O Banquete de Platão e sua Influência na Mística

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O Banquete de Platão e sua Influência na Mística
O BANQUETE DE PLATÃO E SUA INFLUÊNCIA NA MÍSTICA
ESPANHOLA NO PERÍODO DE 1560 A 1600
Nara Rela
RESUMO:
A filosofia grega com algumas de suas idéias, processadas em um tempo
posterior a sua época e em outro ambiente cultural, serviu de base para certas
construções místicas. Uma delas é a ascese da alma, o caminho que a alma deve
percorrer para se unir ao divino. Como a mística espanhola foi profundamente
influenciada pelos neoplatônicos, Plotino um dos maiores expoentes desta corrente
filosófica, utilizou-se de diversos escritos de Platão para a sua formação mística,
principalmente no que tange à alma e ao divino. O objetivo do presente trabalho é
investigar a correlação do diálogo entre Sócrates e Diotima no “Banquete” de Platão e
o caminho da ascese da alma em busca da união com o divino, conforme a Mística
Afetiva dos Agostinianos e Franciscanos e da Mística Eclética na Espanha no terceiro
período da formação da mística espanhola (1560 a 1600).
Utilizou-se consulta bibliográfica, estudo do texto “O Banquete” de Platão da
coleção “Os Pensadores”, Abril Cultural, 1972, leituras dos livros do estudioso da
história da filosofia antiga Giovanni Reali e de estudiosos da mística como Berta
Pensado, Eulogio Pacho e Robert Lauer. Analisando-se o diálogo entre Sócrates e
Diotima de Mantinéia, principalmente entre 210a e 212a, Platão descreve o Amor
maior e verdadeiro através da ascese da alma em busca do Bem supremo. Plotino e
os neoplatônicos, que influenciaram profundamente a mística espanhola através da
Escola de Ibn Masarra, utilizaram-se de diversos textos, entre eles o “Banquete” de
Platão para demonstrar que o objetivo maior do homem é a união com o divino.
PALAVRAS-CHAVE
Mística espanhola. Plotino. “O Banquete”. Platão. Ascese. União da alma com
o Divino.
INTRODUÇÃO
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Os intelectuais espanhóis afirmam que a Grécia possuía seu misticismo e que
este não estava na religião, mas sim na sua filosofia, cujas idéias posteriormente em
outro contexto cultural, se converteram na base e raiz de certas construções místicas
sistematicamente elaboradas. Neste sentido, conforme esclarece Berta Pensado
(1955), a filosofia de Empédocles de Agrigento oferece doutrinas utilizadas como base
da mística hispano-semítica. Explica que Platão também contribuiu com elementos de
sua filosofia mistificados com outros para a formação de muitos sistemas místicos
posteriores e é sua doutrina que, rodeando ela mesma as fronteiras da mística, levou
necessariamente ao misticismo aqueles que pretenderam chegar com suas
conclusões para além de onde ele se deteve. As filosofias de Empédocles e de Platão
se transformam, nas mãos dos neoplatônicos alexandrinos, em doutrina mística cuja
influência, através de Filon, Plotino, Porfírio Jâmblico e Proclo, é bem evidente nos
padres da igreja, principalmente em três deles: São Clemente Alexandrino, Santo
Agostinho e São Dionísio Aeropagita. Todos eles são o manancial da exposição
sistemática ou teoria da tradição mística cristã.
Vale notar que Plotino, por sua vez, também sofreu influência persa na
formação de sua filosofia, como relata Porfírio no seu escrito “Vida de Plotino” ao
explicar que o Filósofo, após se tornar discípulo de Amônio Sacas, aprofundou de tal
maneira a filosofia de modo a ter em vista “uma experiência direta seja da filosofia
praticada pelos persas, seja daquela preponderante entre os hindus” (op.cit).
