Olivia Nogueira Hirsch Título da Tese: O parto “natural”

Transcrição

Olivia Nogueira Hirsch Título da Tese: O parto “natural”
Olivia Nogueira Hirsch
2 SDUWR ³QDWXUDO´ H ³KXPDQL]DGR´ um
estudo comparativo entre mulheres de
camadas populares e médias no Rio de
Janeiro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912435/CA
Tese de Doutorado
Tese de doutorado apresentada como requisito
parcial para obtenção de grau de Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Orientadora: Profa. Sonia Maria Giacomini
Volume I
Rio de Janeiro
Março de 2014
Olivia Nogueira Hirsch
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912435/CA
2 SDUWR ³QDWXUDO´ H ³KXPDQL]DGR´ um
estudo comparativo entre mulheres de
camadas populares e médias no Rio de
Janeiro
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais
do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Sonia Maria Giacomini
Orientadora
Departamento de Ciências Sociais ± PUC-Rio
Profa. Cynthia Andersen Sarti
UNIFESP
Profa. Rachel Aisengart Menezes
IESC/UFRJ
Prof. José Carlos Souza Rodrigues
Departamento de Comunicação Social ± PUC-Rio
Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida
Departamento de Ciências Sociais ± PUC-Rio
Profa. Mônica Herz
Coordenadora Setorial do Centro
de Ciências Sociais ± PUC-Rio
Rio de Janeiro, 21 de março de 2014
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Olivia Nogueira Hirsch
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912435/CA
Bacharel em Comunicação Social pela PUC-Rio e
mestre em Ciências Sociais pela mesma universidade.
Áreas de interesse: corpo, gênero, família, identidades,
relações interétnicas e migrações.
Ficha Catalográfica
Hirsch, Olivia Nogueira
2 SDUWR ³QDWXUDO´ H ³KXPDQL]DGR´ XP HVWXGR
comparativo entre mulheres de camadas populares e
médias no Rio de Janeiro
/ Olivia Nogueira Hirsch ; orientador: Sonia Maria
Giacomini. ± 2014.
354 f. 2v. ; 30 cm
Tese (doutorado)±Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais,
2014.
Inclui bibliografia
1. Ciências Sociais ± Teses. 2. Parto. 3.
Nascimento. ³+XPDQL]DomR´ 5. Camadas médias.
6. Camadas populares. I. Giacomini, Sonia Maria. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Ciências Sociais. III. Título.
CDD: 300
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À Lia, concebida, gestada e parida
durante a elaboração dessa tese
Agradecimentos
À CAPES e à PUC-Rio pelas bolsas concedidas, sem as quais esse trabalho não
poderia ter sido realizado.
À Sonia Giacomini, pela generosidade, parceria, amizade, confiança e constante
incentivo. Lá se vão quase 10 anos desde quando nos conhecemos e foram
inúmeros os aprendizados. Serei eternamente grata.
Aos professores do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, por manterem
um relacionamento tão próximo e tão saudável com os alunos.
Ao José Carlos Rodrigues, professor dos tempos de graduação em Comunicação
Social, que me inspirou e me despertou, juntamente com Elielma Ayres, o
interesse pela Antropologia.
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Às secretárias do Departamento de Ciências Sociais, Ana Roxo, Monica Gomes e
Eveline Serra, pela forma gentil e carinhosa com que sempre me trataram.
À estagiária Laureni Conceição Tavares, pela ajuda na elaboração da planilha de
entrevistadas, assim como pela gentileza e simpatia durante o convívio no
IRUPDOPHQWHGHQRPLQDGR³$QH[RGH&LrQFLDV6RFLDLV´SDUDRQGHPH³PXGHL´QR
~OWLPRDQRSDUDFRQVHJXLUHVFUHYHUHVVDWHVH/iWDPEpPMi³PRUDYD´)UDQFLFOHR
Castro, colega da Pós-Graduação com quem dividi as angústias do processo e as
alegrias de concluir caGDHWDSD$JUDGHoRDR³/HR´SHODFRPSDQKLDTXHPHVPR
silenciosa, tornou os dias menos solitários, e pelo constante incentivo.
Aos demais amigos da Pós-Graduação e à Debora Minuzzo, com quem tive o
prazer de conviver.
À Camila Ferreira e Jonas Dias, pela ajuda no, muitas vezes penoso e entediante,
trabalho de transcrição de entrevistas.
Aos profissionais que trabalham na casa de parto, que verdadeiramente se doam e
acreditam no que fazem. Agradeço pela acolhida sincera e pelo agradável
convívio durante os meses em que foi realizada a pesquisa de campo.
À doula e coordenadora do instituto de yoga onde foi realizada a pesquisa e onde
fiz minhas aulas de preparação para o parto na Zona Sul. Sua energia e dedicação
DR PRYLPHQWR SHOD ³KXPDQL]DomR´ GR SDUWR H Go nascimento são admiráveis.
Agradeço por compartilhar comigo a experiência de mais de 30 anos
acompanhando partos e preparando gestantes para dar à luz.
Às várias mulheres que aceitaram o convite de participar dessa pesquisa, cedendome parte de seu tempo, muitas vezes escasso no período pós-parto, e
compartilhando comigo suas experiências, anseios, alegrias, realizações, mas
também suas inseguranças e frustrações. Mulheres plurais, diversas, com histórias
de vida particulares, mas com alguns pontos em comum.
$RVPHXVSDLV³ERDGUDVWD´HLUPmRVSHORDPRULQVSLUDomRHDSRLR
Um agradecimento especial à minha irmã, Diana Hirsch, que me possibilitou
presenciar, 12 anos atrás, o nascimento de minha sobrinha em um parto
domiciliar, apresentando-me o universo dD³KXPDQL]DomR´
À minha sogra, Sylvia Joffily, à minha mãe, Ana Branco, e à Jaqueline
Nascimento, que trabalha conosco, por compartilharem os cuidados com a Lia,
fazendo parte de uma rede, sólida e afetiva, que me permitiu concluir esse
trabalho.
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Ao Tiago e à Lia, razões da minha vida. Ao Tiago, pelo amor e companheirismo
e, sobretudo, por ter sido um pai presente quando tive, nos últimos meses, que ser
uma mãe ausente. À Lia, por me ensinar a cada dia a beleza da ingenuidade e o
valor das pequenas descobertas e, também, por ter me possibilitado viver a
H[SHULrQFLDGHSDUWR³QDWXUDO´H³KXPDQL]DGR´GHTXHWDQWDVYH]HVRXYLUDIDODUDR
longo dessa pesquisa.
Resumo
Hirsch, Olivia Nogueira; Giacomini, Sonia Maria. 2 SDUWR ³QDWXUDO´ H
³KXPDQL]DGR´ XP HVWXGR FRPSDUDWLYR HQWUH PXOKHUHV GH FDPDGDV
populares e médias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014. 354p. Tese
de Doutorado - Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
O presente estudo busca compreender os significados atribuídos por
PXOKHUHV GH FDPDGDV SRSXODUHV H PpGLDV DR FKDPDGR SDUWR ³KXPDQL]DGR´ TXH
ganhou terreno no Brasil com a criação da Rede pela Humanização do Parto e do
1DVFLPHQWR 5H+X1D 2 WHUPR SDUWR ³KXPDQL]DGR´ GH PDQHLUD JHUDO p
compreendido como o parto em que a mulher tem suas escolhas e seus direitos
UHVSHLWDGRV 1DPDLRULD GDVYH]HV HQJORED DLGpLDGHSDUWR ³QDWXUDO´H[SUHVVmR
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que denota o compromisso com um mínimo de intervenções médicas e
farmacológicas possível. Os significados atribuídos aos termos, contudo, se
aproximam e se distanciam, segundo o contexto em que são utilizados, o que ficou
evidenciado nesse estudo por envolver dois campos: um curso de preparação para
o parto na Zona Sul, coordenado por uma ativista e frequentado por mulheres de
camadas médias, e uma casa de parto pública, considerada pela ReHuNa
UHIHUrQFLD GH ³KXPDQL]DomR´ (VWD ORFDOL]D-se na Zona Oeste e sua clientela é
composta principalmente por mulheres de camadas populares. Os resultados
sugerem que a proposta de parto é atualizada de maneira diferenciada pelos dois
grupos. Enquanto no primeiro as entrevistadas atribuem grande valor à
desmedicalização e à experiência corporal, considerada enriquecedora do ponto de
vista subjetivo, no segundo valoriza-se principalmente o tratamento dispensado
pela equipe. Para ambas, contudo, a experiência parece ter um efeito positivo no
que se refere à auto-estima, na medida em que, quando conseguem dar à luz da
maneira proposta, passam a se perceber e a serem percebidas pelos demais como
³JXHUUHLUDV´RX³VXSHUPXOKHUHV´
Palavras-chave
3DUWRQDVFLPHQWR³KXPDQL]DomR´FDPDGDVPpGLDVFDPDGDVSRSXODUHV.
Abstract
Hirsch, Olivia Nogueira; Giacomini, Sonia Maria. (Advisor). " Natural "
and " humanized " childbirth: a comparative study of poor and middle
class women from Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014. 354p. PhD.
Thesis. Departament of Social Sciences, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
This study aims to understand the meanings given by poor and middle
cODVV%UD]LOLDQZRPHQWRWKHVRFDOOHG³KXPDQL]HGELUWK´ZKLFKEHFDPHSRSXODU
in Brazil upon the foundation of a civil organization called Rede pela
Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa). According to activists, the
H[SUHVVLRQ ³KXPDQL]HG ELUWK´ LQ JHQHUDO UHIHUV WR VLWXDWLRQV LQ ZKLFK ZRPHQ¶V
rights and choices are taken in consideration at the time of birth. More frequently,
KRZHYHULWUHIHUVDOVR WRWKHLGHDRID ³QDWXUDO ELUWK´DQH[SUHVVLRQWKDW PHDQV
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the commitment to minimal medical and pharmacological interventions. The
meanings given to these expressions become respectively more and less
approximated according to the context in which they are used. This became
particularly evident in this research, since it involves two fieldworks: the first are
prenatal preparation classes, mainly attended by middle income women, offered in
the Southern Zone of Rio de Janeiro by an activist. The second is a public birth
FHQWHUWKDWLVFRQVLGHUHGDUHIHUHQFHE\WKH³KXPDQL]DWLRQ´PRYHPHQW This birth
center is situated in the Western Zone and is mainly attended by low income
ZRPHQ 7KH VWXG\¶V UHVXOWV VXJJHVW WKDW WKH ³KXPDQL]HG ELUWK´ DSSURDFK KDV
different meanings for women according to the socioeconomic group of which
they are part. Middle class women give special importance to the reduction in
pharmacological intervention and to the body experience, considered to provide a
subjective growth. The poor women value specially the way in which they are
treated by the nurses/midwives.
Keywords
ChildbirthELUWK³KXPDQL]DWLRQ´PLGGOHFODVVSRRUFODVV.
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Sumário
1. Introdução
11
2. Parto, corpo e classe
2SDUWR³KXPDQL]DGR´XPDFUtWLFDDRV³H[FHVVRV´GD0RGHUQLGDGH
2.1.2. O corpo na Modernidade
2.2. O ideáULRGD³KXPDQL]DomR´HVXDVLQIOXrQFLDV
2.2.1. Movimento feminista
0HGLFLQD%DVHDGDHP(YLGrQFLDVH³5HFRPHQGDo}HVGD206´
2.2.3. Nova Era e movimentos libertários dos anos 1960
2.2.4. Iniciativas obstétricas dissidentes
2.3. Brasil: o cenário atual
³(SLGHPLD´GHFHViUHDVHYLROrQFLDLQVWLWXFLRQDO
2.3.2. Internet e mobilização feminina
2.3.3. Institucionalização do projeto
2.3.4. Mulher(es)
23
23
24
33
38
44
47
51
68
68
75
77
82
3. Casa de parto pública na Zona Oeste
3.1. $³FDVD´
3.1.1. O Acolhimento
3.1.2. 6HPPpGLFRVHVHP³DMXGD´
3.2. As mulheres
3.2.1. Quem são elas?
3.2.2. Motivações
3.3. 2³SURJUDPD´³HQWUDUpIiFLOGLItFLOpILFDU´
3.3.1. Grupos educativos: (trans)formação em curso
3.4. A família em rede
3.4.1. O parto: uma decisão muitas vezes coletiva
3.4.2. A vizinha
3.4.3. Mãe, sogra, avó
3.4.4. Namorado, companheiro, marido
3.4.5. O(A) filho(a)
3.5. O parto
3.5.1. O medo da dor
3.5.2. ³eXPDGRUKRUUtYHOPDV´
3.5.3. Parto bom é parto rápido
3.5.4. ³'HSHQGLDGHPLPSDUDQDVFHU´
3.5.5. 3DUWRFRPRSDVVDJHPDPXOKHU³JXHUUHLUD´
3.5.6. Dívida de gratidão
86
87
88
95
100
100
103
112
124
146
147
158
159
166
170
173
173
189
191
200
202
206
4. Curso de preparação para o parto na Zona Sul
4.1. O curso
4.1.2. (In) formando
4.2. As mulheres
4.2.1. Quem são elas?
4.2.2. Abrindo mão da anestesia
4.2.3. Motivações
4.3. )DPtOLDQXFOHDUFRQFLOLDQGRR³HX´HR³QyV´
208
209
218
237
237
255
266
271
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4.3.1. O parto: decisão feminina
4.3.2. Mãe: ameaça ou apoio?
4.3.3. Doula: em busca de um espaço
4.4. O parto
4.4.1. O lugar da dor: curiosidade e desafio
4.4.2. (PYH]GHGRU³IRUoD´³LQWHQVLGDGH´H³SUHVVmR´
4.4.3. Parto como processo: em busca do aperfeiçoamento subjetivo
4.4.4. ³3DUWROkQGLD´RFRUSRQRFRPDQGR
4.4.5. Parto como passagem: o Hulk como metáfora
4.4.6. Entre o idealizado e o vivido
273
278
283
287
288
291
295
301
308
316
5. Considerações finais
324
6. Posfácio
335
7. Referências bibliográficas
343
8. Anexo
354
1.
Introdução
Em tempos de avanços na área biomédica que prometem a supressão de
praticamente toda e qualquer dor, estando o controle das emoções disponível e à
venda nas farmácias1, um grupo de profissionais de saúde iniciou um movimento
que defende a importância e os benefícios de um parto “natural” e “humanizado”,
posicionando-se de maneira crítica em relação à medicalização realizada de rotina
e em larga escala, como costuma ocorrer nas maternidades brasileiras.
O movimento pela “humanização” do parto e do nascimento, que teve
início nos anos 1990 e incorporou outras propostas que lhe antecederam, ganhou
nas últimas décadas grande número de adeptos, principalmente entre mulheres
provenientes das camadas médias urbanas brasileiras, que passaram a buscar, por
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conta própria, profissionais de saúde afinados com essas práticas. De outra parte,
mulheres de camadas populares, usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS),
também começaram mais recentemente a ter acesso a serviços identificados como
“humanizados”, em meio à criação de programas governamentais direcionados à
disseminação dessa proposta no sistema público de saúde.
Partindo da premissa de que a categoria mulher comporta uma ampla
diversidade e pluralidade, esse estudo filia-se a outros que, em décadas anteriores,
procuraram ressaltar como a classe social, a raça, a orientação sexual, dentre
outros marcadores analíticos, interferem de maneira significativa na forma como
os sujeitos enxergam o mundo. Com isso em mente, chegou-se à hipótese de que a
diferença de classe deveria se expressar e refletir, por exemplo, na experiência de
parturição, sendo esta possivelmente vivenciada e significada de maneiras
diversas por mulheres de diferentes camadas sociais. Nesse sentido, esse estudo
segue os passos de outros que lhe antecederam – tais como aqueles elaborados por
Martin (2006), Nelson (1983), Zadoroznyj (1999) e Tornquist (2003, 2004) – que,
em diferentes contextos, se propuseram a realizar semelhante tarefa.
1
Cf. matéria publicada pela revista Veja Rio: “No astral do Rivotril: indicado para tratar síndrome
do pânico e fobias, o medicamento tarja preta é adotado por cariocas como panaceia para as
tensões do dia a dia”. (Revista Veja Rio, 02/10/2013). Disponível em:
http://vejario.abril.com.br/edicao-da-semana/riscos-uso-banalizado-rivotril-cariocas-rj755449.shtml Último acesso em 19/02/14.
12
De maneira mais específica e objetiva, a presente pesquisa tratou de
observar como mulheres provenientes de diferentes camadas sociais, tomando a
cidade do Rio de Janeiro como pano de fundo, recebiam e atualizavam a proposta
de parto “natural” e “humanizado”.
Com esse propósito, foram investigados dois grupos: o primeiro era
composto por mulheres, majoritariamente brancas, de camadas médias, que
frequentavam um curso de preparação para o parto, oferecido em um instituto
particular na Zona Sul, área nobre da cidade. Esse curso é ministrado por uma
doula2 – referida nesse estudo como Flora3 –, que também é ativista do
movimento pela “humanização”. Conveniadas a planos de saúde, as mulheres que
compunham esse grupo, de maneira geral, abriram mão desse recurso e foram
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assistidas por obstetras particulares que se identificavam como “humanizados”.
O segundo grupo investigado era formado por mulheres, principalmente
negras e pardas, provenientes de camadas populares, que faziam acompanhamento
pré-natal e participavam de grupos educativos de preparação para o parto em uma
casa de parto pública (CP). Esta é reconhecida como modelo de assistência
“humanizada” pelos ativistas e se localiza na Zona Oeste, em um bairro pouco
valorizado da cidade. Nessa unidade de saúde toda a assistência ao pré-natal, parto
e puerperio é prestada exclusivamente por enfermeiras obstetras 4, o que, como se
verá no próximo capítulo, é uma das bandeiras do movimento pela
“humanização”.
A investigação incluiu pesquisas de campo nos dois locais e entrevistas
semi-estruturadas com 37 gestantes e puerperas, entre primíparas e multíparas,
2
De acordo com o livro “A doula no Parto”, trata-se de “mulher treinada e com experiência em
nascimentos, que provê suporte físico, emocional e informacional à mulher e sua família durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto” (Fadynha, 2003: 09). Seu papel costuma ser o de ajudar a
parturiente a encontrar posições mais confortáveis, mostrar formas eficientes de respiração, assim
como propor métodos não farmacológicos para auxilio no alívio da dor, como banhos, massagens,
técnicas de relaxamento, etc. O lugar dessa profissional na cena da “humanização” será explorado
no capítulo 4.
3
Todos os nomes mencionados nessa pesquisa foram substituídos por outros, de modo a preservar
o anonimato dos sujeitos que participaram do estudo.
4
Como a categoria das enfermeiras obstetras é composta majoritariamente por mulheres – o que se
reflete na equipe que trabalha na casa de parto –, ao longo da pesquisa, sempre que fizer referência
a ela utilizarei o gênero feminino. No caso dos médicos, pelo mesmo motivo, será utilizado o
gênero masculino. É certo que trata-se de uma generalização, mas que encontra fundamento na
observação de que essas profissões parecem ser, de fato, generificadas.
13
realizadas nos anos de 2011 e 2012. Das 37 mulheres entrevistadas, 12 pertenciam
ao grupo que fazia aulas de preparação para o parto na Zona Sul e 25 estavam
vinculadas ao pré-natal da casa de parto, na Zona Oeste da cidade. Ainda que não
tenha sido o foco do trabalho, também foram entrevistados profissionais da área
de saúde, mais especificamente um obstetra “humanizado”, uma enfermeira
obstetra e uma doula – especialidades que, como se verá ao longo dessa tese, estão
diretamente envolvidas no projeto de “humanização” do parto e do nascimento.
