medida protetiva com pedido de alimentos - santo amaro

Transcrição

medida protetiva com pedido de alimentos - santo amaro
EXMA. SRA. DRA. JUIZ DE DIREITO DA VARA DE
FEITOS CRIMINAIS DE SANTO AMARO-BA, COM
ATRIBUIÇÕES EM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Medida Protetiva Ref. IP 68-2014 - MGC - SIMP
724.0.176892-2014
Data do fato: 03/11/2013
Tipificação: art. 147 do CP, com ref. ao art. 7°
da Lei 11.340/2006 e art. 387, IV do CPP
Recebidos em 08/09/14
Retornam em 17/09/14 (4ª feira)
___________________________
Assinatura do(a) recebedor(a)
Maria, Maria – Elis Regina
Compositores: (M.Nascimento/ F. Brant)
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por seu órgão de execução infra firmado,
EM BENEFÍCIO DE ROSINEIDE MACHADO DE ALCÂNTARA, manicure, residente Rua da Mata,
101, Candolândia, Santo Amaro-BA, tel. (75) 8205-5820 e sua filha de 04 anos, Raila Maiane
de Alcântara Pereira, residente no mesmo endereço de sua genitora, com fundamento no
art. 19, § 3° da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), no art. 888 do CPC,
e, ainda, CONSIDERANDO as determinações da Convenção da Mulher (CEDAW), internalizada
pelo Dec. 4377, de 13/09/02, do art. 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC), internalizado pelo Dec. 591,de 06/07/92,
da Convenção
interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de
Belém do Pará), de 09/Jun/1994, ratificada pelo Brasil em 1995 e internalizada pelo Dec.
1
1.973, de 1°/08/1996, bem como o Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que institui o
Programa Nacional de Direitos Humanos 3, a Política Nacional de Redução da
Morbimortalidade por Acidentes e Violências do Ministério da Saúde, aprovada pela Portaria
MS 737, de 16/05/2001 e a Lei 10.778/2003,
Vem requerer
MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
em
detrimento de:
CARLOS ALBERTO DA PAIXÃO PEREIRA, conhecido como “TUCA”, brasileiro, maior,
solteiro, profissão ignorada, nascido em 31/05/1984, filho de Aloisio Pereira e Maria Francisca da
Paixão, RG 0998267040 SSP-BA, residente na Rua A, N° 86, Candolândia, Santo Amaro-BA, Tel. (75)
8332-0069, Santo Amaro-BA, doravante denominado Requerido.
I-
DOS FATOS
Consta no procedimento anexo que no dia 03 de novembro de 2013, às 11h00, Rosineide
Machado de Alcântara se encontrava aguardando atendimento na entrada do órgão de assistência
social, quando o Requerido compareceu e lhe exibiu um revólver, dizendo que somente não a
mataria ali por causa da presença da filha de 03 anos, e que “possui amizades com pessoas da
pesada, e basta uma ligação para apagá-la”. O motivo da agressão moral seria uma queixa da atual
companheira do denunciad, Francinira Ramos, contra Rosineide.
Rosineide revelou temer que o Requerido pudesse concretizar a ameaça, em razão do
mesmo possuir arma de fogo e de já ter sido agredida antes pelo Requerido durante a convivência.
Ao ser interrogado o Requerido negou ter ameaçado a ofendida.
O casal conviveu juntos por cerca de 11 anos, e possuem uma filha de 04 anos, Raila
Maiane de Alcântara Pereira.
A vítima manifestou interesse nas seguintes medidas protetivas: arbitramento de pensão
alimentícia para a filha Raila Maiane de Alcântara Pereira, acompanhamento psicossocial da
ofendida e de sua filha; restrição do direito de visitas paternas em razão do uso de drogas pelo
Requerido ; acompanhamento temporário da criança pelo CT em razão de ter sido afetada pela
violência; reeducação do agressor.
2
É o relatório.
O fumus boni juris está presente face a atualidade da Lei Maria da Penha e demais
dispositivos legais indicados acima.
O periculum in mora ainda persiste enquanto a rede de atendimento não comprovar que
os atos de violência já cessaram, considerando que as práticas de violência contra a mulher são
culturalmente assimiladas, e sua desconstrução somente pode ocorrer mediante processo de
aprendizagem, através de maior acesso a informação, seja através de mecanismos de educação
formal, seja através de métodos informais, tais como medidas de reeducação do agressor.
O art. 19, caput, confere ao MP legitimidade para requerer outras medidas protetivas.
A Lei Maria da Penha prevê expressamente a possibilidade de inclusão no PAIF ou PAEFI ,
cf. arts. 24-A e 24-B da Lei Orgânica de Assistência Social e art. 1°, incisos I, “a” e II, “a” da
Resolução CNAS 109/09, ou em outros programas oficiais, cf. se vê nos seus arts. 9°, § 1°, 23, I, 30 e
35, IV:
Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e
familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as
diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único
de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e
políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1° O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em
situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas
assistenciais do governo federal, estadual e municipal.
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou
comunitário de proteção ou de atendimento;
Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras
atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer
subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública,
mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de
orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a
ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos
adolescentes.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão
criar e promover, no limite das respectivas competências:
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e
familiar;
3
O PAIF é um programa de prevenção de violações de direitos, para fortalecimento dos
vínculos familiares e fomento à cultura da paz. A proteção social básica é cabível sempre que as
famílias se encontram em situação de vulnerabilidade, mas nas quais ainda não ocorrem violações de
direitos consumadas. Todas as famílias que fazem jus ao Bolsa Família, por exemplo, são
acompanhadas pela equipe de proteção básica, cujo serviço é ofertado nos CRAS.