Para o misticismo semítico, o conhecimento de Deus só pode ser alcançado
pela via mística, ou seja, por uma fusão da alma com Ele. Da mesma forma, Plotino,
buscando esse conhecimento, utilizou-se também das doutrinas místico-teológicas e
metafísicas de Platão inspirando-se nos textos: Fédon, Fedro, Banquete, Timeu e
livros centrais da República, entre outros. Conforme nos relata Porfírio:
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É nos referido ainda que ele possuía um espírito vigilante, puro, sempre voltado para o
divino, ao qual aspirava com toda sua alma; além disso, ele nada descuidou-se para
poder libertar-se, “para livrar-se do fluxo envolvente da vida” que, aqui em baixo,
“alimenta-se de sangue”. Assim, justamente a esse homem possuído pelo divino,
aconteceu muitas vezes, ou seja, quando ele se movia até o primeiro transcendente de
Deus, por meio do pensamento e dos caminhos indicados por Platão no “Banquete”,
apareceu aquele Deus que não tem figura nem forma alguma, mas tem seu trono
acima do Espírito e do mundo inteligível inteiro. Na verdade, também eu, Porfírio,
posso atestar ter me aproximado e me unido a Ele somente uma vez: e agora tenho
sessenta e oito anos. Portanto “apareceu” a Plotino e “ficou junto dele o Fim Supremo”.
Com efeito, para ele a Meta e o Fim eram estar junto e unir-se com Deus que está
acima de tudo, mas, enquanto sei, no tempo que com ele convivi, ele alcançou bem
quatro vezes esse Fim, como um ato inefável (grifo meu).
(Porfírio, Vida de Plotino, 23)
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Refere-se a Plotino
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A MÍSTICA ESPANHOLA
A Mística Espanhola conheceu seu apogeu no período entre 1560 a 1600,
caracterizando-se pela culminação da produção mística. A fertilidade de autores e
doutrinas levou a uma subdivisão em diversas correntes, sendo três as mais
representativas: Mística Afetiva, Mística Intelectualista e Mística Eclética. O presente
estudo abordará as místicas Afetiva e Eclética.
A Mística Afetiva, formada pelos Agostinianos e Franciscanos, caracteriza-se pelo
predomínio do sentimental e tem sempre presente Cristo-Homem como melhor guia
para se chegar à divindade. Afirmam que o misticismo é uma ciência puramente
afetiva, de amor, sem que dela façam parte o discurso e a meditação. O Agostiniano
Frei Luis de Leon (1528?-1591), cuja doutrina do livre-arbítrio e sua exaltação de
Cristo-Homem o colocaram como expoente do misticismo espanhol. Suas obras
principais são “Nomes de Cristo”, de um misticismo sublime e “Comentário ao Cantar
dos Cantares”, considerado um verdadeiro tratado de vida espiritual. Neste livro se
estuda a ascensão do espírito humano através de etapas até chegar a mística e
frutífera união com Deus.
Os Franciscanos, alimentados com as páginas ardentes de São Boaventura, levaram
a espiritualidade da Ordem a uma altura de onde se pode vislumbrar claramente a
elevação de Santa Teresa e São João da Cruz. Entre as personalidades que mais se
destacaram na Mística Espanhola, considerado o verdadeiro representante da escola
franciscana, está Frei João dos Anjos (1536?-1609), cujos livros mais parecem
tratados doutrinais elaborados por um filósofo. De ampla cultura renascentista, utilizouse de uma vastíssima coleção de autores e obras, citando em seus escritos Pitágoras,
Sêneca, Plotino, Aristóteles e Ovídio. Sentia um verdadeiro fervor por Platão, sendo
platônica a sua concepção da alma e da beleza e teve uma formação classicamente
humanista e sistematicamente teológica. Para ele, a perfeição da alma está em chegar
ao amor unitivo, não sendo necessário prescindir da obra intelectiva, pois considerava
um meio para conseguir a perfeição do amor, mas sim purificar a inteligência de todas
as suas apreensões, como inúteis com relação ao perfeito conhecimento de Deus.
