Press NY). Colabora regularmente em publicações europeias e árabes como The Guardian, Red Pepper, Al Ahram e Al Quds (onde publica comentários semanais). É membro fundador da Associação Internacional de Estudos Iraquianos Contemporâneos. Faz parte do conselho consultivo do Tribunal de Bruxelas sobre o Iraque. Integra a organização Women Solidarity for an Independent and Unified Iraq. Em nome desta organização e da Iraq Occupation Focus, apresentou, em Setembro de 2009, perante o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, o documento A report on the situation of women and children in occupied Iraq. Uma verão actualizada deste texto constitui o depoimento que prestou na 3.ª Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque. cont. pág. seguinte >> Mudar de Vida . Março-Abril 2011 IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 8 A situação no Iraque não pode ser esquecida Excertos da Decisão Final da 3.ª sessão da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque A Decisão dos jurados constata que, oito anos depois da invasão, está por criar o regime democrático prometido pelos invasores, que as instituições criadas e mantidas à sombra da ocupação não representam o povo iraquiano e que se assiste a uma grave regressão nos direitos das pessoas. A responsabilidade de tal situação é da Autoridade Provisória da Coligação. Os órgãos do Estado mostram-se inaptos para defender os interesses do povo iraquiano e tornam-se instrumentos de violência sobre a população, especialmente as mulheres e as crianças, vítimas de todos os abusos. A continuada utilização, pelos ocupantes, de armas químicas e radioactivas, cujas horríveis consequências se vão prolongar por várias gerações, configura um crime contra a humanidade. Reiterando as decisões das anteriores audiências (2005 e 2008), nomeadamente de condenar a invasão e a ocupação do Iraque, bem como o apoio dos governos de Portugal aos agressores, a Decisão reafirma o direito do povo iraquiano à resistência, sob todas as formas, e apoia a constituição de um parlamento, de um governo e de um sistema judiciário efectivamente representativos, como foi reclamado nas manifestações recentes por todo o Iraque, que respondam às exigências prementes da população. A Decisão lembra ao Governo português a sua incumbência de desenvolver todos os esforços políticos e diplomáticos para que sejam respeitados os direitos básicos da população do Iraque e assegurado condigno acolhimento dos refugiados/as iraquianos/as. E aponta a responsabilidade dos organismos das Nações Unidas, especialmente os dedicados às questões das mulheres e crianças, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, de adoptarem medidas que defendam as crianças, as mulheres e os refugiados iraquianos, dentro e fora do país. Por fim, a Decisão apela à Comunicação Social que não esqueça a situação no Iraque, nomeadamente os graves crimes cometidos contra mulheres e crianças; e exorta as organizações portuguesas (partidárias, sindicais, cívicas, de defesa dos direitos humanos, designadamente as organizações de mulheres) a denunciarem a intolerável situação em que vive a população iraquiana, as suas mulheres e as suas crianças e a solidarizarem-se por todos os meios possíveis com o povo iraquiano que luta por reverter o desastre em que o Iraque está mergulhado. Os Jurados Alípio de Freitas (professor), Ana Benavente (professora, investigadora, ex-SE Educação e ex-deputada do PS), Diana Andringa (jornalista), Eduarda Dionísio (professora), Fernanda Mestrinho (jurista, jornalista, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), Helena Carrilho (advogada, CGTP), Isabel do Carmo (médica), Isabel Lourenço (tradutora), João Loff Barreto (advogado), Jorge Figueiredo (economista), José Charters Monteiro (arquitecto), José Gonçalves da Costa (juiz-conselheiro jubilado do STJ), Judite Almeida (professora, Sindicato Professores Norte), Luanda Cozetti (cantora), Margarida Vieira (funcionária pública, Associação Abril), Natacha Amaro (MDM), Paula Santos (deputada do PCP), Regina Marques (MDM), Sandra Silvestre (activista do BE, dirigente da Acção para a Justiça e Paz), Susana Sousa Dias (cineasta). Depoimento de Haifa Zangana << cont. da pág. anterior origem na água são as que mais crianças matam. Contaminação radioactiva Narmin Othman, o ministro iraquiano do Ambiente, reconhece que 350 locais do Iraque estão contaminados em resultado dos bombardeamentos da guerra e que 140 mil iraquianos contraíram cancro em consequência de exposição ao Urânio Empobrecido (DU). No entanto, nenhuma acção foi até agora promovida para neutralizar ou limpar esse locais. O DU é uma arma que provoca cancros e que origina malformações de nascença muito depois da data de impacto – e é, por isso mesmo, uma arma ilegal. Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Reportagens de TV emitidas em Maio de 2008 sobre as deformações de nascença verificadas na cidade de Faluja, na sequência da devastação da cidade em Novembro de 2004, mostraram que bebés deformados nascem à razão de 4 a 5 por semana. Silêncio é cumplicidade Os iraquianos sofrem presentemente os efeitos de um regime brutal, degradante e ameaçador para as suas vidas, instalado e patrocinado pelos EUA. A paz não é concebível no Iraque sem a total retirada das tropas estrangeiras, sem o fim de todos os planos de permanência de tropas e sem que acabe a interferência na indústria do petróleo nacional. Nada disto pode ser alcançado sem a contínua solidariedade e sem o apoio do movimento internacional contra a guerra aos movimentos iraquianos. Incluindo o Tribunal português sobre o Iraque que tem sido activo no apontar da responsabilidade do governo português na preparação da invasão e tem denunciado o seu silêncio a respeito dos crimes que são a ocupação de um país e a violação dos direitos humanos. Acreditamos que, para construir uma relação durável entre os povos iraquiano e português, temos de nos basear na igualdade, na justiça e no reconhecimento do direito à resistência por parte de um povo submetido a ocupação. O silêncio, tanto dos governos como dos indivíduos, é cumplicidade. Derrubar os muros do silêncio é um acto de solidariedade. É uma responsabilidade moral. MV PAÍS Sem medos Depois das grandes manifestações de 12 e 19 de Março, em que centenas de milhares de trabalhadores, desempregados e jovens exprimiram o seu descontentamento e apresentaram as suas reivindicações, a luta tem prosseguido nas ruas e nas empresas. Embora em menos locais e com menos força