Lucia Lima - ICED

Transcrição

Lucia Lima - ICED
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Departamento de Pesquisa
RELATÓRIO DE
PROJETO DE PESQUISA
Rua Augusto Corrêa, 1 (Núcleo Universitário) - 66075-900 Belém PA - Brasil
(091) 3201 7971 - Fax:(091) 3201 7657
ATUALIZADO EM AGOSTO /2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PESQUISA
RELATÓRIO PADRÃO DE PESQUISA (Versão 1.0)
Período do Relatório: 01 / 07 / 2009 à 10 / 06 / 2011
I - Identificação do Projeto
Código do projeto: Portaria nº. 085/2009 - ICED
Título do projeto: Nomeações, (trans)formações e resistências: interfaces da vida transexual com o sistema
educacional
Nome do Coordenador: Maria Lúcia Chaves Lima
Centro/Núcleo/Campus: ICED / UFPA / Belém
Departamento/Colegiado: Faculdade de Educação
Área/subárea do projeto: Psicologia / Psicologia da Educação
Principais objetivos do projeto:
1 - Reflexão teórica acerca da invenção da travestilidade e da transexualidade. Neste sentido, utilizando
referenciais teóricos advindos das ciências humanas, sociais, médicas e da educação, objetivou-se contribuir
para uma despatologização dessas experiências identitárias e a conseqüente minimização do preconceito
vivenciado por esta população no meio escolar.
2 - Conhecer as redes que propiciaram a Portaria Estadual que autoriza a matrícula de travestis e transexuais
na rede pública de ensino do Estado do Pará com seus nomes sociais, assim como alguns efeitos preliminares
de sua efetivação.
Equipe do Projeto:
Nome
Maria Lúcia Chaves Lima
* CD: Coordenador
CL: Colaborador
CS: Consultor
Titulação
máxima
Mestre
Unidade/Departamento
Instituto de Ciências da Educação
Função no
projeto *
CD
Carga
horária no
projeto
20 h.
II - Principais etapas executadas no período visando ao alcance dos objetivos:
1 – O objetivo “Reflexão teórica acerca da invenção da travestilidade e da transexualidade” foi respondido
durante o período de um ano de vigência do projeto.
2 – O objetivo “Conhecer as redes que propiciaram a Portaria Estadual que autoriza a matrícula de travestis e
transexuais na rede pública de ensino do Estado do Pará com seus nomes sociais, assim como alguns efeitos
preliminares de sua efetivação” foi respondido durante o segundo ano de vigência do projeto.
3 – A meta de “difusão das suas hipóteses e/ou resultados teóricos junto à comunidade acadêmica” foi cumprida
na medida em que os resultados parciais da presente pesquisa foram apresentados em inúmeros congressos de
relevância na área de Psicologia Social e áreas afins.
4 – A meta de “atingir um público que exceda o âmbito acadêmico stricto senso”, será efetivada com a realização
de uma roda de conversa sobre o Projeto Escola sem Homofobia, que prevê, entre outras ações, a distribuição de
um kit de materiais orientados para o combate à homofobia nas escolas. O público alvo da ação será pessoas
ligadas aos movimentos sociais, professores/as atuantes nas escolas públicas, além de estudantes de diversas
áreas interessados na discussão. O evento ocorrerá no dia 18 de junho de 2011, às 16 horas, no Ateliê do Porto.
5 – A meta de “publicar artigos em revistas indexadas pela CAPES” está em fase de elaboração, pois a
preparação de um artigo sobre o tema da pesquisa em questão é um efeito da conclusão do presente relatório.
III - Apresentação e discussão sucinta dos principais resultados obtidos, deixando
claro o avanço teórico, experimental ou prático obtido pela pesquisa (os resultados
formais - publicações - são solicitados no item VIII)
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa se insere em uma perspectiva de investigação que visa entender os efeitos da vida
escolar para aqueles que sofrem discriminação social. Nesta pesquisa em particular, o foco de investigação são
travestis e transexuais, tendo em vista a relevância social e política que a discriminação a estas populações tem
adquirido. O panorama de violência e discriminação que os/as envolve tem exigido dos gestores a definição de
políticas públicas específicas, embora pouco se conheça sobre suas demandas e necessidades.
Travestis e transexuais representam arquivos vivos de uma história da exclusão. E um espaço
infelizmente privilegiado para materialização de violência, discriminações e exclusão é o ambiente escolar. Não
traz surpresa a ninguém o fato de que eles/elas vivenciem inúmeras dificuldades no cotidiano da escola – desde a
resposta da chamada, o relacionamento com colegas e professores, até a “escolha” de qual banheiro utilizar, o
feminino ou o masculino. A diferença não é bem recebida: gays, lésbicas, negros, portadores de HIV, e todos
aqueles tidos como “anormais”, têm sua cidadania e direitos freqüentemente violados.
Nas entrevistas realizadas por Bento (2006), os/as transexuais lembram a escola como um espaço de
horror, onde eram vítimas de todo tipo de preconceito. A escola aparece como uma instituição saturada,
produtora e reprodutora da homofobia. O baixo nível de escolaridade de grande parte de travestis e transexuais
no Brasil talvez possa ser explicado por esse caminho.
Isso porque não há lugar para eles/elas no ambiente escolar. Não há, por exemplo, um banheiro para uma
Maria com pênis. O banheiro pode ser considerado um espaço emblemático na construção das diferenças de
gênero.
Porém, travestis e transexuais confundem a ordem naturalizada dos gêneros, embaralha a fronteira entre o
normal e o artificial, entre o real e o fictício, e denunciam que as normas de gênero não conseguem um consenso
absoluto na vida social. São os diferentes, os estranhos, os “anormais”. E o que a escola (e a sociedade) faz com
pessoas que são consideradas diferentes? Louro (2004) nos traz pistas:
Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou sexualidade, que as
atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados
“próprios” de cada um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes ou
desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos
que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como
infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na
melhor das hipóteses, tornam-se algo de correção. Possivelmente experimentarão o
desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como “minorias”
(LOURO, 2004, p.87).
Um importante passo em direção à amenização do atroz mal-estar vivenciado no ambiente escolar foi a
Portaria Estadual nº. 016/2008-GS, que possibilita a matrícula do/as transexuais na rede pública de ensino no
estado do Pará com o seu nome social.
Chamar a pessoa pelo nome no qual se identifica pretende produzir efeitos na vida escolar de travestis e
transexuais. Esse aspecto aparece na pesquisa de Bento (2006), quando a autora relata os “protocolos invisíveis”
pelos quais os/as transexuais acabam por se submeter no Programa de transgenitalização pesquisado. Um
exemplo desses protocolos que produzem constrangimentos entre os/as transexuais é quando um/a profissional
do hospital o/a chama por seu nome de batismo. Dizer, pronunciar, escutar esse nome significa recuperar sua
condição feminina ou masculina que queria esquecer. O nome próprio funciona como uma interpelação que o/a
recoloca, que ressuscita a posição de gênero da qual luta para sair.
Serem identificados/as publicamente pelo nome que os/as posiciona no gênero rejeitado é uma forma
ressignificada de atualizar os insultos de “veado”, “sapatão” que ao longo de suas vidas os/as haviam colocado á
margem.
Neste sentido, é pertinente problematizar o papel da escola na expulsão1 velada de travestis e transexuais
do sistema educacional. Assim como avaliar os resultados deste processo em suas vidas, seja em termo
analfabetismo ou ainda em relação ao que poderão dizer de si mesmos/as.
Com isso, este projeto, de natureza eminentemente teórica e documental, ocupou-se, em um primeiro
momento, de entender a emergência das categorias travesti e transexual no meio científico e a incessante
patologização de tais experiências. Para tanto, torna-se mister entender como a sexualidade passou a ser
açambarcada pelo domínio médico. Posteriormente, o foco se direcionará para os dispositivos2 que
impulsionaram a formulação e entrada em vigor no dia 1º de janeiro de 2009 da Portaria 016/2008-GS, do Estado
do Pará, que autoriza travestis e transexuais a utilizarem os nomes sociais no convívio escolar.
1. A PATOLOGIZAÇÃO DAS VIVÊNCIAS TRAVESTI E TRANSEXUAL
Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma constância que beira a
teimosia, as sociedades do Ocidente moderno responderam afirmativamente a essa
pergunta. Elas obstinadamente fizeram intervir essa questão do “verdadeiro sexo” em
uma ordem de coisas na qual se podia imaginar que apenas contam a realidade dos
corpos e a intensidade dos prazeres.
Michel Foucault (2010a, p. 82).
Ao tomarem conhecimento do tema de minha pesquisa, a primeira coisa que me perguntam é sobre a
diferença entre travestis e transexuais. No começo tentava responder, mas ficava incomodada com as
classificações, sempre tão definitivas, tão prontas e tão pouco problematizadas. Caracterizar o que é ser travesti
ou transexual era, de certa forma, incoerente com a perspectiva que me nutre teoricamente. Se não há alguma
coisa que diga o que é ser homem ou o que é ser mulher, por que haveria de ter uma definição clara e categórica
do que é ser travesti ou transexual?
1
É limitador denominarmos de evasão os casos em que as pessoas abandonam a escola por não suportarem o ambiente hostil
vivenciado. A natureza da violência que leva uma pessoa a abandonar os estudos porque tem que trabalhar para ajudar a família não é
da mesma ordem daquela que não suporta a escola devido às humilhações sofridas por ser “diferente” (BENTO, 2008).
2
A noção de dispositivo adotada é a utilizada por Foucault: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos” (2000c, p. 244).
As múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas consideradas travestis e transexuais
não podem ser reduzidas a categorias unificadoras com intenção de universalização.
A produção da subjetividade de travestis e transexuais obedece as mesmas regras que produzem as
demais subjetividades. Não há uma lei, uma essência que orienta a identidade de gênero. Gênero só existe na
prática. É a repetição de performances, consideradas de um determinado gênero, que produz o efeito homem ou
mulher. Nossas práticas fazem os gêneros (BUTLER, 2003).
Porém, há os que escapam da malha normativa, os que resistem a esse violento binarismo identitário (ser
homem ou mulher), transitando-os, subvertendo-os. Como no caso, as vivências travesti e transexual.
Em princípio, optei por utilizar o termo “transgênero” que aparentemente açambarcava, sem especificar e
aprisionar, as experiências identitárias de trânsito de gênero. Entretanto, logo no início da pesquisa, esse termo
mostrou seu aspecto problemático. Utilizar tal terminologia, amplamente empregada nos estudos norteamericanos (transgender) nada revela sobre as especificidades das reivindicações das pessoas transexuais
(BENTO, 2008) ou da dimensão conflituosa de assumir-se travesti (BENEDETTI, 2005). Ou seja, “transgênero”
não é um termo com o qual essa população, pelo menos no Brasil, se identifica e se (auto) define. Trata-se de um
termo acadêmico e muitas vezes não reconhecido pelos movimentos LGBTTs.
Regina Facchini (2005), em seu livro Sopa de letrinhas?, comenta que a adoção do termo “transgênero”
teve uma reação bastante negativa no Brasil por parte de travestis e transexuais. A freqüente associação ao termo
“transgênico” – produtos modificados geneticamente e geralmente associados aos males à saúde – também foi
um forte elemento que inviabilizou a identificação de travestis e transexuais à nova terminologia. Atualmente, a
maior rede de LGBT do Brasil, a ABGLT, assume o nome de Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, excluindo, portanto, o termo “transgênero”.
Diversas pesquisas sobre travestis e transexuais trazem definições ou um eixo norteador para apresentar a
população da qual está se falando. Benedetti (2005), seguindo a lógica do grupo estudado – qual seja, travestis
que se prostituem nas ruas de Porto Alegre (RS), define travestis como pessoas que promovem modificações nas
formas de seu corpo visando deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres. Apesar de se vestirem e
viverem cotidianamente embasadas pelo gênero feminino, não demonstram desejo de realizar a cirurgia de
transexualização. Esta característica, aliás, é o principal elemento de diferenciação entre elas e as transexuais.
Para estas últimas, a cirurgia é condição fundamental de sua transformação corporal.
Benedetti (2005) relata ainda que durante alguns encontros científicos – mais especificamente o Encontro
Nacional de Travestis e Liberados que trabalham com Aids (ENTLAIDS) presenciou várias discussões sobre as
“reais” diferenças entre esses dois grupos, os quais nunca chegavam a nenhuma conclusão.
Essa questão não permeia apenas o universo acadêmico. As/os próprias/os integrantes do movimento de
travestis e transexuais se vêem questionando esses limites identitários. Lohany Veras, presidente do Grupo de
Resistência Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA), em entrevista para essa pesquisa, comenta sobre as
dificuldades de definir quem é travesti e transexual. Diverte-se ao lembrar uma tentativa de classificação do
movimento na qual era estipulado que a transexual não podia falar alto ou ser escandalosa, pois tais
características eram específicas das travestis. Lohany defendeu, então, que como há vários tipos de mulheres, de
comportadas à “barraqueiras”, há vários modos de ser uma travesti ou mulher transexual.
Viver no processo de transformação de gênero não significa compartilhar os mesmos valores,
experimentar os mesmos sentimentos, conviver em ambientes semelhantes ou ter práticas sociais análogas. Pelo
contrário, as diferentes formas de viver e construir o gênero são influenciadas por fatores variados, tais como
classe social, nível educacional, fatores econômicos, sociais e familiares específicos (BENEDETTI, 2005).
Entretanto, há os aficionados por definições, os viciados por identidade (ROLNIK, 1997). Aqueles que
aprisionam os modos de ser, produzindo verdades e gerando estratégias de poder e controle. Porém, desde já é
preciso deixar claro que em momento algum haverá neste trabalho uma definição clara e categórica do que seja
travesti ou transexual. Tais perspectivas identitárias serão produzidas ao longo do texto, dialogadas com outros/as
pesquisadores/as e atravessadas pelos discursos das pessoas entrevistadas na pesquisa.
Este capítulo será dedicado, então, para a compreensão das vivências identitárias categorizadas como
travesti e transexual. Tais vivências estão intrinsecamente imbricadas no discurso médico de patologização
desses modos de vida. Portanto, primeiramente, como forma de apresentar a produção histórica desses conceitos,
faz-se necessário entender como a sexualidade passou a ser assunto referente ao domínio das ciências médicas e
psicológicas. Posteriormente, serão apresentadas algumas teorias que produzem a travestilidade e a
transexualidade, assim como a problematização de tais aprisionamentos identitários.
1.1.
A sexualidade no domínio da anomalia
Travestis e transexuais são figuras que borram as fronteiras de gênero inteligível: ser homem ou mulher.
São vistos, muitas vezes, como desviantes, fora da norma estabelecida, anormais. No curso ministrado no
Collége de France intitulado Os anormais, Michel Foucault (2001) apresenta uma genealogia do conceito de
“anormal”, edificado inicialmente em meio ao embate entre os saberes jurídico e penal até chegar a uma
psiquiatrização do desejo e da sexualidade no fim do século XIX.
O filósofo analisa o aparecimento da anomalia, ou mais propriamente, do anormal, objeto privilegiado da
psiquiatria a partir do século XIX, por meio de três figuras: o monstro humano, o indivíduo incorrigível e a
criança masturbadora. Só durante o século XIX é que esses três personagens vão coadunar na figura do
“anormal”, uma vez que durante o século XVIII (e até mesmo no início do XIX) eles mantém suas trajetórias
separadas, pois têm como referência sistemas de saber-poder distintos. O monstro humano é regido pelo saber
biológico-judiciário; o incorrigível, pelo saber pedagógico; e o onanista, pelo saber médico-familiar.
A primeira figura relatada por Foucault (2001) é o monstro humano. É uma exceção na população que
viola tanto as leis da sociedade quanto as leis naturais. O monstro humano combina o impossível com o proibido
e, durante boa parte do medievo, serve como o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o misto de
dois reinos: animal e humano.
Foucault (2001) considera o hermafrodita como uma figura privilegiada para a análise do monstro
humano durante a Idade Clássica. Por meio de vários exemplos históricos, o autor mostra a mudança na
concepção e, principalmente, modos de punição do hermafrodita. Até o século XVI, o/a hermafrodita era
condenado/a simplesmente por ser hermafrodita. Já a partir do século XVII, pediam-lhe que escolhesse um sexo,
e se usasse o sexo anexo, por meio de roupas ou práticas sexuais, incorria nas leis penais e era condenado por
sodomia. Ou seja, não se condena mais a monstruosidade da natureza, mas a de comportamento. A
monstruosidade está no plano moral.
Já a segunda figura, ou melhor, personagem importante para o aparecimento do anormal é o indivíduo
incorrigível. Enquanto o monstro é sempre uma exceção e remonta ao domínio da teratologia, a existência do
indivíduo a ser corrigido é um fenômeno normal. É um fenômeno corrente que nasce dentro da família e mantém
relações com instituições vizinhas. Como diz ironicamente Foucault (2001, p. 72): “é regular na sua
irregularidade”. Ele é espontaneamente incorrigível, o que demanda a criação de tecnologias para a reeducação
que lhe permita a vida em sociedade. É válido ressaltar que a exposição dessa segunda figura acabou por ser
pouco explorada por Foucault durante o curso de 1975.
Por fim, o terceiro personagem é o responsável pela universalização do desvio sexual e da entrada da
sexualidade no domínio da psiquiatria. Trata-se da criança e do adolescente masturbador. Data da passagem do
século XVIII para o XIX e envolve exclusivamente a família burguesa. Esse é um personagem quase universal de
tão corrente que é o seu aparecimento na sociedade.
A prática do onanismo, segundo o ideário médico burguês vitoriano, surge como a causa de qualquer
patologia corporal, nervosa, psíquica ou moral. Foucault salienta que no fim do século XVIII não há nenhuma
doença que não esteja relacionada, de uma forma ou de outra, à masturbação.