Sobre as escolhas e o campo
A escolha do tema dessa pesquisa, como toda escolha, tem uma história.
Há muito tempo conheci Flora, que há mais de 30 anos dá aulas de preparação
para o parto em um instituto, coordenado por ela, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Nosso contato se deu por intermédio de minha irmã, que, no início dos anos 2000,
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deu à luz em um parto “natural” e “humanizado”, no qual Flora participou como
doula. A experiência de parto de minha irmã foi muito positiva e a atuação de
Flora foi por ela considerada fundamental para que desse à luz da forma como
escolhera. Não por acaso, pouco tempo depois minha irmã decidiu tornar-se
doula. Ela fez um curso de formação com Flora e, em parceria com ela, participou
da fundação da Associação Nacional de Doulas (Ando) e de um programa de
doulas voluntárias na Maternidade Leila Diniz, impulsionado pela Secretaria
Municipal de Saúde (SMS/RJ). Alguns anos depois, minha irmã mudou-se para os
EUA, onde também tem trabalhado como doula, mas desde aquela época elas
praticamente perderam o contato.
Logo que decidi pesquisar o tema da “humanização”, a partir de um
interesse mais amplo sobre a temática do corpo – já presente de alguma maneira
em minha dissertação de mestrado –, foi à Flora quem imediatamente me ocorreu
procurar. Para minha sorte ela continuava à frente do instituto, onde minha irmã
fizera aulas de yoga, e não foi difícil localizá-la. A despeito de nosso contato
prévio, notei uma certa relutância da parte de Flora em franquear acesso ao
instituto, para que eu pudesse realizar a pesquisa de campo. Ela justificara sua
postura lamentando a falta de retorno por parte dos pesquisadores, que colhiam
dados, mas não compartilhavam seus resultados. “Eles vêm aqui depois nunca
mais aparecem”, reclamou. Mas, além dessa explicação, não descarto também a
14
possibilidade de que, devido ao fato de a “humanização” ser um tema que divide
opiniões, Flora talvez estivesse não muito segura quanto aos meus
posicionamentos sobre o ideário. A meu favor, contudo, pesava o fato de tratar-se
de uma pesquisa em Antropologia, área de formação de algumas importantes
ativistas internacionais que colaboram com o movimento pela humanização no
Brasil, como a americana Robbie Davis-Floyd e a mexicana Naolí Vinaver.
De maneira um tanto tímida, dei início à investigação assistindo às
palestras organizadas a cada duas semanas no instituto e ministradas por
profissionais “humanizados” a um público composto, fundamentalmente, por
gestantes que faziam aulas de yoga ali e seus parceiros. Até então esse era o
espaço que a mim havia sido reservado enquanto pesquisadora. Com o passar do
tempo, porém, as palestras começaram a tornar-se um tanto repetitivas, pois havia
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um número reduzido de profissionais e, de tempos em tempos, eles acabavam
retornando. Como as grávidas que freqüentam as palestras o fazem por um
período limitado, isto é, pelo tempo da gestação, elas não chegam a se deparar
com esse problema. Mas eu já começava a perceber que, para as necessidades da
pesquisa, aquele campo seria insuficiente.
A ida a um congresso sobre “humanização” em Brasília, em 2011, me
permitiu estabelecer novos contatos e ampliar minha rede. Na volta, a convite de
uma pessoa que conhecera ali, passei a freqüentar algumas reuniões de um grupo
de apoio à gestação e ao parto “humanizado”. Liderado por mulheres mais jovens,
com idades entre 30 e 40 anos – em sua maioria doulas e educadoras perinatais,
mas também por uma enfermeira obstetra –, o grupo se reúne a cada duas semanas
na Zona Sul do Rio de Janeiro.
De imediato notei uma diferença importante em relação ao grupo
coordenado por Flora. Ali parecia haver uma menor ênfase no que se refere à
atuação do pai do bebê no parto, em comparação com o que eu já tinha observado
no instituto, onde, por exemplo, havia futuros pais fazendo aulas de yoga para
gestantes. Naquele grupo, o parto era descrito como da mulher e inclusive no
vídeo exibido por uma de suas coordenadoras, sobre o parto recentemente por ela
vivido, as imagens explicitavam esse posicionamento. Tratava-se de um parto
domiciliar e seu marido praticamente não aparecia nas imagens. Era a parturiente,
15
com suas sensações e expressões, que ocupava quase que solitária o centro da tela,
sendo eventualmente confortada pela enfermeira obstetra que lhe prestava
assistência no momento e que também integrava o grupo.
Pouco tempo depois, uma notícia parecia que mudaria os rumos da
pesquisa: eu estava grávida. Assisti a uma palestra no instituto, ocasião em que
compartilhei a notícia com Flora e com algumas alunas do curso, e logo notei um
outro interesse nessa nova condição de pesquisadora/gestante. No entanto, antes
que me matriculasse no curso – o que faria por interesse não só investigativo, mas
também pessoal –, descobri que a gestação não havia seguido adiante. Tive um
aborto espontâneo logo nas primeiras semanas e o feto ficara retido, o que me
levou a fazer um procedimento – denominado curetagem – para sua retirada. Dei a
notícia à Flora quando nos encontramos em um evento público de apoio à
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amamentação e, por algum tempo, não retornei ao instituto.
Na época, fiz uma visita à casa de parto (CP), lugar que havia sido
sugerido pela própria Flora, quando pedi que me indicasse onde, no sistema
público, as mulheres poderiam dar à luz de forma “humanizada”. A ida à CP só
veio a confirmar que a proposta de fazer um estudo comparativo enriqueceria
muito a tese. De imediato, notei que as mulheres atendidas ali tinham um perfil
bastante diferente daquele observado entre as gestantes da Zona Sul: eram bem
mais jovens e, muitas delas, negras e pardas. Assim, resolvi focar nos trâmites
necessários para realizar a pesquisa de campo ali.
De fato, por ser a CP uma instituição pública, tive que elaborar e submeter
o projeto de pesquisa ao Comitê de Ética da Prefeitura, o que me tomou algum
tempo. Entre idas e vindas, motivadas principalmente pela falta de compreensão
sobre o método de pesquisa antropológico, após cerca de quatro meses o projeto
foi aceito e, finalmente, dei início à investigação.
Sobre o campo, é interessante destacar a surpresa das gestantes por eu
considerar que o trabalho desenvolvido na CP e elas próprias pudessem despertar
algum interesse de pesquisa, e, em especial, pelo fato de vir de tão longe para isso,
uma vez que moro na Zona Sul da cidade. Com efeito, minha presença algumas
16
vezes foi enfatizada pelos profissionais, aparentemente como uma tentativa de
fazer com que as usuárias valorizassem a proposta a qual estavam tendo acesso.
Do ponto de vista da equipe também houve um certo estranhamento, não
pelo interesse em investigar o local, o que consideravam legítimo, mas por eu não
ser da área de Saúde. Minha abordagem e enfoque foram algumas vezes
questionados e debatidos na hora do almoço, momento em que compartilhava a
mesa com enfermeiras, técnicas e residentes. Essas ocasiões foram muito
importantes para consolidar a relação com esses profissionais, bem como para
obter uma série de informações por meio de conversas informais.
Como se verá ao longo da tese, a casa de parto é uma unidade de saúde
autônoma, isto é, que não está fisicamente vinculada a um hospital. Esse dado,
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somado ao fato de que o trabalho realizado ali é conduzido exclusivamente por
enfermeiras obstetras, faz com que a CP esteja constantemente na “mira” do
Conselho Regional de Medicina (Cremerj), parte de uma disputa mais ampla por
campos de atuação. Antes mesmo da CP dar início às suas atividades, em 2004, o
Cremerj já havia entrado na justiça para tentar impedir sua abertura, o que gerou
uma grande mobilização popular. Segundo avaliação de lideranças do movimento
pela “humanização” do parto e do nascimento (Rattner, 2010), Flora assumiu um
papel chave nesse momento, tendo sua atuação sido considerada fundamental para
garantir a abertura da CP.
Em 2009, em mais um revés, a CP teve suas atividades interrompidas, a
despeito dos resultados de excelência oferecidos pelo serviço. Até aquele
momento tinham sido realizados 1.350 partos, sem nenhum óbito materno
registrado e duas mortes de bebês, o que configura um índice de 1,48 por mil
nascidos vivos, inferior aos menores índices de mortalidade infantil, registrados
em países da Escandinávia e da Ásia Oriental. O fechamento foi determinado após
uma inspeção da Vigilância Sanitária Estadual detectar “falta de condições
sanitárias”. O local foi reaberto 10 dias depois, em meio à intensa mobilização
popular, tendo um abaixo-assinado reunido, em poucos dias, mais de 10 mil
assinaturas.
17
Esse episódio e o constante monitoramento por parte do Cremerj – que
recebe cópia de todos os prontuários das mulheres que são transferidas da casa de
parto para o hospital de referência – geram um clima de tensão entre os
profissionais, que temem que qualquer pequeno deslize possa comprometer o
funcionamento do local. Diante desse fato, desde o início do trabalho de campo
me sentia na obrigação de dar mais informações sobre a pesquisa, ainda que
estivesse em um momento inicial e com muito mais perguntas do que respostas.
No entanto, é preciso reconhecer que, apesar do estranhamento em relação ao
enfoque antropológico e da pressão exercida pelo Cremerj, a diretora sempre
franqueou-me acesso a todos os ambientes da casa de parto, sem fazer qualquer
tipo de restrição.
Alguns meses depois de iniciada a investigação na CP, engravidei
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novamente. Encarei a gestação como uma possibilidade de investir profundamente
na pesquisa de campo, tanto por essa condição me proporcionar uma inserção
outrora inimaginável, quanto por um motivo bastante prático: depois do
nascimento eu teria menos disponibilidade para isso, em especial nos meses
subsequentes.
A barriga, que logo apareceu, gerava uma identificação imediata com as
mulheres entrevistadas, que se mostravam muito mais abertas e interessadas em
compartilhar comigo suas vivências. Algumas vezes recebi conselhos e dicas e
minha (futura) experiência de parto era também motivo de interesse: “Você vai ter
aqui?”, costumavam me indagar as mulheres da CP. Problemas de saúde que
detectei logo no início da gestação e a distância da minha casa eram as
justificativas que eu lhes apresentava. Mas havia ainda duas outras que eu omitia:
a obrigação, caso houvesse alguma complicação durante o trabalho de parto, de ir
para a maternidade de referência – sobre a qual tantas críticas ouvi das
entrevistadas – e o fato de doulas profissionais não poderem atuar na CP. A
justificativa apresentada pelas enfermeiras obstetras que lá atuam é de que, por
tratar-se de uma unidade pública de saúde, os serviços prestados naquele ambiente
não podem ser cobrados. Além disso, prevalece o entendimento de que o trabalho
da enfermeira inclui o da doula, em especial em uma unidade como a CP, em que,
por suas pequenas dimensões, a enfermeira pode prestar um atendimento
18
exclusivo. Por fim, sugere-se que o acompanhante, geralmente escolhido pela
parturiente entre membros da família, pode ocupar esse lugar.
Na realidade, a impossibilidade de doulas atuarem na casa de parto indica
um outro ponto de tensão e de disputa em torno de campos de atuação: não só
entre médicos e enfermeiras, mas também entre enfermeiras e doulas, o que
aponta para os diversos conflitos que permeiam o movimento pela “humanização”
– nem todos eles explorados nessa tese, já que esse não era propriamente seu foco.
Em paralelo à pesquisa de campo na casa de parto, matriculei-me no curso
de yoga para gestantes oferecido por Flora, sendo muito bem-recebida por ela. De
fato, com a gravidez as possibilidades de investigação ali expandiram-se
exponencialmente e acabei desistindo de pesquisar de maneira mais sistemática o
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outro grupo de apoio à gestação e ao parto na Zona Sul, ainda que eventualmente
frequentasse uma ou outra reunião. Na condição de gestante/pesquisadora assistia
com um duplo interesse as aulas de preparação para o parto, os relatos de casais
sobre suas experiências, as palestras de profissionais “humanizados” e os filmes
exibidos. Eu me via compartilhando das mesmas dúvidas, anseios e
questionamentos que as mulheres do grupo, fazendo escolhas semelhantes para
meu próprio parto “natural” e “humanizado”. A dificuldade a partir de então não
era mais a de ter acesso ao campo, mas a de tentar construir algum
distanciamento, ainda que sempre limitado e provisório, que me permitisse refletir
sobre o observado/sentido/vivido5.
O resultado desse esforço encontra-se nas páginas a seguir. Dando início à
empreitada, o capítulo 2 buscou apresentar a concepção moderna de corpo, que
serve de inspiração ao modelo biomédico atual. Essa concepção é descrita,
seguindo as reflexões de Le Breton (2011), como resultado do advento do
individualismo ocidental, da emergência de um pensamento racional positivo e
laico sobre a natureza e da institucionalização do saber médico, que adotou o
dualismo metodológico instituído por Descartes como inspiração para a prática
médica. O corpo passou a ser visto simplesmente como receptáculo da doença
5
Em alguns momentos, em especial no capítulo 4, utilizei as notas de rodapé para manifestar
minhas impressões e observações enquanto gestante e parturiente que se propôs a vivenciar a
experiência de parto “natural” e “humanizado”.
19
(Leder, 1992), isto é, como se tivesse autonomia em relação ao sujeito que
encarna. Como bem observa Le Breton (2011), essa visão trouxe resultados
positivos em termos de eficácia, mas também expôs limites e distorções da prática
médica. Tais distorções foram justamente o que motivaram alguns profissionais
de saúde a se reunir para criar um movimento, denominado de “humanização”,
que se propõe a romper com o que seriam os “excessos” do modelo biomédico
hegemônico, quais sejam: a despersonalização do corpo, a perda de autonomia e
individualidade do paciente, a assimetria e distanciamento na relação entre
profissional de saúde e paciente, dentre outros.
Ainda nesse capítulo, buscou-se apresentar as diversas influências que
nortearam a construção desse ideário, como o feminismo, a Medicina Baseada em
Evidências e os movimentos libertários surgidos na década de 1960, dentre eles o
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de contracultura e a Nova Era. Também serviram de inspiração outras propostas
obstétricas críticas ao modelo biomédico hegemônico, em especial aquelas
divulgadas na década de 1970 e que tiveram como principais porta-vozes os
médicos franceses Frédérik Leboyer e Michel Odent, este último até hoje ativo,
com uma vasta produção sobre o tema. Como se procurou apontar, as teses de
Odent têm grande aceitação e influência entre os adeptos do ideário no Brasil.
Por fim, abordou-se a realidade obstétrica atual no país, apresentando
como mulheres de diferentes classes sociais são expostas a modelos diversos de
assistência, os quais geram insatisfações particulares. Tais insatisfações
aparentemente contribuíram para que uma parcela das mulheres, tanto de camadas
populares quanto médias, se tornasse aberta à proposta de parto “natural” e/ou
“humanizado”, que inicialmente disseminou-se nos segmentos médios, mas que,
em um segundo momento, passou a ser incorporada ao sistema público de saúde,
como resultado de iniciativas governamentais.
No capítulo 3, o foco foi a pesquisa desenvolvida na casa de parto junto às
mulheres provenientes de camadas populares. Em um primeiro momento,
procurou-se apresentar as especificidades do serviço e o projeto de construção de
uma “nova mulher”, com o qual os profissionais dessa unidade de saúde estão
comprometidos. O projeto é transmitido principalmente através dos chamados
“grupos educativos”, cuja assistência é obrigatória para as gestantes durante o pré-
20
natal. Em seguida, buscou-se apresentar as motivações das mulheres para darem à
luz na casa de parto, o que evidenciou que, naquele contexto, o que mais se
valoriza não é propriamente a desmedicalização, mas a qualidade da relação com
o profissional de saúde e a possibilidade de ser tratada como “pessoa” (DaMatta,
1991), aparentemente inexistente nas maternidades públicas.
A temática da família, que apareceu de maneira bastante evidente no
campo, também foi abordada, procurando-se apresentar as especificidades das
relações familiares nas camadas populares. Estas acabam por tornar coletivas as
decisões relativas ao parto, em conflito com a proposta de individualização,
inerente ao projeto de construção de uma “nova mulher” – parte de um projeto
mais amplo de “cidadanização” –, impulsionado pela CP.
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Por fim, procurou-se tratar mais especificamente como as mulheres de
camadas populares ali atendidas vivenciam e significam a experiência de
parturição, na qual se insere de forma bastante marcante a temática da dor. De
maneira geral, naquele contexto o “parto bom é o parto rápido”, isto é, aquele no
qual a parturiente consegue livrar-se o quanto antes da dor desencadeada pelas
contrações uterinas. Para algumas, o fato de darem à luz sem “ajuda”, maneira
como classificam os procedimentos de rotina realizados nas maternidades
públicas, gera uma sensação de independência, com a qual parecem estar pouco
acostumadas a lidar. A experiência de individualização, no entanto, é vivida como
passageira e transitória. Nesse sentido, o que prevalece são os elos que conectam a
mulher à família, os quais são atualizados em meio à dívida de gratidão que o
parto representa, uma vez que este é percebido como um “sacrifício” feito pela
mãe em nome do filho.
No capítulo 4, o foco direcionou-se ao outro grupo investigado, isto é,
àquele composto majoritariamente por mulheres de camadas médias que
frequentavam um curso de preparação para o parto “natural” e “humanizado”, na
Zona Sul do Rio de Janeiro. Inicialmente, procurou-se apresentar o ideário da
forma como ele é transmitido às gestantes em meio às aulas do curso, o qual
busca instrumentalizar as mulheres a negociarem com seus obstetras os rumos de
seus partos. Não por acaso, as intervenções médicas, seus usos e indicações,
acabam consumindo boa parte das aulas teóricas sobre parto. Por outro lado, tais
21
intervenções podem ser bastante relativizadas quando seu uso é objeto de
avaliação a partir de experiências concretas. Além disso, também foi possível
notar a transmissão de toda uma pedagogia sobre como parir “naturalmente”
(Tornquist, 2004, Carneiro, 2011), que orienta de maneira minuciosa para o que
seriam, sucintamente, as duas etapas do trabalho de parto, quais sejam: a
preparação e a “entrega”. A equipe, especialmente representada na figura do
médico obstetra, é considerada fundamental, uma vez que será ela a garantir a
“proteção” da parturiente no ambiente da maternidade – onde a maioria das
mulheres do grupo investigado dá à luz. Este ambiente é considerado, em
princípio, hostil e pouco adequado à proposta, o que faz com que o parto
domiciliar desponte para muitas como uma meta a ser atingida, revelando um
desejo de aprimoramento da experiência.
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Em seguida, se procurou apresentar quem são essas mulheres e suas
motivações para vivenciar um parto “natural” e “humanizado”. Enquanto a
maioria só tomou contato com a proposta durante a gravidez, vindo a trocar de
médico por diversas vezes ao longo da gestação, algumas a planejaram por dois
ou três anos, juntamente com o projeto de ter filhos. Em comum, é possível dizer
que todas tiveram que lidar com o estranhamento gerado em seu meio social pela
decisão de, em princípio, não tomar medicação para alívio da dor durante o parto,
em meio à disseminação e grande aceitação desse recurso nos segmentos médios.
No que se refere à família, enquanto no grupo de camadas populares as
decisões relativas ao parto são, muitas vezes, tomadas coletivamente, entre as
mulheres de camadas médias estas são percebidas como devendo idealmente ser
tomadas pelo casal, isto é, pela família nuclear, mas, em última instância, cabendo
à própria mulher, o que rompe com a ideia de “casal grávido”. Neste fenômeno,
que emergiu nos anos 1980 nos centros metropolitanos brasileiros, gravidez e
parto eram vistos como experiências a serem necessariamente compartilhadas a
dois, como revela o estudo de Salem (2007), que serviu de importante referência
para essa pesquisa.