do que seria necessário para barrar a ofensiva do capital. Em Março e Abril, milhares de trabalhadores lutaram contra os cortes de salários, a supressão de direitos no trabalho, a intenção de alguma empresas avançarem com as privatizações, assim como a defesa das liberdades. E em 6 de Maio estarão em greve os trabalhadores da Função Pública. Como habitualmente, realizam-se em 25 de Abril e em 1 de Maio diversas sessões públicas e manifestações de rua. Tanto numa como noutra data, é de superar as perspectivas saudosistas ou meramente evocativas, procurando integrar as comemorações nas lutas que é necessário desenvolver face à grave situação das classes trabalhadoras. Em declarações recentes, o secretário-geral da CGTP, afirmou que "o tempo não é de medos, nem de silêncios. O tempo tem de ser de protesto, de acção, de resposta". E acrescentou: “Sem qualquer hesitação, a CGTP apela à mobilização de todos trabalhadores e tudo faremos para rejeitar as receitas da FMI e UE. Não pode haver qualquer hesitação, é preciso rechaçar estas medidas”. Perfeito. Em todo o caso, Carvalho da Silva não deixou de balizar esta mobilização pelo calendário eleitoral dizendo que até 5 de Junho decorre “um período de intervenção política, para introduzirmos o conteúdo social na agenda política". De acordo que seja “introduzido conteúdo social na agenda política”. Mas aquilo de que os trabalhadores menos precisam é que a sua luta de classe seja colocada a reboque das eleições! 5 A crise política do regime Sem varrer PS, PSD e CDS da área do poder não há melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras Depois de numerosas cenas de colaboração (no Orçamento, nos PECs, etc.), chantagem, zanga e disputa dos dois maiores partidos do regime – PS e PSD – a crise política estalou. Com a recusa na AR (embora por motivos diferentes) do PEC 4 de Sócrates/UE/FMI, o primeiro-ministro demitiu-se, conduzindo a eleições legislativas antecipadas. E Passos Coelho parece ter encontrado agora o momento oportuno para “ir ao pote” (ou à gamela?). Perante a situação criada, disse Sócrates: “Às vezes penso como foi possível fazerem isto ao país?” Que farsante! Destes dois actores, infelizmente, os trabalhadores e o País ainda podem ter muito a esperar, no domínio da farsa e da tragédia, em que ambos parecem peritos. O PSD e Passos Coelho (basta ver a corja de capitalistas e banqueiros que o cercam) pretendem, entre outras malfeitorias, terminar as tarefas que o PS e Sócrates encetaram e desenvolveram – a precarização do trabalho e a entrega da Saúde, da Educação e das Empresas Públicas ao capital privado. Foram os três maiores partidos da burguesia – PS, PSD e CDS – que, sozinhos ou coligados nos diversos governos, conduziram o País ao longo de mais de três décadas a um forte estado de dependência económica e política em relação às potências imperialistas e empurraram as classes trabalhadoras para a actual situação de sobre-exploração em que vivem. Iremos, assim, assistir em breve a mais uma demagógica campanha eleitoral, procurando esta gente do regime, outra vez, arrastar uma significativa parte dos trabalhadores e do povo português ao voto nos mesmos três partidos altamente responsáveis pelo actual estado de coisas. Percebe-se que os patrões votem no PS, PSD ou CDS. Também se percebe que o pessoal dos aparelhos destes partidos candidatos a gestores do capital neles votem. Idem, para os seus boys, mercenários e amigos. Pois eles são cúmplices e também defendem os seus próprios interesses. Claro que será importante dificultar o “trabalho” dos partidos do capital e a sua determinação em encontrar um governo maioritário do conjunto PS/PSD/ CDS, disposto a pôr em prática as graves medidas pretendidas pela UE/FMI. Uma fraca votação em cada um destes três partidos (e dos três no seu conjunto) enfraqueceria a estratégia da direita. Embora não correspondendo as eleições parlamentares a um campo fundamental da luta das classes exploradas, não se compreende que os trabalhadores e o povo, que sofrem na carne as consequências desta política do capital ou que hoje têm acesso a um mínimo de informação, possam votar nesta gente que, sistematicamente, os têm enganado. Vivem agarrados à política ilusória e mesquinha do mal menor? Ou querem mesmo voltar a ser enganados? Dada as actuais condições económicas, políticas e sociais em que se encontra o País, e aquilo que as classes dominantes nos prometem nos próximos tempos, os trabalhadores, os precários, os desempregados, os estudantes, os utentes do SNS ou dos transportes públicos… têm motivos fortes para continuar e aprofundar a luta pelos objectivos delineados nas manifestações dos dias 12 e 19 de Março e prosseguidos em diversas greves pontuais. A unidade, a organização, o espírito combativo e criador dos explorados e oprimidos são, desde já, elementos indispensáveis para fazer frente à ofensiva do patronato e às “eleições” em que as classes dominantes procurarão impor-se aos trabalhadores e ao povo. Não é momento de parar o combate. Pedro Goulart Mudar de Vida . Março-Abril 2011 PAÍS 4 Um embaixador diligente Ainda os telegramas de Lisboa da WikiLeaks Os documentos da WikiLeaks sobre o Ministério da Defesa e o governo português, recentemente divulgados pelo jornal Expresso, apesar da sua utilidade, devem ser encarados com um olhar crítico. Na correspondência dos embaixadores dos EUA há que distinguir aquilo que tem algum fundo de verdade daquilo que é ditado pelos interesses próprios dos embaixadores ou pela defesa dos negócios daquela potência imperialista. Thomas Stephenson, embaixador dos EUA em Lisboa, entre Novembro de 2007 e Junho de 2009, critica o Ministério da Defesa não por fazer gastos com o militarismo e a guerra mas, essencialmente, por estar a preterir as compras militares aos EUA em favor das compras europeias. Igualmente, deprecia os militares portugueses, em parte por não corresponderem de modo suficiente às solicitações dos norte-americanos. Por outro lado, é de destacar a existência de vários telegramas de Lisboa para Washington, que evidenciam a habitual colaboração de gente responsável do aparelho de estado português com a Embaixada dos EUA. Numa suja e subserviente cumplicidade. Stephenson escreveu em 5 de Março de 2009, num telegrama para Washington, que "no que diz respeito a contratos de compras militares, as vontades e acções do Ministério da Defesa parecem ser guiadas pela pressão dos seus pares e pelo desejo de ter brinquedos caros". "O Ministério compra armamento por uma questão de