Sobre esse terceiro personagem, Foucault dedica algumas aulas do seu curso, pois o onanista é o
responsável pela entrada da sexualidade no campo da anomalia. Ou seja, pelo domínio da psiquiatria na esfera do
comportamento sexual. Para tanto, Foucault faz uma genealogia da confissão católica, pois esta se configura
como um elemento fundamental na análise da emergência da preocupação com a masturbação infantil.
Segundo Foucault (2001), a revelação do pecado não era um aspecto obrigatório da penitência. Porém,
paulatinamente, a revelação do pecado tornou-se um aspecto sine qua non para que o padre possa aplicar a
penitência adequada. Há todo um sistema de interrogação, na qual a revelação é policiada pelo padre. “É a
instauração no interior dos mecanismos religiosos desse imenso relato total da existência que constitui o pano de
fundo do exame e medicalização” (FOUCAULT, 2001, p. 233).
Entre os séculos XII e XVI, o penitente tinha que revelar suas faltas contra as regras sexuais. Porém, se
inicialmente os pecados sexuais eram referente aos aspectos relacionais da sexualidade, ao vínculo jurídico entre
as pessoas (adultério, incesto, rapto), a partir do século XVI é o corpo do penitente que passa a ser o aspecto mais
importante da confissão. Inicia-se uma anatomia da volúpia, uma anatomia pecaminosa do corpo na qual a
luxúria tinha início com o contato consigo mesmo. Portanto, a masturbação na revelação penitencial do século
XVII vai ser tornar o problema médico e pedagógico que vai trazer a sexualidade para o campo da anomalia.
No século XVIII, inicia-se o que Foucault (2001) chama de campanha antimasturbatória mobilizada pela
crença de que a masturbação era a causa de uma série de enfermidades, tanto físicas quanto mentais. Apareceram
textos, panfletos, livros e até manuais dirigidos aos pais sobre a masturbação infantil. Ainda não se trata de uma
psicopatologia sexual, pois a sexualidade está praticamente ausente. É a própria masturbação, sem nenhum
vínculo com a sexualidade, que é o problema a ser combatido. Ou seja, trata-se mais de uma patologização do
que uma moralização da prática masturbatória.
O foco está na criança e no adolescente burguês e a origem desse “vício” está no desejo dos adultos pelas
crianças. Nesse contexto, a culpa vem do exterior, do adulto, mais exatamente, da criadagem. Inicia-se uma
empreitada contra a criadagem doméstica e a responsabilização dos pais pela masturbação dos filhos. É a
ausência de cuidados, a preguiça e desatenção dos pais que estão envolvidos na prática onanista.
Esse discurso exige uma nova configuração do espaço familiar e, de acordo com o argumento defendido
por Foucault (2001), foi esse controle da masturbação da criança que possibilitou o surgimento da família
nuclear, sólida e afetiva. Porém, esse controle parental interno à família passa a ser subordinado à intervenção
médica. É por meio da família que há o encontro entre a medicina e a sexualidade.
Em suma, um movimento de intercâmbio que faz a medicina funcionar como meio de controle
ético, corporal, sexual, na moral familiar e que faz surgir, por outro lado, como necessidade
médica, os distúrbios internos do corpo familiar, centrado no corpo da criança (FOUCAULT,
2001, p. 321).
Foi pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto. Aumentou seu campo de ingerência ao
mostrar que o instinto sexual está no cerne de todas as doenças mentais.
Ainda de acordo com Foucault, a partir de meados do século XIX, a psiquiatria abandona aquilo que
havia se constituído o essencial na justificação da medicina mental: a doença. O que ela assume agora é o
comportamento, seus desvios, suas anomalias a partir de um desenvolvimento normativo já instituído. É o poder
médico sobre o não patológico. É a psiquiatria abrangendo em seu campo de ação uma população que não
apresenta nenhum sintoma de doença, mas síndromes consolidadas enquanto anomalias. “Assiste-se assim, nessa
segunda metade ou nesse último terço do século XIX, ao que poderíamos chamar de consolidação das
excentricidades em síndromes bem especificadas, autônomas e reconhecíveis” (FOUCAULT, 2001, p. 395).
Esse período, portanto, é marcado pelo aparecimento de vários tratados médicos sobre os desvios sexuais.
Em 1870, Westphal descreve sobre os invertidos no Arquive de Neurologie. Segundo Foucault (2001), é a
primeira vez que a homossexualidade aparece como síndrome no interior do campo psiquiátrico, dando início,
assim, ao que podemos chamar de psiquiatrização da homossexualidade.
Nesta intensa procura da identidade na ordem sexual, Foucault (2001) dá ênfase à análise da obra
“Psychopathia sexualis” de Heinrich Kaan, publicada em 1844 e a sua formulação da noção de instinto sexual.
Porém, outra obra também intitulada “Psycopathia sexualis” é particularmente interessante para a discussão da
emergência das noções de travestilidade e transexualidade. Trata-se do livro do psiquiatra alemão Richard Von
Krafft-Ebing escrito em 1886. Esta obra é destinada à categorização das patologias das funções sexuais, tais
como lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros “desvios sexuais”. Há a apresentação de
238 casos coletados pelo próprio autor que apresentam o diagnóstico, assim como comentários e observações
finais sobre a patologia. De acordo com Leite-Júnior (2008), este livro se tornou a “bíblia” sobre as perversões.
Na classificação de Krafft-Ebing, dentre as neuroses sexuais há a parestesia, que consiste na “perversão
do instinto sexual, isto é, excitabilidade das funções sexuais por estímulos inadequados” (KAFFT-EBING, 2001,
p. 7). Uma das subdivisões da parestesia é a antipatia sexual: a luta pela diferenciação psíquica entre homens e
mulheres, seus limites sadios e aproximações “patológicas”. O autor define a antipatia sexual da seguinte forma:
É a total ausência de sentimento sexual em relação ao sexo oposto (...) é uma anomalia puramente
psíquica, pois o instinto sexual não corresponde de forma alguma às características sexuais físicas
primárias e secundárias. Apesar do tipo sexual plenamente diferenciado e das glândulas sexuais
apresentarem atividade e desenvolvimento normais, o homem é atraído sexualmente outro homem
porque tem, consciente ou não, um instinto feminino em relação a ele, ou o inverso (KAFFTEBING, 2001, p. 9).
Segundo a classificação de Krafft-Ebing (2001), a antipatia sexual vai desde a atração sexual por pessoas
do mesmo sexo até considerar-se um homem em um corpo de mulher ou vice-versa. O autor propõe uma
classificação das misturas entre os sexos, com combinações e graduações entre o que é ser “homem” ou
“mulher”.
No caso 133 do livro de Kafft-Ebing (2001) e destacado por Leite-Júnior (2008), o paciente, após um
período de internação psiquiátrica, passa a se comportar de forma feminina. Além dos fatores psíquicos
envolvidos, Krafft-Ebing atribui tal efeminação à constante masturbação do paciente. Voltamos assim à análise
de Foucault (2001) de que a masturbação enfraquece o corpo e, ao perder sua força, efeminiza-se. Mais uma vez
a antiga associação do feminino à fragilidade!
Porém, há outro caso analisado por Krafft-Ebing que merece maior atenção. Trata-se do caso 129, que
apresenta o estágio de transição para ilusão de mudança de sexo. Krafft-Ebing apresenta a história de húngaro
que, a partir da adolescência, passa a se sentir como uma mulher. Compreende a si mesmo como mulher,
identifica-se com as roupas, brincadeiras e ideias consideradas femininas3, atração sexual por homens, desejo de
auto-castração, etc. Apresentam-se, portanto, várias características das futuras narrativas das pessoas
consideradas transexuais.
O diagnóstico dado por Krafft-Ebing foi o de paranóia e que o delírio de ser uma mulher em corpo
masculino era “apenas” um problema em sua sexualidade, não sendo, portanto, diagnosticado como incapaz de
atuar racionalmente. Ou seja, era doente e não louco.
A obra de Krafft-Ebing, de 1886, é um relato médico das anomalias sexuais. Em relação ao trânsito de
gênero, traz dados significativos das futuras nomeações e classificações do que é ser travesti ou transexual. O que
se percebe é que o meio médico-científico cada vez mais se dedicava à categorização das “anomalias sexuais”. O
campo para a criação da travestilidade e transexualidade estava se formando.
1.2.
As vestimentas e seu potencial erótico: a emergência científica da travestilidade
Em 1910, há a primeira publicação destinada a analisar a relação entre vestimenta e sexualidade. Trata-se
do livro Die Transvestiten, traduzido para o inglês como Transvestites: the erotic drive to cross-dress, do médico
e psicólogo alemão Magnus Hirschfeld. Neste estudo, os termos “travesti” e “travestismo” são usados para se
referir ao uso de roupas consideradas do sexo oposto mobilizado por motivações eróticas.
É interessante notar que Hirschfeld (1991) dissocia o que atualmente é chamado de “orientação sexual”
do desejo de usar roupas do sexo oposto. Sentir atração por um determinado sexo e sentir prazer usando uma
vestimenta específica são coisas diferentes. Vale ressaltar que a maioria dos casos citados no livro é de homens
que sentem prazer em usar roupas femininas e sentem atração sexual apenas por mulheres. Nesses casos, as
narrativas são de vidas tranqüilas e casamentos estáveis, um cenário bastante distinto do relatado em muitos
livros da época, nos quais tais pessoas eram apresentadas em situação de desespero e infelicidade (LEITEJÚNIOR, 2008).
Outro ponto a ser destacado no livro de Hirschfeld (1991) é a afirmação de que nem todos os homens
afeminados são homossexuais, assim como nem todos os homens considerados masculinos são heterossexuais, a
mesma consideração valendo para as mulheres. O texto provoca uma separação analítica e conceitual entre sexo,
gênero, desejo, aparência e comportamento.
O autor destaca as misturas, interações, aproximações e distanciamentos entre o masculino e o feminino.
Não há quem seja 100% homem ou mulher. Dessa forma, Hirschfeld pretende justificar a legitimidade da
variedade sexual, sendo ele próprio um militante dos direitos homossexuais (LEITE-JÚNIOR, 2008).
3
Com Leite-Júnior (2008), destaca-se o conceito de mulher deste relato: meiga, frágil, fraca em raciocínios lógicos, intensa em
imaginação e portadora de um desejo “instintivo” de maternidade. Este era a concepção vigente do que é ser mulher do período e que
ainda hoje paira o diagnóstico médico e psicológico para definição se a pessoa é uma transexual verdadeira.
Dentre essas possibilidades de identidades, ele cria o conceito de travestismo, definindo como um forte
impulso para usar as roupas do sexo que não pertence à estrutura relativa a seu corpo como um fim em si mesmo
(HIRSCHFELD, 1991). Porém, Hirschfeld avalia esse impulso como uma forma de expressão da personalidade
íntima e assim, credita o uso de roupas socialmente destinada ao “outro sexo” a uma disposição psíquica.
De acordo com Leite-Júnior (20018), Hirschfeld gera, mesmo que sem intenção, uma psicologização da
experiência troca de vestuário e, conseqüentemente, provoca o surgimento do moderno conceito de travesti
relacionado à sexualidade.
Mas vale ressaltar ainda que tal comportamento não é sinônimo de loucura ou delírio. Hirschfeld (1991)
analisa o travestismo como uma variante da sexualidade “normal”, uma vez que os/as travestis, mesmo vestindo
esporadicamente ou cotidianamente vestimentas do “outro sexo”, tem consciência que não pertencem ao sexo do
qual pertencem as roupas utilizadas.
O psicólogo Havelock Ellis, considerado atualmente um dos fundadores da sexologia moderna, também
se preocupa com a questão da mistura entre os sexos. Em 1933, publica um resumo de sua coleção, lançada
décadas anteriores, intitulada Psicologia do sexo. Um dos temas tratados nesse resumo é justamente a mixagem
entre tendências masculinas e femininas e, coadunando com Hirschfeld, afirma que há variações e gradações
entre os sexos.
Pode parecer fácil dizer que há dois sexos perfeitamente separados, distintos e imutáveis, o macho
que é portador do espermatozóide, e a fêmea que é portadora do óvulo, ou do ovo. Essa
afirmação, não obstante, há muito deixou de ser estritamente correta sob o ponto de vista
biológico. Podemos não saber exatamente o que é o sexo; mas sabemos efetivamente que ele é
mutável, com possibilidade de um sexo ser transformado em outro sexo, que suas fronteiras são
muitas vezes incertas, e que há muitos estágios entre um macho completo e uma fêmea completa
(ELLIS, 1933 apud LEITE-JÚNIOR, 2008, p. 107).
O autor considera tanto o “homossexualismo” quanto o “travestismo”4 como uma anomalia. Porém, para
designar este último, prefere o uso do termo “oenismo”. Apesar de ser o mesmo quadro clínico apresentado por
Hirschfeld, a opção de usar oenismo se justifica pelo equívoco que o termo travestismo pode causar ao se
associar exclusivamente à questão do vestuário considerada do sexo oposto (LEITE-JÚNIOR, 2008).
Portanto, se em Krafft-Ebing o uso de vestimenta do sexo oposto não era um fato com autonomia
analítica, agora, com a criação das categorias “travestismo”, de Hirschfeld, e “oenismo”, de Ellis, presencia-se o
nascimento de uma nova categoria clínica-patológica com características e definições que as diferenciam de
outros “diagnósticos” tais como homossexualismo, hermafroditismo ou mesmo paranóia.
1.3.
4
Travestilidade no contexto brasileiro
Tradição, iniciada no século XIX, de se utilizar o sufixo “ismo” para nomear os considerados “transtornos sexuais”.
Na língua portuguesa, de acordo com o dicionário Houaiss (2001), a palavra “travesti” tem sua primeira
aparição em 1543 significando o substantivo disfarçado. Ainda segundo este dicionário, é somente em 1831 é
que “travesti” aparece como termo para designar um “homem vestido de mulher ou vice-versa”.
No Brasil, o termo travesti logo passou a integrar os meios artísticos e das festividades populares, sem
associação, pelo menos inicialmente, com a orientação ou identidade sexual. A relação entre travestimento e o
meio artístico, mais especificamente as artes cênicas, provocou outra associação: travestir-se virou quase
sinônimo de prostituição. No início do século XX era muito forte a relação entre o teatro, mais exatamente, da
atriz, com a prostituição. Como relata Leite-Júnior (2008, p. 202):
Também as pessoas que, ao assumirem o gênero ‘oposto’, principalmente como modo de vida,
eram impedidas de conseguir empregos mais tradicionais ou formais e rejeitadas do convívio
social – muitas vezes por suas próprias famílias – restava apenas espetacularizar sua condição
e/ou negociar o fascínio sexual de sua ambigüidade. Desta forma, o termo ‘travesti’
gradativamente uniu-se intimamente à noção de prostituição (...).
As pesquisas de Luiz Mott e Aroldo Assunção (1987), Hélio Silva (1993), Don Kulick (2008)5, Marcos
Benedetti (2005), Larissa Pelúcio (2009) etc. são exemplos do quanto ainda é difícil separar o estudo das
travestis do campo da prostituição. Como analisa Leite-Júnior (2008), apesar de serem campos distintos, há no
Brasil uma forte ligação entre travestilidade e prostituição.
Tal associação entre travestis e prostituição é tão intensa que até em 2008, como atesta a tese de LeiteJúnior (2008), na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego havia, dentro da
categoria 5198-05 - Profissionais do sexo, os seguintes títulos: Garota de programa, Garoto de Programa,
Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do sexo,
Transexual (profissional do sexo), Travesti (profissional do sexo) (grifos nossos). Atualmente, retiraram os
termos Puta, Quenga, Rapariga, Transexual e Travesti6.
A pesquisa de Kulick (2008) mostra um panorama interessante da concepção do que é ser travesti no
Brasil. O antropólogo norte-americano realizou um intenso trabalho de campo com travestis que se prostituem da
cidade de Salvador (Bahia) entre 1996 e 1997.
Kulick (2008) descreve as travestis como homens que efeminam seus corpos através de aplicações de
silicone, vestimentas, maquiagens e outros produtos estéticos para produzir a imagem de mulher. O que difere
esta categoria da transexualidade é a não reivindicação da cirurgia de transgenitalização. Com efeito, não se
reconhecem como mulheres. Tampouco como homens. Elas se afirmam como homossexuais, ou melhor, como
homens afeminados que se sentem atraídos sexualmente por homens.
5
Publicado nos Estados Unidos em 1998.
6
Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso em 16/05/2011.
O autor ainda sugere que as travestis têm concepções tanto essencialistas como construtivistas sobre a
díade sexo e gênero. Essencialistas porque diferenciam homens e mulheres a partir das genitálias. Ou se é
homem ou se é mulher. Em contraposição, a questão de gênero é determinada pela sexualidade, mais exatamente,
pela prática de penetração. Se a pessoa só penetra, é homem; se é penetrado/a, é diferente de homem e podendo
ser um homossexual ou uma mulher.
A pesquisa de Kulick apresenta a concepção hegemônica do que é ser “travesti” no contexto brasileiro:
uma ambigüidade de gênero atrelada à prostituição e à marginalidade. A discussão sobre o trânsito de gênero
desvinculado deste cenário marginal começa a ser empreendida no Brasil a partir dos anos de 1980 com a
aparição midiática e espetacularizada de Roberta Close.
Roberta Close transmitia os valores morais e estéticos de feminilidade de uma mulher burguesa. Em nada
se assemelhava com o estereótipo de travesti que dominava na época: um homem grosseiramente vestido de
mulher. Não havia nenhuma associação da sua imagem com a prostituição ou criminalidade. Muito pelo
contrário: foi considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil, sendo matéria de reportagens e de programas
de televisão voltados para a classe média (LEITE-JÚNIOR, 2008).
Dessa forma, não havia rótulo para enquadrar Roberta Close. Não era mulher, nem homem, nem
homossexual ou mesmo travesti por não se caracterizar com o padrão de “travesti” construído no Brasil.
Atualmente a consideram uma mulher transexual. Porém, como veremos a seguir, seu quadro histórico de vida
não se encaixa com as definições patologizantes do que é ser transexual.