Sobre o parto propriamente, tema com o qual este capítulo se encerra,
procurou-se mostrar como a dor é ressignificada nesse contexto, sendo vivida pela
maioria como fonte de curiosidade e percebida como um desafio. A palavra “dor”
22
é inclusive evitada pelas mulheres, que estão interessadas em vivenciar o
processo, isto é, o trabalho de parto como um todo e não apenas o parto ou o
nascimento do bebê. Elas desejam sentir as sensações, inéditas e desconhecidas,
desencadeadas pelo corpo-em-trabalho-de-parto, por algumas valorizadas
enquanto importante fonte de autoconhecimento e aprimoramento de si.
Quando a dor provocada pelas contrações se torna muito intensa e
frequente, algumas referem ter experimentado um “estado alterado de
consciência”, ou, para fazer uso da expressão nativa, dizem ter “ido à
partolândia”. Nessas condições, segundo elas, o corpo assumiria o comando,
sobrepondo-se à mente e à razão. Após voltarem a si, findo o trabalho de parto, a
sensação seria a de terem se transformado em “supermulheres”, detentoras de uma
força que desconheciam. No entanto, como um efeito colateral da proposta, para
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aquelas que não conseguem vivenciar o parto da forma idealizada, resta a
frustração, deflagrando a existência de um modelo que, se por um lado
“empodera” as que a ele se adequam, por outro, fragiliza as que, por ventura, não
têm a mesma sorte.
2.
Parto, corpo e classe
Esse capítulo está dividindo em três grandes seções. Na primeira, tratou-se
da concepção de corpo prevalecente na Modernidade, que, como se verá a seguir,
serviu de referencial contrastivo para o movimento em favor da “humanização”
do parto e do nascimento. Na segunda, o foco foi o ideário da “humanização”,
procurando elencar suas influências e preceitos. A última seção dedicou-se à
relação entre parto e classe, apontando para como a origem social de uma mulher
afeta o tipo de experiência de parto que ela terá. Por fim, tratou-se de apresentar
como mulheres de diferentes camadas sociais tiveram acesso ao parto “natural”
e/ou “humanizado”.
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2.1.
O parto “humanizado”: uma crítica aos “excessos” da Modernidade
A proposta de parto “humanizado” busca atribuir um novo significado e
uma nova representação ao parto e ao nascimento, e, de acordo com seus
divulgadores, surge em resposta às práticas médicas altamente tecnológicas e
institucionalizadas que predominam nas sociedades ocidentais, onde as
parturientes geralmente são excluídas do processo de tomada de decisões relativas
a seu corpo6.
Segundo a antropóloga e ativista Robbie Davis Floyd (2000), a
“humanização” surgiu em reação aos excessos do modelo biomédico de
assistência ao parto, cujo paradigma seria a cesárea, mas que também
encontrariam expressão no parto “normal” tal como realizado nos hospitais, com
procedimentos médicos e farmacológicos administrados de rotina. Diante desse
cenário, alguns profissionais insatisfeitos com o modelo hegemônico procuraram
modificar suas práticas, tornando-as “mais relaciona[is], mais recíproca[s],
individualizada[s], receptiva[s] e empática[s]” (Davis-Floyd, 2000).
6
O estudo de Menezes (2004) sobre o ideário da “boa morte” revelou-se uma importante
referência, uma vez que várias semelhanças podem ser apontadas entre as propostas de
“humanização” da morte e do parto, isto é, do fim e do início da vida.
24
Assim, é possível dizer que o projeto de “humanização” surgiu a partir de
uma crítica ao modelo biomédico hegemônico, que a autora nomeia de
“tecnocrático” e que é adotado pelos ativistas em favor da “humanização” como
referencial contrastivo. Dessa forma, para compreender o projeto de
“humanização” é necessário apresentar a concepção moderna de corpo, a partir da
qual se funda o modelo biomédico.
2.1.2.
O corpo na Modernidade
Uma série de transformações ocorreu na sociedade européia a partir dos
séculos XVI e XVII, vindo a configurar o que se definiu como Modernidade. Essa
nova feição, marca das sociedades ocidentais, estendeu-se por diversas partes do
mundo e, como bem observou Heilborn (2004), está na origem de modos
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estruturadores da vida contemporânea, ainda que também esta tenha passado por
mudanças significativas. Para os propósitos desse estudo, se buscará traçar um
breve panorama do mundo moderno, tendo o corpo como foco e fio condutor.
Para tanto, despontarão como importantes referências os trabalhos de Le Breton
(2011, 1999), Rodrigues (2008) e Leder (1992).
Para
compreender
algumas
práticas,
discursos,
representações
e
imaginários sobre o corpo na sociedade ocidental moderna, Le Breton (2011)
recorre à etnologia e à história, enquanto Rodrigues (2008) lança mão
primordialmente da história. A distância, seja geográfica ou cronológica,
possibilita a comparação, uma das estratégias mais fundamentais da Antropologia.
Por meio do contraste com esses “outros” corpos – simultaneamente resultado da
biologia e constructo social –, é possível apreender a concepção de corpo
prevalecente na Modernidade.
Baseando-se no estudo de Leenhardt (1947) sobre a sociedade canaque, na
Melanésia, Le Breton (2011) sinaliza como naquele grupo o corpo participa em
sua totalidade de uma natureza que o assimila e o envolve. Para os canaque, o
corpo recebe suas características do reino vegetal, entrelaçando sua existência às
árvores, aos frutos e às plantas. Isso significa que as mesmas matérias operam no
mundo e na carne, promovendo uma solidariedade e uma intimidade entre os
homens e o ambiente, no qual estão imersos.
25
Na visão canaque, não há fronteiras entre os vivos e os mortos e seus
ancestrais provêm de árvores da floresta, estas simbolizando o pertencimento ao
grupo. É interessante destacar que, ao nascer uma criança, seu cordão umbilical é
enterrado e, sobre ele, planta-se uma árvore, que deverá crescer junto com o
infante. Além disso, entre os canaque o homem só existe pela sua relação com os
outros, sendo apenas um reflexo da coletividade que o conforma. Em sua análise
sobre a cosmogonia tradicional canaque, Le Breton afirma que:
“A fortiori, o corpo não existe. Pelo menos, não no sentido em que o entendemos
hoje em nossas sociedades. O ‘corpo’ (o karo) é aqui confundido com o mundo;
ele não é o suporte ou a prova de uma individualidade, porquanto esta não está
fixada, uma vez que a pessoa repousa sobre fundamentos que a tornam permeável
a todos os eflúvios do meio ambiente” (Le Breton, 2011: 25)
A perspectiva corporal dos canaque, descrita por Le Breton (2011), na
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realidade pouco tem de particular quando comparada a outras sociedades nãoocidentais, fartamente documentadas por antropólogos ao longo das décadas.
Nessas sociedades, ditas tradicionais, o corpo não é visto como indiscernível do
cosmos, da natureza ou da comunidade. As representações sobre o corpo
costumam ser, de fato, representações sobre a pessoa, não havendo separação
entre o sujeito e seu corpo. O sujeito “é” seu corpo. A marca é a indistinção, ou
melhor, a conexão: a imagem do corpo é uma imagem de si, conformada pelas
mesmas substâncias que compõem o outro e a natureza. Como destacou
Rodrigues (2008), trata-se de um corpo no plural, não de uma propriedade
privada. Característico de sociedades de conformação holista, este corpo é a
própria realidade da pessoa, e não sua máscara ou marca de uma identidade social.
Segundo o autor, “o ser humano deste corpo não configura um mundo interior,
fechado, no qual deva penetrar para se encontrar a si mesmo ou, antes para se
descobrir. (...) Ele é muito mais superfície do que profundidade” (Rodrigues,
2008: 191).
A descrição desse corpo, que pode ser chamado de “tradicional”,
certamente corresponde a uma generalização, e, como qualquer outra, corre o
risco de incorrer em simplificações. Porém, tal caracterização modelar serve como
um instrumento de análise, possibilitando compreender, por contraste, a
concepção de corpo predominante no seio das sociedades ocidentais, o que parece
justificar o uso desse recurso.
26
Assim, se o corpo “tradicional” é um corpo coletivo, em unidade com os
outros, a natureza e o cosmos, nas sociedades ocidentais o corpo, por outro lado,
desponta como fator de individuação, marcando a fronteira entre um sujeito e
outro, encerrando-o em si mesmo. Impensável em sociedades de organização
social de inspiração holista, a concepção moderna do corpo é, segundo Le Breton
(2011), resultado do advento do individualismo ocidental, da emergência de um
pensamento racional positivo e laico sobre a natureza e da institucionalização do
saber médico sobre o corpo.
Como já destacara Dumont (1992), o individualismo como valor, muitas
vezes tido por universal, é na prática fruto do “adestramento social”. No entanto,
essa configuração ideológica, na qual as partes prevalecem sobre o todo e os
elementos sobre as relações, disseminou-se de tal maneira no Ocidente que o
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autor chamou a atenção para a quase sacralidade na qual se converteu o indivíduo
nessas sociedades. Indivisível e particular, cada homem passou a encarnar a
humanidade inteira, sendo “a medida de todas as coisas” (1992: 57). Assim,
enquanto ser racional e sujeito normativo das instituições, o indivíduo passou a
despontar como valor moral central na ideologia ocidental, a ele estando
associados ideais de liberdade e de igualdade, marcas da Modernidade.
É importante destacar que o avanço do individualismo enquanto estrutura
social floresceu pari passu com a medicina moderna. Nesse sentido, segundo Le
Breton (2011), os anatomistas tiveram papel fundamental na transformação da
representação do corpo, que é tributária da concepção de pessoa. De acordo com o
autor, foi a partir da dissecação dos corpos que emergiu a idéia de um sujeito
“tripartido”, cuja imagem até hoje vigora no Ocidente. Cindido de si mesmo, o
sujeito passou a se perceber como “tendo” um corpo e não mais como “sendo” um
corpo, daí resultando a distinção entre corpo e alma ou entre corpo e mente. Ao
mesmo tempo, o homem passou a se enxergar como separado dos demais, isto é,
como um indivíduo, singular e autônomo. Nesse mesmo movimento, o sujeito
começou a se perceber como cindido do universo, acreditando que os saberes da
carne não mais se extraíam de uma homologia cosmos-homem (Le Breton, 2011).
Nas palavras de Rodrigues, trata-se de “ter ‘um’ corpo, necessariamente no
27
singular. Ter aquilo que dá contorno a uma individualidade. ‘Possuir’ aquilo que
me separa dos outros, do mundo e de mim mesmo” (Rodrigues, 2008: 180).
Esse corpo, separado do próprio homem, da comunidade e do cosmos,
veio a se tornar objeto de estudo da Medicina, que o analisou simplesmente como
receptáculo da doença. Através dos estudos de anatomia, destaca Leder (1992), a
medicina moderna adotou o corpo inanimado e sem vida, considerado um belo
exemplar da “máquina humana”, como seu principal referente. Pai filosófico da
medicina científica, Descartes instituiu um dualismo metodológico que até hoje
inspira a prática médica, adotando a máquina como modelo para o corpo humano.
Segundo Leder (1992), um importante aspecto a se destacar é que, ao
enxergar o corpo como um mecanismo, análogo ao de outras máquinas, este foi
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visto como passível de ser alterado ou de tornar-se objeto de intervenção, de modo
a corrigir disfunções, transformar ou substituir suas partes. Isso representou uma
grande ruptura em relação aos medievais, que tinham uma visão imutável e
indivisível do sujeito. Nesse sentido, destaca o autor, o olhar mecanicista foi
crucial para que se passasse da contemplação passiva à manipulação ativa, que
caracteriza a Modernidade.
Leder (1992) observa como ainda hoje técnicas de diagnóstico e exames
focalizam primordialmente o corpo e sua anatomia, isto é, a “máquina-humana”.
De acordo com o autor, “such technologies as the stethoscope, the blood test, the
X-ray, allow a kind of dissecation of the living body, analyzing it into its
component parts, exposing what life ordinarily conceals” (Leder, 1992: 120-121).
Os tratamentos médicos geralmente apontam no mesmo sentido, com freqüência
direcionando-se exclusivamente à doença. Assim, não é incomum que as pessoas
sejam referidas nos hospitais pelos procedimentos que nelas serão realizados (“a
cesárea do 201”) ou pelo mal que as aflige (“a pneumonia do 504”).
De maneira geral, destaca Le Breton (2011), a medicina atual baseia-se no
saber anatômico e fisiológico e trata apenas o corpo, como se este tivesse
autonomia em relação ao sujeito que encarna. É inegável que a busca por eficácia
deu resultados, mas também expôs limites e distorções da prática médica.
Segundo Le Breton, “na elaboração gradual de seu saber, e de seu saber-fazer, a
28
medicina negligenciou o sujeito e sua história, seu meio social, sua relação com o
desejo, a angústia, a morte, o sentido da doença, para considerar apenas o
‘mecanismo corporal’” (2011: 286). Disso resultou um privilegiamento da
técnica, em detrimento do aspecto relacional, muitas vezes ignorado pelos
profissionais da área de saúde.
A esse cenário se somou a desvalorização dos sentidos, como se o mundo
habitado pelo homem, acessível pelos sentidos, fosse diferente do mundo real,
acessível apenas pela “inteligência”. Assim, para aceder à verdade, o sujeito
deveria, segundo essa lógica, despojar-se de seus traços corporais ou
imaginativos, como afirma Le Breton (2011), pautando-se exclusivamente pela
razão. Isso significa que a representação do corpo-máquina, objeto da Medicina
ocidental, ignorou o aspecto sensível, como se não se tratasse de um corpo vivo,
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que absorve, sente, cheira, vê e interage com o entorno. Em seu estudo, Rodrigues
(2004) indicou como a sensibilidade corporal modificou-se ao longo do tempo. Se
na Idade Média a tônica incidia sobre os transbordamentos, os excessos e as
infiltrações, sendo o corpo exteriorizado e aberto ao outro, aos encontros e ao
contato, nas sociedades individualistas primou-se pelo afastamento, pela
contenção e pela vigilância sobre os limites corporais, a partir de uma demarcação
nítida e rigorosa de suas fronteiras.
Focalizando apenas órgãos e tecidos, a medicina, segundo Le Breton
(2011), “despersonalizou” a doença – e pode-se dizer que sua afirmação também
se presta à reflexão sobre outras experiências corporais, como o parto –,
encarando-a como algo que concerne apenas ao organismo do sujeito. Tal visão
contribuiu para que houvesse um apassivamento do indivíduo perante os cuidados
médicos, uma vez que “a doença é outra coisa que não [o sujeito]; seu esforço em
curar, sua colaboração ativa não são considerados essenciais” (2011: 288).
Em “Antropología del Dolor”, Le Breton (1999) também fez uma reflexão
nesse sentido, mas tomando como ponto de partida a questão da dor. O autor
observa que durante muito tempo a dor se impôs como um destino, uma
fatalidade, e cabia ao sujeito lidar com ela lançando mão de seus próprios
recursos, muitas vezes convertendo a necessidade em virtude. Nesse sentido, a dor
era tolerada e frequentemente assistida, presenciada, sendo aceita como algo que
29
podia acometer qualquer um, o que fazia com que o limite de tolerância dos
sujeitos fosse relativamente alto.
O surgimento da anestesia na prática médica, que possibilitou que a
velocidade na execução do procedimento deixasse de ser uma necessidade,
permitindo ao profissional avaliar seus gestos de forma cuidadosa, representou
uma mudança profunda na percepção coletiva sobre a dor: o sofrimento deixou de
ser encarado como um destino e os indivíduos passaram a acreditar que a
Medicina tem sempre uma resposta, rápida e eficaz, para aplacar a dor.
Nas palavras de Le Breton, “hoy, la modernidad transforma la relación de
cada actor con su salud en un asunto puramente médico, para numerosos usuários
el dolor ha perdido todo significado moral o cultural, encarna el espanto, lo
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innombrable”. (Le Breton, 1999: 202). Com isso, afirma o autor, os sujeitos
reduziram a tolerância diante da dor, já não mais percebida como um valor,
frequentemente associado à resistência pessoal. A dor tornou-se sofrimento e
tortura. Na mesma medida, houve um aumento da demanda por analgesia e, em
razão disso, a ampliação do poder da Medicina sobre os corpos dos sujeitos, fruto
de uma sociedade que “ya no integra el sufrimiento ni la muerte como hipótesis de
la condición humana” (Le Breton, 1999: 202).
Salem (1983) pontua o momento posterior à Segunda Guerra Mundial
como um marco no que se refere à medicalização da saúde como um todo, que se
generaliza e atinge seu ponto culminante. Como conseqüência desse processo,
houve uma transferência massiva dos partos, antes realizados principalmente no
âmbito doméstico, para os hospitais. Nesse sentido, seria possível afirmar que a
década de 1950 representou uma “revolução” no modo de conceber e lidar com o
nascimento na cultura ocidental.
Nos termos em que propõe Helman (2003), se poderia dizer que este
momento marcou uma mudança na cultura de nascimento, na medida em que esta,
segundo definição de Hahn e Muecke, “informa os membros da sociedade sobre a
natureza da concepção, as condições apropriadas para a procriação e a gestação, o
funcionamento da gravidez e do parto e as regras e os fundamentos lógicos do
comportamento pré e pós-natal” (apud Helman, 2003: 159).
30
A transferência dos partos para os hospitais – que generalizou-se na
década de 1950, mas teve início, de forma gradual, muito antes – foi decisiva para
o desenvolvimento do ensino médico e para que os “jovens doutores” se
apropriassem do saber e do poder (Foucault, 1998) na área de Obstetrícia, até
então de domínio das parteiras. No entanto, para que isso se efetivasse os
hospitais precisaram passar por uma profunda transformação. Com efeito, observa
Vieira (2008), no passado o local serviu de abrigo para os desvalidos e as
mulheres que davam à luz nos hospitais eram basicamente aquelas que não tinham
o domicílio como uma opção: solteiras e pobres que, sem alternativas, se viam
sujeitas a contraírem doenças de caráter epidêmico. Assim, enquanto as mulheres
abastadas eram atendidas em casa, até mesmo para receber atendimento cirúrgico,
as pobres encaravam a admissão no hospital quase como uma sentença de morte
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(Vieira, 2008).
Alguns fatores foram fundamentais para a reformulação desse quadro, que
culminou no desenvolvimento do hospital moderno, entre eles, a adoção de
medidas higiênicas, os avanços nos estudos sobre bacteriologia e a
compartimentalização do espaço hospitalar, que possibilitaram uma série de
controles sobre as doenças e os contágios, mas, sobretudo, sobre os corpos dos
sujeitos.
Com efeito, destaca Foucault (1998), o homem-máquina descrito sob os
registros anátomo-físico e técnico-político teve seu corpo controlado e vigiado,
convertido em útil e inteligível, manipulável e analisável, tornando-se “portador”
de um corpo dócil, alvo de novas técnicas de poder: o “corpo natural” (Foucault,
1998: 132). As chamadas “disciplinas”, enquanto métodos de controle
minuciosos, impuseram uma nova relação de docilidade-utilidade sobre o corpo,
que, ao mesmo tempo submisso e exercitado, teve sua força e utilidade ampliadas,
redundando em obediência e dominação.
O controle de doenças epidêmicas, como é o caso da infecção puerperal,
que acometia as mulheres recém-paridas, teve grande papel nesse processo,
motivado inicialmente por exigências conjunturais, mas que desembocaram em
transformações gerais mais amplas, vindo a cobrir todo o corpo social.