orgulho, não importa se é útil ou não. Os exemplos mais óbvios são os seus dois submarinos (actualmente atrasados) e 39 caças de combate (apenas 12 em condições de voar)", afirmava a propósito dos dois submarinos alemães adquiridos por Portugal, em 2005. O diplomata americano criticou também a preferência de Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Portugal, em 2006, pela aquisição de fragatas holandesas, em vez das vendidas pelos EUA. "O Ministério da Defesa optou por gastar mais de 300 milhões de euros em fragatas holandesas usadas. As americanas teriam exigido apenas cerca de 100 milhões de euros na sua modernização e apoio logístico". O embaixador, na sua correspondência com Washington, acrescentava, ainda, que a opção portuguesa por “comprar europeu” também aconteceu com os helicópterospatrulha, onde mais uma vez foram preteridos os americanos em favor dos europeus, estes sem contratos de manutenção. Num outro telegrama, o embaixador fala num país de "generais sentados", afirmando que o Ministério da Defesa não é capaz de tomar decisões e que "os militares têm uma cultura de status quo, em que as posiçõeschave são ocupadas por carreiristas que evitam entrar em controvérsias". E Stephenson afirma que Portugal tem mais almirantes e generais por soldado do que quase todas as outras forças armadas. Das pressões sobre diplomatas e políticos portugueses (incluindo Cavaco Silva), a propósito do Kosovo, falam os telegramas do embaixador Alfred Hoffman, em Outubro de 2007, e de Thomas Stephenson, em 2008. Aqui, também ressalta das várias centenas de telegramas enviados de Lisboa nos últimos quatro anos que mais de 80 pessoas colocadas em posições-chave no aparelho de estado português eram utilizadas pelos diplomatas americanos como informadores ou elementos de pressão a favor dos EUA. Concluindo. Daquilo que afirmam os embaixadores americanos nos seus telegramas, pode deduzir-se como eles dispõem facilmente de ampla informação do interior das Forças Armadas e das polícias e da diplomacia (Luís Amado é um grande amigo dos EUA), assim como de vários outros sectores da vida económica e política portuguesa. Para além dos fortes indícios de que a CIA faz escutas em Portugal, os agentes americanos têm tido aqui não apenas boas possibilidades de informação mas também de infiltração/intervenção a favor dos interesses americanos, contando, inclusive, com a colaboração dos Serviços de Informação de Lisboa. Esta é uma situação repugnante, que temos de condenar firmemente. Por outro lado, as razões das diversas críticas que temos feito às compras militares levadas a cabo pelos diversos governos da burguesia, aos generais e almirantes portugueses, assim como a outro pessoal do aparelho de estado, não se confundem com as do embaixador americano. Por estarmos radicalmente contra as guerras e a ordem económica, política e social do capitalismo, por considerarmos que grande parte dos dinheiros actualmente gastos com o armamento e a tropa deve ser transferida para a saúde, a segurança social, a educação e a luta contra a fome. Pedro Goulart Pobreza, um retrato Há dois milhões de pobres em Portugal e, com as chamadas medidas de austeridade, a situação agrava-se. Segundo a Assistência Médica Internacional (AMI), 2010 foi o "pior ano em termos de pobreza em Portugal", com os pedidos de apoio a aumentarem 24% face a 2009. Apenas aos espaços da AMI, em 2010, recorreram mais de 12 300 pessoas, um "valor sem precedentes". A maioria das pessoas (69%) está em idade activa, enquanto 23% tem menos de 16 anos e 18 por cento tem mais de 65 anos. Haja esperança! Arrancou em Lisboa, Entroncamento e Feira um “projecto-piloto” de distribuição de refeições a pessoas com “dificuldades económicas”, isto é, fome. Promovida pela Associação da hotelaria e restauração, a iniciativa já garante 230 (!) refeições por dia, 5 (!) por cada restaurante aderente. Dos mais de 2 milhões de pobres do país, 230 já têm, pois, comidinha garantida – e de restaurante. A coisa tem o patrocínio do presidente da República e conta com uma comissão de honra que ambiciona levar o exemplo a outros países! É assim: primeiro, despedimentos e corte de apoios sociais; depois, entram as almas condoídas com a sua caridade. Para ver se evitam o que mais temem: a revolta dos pobres. Os vampiros Vêm em bandos sem pés de veludo. São os dirigentes do FMI, da OCDE, da UE, do BCE, dos partidos do patronato, a maioria dos analistas dos média que nos listam os itens ditos necessários para “sair da crise”: tábua-rasa das leis laborais, redução de salários e pensões, despedimentos mais baratos, menos subsídio de desemprego, entrega da saúde e da educação aos privados, subida dos impostos... Não podemos franquear-lhes as portas à chegada. Com os meios necessários, há que correr com todos eles! IRAQUE. 8 ANOS DEPOIS 9 Solidariedade activa com os povos árabes Excertos da intervenção de Eduardo Maia Costa Um vendaval percorre o mundo árabe. Uma imensa onda genuinamente popular invade as ruas, exigindo o fim de regimes políticos repressivos e caducos, ou, no mínimo, mudanças profundas no sistema político. Uma tão vasta e pertinaz luta de massas, enfrentando dias e dias seguidos a repressão impiedosa e sangrenta da polícia, traduz necessariamente um generalizado sentimento popular de revolta, que ultrapassou já a fronteira do medo, revelando um agravamento tal das condições de vida, económicas, sociais e políticas, que a única saída é a expressão frontal dessa revolta, mesmo com o preço do sangue, ou da vida. U ma tal revolta tem realmente características novas no mundo árabe, que vale a pena analisar. Desde logo, o protesto assume a forma de movimento de massas, traduzido em manifestações de rua, sem recurso à violência, enfrentando corajosamente a polícia, a repressão. É um movimento inorgânico e espontâneo, no sentido de que não responde a convocatórias de forças políticas, religiosas ou sindicais, ou claramente as excede, pela amplitude da participação de vastíssimos sectores da população. Tem objectivos puramente políticos (derrube ou modificação do regime político), e não religiosos, muito menos xenófobos. Nas manifestações participam estratos muito diversos da população, unidos no objectivo comum de lutarem pela mudança política, ou mesmo pelo derrubamento do regime. Por último, importa salientar a presença permanente e activa de mulheres nas ruas, ao lado dos homens, e também a presença de famílias inteiras confirmando esse sentimento de unidade popular. Ponto de viragem? Toda esta movimentação