O que se percebe é que o campo estava propício para a inserção da noção de transexualidade. Mais uma
categoria para emoldurar as experiências subjetivas de vivenciar gênero, sexualidade e desejo.
1.4.
Condições de possibilidade para a invenção da transexualidade
Em 1949, o médico D. O. Cauldwell cria o termo “psychopathia transexualis”, em um artigo publicado na
revista Sexology, para se referir ao caso de uma mulher que apresenta o desejo de se “masculinizar” (Cf. LEITEJÚNIOR, 2008). Nesse trabalho são produzidas algumas características que viriam a ser consideradas exclusivas
dos/as transexuais, pois até o momento não havia uma distinção conceitual entre as definições transexual, travesti
e, até mesmo, homossexual (BENTO, 2006).
Porém, de acordo com a pesquisa de Leite-Júnior (2008), a atenção à transexualidade passa a ganhar
notoriedade mundial em 1952, quando o jornal The New York Daily News traz a reportagem de uma jovem
americana de 26 anos que havia passado por um tratamento hormonal e realizado cirurgias para remoção do
pênis e testículos e criado os lábios vaginais. Christine Jorgensen7 foi o primeiro caso tratado pelo médico
Christian Hamburger, na Dinamarca, com a cirurgia chamada de transgenitalização.
Ao voltar aos Estados Unidos, Christine se torna uma celebridade, pois passa a ser manchete de jornais e
tema de revistas que divulgavam a incrível história do militar que se transforma em mulher. Inclusive, em 1954,
é eleita a mulher do ano. Essa espetacularização do caso Christine é um importante marco na história da
transexualidade, pois milhares de pessoas, em várias partes do mundo, tinham o conhecimento de que era
possível, cientificamente, passar de um sexo para outro. O caso Christine Jorgensen torna o tema da
transexualidade algo popular. Isso provocou um aumento significativo nas demandas por tratamento e assim
contribuiu para a reflexão sobre a identidade sexual e a construção da categoria de gênero.
Somando-se a isso, há todo um campo de possibilidades formado para a emergência da discussão sobre o
trânsito de gênero. Márcia Arán (2006) argumenta que a transexualidade está baseada em dois dispositivos
distintos. O primeiro se refere ao avanço da biomedicina, principalmente no que se refere ao aprimoramento das
técnicas cirúrgicas e ao progresso da terapia hormonal. O segundo concerne à forte influência da sexologia e do
movimento feminista na construção da noção de “identidade de gênero” como sendo uma produção sociocultural
independente do sexo biológico.
Como forma de apresentar as diversas visões que constituíram (e continuam o fazendo) a transexualidade,
dividiremos nossos esforços em duas bases conceituais: uma sob o prisma biológico e a outra, orientada por uma
perspectiva social. Ainda que ambos os eixos interpretativos aceitem a influência de múltiplos fatores, a
perspectiva biológica enfatiza os fatores genéticos, enquanto que a perspectiva social centraliza a importância
nos fatores sociais (especialmente familiares, em se tratando da Psicanálise) como base explicativa para o
surgimento da transexualidade.
“Diz-me que hormônios tens e te direi quem és”8: a transexualidade a partir do enfoque
1.5.
biologicista
Harry Benjamin, um endocrinologista alemão radicado nos Estados Unidos, em 1953, após vários anos de
experiência no tratamento de pessoas transexuais, inclusive Christine Jorgensen, publica o artigo “Travestismo e
transexualismo” (BENTO, 2006). Benjamim retoma o termo em latim formulado por Cauldewell em 1949
(transexualis) e cria os termos “transexual” e “transexualismo”, iniciando a popularização, científica e cotidiana,
das terminologias recém formuladas.
7
8
A jovem adota o nome de Christine em homenagem a seu médico-cirurgião (LEITE-JÚNOR, 2008).
Variação, utilizada por Bento (2004, p. 160), da expressão popular “diga-me com quem andas que te direi quem és”.
Em 1966, Harry Benjamin publica O fenômeno transexual, um dos livros mais importantes já publicados
sobre o assunto. Nele, além de teorização sobre o chamado transexualismo, lança as bases para a padronização de
seu tratamento utilizada até a atualidade (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).
Harry Benjamin (1966) afirma que a diferença entre travestis e transexuais é que no segundo caso existe
um desejo intenso de mudar completamente de estado sexual, inclusive, na estrutura orgânica. Enquanto o
travesti representa o papel de mulher, o transexual deseja ser e funcionar como mulher.
Para Benjamin, tanto o travestismo quanto o transexualismo são sintomas de distúrbio da orientação
sexual e de gênero normal. Isso pode ser observado na utilização, iniciada no século XIX, do sufixo “ismo” para
nomear os considerados “transtornos sexuais”. Porém, ao reforçar o caráter patológico de tais manifestações
sexuais, provoca um afastamento de tais condutas da criminalização. Segundo Benjamim (1966, p. 78),
Criminalidade perante a lei não é necessariamente criminalidade perante a ciência e o senso
comum. Travestismo, transexualismo, o comportamento homossexual, a toxicodependência,
alcoolismo e prostituição são exemplos. São problemas de saúde, comportamento e caráter. Eles
precisam de tratamento e educação em vez de punição (tradução nossa).
Em O fenômeno transexual, o endocrinologista defende a ideia de que o “sexo” é tanto genético (XX ou
XY), anatômico (pênis ou vagina) e gonodal (testículos ou ovários), endócrino (ou hormonal), psicológico, social
e jurídico. O sexo genético (cromossomático) é o responsável pela determinação do sexo e do gênero. Tanto que
o primeiro procedimento para aqueles/as que reivindicam a cirurgia de redesignação sexual é o exame cariótipo.
Se for identificada uma má-formação cromossômica e o diagnóstico for de hermafroditismo, há um
encaminhamento automático para a cirurgia. Isso demonstra uma determinação biológica na identificação da
transexualidade. A verdade última do ser humano encontra-se, então, na biologia.
Apesar da crença de que o gênero é determinado pela biologia, Harry Benjamin defendia que a única
alternativa para esses casos é a cirurgia de redesignação sexual. Isso porque, de acordo com Bento (2006),
Benjamin acreditava que o avanço da ciência iria descobrir as causas biológicas desse fenômeno que ainda não
eram possíveis de se detectar com o aparato tecnológico da época. Considerando a cirurgia como a única
possibilidade terapêutica para a transexualidade, Benjamin produzia severas críticas à escuta psicológica ou
psicanalítica para esses casos. Isso porque, como visto, a transexualidade é atribuída mais a algum fator orgânico
ainda não esclarecido do que ao fator psicológico. Para ele, as psicoterapias não passam de estratégias paliativas
que apenas podem ajudar a pessoa a se adaptar a sua nova condição. Jamais, portanto, podem “curar” a
transexualidade.
Outro elemento importante desta obra de Benjamin é a escala que elabora para classificar “o fenômeno
transexual” em tipos que vão desde o “pseudo-travesti” até o “transexual de intensidade alta”. Esse último é
considerado o/a transexual exemplar: “vive como o outro gênero, deseja alterar o corpo, especialmente com
cirurgia, considera-se uma ‘mulher em corpo de homem’ (ou vice-versa), não possui libido e é extremamente
infeliz” (LEITE-JÚNIOR, P. 147).
Benjamin selecionou algumas características que considerou relevantes nos relatos de seus/suas pacientes
para definir o que é um/a “transexual verdadeiro/a”. Logo, essa definição se tornou referência para avaliar os
discursos dos/das candidatos/as à cirurgia9. Ocorreu o processo denominado por Bento (2004, p. 162) de
“construção da universalização do transexual”.
O/a verdadeiro/a transexual, para Benjamin, é fundamentalmente assexuado e sonha em ter um
corpo de homem/mulher que será obtido pela intervenção cirúrgica. Essa cirurgia lhe
possibilitaria desfrutar do status social do gênero com o qual se identifica, ao mesmo tempo em
que lhe permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o órgão apropriado. Nesse sentido, a
heterossexualidade é definida como a norma a partir da qual se julga o que é um homem e uma
mulher de verdade (BENTO, 2004, p. 163).
As pesquisas de Benjamin se transformaram em referência para o diagnóstico daquilo que se considera
“transexual verdadeiro” e, logo, para avaliar a necessidade de cirurgia. Em 1969, cria-se a Harry Benjamin
Association, criadora de Normas e Tratamento (Standards of Care – S.O.C) para o acompanhamento médico de
transexuais utilizado até os dias atuais em grande parte do Ocidente.
Porém, Bento (2004; 2006) problematiza e critica essa categorização inflexível e universal pretendida por
Benjamin. Através de sua pesquisa de campo com várias/os transexuais demandantes à cirurgia, verificou
características diferentes daquelas postuladas por Benjamin.
As críticas da autora se concentram, principalmente, em dois aspectos: 1) o suposto caráter assexuado
dos/as transexuais; 2) a heterossexualidade como matriz de inteligibilidade dessa população.
Bento (2004; 2006) apresenta alguns relatos de transexuais que mantinham uma vida sexual ativa com
seus/as companheiros/as antes da cirurgia. Ou seja, como fica o caráter assexuado diante dessa constatação? A
autora também relativiza a rejeição do órgão sexual que, para a definição benjaminiano, é uma característica
essencial.
Outra crítica é em relação à heterossexualidade que obrigatoriamente o/a transexual possui. Nesta
concepção, se uma pessoa reivindica a cirurgia de readaptação sexual, é porque deseja exercer o que Benjamin
chamaria de “sexualidade normal”, ou seja, heterossexual. Está fora do horizonte de inteligibilidade conceber que
alguém se considere uma transexual lésbica, por exemplo. Porém, Bento (2006) apresenta relatos de transexuais
auto-definidos como gays ou lésbicas. O que se percebe aí é uma separação entre identidade de gênero e
sexualidade. Uma coisa é desejar ter a identidade de gênero feminina e outra coisa é desejar se relacionar
sexualmente com homens.
9
Os critérios para o consentimento em realizar a cirurgia de re-adequação sexual será apresentada com detalhes em seguida.
Fazer a cirurgia e definir-se como lésbica é embaralhar as categorias binárias que elaboram o
olhar sobre os corpos, pondo em dúvida a relação de causalidade entre cirurgia, sexualidade e o/a
“verdadeiro/a transexual” (BENTO, 2004, p. 166).
O que se entende por transexual verdadeiro/a está pautado no que se concebe socialmente por homem e
mulher de verdade. Se a heterossexualidade é a forma de relacionamento afetivo normal, logo, o/a “transexual
verdadeiro/a” será heterossexual. A cirurgia surge como uma forma de exercer a sexualidade normal.
Porém, a tese defendida por Berenice Bento (2006) é que mais do que o exercício da sexualidade
“adequado” à identidade de gênero, o que se pretende por meio da cirurgia é inteligibilidade social. Ou seja, a
aquisição da identidade socialmente legitimada, inclusive mediante a mudança de nome e sexo nos documentos
pessoais.
1.6.
A transexualidade pela ótica social: John Money e Robert Stoller
Paralelo ao trabalho de Benjamin, psicólogo John Money também se dedica ao estudo sobre a sexualidade
e os limites e aproximações entre o feminino e o masculino. É Money que utiliza pela primeira vez o termo
“gênero” para se referir às diferenças sexuais entre as pessoas (BENTO, 2006).
Radicado nos Estados Unidos, Money atendia principalmente crianças diagnosticadas como possuindo
sexo ambíguo, os/as chamados/as intersexuais, no famoso hospital John Hopkins. Após lidar com vários casos de
crianças com sexualidade ambígua, conclui que o gênero e a identidade sexual são moldados até os 18 meses de
vida.
Entretanto, o aparente teor revolucionário de afirmar que o gênero não é algo inato ao organismo, logo se
mostra contestável. Isso porque Money mantinha e reafirmava a tradicional dicotomia de gênero e defendia a tese
de que a educação era responsável pela instauração das diferenças sexuais. Bento (2006, p. 41) critica essa
concepção de Money ao dizer que não se trata de uma “determinação do social sobre o natural, mas como o
social, mediante o uso da ciência e das instituições, poderia assegurar a diferença entre os sexos”.
Além disso, as intervenções nos corpos de crianças intersexuais tinham como matriz de inteligibilidade a
heterossexualidade como norma. Ou seja, pessoas com pênis deveriam ser masculinas, desejar e manter relações
sexuais com mulheres. A cirurgia dessas crianças geralmente fabricava “meninas”, devido à maior facilidade
técnica de criar genitais femininos do que masculinos. Portanto, era criada a vagina e posteriormente, na
adolescência, o canal vaginal, tendo como pressuposto a futura penetração de um pênis. Portanto, está-se
produzindo cirurgicamente uma mulher, que será educada enquanto tal e deverá sentir atração sexual por
homens. À cirurgia, segue-se por uma persistente e vigilante educação dos papéis sociais adequados ao sexo
atribuído (LEITE-JÚNIOR, 2008).
O “tratamento” realizado por Money ganhou um impressionante relato feito por John Colapinto (2001).
Este jornalista apresenta um dos casos mais famosos de Money. Trata-se da história de David, um rapaz, gêmeo
idêntico de Brian, que, devido a uma circuncisão mal feita quando ainda era bebê, teve seu pênis queimado e
destruído pelo aparelho do procedimento. Os pais, atônitos com a (não) possibilidade de criar um menino sem
pênis, apostam na promessa do Dr. Money de que por meio de cirurgia, tratamento hormonal e educação
adequada, reforçando os atributos e estereótipos considerados femininos, poderiam transformar um bebê
biologicamente masculino em uma menina.
O texto, apesar da forte ênfase biológica e essencialista, denuncia os absurdos que permeavam o
“tratamento” supostamente bem sucedido de Money. Colapinto (2001) oferece um relato sobre os conflitos
familiares vividos por Bruce, que se tornou Brenda e aos 14 anos, se torna David. O desfecho trágico dessa
história é o suicídio tanto de Brian, o gêmeo criado como menino, quanto de David, dois anos depois da morte do
irmão.
Embora as teses de Money tivessem como foco bebês intersexuais, suas teorizações provocaram
ressonâncias importantes na constituição científica da transexualidade (BENTO, 2006). Em 1966, Money funda a
Clínica de Identidade de Gênero (termo criado por Robert Stoller, apresentado a seguir) junto ao Hospital Johns
Hopkins. A especialidade da clínica era tratar dos problemas referentes à identificação sexual, ou seja, a relação
entre genitália e o auto-reconhecimento enquanto homem ou mulher. Como nos afirma Leite-Júnior (2008, p.
144), “foi nesta clínica que a temática transexual ficou indissociável do nome deste psicólogo, que acompanhou
vários pacientes, e onde foi realizada a primeira cirurgia de transgenitalização dos Estados Unidos em 1965”.
Em 1973, John Money, Norman Fisk e Donald Laub criam o termo “disforia de gênero” para se referir ao
mal-estar e incômodo com o próprio gênero. O novo termo, por ser mais abrangente do que “transexualismo”
ganha destaque no mundo científico. Em 1977, a própria Associação Harry Benjamin adota o termo, passando a
se chamar Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association (HBIGDA).
Robert J. Stoller, psiquiatra e psicanalista americano, é o terceiro personagem que mais influenciou o
cenário inicial de invenção da transexualidade. Dedicou grande parte de seus estudos e pesquisas aos casos de
intersexualidade e transexualidade e foi um dos pioneiros na sistematização e na publicação de reflexões sobre
transexualidade nos Estados Unidos (BENTO, 2004).
Stoller cria, em 1964, o conceito de “identidade de gênero” para se referir à mescla de masculinidade e
feminilidade que todas as pessoas possuem, ocorrendo apenas uma diferença no grau em que essas características
são apresentadas em cada pessoa. É um tipo de identidade psicológica que pode se manifestar em “desacordo”
com o sexo fisiológico. Este conceito, que defende a mistura entre gêneros, mostra-se como um importante passo
na discussão de que sexo e gênero são categorias distintas e dissociáveis.
Já em 1968, Stoller formula o conceito de “identidade de gênero nuclear” para enfatizar que há um gênero
nuclear que se desenvolve na primeira infância, tornando-se, assim, imutável. Com o novo conceito, Stoller
pretende ratificar que o gênero não pode ser facilmente mudado.
Porém, segundo Leite-Júnior (2008), a mudança conceitual foi protagonizada pela revelação de uma
paciente atendida e operada por sua equipe em 1959. Trata-se de Agnes, uma jovem de 19 anos que se afirma
uma mulher intersexual e que reivindica a cirurgia de transgenitalização. Agnes explica que apesar de ter pênis e
testículos, ela sempre se sentiu uma mulher e que na adolescência, sem nenhuma explicação aparente, começa a
desenvolver caracteres femininos, tais como seios, formas corporais arredondadas etc.
O relato de Garfinkel (1977) sobre o caso de Agnes apresenta com detalhes as características femininas de
Agnes. Ela impressiona a todos pela sua feminilidade “natural”, muito diferente das figuras “caricatas”
representadas pelas travestis.
A cirurgia foi realizada e considerada bem sucedida. Entretanto, sete anos após o procedimento, Agnes
admite que mentiu para a equipe. Os caracteres femininos que apresentava não apareceram naturalmente; foram
provenientes de ingestão de estrogênios desde os doze anos de idade, além de uma intensa reeducação
comportamental para adquirir os trejeitos femininos. Apresentou-se como uma mulher intersexual, pois já tinha
conhecimento de que com este diagnóstico era mais fácil conseguir a cirurgia de transgenitalização do que se
apresentasse enquanto transexual.
Essa revelação é um grande choque para Stoller, pois questiona sobre os elementos que diferenciam as
transexuais (ou intersexuais) das mulheres “normais”. O psicanalista passa, então, a intensificar sua busca pelo
“verdadeiro sexo” e a desenvolver estratégias cada vez mais rígidas para identificar as/os falsas/os transexuais
demandantes de cirurgia.