A Escola Eclética é representada pela mística carmelitana. Suas origens são bem
remotas e sua espiritualidade põe a pureza da alma na contemplação divina do duplo
fim da vida sobrenatural. Não são finalidades paralelas, pois o primeiro será o
resultado de um esforço contínuo do homem por livrar-se de tudo o que mancha o
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espírito, enquanto o outro responde a uma graça liberal e gratuita de Deus, que mostra
à alma a doçura de sua divina presença. Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz
foram os responsáveis pela mística carmelitana. Santa Teresa (1515-1582) encarna a
figura mais extraordinária da mulher na literatura e na história da Espanha. A mística
teresiana está intimamente ligada à tradição mística e patrística cristã e sua obra
representa o melhor inventário e o estudo mais completo dos diversos estados e
matizes do caminho que leva a alma à união com Deus. Não há na mística universal
um só fenômeno que não esteja observado, estudado e enumerado na obra teresiana.
Amigo inseparável e discípulo de Santa Teresa, além de companheiro na reforma da
Ordem Carmelita, São João da Cruz (1524-1591) levava consigo sua experiência
pessoal sobre os caminhos por que passa a alma, além de uma refinada cultura
literária e uma ciência filosófico-teológica tão completa quanto possível em sua época.
Berta Pensado esclarece que a diferença fundamental entre Santa Tereza e São João
da Cruz está em que a primeira se contenta em descrever os fenômenos, enquanto
São João se preocupa em dar a explicação filosófica dos mesmos. Com ambos, a
mística doutrinal se tornava completa e definida para sempre como uma ramificação
da teologia.
O DIÁLOGO DE SÓCRATES E DIOTIMA
Conforme nos relatou Porfírio, Plotino, um dos pilares da formação da mística
espanhola, baseou-se no texto do “Banquete” de Platão para formular sua mística para
a união da alma com Deus. Nesse texto, Platão define o amor e suas virtudes. No
entanto, é no diálogo de Sócrates com Diotima de Mantinéia, 210 a 212a, que o
Filósofo mostra o caminho para a contemplação do Belo, do Bem, do Amor maior.
Diotima explica em 210a que, para se atingir esta contemplação, é necessário
proceder gradualmente: “... mas quanto em sua perfeita contemplação, em vista da
qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente...”. Continua
esclarecendo quais são essas etapas ou graus que a Alma deve percorrer para a
visão do Bem. Primeiramente a Alma está presa à matéria e ao mundo que a volteia,
amando um só corpo, “produzindo belos discursos”, o que significa o aprimoramento
intelectual. Depois, a Alma entende que somente isso não lhe basta e percebe que ela
é muito maior do que a “prisão” ilusória em que vive e que está inserida também em
tudo: tudo é um, tudo é uno em um Amor maior, como esclarece em 210b: “... depois
deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em
qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria
não
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considerar uma só e a mesma beleza em todos os corpos”. E é exatamente após
a
Alma perceber que o Belo é latente em tudo, que ela deve proceder para que tudo a
sua volta reflita beleza; transcenda a si mesma para que só o Belo seja manifestado.
A seguir, em 210d, Diotima apresenta como próximo grau as ciências, objetivando a
sabedoria: “...mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos
discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à
sabedoria...”.
Finalmente se atinge o grau máximo, a contemplação do Belo, a união da Alma com o
divino: “... até que ai, robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única,
tal que seu objeto é o belo seguinte”. Em 211c, apresenta um resumo do caminho a
ser seguido pela Alma, das etapas ou graus a serem percorridos:
Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou
por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo,
subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para
todos os belos corpos , e dos belos corpos para os belos ofícios e todos ofícios para as
belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão
daquele próprio belo e conheça enfim o que em si é belo.
Da mesma forma, São João da Cruz estabelece que a Alma carece de percorrer um
caminho para sua ascese. Suas exposições escalonadas das ascensões da alma a
Deus estão recheadas de método e de ciência: claridade e precisão perfeitas das
definições dos fenômenos místicos, solidez das provas que invariavelmente sujeita
suas principais asseverações e ordem rigorosa das fases que tão seguramente vai
descrevendo. Primeiro, vem como preparação negativa, porém indispensável, as
purificações ativas dos sentidos em todos os seus apetites, único meio de elevar-nos a
Deus e de unirmos com ele. Essa necessidade de passar por provações, duras penas
também é relatada na fala de Diotima em 210e: “... já chegando ao ápice dos graus do
amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo
mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores....”.