31
Assim, a disciplina distribuiu os indivíduos no espaço, às vezes de forma
explícita, através do isolamento ou encarceramento, mas noutros momento de
maneira sutil. O objetivo, contudo, era o mesmo: colocar cada indivíduo no seu
lugar. Os espaços passaram a ter funções claramente demarcadas e o hospital, que
antes agrupava indiscriminadamente os pacientes, passou a organizar seu espaço
interno e assim os doentes, cada um em seu leito, foram separados segundo suas
doenças, tornando aquele local útil para a observação médica. Segundo Foucault
(1998), a primeira grande operação da disciplina foi a constituição de “quadros
vivos”, ou seja, a transformação de multidões que pareciam confusas e caóticas
em multiplicidades organizadas, controladas e inteligíveis. Nesse sentido, o
hospital correspondeu a um ordenamento espacial e classificatório, que ao mesmo
tempo representou uma técnica de poder e um processo de saber.
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Pouco a pouco, observa Menezes (2004), o hospital, seus saberes e os
profissionais que ali atuam passaram a ocupar, na sociedade ocidental, um lugar
central e quase naturalizado na prestação de serviços direcionados à saúde. No
caso específico do parto, as mudanças ocorridas na segunda metade do século XX
representaram uma grande transformação: este converteu-se em ato médico, não
mais sob responsabilidade de parteiras e realizado no domicílio da parturiente,
mas assistido por médicos obstetras, que passaram a contar com o aparato
tecnológico dos centros cirúrgicos. Segundo Tornquist (2003), o parto, de evento
social, cultural e de saúde, converteu-se em um fenômeno patológico, médico e
fragmentado.
Martin (2006) e Davis-Floyd (2000) chamam a atenção para como a
representação do corpo como uma máquina, predominante na medicina moderna,
fez do homem o protótipo de seu correto funcionamento. Nesse sentido, o corpo
feminino foi percebido como um desvio, encarado como inerentemente defeituoso
e imprevisível, que requer atenção e reparos, especialmente durante o parto.
Tratado como um momento “extremo e agudo de uma máquina caótica e não
confiável, [o parto] requer a intervenção hábil e rápida do profissional”. (DavisFloyd, 2000: 06).
De acordo com Diniz (2005), o modelo de parto “normal”, instituído em
meados do século XX, predomina até hoje nos hospitais e maternidades públicos
32
brasileiros, com o uso de drogas para regulação do trabalho de parto e parto;
imobilização total ou parcial da parturiente em posição de litotomia7; proibição de
ingerir líquidos ou alimentos por via oral e com a abertura cirúrgica da
musculatura da vulva e da vagina – chamada de “episiotomia” – sendo realizada
como procedimento de rotina.
Deve-se mencionar que a medicalização e rotinização dos cuidados, que
também alteraram a maneira de se lidar com a morte (Menezes, 2004), passaram a
ter início durante a própria gestação, que tornou-se cada vez mais objeto de
vigilância e exames. Além disso, o processo de parturição passou por um
progressivo ocultamento8 – o que Menezes (2004) observou ter ocorrido também
em relação à morte – uma vez que, em meio à crescente institucionalização do
evento, a parturiente foi afastada de seu círculo social, muitas vezes
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permanecendo sozinha na maternidade. Em decorrência disso, a experiência de
parturição tornou-se praticamente desconhecida das mulheres, mesmo para
aquelas em idade reprodutiva, como foi possível apreender de alguns dos
depoimentos colhidos ao longo da pesquisa e que serão analisados nos capítulos
subsequentes.
A partir do exposto, é possível definir o modelo biomédico de parturição
como um “parto moderno”9 ou, nos termos em que propõe Davis-Floyd (2013),
como um “parto tecnocrático”10, resultado da concepção de corpo prevalecente
nas sociedades Ocidentais. Dessa forma, a proposta de “humanização” do parto e
do nascimento procura se apresentar como uma alternativa a esse modelo, que
7
É a chamada posição ginecológica, isto é, quando o corpo está deitado com a face voltada para
cima, com flexão de quadril e joelho, expondo o períneo.
8
No que se refere ao parto, esse processo tem sofrido recentes modificações, a partir da crescente
“espetacularização” do evento. Nesse sentido, algumas maternidades brasileiras contam
atualmente com pequenas salas de exibição, onde são transmitidas imagens ao vivo do parto, em
geral cesáreo, o que possibilita que membros da família e amigos assistam, com a mediação da
tela, ao evento. Se no passado o parto realizado no domicílio contava com a presença física e o
apoio da família, hoje este é assistido como um reality show, modalidade de programa que faz
grande sucesso na televisão brasileira.
9
Essa definição encontra inspiração nas reflexões feitas por Ariès (1981), que sugere a existência
de diferentes modelos de morte, associados a momentos históricos distintos. Segundo o autor,
seria possível localizar duas configurações sociais e simbólicas, uma relativa ao que designou
como morte “tradicional” e outra como morte “moderna”. Para mais informações, ver: Ariès
(1981).
10
Nas palavras da autora: “A technocracy as I define it is a society organized around an ideology
of progress through the development and increasing utilization of high technology and the global
flow of information” (Davis-Floyd, 2013).
33
seria considerado o paradigma dos “excessos” da Modernidade, buscando criar
um novo significado para esses eventos. No entanto, é preciso destacar, o ideário
da “humanização” do parto e do nascimento não rompe com a ideia de
corpo/sujeito que advém da Modernidade, tendo em vista que a noção de
indivíduo lhe é central e constituva, como se verá a seguir.
2.2.
O ideário da “humanização” e suas influências
O termo parto “humanizado”, de maneira geral, refere-se ao parto em que
a mulher tem suas escolhas e seus direitos respeitados, sendo tratada de forma
personalizada pela equipe medica. Um aspecto importante a se destacar é que o
termo, na maioria das vezes, engloba também a idéia de parto “natural”, expressão
que popularizou-se na década de 1980 e denota o compromisso com um mínimo
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de intervenções médicas e farmacológicas possível.
É válido mencionar que as expressões parto “humanizado” e parto
“natural”, com freqüência, aparecem como intercambiáveis nos discursos das
mulheres de camadas médias e dos divulgadores do ideário. No entanto, no
universo de camadas populares investigado foi possível notar a preferência, tanto
entre as mulheres quanto entre os profissionais que lhes prestavam assistência,
pela expressão parto “natural”, em detrimento de “humanizado”, o que será
explorado ao longo da tese. De imediato, cabe apontar, como o fez Carneiro
(2011), que trata-se de termos “que se aproximam, mas também se descolam,
conforme a conjuntura” (2011: 108)11.
As práticas identificadas com a proposta de “humanização” geralmente
prevêem o uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor (como
massagem, respiração e técnicas de relaxamento), liberdade de movimento e
posição durante o trabalho de parto e parto, ingestão de líquidos por via oral,
presença de acompanhante, apoio físico e emocional por parte da equipe de
assistência, além de respeito à privacidade da parturiente e de seu tempo físico e
11
Diante desse fato, em alguns momentos optou-se por utilizar os dois termos, de modo
diferenciado (especialmente nos capítulos subsequentes, que versam sobre os grupos
investigados), e noutros, como nesse capítulo, quando é feita referência ao ideário como um todo,
foi privilegiado o uso da expressão parto “humanizado” ou mesmo da palavra “humanização”,
como o fazem seus divulgadores.
34
psíquico para dar à luz. Nesse tipo de parto, após o nascimento do bebê,
geralmente estimula-se o contato pele e pele entre a mãe e o recém-nascido e o
aleitamento materno na primeira hora de vida. O parto “humanizado” pode ser
realizado no domicilio da parturiente, em casa de parto ou na maternidade, com a
assistência de médicos, doulas e/ou enfermeiras obstetras12. Estas últimas, aliás,
têm ganhado significativo espaço e reconhecimento nesse cenário, onde sua
limitação técnica é valorizada.
Com iniciativas esparsas e, em geral, restritas ao setor privado, a proposta
de oferecer um atendimento “mais respeitoso” à mulher e ao bebê teve início na
década de 1980 e ganhou a adesão de um pequeno segmento de mulheres de
camadas médias, ainda que o nome “humanização” – que, deve-se ressaltar,
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demorou para ser aceito pelos diferentes atores – não fosse utilizado.
Alguns médicos obstetras são considerados “pioneiros” na implantação
dessas iniciativas no Brasil. Segundo Rattner13 et al. (2010), um deles é o
paranaense Moyses Paciornik, que em 1975 tomou contato com índias da etnia
Kaigangue ao coordenar um serviço de prevenção ao câncer ginecológico no Sul
do país. Ao regressar à Curitiba, onde mantinha uma clínica, Paciornik passou a
incentivar entre sua clientela o parto de cócoras ou “parto índio”, como chamava,
no final dos anos 197014.
Outro considerado “pioneiro” é o argentino Hugo Sabatino, que em 1980
inaugurou – e mantém até hoje – um grupo de pesquisa e assistência ao “parto
alternativo”, em um hospital universitário na cidade de Campinas (SP), onde
também incentiva o parto de cócoras. Por fim, o médico Galba de Araújo, que
12
Desde 1998 o Ministério da Saúde aprovou a criação de cursos de especialização em Obstetrícia
para a área de Enfermagem, o que diferencia as enfermeiras obstetras das parteiras ou midwives
dos países anglo-europeus, que fazem cursos em escolas específicas, não precisando obter uma
formação prévia em Enfermagem.
13
Daphne Rattner é médica e ativista do movimento pela “humanização” do parto e do
nascimento, estando atualmente na presidência da Rede pela Humanização do Parto e do
Nascimento (ReHuNa), sobre a qual se tratará a seguir.
14
Em 1979, Paciornik publicou o livro “Parto de Cócoras: aprenda a nascer com os índios”, no
qual afirmava que “nos povos primitivos, onde a civilização não chegou para perturbar os
fenômenos naturais” (Paciornik, 1979: 12), as mulheres, sem serem perturbadas por
“ensinamentos artificiais”, assumiam a posição acocorada para dar à luz, o que, na sua avaliação,
seria a posição fisiologicamente correta. Como é possível notar, os indígenas são descritos como
representantes de um mundo em equilíbrio, em que o corpo permanece ativo e sadio, sem os
utensílios e ferramentas criados pela cultura, que teria apenas contribuído para um afastamento
dessa vida ideal.
35
hoje empresta seu nome a hospitais, postos de saúde e a uma premiação concedida
pelo Ministério da Saúde, foi outro a desenvolver um trabalho considerado
“pioneiro” no âmbito da “humanização”. Na década de 1980, o médico
incentivava a construção de casas de parto nos municípios mais empobrecidos do
estado do Ceará e oferecia cursos rápidos de atendimento à gestação e ao parto às
parteiras da região, para que pudessem prestar assistência nesses locais.
Essas iniciativas pontuais
tiveram
pouca repercussão, mas são
consideradas importantes referências para os membros do movimento em favor da
“humanização”, cuja institucionalização veio a ocorrer em 1993, com a fundação
da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa). Em outubro
daquele ano, um encontro realizado em um sítio, em Campinas, reuniu pessoas de
vários estados interessadas em discutir o modelo de atenção ao parto e ao
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nascimento no país. Os participantes eram principalmente profissionais da área de
saúde, que de alguma maneira já trabalhavam de forma diversa do modelo
biomédico hegemônico. Desse encontro resultou a chamada “Carta de
Campinas”15, documento de fundação da ReHuNa e que enumera os principais
objetivos da organização, quais sejam:
1) A divulgação dos riscos, para mães e bebês, das práticas obstétricas
inadequadamente intervencionistas;
2) O resgate do nascimento como um evento existencial e sócio-cultural
com profundas e extensas conseqüências pessoais;
3) A revalorização das posturas e condutas face ao nascimento de uma
nova vida, humanizando o significado do parto e do nascimento;
4) O incentivo às mulheres a se reapropriarem de suas vidas, aumentando
sua autonomia e poder de decisão sobre seus corpos e seus partos;
5) O resgate de práticas humanizadas tradicionais de assistência ao parto e
nascimento, aliadas ao conhecimento técnico e científico sistematizado e
comprovado.
15
O documento na integra encontra-se disponível em:
http://www.ongamigasdoparto.com/2011/05/carta-de-campinas-ato-de-fundacao-da.html
36
Como sugere o documento, especial atenção é conferida à questão da
medicalização, percebida como potencialmente arriscada e perigosa, em
contraposição à imagem predominante na sociedade de que a tecnologia é, por
princípio, positiva e desejada. No documento, as práticas obstétricas associadas ao
modelo
biomédico
hegemônico
são
consideradas
“inadequadamente
intervencionistas”, em sintonia com os comentários diversas vezes observados
durante a pesquisa de campo, que apontam para o caráter ritualístico (DavisFloyd, 2003) e cientificamente infundado das práticas médicas convencionais. A
“Carta de Campinas” indica, nesse sentido, uma valorização das práticas
“tradicionais” de assistência ao parto que, no entanto, são ressignificadas e
aparentemente aprimoradas a partir de sua combinação, parcimoniosa e
fundamentada, com o conhecimento técnico e científico.
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Outro aspecto a se destacar dos objetivos delineados no ato de fundação da
ReHuNa refere-se à intenção de se construir um novo significado para o parto e o
nascimento, passando a considerá-lo um “evento existencial e sócio-cultural com
profundas e extensas conseqüências pessoais”. Na realidade, para os divulgadores
do ideário tratar-se-ia de um “resgate”, uma vez que entendem que este teria sido
o significado atribuído ao parto no passado, o qual teria se perdido em meio à
institucionalização e medicalização do evento, resultado de sua apropriação pelo
saber médico. Da mesma forma, e como resultado dessa nova representação, o
movimento propõe uma mudança que tem como foco os profissionais da área de
Obstetrícia. Estes são incitados a adotar uma nova postura e conduta diante do
nascimento de uma nova vida, partindo do pressuposto de que no modelo
biomédico atual houve um privilegiamento da técnica, isto é, do “saber”, em
detrimento do “sentir”, para fazer uso das categorias propostas por Bonet (2004).
Se um dos objetivos do movimento pela “humanização” é incentivar uma
mudança de atitude por parte dos profissionais, outro, não menos importante, tem
como foco as mulheres, isto é, as parturientes. Segundo o documento, estas devem
ser incentivadas a se reapropriarem de seus corpos – o que mais uma vez remete a
um passado remoto, idealizado, no qual as mulheres tinham autonomia e poder de
decisão. Com forte influência do movimento feminista, o ideário está
37
profundamente imbricado com a noção de indivíduo, central para a construção do
sujeito moderno.
Cabe aqui salientar a diferenciação feita por Dumont (1993) entre o
indivíduo como realidade empírica e o estabelecimento deste como uma entidade
social autônoma ou um valor social. O indivíduo como valor, hoje naturalizado no
Ocidente, é resultado da ascensão de um fenômeno sociopolítico, original e
primordialmente
construído
na
Europa
Ocidental,
cuja
ideologia
foi
contemporaneamente massificada16.
Entre as camadas médias e escolarizadas, onde surgiu o ideário da
“humanização”, a disseminação do individualismo como um valor central para a
construção do sujeito encontrou grande penetração, o que explica o incômodo dos
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fundadores do movimento – em sua maioria profissionais que atuam na área de
Obstetrícia – com o modelo biomédico hegemônico, do qual resultou o parto
“tecnocrático” ou “moderno”. Na visão desses atores, esse parto representava
justamente a negação da individualidade da parturiente, tendo em vista a
realização de procedimentos médicos e farmacológicos de rotina, isto é, de forma
padronizada, sem considerar as particularidades de cada sujeito, de cada corpo.
Como observou Le Breton (2011), na ideologia individualista o corpo se
converte no “recinto do sujeito, o lugar de seu limite e de sua liberdade, objeto
privilegiado de uma fabricação e de uma vontade de domínio” (2011: 18). Sendo
assim, é possível apreender a preocupação dos divulgadores do ideário da
“humanização” com a realização rotineira de procedimentos médicos e
farmacológicos, que tem sua ação justamente no corpo dos indivíduos.
Nesse sentido, o documento de fundação da ReHuNa chama a atenção
para as altas taxas de partos cesáreos no Brasil, sugerindo que houve no país uma
total inversão, na medida em que o parto cirúrgico “passou a ser o método normal
de parir e de nascer”. Além disso, questiona o fato de as mulheres não serem
16
É importante destacar, como o fazem diversos autores (Rodrigues, 2008, Le Breton, 2011, Sarti,
2011, Duarte e Gomes, 2010, Fonseca, 2005, dentre outros), que a penetração do individualismo
não foi homogênea, sendo possível dizer que dentro de uma mesma sociedade, por exemplo, há
grupos que se mostram mais resistentes a essa ideologia, como é o caso daqueles que vivem em
áreas rurais ou os que integram as chamadas camadas populares, que aparentemente se revelam
menos abertos à sua influência.
38
informadas sobre os riscos e malefícios desse tipo de parto17, o que teria
contribuído para sua valorização, e também dos aspectos negativos associados ao
parto “normal” medicalizado, que, de acordo com o documento, representa uma
violência contra a mulher. “[O parto e o nascimento], fenômenos vitais e
existenciais cruciais, tornaram-se momentos de terror, angústia, impotência,
alienação e dor”, afirma a Carta.
Tornquist (2004) aponta para como a crítica à medicalização excessiva é
central para a constituição do movimento, cuja identidade se constrói em grande
medida pela contestação do modelo tecnológico e de seus pressupostos, isto é, da
“patologização do parto, sua redução à condição de uma disease e a um evento
ligado à doença, e não à saúde” (2004: 152).
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Segundo o documento, a fisiologia feminina, considerada perfeita e
eficiente, seria perturbada pelas rotinas e interferências médicas, que inibiriam o
desencadeamento dos mecanismos fisiológicos “naturais”. Além de interferir e
representar uma violência contra a mulher, como já mencionado, considera-se que
o uso de medicamentos pode comprometer o domínio da parturiente sobre seu
corpo, ou seja, o exercício de sua autonomia e liberdade, valores centrais da
Modernidade. Na “Carta de Campinas”, a mulher é apontada como tendo
“progressivamente se alijado de seu papel de sujeito no momento do nascimento”,
o que se atribuiu à existência de “tabus, [à] repressão da sexualidade e [à]
opressão, subordinação e manipulação das mulheres em nossa sociedade”. Para se
contrapôr a esse cenário, a ReHuNa, segundo informação obtida no site da
organização, adota como um de seus objetivos apoiar, promover e reivindicar o
“protagonismo” da mulher, denotando a forte influência do feminismo no
movimento pela “humanização” do parto e do nascimento.
2.2.1.
Movimento feminista
Como observam Franchetto et al. (1980), uma parte importante das lutas
políticas feministas “recortam como interesse exclusivo às mulheres, concernentes
à sua individualidade, aquilo que se passa em seus corpos” (1980: 40). Daí
17
É interessante notar como a retórica do risco, geralmente empregada como justificativa para
promover a medicalização (Chacham, 2004a), é, nesse contexto, subvertida.
39
resultam os slogans sobre a livre apropriação do corpo – como “O meu corpo me
pertence” – que sugerem a afirmação da dimensão individual como pólo
significativo no que se refere às ingerências da ordem social18.
De fato, Tornquist (2004) destaca que uma parcela significativa dos
signatários da “Carta de Campinas” era composta por pessoas que, de forma
individual ou coletiva, tinham estreitos vínculos com o movimento feminista.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que o movimento feminista no Brasil tem
historicamente atuado na área da saúde pública, especialmente em temas como
contracepção, violência, sexualidade e aborto, com a criação de redes e grupos,
muitos dos quais buscaram elaborar propostas nessa área.