Eis que surge o conceito de “identidade de gênero nuclear”. Com a nova terminologia, o autor afirma que
tal identidade é fixada entre os dois e três anos de idade. A tese defendida é que existe um gênero central,
nuclear, desenvolvido na primeira infância e que, então, torna-se imutável. Com este conceito, é possível detectar
o “verdadeiro” homem ou mulher transexual.
Já em 1975, Stoller publica o livro intitulado “A experiência transexual”, uma das obras mais importantes
para os estudos sobre transexualidade. Sem rejeitar as bases fisiológicas da construção da feminilidade ou da
masculinidade, enfatiza os aspectos psicológicos dessa condição. E conclui que o homem transexual10 é alguém
que possui um pai ausente e uma mãe superprotetora e masculinizada. A mãe do transexual é uma mulher que,
devido à inveja que sente dos homens e um desejo inconsciente de ser torna um deles, transfere seu desejo de
mudança de sexo para seu filho. Para o autor, as mães de pessoas transexuais sentem “a mais poderosa inveja do
10
Para Stoller, o homem transexual é a pessoa com genitais masculinos que deseja eliminá-los e obter os genitais femininos. Porém, a
militância LGBTT denomina esta mesma pessoa de “mulher transexual”, respeitando assim, a identidade de gênero identificada.
pênis e, quanto aos pais, não são apenas incapazes de tomar parte na família como homens masculinos, mas seu
relacionamento com as esposas é distante e mal-humorado” (STOLLER, 1982, p. 68).
Com efeito, a relação da mãe com o filho é a base explicativa para a transexualidade; é a “essência” do
transexual. Stoller cria, então, a mãe típica do transexual: aquela que mascara sua inveja do pênis se tornando
uma mãe extremamente atenciosa e protetora (o filho é o falo que ela não possui), compete e anula seu marido, é
autoritária e masculinizada (BENTO, 2006).
Entretanto, as entrevistas realizadas por Bento (2006) apresentam um quadro nitidamente diferente do
perfil de mãe formulado por Stoller. A relação que as/os transexuais mantinham com suas mães apontam níveis
diferenciados de proximidade, distância ou mesmo ausência. As histórias apresentadas são relatos de pobreza, de
abandono e de famílias fragmentadas. “O olhar stolleriano sobre essas famílias buscaria na relação entre os filhos
e suas mães a explicação para a existência de um membro transexual e, provavelmente, chegaria à conclusão de
que nenhum dos casos relatados é de ‘transexuais de verdade’” (BENTO, 2006, p. 146).
Continuando com a interpretação de Stoller sobre a relação mãe-bebê, ele a analisa como de tal forma
intensa a ponto de impossibilitar o aparecimento e resolução do Complexo de Édipo, uma vez que não há o outro,
o pai, como rival. Não há um conflito com a masculinidade, mas a ausência de masculinidade. Com efeito,
Stoller, seguindo a tradição psicanalítica, considera o Complexo de Édipo como momento fundamental para a
construção da identidade de gênero (STOLLER, 1982).
Como a identidade de gênero nuclear é construída na primeira infância, o verdadeiro transexual é aquele
no qual o gênero “errado” foi instalado. Para estes casos, Stoller acreditava que um tratamento terapêutico era
capaz de induzir o Complexo de Édipo e assim, fazer brotar a feminilidade ou masculinidade “normal”.
Stoller nomeia tal tratamento como “complexo de Édipo terapeuticamente induzido” (STOLLER, 1982,
p. 101). Para tanto, deve-se ressaltar os elementos estruturantes do que é considerado hegemonicamente como
masculino e, assim, agregar novos e positivos significados a sua genitália. Destaca-se ainda que um indicador do
sucesso terapêutico é o aparecimento de hostilidade em relação à mãe e às demais mulheres. Posteriormente, a
criança passa a ter comportamentos e atração por brincadeiras agressivas, o que para Stoller, é um sinal de
masculinidade11.
O tratamento terapêutico só é recomendado às crianças, pois dificilmente é possível provocar o efeito
descrito acima em adultos. Dessa forma, a cirurgia de readequação sexual era uma opção (ainda que em último
caso) no “tratamento” da transexualidade. Lembrando sempre que o psiquiatra é o juiz que decide quais pacientes
devem receber estes tratamentos (STOLLER, 1982).
11
É válido ressaltar que, seguindo sua interpretação edípica da transexualidade, Stoller afirma que não há transexualidade em mulheres
biológicas. As mulheres que desejam se “masculinizar” não são transexuais verdadeiros e sim, uma apresentação extremada de
homossexualidade feminina.
O encaminhamento para a cirurgia é mobilizado pelo fato de que, seguindo a tradição iniciado por KafftEbing, Stoller não considerava “transexuais verdadeiros” como psicóticos. Para este autor, apesar de se sentirem
“mulheres em corpos de homens”, tinham a consciência de que não eram mulheres “de verdade”. Esse é um dos
elementos teóricos que vão diferenciar Stoller de outros psicanalistas, principalmente aqueles de orientação
lacaniana, pois consideram a transexualidade uma psicose e, portanto, desaconselham a cirurgia de
transgenitalização.
Jöel Dor, importante psicanalista da atualidade, compreende o transexual masculino (o homem que se
transforma em mulher) como sofrendo de algum tipo de processo psicótico. Esta afirmação é orientada pela
tradição iniciada pela análise de Freud do caso Schreber12. Já Catherine Millot, outra psicanalista que se
debruçou sobre o tema, faz ressalvas quanto a esta concepção. Se o paciente analisado por Freud consistia,
segundo a autora, em um caso claramente psicótico, atualmente, os casos de “transexualismo puro” não
comportam sintomas psicóticos no sentido psiquiátrico do termo. A demanda pela cirurgia estaria ligada a uma
hesitação histérica concernente ao próprio sexo ou a algum delírio hipocondríaco. Recomendava, portanto, a
psicoterapia como tratamento a tal “doença”.
Diante de tantas definições e terminologias para caracterizar as formas de viver travesti e transexual, o
que chama a atenção é a manutenção do caráter patológico de tais experiências subjetivas e a apropriação
médico-científica no que se refere ao trânsito de gênero.
1.7.
Patologização das experiências travesti e transexual
O que se percebe a partir do relato da inserção da terminologia “travesti” e “transexual” no discurso
científico é a progressiva e incessante abrangência do domínio médico na categorização de tais vivências.
Percebe-se, então, que a travestilidade e transexualidade têm sido objeto de estudo e intervenção de um saber que
se orienta pela patologização e medicalização das condutas.
O desejo de patologização das experiências travesti e transexual se concretiza em 1980 com a inclusão
dessas categorias no Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), produzido pela Associação
Psiquiátrica Americana (APA), assim como no Código Internacional de Doenças (CID), elaborado pela
Organização Mundial de Saúde. Nesses documentos, travestis e transexuais são apresentados como portadores de
um conjunto de indicadores comuns, que se pretendem universais, visando caracterizá-los como transtornados,
independentemente dos diferentes contextos sociais que habitam (BENTO, 2008).
12
Freud analisa a sensação de pertencer ao sexo feminino de Daniel Paul Schreber, jurista alemão do final do século XIX, como
sintoma psicótico. O exemplo de Schreber serve de guia para muitas análises psicanalíticas sobre a transexualidade, aproximando esta
vivência à estrutura psicótica.
O DSM consiste na categorização e apresentação dos critérios diagnósticos dos mais diversos transtornos
mentais. É um dos textos mais importantes no que se refere à promulgação, classificação e diagnóstico dos
transtornos mentais, a pesar de ser alvo de muitas críticas por sua “baixa confiabilidade” (RUSSO; VENÂNCIO,
2006).
Russo e Venâncio (2006) sinalizam que a 3ª edição do DSM elevou de modo significativo os
transtornos/desvios relacionados à sexualidade e ao gênero, apesar da retirada do termo homossexualismo do
manual13. Nesta publicação, a sexualidade é analisada como um objeto médico, produzida por uma série de
dispositivos discursivos que a constituem como normal ou desviante (MARTÍNEZ-GUZMÁN; ÍÑIGUEZRUEDA, 2010).
É no DSM-III que há a inclusão do “transexualismo” como categoria patológica. No entanto, na edição
seguinte publicada em 1994, há a substituição do diagnóstico de “transexualismo” pelo “transtorno de identidade
de gênero” (BENTO, 2008).
Portanto, atualmente, o DSM-IV traz no capítulo Transtorno sexuais e da
identidade de gênero as Disfunções sexuais que incluem o Fetichismo transvéstico e os Transtornos da identidade
de gênero. Este se ramificando em três categorias diferenciadas: Crianças, Adolescentes ou Adultos, e Sem outra
especificação.
Basicamente, a travestilidade é apresentada no item “Fetichismo transvéstico” e tem como critério
diagnóstico: A. Por um período de 6 meses, em um homem heterossexual, fantasias sexualmente excitantes,
recorrentes e intensas, impulso sexuais ou comportamentos envolvendo o uso de roupas femininas; B. As
fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no
funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (LEITE-JÚNIOR,
2008, p. 183).
Já a transexualidade, vem nomeada de “transtorno de identidade de gênero” e para se ter tal diagnóstico
deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste
do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto. (...) Também deve
haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de
inadequação no papel de gênero deste sexo. Para que este diagnóstico seja feito, deve haver
evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou
ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (BENTO, 2008, p. 81).
Ao contrário do DSM, o CID, em sua décima edição (que entrou em vigor em 1993), ainda traz o termo
“transexualismo”, além do “travestismo bivalente”, entre outros “transtornos de identidade sexual”. Em síntese,
“transexualismo” é definido no CID-10 como patologia que acomete aqueles que desejam viver como o outro
gênero, receber intervenções hormonais e cirúrgicas e nutrem um profundo mal-estar (ou aversão) em relação a
seu sexo anatômico. Já o “travestismo bivalente” implica o uso de vestimentas do sexo oposto durante uma parte
da existência de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao sexo oposto sem o recurso à
intervenção cirúrgica. Neste caso, a mudança de vestimenta não é acompanha de uma excitação sexual. Porém, o
travestismo também está contemplado no item “Transtornos da preferência sexual” sob a denominação de
“travestismo fetichista”. Este é considerado uma parafilia, termo contemporâneo para perversão, e descrito como
o hábito de vestir roupas do sexo oposto com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência do sexo
oposto14.
O que se percebe nas definições trazidas pelo DSM-IV e pelo CID-10 é que os conceitos de
transexualismo e travestismo, apesar de constantemente confundidos, têm características diferenciais
importantes. O travestismo é uma patologia daqueles que “parecem, mas não são”. Está associado ao fetichismo,
tendo como foco, daqueles acometidos por tal “doença”, o prazer erótico. Trata-se de uma disfunção sexual. Já
no transexualismo, a pergunta que se faz é o quanto uma pessoa é transexual, qual o grau de pertencimento ao
“outro sexo”. Refere-se a um transtorno de identidade. Ou seja, são definidos como patológicos tanto aqueles/as
que têm prazer na transgressão quanto aqueles/as que “desviam” das normas de gênero por sofrerem de uma
“desconexão” entre o psicológico e o corpo. De um lado a perversão, de outro, a patologia (LEITE-JÚNIOR,
2008).
Em relação à travestilidade, é interessante notar que as definições trazidas no DSM-IV e na CID-10 pouco
se referem às travestis brasileiras, como apontam diversos estudos sobre a vivência dessa população (SILVA,
1993; KULICK, 2008; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2009). Ser travesti seria investir permanentemente na
construção de um corpo a ser reconhecido pelo outro como um corpo feminino, apesar de não sentirem
necessidade de corrigir a genitália cirurgicamente (LIONÇO, 2009). Como destaca Leite-Júnior (2008), no
Brasil, a categoria que mais se enquadraria nas definições de travestismo fetichista da CID-10 ou de fetichismo
transvéstico do DSM-IV seja a de crossdresser. Trata-se de uma moderna nomenclatura para se referir às pessoas
que, independente de orientação sexual, gostam de se vestir com roupas do sexo considerado oposto ao seu e que
não promovem alterações definitivas no corpo, contentando-se na “montagem” (termo que denomina esse
processo de se vestir, maquiar e usar de outras estratégias para se assemelhar ao outro sexo) durante um período
do dia ou da semana.
Além desses manuais destinados a catalogar uma série de patologias, há o documento específico para a
transexualidade. Trata-se de Normas de Tratamento (State of Care – SOC) publicado pela Associação
Internacional de Disforia de Gênero Harry Benjamin. Tal entidade, fundada pelo próprio Harry Benjamin,
legitimou-se como uma das associações responsáveis pela normatização do “tratamento” para as pessoas
transexuais em todo o mundo (BENTO, 2008).
13
A retirada do “homossexualismo” como categoria patológica da sexualidade humana na 3ª edição desse manual foi pela diferença de
um voto (LEITE-JÚNIOR, 2008).
14
Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm. Acesso em 19/maio/2011.
Como observa Bento (2008), as definições da SOC são praticamente as mesmas apresentadas pelo CID10. A única diferença entre os documentos é a nomenclatura utilizada. Enquanto o CID-10 utiliza “transtorno de
identidade sexual – transexualismo”, a SOC usa o termo “disforia de gênero”.
Esses três documentos – DSM-IV, CID-10 e SOC (que está em sua 6ª edição) – estão orientados a dar
instruções e indicadores para reconhecer e elaborar um veredicto sobre a travestilidade e transexualidade.
Entretanto, esses textos não representam a travestilidade e a transexualidade. Eles as inventam, as fabricam. E
para isso, essas experiências são apresentadas como um fato natural, sendo os manuais apenas uma descrição
objetiva de um estado de coisas.
Para se fazer o diagnóstico, deve ser encontrado um conjunto de componentes e evidências que indique
que se trata de uma ou de outra patologia. A tarefa do psiquiatra ou dos demais profissionais interessados na
determinação identitária-patológica, consiste em seguir as instruções destes manuais e coletar os sintomas e
sinais suficientes para emitir uma sentença (MARTÍNEZ-GUZMÁN; ÍÑIGUEZ-RUEDA, 2010).
Porém, para estas “patologias”, o saber médico não pode justificá-las por nenhuma disfunção fisiológica.
Não há, por exemplo, testes que as comprovem como supostamente há para os casos de pessoas intersexuais
(BENTO, 2008). Pelo contrário, todos os critérios diagnósticos são práticas ou comportamentos regidos pelas
normas de gênero criadas social e coletivamente. Como observam Martínez-Guzmán e Íñiguez-Rueda (2010) a
respeito do DSM-IV, mas podendo ser generalizado para os outros documentos aqui analisados, esses manuais
convertem práticas, preferências e desejos em sintomas e critérios diagnósticos.
A questão que se coloca é a autoridade que tanto as teorias quanto os manuais orientados por elas
exercem na vida das pessoas diagnosticas enquanto travesti ou transexual. No segundo caso, essa constatação se
torna ainda mais grave, pois o diagnóstico médico de “transexualismo” implica na obtenção ou não da
autorização para a cirurgia de transgenitalização.
O Ministério da Saúde, por meio da portaria GM nº 1.707, de 18 de agosto de 2008 (BRASIL, 2008),
formalizou diretrizes técnicas e éticas para a atenção ao Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde
(SUS) em consonância aos critérios estipulados pelo Conselho Federal de Medicina15. O Processo
Transexualizador compreende um conjunto de técnicas envolvido no processo de transformação dos caracteres
sexuais pelos quais passam indivíduos transexuais. Refere-se ao estabelecimento de diretrizes para as ações
necessárias à garantia do direito à saúde exclusivamente circunscrita ao trânsito de gênero, não abarcando,
portanto, o acesso à atenção integral à saúde dessa parcela da população (LIONÇO, 2009).
O acesso à cirurgia é condicionado ao diagnóstico de “transexualismo”. Este diagnóstico é realizado a
partir de uma série de exigências que o/a candidato/a à cirurgia deve obrigatoriamente se submeter. Os
protocolos para o processo transexualizador envolvem, além da terapia hormonal, exames de rotina, e teste de
vida real – que consiste na obrigatoriedade do/a candidato/a usar durante todo o dia as vestimentas do gênero
identificado –, a submissão por um determinado tempo de terapia, assim como de testes de personalidade. Esse
procedimento visa eliminar o diagnóstico de outros transtornos de identidade e para que a equipe não tenha
dúvida de que se trata de um/a verdadeiro/a transexual. Dessa forma, assegura-se que não haverá arrependimento
do/a candidato/a (BENTO, 2008).
Entretanto, passar por todos esses procedimentos não garante a aptidão à cirurgia. Esta será concedida se
a equipe responsável (médicos, psiquiatras e psicólogos) for convencida de que o/a candidato/a é realmente um/a
transexual. Porém, o que de fato ocorre é o auto-diagnóstico. Eles/elas constroem uma narrativa bibliográfica
capaz de convencer a equipe hospitalar, durante os dois anos de acompanhamento, que se trata de um
homem/uma mulher em um corpo equivocado (BENTO, 2006).
A exemplo disso, podemos lembrar o caso de Agnes, a jovem que conseguiu “enganar” Stoller e sua
equipe, pois já sabia que com o diagnóstico de intersexualidade seria mais “fácil” conseguir a cirurgia de
transgenitalização. Outro exemplo interessante é a cena retratada no filme Transamérica na qual Bree,
personagem principal, está em uma das entrevistas para a obtenção da autorização da cirurgia. Ela mede suas
palavras e responde às perguntas do médico seguindo aquilo que a encaixa no perfil de transexual “verdadeira”;
quando não o faz, retifica a resposta “incorreta”. O que se evidencia é que as/os candidatas/os à cirurgia já
conhecem os protocolos e fazem uso desse conhecimento para alcançar o que tanto almejam: a cirurgia para
sanar a ambigüidade sexo/gênero e assim, ter inteligibilidade social (BENTO, 2006).