Havendo situação de queixa de violência doméstica, em tese, a competência de
acompanhamento é do CREAS, mas é possível que este órgão conclua que a situação de violência já
cessou, e faça a contrarreferência para o CRAS. Do mesmo modo, sendo acompanhada pelo CRAS, e
este órgão vislumbrando situações de direitos já violados, pode referenciar a família para o CREAS.
Uma vez que estes órgãos dispõem de equipes técnicas com assistente social, psicólogo e monitor
social, entende-se que estejam capacitados para realizar o correto diagnóstico de cada caso e
elaborar um plano de atendimento que comporte as necessidades da família/ofendida.
Pode-se afirmar que os casos de violência doméstica representam uma demanda
específica que exige suporte técnico multidisciplinar para corroborar a decisão judicial, pois uma
análise limitada às falas dos envolvidos, sem exame do contexto social, familiar e pessoal em que
vivem, pode não contemplar suas reais necessidades. Por esse motivo a lei Maria da Penha é muito
clara, ao exigir uma atuação integrada do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) (art.8°, I).
A Lei Maria da Penha também alberga a possibilidade de alimentos provisionais ou
provisórios, cf. art.22, V.
A privação alimentar é uma das formas de violência patrimonial, definida na Lei Maria da
Penha como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.
Relativamente aos alimentos, assim conclui Berenice Dias:
Identificada como violência patrimonial a subtração de valores, direitos e
recursos econômicos destinados a satisfazer as necessidades da mulher,
neste conceito se encaixa o não pagamento de alimentos. Deixar o
alimentante de atender a obrigação alimentar, quando dispõe de condições
4
econômicas, além da violência patrimonial, a omissão tipifica o delito de
abandono material 1.
Evidentemente, estando a relação amorosa desfeita, devido à cultura sexista, os
agressores buscam sempre atingir a vítima omitindo-se de qualquer ajuda alimentar aos filhos,
situação que se agrava quando a mulher começa a conviver com novo companheiro. A criança sofre
duplamente: não recebe a devida assistência alimentar paterna e o padrasto por seu turno também
não se sente obrigado, por não ser o genitor ou por ter outros filhos biológicos que precisa sustentar.
Assim, é preciso assegurar que, com a ruptura da relação por meios traumáticos e desarmoniosos,
possa a mulher e os filhos terem assegurados o direito de assistência alimentar adequada.
O art. 22 da Lei 11.340/06 prevê algumas medidas que obrigam o agressor – o rol indicado
é apenas exemplificativo. Assim, existindo outras medidas que possam contribuir para a proteção da
ofendida, estão albergadas nesse dispositivo, § 1°, que assim reza:
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras
previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou
as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao
Ministério Público.
Assim, dentre outras medidas possíveis que obrigam o agressor e se adéquam à descrição
de violência intrafamiliar apurada no procedimento policial, destaca-se a medida de
encaminhamento do agressor para participar de atividades informativas sobre direitos humanos das
mulheres e violência de gênero e, ainda, quando necessário, tratamento de saúde e
acompanhamento socioassistencial quando há relatos de abuso de álcool ou drogas.
Importante ressaltar que essa medida não representa um ônus desarrazoável para o
agressor, pois também é prevista no ECA como medida protetiva, tendo feito o legislador uma opção
clara – mais do que a defesa do direito individual do agressor a não participar de programas
governamentais ou de não se submeter a tratamento quando necessário, há de prevalecer a
proteção da mulher, da criança ou do idoso, conforme se trate de medida albergada sob o manto da
Lei Maria da Penha, do ECA ou do Estatuto do Idoso. O importante é prevenir a violência e
1
Dias, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça. São Paulo: Ed. RT, 3 ed . 2012, p. 72
5
salvaguardar a vida, saúde e dignidade de todas/os que se encontram em situação de risco social em
razão do comportamento do esposo/companheiro/genitor/parente.
II-
GÊNERO, PATRIARCADO E VIOLÊNCIA
A Lei Maria da Penha, resultante da condenação do Estado brasileiro pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, é uma das maiores conquistas na extensa luta do movimento
feminista no país, para mudar a cultura enraigada de dominação e submissão da mulher em todos os
campos da vida e possibilitar a observância do direito fundamental à igualdade entre homens e
mulheres.
Tradicionalmente, vivemos em uma sociedade patriarcal, de forte dominação masculina e
submissão da mulher, que tem seu ápice nos elevados índices de violência contra a mulher no espaço
familiar privado, sob as mais diversas formas: física, psicológica, moral, patrimonial, sexual.
A mulher, subjugada principalmente no espaço doméstico ao seu papel de dona de casa,
mãe e serviçal do homem tido como provedor do lar, não tem as condições sociais e econômicas
favoráveis para sua inserção no espaço público em condições de igualdade e competitividade com o
homem, e mesmo nas classes mais baixas, que sujeitam as mulheres a uma maior exploração
econômica e social, exigindo-lhe uma sobrejornada de trabalho fora e dentro de casa, seu trânsito no
espaço público é limitado à exploração laboral, servindo como mão de obra mais barata para o
sistema capitalista. No espaço privado, é igualmente explorada como mantenedora-provedora da
estrutura familiar.
Esse processo de desigualdade, exploração-dominação e opressão se encontra nas bases do
sistema patriarcal, desde tempos imemoriais, portanto, a desigualdade de gênero é antes de tudo
um construto social.
Gênero e patriarcado, porém, não são conceitos temporâneos. Ainda hoje as feministas
divergem sobre a natureza e o alcance do patriarcado, assim como sobre o conceito de gênero,
devido à sua inevitável polissemia. Para alguns, o patriarcado subsiste em todo o seu esplendor
dominante; para outras feministas, especialmente as de língua inglesa, o patriarcado foi substituído
pelo gênero, ou ao menos encontra-se em estado terminal. 2
SAFFIOTI, Heleieth. Ontogênese e filogênese do gênero: ordem patriarcal de gênero e a violência
masculina contra mulheres. Série Estudos e Ensaios – Ciências Sociais/ FLACSO Brasil. Junho 2009, p. 02.