Costa (2009) analisa a evolução do processo participativo dos movimentos
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de mulheres, especialmente aqueles identificados com o feminismo, articulado à
construção de políticas para a saúde das mulheres no Brasil. A autora observa que
nos anos 1970, durante o regime militar, houve um reforço do discurso da
segurança nacional, que supostamente estaria ameaçada pelo grande contingente
de pobres e pelas proles numerosas, consideradas “presas fáceis” para os
“subversivos”. Da mesma forma, afirma Costa (2009), nesse período houve um
recrudescimento de idéias eugênicas, que apontavam para a necessidade de
esforços no que se refere ao controle demográfico. Segundo a autora, a
radicalização dos militares no que diz respeito ao tema da demografia
aparentemente despertou a atenção do incipiente movimento feminista brasileiro,
que passou a se opor fortemente às iniciativas de controle da natalidade, dentre
elas aquelas levadas a cabo por instituições de cunho “controlista”, que agiam em
todo o território nacional, como é o caso da Sociedade Civil de Bem-Estar
Familiar no Brasil (BEMFAM) e do Centro de Pesquisas de Assistência Integrada
à Mulher e à Criança (CPAIMC).
18
Nesse mesmo artigo, Franchetto et al. (1980), de maneira mais ampla, fazem uma análise do
movimento feminista, situando-o como um desdobramento do individualismo. O assunto será
retomado no capítulo 4, quando for abordado o tema da família nuclear, predominante nas
camadas médias.
40
“Embora os governos fizessem vistas grossas à ação das instituições de controle
demográfico, o país não dispunha de nenhuma política sobre o tema e, portanto,
os serviços públicos de saúde estavam despreparados para essa demanda. Os
serviços existentes vinculados à BEMFAM ou CPAIMC tinham qualidade
duvidosa e ofertavam planejamento familiar dissociado de atenção à saúde, com
limitação da disponibilidade aos métodos de alta eficácia”. (Costa, 2009: 1076).
As feministas advogavam em favor da autonomia das mulheres no que se
refere à escolha de seus destinos relacionados à procriação, enquanto o
movimento da reforma sanitária chamava a atenção para os riscos que esses
serviços representavam às mulheres. A pressão exercida por esses dois
movimentos sobre o governo contribuiu, segundo a autora, para que se efetuassem
importantes mudanças nas políticas de saúde da mulher, que acabaram resultando,
em 1983, na criação pelo Ministério da Saúde do Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher (PAISM). No programa, prevalecia a análise da
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complexidade das questões de saúde das mulheres, contemplando as diversas
etapas do ciclo de vida feminino, o que apontava para a integralidade da política19.
Carneiro (2011) esclarece que, dessa forma, o PAISM buscava contemplar as
“especificidades sociais, psicológicas, biológicas e de saúde [da mulher];
somando-se a isso, a segurança da assistência, desde os níveis mais simples até os
mais complexos. Nesse sentido, os marcadores sociais de raça, etnia, classe,
orientação sexual, entre outros, deveriam todos ser considerados e sopesados no
momento do atendimento” (2011: 260).
No que se refere ao planejamento familiar, o programa reconhecia a
autonomia feminina em relação às questões reprodutivas, o que era uma demanda
do movimento de mulheres. Segundo Maia (2008), o PAISM foi a pedra
fundamental de uma nova lógica para se pensar a assistência à saúde da mulher e
teve grande influência nas políticas públicas subsequentes direcionadas a essa
área.
É importante destacar que na década de 1980, na conjuntura de transição à
democracia, o movimento de mulheres encontrava-se politicamente fortalecido.
Na época, havia uma grande participação das lideranças feministas nas instâncias
19
Osis (1998) destaca que esse aspecto fez com que o PAISM fosse pioneiro, inclusive no cenário
internacional, no que diz respeito ao atendimento à saúde reprodutiva das mulheres, tendo contado
com forte apoio dos movimentos de mulheres para sua implantação. Na avaliação da autora, o
“PAISM representou, sem dúvida, um passo significativo em direção ao reconhecimento dos
direitos reprodutivos das mulheres, mesmo antes que essa expressão ganhasse os diversos foros
internacionais” (Osis, 1998: 25).
41
relacionadas à saúde, bem como observou-se a ampliação da representação das
mulheres na Câmara Federal e no poder legislativo de estados e municípios. Data
também daquela década a convocação da primeira Conferência Nacional de Saúde
e Direitos da Mulher, que contou com o apoio dos movimentos de mulheres de
todo o Brasil e também do Ministério da Saúde. As resoluções do encontro, nas
quais foram reafirmadas e detalhadas as diretrizes das políticas de saúde da
mulher sintonizadas com o PAISM, foram transformadas em instrumento político
e deram origem à “Carta das mulheres brasileiras aos constituintes”. A partir da
elaboração desse documento, destaca Costa (2009), a saúde afirmou-se como tema
central da agenda dos movimentos de mulheres no Brasil, o que veio a se refletir
no texto constitucional de 1988.
Nos anos 1990, após a Conferência Internacional sobre População e
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Desenvolvimento, no Cairo, a atenção direcionou-se especialmente à questão da
saúde reprodutiva, o que representou uma importante fragmentação, ao desprezar
as dimensões da complexidade da saúde integral. Costa (2009) aponta que a
consciência desta fragmentação fez com que, ao longo daquela década, os
movimentos feministas, assim como diversas organizações internacionais,
atuassem no sentido de tentar articular o conceito de saúde reprodutiva ao de
direitos reprodutivos e sexuais, que, segundo Diniz (2005)20, posteriormente
foram redescritos como direitos humanos. Nesse contexto, é importante
mencionar que a proposição de uma assistência à mulher baseada em direitos,
resultado da forte influência das feministas na ReHuNa, veio a se tornar chave
para o projeto de “humanização” do parto e do nascimento, que se pretende
também um projeto de “cidadanização” feminina.
É interessante destacar que a medicalização do parto, vista pelos adeptos
do ideário como um dos fatores que conduzem à perda de autonomia feminina, ao
interferir na capacidade de controle sobre seus corpos, foi, no início do século
XX, uma demanda de muitas feministas nos EUA e na Europa (Beckett, 2005,
Moscucci, 2002). Nessa época, a maioria dos médicos se posicionava de maneira
crítica ao uso de medicação para alívio da dor durante o parto.
20
Simone Diniz é medica, feminista e ativista do movimento pela “humanização”, sendo autora de
várias publicações sobre o tema.
42
De acordo com Beckett (2005), para essas mulheres o direito ao uso de
medicação que aplacasse a dor no momento de dar à luz era visto como uma
importante questão política, pois, segundo elas, o acesso aos medicamentos
representava a tomada de controle das mulheres sobre o processo de parturição. A
resistência dos médicos a atender essa demanda era vista, de acordo com a autora,
como indicativa da tendência desses profissionais a privilegiar seus interesses em
detrimento dos das parturientes. Nesse sentido, “first wave feminists’ efforts to
transform childbirth were less a campaign for drugs than for responsive and
respectful medicine, expanded choices in childbirth, and control over one’s body
and reproductive life” (Beckett, 2005: 253).
A autora aponta ainda que recentemente um pequeno grupo de feministas,
em resposta aos movimentos internacionais em favor da desmedicalização do
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parto – do qual o movimento pela “humanização”, no Brasil, é apenas um
exemplo – manifestou preocupação com a tendência em celebrar as capacidades
reprodutivas femininas e, dessa forma, inverter as categorias através das quais as
mulheres foram historicamente desqualificadas. Para elas, deveria-se romper e
desestabilizar essas construções hierárquicas.
No que se refere ao uso da tecnologia, as críticas se direcionam
principalmente ao fato de que as mulheres podem considerar que as intervenções
obstétricas são positivas e até mesmo “empoderadoras”. Assim, argumenta-se
que: “women’s choice/positive experience of high-tech births confirms that
technology is not inherently male and can serve women’s needs and purposes”
(Beckett, 2005: 259).
Outro aspecto apontado pela crítica feminista incide sobre a questão da
dor. Beckett (2005) aponta que Nina Shapiro (1998) considera curioso que
movimentos supostamente feministas insistam para que as mulheres sintam dor.
Já Margaret Talbot (1999), também citada pela autora, argumenta que os
divulgadores do parto “natural” não vêem punição moral na dor, mas, por outro
lado, enxergam superioridade moral em rejeitar o uso de medicação para seu
alívio, o que vem combinado a uma visão “romântica” do papel de mãe e de
reprodutora, como o aponta Beckett (2005):
43
“The idea that women do (or should) savour, enjoy, or feel empowered by the
experience of labour and delivery, they argue, romanticizes women’s roles as
life-bearers and mothers, and assumes an emotional and physical reality (or posits
an emotional and physical norm) that does not exist for many” (Beckett, 2005:
260).
Nesse sentido, as críticas feministas direcionam-se ao que consideram uma
excessiva valorização do parto no ciclo de vida feminino, na medida em que este
evento seria percebido pelos adeptos da desmedicalização como um momento em
que as mulheres são mais autenticamente, ou “naturalmente”, mulheres, em
sintonia com seu destino biológico21.
Como é possível notar, os movimentos em favor da desmedicalização do
parto – no qual se insere, no contexto brasileiro, o da “humanização” – ao mesmo
tempo em que mantêm estreitos vínculos com o feminismo, sendo várias de suas
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reivindicações direcionadas a garantir a autonomia das mulheres no processo de
parturição, é também alvo de duras críticas por parte de algumas de suas
representantes. Na realidade, a medicalização do parto, como foi possível notar a
partir das reivindicações feministas do início do século XX, pode ser interpretada
de diversas maneiras: tanto como uma tomada de controle sobre o corpo feminino
por parte dos médicos, como argumentam os adeptos da “humanização”, mas
também seu oposto, isto é, como um exercício de autonomia das próprias
mulheres.
Nesse sentido o estudo de Davis-Floyd (1994), com parturientes de
camadas médias nos EUA que fizeram a opção tanto pelo parto “natural” quanto
pelo parto “tecnocrático”, parece esclarecedor. De acordo com a autora, as
mulheres de ambos os grupos escolheram e usaram seus partos de forma
“empoderadora”. Esse tipo de análise, destacou Martin (2006), tira a atenção do
tipo de parto per si e a coloca sobre a subjetividade da mulher: seu senso de
escolha, poder e controle no que se refere ao parto.
21
O argumento do “feminismo da diferença sexual”, corrente que busca se contrapôr a essa visão e
que aparentemente tem inspirado as mulheres de camadas médias, será explorado no capítulo 4.
44
2.2.2.
Medicina Baseada em Evidências e “Recomendações da OMS”
Segundo dados de 2004, médicos e enfermeiras correspondiam a 66% dos
259 membros22 da ReHuNa e muitos deles eram profissionais assalariados,
ligados à área de saúde pública. Este grupo, segundo Tornquist (2004), veio a
desempenhar um importante papel na atenção dispensada pelo movimento à
questão da saúde coletiva, uma dimensão que estava ausente entre os adeptos do
parto “natural” na década de 1980 (Salem, 2007, Almeida, 1987).
Os profissionais dessas áreas integram, de acordo com a classificação
sugerida pela autora, o que se poderia chamar de “vertente biomédica” do
movimento23, o que explica a importância atribuída à Medicina Baseada em
Evidências (MBE), bem como às recomendações para o parto “normal”
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elaboradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as quais são feitas
referência, mais de uma vez, na “Carta de Campinas”, redigida no ato de fundação
da ReHuNa.
De acordo com Diniz (2005), em 1979, proclamado pelas Nações Unidas
como o Ano Internacional da Criança, foi criado um Comitê Europeu com o
intuito de investigar as causas da morbimortalidade perinatal e materna no velho
continente, bem como contribuir para sua redução. O grupo era formado
inicialmente por profissionais de saúde e epidemiologistas, aos quais se juntaram
também, em um segundo momento, sociólogos, parteiras (midwives) e usuárias
dos sistemas de saúde. Após a conclusão da iniciativa e com apoio da OMS,
vários grupos de trabalho foram formados, com o objetivo de sistematizar os
estudos direcionados à avaliação de critérios como “eficácia” e “segurança” na
assistência à gravidez, ao parto e ao puerpério. Até então, segundo Rattner (2009),
a maior parte das práticas no atendimento ao parto eram adotadas à medida que
22
Destes, 214 são mulheres e apenas 45 são homens. Além de médicos e enfermeiras, também
integram o movimento, em número bem menos expressivo, psicólogos/psiquiatras (8%),
terapeutas corporais (3%), fonoaudiólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e dentistas (3,1%),
cientistas sociais (2,7%), parteiras tradicionais (1,9%), bem como auxiliares e técnicos de
enfermagem (1,5%). Fonte: Tornquist (2004).
23
Tornquist (2004) esclarece que “a aglutinação dos diversos sentidos da humanização em duas
vertentes, a biomédica e a alternativa, obedece a um procedimento heurístico, tomando-se cada
uma delas como um tipo-ideal, não estando, necessariamente, encarnada em pessoas ou discursos.
Na realidade empírica, há um processo mais fluido, em que pessoas, discursos e práticas circulam,
ainda que haja pontos, relativamente, fixos que permitam identificar a predominância de um viés
ou outro” (2004: 191).
45
iam sendo criadas, não havendo critérios para sua avaliação. Tinha início, nesse
momento, uma colaboração internacional que daria os primeiros passos no que
viria a se constituir como o movimento pela Medicina Baseada em Evidências
(MBE).
Com uma inspiração inicial fortemente progressista, Diniz (2005) destaca
que o grupo apontou, através de estudos sistemáticos, “as contradições e a
distância entre as evidências sobre efetividade e segurança, e a organização das
práticas” (Diniz, 2005: 630). Isto é, os estudos demonstravam que o emprego
rotineiro de tecnologia no parto se revelava, na maioria das vezes, inapropriado e
prejudicial ao processo de parturição, o que contribuiu para que se disseminasse
dentro do movimento pela “humanização” a idéia, inicialmente proposta por
Davis-Floyd (2003), de que a técnica seria empregada muito mais como um ritual
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ou como uma tradição, do que propriamente em razão de sua eficiência ou
necessidade.
A partir dos resultados apontados por essa colaboração internacional, a
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em parceria com os escritórios
regionais da OMS na Europa e nas Américas, realizaram em 1985 uma
conferência sobre “tecnologia apropriada no parto”, na cidade de Fortaleza. O
encontro é considerado um marco pelos adeptos do movimento pela
“humanização” no Brasil e dele resultou a “Carta de Fortaleza” – nome que
possivelmente serviu de inspiração ao texto elaborado no ato de fundação da
ReHuNa. O documento sugeria uma série de práticas que, na década de 1990,
passaram a ser chamadas de “humanizadas” 24.
O texto recomendava a liberdade de movimentos e posição durante o
processo de parturição, a presença de acompanhantes, a eliminação da lavagem
intestinal e da raspagem dos pelos pubianos25, bem como a abolição do uso de
rotina da episiotomia e de medicamentos para alívio da dor e indução do parto.
Além disso, afirmava que as mulheres deveriam participar do processo de decisão
24
É importante destacar que muitas dessas orientações já vinham sendo implementadas por
profissionais críticos ao modelo hegemônico de parturição, que passaram a encontrar no
documento um respaldo científico para sua forma de atuação, até então rotulada de “alternativa”.
25
Práticas correntes naquela época, que tinham como objetivo “limpar” ou “higienizar” o corpo
feminino que estava em vias de dar à luz.
46
relativo ao parto e que a assistência ao parto “normal” deveria ser conduzida
primordialmente por parteiras ou enfermeiras. Por fim, argumentava que as
menores taxas de mortalidade perinatal encontravam-se nos países que mantinham
índices de cesárea abaixo de 10%, para então recomendar que as taxas de parto
cirúrgico não deveriam ultrapassar os 15% (WHO, 1985).
O documento foi publicado na Revista Lancet, reconhecida publicação na
área médica, e, segundo Wagner (1994), foi altamente contestado por entidades
médicas européias, ao mesmo tempo em que foi recebido de forma muito positiva
por organizações de mulheres e grupos de defesa do consumidor ao redor do
mundo.
Em 1993, a colaboração internacional que dedicava-se a sistematizar os
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estudos sobre a “eficácia” e “segurança” das práticas médicas relativas ao préparto, parto e puerpério publicou uma revisão, a partir da compilação de 40 mil
estudos, incluindo 275 práticas de assistência perinatal (Diniz, 2005). Três anos
depois uma síntese desse trabalho foi publicada pela OMS, no que se
convencionou chamar de “Recomendações da OMS”. O documento incluía as
orientações já feitas na “Carta de Fortaleza”, além de agregar outras, de modo
mais detalhado, considerando como “condutas que são claramente úteis e que
deveriam ser encorajadas”, por exemplo, a realização de plano de parto 26, a oferta
de líquidos por via oral durante o parto e o respeito à escolha da mulher sobre o
local de parto.
A MBE e as “Recomendações da OMS” têm sido utilizadas pelos ativistas
como importantes recursos de legitimação do projeto pela “humanização” e
tiveram, segundo Diniz (2005), papel fundamental no processo de ressignificação
do parto:
“O corpo feminino, antes necessariamente carente de resgate, é redescrito como
apto a dar à luz, na grande maioria das vezes, sem necessidade de quaisquer
intervenções ou seqüelas previsíveis. O nascimento, antes um perigo para o bebê,
é redescrito como processo fisiológico necessário a transição (respiratória,
endócrina, imunológica) para a vida extra-uterina. O parto, antes por definição
um evento médico-cirúrgico de risco, deveria ser tratado com o devido respeito
como ‘experiência altamente pessoal, sexual e familiar’ (WHO, 1986). Os
26
Trata-se de um documento no qual a mulher informa quais procedimentos médicos ela está de
acordo quanto à sua realização durante e após o parto e quais prefere que sejam evitados.
47
familiares são convidados à cena do parto, especialmente os pais, antes relegados
ao papel passivo de espectadores. De evento medonho, o parto passa a inspirar
uma nova estética, na qual estão permitidos os elementos antes tidos como
indesejáveis – as dores, os genitais, os gemidos, a sexualidade, as emoções
intensas, as secreções, a imprevisibilidade, as marcas pessoais, o contato
corporal, os abraços” (Diniz, 2005: 630-631).
2.2.3.
Nova Era e movimentos libertários dos anos 1960
A doula Flora, que coordena o grupo de preparação para o parto na Zona
Sul e foi uma das fundadoras da ReHuNa, costuma dizer que tudo o que pratica há
30 anos, quando deu início às aulas de yoga para gestantes e ao trabalho com
terapias “naturais”, veio a ser confirmado na década de 1990 pelas
“Recomendações da OMS” e pela MBE. De fato, Tornquist (2004) afirma que
essa conciliação foi fundamental para a construção de uma identidade comum
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dentro do movimento, que congrega membros com visões de mundo bastante
diversas. Flora, por exemplo, integra a chamada vertente “alternativa” ou “neoespiritualista” do movimento (Tornquist, 2004), que possui forte influência da
Nova Era.
A Nova Era é um fenômeno heterogêneo e não se trata de um movimento
organizado, mas de um campo por onde atravessam discursos variados. Magnani
(2000) afirma que, a despeito da enorme diversidade desse fenômeno, é possível
identificar determinadas fontes, que permitem reconhecer a presença de princípios
doutrinários comuns. Nesse sentido, o autor ressalta que as religiões de origem
oriental configuram-se, de forma muito recorrente, como importantes referências,
delas derivando a idéia de imanência, bastante difundida entre os adeptos da Nova
Era. Por imanência compreende-se que predomina a visão de um princípio
superior ou divino integrado ao mundo e ao homem, em sintonia com a
perspectiva holística, não havendo uma divisão entre corpo, mente e espírito. Daí
resulta que, em substituição às idéias de pecado e culpa, presentes na crença
judaico-cristã ocidental, valoriza-se a busca pelo auto-aperfeiçoamento e atribuise grande importância ao conhecimento interior.