Todos esses protocolos estão orientados por normas de gênero, por comportamentos e desejos
supostamente adequados para um gênero ou o outro. A recorrente posição binária entre o feminino ou o
masculino. Portanto, espera-se que uma pessoa que reivindica a cirurgia para se “transformar” em uma mulher,
por exemplo, tenha os atributos considerados como femininos: delicada, desejar casar, ter filhos (adotados),
cuidar da casa e do marido etc. O que se tem aí são normas comportamentais consideradas socialmente como
femininas. São construções sociais forjadas coletivamente ao longo do tempo. Não há nada essencialmente
feminino, uma vez que o próprio conceito de “feminino” é uma invenção.
Um instigante acontecimento durante um encontro intitulado “Transexualidade, Travestilidade e Direito à
Saúde”, promovido pela Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) em março de 2010 em São Paulo, anima
esse debate. Uma mulher auto-identificada enquanto transexual perguntou ao público presente, a grande maioria
composta por mulheres, se alguém, nascida biologicamente mulher, se encaixava na descrição do que é pertencer
ao sexo feminino presente nos protocolos para a autorização da cirurgia. O silêncio imperou, posteriormente
atravessado por algumas risadas pela constatação do quão obsoleto é o padrão de mulher reconhecido. Ficou
15
O Conselho Federal de Medicina estabelece os critérios de viabilidade do procedimento de transgenitalização e demais intervenções sobre
caracteres por meio da Resolução nº 1.652 de 2002.
claro que não há uma maneira essencial de ser mulher. Por que haveria, então, um verdadeiro modo de ser
mulher transexual?
O condicionamento da aplicabilidade da resolução 1.652/02 do Conselho Federal de Medicina para
alteração dos caracteres sexuais exclusivamente para os casos diagnosticados enquanto “transexualismo” tem
mais um impasse: as travestis são excluídas desse procedimento. Como as travestis não demandam
necessariamente a cirurgia de transgenitalização, são excluídas do acesso aos recursos médicos para as
transformações corporais, como a hormonioterapia. A exclusão do acesso aos serviços de saúde as deixam a
mercê da auto-medicação ou da ação das bombadeiras – pessoas, geralmente também travestis, que injetam
silicone industrial para a modelagem dos corpos das travestis (LIONÇO, 2009).
Lionço (2009) defende a idéia de que a aplicabilidade dos procedimentos médicos-cirúrgicos aos casos de
“transexualismo” está orientanda por uma concepção corretiva dos corpos. Faz-se necessário adequar o corpo à
subjetividade identificada, sendo a cirurgia o tratamento reparador do transtorno identitário apresentado.
A hipótese aqui sustentada é a de que a regulamentação da aplicabilidade dos procedimentos
médico-cirúrgicos sobre caracteres sexuais é restrita a casos de transexualismo porque se
compreende, mediante a reparação cirúrgica, que uma certa normalidade poderia ser restituída.
Como as travestis não demandam essa correção, reafirmando a insuficiência da lógica binária em
dar conta das experiências subjetivas de posicionamento diante da diferença sexual, são excluídas
do acesso aos serviços e aos recursos médicos em seus processos de transformação corporais, não
dispondo de iguais oportunidades no acesso aos serviços e tecnologias disponíveis no campo
médico (LIONÇO, 2009, p. 55).
Vê-se, então, a manutenção do binarismo identitário. O processo transexualizador visa à reparação, a
conformação dos corpos às normas de gênero que associam sexo-corpo-gênero-desejo-identidade. Tal processo
opera a partir da normatização das condutas, na qual a travestilidade não tem inteligibilidade. Não há espaço
normativo para uma mulher com pênis. Portanto, não cabe à medicina ou ao Estado alimentar à “anormalidade”.
Àqueles/as que desejam corrigir seus corpos equivocados, abrem-se os portões da “normalidade”; aos/às que se
ancoram na ambigüidade, que sustentem também os recursos para a sua vivência supostamente “anormal”, falsa,
incoerente, não verdadeira.
1.8.
Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?
O que se destaca com as informações trazidas nesse levantamento teórico e conceitual das categorias da
produção da travestilidade e da transexualidade é a maciça e recorrente categorização dessas experiências.
Esforços voltados para diferenciá-las entre si, e principalmente para delimitar seus contornos e características
específicas. Tantas nomenclaturas e demarcações pretendem definir o que é ser travesti ou transexual, qual seu
verdadeiro sexo, seu verdadeiro gênero, sua verdadeira identidade.
Foucault (2010a) se pergunta se precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo ao escrever o
prefácio do livro dedicado às memórias de Herculine Barbin, um/a hermafrodita francês do século XIX. Ao
nascer, fora atribuído o sexo “feminino”, porém, por volta dos 20 anos de idade, a partir de confissões a um padre
e a um médico, fora diagnosticada como pertencente ao sexo “masculino”.
Foucault (2010a) analisa a progressiva necessidade de se definir o verdadeiro sexo dos/as hermafroditas.
Se na Idade Média havia o procedimento do pai ou padrinho estabelecer o sexo da criança de genitália ambígua,
a partir do século XVII – via as teorias biológicas e o controle administrativo do Estado – se inicia uma cruzada
para “decifrar qual o verdadeiro sexo que se escondia sob aparências confusas” (FOUCAULT, 2010a, p. 83).
Ou seja, não há mais a possibilidade de livre escolha do sexo que se deseja assumir socialmente; cabe
agora ao perito, ao médico, decodificar a verdade escondida por uma anatomia dúbia. Essa decodificação foi se
tornando cada vez mais importante porque o sexo passou a ser considerado o núcleo onde se aloja a verdade dos
sujeitos. Nas palavras de Foucault (2010a, p. 85):
E depois se pode também admitir que é no sexo que se devem procurar as verdades mais secretas
e profundas do indivíduo; que é nele que se pode melhor descobrir quem ele é, e aquilo que o
determina; e se, durante séculos, se acreditou que era preciso esconder as coisas do sexo porque
eram vergonhosas, sabe-se agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do
indivíduo: a estrutura de suas fantasias, as raízes do seu eu, as formas de sua relação com a
realidade. No fundo do sexo, a verdade.
A determinação por diagnosticar se uma pessoa é verdadeiramente um/a transexual é uma ressonância
dessa obstinação em identificar a verdade do ser. Porém, a própria interpretação de que existem dois corpos
diferentes, radicalmente opostos, e que as explicações para os comportamentos de gênero estão nesses corpos, foi
uma verdade que para se estabelecer e se tornar hegemônica, empreendeu uma luta contra outra interpretação
sobre os corpos: o isomorfismo.
Os estudos de Laqueur (2001) apontam que até o século XVIII o que imperava na Europa era o modelo
do sexo único. Esse modelo, inspirado na filosofia de Galeno (129-200 d.C.), descrevia o corpo da mulher como
idêntico ao do homem, porém invertido: os ovários e a vagina das mulheres eram o negativo imperfeito do pênis
e dos testículos dos homens.
A mulher não era apenas reconhecida como um “homem invertido”, mas também inferior. A mulher era
um homem imperfeito, pois lhe faltava o calor vital necessário para evolução do seu corpo à perfeição. Dessa
forma, ser homem ou mulher não era uma diferença de qualidade entre seres da mesma espécie, como se entende
na atualidade, mas sim, uma diferença de graus de perfeição entre tais seres. Nessa perspectiva, se o ser humano
é o animal mais perfeito, o homem é mais perfeito que a mulher, sendo a razão disso o excesso de calor, porque o
calor é o principal instrumento da Natureza (LAQUEUR, 2001).
No final do século XVIII se modifica essa maneira de descrever os sexos. A distinção entre o feminino e
o masculino passa a ser explicada pela biologia, por propriedades consideradas “naturais”, específicas de cada
sexo. De acordo com essa concepção, cuja hegemonia se perpetua na atualidade, a mulher e o homem são
portadores de diferenças irrelativizáveis. A refinada engenharia da diferença sexual – espessura da pele, tamanho
do crânio etc. – esquadrinhou os corpos com o objetivo de provar que não existe nada em comum entre o
feminino e o masculino. É como se existisse uma essência própria, singular a cada corpo, inalcançável ao outro.
Percebe-se que no interior dessa lógica dicotômica não há lugar para deslocamentos: o único lugar
habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens. Dessa forma, os
gêneros inteligíveis obedecem à lógica vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino (BENTO, 2008).
Porém, a discussão de gênero trazida pelo movimento feminista, principalmente a partir de 1960, veio
denunciar que o gênero não deriva de forma determinista de um sexo. Para Butler (2003), gênero é concebido
como radicalmente independente do sexo. Nesse sentido, “não há razão para supor que os gêneros também
devam permanecer em número de dois” (BUTLER, 2003, p. 24).
A autora parte, então, para uma concepção performativa de gênero, afirmando que é a reiteração constante
de atos de fala (performativos) que levam à impressão de que certos enunciados são “naturais”. A partir das
reflexões de Butler (2003), é possível afirmar que não há uma essência por trás das performances de gênero
(consideradas anteriormente como expressões ou externalizações do gênero essencial), posto que as próprias
performances, a partir de reiterações contínuas, produzem uma aparência de gênero nos corpos. Isso porque,
antes mesmo de nascer, o corpo já está inscrito em um campo discursivo determinado, em um conjunto de
expectativas estruturadas em redes complexas de pressuposições sobre comportamentos, interesses e
subjetividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa.
Como sugere Preciado (2002), todas as pessoas já nascem operadas por tecnologias sociais precisas, uma
vez que não existe corpo livre de investimentos discursivos. O corpo já nasce maculado pela cultura, na qual o
sexo é uma das normas pelas quais alguém simplesmente se torna viável, que qualifica um corpo para a vida
inteligível. Nesse sentido, o corpo é um texto socialmente construído, um arquivo vivo da história do processo de
(re)produção sexual.
A matriz binária que opera para produzir e categorizar sexo e gênero se configura como um dispositivo de
normalização (PRECIADO, 2002; BUTLER, 2003). E para cada norma, há sempre resistências. Há corpos que
escapam ao processo de produção de gêneros inteligíveis. As experiências travesti e transexual podem ser
pensadas como emblemáticas para desnaturalizar a relação entre corpo, gênero e sexualidade. Deve-se
compreender tal experiência em sua dimensão histórica, pois, do contrário, corre-se o risco de apagar as
estratégias de poder que determinaram que a verdade última das pessoas está no sexo.
2. A ELABORAÇÃO DA PORTARIA DO NOME SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO
A Portaria Estadual nº. 016/2008-GS, que institui o uso do nome social para travestis e transexuais nas
escolas públicas no Pará, está inserida em uma rede de acontecimentos que tem como mote de ação a visibilidade
dos direitos sexuais como parte integrante dos direitos humanos. Pretende-se realizar neste capítulo a
identificação de alguns dos fios que compõem tal rede e os pontos que fazem com que eles se engendrem.
Para tanto, cabe um breve percurso histórico das reivindicações sociais, mais especificamente no campo
da Educação, que têm como foco norteador a visibilidade das sexualidades e identidades de gênero que estão em
desacordo com a heteronormatividade.
Posteriormente, será analisado o processo de construção da portaria estadual em questão e sua relação
com a homofobia, importância do nome na subjetivação e no processo de inclusão escolar de travestis e
transexuais.
2.1.
Diversidade sexual e direitos humanos na Educação: um breve recorte histórico
O subtítulo desse item – um breve recorte histórico – merece uma nota explicativa, pois há várias formas
de se compreender e fazer história. O recorte histórico sobre a inserção da sexualidade como um dos direitos
humanos no campo da Educação está alicerçado na concepção de história trazida por Michel Foucault (2000a).
Para o filósofo-historiador francês, as mudanças, transformações, precipitações não correspondem à imagem
tranqüila de continuidade que história tradicional apresenta.
“A história não tem sentido”, nos diz Foucault (2000a, p. 5). O que não significa dizer que seja absurda.
Propõe, ao contrário, que a história é inteligível, porém, não no plano do sentido, da coerência e linearidade.
Trata-se de uma inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas de poder que formam um solo de
possibilidade para a emergência dos acontecimentos históricos.
Nessa concepção, ninguém é responsável pela emergência de um acontecimento; ninguém pode se
vangloriar por isso. São as relações de forças, os poderes, as relações, intensidades, jogos de poder e de verdades
que produzem as coisas como são. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma
destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta (FOUCAULT, 2000a).
Com Foucault (2000a) não se pode trabalhar com a idéia de que os objetos possuem uma origem histórica
que deve ser buscada. A procura de uma origem pressupõe a existência de algo essencial, algo à espera de ser
encontrado. Dessa forma, é herdeiro de Nietzsche e de sua obstinada recusa à pesquisa da origem. Esta se esforça
para recolher a essência exata das coisas, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e
sucessivo. Tenta reencontrar o “aquilo mesmo” e deseja retirar todas as máscaras para desvelar enfim uma
identidade primeira.
A pesquisa histórica para Nietzsche, sua genealogia, não procura o segredo essencial e sem data, mas o
segredo que as coisas não têm essência ou que essa suposta essência foi construída historicamente. Fazendo
referência à obra nietzcheana O andarilho e sua sombra, Foucault (2000a, p. 18) nos diz que a história, tal como
concebida pelo filósofo alemão, ensina a rir das solenidades de origem:
A alta origem é o ‘exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as
coisas se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial’: gosta-se de acreditar que as
coisas em seu início se encontram em um estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das
mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã.
Portanto, o que será apresentado a seguir, é, de fato, um fragmento. Apesar da aparente linearidade dos
acontecimentos, estes foram produtos de relações de forças, de embates, de disputas entre crenças, pressões de
movimentos sociais, interesses políticos etc. Além disso, refere-se a mais um recorte: trata-se de uma seleção dos
acontecimentos considerados dignos de nota por esta pesquisadora daquilo que compõe o frágil e disperso campo
chamado de “diversidade sexual na educação”.
*
De acordo com Nardi (2008), desde 1928 há leis que estipulam a educação sexual nas escolas brasileiras.
Tal educação sexual, mesmo com teor higienista, enfrentou forte resistência por partes conservadoras da
sociedade, especialmente da igreja católica.
Essa situação só começa a se alterar a partir da década de 1970 impulsionada pela ação do movimento
feminista ao reivindicar por uma educação não sexista nas escolas para, assim, superar as desigualdades de
gênero (LOURO, 2010). Tais discussões, apesar de experiências pontuais, não resultaram na incorporação das
discussões de gênero e sexualidade nos documentos de política educacional (HENRIQUES et. al., 2007).
Somente a partir da segunda metade da década de 1980 que o tema sexualidade é abordado nos projetos
pedagógicos. É importante reconhecer o advento da aids como um acontecimento impulsionador para tais
discussões. Vários organismos oficiais, tais como o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, passaram a
estimular projetos de educação sexual visando prevenir à infecção do HIV via relações sexuais. Outro foco de
preocupação para o incentivo de uma “educação sexual” era a gravidez precoce ou indesejada. O que se
realizava, portanto, era uma abordagem biologizante do corpo e do sexo, tendo como referência norteadora a
idéia de risco (de infecção ou de gravidez). Com efeito, a inclusão governamental dessa temática não
contemplava a discussão da construção social da sexualidade e sua inserção no campo dos direitos humanos
(NARDI, 2008).
O advento da aids produziu uma reação tanto estatal quanto dos movimentos LGBTs. A partir do final da
década de 1980, o movimento LGBT demonstrou sua capacidade estratégica na prevenção da aids e demonstrou
a necessidade de incluir a sexualidade nos debates públicos. Nardi (2010, p. 82) enfatiza a importância dos
movimentos sociais nesse processo:
Genealogicamente, as condições contemporâneas para a emergência da inclusão de um debate em
torno da diversidade sexual na educação (no contexto brasileiro) estão associadas à ação dos
movimentos sociais que defendem os direitos sexuais e que nasceram ou renasceram no Brasil no
final da década de 1980 em relação direta ou indireta com a epidemia da aids e com a
redemocratização do país. Neste cenário social e político, a reação dos movimentos sociais foi
fundamental para reverter à lógica estigmatizante dos chamados “grupos de risco” na primeira
fase da epidemia.
Esse processo ocorrido no Brasil reverbera, de certa forma, o contexto internacional de fortalecimento dos
movimentos feministas e LGBTs. No âmbito nacional, a Constituição Brasileira de 1988 representa o marco
institucional-legal mais relevante na história recente, pois provocou mudanças conceituais e deu ênfase ao campo
dos direitos humanos (HENRIQUES et al., 2007).
Paralelamente, consolida-se a compreensão de que a escola, instituição cujo acesso se democratizou
durante o século XX, é apontada, entre outros lugares, como um espaço privilegiado de formação cidadã e de
enfrentamento contra toda forma de preconceitos. Com efeito, a escola foi adquirindo uma importância
fundamental na vida social. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, considera a escola um
direito da criança e um dever social e familiar. Porém, vários estudos destacam que a população LGBT, ao
contrário de usufruir daquilo que a sociedade brasileira avalia como um direito, é alvo de intenso preconceito e
discriminação no ambiente escolar.
Duas pesquisas realizadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) dão uma dimensão do preconceito em relação às expressões da sexualidade diferentes da
heterossexual. Um dela é a pesquisa Perfil dos Professores Brasileiros, realizada entre abril e maio de 2002, em
todas as unidades da federação brasileira, na qual foram entrevistados 5 mil professores da rede pública e
privada. Tal pesquisa revelou, entre outras coisas, que para 59,7% dos/as entrevistados/as é inadmissível que uma
pessoa tenha relações homossexuais (UNESCO, 2004).
Na outra pesquisa, realizada em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal, envolvendo 16.422
estudantes, 241 escolas, 4.532 pais e 3.099 professores e funcionários de escolas, revela os efeitos da extensão da
rejeição da homossexualidade. Os resultados da pesquisa não são homogêneos: há variações significativas de
acordo com a região e o sexo do/a entrevistado/a. Por exemplo, o percentual de estudantes do sexo masculino que
não gostariam de ter colegas de classe homossexuais varia de 33,5% em Belém a 44,9% de Vitória. A diferença
de sexo também é significativa. Frente à mesma pergunta, os 33,5% dos jovens em Belém contrasta com os
15,0% das jovens entrevistas na mesma cidade que dizem não querer ter homossexuais como colegas de classe
(ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2004).