2
6
As feministas radicais da década de 60 usavam um conceito de patriarcado enquanto mera
dominação, desfalcado de seu conteúdo de exploração, o que é visto criticamente por Saffioti,
feminista convicta para a qual o patriarcado representa “um dos esquemas de dominaçãoexploração componentes de uma simbiose da qual participam também o modo de produção e o
racismo”, rendendo ensejo a uma nova concepção de relações de gênero baseada na simbiose
patriarcado-racismo-capitalismo (Alcântara, 1998: 39).
Engels tratou da opressão feminina sob a ótica da divisão de trabalho gerada pela
propriedade privada – o homem, como responsável pelos alimentos, era o detentor dos
instrumentos de trabalho enquanto a mulher, confinada no espaço doméstico, não detinha poder
para acumular riquezas, exercendo tão somente o papel de reprodutora da espécie para manutenção
da força de trabalho masculina. Essa família burguesa patriarcal centrada na propriedade privada
seria a responsável pela divisão da sociedade em classes, de um lado, os exploradores, de outro os
explorados.
Essa concepção de opressão feminina centrada na propriedade privada caiu por terra
quando se verificou que nas sociedades socialistas que se sucederam, mesmo com a abolição da
propriedade privada, a opressão feminina subsistiu. A divisão “natural” do trabalho apontada por
Marx e Engels não tinha nada de natural, mas de socialmente construído: não era natural confinar as
atividades domésticas ao domínio feminino, e as atividades externas aos homens, isso foi uma
convenção, uma conveniência masculina resultante das relações sociais de produção, e não da
natureza. Para Rosaldo e Lamphere, “a assimetria sexual é um fato universal da vida social humana”
(apud Alcântara, 1998: 22). A concepção marxista de divisão natural do trabalho é tida inclusive
como oposta ao materialismo histórico, que reconhecia que as relações de produção capitalista
determinavam a vida do homem (mas não da mulher enquanto categoria gendrada). 3
Para Marx, o homem vendia a sua força de trabalho ao capital, e para a perpetuação do
capital era necessária a reprodução da força de trabalho, daí a importância da mulher como
procriadora de mão de obra para o capital.
Disponível
em
http://flacso.org.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=53&dir=DESC&order=date&Itemid=1
37&limit=5&limitstart=5
3
Para Marx, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, pelo contrário, seu ser social é
o que determina sua consciência”. (apud Alcântara, 1998: 23)
7
O que havia de errado com a teoria marxista, na concepção de Eisenstein, é que aquela não
enxergava que a exploração do homem e da mulher não tinha as mesmas bases, e que mesmo numa
sociedade comunista a divisão de trabalho entre o homem e a mulher se perpetuaria nos mesmos
moldes, impedindo a emancipação feminina pela sua contenção no espaço doméstico.
Outra teórica feminista, Batya Weinbaum, argumentava que a divisão de trabalho por sexo
determinava a opressão feminina pela dependência econômica, enquanto a divisão do trabalho por
idade criava a base do patriarcado pela dependência econômica do pai.
Para as teóricas socialistas femininas, portanto, a opressão estava diretamente imbricada
com a organização sexual da sociedade (o patriarcado), ao passo que a exploração derivava do
sistema de divisão de classe (Alcântara, 1998: 35-36).
Em 1949 Simone de Beauvoir publica “O Segundo Sexo”, avançando nas teorias de Marx e
Engels ao incorporar na concepção de opressão feminina os aspectos culturais e psicológicos:
“nenhuma mulher nasce, psíquica ou mentalmente, falando mulher, porém nos convertem, as
tradições, os costumes, a cultura, em mulher”.
A primeira feminista a utilizar os conceitos de Weber sobre poder e dominação patriarcal
para analisar a subordinação feminina foi Kate Millett. Para ela, o domínio masculino se assenta na
crença de supremacia biológica do homem, e o patriarcado é visto como “uma instituição revestida
de aspectos ideológicos e biológicos que têm a ver com a divisão social, os mitos, a religião, a
educação e a economia” (apud Alcântara, 1998: 29)
As feministas radicais, prossegue Ana Alice Alcântara, viam o patriarcado como “um
sistema sexual do poder, como a organização hierárquica masculina da sociedade que se perpetua
através do matrimônio, da família e da divisão sexual do trabalho” (Alcântara, 1998: 30).
Essa concepção do patriarcado centrada no essencialismo biológico foi duramente
criticada, por ignorar o aporte histórico que condicionou a instituição patriarcal. Para Gayle Rubin,
entender o patriarcado desse modo unívoco é um equívoco, propondo a utilização do termo
sistemas sexo/gênero para explicar melhor a distinção sexual.
Tem-se, assim, que o sistema de dominação masculina foi escalonado em 03 classificações:
para Marx, era classista; para Weber, decorria do patriarcado; para as feministas pós-radicais, como
Gayle Rubin, decorria da distinção de sexo/gênero. Isoladamente, nenhum desses conceitos é
8
suficiente, mas juntos evidenciam as várias formas que o patriarcado enquanto sistema universal de
natureza política, econômica e social pode assumir, revelando um fenômeno mais complexo, não tão
minimalista quanto a concepção biologista/sexista, nem tão essencialmente ahistórico.