A valorização da natureza, outra característica marcante dos adeptos da
Nova Era, tem como inspiração, segundo Magnani (2000), as cosmologias
indígenas e os sistemas xamânicos tradicionais, que também despontam como
48
importantes referências. A natureza é sacralizada, do que, somando-se à idéia de
imanência, resulta a percepção de que todos os seres participam de um mesmo
movimento cósmico. O autor ressalta a combinação dessa visão com a de algumas
propostas ecológicas que “longe de considerarem a natureza como objeto de
dominação, por parte do homem, fundam-nos num mesmo processo mais amplo”
(2000: 38).
Magnani (2000) destaca como um aspecto fundamental do fenômeno da
Nova Era o fato de que os conteúdos são articulados e vivenciados sem a presença
de uma autoridade central, uma vez que considera-se que a autoridade reside, ao
fim e ao cabo, no interior de cada pessoa. Nesse sentido, afirma o autor, prevalece
o caráter autônomo, aberto e não dogmático, por oposição à hierarquia, que vigora
em muitas religiões institucionalizadas. Da mesma forma, enfatiza-se a intuição e
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o
conhecimento
direto,
em
detrimento
do
pensamento
considerado
excessivamente racional e cartesiano, predominante no Ocidente.
Como é possível notar, as semelhanças entre os discursos que atravessam
o fenômeno da Nova Era e o ideário da “humanização” são significativas: a visão
do corpo como integrado à mente; a valorização da natureza e do “natural”, daí
emanando uma quase sacralização do corpo, percebido como “perfeito” e
“inteligente”; a valorização da intuição, da sensibilidade e da busca por autoconhecimento, bem como a idéia de igualdade conformando as relações, por
oposição à hierarquia.
De maneira geral, os movimentos que surgem nos anos 1960 e 1970 no
cenário internacional – e do qual o fenômeno da Nova Era pode ser considerado
uma de suas manifestações –
encontram forte sintonia com o ideário da
“humanização”, que englobou boa parte das teses que nortearam o fenômeno do
“casal grávido”, investigado por Salem (2007) nos anos 1980. Em seu estudo, a
autora já chamara a atenção para as conexões éticas entre esse fenômeno e os
movimentos e idéias que irromperam nos anos 1960/1970.
Tratando especificamente da contracultura, Pereira (1986) enfatiza o
caráter libertário e questionador desse movimento, que colocava em xeque
aspectos centrais da cultura ocidental, como a racionalidade, a tecnologia e o
49
consumo, percebidos como privilegiados em detrimento dos aspectos sociais e
humanos. Da mesma forma, o movimento tecia uma forte crítica à “massificação”
e à “repressão” impostas pelo “sistema”, isto é, pelo “poder”, tendo como uma de
suas principais características a afirmação da individualidade. De acordo com
Pereira (1986), a ênfase do movimento contracultural, bem como de outros que
lhe antecederam, como é o caso do fenômeno beatnik, nos anos 1950, incidia não
apenas sobre a busca por liberdade, mas fundamentalmente sobre a busca por
prazer.
Salem (2007), procurando contextualizar o fenômeno do “casal grávido”,
destacou a prevalência assumida pelo indivíduo e pelo pessoal nos movimentos
que eclodiram na conjuntura dos anos 1960 e 1970, observando que a sociedade
era representada como redutível aos sujeitos, e, nesse sentido, a normatividade e o
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poder, de maneira geral, eram vistos de forma negativa e cerceadora. “[Nos anos
60] o regime ideal do self é o da liberação – seja das garras do poder ou de
constrangimentos sociais nefastos”, afirma a autora (2007: 83), acrescentando que
o questionamento radical a autoridades constituídas revelou-se uma marca desse
período. De acordo com Salem (2007), são exemplos as propostas de pedagogia
antiautoritária e de antipsiquiatria e, de maneira mais ampla, as críticas tecidas à
medicina que sugeriam a expropriação e a violência do saber-poder contra os
sujeitos, tal como formuladas por Ivan Illich (1977).
Nesse contexto, passava a ganhar força a premissa de que uma verdadeira
revolução social, como a que era almejada por esses movimentos, “exig[ia], senão
confund[ia]-se com, transformações no campo das subjetividades individuais”
(Salem, 2007: 83), sendo a sexualidade, ou melhor, sua “liberação”, considerada
uma dimensão fundamental desse processo pessoal e, simultaneamente, político.
Com efeito, as mazelas da civilização industrial, como informa a autora, eram
percebidas como resultado da repressão sexual.
Sobre esse aspecto, Foucault (1980) chama a atenção para como na época
prevalecia “um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do
mundo, o anúncio de um novo dia e a promessa de uma certa felicidade, esta[vam]
ligados entre si”, para em seguida acrescentar que “o lirismo, a religiosidade que
acompanharam durante tanto tempo o projeto revolucionário [foram], nas
50
sociedades industriais e ocidentais, transferidas, pelo menos em boa parte, para o
sexo” (Foucault, 1980: 13).
Considerada um pressuposto para a “liberação”, a igualdade nas relações
constituía-se, segundo Salem (2007), em um importante pilar dos projetos
revolucionários, sendo percebida como condição necessária para a expressão da
espontaneidade, do “natural”, dos instintos, isto é, para a plena manifestação do
sujeito e de seus “desejos”. Para tanto, era necessário encontrar um equilíbrio, de
modo que as relações sociais igualitárias não chegassem a comprometer as
singularidades individuais, apontando para o sentido pluralista atribuído a essa
utopia. “É precisamente o direito às diferenças que elucida a repulsa às ambições
universalizantes das normas”, afirma Salem (2007: 87).
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As idéias difundidas nesse contexto parecem ter servido de inspiração às
teses dos médicos franceses Michel Odent e Frédérik Leboyer. Ambos foram
importantes referências para os adeptos do parto “natural” no Brasil, nos anos de
1970 e 1980, e continuam desfrutando de grande reconhecimento e prestígio no
movimento pela “humanização” do parto e do nascimento, em especial Odent.
Atualmente radicado em Londres e com uma vasta publicação sobre o tema, o
obstetra frequentemente visita o país, onde ministra palestras e participa de
congressos.
Antes de expor as teses de Leboyer e Odent, se buscará apresentar, de
forma sucinta, as idéias do médico britânico Grantly Dick-Read e do francês
Fernand Lamaze que, nos anos 1940 e 1950, estiveram entre os primeiros a
questionar o processo de medicalização do parto e a apresentar alternativas à
anestesia obstétrica. Dessa forma, procura-se traçar um breve panorama do que
seriam algumas iniciativas obstétricas dissidentes, exercício que também foi feito
por Salem (2007).
51
2.2.4.
Iniciativas obstétricas dissidentes
Década de 1950
Grantly Dick-Read
Durante palestra ministrada pela presidente da ReHuNa, no ano de 2012,
no Rio de Janeiro, diversas passagens do livro “Childbirth Without Fear”, do
obstetra britânico Grantly Dick-Read, foram citadas, sugerindo que as ideias
divulgadas pelo médico nos anos 1940 eram ainda hoje atuais.
Segundo Moscucci (2002), Dick-Read pode ser considerado o “pai
espiritual” do movimento pelo parto “natural”. Com uma abordagem que atentava
para a dimensão psicológica e cultural do parto, o médico procurava solucionar a
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questão da dor, que no contexto da Segunda Guerra Mundial era apontada pelas
teorias eugenistas como um dos motivos pelos quais as mulheres de camadas
médias tinham reduzido o tamanho de suas proles. Além disso, afirma a autora,
essa ideologia surgiu em parte como uma resposta conservadora à emancipação
feminina, que começava a ganhar terreno na Europa e nos EUA.
Dick-Read era um reformador social com grande interesse em medicina
preventiva e, ao mesmo tempo, um homem extremamente religioso que,
impulsionado pela fé evangélica, atribuía um significado espiritual à maternidade:
“Dick-Read believed that childbirth revealed God’s presence in the universe: it
was the task of science to render it explicit, by showing the laws of nature that
governed the process of birth” (Moscucci, 2002: 170). Esquivando-se das
interpretações mecânicas e materialistas, o médico desenvolveu, segundo a autora,
uma teoria que buscava explicar o processo de parturição a partir da integração do
corpo e da mente, do individual e do cultural, em sintonia com as propostas atuais.
O médico britânico se opunha à disseminação da anestesia baseando-se em
dois motivos. Primeiro, por acreditar que a medicalização, de forma indireta,
interferia no processo fisiológico e apresentava riscos ao parto. Segundo, porque a
52
droga impedia a mãe de estar consciente durante o parto, o que, em sua visão,
inviabilizava que construísse um vínculo emocional com o bebê27.
Em “Childbirth Without Fear” (2013), cuja primeira edição data de 1942,
Dick-Read chamou a atenção para a tendência, na época, a se aceitar toda nova
descoberta científica como a “última palavra”, ao passo em que a “simplicidade” e
o desvelamento das “grandes revelações” da natureza não eram tão bem
recebidos. A atenção do obstetra direcionava-se especialmente à questão da dor,
chamando a atenção para o fato de que, há várias gerações, o parto era aceito
como uma experiência perigosa e dolorosa. Nesse sentido, o livro se anunciava
como um primeiro passo na “cruzada” contra algumas práticas e crenças que,
segundo o autor, tiravam o brilho do “glorioso chamado”, em alusão à
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maternidade.
Na visão de Dick-Read, a dor não era inerente à parturição, mas estava
relacionada a atitudes e comportamentos culturais. Baseando-se na literatura
antropológica do final do século XIX, o autor construiu seu argumento tomando
como referência as experiências de mulheres provenientes de sociedades ditas
“primitivas”, o que o levou a afirmar que: “The higher the civilisation of a country
the more generally is pain accepted as a symptom of childbirth” (Dick-Read,
2013).
Segundo o médico britânico, nas sociedades “civilizadas” uma série de
fatores culturais conspiravam para distorcer o que ele considerava ser a
capacidade “natural” das mulheres de dar à luz sem sentir dor, o que gerava-lhes
medo e prejudicava o processo normal de parturição. O obstetra apresentava uma
explicação fisiológica: o medo levava a parturiente a tensionar o colo do útero,
que, no entanto, deveria se abrir para dar passagem ao feto. Assim, o medo,
somado à tensão, era, segundo ele, o que provocava a dor do parto. Dick-Read
nomeou esse processo de “ciclo medo-tensão-dor” – que, deve-se ressaltar, foi
27
Na época havia a prática, denominada “twilight sleep”, de aplicar na parturiente uma injeção de
morfina e escopolamina, que fazia com que a mulher perdesse completamente a consciência
durante o parto.
53
referido por algumas mulheres de camadas médias etnografadas, apontando para a
penetração das idéias do obstetra britânico entre os adeptos da “humanização”28.
A quebra do “ciclo medo-tensão-dor”, de acordo com Dick-Read,
dependia de um treinamento, a partir do qual as mulheres se informariam sobre o
processo fisiológico de parturição, bem como seriam instruídas sobre técnicas de
relaxamento e respiração. A efetividade do método, destaca Moscucci (2002),
dependia de um relacionamento baseado na confiança e na cooperação entre
médico e paciente.
A autora observa que as teses do médico, embora criticadas por seus
colegas, foram bem recebidas pelas mulheres e, na década de 1950, um grupo de
simpatizantes fundou a “Natural Childbirth Association”, com o objetivo de
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disseminar as idéias de Dick-Read. Segundo Moscucci (2002), o trabalho
desenvolvido pela associação relacionava a proposta de parto “natural” “with such
values as religious morality, improving the race, reinforcing family life, and reestablishing the Empire” (2002: 171).
Aos poucos, o método desenvolvido por Dick-Read perdeu terreno para a
técnica “psico-profilática” desenvolvida pelo obstetra francês Fernand Lamaze e,
em 1958, a própria associação filiou-se às idéias de Lamaze, o que também
ocorreu com outras organizações envolvidas com o tema. A partir daquele
momento e pelos 15 anos seguintes, afirmou Moscucci (2002), o Método Lamaze
figurou como a principal alternativa à anestesia obstétrica.
28
Sobre esse aspecto, deve-se destacar que na capa da última edição do livro “Childbirth Without
Fear”, re-lançado em 2013, consta uma frase da antropóloga e ativista britânica, Sheila Kitzinger,
na qual afirma: “Dick-Read remains an inspiration for the humanisation of childbirth”. As obras de
Kitzinger tiveram grande repercussão no Brasil, em especial na década de 1980, vindo suas teses a
servir de suporte para o movimento pelo parto “natural”, como informa Salem (2007). Além disso,
o prefácio do livro de Dick-Read, em sua última edição, foi escrito por Ina May Gaskin, parteira
americana que é considerada uma referência para o movimento pela “humanização” no Brasil. No
esteio do movimento hippie, em 1971 Gaskin fundou com seu marido uma comunidade no estado
de Tennessee (EUA), batizada de “The Farm”. Lá criou o “The Farm Midwifery Center”, uma das
primeiras casas de parto extra-hospitalares do país. A partir do exposto, pode-se dizer que o
obstetra britânico é considerado um “pioneiro”, a despeito das transformações pelas quais passou a
proposta ao longo dos anos, como se verá adiante.
54
Fernand Lamaze
Se Dick-Read pode ser considerado um conservador, o obstetra francês
Fernand Lamaze, por outro lado, era um simpatizante da esquerda, apesar de
nunca ter se filiado a um partido. Em 1947, Lamaze foi nomeado médico-chefe da
clínica que ficou conhecida como Les Bluets, em Paris, que pertencia à União
Sindical dos Trabalhadores da Metalurgia.
Em 1951, Lamaze participou de um Congresso Internacional de
Obstetrícia e Ginecologia, realizado em Paris, durante o qual o professor soviético
A. P. Nikolaev fez uma apresentação sobre o método psicoprofilático para o parto,
que ele e outros acadêmicos vinham desenvolvendo na URSS (Betolli, 2003,
Michaels, 2010a). O método buscava eliminar ou reduzir a dor do parto através de
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condicionamentos psicológicos, preparação física e educação, partindo do
pressuposto de que, na maioria dos casos, a dor do parto era resultado de um
condicionamento social, que levava as mulheres a antecipar e a programar a dor.
Baseando-se nas teorias de Pavlov, a intenção era educar as gestantes de forma a
permitir a criação de novos reflexos condicionados, que substituiriam os antigos,
como o informa Betolli (2003):
Le fondement théorique de la méthode se base sur les découvertes de Pavlov.
Pour lui, toute activité mentale est explicable par la formation de réflexes
conditionnés qui sont l’élément de base des activités psychiques plus complexes.
Toute mentalité est transformable par la création de nouveaux réflexes
conditionnés. L’éducation est, parmi d’autres, une forme de conditionnement”
(Betolli, 2003: 30).
Bem-impressionado com a exposição de Nikolaev, Lamaze viajou com
uma delegação de médicos franceses, juntamente com membros da Comissão
Nacional de Médicos Comunistas, afiliada ao Partido Comunista, para conhecer
os avanços na saúde pública e na medicina soviética. Não estava previsto no
roteiro da viagem, mas Lamaze insistiu para que pudesse presenciar um parto em
que fosse utilizado o método psicoprofilático e, com permissão das autoridades
russas, testemunhou o parto de uma mulher que deu à luz “sem dor e com
alegria”, segundo afirmou posteriormente em uma entrevista (Michaels, 2010a).
A experiência fez com que Lamaze, ao regressar à França, se empenhasse
na implementação e divulgação do método, que no país ficou conhecido como
55
“Parto Sem Dor” (PSD) e internacionalmente passou a ser chamado de “Método
Lamaze”. Michaels (2010a) observa que determinadas condições, no contexto da
Guerra Fria, tornaram a França extremamente receptiva ao programa. De maneira
sucinta, é possível dizer que a rápida expansão do método deveu-se em grande
medida ao apoio dispensado pelos administradores comunistas da clínica Les
Bluets e pelos membros do Sindicato dos Metalúrgicos, que reconheciam o valor
propagandístico do programa soviético, bem como a organizações de mulheres –
como a Unión de Femmes Françaises (UFF), vinculada ao Partido Comunista –,
que rapidamente aderiram e tiveram importante papel na divulgação do método.
Ao longo dos anos, o PSD ganhou grande popularidade, sendo os cursos de
preparação inclusive reembolsados pelo Seguro Social, a partir da aprovação pela
Assembléia Nacional de uma proposta apresentada pelo Partido Comunista
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Francês, em 1956.
Na prática, destaca Michaels (2010a), o método era quase igual ao
desenvolvido por Dick-Read no Reino Unido, ambos enfocando técnicas
respiratórias e aulas educativas com vistas a dissipar o que o médico britânico
denominou de “ciclo medo-tensão-dor”. A diferença residia no fato de que o PSD
atribuía maior importância ao aspecto físico, isto é, à transmissão de técnicas para
relaxamento muscular, enquanto o outro punha maior ênfase na preparação
psicológica. Dick-Read tentou por diversas vezes que as semelhanças entre os
métodos fossem publicamente reconhecidas e chegou a afirmar, durante um
encontro em 1959 no Reino Unido, que não existia um Método Lamaze: “It was
only a political method of converting women [to comunism] using [my] own
ideas” (apud Michaels, 2010 a: 1049).
De acordo com Betolli (2003), as aulas teóricas do PSD transmitiam
conhecimentos de anatomia, fisiologia e neurologia, enquanto as práticas
versavam sobre técnicas de respiração e auto-controle, que ensinavam a mulher
como se adaptar e reagir às diferentes etapas do trabalho de parto. Durante o parto
propriamente, uma equipe de profissionais, dentre eles o médico, ficava ao lado
da parturiente para lhe dar apoio psicológico e transmitir orientações, nunca
deixando a mulher sozinha. Além disso, como o observam Michaels (2010b) e
Betolli (2003), o método, em sua versão francesa, passou a estimular a
56
participação ativa do pai durante a gravidez e o parto29, abrindo caminho para as
demandas que, mais tarde, levariam à disseminação de sua presença na sala de
parto – assunto que será retomado adiante.
Analisando os depoimentos das mulheres que deram à luz na clínica Les
Bluets, Michaels (2010b) chama a atenção para como a capacidade de aparentar
auto-controle durante o parto era reconfortante para os pais que assistiam ao
nascimento de seus filhos e também para as próprias mulheres, na medida em que
o parto classificado como “calmo” – isto é, sem gritos – incorporava a experiência
de parto “digna” que elas almejavam. “No longer ‘something ugly and
disgusting’, labor became an opportunity for the parturient to demonstrate dignity
through her ability to use the power of her mind to conquer her physical
sensations” (2010b: 37). No depoimento de uma das parturientes, fica explícita a
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relação entre a manifestação da dor por meio dos gritos a um comportamento
animal, por ela reputado como negativo. A autora observa, nesse sentido, que
havia claramente um tabu no que se refere à vocalização da dor entre os
profissionais e as mulheres que divulgavam o PSD nos anos 1950.