revela uma alteração radical da resistência popular nos países árabes. Por um lado, na forma: manifestações pacíficas de massas, enfrentando a polícia, e não acções armadas, ou simplesmente bombistas, praticadas por grupos clandestinos. No conteúdo: luta puramente política, laica, por objectivos políticos e sociais, sem motivação ou expressão religiosas, sem hostilização de quaisquer religiões. É uma verdadeira revolução na história da resistência popular no mundo árabe que abre perspectivas novas de libertação, quer das classes dominantes internas, quer da tutela ou do domínio estrangeiros. É ainda difícil prever o desenlace final, pelo menos a nível global, desta gigantesca onda popular, mas ninguém duvidará de que pode vir a constituir-se como um ponto de viragem na história do povo árabe, um movimento de libertação só comparável com o fim da dominação colonial otomana, francesa e inglesa. O caso da Líbia Uma referência especial merece a Líbia. Os protestos assumiram neste país características especiais. Ao contrário do que aconteceu em todos os outros países árabes, o movimento de protesto foi sobretudo regional (Cirenaica) e rapidamente assumiu a natureza de movimento armado, que ocupou militarmente a região oriental, constituindo em poucas semanas um “contra-exército”, que imediatamente investiu (sob o pendão da monarquia…) contra o exército oficial, num cenário de guerra civil, procurando o derrube do regime pela força das armas. Também ao contrário do que aconteceu com outros países, nomeadamente com a Tunísia ou com o Egipto, na Líbia, a “preocupação” com a sorte dos “civis” foi levada ao Conselho de Segurança da ONU pelas potências do Ocidente. Após uma primeira resolução de “aviso”, o CS aprovou a resolução 1973, que permitiu a adopção das “medidas necessárias” para a “protecção de civis e zonas povoadas que estejam sob ameaça do exército líbio”, assim como o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, também apenas para “protecção dos civis”, excluindo expressamente a ocupação militar do território. O pretexto humanitário A autorização estava dada para a intervenção militar das potências ocidentais mais belicosas, destacando-se a França e a Inglaterra, que não escondem a pretensão de derrubar o regime de Khadafi, o que é confirmado pelas operações militares desenvolvidas, que se destinam a enfraquecer o exército oficial e a facilitar a progressão do exército rebelde, e de modo nenhum a “proteger civis”, o que viola frontalmente a Resolução. Sabemos bem que o pretexto humanitário tem constituído o título invocado para as intervenções militares do Ocidente (quando não pode alegar legítima defesa, ou defesa contra o terrorismo), que mais não visam do que salvaguardar os seus próprios interesses. As imensas riquezas naturais da Líbia, subtraídas pelas nacionalizações ao domínio das grandes companhias ocidentais, estão sob a mira gulosa delas e dos governos que as protegem e promovem. A satisfação dessa gula, por meio da instalação de um regime dócil e colaborante na Líbia, será, não tenhamos dúvidas, o grande objectivo “humanitário” das potências intervenientes, com a passividade do CS da ONU. A instalação de um regime “amigo” do Ocidente na Líbia não deixaria aliás de condicionar a evolução política nos demais países da região. Esta situação é inaceitável. A intervenção militar, nos moldes em que se vem desenrolando, é ilegítima e constitui uma intromissão ilícita nos destinos da Líbia. O destino do regime líbio deverá caber, como sucedeu nos outros países árabes, ao próprio povo, sem intromissão estrangeira. Solidariedade Neste momento crucial da sua história, os povos árabes merecem a solidariedade activa de todos os cidadãos e movimentos progressistas do mundo. Como vimos, a ambiguidade foi a característica principal das reacções das potências ocidentais. Uma ambiguidade “estratégica” entre a demagogia da ideologia da liberdade que apregoam (e não praticam fora dos seus limites territoriais) e a necessidade de não perder posições no “terreno”, quer os seus amigos árabes percam quer ganhem a batalha. Esta hipocrisia, que caracteriza sempre a actuação dos impérios, deve ser desmascarada. Os governos que nos representam devem assumir frontalmente uma atitude de condenação da repressão popular e de apoio aos legítimos anseios populares. Devemos recusar e condenar toda e qualquer intervenção militar, ainda que sob a capa humanitária, ainda que coberta por uma decisão da ONU. Não é a “credencial formal” que esta confere que modifica a natureza da intervenção. A “protecção de civis” é hoje uma máscara (uma das máscaras) que o intervencionismo imperialista assume. MV Mudar de Vida . Março-Abril 2011 MUNDO 10 A conspiração para derrubar Gadafi Petróleo, negócio de armas e novos mercados na mira das potências imperialistas A invasão da Líbia pela coligação da Nato é outra face da mesma guerra. Importa à França dominar o petróleo líbio, claro; importa dinamizar o negócio do armamento, também; importa eliminar qualquer modelo político e económico dissidente e, sobretudo, importa expandir uma democracia representativa (sempre controlável) e um capitalismo neo-liberal, porque novos mercados são vitais para a sobrevivência, não dos povos, mas dos que, à custa deles, decidem quais são as regras do jogo. Gadafi sempre foi mal amado pelos líderes europeus e norte-americanos. Nunca lhe foi perdoado o apoio às guerrilhas urbanas nos anos 70, a nacionalização do petróleo, ou a sua independência em relação ao modelo económico dominante, recusando-se a transformar o país em mais um maná para investidores e especuladores. A Líbia será dos poucos lugares do mundo onde a saúde, a educação (até universitária – todos os estudantes recebem bolsas de estudo), a habitação, a água e a energia são absolutamente gratuitas. A sublevação de Fevereiro A rebelião na Líbia é-nos imediatamente apresentada como uma sublevação popular pela democratização do país, como as ocorridas no Egipto e na Tunísia. A denúncia, nunca provada, de que Gadafi estaria a cometer um massacre contra o seu povo, serviu de pressuposto à intervenção da Nato, e permitiu ganhar o apoio ou o silêncio conivente da opinião pública europeia. É absolutamente ignorado o facto de, ao contrário do ocorrido naqueles dois países, se tratar de uma sublevação armada e militarizada; as explicações oficiais para os que, mais desconfiados, chamavam a atenção para o “pormenor”, consistiam na afirmação de que alguns militares do exército líbio se teriam aliado aos