Para Ana Alice Alcântara Costa, a categoria mulher é o seu objeto de análise, “localizada em
um contexto de opressão e exploração que determina seu papel na sociedade” 4. A opressão feminina
enquanto não poder das mulheres opõe-se à dominação masculina enquanto expressão do poder
androcêntrico largamente disseminado na sociedade, poder este que Marcela Lagarde
oportunamente descreveu como “essência do cativeiro da mulher e dos cativeiros das mulheres”
(apud Alcântara, 1998, p. 19). E prossegue: “Quem exerce o poder se arroga o direito ao castigo e a
postergar bens materiais e simbólicos. Dessa posição domina, julga, sentencia e perdoa. Ao fazê-lo,
acumula e reproduz o poder”.
Einsenstein desenvolve melhor a idéia de interdependência entre o capitalismo e o
patriarcado, que aprofunda a fenda entre o espaço público e o privado, enquanto Combes e Haicault
apontam o ambiente familiar como cenário propício à dominação capitalista e à reprodução das
relações antagônicas de classe e sexo.
Para Alcântara, a concepção da simbiose capitalismo-racismo-gênero, de Saffioti, é a que
melhor se adéqua à atual estrutura do patriarcado, primeiro ao fixar a interdependência entre o
patriarcado e o capitalismo, já apontado por Einsenstein, mas superando este, ao evidenciar que as
relações de classe e gênero são mutuamente constitutivas, de modo que o sistema de classes não é
observado apenas no plano econômico, e o patriarcado não se restringe ao campo político.
Patriarcado e capitalismo são instrumentos de dominação econômica, política e social; sua simbiose
resulta de sua complementariedade.
O conceito de gênero foi primeiro usado por Kate Millett em sua tese de doutorado, em
1969, para rejeitar o essencialismo biológico até então utilizado para explicar as desigualdades entre
homens e mulheres.
Trata-se de um conceito analítico e relacional, que tem a vantagem de contemplar os
processos históricos que explicam a transformação das pessoas através das relações de gênero.
4
COSTA, Ana Alice Alcântara. As donas no poder. Mulher e Política na Bahia. Salvador: NEIM/ALBa,
1998, p. 15. Disponível em: http://www.neim.ufba.br/site/arquivos/file/donasnopoder.pdf
9
O gênero, para Marta Lamas, “é o conjunto de idéias sobre a diferença sexual que atribui
características “femininas” a cada sexo, a suas atividades e condutas e às esferas da vida”. E
prossegue: “mediante o processo de constituição do gênero a sociedade fabrica as idéias do que
devem ser os homens e as mulheres, do que é próprio de cada sexo (...) o gênero não só marca os
sexos, mas também marca a percepção de todos os demais: o social, o político, o religioso, o
cotidiano” (Apud Alcântara, 1998: 42).
É nesse contexto que o homem criado à imagem e semelhança do sistema patriarcal
naturaliza as idéias de que determinadas atividades só podem ser exercidas por mulheres, outras por
homens; que as mulheres choram, os homens não; que as mulheres são o sexo frágil, e os homens
encarnam o poder; que o homem que não revidar a agressão ou a violência é tido como nãohomem, etc. Dessas idéias-matriz parte toda uma tradição de diferenciação entre os gêneros, com
características predominantemente positivas para o sexo masculino, e predominantemente
depreciativas ou desempoderadas para as mulheres: os homens dominam, as mulheres obedecem. O
destino das mulheres está então invariavelmente relacionado ao destino do homem; sem o homem,
a mulher não existe.
É esse pensamento patriarcal desigual que faz o homem julgar que tem o poder de bater,
maltratar, espezinhar e humilhar a mulher que de algum modo o contraria ou o faz sentir-se
prejudicado: esse homem detem o poder sobre o corpo da mulher, porque isso foi aprendido; a
violência é um meio de resolver os problemas do homem “ofendido”. Esse sistema de dominação é
tão forte, por exemplo, que em muitos delitos de femicídio o autor comete as maiores atrocidades
com o corpo feminino: a mulher é torturada e mutilada antes de ser morta; se permanecer viva, terá
que viver para sempre com as marcas do castigo entendido por ele como “merecido”.
Em meados da década de 80 Joan Scott apontou uma grande deficiência na teoria do
patriarcado: o fato de não explicar o que a desigualdade de gênero tem a ver com as outras formas
de desigualdade. Mas a mesma crítica também é feita às adeptas do gênero como categoria
substitutiva do patriarcado.
O conceito de gênero de Joan Scott aponta duas características principais: primeiro, o fato
do gênero ser um conceito relacional, constitutivo das relações sociais que se desenvolvem com
10
base nas diferenças de comportamento entre os sexos 5; em segundo lugar, o gênero é concebido
como uma nova forma de ressignificação das relações de poder no Ocidente e nas tradições judaicocristãs e islâmicas (Alcântara, 1998: 44)
Assim, esclarecidos os conceitos fundamentais para a compreensão da matéria, podemos
tratar especificamente da violência doméstica enquanto forma de dominação masculina extrema que
se consuma no ambiente privado, portanto, trata-se de apenas uma das formas de violência de
gênero.
III-
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E PEDAGOGIA DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR
“A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto
da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens
são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da praxis”, se volta
sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa
histórica, é tarefa dos homens” 6.
A mulher criada no sistema patriarcal acaba reproduzindo não intencionalmente o
dicionário da dominação masculina transmitindo para os filhos os valores cultural e socialmente
herdados sobre os papéis do homem e da mulher: para a mulher oprimida, lugar de mulher é em
casa, fazendo trabalhos domésticos, reproduzindo e criando os filhos; para a sociedade omissa e
desigual, “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, e o homem tem o direito de dar a
última palavra em casa. Nada pode ser mais representativo do quão distante estamos de uma
sociedade verdadeiramente igualitária
Faz parte da pedagogia da violência a aprendizagem através das experiências individuais e
práticas sociais; assim, quanto mais se exercita a violência, mais se reproduz o seu capital simbólico
multiplicador. A criança que vê o pai batendo, maltratando e espezinhando a mãe, tende a
desenvolver a mesma conduta nas suas relações sociais: vai bater no coleguinha na escola, mais
tarde vai bater na namorada, e mais tarde ainda, num acesso de ira, pode matar a mulher.