Década de 1970
Nos anos 1970, com a introdução de novas tecnologias de monitoramento
do trabalho de parto (Moscucci, 2002) e como resultado da eclosão de uma série
de movimentos libertários, que colocaram em xeque a confiança na ciência e
questionaram o processo de medicalização, surgiram outras propostas
direcionadas ao processo de parturição, com enfoques bastante diversos das
anteriores. Se para Dick-Read e Lamaze, ainda que com interesses ideológicos
opostos, o objetivo era aplacar a dor do parto e incentivar o auto-controle da
mulher, na década de 1970 a atenção direcionou-se ao bebê e às práticas de
29
Segundo Michaels (2010b), uma motivação utilitária teria levado uma médica, seguidora do
método, a propor a Lamaze que as aulas de preparação na França também se estendessem ao pai:
“In a major, far-reaching innovation on Soviet practice, Dr. Annie Rolland hit upon the idea of
using husbands as what came to be called “coaches.” She served a rural population spread thinly
over difficult, mountainous terrain. Because of accessibility issues, it was imperative that the
husbands be prepared to assist their wives until Rolland could reach them. When she shared this
idea with her mentor, Dr. Lamaze, he integrated it into PPM practice at Les Bluets” (2010b: 37). É
importante destacar que a motivação utilitária apresentada pela médica não teria sido aceita por
Lamaze, e mesmo pelos casais, se já não houvesse uma abertura e predisposição naquele contexto
para integrar a presença paterna no parto, possivelmente associada ao fortalecimento da ideia de
família nuclear.
57
nascimento, como sugerem as teses de Frédérik Leboyer, e na liberação da mulher
dos “constrangimentos” sociais, em meio à valorização do corpo “natural” e
“instintivo”, tal como proposto por Michel Odent.
Frédérik Leboyer
Partindo da premissa de que, com a difusão do método desenvolvido por
Lamaze, o parto havia se tornado um evento prazeroso para a mulher, o obstetra
francês Frédérik Leboyer, na década de 1970, direcionou a atenção ao bebê,
buscando compreender a experiência a partir de sua perspectiva. Logo nas
primeiras páginas do livro “Nascer Sorrindo” – publicado pela primeira vez no
Brasil em 1974 e que, em 1988, encontrava-se em sua 12a edição –, uma imagem
parece resumir o argumento de Leboyer: enquanto a mãe, o pai e o médico
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sorriem olhando para o bebê que acaba de nascer, este chora, levando as mãos ao
rosto e sendo suspenso, de cabeça para baixo, pelo obstetra. “Todo mundo irradia
felicidade e contentamento. Todo mundo... menos a criança”, afirmou (1988: 24).
A principal premissa de Leboyer era de que o recém-nascido – visão que,
em algumas passagens do livro, se estende ao feto – era uma “pessoa”, com
direitos30, mas também com sentimentos e sensações, apontando para um
processo de psicologização, que ganhou terreno no Brasil nos anos 1980, quando
instaurou-se uma “cultura psicanalítica” nas camadas médias intelectualizadas (Lo
Bianco, 1985). Segundo o médico, na época prevalecia a idéia de que o recémnascido não ouvia, não enxergava e não sentia, o que contribuía para sua
objetificação, sendo seu choro interpretado como um sinal de que a “máquina”
estava em funcionamento. “Trata-se de uma pessoa que fala, mas que ninguém
escuta”, afirmou.
No livro, Leboyer deu grande ênfase à dimensão sensorial da experiência
do nascimento. Segundo o médico, tudo deveria ser minimizado, suavizado, para
reduzir a intensidade do evento, que seria por princípio avassalador e violento,
30
Singly (2007) observa que, na “segunda modernidade”, isto é, a partir dos anos 1960, a criança
alcançou uma individualização progressiva, que resultou em uma ampliação do reconhecimento de
seus direitos. O mesmo ocorreu com as mulheres, ou seja, com os “indivíduos menos
individualizados da primeira modernidade” (Singly, 2007: 174), discussão que será retomada no
capítulo 4.
58
sendo potencializado pelas práticas obstétricas convencionais, como a de
suspender o recém-nascido pelos pés, bater em seu bumbum para que chore,
colocar um holofote em seu rosto, cortar o cordão umbilical logo após o
nascimento, etc.
O obstetra chamou a atenção para a grande sensibilidade do recém-nascido
aos estímulos sensoriais e sugeriu que fosse tomada uma série de precauções para
não agredi-lo de forma visual, tátil ou sonora. Dessa forma, Leboyer propôs um
método, que previa, dentre outros aspectos, a penumbra na sala de parto, o
silêncio, a espera e a imobilidade, o que poderia, segundo ele, ser resumido em
uma palavra: “simplicidade”. A maneira como os pais e a equipe de assistência
deveriam se comportar foi detalhada, de forma minuciosa e prescritiva, como no
trecho em que o médico orientou as mães sobre como deveriam tocar seus filhos
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recém-nascidos: “as mãos não devem estar exaltadas, agitadas, tremendo de
emoção; o toque deve ser calmo, leve, as mãos imóveis sobre a criança, deve-se
apenas estar presente”.
De maneira geral, argumenta Leboyer, o objetivo de seu método era que o
ambiente extra-uterino se tornasse o mais próximo possível do uterino, em um
esforço para tornar o desconhecido conhecido. É interessante destacar que no caso
do PSD a intenção era a mesma, isto é, fazer com que as mulheres passassem a
conhecer a fisiologia do parto, para que perdessem o medo da experiência até
então desconhecida. Na proposta de Leboyer, que tem o recém-nascido como
foco, a dissipação do medo e da insegurança, sentimentos que seriam
“naturalmente” despertados no feto já durante o trabalho de parto, se daria por
meio da atenção à experiência sensorial, buscando torná-la o mais semelhante
possível nos diferentes ambientes.
No livro, cuja linguagem tem um tom poético, é patente a influência de
países orientais, como Índia e China, com citações de Lao Tsé e Tao Te Ching e o
reconhecimento, na dedicatória da obra, de que “sem Sw. e sem a Índia este livro
nunca teria sido escrito”. De fato, Leboyer visitou algumas vezes o país e
encantou-se com o hinduísmo, religião da qual a maioria dos indianos é adepta.
Em “Nascer Sorrindo”, o nascimento é descrito como um evento sagrado e os
bebês são percebidos como uma representação do divino, sendo comparados aos
59
santos: “Em ambos emana uma graça, uma Shakti, que circunda cada criança que
chega ao mundo” (1988: 130). Há ainda uma valorização da natureza, e são
constantes as referências e analogias às suas manifestações.
Salem (2007) destaca que ao mesmo tempo em que o Oriente emerge para
Leboyer como fonte de sabedoria – o que também transparece em outro livro do
médico, “Shantala: massagem oriental para bebês” – a civilização ocidental
desponta como seu contraponto negativo, pela “tecnologização” e a perda de afeto
que caracterizariam as relações entre as pessoas e que teriam colaborado para
tornar o nascimento um ato de violência contra o bebê.
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“Talvez tenhamos perdido o gosto pela simplicidade. Sim, é preciso tão pouco!
Nada de orçamentos caros, recursos eletrônicos, orgulhos da tecnologia,
brinquedos de crianças crescidas, tão furiosamente na moda. Nada disso”.
(Leboyer, 1988: 149)
Segundo Leboyer, para que a criança seja “poupada do terror” e seu
nascimento se torne um “instante encantado”, basta que a transição entre os
ambientes intra e extra-uterino ocorra de modo gradual, o que requer “paciência”,
“modéstia”, “silêncio”, “atenção”, “preocupação com o outro” e “muito amor”
(1988: 149).
Um último aspecto que, para os propósitos desse estudo, merece ser
destacado refere-se ao fato de que a presença do pai do bebê no parto é tratada por
Leboyer, que escreveu o livro na década de 1970, como certa e inquestionável. No
Brasil, Salem (2007) pontua que o fenômeno do “casal grávido”, que previa a
incorporação do homem na gravidez e no parto, teve início na década de 1980 e,
creio ser possível afirmar que hoje, independentemente da adesão à proposta de
parto “natural” ou “humanizado”, nas camadas médias e altas a presença do pai na
sala de parto tornou-se a regra.
Leavitt (2009), pesquisando o contexto norte-americano, afirmou que, nos
anos 1950 e 1960, os homens começaram a participar de programas de educação
pré-natal que tinham como inspiração as ideias do obstetra francês Fernand
Lamaze. Tais programas desmitificavam o processo de parturição, ensinavam
técnicas para alívio da dor e estimulavam os homens a assumir o papel de coaches
(treinadores) de suas mulheres durante o parto. No entanto, foi apenas nos anos
60
1970 e 1980 que a presença do pai na sala de parto disseminou-se e, segundo
Leavitt (2009), para isso alguns fatores foram fundamentais, como a ampliação
dos programas de educação pré-natal e a pressão exercida pelo movimento de
mulheres e também por ativistas do movimento pelo parto “natural”. A autora
observa, contudo, que as mudanças nas políticas hospitalares que possibilitaram a
entrada do pai na cena do parto não se deram de modo uniforme. Os casais que
compunham as camadas médias e altas e que podiam pagar para ter quartos
privados foram os primeiros a ter acesso à sala de parto, ficando inicialmente
excluídos os afro-americanos e aqueles provenientes de camadas populares, que
apenas tardiamente tiveram autorização para fazê-lo.
Nesse aspecto, o contexto brasileiro apresenta semelhanças, isto é, o
acesso à sala de parto foi franqueado primeiro aos casais de camadas médias e
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altas, como atesta o estudo de Salem (2007). A diferença, porém, é que ainda hoje
a maioria dos hospitais e maternidades públicos, que atendem principalmente as
camadas populares, não permite a presença de acompanhantes do sexo masculino,
sob a alegação de que as enfermarias são coletivas. As mudanças de infraestrutura que seriam necessárias não foram feitas a despeito da existência de uma
lei federal31, que desde 2005 prevê que os serviços de saúde do SUS são
obrigados a permitir a presença de um acompanhante, de escolha da parturiente,
durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Soma-se a isso o fato de
que, nas camadas populares, gravidez e parto muitas vezes são vistos como
“assuntos de mulheres”, o que será explorado no próximo capítulo. A seguir, se
buscará apontar a visão do médico francês Michel Odent, importante referência
para o movimento pela “humanização” do parto e do nascimento, acerca da
presença do pai no parto, bem como outros fundamentos de suas teses.
Michel Odent
Em um artigo publicado em um jornal britânico de grande circulação, o
médico francês Michel Odent (2008) afirmou que considera a presença do pai não
apenas desnecessária, mas prejudicial ao trabalho de parto, uma vez que, segundo
31
Lei número 11.108, cuja formulação foi proposta e incentivada pela ReHuNa. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11108.htm Último acesso em
21/01/2013.
61
o obstetra, em razão da presença masculina o processo tenderia a tornar-se mais
longo, doloroso e possivelmente resultar em um maior número de intervenções.
Para o obstetra, a participação do pai no parto tornou-se uma “doutrina” e poucas
pessoas ousam hoje questioná-la, o que ele se permite fazer baseando-se em sua
longa experiência acompanhando partos.
Com essa afirmação o médico solucionou o dilema apontado por Salem
(2007) nos anos 1980, quando a autora, ao discorrer sobre suas teses, observou
uma tensão entre a visão do parto como uma experiência de e entre mulheres e
aquela que reconhecia o nascimento como um “assunto de família”. No artigo, o
médico esclareceu que por muito tempo não se sentiu à vontade para falar
abertamente acerca do assunto, sobre o qual confessou ter reservas desde os anos
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1970.
O posicionamento do obstetra no que concerne ao tema divide opiniões
dentro do movimento pela “humanização” do parto e do nascimento no Brasil,
que, de maneira geral, tende a valorizar e a incentivar a presença do pai do bebê,
englobando um importante preceito do movimento pelo parto “natural” dos anos
1980, que resultou no fenômeno do “casal grávido” (Salem, 2007). Ainda assim,
Odent desfruta de grande reconhecimento entre as adeptas da “humanização” e os
membros da ReHuNa32, sendo, de maneira geral, bem aceito tanto pela vertente
“biomédica”, quanto pela “alternativa”, tendo em vista que, como observou
Tornquist (2004), “[Michel Odent é] um cientista que chega às mesmas
conclusões atingidas pelos alternativos por uma via espiritual e holística” (2004:
127).
Odent foi discípulo de Leboyer33 e coordenou, entre os anos de 1962 e
1985, a maternidade do Hospital de Pithiviers, na França, que veio a tornar-se seu
laboratório. A sala de parto da maternidade, batizada de “sala selvagem”, tinha
32
Prova disso é o fato de uma frase sua ter sido escolhida para dar início ao texto da “Carta de
Campinas”: “Para mudar a vida, é preciso primeiro mudar a forma de nascer”.
33
Odent nutre uma preocupação em comum com o “mestre” no que se refere ao futuro da
civilização. Ambos acreditam que a forma de nascer interfere, de maneira quase determinista, no
comportamento dos indivíduos a longo prazo. Em “Nascer Sorrindo”, Leboyer advertira que as
marcas deixadas pelo “nascimento violento” seriam visíveis, “nas loucuras, torturas e prisões”
(1988: 43). Apoiando-se na ciência, Odent criou um centro de estudos em Londres, chamado de
Primal Health Research Institute, que pretende avaliar os efeitos dos primeiros anos de vida,
incluindo a gestação e a experiência do parto, sobre o comportamento dos indivíduos.
62
uma ambientação particular, sem o mobiliário e os equipamentos médicos
habituais, apenas um estrado no chão, coberto com almofadas coloridas. No
cômodo contíguo, havia uma piscina, rasa, porém ampla, que possibilitava que a
mulher desse à luz na água, uma inovação para a época.
A partir da crítica à posição dorsal – considerada por Odent (1981)
desfavorável do ponto de vista mecânico e representativa da passividade feminina
frente ao médico – a sala foi criada com vistas a permitir que a parturiente
pudesse se movimentar durante o trabalho de parto e ter liberdade para dar à luz
na posição que achasse mais conveniente. No livro “Gênese do homem ecológico:
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Mudar a vida, mudar o nascimento. O instinto reencontrado”, Odent explica que:
“o adjetivo selvagem indica (...) um lugar que favorece os comportamentos
regressivos, que permite aceitar que se ultrapasse tudo o que foi adquirido por
nossa memória cultural, que permite a expressão de uma memória inscrita nas
estruturas cerebrais mais profundas, quer dizer, a expressão de uma memória précultural, ou mesmo animal” (1981:81).
Com efeito, a referência aos instintos é uma constante nas obras de Michel
Odent, que descreve o parto a partir de uma visão estritamente fisiológica34, na
qual a cultura é claramente apresentada como um obstáculo a ser transposto. De
acordo com Odent (2001), o trabalho de parto, quando transcorre sem
intervenções, é impulsionado por uma cadeia sutil de hormônios, que vão
acionando um ao outro e conduzindo o processo que, em última instância, seria
guiado pelo próprio corpo. Tal processo, afirma Odent (2001), seria comandado
pelo “sistema límbico”, também chamado de “estrutura primitiva do cérebro”, que
os humanos têm em comum com os demais mamíferos. O “sistema límbico”,
aponta o médico, seria a parte do cérebro responsável por comandar certos
comportamentos necessários à sobrevivência de todos mamíferos. Noutras
palavras, por comandar os instintos35.
34
Não se deve esquecer, como nos recorda Le Breton (1999), que o saber biomédico, considerado
o saber oficial do corpo nas sociedades ocidentais, é uma representação do corpo entre outras.
Nesse sentido, “el cuerpo es una realidad que cambia de una sociedad a otra, las imágenes que lo
definen, los sistemas de conocimiento que buscan elucidar su naturaleza, los ritos que lo
representan socialmente, los resultados que alcanza, son sorprendentemente variados, incluso
contradictorios” (1999: 67).
35
Odent afirma que, atualmente, o termo “instinto” tem sido considerado inadequado para se
referir aos humanos, o que considera surpreendente, “since homo sapiens is equipped with
subneocortical neuro-endocrine structures pretty similar to those of all mammals” (2009: 697).
63
De acordo com Odent (2001), esses comportamentos são regidos por uma
cascata de hormônios e neurotransmissores, que, no entanto, podem ter sua
secreção prejudicada pela ativação do neocortex, região do cérebro que evoluiu
mais recentemente nos humanos. Também chamado de “cérebro racional”, o
neocortex é a parte do cérebro responsável por produzir a linguagem simbólica e
pelo desempenho de tarefas intelectuais.
Segundo Odent (2001), a não ativação do neocortex permitiria à
parturiente ir temporariamente para “outro planeta”, isto é, entrar em um “estado
alterado de consciência”. Segundo o médico, este estado seria desejável para o
“bom” andamento do trabalho de parto, o que, em sua visão, significa dizer que
este transcorreu sem a necessidade de procedimentos médicos. A indesejada
ativação do neocortex ocorreria por meio de estímulos externos (como luz forte,
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linguagem, percepção de que se está sendo observada, frio, etc.), que levariam a
mulher a agir racionalmente em um momento em que, na visão do médico, o ideal
seria que ela se tornasse “instintivamente responsiva”.
When a labouring woman is ‘on another planet’, this means that the activity of
her neocortex is reduced. This reduction of the activity of the neocortex is an
essential aspect of birth physiology among humans. This aspect of human birth
physiology implies that one of the basic needs of labouring women is to be
protected against any sort of neocortical stimulation. (…) Language, particularly
rational language is one such factor. When we communicate with language we
process what we perceive with our neocortex.36
De acordo com Odent (2001), tanto no sexo quanto no parto, situações em
que haveria a liberação dos mesmos hormônios, especialmente a ocitocina, por ele
chamada de “hormônio do amor”37, seria recomendável uma ambientação
semelhante àquela proposta por Leboyer, qual seja:
penumbra, silêncio,
privacidade, temperatura amena. Outro fator importante seria a mulher se sentir
segura e relaxada. Dessa forma, o neocortex não teria sua atividade estimulada,
36
http://www.wombecology.com/physiological.html
Nas obras de Odent as emoções são frequentemente descritas como tendo sua origem no
funcionamento do corpo, em especial a partir da atuação dos hormônios, ignorando o contexto
social no qual o sujeito está inserido. Esta visão fica explícita em diversas passagens, como
naquela reproduzida a seguir: “Immediately after birth, oxytocin – an altruistic hormone – and
prolactin – a mothering hormone – complement each other” (2001: S 42). Os estudos etológicos
são uma importante referência para o obstetra, que parece, em determinados momentos,
“humanizar” os resultados apontados por essas pesquisas. Um exemplo seria aquele, descrito por
ele, de ratos que, ao receberem uma infusão de sangue de outro animal de sua espécie que deu à
luz há poucas horas, passariam a adotar comportamentos “maternais”.
37
64
permitindo que o “sistema límbico” pudesse atuar e levar a mulher a um “estado
alterado de consciência”, que resultaria na expressão, “livre” e “singular”, do
corpo-em-trabalho-de-parto. Um crítico do termo parto “humanizado”, Odent
costuma dizer que o parto deveria, na realidade, ser “animalizado”, sugerindo um
“re-encantamento da natureza” e um achatamento das diferenças que nega
qualquer hierarquia, abrindo caminho para uma “naturalização do humano” ou
para uma “humanização da natureza”, como propõem Russo e Ponciano (2002).
De acordo com as autoras, o “re-encantamento” da natureza encontra
correspondência no radical desencantamento das qualidades distintivas do ser
humano.
De fato, predomina na visão de Odent, como parte de um ideário
antimedical mais amplo, uma valorização dos instintos e da natureza, por
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oposição à cultura, que é vista como potencialmente capaz de contaminar e
comprometer o bom andamento do parto. No trecho anteriormente transcrito fica
evidente que, para Odent, cabe aos que prestam assistência à mulher protegê-la
das interferências “danosas” que o pensamento racional – manifesto
especialmente via linguagem – poderia infringir ao processo “natural” e
fisiológico de parturição. Não por acaso, a linguagem simbólica é justamente o
que difere o humano dos demais mamíferos, o que explicaria o fato de esta ser
vista por Odent como uma das grandes ameaças ao processo, uma vez que,
segundo ele, o que a parturiente deve almejar é exatamente aceder a um momento
“pré-cultural” (1981: 08), igualando-se aos demais mamíferos.