revoltosos, levando consigo armas roubadas ao arsenal militar líbio. Começam então as mentiras, mais uma vez, a tecer a sua teia. Num interessante trabalho de investigação fotográfica, Nickolay Starikov, demonstra, a partir de Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Os serviços secretos norte-americanos conheciam, portanto, a verdadeira origem desta revolta. Sabiam também que, desde 2010, o governo francês, utilizando os movimentos anti-Gadafi, preparava a queda do regime, O protesto de rua, a luta de massas A única oposição eficaz O ministro Luís Amado, no lugar de Sócrates, disse tudo: para efeitos de futuro governo, as alianças do PS serão com a direita. Nada que não se previsse já, mas fica sublinhado para que não sobrem dúvidas. A afirmação, de resto, vem corresponder às pressões feitas pelos porta-vozes directos do capital desde que a crise dos negócios se agudizou e desde que o receio de convulsões sociais se começou a perfilar. C Ligações ao Ocidente A conspiração francesa 3 Luís Amado foi claro: as alianças do PS serão com a direita fotografias dos rebeldes da agência Reuters, que as armas por eles usadas não poderiam ter sido retiradas dos arsenais do exército Líbio, pelo simples facto de este não as possuir. Na verdade, as armas do seu exército são russas e chinesas. As usadas pelos rebeldes, as FN-FL, são de fabrico belga, utilizadas pelos EUA e diversos países europeus. De onde surgiram então as armas e estes revoltosos armados? Após a revolução de 1969, Gadafi reestrutura o sistema político e instaura o estado laico. Esforça-se por promover a igualdade entre os sexos e os direitos das mulheres. O regime vê-se confrontado com sistemáticas oposições internas de origem islamita, embora sem grande impacto ou expressão popular. A Frente Nacional para a Salvação da Líbia e o Exército Nacional Líbio são dois dos grupos mais importantes da oposição a Gadafi, com ligações ao Ocidente, nomeadamente EUA e Grã-Bretanha, onde se encontram sediados. Em 1990 surgem diversos grupos islâmicos, precisamente na zona oriental da Líbia. A sua actividade, no entanto, nunca gerou qualquer impacto. Será no seio destes opositores islamitas que nasce em 2007 o Grupo Islâmico de Combate Anti-Gadafi que se viria a declarar oficialmente como subsidiário da Al-Qaeda. PAÍS procurando ganhar vantagens na exploração petrolífera. É, pois, a pretexto da protecção de um povo ameaçado pelo seu líder, com base num massacre nunca demonstrado (nem um documento, nem um vídeo sobre este massacre virtual é possível encontrar), mas peremptoriamente confirmado por Sarkozy e por Cameron, que, em mais uma grandiosa missão humanitária, o grande Ocidente ratifica a intervenção da Nato na Líbia, através da imposição de uma “No-Fly Zone”. Na realidade, o que veio a suceder violou o princípio estabelecido: a Nato desencadeou uma série de bombardeamentos, com inúmeras vítimas civis. A violação legal do que se compreende por uma “NoFly Zone” (naturalmente protegida pela subtileza prevista na resolução aprovada, com a declaração de que seriam tomadas “todas as medidas necessárias para proteger a população civil”), tornou evidente que o seu objectivo não era proteger o povo líbio. Era reforçar o poder e a força beligerante dos rebeldes. Mais grave de tudo, utilizando projécteis de urânio empobrecido nos seus ataques, que comportam contaminação radioactiva. Orquestração Se dúvidas existissem, elas seriam esclarecidas quando foi conhecido o Conselho de Transição Nacional Líbio, imediatamente reconhecido pelas forças da coligação como único interlocutor entre a Líbia e a UE/ EUA. O seu líder, e auto-proclamado primeiro-ministro no governo de sucessão a Gadafi, é Mahmoud Jibril, professor durante muitos anos nos Estados Unidos e um convicto apologista do neoliberalismo. O chefe dos rebeldes, Khalifa Hifter, é um antigo agente da CIA. E Ali Tarhouni, indigitado ministro das finanças do Conselho, é professor de economia na Universidade de Washington e regressou à Líbia há pouco mais de um mês, depois de trinta e cinco anos a viver no estrangeiro. Não falamos de uma revolta popular. Falamos de uma orquestração concertada entre França, Grã-Bretanha e EUA, com a conivência da comunidade europeia, para a queda do regime de Gadafi. Cristina Paixão omeçando por defender um acordo governativo, ou “de regime”, entre PS e PSD – o chamado bloco central – as forças do poder económico apostam agora abertamente num bloco de direita que não deixe de fora o PS. É a esta viragem que o PS, através de Luís Amado, vem dizer que sim. Recordemos que, ainda há poucos meses, os principais banqueiros e homens de negócios fizeram romarias à sedes partidárias do PS e do PSD e desdobraram-se em declarações em apoio do Orçamento de Estado e dos PEC dando isso como fundamental para salvar “o país”. Conseguiram assim, com a disponibilidade incondicional de Sócrates, que mais uns passos fossem dados no sentido de reduzir os apoios sociais aos mais pobres, baixar salários, facilitar despedimentos e o mais que se sabe. Nova guinada à direita A actual gritaria dos homens do capital sobre a “incompetência” do governo Sócrates tem, pois, de ser vista como uma barragem de propaganda que visa justificar, aos olhos da população, mais uma guinada política para a direita. O governo do PS sempre aplicou sem qualquer rebuço (tirando as inevitáveis querelas de interesses entre este ou aquele grupo económico) as medidas políticas que o patronato foi exigindo. O que se passa agora é que, com essa política de que o PS foi o fiel executor, amadureceram as condições para subir mais um patamar no ataque aos assalariados. Ver no PS um travão, mesmo que frouxo, da investida do patronato, ou um factor moderador das medidas antisociais que CDS e PSD anunciam, seria inverter por completo o papel por ele desempenhado. Contrariamente à imagem que querem dar de si próprios, o PS e Sócrates – na linha, aliás, do que o PS sempre foi nos momentos críticos! – foram sim os batedores do capital encarregados de desarticular as poucas protecções sociais do Estado, minar as defesas legais do Trabalho e criar, passo a passo, as condições para um governo abertamente de direita. O espectro da “convulsão” Este é o desenlace que está à vista nas actuais condições, seja qual for o vencedor nominal das próximas eleições, haja ou não maioria absoluta de algum dos partidos da direita. E foi em resposta a mais este balanço das classes dominantes para a direita (a que o próprio PS deu toda a colaboração!) que a declaração de Luís Amado