5
Para Jane Flax, “o conteúdo real de ser homem ou mulher e a rigidez das próprias categorias são
altamente variáveis de acordo com épocas e culturas” (...) Ou seja, as relações de gênero têm sido definidas e
controladas por um de seus aspectos inter-relacionados – o homem” (apud Alcântara, 1998: 45)
6
Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.
11
A Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de violência contra a
mulher (também chamada de Convenção de Belém do Pará) 7, em seu artigo segundo, assim classifica
a violência contra a mulher:
Artigo 2
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e
psicológica:
a.
ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer
relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a
sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso
sexual;
b.
ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre
outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição
forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições
educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c.
perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
A Lei Maria da Penha, resultante de condenação do Estado brasileiro no sistema
interamericano de direitos humanos, aborda apenas a violência ocorrida na esfera das relações
intrafamiliares, que pode ser de ordem física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
A violência física se caracteriza pelo uso da força para causar injúria, ferida, dor ou
incapacidade;
A violência psicológica se caracteriza por atos de difamação (atribuição de fato ofensivo à
dignidade da pessoa), injúria (ofensa à honra e ao bom conceito moral que a pessoa goza na
7
Os tratados de direitos humanos têm status de normas constitucionais de efeito material, segundo o
entendimento dos constitucionalistas internacionalistas, por força do art. 5°, § 2° da CF, mas para o STF esses
tratados anteriores à EC 45 que não foram aprovados com quorum qualificadíssimo de emenda constitucional
têm status supra legal, isto é, embora hierarquicamente superiores às normas federais, estão abaixo das
normas constitucionais. No campo do controle da convencionalidade, ainda que uma norma internacional
esteja em conflito com norma interna, constitucional ou não, o Estado Parte não pode invocar disposição do
direito interno para contrariar normativa internacional, submetendo-se às conseqüências do inadimplemento,
caso insista em conferir prioridade às normas internas conflitantes. Em tema de violência contra a mulher, a Lei
Maria da Penha adotou quase integralmente os conceitos da convenção interamericana, exceto em relação à
conceituação da violência institucional, que não foi abordada pela Lei Maria da Penha, esta restrita à violência
ocorrida na esfera das relações interpessoais. O descumprimento da Convenção, gerando grave prejuízo à
vítima, pode ser objeto de petição individual perante a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
como ocorreu no caso Maria da Penha. Dado o estado dos direitos humanos no país e a flagrante omissão de
políticas de gênero, o Brasil não está livre de responder a qualquer momento por violação de direitos humanos
da mulher.
12
comunidade), calúnia (atribuição de ato criminoso à pessoa, falsamente), ameaça, constrangimento
ou humilhação, mediante agressões verbais ou gestuais, bem como atos de manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração, limitação do direito de ir e vir (cárcere privado ou outra forma de restrição da liberdade
da pessoa) ou qualquer outro meio que acarrete dano emocional, diminuição da auto-estima e autodeterminação ou restrição da liberdade, impedindo o convívio social e prejudicando o pleno
desenvolvimento da pessoa.
A violência sexual se manifesta quando a vítima é obrigada a presenciar, manter ou
participar de conúbio sexual ou ato libidinoso mediante aliciamento, intimidação, ameaça, coação ou
uso da força, ou quando é induzida a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade, ou é impedida de usar qualquer método contraceptivo, ou, ainda,
forçada ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou qualquer outro ato que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos;
A violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou
injúria, provoca danos à imagem social da pessoa.
A violência por negligência se verifica quando não são providos os cuidados devidos pela
família ou instituição, sendo muito comum em relação a mulheres idosas ou com deficiência.
A violência patrimonial é definida como qualquer conduta que configure retenção,
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades.
Na tipologia da violência, 44,6% dos casos registrados são de agressão psicológica; 18,2%
são de agressão física e 5% são de agressão sexual. Em regra, essas formas de violência não se
manifestam isoladamente, mas conjugadas: junto com a agressão física geralmente vem a agressão
psicológica ou moral, e estas muitas vezes são precedidas de violência patrimonial.
A Organização Mundial de Saúde já classificou a violência contra a mulher como um
problema de saúde pública.
13
O relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI criada pelo Congresso
Nacional em 2012 para tratar da violência contra a mulher no país apresenta dados preocupantes de
uma sociedade que insiste em gozar os benefícios do capitalismo e da classe ignorando a submissão
feminina e a dominação masculina que ditam as desigualdades e legitimam as mais variadas formas
de violência contra a mulher, seja na esfera intrafamiliar, seja na esfera institucional 8.
Os números e os casos narrados assustam. Vejamos alguns exemplos.
O Brasil ocupa a sétima posição no mundo em número de assassinatos de mulheres entre
84 países. Nos últimos 30 anos, cerca de 91 mil mulheres foram mortas em decorrência da violência
doméstica, mais da metade nos últimos 10 anos, o que ilustra a pedagogia da violência. Em 2010
ocupávamos a 10ª posição; em apenas 03 anos, regredimos para a sétima posição das nações mais
violentas do mundo contra suas mulheres. Vide a tabela abaixo:
Obviamente, os números acima representam violência de gênero, não necessariamente
dentro de casa, mas a proporção de mulheres mortas dentro de casa é de 41%, contra 14,3% de
“incidentes” com os homens. Portanto, enquanto os homens são mortos na rua, em regra, as
mulheres são mortas quase majoritariamente dentro de casa, isto é, na esfera das relações
domésticas.