Outras pesquisas também apresentam faces da difícil relação da diversidade sexual e a escola. Carrara e
Ramos (2004), por meio de uma investigação realizada na 9ª Parada do Orgulho Gay do Rio de Janeiro, revelam
que, de um total de 629 entrevistados/as, 26,8% relatou que foi marginalizado/a por professores/as ou colegas na
escola ou faculdade.
A pressão dos movimentos sociais, mais especificamente dos movimentos LGBTs, mobilizou a criação de
políticas destinadas à população alvo de preconceito devido à orientação sexual. Em 25 de maio de 2004, o
Governo Federal lançou o Programa Brasil sem homofobia16. Esta ação demonstra a necessidade de se criar
mecanismos para minimizar a violência associada ao sexismo e à homofobia. O Programa, como consta na
introdução do documento do Governo Federal, tem o “objetivo de promover a cidadania de gays, lésbicas,
travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação
homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos populacionais” (CONSELHO, 2004, p. 11).
Há um item específico para a área da Educação, intitulado “Direito à Educação: promovendo valores de
respeito à paz e à não discriminação por orientação sexual”, no qual estabelece os seguintes compromissos:
• Fomentar e apoiar curso de formação inicial e continuada de professores na área da sexualidade;
• Formar equipes multidisciplinares para avaliação dos livros didáticos, de modo a eliminar aspectos
discriminatórios por orientação sexual e a superação da homofobia;
• Estimular a produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre orientação sexual e
superação da homofobia;
• Apoiar e divulgar a produção de materiais específicos para a formação de professores;
• Divulgar as informações científicas sobre sexualidade humana; Estimular a pesquisa e a difusão de
conhecimentos que contribuam para o combate à violência e à discriminação de GLTB.
• Criar o Subcomitê sobre Educação em Direitos Humanos no Ministério da Educação, com a participação
do movimento de homossexuais, para acompanhar e avaliar as diretrizes traçadas (CONSELHO, 2004, p.
23).
Seguindo as orientações do Programa Brasil Sem Homofobia, o Ministério da Educação, através da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), formulou o projeto Escola Sem
Homofobia. O projeto tem como objetivo contribuir para a implementação do Programa Brasil sem Homofobia
no campo da Educação17.
16
O Ministério da Educação elaborou e assinou o BSH juntamente com os Ministérios da Justiça, Saúde, Cultura, Trabalho e Emprego,
Relações Exteriores a as Secretarias Especiais dos Direitos Humanos, Políticas para Mulheres e de Promoção da Igualdade Racial, além
da participação direta de representantes de diversos movimentos LGBT (CONSELHO, 2004).
17
O Projeto foi planejado e executado em parceria entre a rede internacional Global Alliance for LGBT Education – GALE; a
organização não governamental Pathfinder do Brasil; a ECOS – Comunicação em Sexualidade; a Reprolatina – Soluções Inovadoras em
Saúde Sexual e Reprodutiva; e a ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
O Projeto Escola Sem Homofobia tem dois focos principais de ação. Um primeiro voltado à formulação e
implementação de políticas públicas que enfoquem a questão da homofobia, assim como a realização de
seminários e pesquisas com integrantes do campo educacional. O outro campo de ação está centrado na criação
de um kit de material educativo abordando aspectos da homofobia no ambiente escolar, além da capacitação
dos/as interessados/as para a apropriada utilização do kit junto à comunidade escolar.
Este projeto foi causa de grande polêmica no início de 2011, principalmente no que se refere à
distribuição do chamado “kit anti-homofobia”. De um lado, os opositores ao projeto alegam que o kit é uma
propaganda que visa influenciar alunos e alunas ao “homossexualismo”. Do outro lado, os defensores afirmam
que este é um instrumento para combater o preconceito vinculado à orientação sexual ou identidade de gênero e
assim, favorece a permanência da população LGBT nas escolas.
A principal frente contra a distribuição do kit anti-homofobia é a chamada bancada religiosa da Câmara
dos Deputados Federais. Em contrapartida, diversos órgãos se manifestaram em favor do projeto. Entidades
integrantes do movimento LGBT, a UNESCO, o Conselho Federal de Psicologia – entre tantas outras
organizações – elaboraram notas, pareceres ou manifestos favoráveis à distribuição do kit, considerando-o um
dispositivo qualificado e necessário para a discussão do preconceito contra LGBTs no ambiente escolar18.
A Portaria Estadual nº. 016/2008-GS está inserida nesse cenário de discussão e formulação de políticas
voltadas à atenção à diversidade sexual no contexto educacional. Destacando os direitos constitucionais de todo
cidadão, conforme preceitua as Constituições Estadual e Federal, o Governo do Estado do Pará, por meio da
Secretaria do Estado de Educação (SEDUC), institui que todas as unidades escolares da rede pública estadual do
Pará aceitem o nome social de estudantes travestis e transexuais (que assim desejarem) no ato da matrícula e nos
demais documentos escolares.
Cabe agora entender o processo de elaboração da Portaria Estadual nº. 016/2008-GS e analisar seus
efeitos pretendidos. Tal análise terá como base as entrevistas feitas com alguns/mas informantes privilegiados/as
que participaram direta ou indiretamente na formulação da portaria em questão.
2.2.
A construção da Portaria nº. 016/2008 – GS: o nome social como direito de travestis e transexuais
Segundo Ewald (1993), Foucault não trabalha com a noção de direito. O direito, propriamente dito, não
existe, não designa nenhuma substância. O que existem são práticas sociais de juízo. É no embate social, em
meio a um jogo de forças, que certas práticas de juízo são consideradas jurídicas e outras não (EWALD, 1993).
Dessa forma, compreender a noção de direito como prática é concebê-la indissociável do tipo de racionalidade
através da qual ela se reflete, se ordena, se finaliza.
O direito não preexiste às suas objetivações através das diferentes teorias que se obstinam a
abordá-lo. Pelo contrário, como prática sujeita a incessantes transformações, matéria de relações
de forças, vetor eminente de permuta e de comunicações sociais, o direito tem necessidade de
refletir a sua sistematicidade, a sua deriva, tal como seu futuro (EWALD, 1993, p. 64).
Nesse sentido, lei, doutrinas, legislações, jurisprudência, são todas práticas de juízo. Basta que um juízo
derive de uma fonte reconhecida do direito para que leve o carimbo de jurídico.
Dessa maneira, percebe-se o quanto o sistema jurídico está imenso na história. As leis têm uma história e
estas dizem de uma sociedade, de suas lutas, de seus jogos e relações de poder, de seus modos de gestão e
organização das práticas, das formas de governo e dos dispositivos econômicos, políticos e culturais de uma dada
época.
Portanto, a Portaria Estadual nº. 016/2008-GS está imersa nessas redes de relações, baseada em regimes
de verdade imanentes às práticas sociais, pedagógicas, médicas, econômicas, culturais e políticas. Ciente disso,
percorreu-se a conexão de uma série de dispositivos heterogêneos que culminaram na elaboração da Portaria
Estadual nº. 016/2008-GS, visando entender o pioneirismo do Pará em uma decisão dessa natureza e analisar
seus objetivos e efeitos. Ou seja, trata-se de problematizar os mecanismos e as relações de forças que objetivaram
a formulação da legislação em questão.
Para alcançar tais objetivos, foram realizadas entrevistas com alguns/mas informantes privilegiados/as
que estiveram direta ou indiretamente envolvidos na formulação da referida da Portaria Estadual. Quais sejam:
• A assessora da secretária de educação que assinou a Portaria Estadual nº. 016/2008-GS;
• A coordenadora da Diretoria de Ensino para a Diversidade, Inclusão e Cidadania (DEDIC) da Secretaria
da Educação do Estado do Pará (SEDUC);
• O coordenador da Coordenadoria de Proteção a Livre Orientação Sexual (CLOS) da Secretaria de Estado
de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH);
• A presidente do Grupo de Resistência Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA);
• O assessor de articulação do Centro de Referência de Prevenção e Combate à Homofobia do Pará;
• Um integrante do Movimento LGBTT do estado do Pará.
As entrevistas foram marcadas com antecedência por telefone e realizadas no local de trabalho dos/as
entrevistados/as, durante o segundo semestre de 2010. Vale ressaltar que, como a maioria dos cargos descritos
acima são políticos – ou seja, relacionados a indicações de representantes do governo –, com a mudança de
gestão do Governo do Pará entre 2010 e 2011, várias das pessoas entrevistadas já não exercem tais ocupações.
18
Essa discussão continua em andamento, sendo cotidianamente noticiada pela mídia e alvo de debates acadêmicos, políticos,
religiosos etc.
Todas as entrevistas foram gravadas e depois transcritas A exceção foi a entrevista realizada com a
coordenadora da DEDIC, que apesar de consentir a utilização da entrevista na pesquisa, não autorizou o registro
em áudio. De acordo com as normas éticas de pesquisa, foi oferecido direito de não-resposta, garantia de
anonimato, de desistência em qualquer momento da entrevista e solicitado a assinatura do Termo de
Consentimento Livre Esclarecido, que todos/as os/as participantes o fizeram.
2.3.
A formulação da portaria do nome social como estratégias para conter a homofobia
Com exceção de um entrevistado, todos/as os/as demais creditaram à formulação da Portaria Estadual nº.
016/2008-GS à Cléo Ferreira19. Trata-se, partindo de sua auto-identificação, de uma mulher transexual,
funcionária do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará, formada em
Psicologia e Sociologia pela mesma universidade. Em 2008 fora convidada a ser assessora da secretária de
educação. Em entrevista, Cléo Ferreira relata como foi simples e rápido o processo de elaboração da portaria:
Quando eu cheguei na SEDUC, cheguei com a secretária e disse assim mesmo: “Que tal nós
instituirmos o nome social no estado do Pará nas nossas mais de mil e duzentas escolas?” Aí, ela
disse: “Cléo, elabora uma minuta, apresenta à assessoria jurídica da SEDUC”. Não houve
nenhuma barreira, não houve nenhum “senão” da secretária ou da governadora. Foi
impressionante. O pessoal da assessoria jurídica do governo e também da SEDUC se reuniu,
leram a minuta e pronto. Isso durou três dias. Um dia aprontamos a minuta, no outro dia
mandamos analisar e no terceiro dia, tava aprovado. Em três dias!
Como dito anteriormente, apenas um entrevistado não citou Cléo Ferreira como a principal personagem
para a formulação da portaria do nome social. Para o assessor de articulação do Centro de Referência de
Prevenção e Combate à Homofobia do Pará (a partir de agora apresentado somente como Centro de Referência),
esta conquista foi um efeito da organização do movimento LGBT. Apresento um dos vários trechos no qual o
entrevistado enfatiza a organização do movimento LGBT no Pará.
Quais os motivos que levaram o Pará ser pioneiro em relação ao nome social?
O motivo é que aqui as coisas são organizadas, o movimento aqui é muito organizado, aqui não
sai só parada gay, a parada gay é um mote... O movimento LGBT do Pará, ele não tá separado,
faz muita luta.
A razão de não ter citado o nome de Cléo Ferreira durante a entrevista pode estar vinculado a motivos
diversos. Não cabe aqui fazer uma análise especulativa sobre a questão. O que é interessante destacar é a
posterior contradição do mesmo assessor, uma vez que apresenta as travestis como uma parcela da população de
difícil articulação:
19
Releva-se o nome da entrevistada, com a devida autorização da mesma, pois sua identidade é facilmente reconhecida, tanto pelo
cargo que ocupava quanto pela notoriedade que o caso adquiriu.
Então os motivos, voltando ao nome social, é porque no Pará... é que aqui tá organizado, as coisas
tão organizadas. Quando eu falei das travestis é porque é um público difícil de se organizar.
Imagina, elas saem à noite, durante o dia elas dormem, não tem endereço fixo, em sua grande
maioria, não tem renda própria. A renda é uma renda de subsistência pela prostituição e outras
coisas mais que quiserem fazer também...
Em contrapartida, Cléo Ferreira retira qualquer participação do movimento LGBT no processo de
formulação da portaria. Segundo ela, houve uma conversa com a secretária de educação sobre o assunto, no qual
delegou à Cléo a incumbência de redigir uma minuta. Ela assim o fez, enviou para a assessoria jurídica da
SEDUC e posteriormente à aprovação da governadora do Estado. Interrogada sobre a participação do movimento
social nesse processo, Cléo é enfática:
Teve participação do movimento LGBT na elaboração da portaria?
Não. Não, não, não. Quando instituímos a portaria, eu não fiz questão de chamar o movimento
pra conversar, porque não acho que isso dependa de conversa com o movimento. Era um papel a
ser cumprido pela SEDUC e foi cumprido. “Ah, eu penso em criar uma portaria, vamos chamar o
movimento pra saber o que eles acham”. Eu não preciso chamar o movimento pra saber o que eles
acham. É uma questão de direitos. Independente do que o movimento pense ou deixe de pensar, a
ação tem que ser efetivada. Então, tem que acabar com isso de toda hora que for fazer alguma
coisa tem que chamar o movimento pra discutir. Eu acho isso um absurdo. Eu não concordo.
Em todas essas falas, o que se percebe é que a Portaria Estadual nº. 016/2008-GS está imersa em relações
de forças, jogos de poder que produzem efeitos de verdade. Porém, a questão que está em pauta na autorização
para a utilização do nome social nas escolas é a possibilidade de atrair a população travesti e transexual para a
escola. Na fala da presidente do GRETTA, o nome social é uma estratégia para incluir travestis e transexuais na
escola.
E, tudo isso cai para educação, porque se os professores aceitam as meninas na escola, elas vão
estudar... ter outras oportunidades, ela pode arrumar um empreguinho, pode fazer um concurso de
alguma coisa... Oportunidade, a gente tem que ter oportunidade. A partir do momento que elas
estudarem, elas podem continuar na prostituição, mas também podem ir arrumando emprego...
têm muitas meninas que estão lá [na prostituição] e que querem sair. Falta oportunidade. E o
melhor caminho é a educação, é estudando. E os professores respeitando o nome social das
meninas, tenho certeza que elas voltam.
Educação como oportunidade de multiplicar modos de viver, de possibilidade de escolha. O impedimento
ao acesso à educação é associado a não aceitação de travestis e transexuais por parte dos professores e demais
integrante do ambiente escolar. Em resumo, travestis e transexuais não são bem-vindas/os nas escolas. Lugar
supostamente privilegiado de convivência com as diferenças e acesso democrático ao conhecimento, a escola é
denunciada por produzir, reproduzir e reforçar os padrões de preconceito e exclusão que estão postos e
naturalizados na sociedade (LOURO, 2001).
A pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar” realizada pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas, publicada em 2009, traz dados alarmantes sobre essa questão. Baseando-se em uma
amostra nacional de 18,5 mil alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários, revelou que 87,3% dos
entrevistados têm preconceito com relação à orientação sexual20.
Segundo Henriques e colaboradores (2007), os casos mais evidentes de preconceito no contexto escolar
têm sido os vividos pelas travestis e transexuais. São foco de discriminação sistemática e ostensiva por parte de
colegas, professores/as, dirigentes e servidores/as escolares. Os problemas enfrentados são diversos: desde a
matrícula, o respeito por suas identidades de gênero, preservação de suas integridades físicas até a escolha de
qual banheiro usar. Coadunando com a afirmação da presidente do GRETTA, diversas pesquisas mostram que,
no segmento LGBT, as travestis são aquelas que têm maiores dificuldades de permanência nas escolas e de
inserção no mercado de trabalho, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico (PARKER, 2000;
PERES, 2004).
Na pesquisa de Peres (2005), há vários relatos de travestis que abandonaram os estudos devido à
hostilidade presente no ambiente escolar. Nesse sentido, reclamam que a impossibilidade de formação escolar –
fazer faculdade, ter uma profissão e emprego – acaba por impulsioná-los/as à prostituição.
Nas entrevistas realizadas por Bento (2006, 2008), pessoas que vivenciam a experiência transexual
lembram a escola como um espaço de horror, onde eram vítimas de todo tipo de preconceito. A intensidade da
descriminação e da intolerância pelas quais travestis e transexuais são expostos/as nas escolas produzem uma
expulsão velada do ambiente escolar, provocando um baixo nível de escolaridade e restringindo seu universo de
convivência ao gueto, inserindo-se, muitas vezes, em um contexto de marginalização.
A escola aparece como uma instituição saturada, produtora e reprodutora da homofobia, como uma das
principais instituições guardiãs da heteronormatividade (LOURO, 2007). Nas palavras do assessor do Centro de
Referência:
A escola, você sabe que é o espaço que mais reproduz preconceito. Hoje, eu digo, o preconceito
muito é escolar, elas hoje fortalecem mais preconceitos, mais homofobia. E como a escola é um
retrato da sociedade, isso mostra que a sociedade está multiplicando a homofobia intra-escolar.
Tal como outras formas de preconceito – como a xenofobia, o racismo, anti-semitismo – a homofobia é
uma manifestação arbitrária de designar o outro como contrário, inferior ou anormal. O homossexual é o outro, o
diferente, com o qual não é possível ter nenhuma identificação. “Por sua diferença irredutível, ele é posicionado a
distância, fora do universo comum dos humanos” (BORRILLO, 2010, p. 13).
A homofobia é uma forma de inferiorizar a homossexualidade. Tal processo é promovido pela
hierarquização das sexualidades na sociedade contemporânea. A heterossexualidade aparece como um padrão
para avaliar todas as outras formas de exercer a sexualidade. Esse aspecto normativo da heterossexualidade, essa
“heteronormatividade”, confere a essa forma de exercício da sexualidade um caráter natural, evidente, sendo as
20
Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/pesquisas.php. Acesso em: 01/jun/2011.
demais manifestações da sexualidade consideradas, na melhor das hipóteses, um desvio, um erro, uma patologia
que deve ser corrigida.