veio afirmar : “Estamos nessa”. Há porém um outro lado da questão. A pressão exercida pelo capital e pelo poder sobre as classes trabalhadoras vai-se tornando cada vez mais insuportável e, do ponto de vista social, faz acumular matéria explosiva. A luta de classes tem condições objectivas para se agudizar. É isso mesmo que vários personagens do capital expressam ao temer “uma convulsão social”, com o espectro de assaltos a supermercados, violência nas ruas, maiores protestos de massas. Mais que a maioria formal Para obviar a estes riscos, a burguesia precisa de mais do que uma maioria governativa. Não lhe basta a legitimidade formal de um governo com maioria absoluta no parlamento, porque, para usar uma expressão usada por Adriano Moreira, a fome não está prevista na Constituição. Precisa de forjar uma espécie de “legitimidade social” que lhe permita debelar, tanto pela violência policial, como pela propaganda, como ainda pela caridade, os impulsos da população em resposta às medidas terroristas de ataque ao trabalho. Para isso a burguesia não pode dar-se ao luxo de alienar o PS, de o remeter ao papel de força de oposição e deixar que muitos dos seus apoios populares, sem nada a defender, engrossem as manifestações de rua, passem a gritar “abaixo o governo” e resistam às medidas brutais de “austeridade” que estão a ser negociadas com o FMI/FEEF. Daí a necessidade, para a burguesia portuguesa, de uma ampla coligação de forças entre PS, PSD e CDS (que não tem necessariamente de assumir a forma de um governo partilhado) com a missão de impedir o engrossar da oposição popular e de desarticular quanto possível a resistência de rua. É a este chamamento, vestido com a capa de “interesse nacional”, que, uma vez mais, a declaração de Luís Amado vem responder com um sim inequívoco. Via única A realidade política do lado do poder, depois das eleições de 5 de Junho, não fugirá muito a este quadro. Mas a realidade social pode tornar-se substancialmente diferente do que é agora. A já escassa capacidade de, pela via parlamentar, fazer frente aos ataques do capital será ainda mais diminuída. O que permite reforçar a única oposição eficaz nestas condições: o protesto de rua, a luta de massas. Manuel Raposo Mudar de Vida . Março-Abril 2011 PAÍS 2 Vítor Bento, o moralista Vítor Bento, presidente do Conselho de Administração da SIBS – Sociedade Interbancária de Serviços (empresa que gere a rede do Multibanco) – e há algum tempo nomeado por Cavaco Silva para membro do Conselho de Estado, em substituição de Dias Loureiro, apresentou recentemente o livro “Economia, Moral e Política”, em que acusa os políticos como os maiores culpados pela crise económica internacional. O autor discorre sobre uma Moralidade exterior à Economia, pretendendo autonomizar aquela do contexto económicosocial que a determina. Lembramos que este é o mesmo Vítor Bento que foi promovido no Banco de Portugal, por Constâncio, quando já lá não estava há vários anos (que moralidade?). O mesmo Vítor Bento defensor da flexibilização da legislação laboral e do abaixamento do salário dos trabalhadores, para melhorar a “competitividade” da economia. Publicado pela Fundação Francisco Soares dos Santos, de Alexandre Soares dos Santos (Pingo Doce) e de António Barreto, o livro considera que a actual crise resultou de uma crise de valores morais e que os políticos falharam nas escolhas que fizeram. Atendendo aos antecedentes de Vítor Bento, de que moralidade fala o autor? "No livro olhei para a crise internacional não apenas do ponto de vista estritamente económico, mas enquanto erupção de uma crise de valores da própria sociedade. Há muitos factores que contribuíram, mas um deles é o facto de hoje vivermos numa sociedade onde os valores materiais são a referência comum, que quase toda a gente subscreve", declarou Vítor Bento à agência Lusa. O conselheiro de Cavaco afirma, ainda, que "em última instância, os políticos têm sempre mais culpas, porque têm a obrigação de gerir a casa comum, de ver melhor e mais longe. Enquanto os outros elementos privilegiam muito o seu interesse particular, os políticos têm a obrigação de colocar o interesse comum acima de tudo, de estar no cimo da torre com uma visão mais ampla e, portanto, limitar os estragos que os interesses particulares possam fazer". Como se os políticos que têm governado o País (representados no Conselho de Estado) não fossem homens de mão dos capitalistas! Não serão estes E se não pagarmos? A banca, tão amiga e protegida pelo governo fez-lhe um xequemate. E agora Sócrates? Colonizados pela troika FMI/BCE/ UE para que servem as eleições de 5 de Junho? Para branquear a pardidocracia PS/PSD/CDS cúmplice da sua intervenção no país? Os hipócritas e falsos interesses superiores do País são publicidade enganosa para alimentar o carreirismo político partidário e a orgia e ditadura do poder. Portugal precisa de um grande sobressalto revolucionário contra a globalização selvagem capitalista representada na União Europeia pelo eixo franco-alemão com a cumplicidade dos partidos do chamado arco do poder. É urgente acabar com a influência dos figurões economistas neoliberais, os políticos de pacotilha e os responsáveis pela colonização humilhante de Portugal e dos portugueses. políticos, em última análise, os responsáveis directos pelas escolhas e medidas dos diversos governos da burguesia? Responsabilizando os políticos genericamente, o que Vítor Bento pretende é escamotear a luta de classes e a exploração capitalista, que são, efectivamente, o motor do sistema económico vigente. E, por aquilo que Vítor Bento tem dito e escrito, pelos interesses a que sempre tem estado ligado, não parece que a moralidade de que fala no seu livro possa representar mais que uma tentativa de dar cobertura ideológica à actual ordem económica capitalista. Carlos Completo E se, à semelhança da Islândia, os povos de Portugal, Irlanda e Grécia não quiserem pagar as dívidas contraídas pelos seus governos aos agiotas chantagistas dos mercados capitalistas? Fernando Barão FICHA TÉCNICA ASSINATURAS Redacção Cristina Meneses, Manuel Raposo, Pedro Goulart Colaboradores António Louçã, Carlos Completo, Carlos Simões, François Pechereau, Manuel Vaz, Rita Moura, Urbano de Campos Site David Raposo Contactos Apartado 50093 S. João de Brito 1702-001 Lisboa [email protected] www.jornalmudardevida.net 10 números / Donativo mínimo: 15! Apoio: o mais possível Mudar de Vida . Março-Abril 2011 Como fazer uma assinatura: No site www.jornalmudardevida.net (>Assinaturas): indique