8
O texto final, de mil páginas, apresentado em agosto de 2013, é resultado de um ano e meio de
trabalho, que envolveu 24 audiências públicas em 18 estados e analisou mais de 30 mil laudas de documentos.
14
O grande risco da impunidade nos casos de violência de gênero é a perpetuação da
pedagogia da violência: uma vez que as condutas são aprendidas através da observação, isto é, da
relação entre as pessoas, do seu contexto histórico-social, a notícia da impunidade reproduz a idéia
do poder masculino.
Nesse contexto, o Município de Santo Amaro ocupa a 24ª posição no ranking dos
municípios mais violentos do Estado da Bahia, conforme se observa na tabela anexa:
Aspecto perverso da violência contra a mulher diz respeito ao seu efeito extensivo aos
filhos, pessoas idosas ou outras pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência econômica
do agressor que convivam com a vítima e o agressor.
Nas crianças e adolescentes, as conseqüências são mais ou menos graves: ansiedade
constante que pode resultar em efeitos físicos causados por tensão (dores de cabeça, úlceras,
problemas de fala, pode ficar amedrontada, quieta, isolada, agressiva); sentimento de culpa, por não
poder parar com as agressões, ou por amar o agressor; medo de ir a escola ou separar-se da mãe;
baixa-estima, medo, depressão e, às vezes, suicídio; comportamento delinqüente, inclusive agressão,
uso de drogas e fuga de casa; maior probabilidade de agredir suas companheiras, quando adultos, do
que meninos criados em lares sem violência 9.
9
Bahia, Ministério Público. Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher. Violência doméstica: compreender para
combater. Lei Maria da Penha. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Salvador, 2010, p. 11-12.
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São riscos a que crianças e adolescentes ficam expostos 10: podem ser vítimas de violência
doméstica (física ou sexual); podem ser negligenciados pelos agressores, ou pelas próprias mães, em
razão de proibição por parte do agressor; podem sofrer danos físicos ou morrer por ferimentos
acidentais.
Outro impacto negativo da violência doméstica é a restrição da participação social
feminina. Já foi um processo histórico lento a mulher conquistar o direito de voto e um certo nível de
emancipação; a violência doméstica contribui
seriamente para cercear o direito da mulher
participar dos instrumentos democráticos, como
eleições representativas, conselhos de direitos,
audiências públicas e atividades associativas,
dentre outras. Isso repercute no desenvolvimento
social, já que fragiliza o capital humano.
Em palestra proferida no IV Encontro
Nacional do Ministério Público, sob o tema
“Violência de Gênero, Boas Práticas e Experiências Internacionais”, realizado em São Paulo no
período de 27 a 29 de novembro de 2013, Marlene Neves Stray ressaltou a imprescindibilidade da
capacitação de todos os atores sociais para o fim da pedagogia da violência.
O relatório da CPMI ilustra alguns casos emblemáticos, dos quais destacamos, por ilustrar
melhor a falta de capacitação em gênero e a reprodução da discriminação contra a mulher por meio
da violência institucional, o seguinte caso:
Sra. RCMAA
A depoente foi casada por vinte anos, tem dois filhos de quinze e vinte
anos, respectivamente. Vivia em Porto Seguro e depois Ilhéus, está
sofrendo violência psicológica, moral, patrimonial efísica. A Depoente diz
que chegou a escutar que se registrasse queixa à polícia ele a mataria. A
depoente reclama que ao sofrer violência e procurar a autoridade policial
não tem suas queixas completamente acatadas, pois nas delegacias há o
padrão de só se aterem aos fatos presentes, desconsiderando o histórico de
violência, quer dizer apenas a agressão que a levou à delegacia importa
para o registro da ocorrência. O primeiro registro refere-se ao crime de
10
Bahia, Ministério Público. Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher. Violência doméstica: compreender para
combater. Lei Maria da Penha. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Salvador, 2010, p.12
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ameaça, na qual as testemunhas foram os próprios filhos. Na delegacia a
depoente precisou pedir para não depor junto com o agressor, pediu para
antecipar a audiência para não precisar ficar de frente com ele. Diz que o
agressor apresentou vinte e duas declarações de vizinhos de que nunca
viram nenhuma ameaça ou agressão. A depoente reclama que a audiência
criminal só se tratou dos aspectos cíveis. A queixa foi feita em 2009, foi
concedida uma medida protetiva de afastamento, descumprida inúmeras
vezes entre 2009 e 2010. O agressor conseguiu um agravo de instrumento
em 2009, com caráter de habeas corpus para visitar os filhos e, assim, se
aproximar da mesma. Foi obrigada a sair de casa, abandonar o lar para fugir
das agressões. O pai começou a submeter os filhos à situação de alienação
parental que fez com que o filho mais velho a violentasse psicologicamente.
Já foi ameaçada de morte varias vezes. Hoje é usuária de medicação
controlada. Reporta, ainda, que não conseguiu auxílio para garantir o
cumprimento da medida protetiva. Relata que ofício entregue foi perdido e
que na segunda tentativa somente foi concedida parte da medida protetiva.