A homofobia aparece como componente necessário ao regime binário de sexualidade. Regime que liga
corpo-sexo-gênero-sexualidade-desejo. Ou seja, ao nascer com um determinado corpo, faz-se a leitura de qual
sexo pertence, masculino ou feminino. Daí deduz-se que se for masculino, por exemplo, desenvolverá a
identidade de gênero “homem”, que desejará e se relacionará sexualmente com mulheres. “A homofobia tornase, assim, guardiã das fronteiras tanto sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino)”
(BORRILLO, 2010, p. 16).
Devido a tal estrutura, não é somente os homossexuais que sofrem homofobia, mas todos aqueles que
desafiam à norma corpo-sexo-gênero-sexualidade-desejo. Para exprimir a complexidade do fenômeno e
especificar cada modo de vida que sofre preconceito em decorrência da orientação sexual, seria mais correto
utilizar os termos gayfobia, lesbofobia, bifobia e transfobia. Porém, optou-se por utilizar o termo homofobia para
designar o conjunto desses fenômenos.
A homofobia é o medo de que a valorização dessas identidades “desviantes” seja reconhecida. É o medo
de que a heterossexualidade perca seu status de ser o exercício da sexualidade normal, de perder seu lugar
privilegiado na hierarquia das sexualidades, de seu monopólio de normalidade quando se refere à sexualidade
(BORRILLO, 2010).
Um exemplo desse medo é a tentativa de ocultamento de formas de sexualidade não heterossexual nas
escolas. O silêncio relativo à sexualidade pretende eliminar os “desvios” ou, pelo menos, não despertar esse
desejo desviante entre os alunos e alunas “normais”. “De algum modo, parece que se deixarem de tratar desses
‘problemas’ a sexualidade ficará fora da escola” (LOURO, 2010, p. 80). A autora, se referindo à gays e lésbicas,
apresenta um cenário que o silenciamento da sexualidade provoca naqueles que não seguem a norma
heterossexual:
A negação dos/as homossexuais no espaço legitimado da sala de aula acaba por confiná-los às
‘gozações’ e aos ‘insultos’ dos recreios e dos jogos, fazendo com que, deste modo, jovens gays e
lésbicas só possam se reconhecer como desviantes, indesejados ou ridículos (LOURO, 2010, p.
68).
Percebe-se esse ocultamento de formas outras de sexualidade que não a heterossexual não só na ausência
dos discursos, mas também nos livros didáticos, que só apresentam casais heterossexuais, nos cartazes afixados
nas paredes, nas cores adequadas para cada “gênero”, na separação do banheiro entre meninos e meninas etc.
Como tratar um/a aluno/a que ao invés de uma família constituída por mãe e pai, haja dois pais? O que fazer
quando uma aluna é agressiva, só gosta de brincar de bola ou de briga, ou seja, apresenta comportamentos
considerados masculinos? Ou o garoto que gosta de brincar de casinha com bonecas?
A escola não sabe lidar com a diversidade. Acionam-se vários dispositivos para tentar trazer o aluno ou a
aluna “desviante” para a “normalidade”. Porém, é preciso compreender a escola como uma instituição inserida
em um projeto social mais amplo, que engloba a forma como a nossa sociedade produz as verdades sobre o que
deve ser reproduzido, quais os comportamentos de gênero sancionados e quais os silenciados ou considerados
“anormais”. Ou seja, há uma engenharia de produção de corpos normais e anormais que extrapolam os muros da
escola.
2.4.
O nome como instrumento de cidadania para travestis e transexuais
Quando eu cheguei na SEDUC, eu me lembrei, eu me lembrei do que eu passei na escola na
época que eu estudava. Então, o professor chamava meu nome e eu dizia: “Meu Deus, mas isso
não é o meu nome. Eu não me identifico com isso”. Então, a minha auto-estima era zero. Eu era
uma pessoa super retraída, não tinha... Enfim, era uma situação realmente desesperadora pra mim
a questão do meu nome.
Essa é a fala de Cléo Ferreira, relatando os motivos que a incentivaram para a criação da portaria do nome
social. O nome civil aparece como um elemento de não identificação, de constrangimentos, que influenciava
diretamente na questão da auto-estima. O integrante do movimento LGBT entrevistado também defende o nome
social como um componente para a auto-estima de travestis e transexuais, pois significa o respeito às suas
identidades:
Por que o nome social é algo tão importante para a população trans?
Acredito que é questão de identidade emocional mesmo... Ser reconhecida pelo nome que se
identifica é muito importante para a auto-estima da pessoa, pra formulação da identidade própria.
A presidente do GRETTA enfatiza que respeitar ao nome social é respeitar a identidade de gênero que a
pessoa possui: “... o grande problema nosso é o nome. Nos não queremos ser chamadas de Pedro, de João, de
Joaquim. Nós queremos que nos chamem de Lohany, de Bárbara, de Jéssica, de Raíssa, enfim de nosso nome que
a gente se identifica”.
De acordo com Martins (1991), o prenome21 funciona como um elemento que diferencia a pessoa dos
demais membros da família. O prenome é o nome individual ou de batismo. Marca a diferença de sexo e a
própria individuação da pessoa em seu grupo familiar. Já o sobrenome, é o nome de família. É uma marca
simbólica que agrega a pessoa a uma determinada família, diferenciando-a em relação aos outros grupos em
termos de parentesco.
21
Denominado neste trabalho simplesmente por “nome”.
O prenome é aquele pelo qual se é interpelado cotidianamente. É, portanto, uma condição fundamental
para diferenciação de um membro da família em relação aos outros. O prenome é compreendido como sendo “o
nome”. De forma mais precisa, podemos dizer que um dos prenomes é eleito para ser o nome.
A escolha do prenome é um momento no qual os pais podem manifestar seus desejos em relação ao filho
ou filha recém nascido/a. Diferente do sobrenome, sobre o qual a lei é bem mais expressa, o prenome geralmente
é escolhido a partir dos mais variados temas e razões, desde a repetição de uma tradição até o fato de um
determinado nome estar na moda ou simplesmente por sua sonoridade. “Voluntária ou involuntariamente, no
entanto, o prenome é relacionado às fantasias dos pais” (MARTINS, 1991, p. 125).
Com efeito, o nome herdado se caracteriza como uma alienação fundamental, posto que o nome vem do
outro, vem do estrangeiro; é um veículo de desejos alheios sobre aquele que nasce. Mesmo sendo explícito o
caráter destinal do nome, este é considerado um bem inalienável e não é possível renunciar a ele. A mudança de
nome está condicionada à comprovação de que o mesmo causa prejuízo à pessoa que o porta. Neste caso, apenas
uma parte do nome pode ser renunciada.
Isso porque, além dos aspectos de identificação e formação da pessoa, o nome é um elemento de grande
utilidade para o Estado no exercício de poder e controle sobre os seus cidadãos. O nome é o carro-chefe dos
dados que constam em qualquer documento. Tudo, do ponto de vista social, começa pelo nome. Sem ele o
indivíduo não se faz reconhecer nem é reconhecido (MARTINS, 1991).
Os incômodos como nome podem ter origens diversas. Podem ser originados de um acontecimento
histórico traumático – como no caso de várias pessoas no pós-II Guerra que solicitaram a mudança do nome
Hitler ou mesmo Adolphe devido à alusão nazista –, ter significados vexatórios, dúbios ou ainda devido ao fato
de que o nome atribuído à pessoa quando do seu nascimento ser incompatível com sua situação adulta, como no
caso das pessoas travestis e transexuais.
Travestis e transexuais, especificamente, sofrem uma série de constrangimentos por permanecerem com
uma identidade nos documentos e outra na vida social. Para Szaniawski (1998, p.255), "o transexual vive em
situação de incerteza, de angústias e de conflitos, o que lhe dificulta, senão o impede, de exercer as atividades
dos seres humanos".
A mudança do nome civil é alvo de muitas críticas e de receios por parte do Estado. Trata-se de uma
segurança jurídica que visa evitar fraudes, sobretudo, impedindo o uso do novo nome por pessoas que tivessem a
finalidade de buscar possível isenção de responsabilidade civil ou penal. Esta ressalva está presente na fala do
então coordenador da CLOS:
Algumas pessoas contestaram porque acharam que era uma forma de burlar a lei ou uma forma de
enganar as pessoas, mas não. O nome social na verdade já existe. Por exemplo, a Xuxa, o próprio
Pelé... Então, quer dizer, todas essas pessoas têm direito de usar o nome social, por que
transexuais e travestis não teriam, não é? E aí, a gente viu isso, viu a importância, por exemplo,
na chamada de sala de aula ela pode ser chamada pelo nome que ela é conhecida. Porque você
olha e vê uma pessoa extremamente feminina e é chamada por João, Augusto... Então, isso fazia
com que a travesti se afastasse completamente da escola. Por conta disso: de xaveco, de
xingamento.
Todos/as entrevistados/as citaram o nome social de pessoas famosas como uma forma aceita socialmente
de utilização de um nome que não aquele com o qual fora registrado/a ao nascer. O integrante do movimento
LGBT entrevistado destaca que a complexidade de se respeitar o nome social de travestis e transexuais está
enviesada pela questão da sexualidade.
Nos jornais locais saiam notícias tipo: “Agora travestis e transexuais podem usar seu nome de
guerra na escola!”. Por que deram tanta importância à isso? Eu não entendi. Do papa ao gari usam
nomes sociais. O papa não é Bento XVI, a Xuxa não é Xuxa, o nosso presidente da república não
é Lula. Acho que todo mundo tem um nome social. O problema passa na questão da sexualidade.
Mas assim, pra mim, o simples fato das pessoas gostarem de ser chamadas assim já é uma
justificativa que bastaria.
Zambrano (2005), se referindo especificamente a transexuais, afirma que a mudança do nome e do sexo
nos documentos de identidade é de enorme importância para essas pessoas, pois o uso de documentos adequados
à sua identidade social pode ser um significativo instrumento no sentido de minimizar as humilhações que
vivenciam diariamente.
Em termos jurídicos, quando se fala em nome se reporta a um direito personalíssimo, ao da própria
identificação pessoal (DINIZ, 2006). Embora, inicialmente, fique a critério dos pais a escolha do nome, quando
chega à maioridade, se a pessoa provar que necessita de tal alteração para viver socialmente melhor, cabe a
Justiça acatar tal opção, caso não haja qualquer impedimento sócio-jurídico.
Entretanto, no Brasil, a mudança do nome e do sexo no registro civil para aqueles e aquelas que transitam
entre os gêneros está condicionada à cirurgia de “transgenitalização”. Essa exigência se configura como uma
“cidadania cirúrgica”, ou seja, cidadania dependente do diagnóstico médico e da cirurgia para apagar os
incômodos da ambigüidade no que se refere à suposta coerência entre corpo-gênero-sexualidade. Tal condição
para a mudança do nome exclui um grande número de pessoas que se identificam com o sexo diferente daquele
em que foram registradas ao nascer, mas que não desejam se submeter à referida cirurgia.
A mudança do nome e do sexo nos documentos de identidade para travestis e transexuais é de enorme
importância, pois o uso de documentos adequados à sua identidade social pode ser um significativo instrumento
no sentido de minimizar as humilhações que vivenciam diariamente, como destaca o assessor do Centro de
Referência:
O nome social é algo tão importante, como qualquer outra coisa no ramo da cidadania, e pra
travesti e transexuais ter esse nome reconhecido... O nome social é algo inevitável, é algo
necessário e é algo que faz muita diferença entre os gêneros. Porque à medida que a sociedade se
acostuma de chamar o Roberto de Rafaela, a sociedade vai começar a entender que ela não é mais
Roberto. Aí, a coisa vai se tornar tão quanto natural através do costume, do hábito, e, claro, dentro
de uma cultura de paz, sem conflitos.
2.5.
O acompanhamento da política do nome social
A importância da criação da Portaria Estadual nº. 016/2008-GS é proporcional à importância do
reconhecimento do nome com o qual travestis e transexuais desejam ser interpeladas/os, identificadas/os,
distinguidas/os. Reconhecimento não apenas de um nome, mas de uma maneira de viver, de estar no mundo, de
suas identidades de gênero.
Porém, o pioneirismo do Pará em elaborar uma recomendação estadual como essa não resultou em seu
efetivo cumprimento. Nas palavras da presidente do GRETTA:
Aí vem o problema: o Pará foi o primeiro estado a criar essa portaria, o pioneiro, que foi
aplaudido pelo Brasil inteiro, e é o primeiro estado aonde não consegue... os professores não
conseguem obedecer a lei. Muitos professores, a maioria, não quer chamar nós pelo nome social.
A maioria chama pelo número, ou nem chama. Dizem que a secretária [de educação] tinha coisa
mais importante pra fazer do que se preocupar com veado.
É válido ressaltar que o direito de se utilizar o nome social se transformou em uma reivindicação nacional
dos movimentos LGBTs. Atualmente nove Estados brasileiros, além do Distrito Federal, já aceitam o uso do
nome social da população em questão nas escolas públicas estaduais22. E travestis e transexuais que trabalham
como servidores públicos federais já podem usar o nome social nos crachás, endereço de e-mails, lista de ramais,
sistemas de informática e comunicações internas de uso social dos órgãos públicos, conforme a Portaria nº. 233,
de 18 de maio de 2010, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Porém, apesar da forte aceitação por parte de governantes no Pará e em diversos Estados brasileiros, todas
as pessoas entrevistadas nessa presente pesquisa concordam que não houve um retorno da população travesti e
transexual como se esperava. Uma justificativa para esse acontecimento está na não aceitação do nome social de
travestis e transexuais nas escolas. Quando inquirido se havia algum acompanhamento da Secretaria de Justiça de
Direitos Humanos sobre a vigência do nome social, o coordenador da CLOS chega a dizer que a portaria está
sendo obedecida: “Depois do decreto a gente teve uma estimativa de que hoje os travestis estão na escola, e estão
sendo chamados pelo seu nome social, na matrícula”.
Porém, durante a mesma entrevista, afirma que o cumprimento ou não da portaria está à mercê do
interesse dos gestores e professores das escolas:
E aqui em Belém, houve algum caso da escola não aceitar ou de alegar não estar sabendo da
portaria ou...?
Porque na verdade o quê que acontece... a partir do momento que a portaria sai, por exemplo, ela
é passada para todas as escolas, e aí fica do próprio interesse da escola ficar divulgando ou não. A
gente teve uma dificuldade, porque, a escola dizia: “Ah, não a gente não tem conhecimento”. E aí
22
De acordo com o site da Associação Brasileira de Lésbica, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), aceitam o nome
social de alunos maiores de 18 anos em seus documentos escolares os Estados de Goiás, Maranhão, Pará, Santa Catarina, Mato Grosso,
Alagoas, Paraná, Tocantins, Rio Grade de Sul, além do Distrito Federal. No plano municipal, inclui-se também as cidades de Belo
Horizonte e Fortaleza. Existem também permissões do uso do nome social em outros estados brasileiros nos âmbitos da saúde,
assistência social, administração pública etc. Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php. Acesso em: 10/mai/2011.
o que foi que a gente fez: a gente imprimiu a lei e deu pras meninas levar a lei na matrícula. E aí
isso abriu as portas. A própria escola começou a assumir isso, de que não tinham conhecimento,
por falta de informação.
Além da falta de informação sobre a vigência da portaria do nome social, há outras questões em jogo.
Uma delas é o despreparo dos profissionais de educação em lidar com a temática da sexualidade. A presidente do
GRETTA diz que a expulsão das travestis e transexuais das escolas é motivada pela homofobia mais do
professores do que dos próprios alunos.
Porém, o fator apontado pelos entrevistados que apresenta maior obstáculo para o reconhecimento do
nome social é a religião. Cléo Ferreira, falando sobre a importância da fiscalização do cumprimento ou não da
portaria nas escolas, dá um exemplo do embate nome social versus religião:
Então, tem municípios aqui do Pará que o gestor da escola, o diretor, não admitia por questões
religiosas. Então, quer dizer, tinha professor que dizia: “Ah, eu admiro muito a atitude de vocês,
só que eu não vou chamar João de Maria porque eu não consigo”. Quer dizer, não é uma questão
sua, pessoal, ideológica, é uma questão de respeito a um documento, a uma lei que está aí e que o
senhor vai ter que cumprir enquanto funcionário público. E eles diziam mesmo: “Então, me
exonerem, me demitam, mas eu não vou fazer isso”. Então a gente não pode também bater de
frente, tão radicalmente. Até nós, às vezes, temos preconceitos, temos os nossos tabus. Então, nós
fomos educados, viemos de uma educação rigorosa, ainda estamos nessa coisa de valores morais,
de família, de religião e aí a gente não pode também condená-los. Temos que conversar e achar
um meio termo pra isso. Mas é muito difícil.
Sobre o acompanhamento sistemático do cumprimento da portaria, as opiniões divergiam. A presidente
do GRETTA, o assessor do Centro de Referência e o coordenador da CLOS disseram que esse acompanhamento
está sendo realizado, de maneira aleatória, pelos membros dessas instituições. Nas palavras do assessor do Centro
de Referência:
Você sabe se teve uma política de acompanhamento da secretaria de educação nas escolas?
Não teve, não teve. Quem fez isso foi o movimento. E tem mais, o movimento não fez de forma
organizada, foram algumas pessoas da direção do movimento que acharam por bem de discutir
naquela escola, naquela outra.
Em entrevista, a coordenadora da (DEDIC/SEDUC) disse que não houve continuidade no
acompanhamento nas escolas sobre o nome social, pois não havia sensibilidade da equipe atual da DEDIC a esse
caso. As ações estavam mais voltadas à inclusão escolar de negros, índios e ribeirinhos. Explicou, então, as
diversas mudanças de gestão ocorrida durante o durante o governo do Estado da época23. Em quatro anos de
mandato, houve cinco secretários/as da SEDUC. Apesar de os/as secretário/as serem do mesmo partido político,
cada um/a teve suas prioridades e perspectiva de ação. Por conta de tantas alterações na gestão, houve uma
descontinuidade nas políticas empreendidas pela SEDUC.