nome, morada, código postal, indique o número a partir do qual inicia a assinatura e transfira o seu contributo numa caixa Multibanco (seleccionando “Outras Operações” e “Transferências”), para o NIB 0007 0000 00682481622 23. Envie-nos um e-mail a comunicar a transferência. Por correio: envie nome, morada, código postal, indique o número a partir do qual inicia a assinatura e junte um cheque traçado, ao portador. MUNDO 11 Urânio empobrecido: as armas que não ousam dizer o próprio nome Há fortes suspeitas de que a Líbia, à semelhança do Iraque, esteja a ser bombardeada com armas radioactivas Nas primeiras 24 horas do ataque à Líbia, aviões norteamericanos B-2 despejaram 45 bombas de mil quilos. Não sabemos se estas bombas, mais os mísseis Cruzeiro lançados dos aviões e navios franceses e britânicos, contêm ogivas de DU. Mas se a prova do seu uso no passado pelas forças militares dos EUA e Reino Unido serve de guia, pode muito bem acontecer que essas armas façam parte do bombardeio que a Líbia está a sofrer. “O mísseis com ogivas de urânio empobrecido (DU) encaixam perfeitamente na descrição de bomba suja... Eu diria que é arma perfeita para matar montes de gente” (Marion Falk, físicoquímica, Laboratório Lawrence Livermore, Califórnia, EUA) O DU é um detrito do processo de enriquecimento do minério de urânio. É usado em armas nucleares e em reactores. Por ser uma substância muito pesada (1,7 vezes mais densa que o chumbo), é muito valorizado pelos militares pela capacidade que tem de atravessar veículos blindados e edifícios. Quando uma arma com ogiva de DU atinge um objecto maciço, como o exterior de um tanque, atravessa-o e estoira numa nuvem de vapor. O vapor assenta na forma de poeira que é não só venenosa mas também radioactiva. Efeitos a prazo No impacto, um míssil de DU arde a 10 mil graus centígrados. Quando atinge um alvo, 30% fragmenta-se em pedaços. Os restantes 70% vaporizam-se em três óxidos altamente tóxicos, incluindo o óxido de urânio. Esta poeira negra fica suspensa no ar e, conforme o vento e o clima, pode viajar a grandes distâncias. Se acharem que o Iraque e a Líbia ficam muito longe, lembrem-se que a radiação de Chernobil atingiu o País de Gales. Partículas com menos de 5 mícrons de diâmetro são facilmente inaladas e podem permanecer nos pulmões ou outros órgãos durante anos. No corpo, o DU pode causar danos no fígado, cancros nos pulmões e ossos, perturbações de pele, perturbações cognitivas, alterações de cromossomas, síndromes de imunodeficiência e doenças raras dos rins e intestinos. As mulheres grávidas expostas ao DU podem dar à luz a crianças com deficiências genéticas. Depois da poeira vaporizada não se espere que o problema desapareça rapidamente. Como emissor de partículas alfa, o DU tem uma semi-vida de 4,5 mil milhões de anos. O caso do Iraque No ataque ao Iraque “Choque e pavor”, só em Bagdad foram lançados mais de 1500 mísseis e bombas. Seymor Hersh afirmou que só o Third Marine Aircraft Wing dos EUA lançou mais de “500 mil toneladas de artilharia”. Todas elas com ogivas de DU. A Al-Jazira noticiou que as forças invasoras dos EUA dispararam 200 toneladas de material radioactivo contra edifícios, habitações, ruas e jardins de Bagdad. Um repórter do Christian Science Monitor levou um contador Geiger para locais da cidade que tinham sido sujeitas a severos bombardeamentos por tropas dos EUA. Encontrou níveis de radiação 1000 a 1900 vezes maiores do que o normal para áreas residenciais. Para uma população de 26 milhões, os EUA lançaram uma bomba de uma tonelada por cada 52 iraquianos ou 20 quilos de explosivos por pessoa. Negócio de milhões Nas primeiras 24 horas do ataque dos EUA e seus aliados foi lançada sobre a Líbia artilharia no valor de 115 milhões de euros. Muita dela, sem dúvida, destruiu armamento e instalações militares vendidas à Líbia pelos mesmos países que agora a bombardeiam. O relatório de controlo de armas da União Europeia diz que os estados membros passaram licenças em 2009 para venda de armas e equipamento militar à Líbia no valor de mais de 330 milhões de euros. A Grã-Bretanha passou licenças a empresas de armamento para venda de 25 milhões de euros de armas e foi igualmente paga pelo coronel Gadafi para enviar as SAS (forças especiais) para treinar a sua 32.ª Brigada. Forte suspeita No Iraque, é amplamente reconhecido (mas não pelos governos ou pelos militares) que houve uso extensivo de armamento radioactivo, como DU. Isto é provado de forma irrefutável pelo imenso crescimento do número de crianças nascidas com defeitos genéticos e de pessoas que contraem cancros e outras doenças. Esperamos que, no caso da Líbia, o silêncio de todos os governos acerca deste assunto signifique que não foram usadas armas de DU. Mas a tragédia é que só o podermos saber anos após os bombardeamentos, como o povo de Faluja, no Iraque, está agora a descobrir através das horríveis consequências do bombardeamento da cidade, em 2004, com armas de DU e de fósforo branco. David Wilson, Stop the War Coalition Mudar de Vida . Março-Abril 2011 ÚLTIMA 12 Um desabafo A propósito de textos que publicámos em Outubro de 2008 e Fevereiro de 2010 sobre o regime de trabalho dos funcionários de call centers, recebemos mais uma denúncia que confirma o insuportável regime laboral imposto aos trabalhadores, a maioria deles, se não todos, precários. Fukushima e a luta de classes Começou-se por dizer que a catástrofe de Fukushima não atingiria as proporções de Chernobil. Claro, ficaria mal a um dos países-modelo do capitalismo global ter construído centrais nucleares no enfiamento de terramotos e maremotos. A imprevidência, para encaixar nos padrões vigentes de correcção política, devia ser exclusiva da burocracia soviética. Agora, já se admite que Fukushima pode ter consequências tão graves ou mais que as de Chernobil. D epois da catástrofe, vieram os remendos. E os de Fukushima não têm sido melhores que os de Chernobil. Mas a nossa imprensa mais entusiástica do "milagre japonês" descobriu agora o seu entusiasmo pelo sentido de organização do país do sol nascente. E vá de louvar a protecção civil japonesa, a solidariedade com as vítimas, os alojamentos improvisados, o estoicismo do "homem da rua", a simplicidade do imperador que até se dignou dirigir pela televisão uma mensagem ao povo. No meio deste entusiasmo de neófitos, os propagandistas do novo "milagre japonês" descobriram mesmo a sua veia de poliglotas, certamente com cursos intensivos de japonês técnico devorados à pressa para esta circunstância. E