O agressor descumpriu a MPU em Ilhéus e a depoente foi à delegacia, mas
não registrou, voltou para casa. Foi à Vara especializada em Salvador, onde
não recebeu atendimento adequado, a juíza reclamou de ela retornar à
Vara e não ter ficado em casa (Ilhéus), sendo ultrajada na frente do
psicólogo. Então a depoente ponderou com a juíza que a DEAM de Ilhéus
não tinha estrutura e não pode ser atendida, sendo contraditada pela
juíza que afirmou ter feito a parte dela e que não é problema dela a DEAM
não ter atendido. Mesmo informando à juíza que a medida protetiva
havia sido descumprida, nada foi feito. A depoente acredita que seu
processo na Vara passou a tramitar de forma peculiar. Toda audiência que
era marcada ele não era intimado e nem a carta precatória era enviada. A
juíza não deixou juntar nada ao processo, durante a audiência não havia a
presença do Ministério Público, não foi autorizada pela magistrada a
presença do psicossocial na audiência. A juíza determinou que o agressor
poderia suspender o plano de saúde e que as dívidas contraídas fossem
repartidas entre os dois, ainda que após a separação e tendo havido o
pedido de bloqueio de bens por parte da ofendida; revogou os alimentos e
a juíza determinou a guarda compartilhada e a divisão de bens, mesmo
não havendo acordo por parte ofendida. A depoente sentiu-se totalmente
negligenciada pela juíza durante a audiência. Mesmo não concordando
com a pronúncia da juíza, a depoente assinou o acordo e a separação
consensual para encerrar aquela audiência com tamanha humilhação que
estava sofrendo. A juíza queria encerrar a ação penal com a pronúncia da
sentença cível, como a depoente não aceitou o processo passou a tramitar
com problemas, sumindo processo inúmeras vezes, não constando todas
as petições. O MP está tentando anular a sentença. Foram marcadas cinco
audiências, sem que nenhuma diligência fosse realizada e as testemunhas
intimadas, bem como o próprio acusado. Foi solicitada a rescisória pela
ausência do Ministério Público na audiência.
O escritor José Saramago nos alertou: a justiça não deverá esquecer que é acima de tudo
restituição de direitos, começando pelo direito de uma vida digna sem violência.
17
E o não menos brilhante Eduardo Galeano nos acenou com a esperança de mudança:
“Embora estejamos malfeitos, ainda não estamos terminados; e é a aventura de mudar e de
mudarmos que faz com que valha a pena esta piscadela que somos na história do universo, este
fugaz calorzinho entre dois gelos”.
IV-
O ATENDIMENTO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A
NECESSIDADE DE MEDIDAS PROTETIVAS
As medidas protetivas de urgência são em muitos casos imprescindíveis para livrar a mulher
da situação de violência atual ou iminente, podendo se apresentar sob a forma de encaminhamento
da mulher para os órgãos de proteção social ou outros órgãos governamentais ou medidas
provisionais como separação de corpos, alimentos, distanciamento da vítima, regulamentação,
restrição ou suspensão de visitas aos filhos, mudança de guarda etc. As medidas indicadas nos artigos
23 e 24 da Lei Maria da Penha são apenas exemplificativas, podendo o Ministério Público requerer
medidas de outra natureza.
A rede de atendimento à mulher deve ser escalonada para contemplar o referenciamento
na rede socioassistencial para proteção social básica e especial, na rede de saúde, no sistema de
defesa de direitos (acesso à justiça) e em outros setores de políticas públicas (habitação, trabalho
etc). Em especial, o serviço de proteção social especial, responsável pela articulação das políticas
públicas, deve constituir porta de entrada para a rede de atendimento. No município de Santo
Amaro encontra-se em funcionamento o equipamento do CREAS – Centro de Referência
Especializado de Assistência Social, responsável pela execução da política de proteção social especial.
Em Saubara, onde não existe equipamento CREAS, ainda assim o município está obrigado a ofertar o
serviço através de equipe especial.
O microssistema da Lei Maria da Penha exige uma atuação interdisciplinar, através de seus
órgãos de atendimento, e mesmo no sistema de justiça não cabe ao juiz singular decidir a lide sem
estar amparado nos pareceres técnicos interdisciplinares.
A Lei Maria da Penha determina que o Poder Judiciário seja dotado de equipe
multidisciplinar, mas na sua falta, nada impede o acionamento da rede local de atendimento para
fornecer as informações, relatórios e planos de atendimento sobre as medidas de políticas setoriais
adotadas. Em especial, destaca-se a atuação da equipe de proteção social especial, que através de
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seus programas deve beneficiar as vítimas de violência doméstica que se encontram em situação de
violação de direitos, articulando os diversos setores de políticas públicas para proporcionar aos seus
usuários o acesso aos direitos sociais que, uma vez garantidos, fazem desaparecer a situação de risco
social e pessoal.
Segundo o Caderno Suas,
O caráter de política de proteção social abre à assistência social conexões com as
demais políticas do campo social, voltadas à garantia de melhoria de condições de
vida às populações empobrecidas, e com os órgãos de Justiça responsáveis pelo
sistema de garantia de direitos básicos. Essa necessária conexão no âmbito da
proteção social e defesa de direitos possibilita à assistência social mobilizar um rol
de serviços, ações e atenções de diferentes órgãos públicos e setores técnicoadministrativos, de áreas como educação, cultura, habitação, trabalho, esporte e
justiça, em uma relação de complementaridade e/ou desenvolvimento de ações
11
que conjuguem esforços e recursos .
Assim, a Lei Maria da Penha determina necessariamente a inclusão da mulher em
programas assistenciais, conforme se observa:
Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar
será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes
previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde,
no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas
públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em
situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas
assistenciais do governo federal, estadual e municipal.
Logo, é imprescindível em cada caso seja determinado o seu referenciamento no PAEFI 12,
executado pela equipe do CREAS, órgão este que deve realizar as demais articulações setoriais.
11
Brasil. Capacita Suas Volume 2 (2008). Desafios da Gestão do SUAS nos Municípios e Estados / Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – 1 ed. – Brasília: MDS, 2008, p. 41
12
Art. 24-B. Fica instituído o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi),
que integra a proteção social especial e consiste no apoio, orientação e acompanhamento a famílias e indivíduos
em situação de ameaça ou violação de direitos, articulando os serviços socioassistenciais com as diversas
políticas públicas e com órgãos do sistema de garantia de direitos. (Lei 8742, de 07/12/1993, com alteração da
lei nº 12.435, de 2011)
19
Dentre as medidas mais importantes que podem ser proporcionadas pelo serviço de
proteção social destaca-se a reeducação do agressor, diretamente relacionada à interrupção do
ciclo da violência. Se a violência contra a mulher é internalizada pelo ambiente cultural e social, para
ser ilidida exige-se mudança cultural, o que somente pode ser atingido mediante um processo
educacional contínuo. Noutras palavras, é preciso ensinar a respeitar a mulher.