Depois, conforme São João, seguem as purificações passivas, obra principal da
contemplação e, por último Deus mesmo descende à criatura, purificando os sentidos,
fortalecendo e fazendo com que o espírito se desfaleça em arroubos ante suas
inefáveis comunicações. Logo, essa mesma contemplação se desenvolve em uma
série de gozos, nos quais a alma se recobra e prepara-se para o amargo purgatório da
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parte espiritual que a espera. Por fim, se verifica a união tão esperada, cujas etapas
vão se expondo, escalonadas com graus de luz e de amor, até chegar àquela
aspiração de bem-aventurança e glória plena, em que o Espírito Santo enamora a
Alma. É quando, como explica Diotima em 211e e 212a, se atinge a verdadeira
virtude.
Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o
próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras
muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única
contemplar? Porventura pensas, disse, que é a vida vã a de um homem a olhar naquela
direção e aquele objeto, com aquilo (isto é, com a inteligência, ou antes, com a própria
alma, livre das suas relações com o corpo, N.T.) com que deve, quando o contempla e
com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo
com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude,
porque não é em sombra que estará tocando, mais reais virtudes, porque é no real que
estará tocando?
CONCLUSÃO
A mística medieval e a patrística foram fortemente influenciadas pelo
pensamento árabe na revolução da filosofia escolástica medieval e, como a mística
espanhola estava fortemente ligada a elas, não foi difícil chegar à Espanha as
doutrinas místico-filosóficas do semitismo. Tal acontecimento se deu através da escola
de Ibn Masarra (Séc. X) que, por sua vez, foi profundamente influenciada por outra
fonte mais remota: o misticismo alexandrino. A doutrina semítica de Ibn Masarra tem
conceitos profundamente influenciados pela filosofia grega, adquiridos durante o
período que esteve estudando no Oriente, conforme apurou o estudioso Miguel Asin
Palácios ao afirmar que no Oriente Ibn Masarra recolheu elementos neoplatônicos,
principalmente de Filon e Plotino, que haviam sido passados ao Islã através das
traduções greco-árabes, bem como das tradições orais das gnoses cristãs que formam
parte da bagagem intelectual dos sufis. Depois, retornou à Espanha onde fundou uma
escola e teve muitos discípulos, difundindo assim sua doutrina.
Ibn Masarra concebia Deus como Unidade perfeita e suprema, cujo conhecimento só
pode ser alcançado por via mística, ou seja, por uma fusão da alma com Deus. Para
tal fusão, Ibn Masarra instituiu uma série de regras de vida espiritual, nas quais se
sobressaiam a humildade, a oração, a penitência e a mortificação. Sua doutrina de
ascese da alma exerceu grande influência na formação das místicas Afetiva e Eclética
espanholas e de forma profunda em São João da Cruz.
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Desta forma, o caminho de ascese da alma ao divino indicado por Platão no
“Banquete”, serviu de base para a doutrina filosófica de Plotino que, por sua vez, foi
fundamental para a doutrina mística de Ibn Masarra. Este, através de sua escola, é
considerado o grande iniciador da mística espanhola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
LAUER, Robert A. La Mística Española disponível em:< http://faculty-staff.ou.edu/L/ARobert.R.Lauer-1/Mistica.html >, Universidade de Oklahoma, EUA. Acesso em 20 de
junho de 2007.
PALACIOS, Miguel Asin. Ibn Masarra y su escuela, Orígenes de la filosofia hispanomusulmana. Madrid: Imp. E. Maestre, 1914.
PENSADO, Berta. La Mística, Temas Españoles 208, Madrid, 1955.
PLATÃO, O Banquete in Obras Completas, Coleção Os Pensadores, vol. III. São
Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, Vol. IV. São Paulo: Edições Loyola,
1993.
PROJETO DE PESQUISA: Laboratório de Lógica e Epistemologia
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