houve até quem quisesse louvar os trabalhadores da protecção civil, que têm levado a cabo os mais diversos trabalhos na área de Fukushima, como "os samurais do nosso tempo". Ora, com isto ignora-se o que é ciência elementar para o povo japonês, que não compara esses trabalhadores com os samurais e sim com os kamikaze. Os herdeiros da aristocracia guerreira japonesa não estão hoje a trabalhar entre os destroços de Fukushima, e sim sentados no conselho de administração da Tepco, a empresa que gere a central nuclear e que, para aumentar os seus lucros, tratou de poupar nos custos de segurança. Esses Mudar de Vida . Março-Abril 2011 descendentes dos samurais já admitiram negligências clamorosas. Mas, ao contrário dos antepassados, não concluíram as suas confissões em conferência de imprensa com nenhum espectacular hara-kiri. No moderno capitalismo japonês, já ninguém expia as suas culpas com esse tipo de suicídio ritual. A verdadeira tarefa suicida é aqui deixada a simples trabalhadores, que dentro de poucos meses ou anos poderão morrer em massa, das consequências das radiações, tal como sucedeu em Chernobil. E o povo que lhes chama kamikaze conhece a história dos pilotos suicidas, que eram apenas treinados para descolar e não para aterrar, que eram enviados para o ar em aviões carregados de bombas, apenas com combustível para a ida e não para a volta, e acompanhados por caças que os abateriam se tivessem a veleidade de voltar atrás. Também esses kamikaze eram as vítimas duma guerra imperial que não escolheram fazer. Os "samurais" que escolheram a guerra e os seus descendentes que decidiram construir as centrais nucleares com risco para toda a população, esses, continuam no poder. Todos somos, provavelmente, ignorantes da língua japonesa. Mas confundir samurais com kamikaze é querer ignorar a luta de classes, para além de qualquer desculpável ignorância linguística. António Louçã “Também eu trabalho num call center da TMN, e ninguém faz ideia do que é trabalhar lá. Das coisas que ouvimos dos clientes, da forma como nos tratam, e ainda o que ouvimos dos superiores só porque naquele dia não conseguimos vender nenhum serviço. Simplesmente não têm ideia do que é estar 9 horas, sim porque são raras as vezes que faço 8 horas, a ouvir clientes a lamentar as suas vidas e a despejar a fúria sobre nós só porque não conseguem enviar sms. Sou também licenciada, e tenho uma série de adjectivos que conseguem definir o meu estado psicológico neste momento, mas resume-se em exaustão. E, apesar de falar 9 horas por dia, sinto que não estou a ser ouvida e, pior ainda, sinto que o nosso trabalho não é digno, nem ninguém se interessa e muito menos fazem ideia do que é trabalhar num sítio como estes, em que trabalhamos fins de semana, sim porque só quem está lá há mais de 3 ou 4 anos é que tem direito a fins de semana e a um horário diurno, não sabem o que é trabalhar no dia de Natal, na véspera de Natal e todos os feriados, porque nem isso é rotativo. Há muito trabalho precário, mas este é sem duvida um dos piores. Fica aqui o meu desabafo.” “Ana” DITO O objectivo dos bancos é facilitar os negócios, e tudo o que facilita os negócios favorece a especulação. J.W.Gilbart, banqueiro (1794-1863) Editorial Legítima resposta Numa manifestação de precários em Espanha, um cartaz da “geração sem futuro” dizia: “Sem casa, sem reforma, sem medo”. Também em Lisboa, na manifestação da “geração à rasca”, um dístico perguntava: “Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz de fazer?”. Estes dizeres revelam uma disposição de luta que é preciso incentivar. Indicam uma viragem possível e desejável para a resistência de massas, de resposta ao terror social imposto pelo patronato. O mesmo exemplo de destemor se pode tirar das revoltas populares nos países árabes. Os sinais do que aí vem em resultado das medidas do FMI/ FEEF, em cima de tudo o que já foi feito contra os assalariados, não deixam margem para hesitações: o capital leva a cabo uma política de esmagamento das classes trabalhadoras. É esse o único caminho do patronato para responder à crise dos negócios. E um tal processo só terá fim se deparar com uma resistência maciça da parte dos trabalhadores à altura da agressão de que são alvo. Os que se mostram preocupados com a possibilidade de uma “convulsão social” escamoteiam o facto de estar em pleno curso uma luta de classes em que, até agora, só os de cima ditaram as regras. A convulsão social que temem é o nome que dão à legítima resposta das massas trabalhadoras à guerra de que estão a ser vítimas. Tentar impedir que esta resposta venha ao de cima, em nome da ordem e da paz social, é dar mãos livres ao patronato para prosseguir a desordem social em que colocou o país e dar livre curso à guerra de classe que desencadeou contra os trabalhadores. Sob a bandeira da ordem, do sossego, da paz, o que as classes dominantes querem é assegurar condições para continuarem a esmagar os de baixo. Contra isso, é preciso declarar a legitimidade da luta social sob todas as suas formas. Não baixar a cabeça. Não aceitar ser vítima fácil. Não excluir nenhuma forma de acção de massas. Sem medo. MUDARDEVIDA www.jornalmudardevida.net jornal popular / apoio: 0,50 ! Março-Abril 2011 / número 27 Sem trabalho, sem casa, sem futuro... sem medo “Quando não tiveres nada a perder, o que serás capaz de fazer?” (cartaz na manifestação da geração à rasca) A crise política estalou, depois de numerosas cenas de colaboração, chantagem, zanga e disputa entre PS e PSD. Mas foram os três partidos do capital que, sozinhos ou coligados nos diversos governos, em mais de três décadas, conduziram o país a uma forte dependência económica das potências europeias e empurraram as classes trabalhadoras para a situação de sobre-exploração em que vivem. Começando por defender um acordo governativo entre PS e PSD (o chamado bloco central) as forças do poder económico apostam agora abertamente num bloco de direita que não deixe de fora o PS. Com a política de que Sócrates foi o fiel executor, o patronato viu amadurecerem as condições para subir mais um patamar no ataque aos assalariados. Foi a esta viragem que o PS já veio dizer que sim, pela voz do ministro Luís Amado. Mas a realidade social pode tornar-se muito diferente do que é agora desde que seja reforçada a única oposição eficaz nestas condições: o protesto de rua, a luta de massas. páginas 3 e 5 Iraque, 8 anos depois págs. 8 a 9 Líbia: fortes suspeitas de bombardeamentos com armas radioactivas, tal como sucedeu no Iraque págs. 10 e 11