As medidas de reeducação do agressor devem ser executadas preferencialmente por órgão
distinto dos núcleos de atendimento e convivência da mulher, a fim de que seja evitado o contato da
vítima com o agressor, sujeitando-a a novas ocorrências de violência.
Além das medidas reeducativas, não raro se exige o tratamento do agressor que tenha
histórico de dependência de álcool ou drogas, ou mesmo de outro tipo de transtorno que possa
contribuir para a situação de violência. Nesses casos, tratar o agressor significa proteger a vítima,
livrando-a de novas situações de risco ou lesão.
O CNJ regulamentou a tramitação das medidas protetivas através do Manual de Rotinas dos
Juizados de Violência Doméstica, admitindo duas formas de rito – como incidente criminal ou como
cautelar típica. Em ambos os casos deve ser oportunizado o contraditório, dado o caráter
satisfativo das medidas protetivas.
V-
DOS PEDIDOS
Após o julgamento da ADI 4424 em 09 de fevereiro de 2012 os tribunais passaram a adotar
posturas mais avançadas em relação à aplicação da Lei Maria da Penha, cabendo destacar, em
especial, o entendimento predominante de desvinculação da medida protetiva ao procedimento
criminal. Nesse sentido, confira-se abaixo acórdão do TJ-MJ:
20
Mais recentemente, o STJ julgou HC no qual assinalou a importância da palavra da vítima,
ainda que seja o único meio de prova para fundamentar as medidas protetivas de urgência. Confirase a ementa abaixo:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDAS PROTETIVAS DE
URGÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO. PALAVRA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE.
PRECEDENTES.
1. Em se tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a
mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para o deferimento de medida
protetiva de urgência, porquanto tais delitos são praticados, em regra, na esfera da
convivência íntima e em situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados
por outras pessoas.
2. No caso, verifica-se que as medidas impostas foram somente para manter o dito
agressor afastado da ofendida, de seus familiares e de eventuais testemunhas,
restringindo apenas em menor grau a sua liberdade.
3. Estando em conflito, de um lado, a preservação da integridade física da vítima e,
de outro, a liberdade irrestrita do suposto ofensor, atende aos mandamentos da
proporcionalidade e razoabilidade a decisão que restringe moderadamente o
direito de ir e vir do último.
4. Recurso em habeas corpus improvido.
(RHC 34.035/AL, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em
05/11/2013, DJe 25/11/2013)
Nessa esteira, analisando-se o caso concreto, E INDEPENDENTEMENTE DO DESTINO DA
AÇÃO PENAL, o MP requer, LIMINARMENTE - e em sede final - O DEFERIMENTO DAS MEDIDAS
PROTETIVAS DE URGÊNCIA ABAIXO CITADAS:
1)
O referenciamento das vítima na rede de atendimento à mulher, através de seu
encaminhamento para inclusão no PAEFI (art. 9°, § 1° da LMP), solicitando que o CREAS
remeta relatório concluindo se ainda persistem situações de violência, bem como
apresentando plano de atendimento com prognose de desligamento em tempo
considerado razoável;
21
2)
A reeducação do agressor, determinando que o requerido seja incluído em
atividades informativas sobre violência doméstica e direitos humanos das mulheres 13, ou
outras atividades do programa de fortalecimento de vínculos familiares – PAIF ou do PAEFI
realizadas pela rede socioassistencial, com enfoque de gênero, durante o período mínimo
de 04 meses, com previsão de pena de desobediência em caso de recusa do Requerido (art.
22, § 1° c/c 35, V);
3)
A fixação de pensão alimentícia para a filha Raila Maiane de Alcântara Pereira, em
percentual do salário mínimo, com reajustes periódicos, devendo a vítima ser intimada para
apresentar cópia da CN da infante (art. 22, V);
4)
A restrição temporária do direito de visitas paternas para a infante Raila Maiane de
Alcântara Pereira (art. 22, IV);
5)
O
Encaminhamento do agressor para a rede de saúde para tratamento de
abuso de drogas ilícitas (art. 22, § 1°);
6)
Acompanhamento temporário da infante Raila Maiane de Alcântara Pereira pelo CT
(art.101, II ECA);
7)
A INTIMAÇÃO DA(s) VÍTIMA(s) PARA CIÊNCIA DAS MEDIDAS PROTETIVAS DEFERIDAS,
COM CÓPIA DA RESPECTIVA DECISÃO (art. 21 LMP)
8)
A CITAÇÃO DO REQUERIDO PARA, QUERENDO, OFERECER RESPOSTA À MEDIDA
CAUTELAR PROTETIVA NO PRAZO DE 05 DIAS, CF. ART. 802 DO CPC;
Ao final, requer a procedência da ação, condenando-se o réu às medidas de políticas
públicas e outras acima elencadas.
Protesta provar o alegado por todos os meios legalmente admissíveis, especialmente
depoimento pessoal das partes e oitiva de testemunhas, abaixo indicadas.
Santo Amaro-BA, 17 de setembro de 2014, 15h25
Belª. Cleide Ramos Reis
Promotora de Justiça Titular
Rol de Testemunhas: Rosineide Machado de Alcântara (depoimento pessoal)
13
Trata-se de medida imprescindível para a mudança de atitudes discriminatórias e violentas contra a
mulher.
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