23
Mandato da governadora Ana Júlia Carepa (PT), que durou de 2007 a 2010, ano que fora realizadas as entrevistas aqui apresentadas.
A partir do cenário brevemente apresentado acima, percebe-se que uma portaria, um decreto, uma lei, não
produz isoladamente mudança nas concepções, mentalidades. Como nos diz Foucault (2010, p. 119): “...um
direito, seus efeitos reais, está muito mais ligado a atitudes, a esquemas de comportamento do que a formulações
legais”. Relatos de professores que preferem a exoneração a se referir a uma pessoa pelo nome que ela deseja ser
identificada, aspectos religiosos preponderando a designações do Estado (supostamente laico), descaso dos/as
próprios/as dirigentes da gestão estatal frente à política implantada durante o mesmo mandato etc.
Se por um lado falar em “educação inclusiva” ou “escola inclusiva” é quase uma unanimidade no discurso
pedagógico, tornando qualquer recusa a tal processo algo execrável na educação contemporânea, por outro, há
divergências de quem pode, deve ou mesmo merece ser incluído (SEFFNER, 2009). A inclusão escolar de
alguém com alguma necessidade educacional especial é vista com tom humanitário e digna de todos os esforços
de professores/as e demais membros da equipe escolar. Quem é contra a inserção dessa população junto à escola
regular é alvo de intensas críticas e acusações de ser segregador, preconceituoso, “nazista” etc. Porém, não há
tanta indignação frente à atitude de um professor que se nega a chamar sua aluna travesti pelo nome que ela
deseja ser chamada. Não se repreende os/as alunos que insultam, ridicularizam e agridem um/a aluno/a
transexual.
O que está em pauta é quem merece ser incluído. Travestis e transexuais, seres abjetos, que subvertem e
transgridem “gratuitamente” à ordem binária e socialmente aceita dos gêneros não são dignos de estar na escola.
Impulsionam-se essas pessoas à marginalidade e prostituição, tornando estas formas de vida não mais uma dentre
as várias opções de atuação, mas um dos poucos espaços de reconhecimento e aceitação.
2.6.
Inclusão escolar de travestis e transexuais como estratégia de governamentalidade
Um marco histórico do processo do que se entende hoje por “inclusão escolar” é a Declaração Mundial
sobre Educação para Todos, produzida no encontro que ocorreu em Jomtien, Tailândia, em 1990. Essa
declaração forneceu bases para o funcionamento do atual cenário educacional escolarizado ao convocar partes da
população que não chamadas a estar na escola: crianças, jovens, adultos, mulheres, moradores de rua, indígenas,
deficientes, grupos excluídos etc. (ROOS, 2009).
O que mobiliza o interesse de “todos” estarem na escola? Por que a escola se tornou uma instituição que
precisa agregar a toda e qualquer pessoa? A formulação da portaria do nome social estaria nesse processo de
convocar a todos, inclusive seres tão abjetos (BUTLER, 2003) como travestis e transexuais? Por que houve uma
aceitação tão imediata – por parte dos governos, prefeituras, organizações – para a implantação do nome social?
A discussão sobre “governamentalidade” empreendida por Foucault (2000) pode nos dá pistas sobre esse
processo. Seguindo as teorizações do filósofo, desde aproximadamente o fim do século XVIII, duas diferentes
tecnologias políticas de governo entram em funcionamento nas sociedades ocidentais modernas. Em um primeiro
momento temos uma tecnologia disciplinar do corpo-organismo, uma anátomo-política do corpo, que procede
por efeitos individualizantes. O poder disciplinar toma como objeto de ação o corpo-organismo dos indivíduos,
que precisam ser adestrados por meio de técnicas de vigilância, de sanções normalizadoras e de uma organização
panóptica do espaço das instituições (FOUCAULT, 2003).
Em um segundo momento, Foucault (2000b) observa a emergência de uma nova tecnologia política que
toma como objeto a vida, o ser vivo, o corpo-espécie da população. Trata-se, então, de um biopolítica, uma forma
de racionalizar os problemas colocados à prática governamental para os fenômenos próprios a um conjunto de
viventes constituídos em população. Foucault (2000b) afirma que, a partir desse momento, aparece algo que se
pode chamar de poder sobre a vida. A vida entra no domínio da política.
A biopolítica emerge a partir de um problema novo: o crescimento da população na Europa ocidental a
partir do século XVIII. O grande crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século XVII, a
necessidade de integrá-los ao desenvolvimento do aparelho de produção, a urgência de controlá-lo por
mecanismo de poder mais adequados e rigorosos, fazem aparecer a “população” como uma questão (MARTINS,
2006).
Foi sob a designação de biopoder que Foucault (2003a) reuniu as estratégias de governo voltadas para a
gestão, multiplicação e controle da vida. Essas estratégias podem ser da ordem das disciplinas e se exercer sobre
corpos individuais, adestrando-os, ampliando suas aptidões, extorquindo suas forças, e, ao mesmo tempo,
fazendo crescer sua utilidade e docilidade. Podem também se exercer sobre o corpo-espécie como suporte dos
processos biológicos, gerindo a natalidade, a mortalidade, a longevidade, a saúde pública, a habitação, migração,
com todas as condições que podem fazê-los variar, caracterizando o que ele chamou de biopolítica da população.
A esse Estado de governo, constituído a partir do século XVIII, que tem essencialmente por objeto a
população, que se utiliza da instrumentação do saber econômico e onde a ação política é promovida na gestão
dessa população em nome de uma pretensa segurança, Foucault chamou de Estado “governamental” ou
“governamentalizado”:
Por esta palavra “governamentalidade” entendo o conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e táticas que permitem exercer uma forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por
principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos
de segurança (FOUCAULT, 2008, p. 143).
O tema da biopolítica incide diretamente sobre os processos de inclusão-exclusão contemporâneos
(GADELHA, 2009). A permissão do uso do prenome social de travestis e transexuais, se entendida como uma
política que visa a não exclusão dessa parcela da população, está no jogo biopolítico. A chamada “inclusão” pode
ser entendida como uma prática política de governamentalidade vinculado ao jogo econômico de um Estado
neoliberal.
Foucault (2008) compreende o Estado (neo)liberal como um conjunto de práticas que constituem formas
de vida, cada vez mais conduzidas para princípios de mercado. O mercado é entendido como uma forma de
definir e limitar as ações de governo, fazendo com que ele se coloque e se justifique diante a população.
No neoliberalismo há normas instituídas com a finalidade de criar e conservar o interesse de cada
indivíduo de se manter presente em redes sociais e de mercado. Há uma convocação para entrar e permanecer no
jogo neoliberal (LOPES, 2009).
A primeira regra desse jogo é manter-se sempre em atividade. Não é permitido que ninguém fique fora
das malhas que dão sustentação aos jogos de mercado. O Estado e o mercado estão cada vez mais articulados e
dependentes na tarefa de educar a população para que ela viva em condições de sustentabilidade.
A segunda regra é a de que todos devem estar incluídos, mas em diferentes níveis de participação. Não se
admite que alguém perca tudo ou que fique sem jogar. É necessário que se permaneça no jogo. A inclusão, via
políticas de inclusão, funciona como um dispositivo biopolítico a serviço da segurança das populações.
A terceira regra é desejar permanecer no jogo. É o desejo que faz com que ninguém fique de fora e para
que isso aconteça, a capacidade de consumir deve estar instalada. Com efeito, as ações do Estado, operando em
consonância com a lógica de mercado, devem ser desencadeadas para que mesmo aquele que não possua formas
de gerar o próprio sustento consiga recursos para girar, mínima e localmente, uma rede de consumo (LOPES,
2009).
Segundo Roos (2009), a criação da chamada escola inclusiva, conduzida por uma economia de mercado
neoliberal, serve como estrutura de recepção, ao mesmo tempo, para “normais” e “anormais”, e de instrumento
para a segurança da sociedade, para o controle do risco econômico que representaria a permanência desse
contingente da população fora de circulação. Percebe-se que o ponto em comum entre o econômico e o social é a
regra da não exclusão. A inclusão aparece como um imperativo neoliberal para manutenção de todos na rede do
mercado.
A ação política de se criar uma “escola para todos” parte do pressuposto de que é muito mais produtivo
capturar o que antes era chamado de deficiência, incapacidade, na égide da diversidade. Diversidade é a palavra
de ordem, pois engloba a todos. Se todos estão potencialmente incluídos, aumenta-se o número de consumidores;
há mais pessoas no jogo! Não é produtivo que de uma parcela considerável da população – desde pessoas com
deficiências até travestis e transexuais – fique apartada, enclausurada ou na marginalidade (ROOS, 2009).
Incluir para vigiar, governar, administrar. Como nos diz Gallo (2009, p. 9):
Parece ser necessário que a sociedade defenda-se das diferenças, contenha-as num padrão de
normalidade, para que possam ser administradas, governadas, para que não fujam ao controle,
uma vez que não teríamos como saber as conseqüências de um acontecimento dessa natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um elemento que atravessa os dois objetivos que nortearam a presente pesquisa – uma reflexão teórica
acerca da invenção científica da travestilidade e da transexualidade, e uma análise das redes que propiciaram a
elaboração da Portaria Estadual que permite o uso do nome social dessa população – é a questão da norma, da
categorização do normal e do anormal.
É uma norma social que regula qual sexualidade é válida e legítima (a heterossexual), assim como
determina que há duas, e somente duas, identidades de gênero adequadas: masculino e feminino. Tudo o que foge
dessa norma é considerado “anormal”, desviante, patológico.
Como tentativa de vigiar e assim, ajustar e controlar algumas das experiências que escapam da malha
normativa, que resistem a esse violento binarismo identitário, quais sejam, as vivências travesti e transexual,
intenta-se aproximá-las da norma, neste caso específico, representada pela educação escolar.
Sem subestimar a importância de se instalar em nossas sociedades políticas que visam aliviar sofrimentos
dos/as que sofrem discriminação, deve-se estar atento/a o quanto a inclusão escolar pode se tornar um elemento
de normalização dos/das travestis e transexuais, uma forma de dominação, de controle e de governo. Governo
que não é só dos outros, mas governo de si.
Outra questão que se coloca é se tal política, que tenta minimizar os constrangimentos dos que vivem em
trânsito de gênero, não é apenas uma prática de tolerância e de tentativa de acabar com as diferenças tendo como
referência a normalidade. Isso porque quem demanda pelo direito à diversidade é sempre o outro. Nesse sentido,
nos cabe o confortável lugar de aceitar ou mesmo tolerar as diferenças. A tolerância passa a ser vista como uma
virtude natural. Nessa perspectiva, ignora-se a relação de poder na qual aquele que tolera o outro se coloca em
uma posição de poder pouco intercambiável, estabelecendo a hierarquia do “normal” que tolera o “anormal”
(NARDI; QUARTIERO, 2007).
Surgem, em relação à diferença, discursos que a legitimam, práticas de reconhecimento, aceitação,
respeito e tolerância, que são colocadas como virtudes em si mesmas: o que importa é a aceitação a partir daquele
que está acolhendo, e não seus efeitos políticos que convertem o outro em um alguém censurável, que sempre
ocupa o lugar de ser reconhecido.
O não retorno de travestis e transexuais para a escola após a portaria do nome social pode ser uma forma
de resistência em ocupar esse desconfortável lugar. Lugar da tolerância, que precisa reivindicar o tempo inteiro
por aceitação, respeito e reconhecimento. Diante dessa constatação, outras questões entram em cena: será que é
simplesmente pelo não cumprimento da portaria do nome social, como descritos pelos participantes da pesquisa,
que travestis e transexuais não permanecem ou retornam à escola? Ou será que a aceitação do nome social não é
suficiente para um convívio menos discriminatório? Será que a escola não está preparada para acolher aqueles/as
que subvertem a rígida heteronormatividade? Será que a escola é tão normativa que só é capaz de produzir
homofobia, bullying e violência para toda e qualquer pessoa que desafia a norma estabelecida?
Essas são algumas das questões que se pretende desenvolver na continuidade dessa pesquisa. Faz-se
necessário, então, pensar além das políticas da diferença. Sabemos hoje que muitas políticas de direitos humanos
baseadas na tolerância frente às “minorias” só instalam formas de tratamento que, embora bem intencionada,
dificilmente são capazes de gerar a paridade política contra a desigualdade existente. O debate permanece.
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UNESCO. São Paulo: Moderna, 2004.
ZAMBRANO, Elizabeth. Mudança de nome no registro civil: a questão transexual. In: ÁVILA, M. B.,
PORTELLA, A. P., FERREIRA, V. (orgs.). Novas legalidades e democratização da vida social: família,
sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
IV - Relacione os principais fatores negativos e positivos que interferiram na
execução do projeto.
Entre os fatores positivos, podemos levantar: a continuidade de estudos na temática “gênero, sexualidade e
educação”; o contato com várias pessoas que estão direta ou indiretamente ligadas à formulação da portaria alvo
de análise nessa pesquisa; também é importante ressaltar o apoio de grupos de pesquisa de outras universidades
que propiciaram diálogo, tais como Núcleo de Práticas Discursivas da PUC-SP, o Núcleo de Pesquisas em
Gênero e Masculinidade (GEMA) da UFPE, assim como o contato pessoal com pesquisadores do tema em
questão nacionalmente reconhecidos, como a Profª. Drª. Berenice Bento, Profº. Drº. Benedito Medrado, Profº.
Drº. Ricardo Pimentel, entre outros.
Entre os fatores negativos, podemos listar: o acúmulo de atividades exercidas tanto na docência,
ministrando aulas na graduação em Pedagogia e demais licenciaturas, quanto no curso de doutoramento; o
período que estive fora de Belém, cursando as disciplinas do doutorado, provocou um pequeno atraso na coleta
de informações via entrevista.
V - Formação de Recursos Humanos para a Pesquisa - preencha o quadro abaixo,
informando o número de orientandos no período:
Modalidade
Situação Quanto
a apoio
CNPq
Iniciação Científica IC
PIBIC
PIPES
Aperfeiçoamento
AP
Mestrado
(***) M
Doutorado
(**) D
TOTAL
CAPES
Outras(*)
Sem-bolsa
TOTAL
(*)
Informar a agência/empresa financiadora
(**) Para o nível de Doutorado informar nome do(s) orientando(s) atual(ais), título e situação da tese (em
andamento, concluída, data da aprovação) no período:
(***) Para Mestrado, informar apenas os dados (nome do(s) orientando(s), título da dissertação e datada de
defesa ou previsão) das dissertações concluídas.
VI - Relacionar outras formas de apoio ao projeto de pesquisa nos 2 (dois) últimos
anos, incluindo a obtenção de auxílios junto a órgãos de fomento nacionais,
internacionais ou estrangeiros.
Não houve obtenção de auxílio para a presente pesquisa.
VII - Contatos Nacionais e Internacionais efetivamente ocorridos em função do
projeto, como: convênios, pesquisadores visitantes, etc.
NOME
ESPECIALIDADE
INSTITUIÇÃO
PAÍS
TIPO DE
COLABORAÇÃO
VIII - Informe os trabalhos publicados e/ou aceitos para publicação no período,
relacionados com o projeto em pauta: livros, capítulos de livros, artigos em
periódicos nacionais e internacionais, etc. Não incluir resumos em congressos,
reuniões científicas e semelhantes. Use as indicações em anexo para o registro de
cada trabalho. Anexe separatas dos trabalhos publicados.
DE LUIZ, Gorge Moraes; LIMA, Maria Lúcia Chaves. Reseña de Díaz-Benitez y Figari (orgs.). Prazeres
Dissidentes. Athenea Digital, v.18, p.129 - 132, 2010.
IX - Patente ou registro de invenção ou técnica (informar o título, se a patente é
nacional, internacional ou “joint ventures” e outros dados que julgar adequados):
Não houve registro de patente.
X - Informe outras atividades científicas/administrativas que julgar pertinentes no
período: organização de ou participação em eventos científicos, consultorias,
assessorias a órgãos de fomento ou a outras instituições, participação em colegiados,
bancas de doutorado ou concursos públicos):
Parecerista ad hoc do XV Encontro Nacional da ABRAPSO, Maceió, 2009.
Comissão científica do 6º Seminário Nacional Homens e Masculinidade, Recife, 2010
Parecerista ad hoc do Comissão científica do 6º Seminário Nacional Homens e Masculinidade, Recife, 2010
Coordenação do Simpósio Temático Diversidade e direitos sexuais do 6º Seminário Nacional Homens e
Masculinidade, Recife, 2010
Comissão científica II Encontro da Regional Norte-Nordeste da Associação Brasileira de Psicologia Social,
Fortaleza, 2011.
Parecerista ad hoc do II Encontro da Regional Norte-Nordeste da Associação Brasileira de Psicologia Social,
Fortaleza, 2011.
Comissão examinadora do Processo Seletivo Simplificado para professor substituto de Psicologia da Educação.
Portaria No. 009 / ICED / 2011 de 08 de fevereiro de 2011.
Participação em bancas de trabalho de conclusão de curso de graduação e pós-graduação (lato-sensu).
Participação em inúmeros congressos, eventos, encontros, apresentando conferências, mesas-redondas,
comunicações orais e painéis.
XI- Informe a contribuição para o ensino de graduação, inclusive discriminando as
disciplinas teóricas e/ou experimentais beneficiadas.
Durante todos os semestres de duração dessa pesquisa ministrei aulas das disciplinas psicologia da
educação e psicologia da aprendizagem na graduação em pedagogia e em diversas licenciaturas. Os temas
trabalhados na pesquisa foram utilizados nas disciplinas no sentido de fomentar uma discussão em torno do papel
da psicologia na patologização de identidades de gênero e orientação sexual. Os tópicos tratados na presente
pesquisa auxiliaram em uma abordagem crítica em relação ao tema da diversidade, direitos humanos e educação.

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