Com frequência, a experiência de parturição de animais é tomada como
exemplo por ativistas e profissionais afinados com o ideário, especialmente por
aqueles mais influenciados pelas teses de Odent. Estes costumam recordar que,
entre os animais, é comum que a fêmea que está prestes a dar à luz procure um
ambiente tranquilo e protegido para parir – o que, segundo Odent (2009),
costumava ser feito pelas mulheres nas sociedades ágrafas e pré-agrícolas, porém,
foi abandonado como resultado do processo de “socialização do parto”38.
38
Sobre esse aspecto, alguns autores, dentre eles Woodward (2005) e Hobsbawn e Ranger (1997)
chamam a atenção para como a identificação com o passado, que é reinventado e reconstruído,
geralmente busca responder a uma demanda política atual.
65
O obstetra argumenta que, “a despeito de, por milhares de anos, ter havido
um controle cultural sobre o parto, que cada vez mais nega e ignora as
necessidades mamíferas básicas da mulher em trabalho de parto e do recémnascido” (Odent, 2009: 698), até os anos 1950 as parturientes continuavam dando
à luz em ambientes predominantemente femininos – em casa e com o auxílio de
parteiras –, considerados por ele como sendo os mais adequados. Com efeito, o
preceito do parto como um evento feminino é um importante pilar das teses de
Odent, para quem este deveria ser preferencialmente acompanhado por parteiras,
por acreditar que as mulheres têm uma sensibilidade mais instintiva e afetiva, que
favoreceria a conexão com a parturiente.
No entanto, na segunda metade do século XX, de acordo com Odent, a
“atmosfera do parto masculinizou-se”, o que atribui a três fatores: 1) ao aumento
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do número de obstetras homens; 2) à presença do pai na cena do parto 39 e 3) ao
uso cada vez mais freqüente de tecnologia, considerada por ele um símbolo
masculino. A associação feita por Odent entre o masculino e o tecnológico sugere,
por oposição, que as mulheres seriam consideradas mais próximas da natureza do
que os homens, percepção que parece predominar nas diversas culturas, como
afirma Ortner (1974). De fato, esse parece ser um pressuposto de Odent, mas com
uma importante diferença: se a natureza, no seu sentido mais generalizado, tende a
ser culturalmente desvalorizada, isto é, vista por cada cultura como sendo de uma
ordem inferior a si própria, como afirma Ortner (1974), nas teses do obstetra
francês observa-se o inverso, isto é, há uma valorização da natureza e do
feminino.
Além do processo de “masculinização”, outro fator, na visão de Odent,
teria interferido negativamente sobre o parto na segunda metade do século XX,
qual seja: o surgimento do método do Parto Sem Dor (PSD), desenvolvido por
Fernand Lamaze. Na avaliação de Odent, o PSD revelou-se “uma forma
sofisticada e sem precedentes de controle” do parto, a partir da proposta de
“ensinar as mulheres como dar à luz” (Odent, 2009: 698).
39
Para Odent (2008), a presença do pai no parto seria prejudicial em grande medida pelo interesse
masculino em “compartilhar a experiência”, que impediria que a parturiente ficasse recolhida e
quieta. Segundo Odent (2008), quando o parceiro oferece palavras de apoio e orienta a mulher, ele
impede que ela se recolha em seu “mundo particular” e passe a agir instintivamente.
66
Uma das grandes críticas de Odent a Lamaze refere-se ao fato de este ter
desenvolvido uma teoria que propõe uma solução “cultural” para enfrentar a dor
do parto, isto é, através da educação e da orientação transmitida à parturiente.
Como já referido, a cultura é vista por Odent justamente como um entrave, um
obstáculo, estando na “Natureza” (sic) o caminho para se vivenciar um parto
“fácil” e sem complicações, a partir da possibilidade da mulher agir com a parte
“primitiva” do cérebro e esquecer todo o aprendizado socialmente adquirido.
Odent, como já o notara Salem (2007), rejeita todo e qualquer conteúdo
prescritivo, adotando como premissa a supremacia do instinto (ou do “natural”).
Seguindo esse raciocínio, o médico mostra-se contrário à presença de
vários especialistas na cena do parto – como assistentes, coaches (treinadores),
fisioterapeutas, terapeutas corporais, psicólogos, etc –, que teriam surgido sob
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influência do método desenvolvido por Lamaze, com o objetivo de auxiliar a
eliminar a dor e o medo por meio de métodos não-farmacológicos. “The
conditioning of new generations of mothers was that women were not able to give
birth without the guidance of an expert” (2009: 699). Recentemente, teria
contribuído para reforçar essa percepção a divulgação de inúmeros vídeos de
parto – considerados por ele uma “epidemia” – que exibem a mulher dando à luz
enquanto é assistida por três ou quatro pessoas, dentre elas o pai do bebê.
A
crítica
tecida
pelo
médico
aos
especialistas,
contudo,
não
necessariamente redunda em sua total desqualificação. Odent acredita que uma
parteira experiente, definida por ele como “motherly, low profile and silent”
(2009: 699), pode substituir a figura materna e transmitir segurança à mulher, o
que contribuiria para que o processo fisiológico transcorresse de forma adequada.
De acordo com Odent, uma das principais atribuições da parteira – a qual, deve-se
destacar, não está relacionada a seus conhecimentos técnicos – seria garantir que a
mulher fosse protegida de estímulos que pudessem fazê-la agir racionalmente, por
meio da ativação do neo-córtex.
No Brasil, como bem observa Tornquist (2004), o posicionamento de
Odent rendeu-lhe um público cativo de enfermeiras obstetras, que atualmente
disputam espaço com os médicos no campo da Obstetrícia. No entanto, correndo
o risco de desagradá-las, em alguns momentos o médico radicaliza seu
67
posicionamento, afirmando que a situação “ideal”, ainda que excepcionalmente
rara, seria a parturiente estar em completa privacidade e não ter ninguém a
observando. Em um artigo publicado em 2008, Odent revelou que essa foi a
experiência de sua companheira, ao dar à luz seu último filho, em 1985:
“At the exact moment our son arrived in the world, the midwife was on her way
down the street and I, having made my excuses realising he was about to be born,
was fiddling with the thermostat on the central heating boiler downstairs. My
partner did not know, but I had given her the exceptionally rare, but ideal
situation in which to give birth: she felt secure, she knew the midwife was
minutes away and I was downstairs, yet she had complete privacy and no one
was watching her”. (2008: 28).
A visão exposta por Odent de que o parto “ideal” é aquele em que a
mulher dá à luz sozinha40
41
, parece apontar para uma radicalização do sentido
anti-medical, já presente em suas teses. Ao sobrevalorizar a fisiologia em
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detrimento de outros aspectos, o médico chega à conclusão de que o corpo deve,
idealmente, conduzir o processo de parturição. Nesse sentido, é como se Odent
buscasse isolar o corpo humano, parecendo colocar o sujeito entre parênteses e
fazendo de seu corpo uma “quase-pessoa” (Le Breton, 2007), desprezando as
dimensões pessoal, social e cultural. De fato, observa Le Breton (2007), na
representação anátomo-fisiológica tudo se passa como se fosse necessário escapar
do contexto para entregar-se ao “absoluto”.
Como é possível notar, os dualismos que marcam a constituição do sujeito
moderno, isto é, corpo e mente, emoção e razão, natureza e cultura, não são
superados, pelo contrário, são enfatizados, porém, com uma atribuição de valor
que inverte os pólos da equação. Se a mente, a razão e a cultura – e, por que não,
o masculino? – foram supervalorizados na Modernidade, em detrimento do corpo,
das emoções, da natureza – e do feminino –, nas teses de Odent procede
justamente o oposto. Isto é, nelas há uma valorização do “natural” e do instintivo,
sendo o corpo observado exclusivamente através das lentes da fisiologia – área de
conhecimento
40
que, não deve-se perder de vista, “teve uma importância no
Deve-se mencionar que, atualmente, há mulheres que têm feito a opção pelo que chamam de
“parto desassistido planejado” (movimento que nos EUA tem sido nomeado de “unassisted birth”,
“free birth” ou “DIY birth”, sigla para “do it yourself”), no qual dão à luz sozinhas ou em
companhia de alguém de sua confiança, porém sem formação técnica para atendimento ao parto.
41
O parto solitário soa quase como uma metáfora da “vitória” da biologia e da natureza, isto é, do
corpo “natural” – segundo Ortega uma “ficção criada pela biomedicina ocidental” (Ortega, 2008:
204) – sobre a cultura.
68
desenvolvimento do biopoder, no século XIX, e desempenhou um papel decisivo
como discurso de normalização e disciplinamento” (Ortega, 2008: 213).
Na interpretação de Odent, as dificuldades no parto seriam, nesse sentido,
associadas à racionalização do processo e aos entraves impostos pela cultura,
devendo a parturiente “liberar-se” das “amarras” – intelectuais, sociais e culturais
– para dar à luz de modo “natural”. Quando realizado dessa forma o parto teria o
potencial de resultar em uma experiência prazerosa para a mulher, em
consonância com os projetos de transformação social revolucionária dos anos
1960, que explicitavam a ênfase na busca não apenas da liberdade, mas,
fundamentalmente, do prazer. (Pereira, 1986: 39).
Russo e Ponciano (2002), em artigo sobre a concepção de sujeito que
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emerge das teorias neurocientíficas, chamam a atenção para como a singularidade
e a liberdade são percebidas nesses estudos como ancoradas na natureza biológica
do homem, o que implica em uma mudança radical de perspectiva, tendo em vista
que a visão tradicional, caudatária da concepção kantiana de um mundo físico
“sem alma”, “concebia o biológico como sinal de determinismo absoluto e,
portanto, falta de liberdade” (Russo e Ponciano, 2002: 363).
2.3.
Brasil: o cenário atual
2.3.1.
“Epidemia” de cesáreas e “violência institucional”
A proposta de “humanização” do parto e do nascimento, como já
mencionado, disseminou-se inicialmente em um pequeno segmento de mulheres
de camadas médias, provenientes dos grandes centros urbanos brasileiros. Por
outro lado, foi também nesse estrato social, em especial nas regiões mais afluentes
do país, onde, nos últimos 30 anos, registrou-se um aumento expressivo da taxa
de partos cesáreos no Brasil, país que lidera o ranking mundial no que se refere à
realização da cirurgia. Mais precisamente, no ano de 2012, 54% de todos os partos
realizados foram cesáreos.
69
Essa taxa vem crescendo, em média, 2% ao ano42, o que tem levado alguns
ativistas e formuladores de políticas públicas a afirmar que o Brasil estaria
experimentando
uma
“epidemia”
de
cesáreas,
considerando-se
que
a
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que esta não supere
os 15% ao ano. No setor privado, onde cerca de ¼ de todos os partos são
realizados, a situação é ainda mais crítica, tendo em vista que a taxa de cesáreas
chega a 83%, mais do que o dobro daquela registrada no setor público, que é de
38%43, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde relativos ao ano de
2011.
Os resultados preliminares da recente pesquisa “Nascer no Brasil:
Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, conduzida pela Fiocruz44 e que
ouviu 24 mil mulheres que deram à luz em maternidades públicas e privadas do
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país, confirmam a tese, já apontada por outros estudos, de que a cirurgia cesariana
é realizada especialmente naquelas que integram as camadas médias e altas da
sociedade. Com efeito, entre as entrevistadas que tinham sido submetidas à
cirurgia, 84,4% possuíam ensino superior e 79,2% eram conveniadas a planos
privados de saúde. Dentre estas, a maioria se auto-declarava branca e residia nas
regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, onde é possível localizar maternidades
privadas nas quais mais de 90% dos partos realizados são cirúrgicos45.
Na visão dos médicos (89%), segundo pesquisa realizada em São Paulo
pelo Núcleo de Estudos da População (1996), citada por Carneiro (2011), as altas
taxas de cesárea no país resultam de um desejo da mulher, que teme a dor e a
possibilidade de sofrer lesão vaginal durante o parto “normal”.
42
Em 1970, a taxa de cesáreas era de 14,6% (Rattner, 1996).
Segundo Aguiar (2010), a prevalência de partos “normais” no setor público deve ser atribuída,
ao menos parcialmente, à influência do “Programa de Humanização do Parto e Nascimento”,
criado pelo Ministério da Saúde e sobre o qual se tratará adiante. O programa exerce um controle
institucional sobre as quotas de parto cesáreo nesses serviços.
44
A pesquisa, cuja coleta de dados foi realizada entre os anos de 2011/2012, contemplou 268
maternidades, de 191 municípios, de todos os estados do país. O acesso aos resultados
preliminares foi obtido durante palestras concedidas por Silvana Granato e Marcos Dias, alguns
dos coordenadores do estudo, em novembro de 2012 e novembro de 2013.
45
De acordo com a matéria intitulada “Melhores Maternidades do País”, publicada na Revista Pais
& Filhos, em julho de 2009, no Hospital Barra D’Or, localizado na Barra da Tijuca, a taxa de
cesáreas era de 95%.
43
70
É certo que uma parcela das gestantes, especialmente nas camadas médias
e altas, de fato faz a opção pelo parto cesáreo. Contudo, ainda que isso ocorra,
alguns estudos têm considerado que a preferência das mulheres pela cesariana tem
sido superestimada. Esses estudos (Potter et al., 2001, Barbosa et al., 2003, Dias
et al., 2008, Cardoso e Barbosa, 2012, Pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito
Nacional sobre Parto e Nascimento”) apontam que a maioria das mulheres inicia a
gestação manifestando preferência pelo parto “normal”, embora nos segmentos
médios e altos o desfecho, na maior parte das vezes, seja o parto cirúrgico – quase
sempre definido antes da gestante entrar em trabalho de parto (Dias et al., 2008).
Dentre essas pesquisas, algumas procuraram comparar o interesse pela
cesárea entre mulheres de diferentes camadas sociais, como os estudos realizados
por Potter et al. (2001), bem como a pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito
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Nacional sobre Parto e Nascimento”, da Fiocruz. Em ambos, foram realizadas
entrevistas em diferentes momentos da gestação: no início, ao final, bem como
um mês após o parto.
No estudo de Potter et al. (2001) não foi observada mudança no interesse
pelo tipo de parto ao longo da gestação, isto é, no início e ao final da gravidez
entre 70% e 80% das entrevistadas, tanto de camadas médias quanto de classes
populares, manifestaram a intenção de darem à luz por via vaginal. Deve-se
destacar, contudo, que essa intenção não se concretizou para a maioria das
mulheres de camadas médias, diferentemente do que foi observado entre as
parturientes de classes populares, que foram atendidas no setor público de saúde.
Já os resultados preliminares da pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada
mais recentemente, aponta algumas diferenças e estas talvez reflitam de maneira
mais acurada a realidade atual. De acordo o com referido estudo, 36% das
mulheres de camadas médias inicialmente desejavam um parto cesáreo,
percentagem que quase dobrou, chegando a 68% no final da gestação, mesmo não
tendo sido registradas complicações clínicas ao longo da gravidez. Tal variação,
contudo, não foi observada entre as mulheres de camadas populares. Destas, 15%
disseram que gostariam de ter uma cesariana, taxa que não sofreu variação ao
final da gravidez. Deve-se destacar que, dentre as entrevistadas de camadas
medias, quase 90% tiveram partos cesáreos.
71
Como é possível notar, nas camadas médias e altas da sociedade brasileira,
as mulheres dão à luz primordialmente por meio de cirurgia abdominal, o que não
deve ser atribuído unicamente a uma demanda feminina. Em palestra, Marcos
Dias, um dos coordenadores da pesquisa “Nascer no Brasil”, chamou a atenção
para a organização do trabalho nas maternidades privadas, cuja estrutura está
montada para trabalhar sob a forma de agendamento e não estimula a realização
do parto “normal”. Carneiro (2011) também procurou elencar alguns motivos que
poderiam esclarecer as altas taxas de cesáreas nesses segmentos, aparentemente
encontrando nos médicos – sua conveniência, forma de atuação e formação
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profissional – a principal explicação para o fenômeno46:
“Por meio da cesárea o profissional ganha mais e fica menos tempo à disposição
da parturiente, primeiro, porque se paga mais por esse tipo de intervenção, e,
segundo, porque o tempo de dedicação é menor, o que permite que o médico
realize um número maior de procedimentos (...). Haveria também o temor de
processos judiciais por erro médico, circulando a ideia de que o médico corre
mais riscos de ser processado por um por um parto natural do que por uma
cesariana, que é percebida como a realização de todo o possível e necessário
procedimento tecnológico e profissional. Outra explicação é, ainda, a de que os
médicos estariam condicionados a pensar no parto como cirurgia, sendo esse o
resultado da prática do ensino médico no Brasil (...). Por ter sido transmitida
pelos manuais de obstetrícia e pelas faculdades de medicina como procedimento
seguro, indolor, rápido e mais moderno, a cesariana aparece, em muitas ocasiões,
como a primeira opção” (Carneiro, 2011: 25).
Diferentemente do que se observa entre as mulheres de camadas médias,
para aquelas provenientes de camadas populares, atendidas no setor público de
saúde, a regra parece ser o parto “normal”. O que, é preciso ressaltar, não deve ser
propriamente atribuído a uma demanda feminina. Ainda que a maioria das
pesquisas aponte a preferência entre as mulheres desse segmento pelo parto
“normal”, sendo apresentada como justificativa, em geral, a rápida recuperação no
período pós-parto parto, concretamente elas apresentam muito pouca ingerência
sobre o processo. Como sugere o estudo de Chacham (2004b), para citar apenas
um exemplo, uma pequena parcela inclusive gostaria de dar à luz por via
cirúrgica, o que em momento algum é levado em consideração pelo profissional
de saúde que lhe presta assistência – em evidente contraste com o que ocorre no
setor privado.
46
Não é a intenção tratar exaustivamente dos motivos que conduzem às altas taxas de cesárea no
país, apenas apontar para a existência do fenômeno, especialmente nas camadas médias e altas, e
para a complexidade da questão.
72
Na pesquisa conduzida por Chacham (2004b) em Belo Horizonte, da qual
participaram mulheres de diferentes segmentos sociais, uma pequena parte das
entrevistadas, de ambos os grupos, informou durante a gravidez almejar um parto
cesáreo. No entanto, enquanto praticamente todas as mulheres de camadas médias
tiveram seu desejo atendido, entre as mulheres de camadas populares não ocorreu
o mesmo, o que levou a autora a afirmar que:
“For [middle classe women] is easier to obtain a cesarean when they wish one. In
the case of poor and working class women delivering in public hospitals, even
when they want a cesarean they do not get one unless a doctor decides they need
them. Most of the time they do not know who is going to assist their birth or they
even have the chance to express their wishes” (Chacham: 2004b, 09).
Para as mulheres de camadas populares, portanto, o padrão nas
maternidades e hospitais públicos brasileiros é o parto “normal” que, da forma
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como é rotineiramente realizado, prevê uma série de procedimentos médicos,
como anteriormente referido. É válido acrescentar que, mesmo nesse segmento, a
definição pelo parto cirúrgico tampouco pode ser atribuída exclusivamente a uma
questão de “necessidade”, isto é, a uma indicação clínica, como sugerira Chacham
(2004b). A cesariana, em algumas situações, pode ser realizada como forma de
atender a um acordo tácito existente entre os médicos, que prevê que o “pré-parto”
deva ser “limpo” antes da troca de turnos, isto é, que todas as parturientes que se
encontram em trabalho de parto devam dar à luz, evitando que o profissional que
está para assumir o plantão tenha que se ocupar daquelas que fizeram a internação
mais cedo. Segundo Dias (2006), que observou esta prática durante pesquisa
realizada em uma maternidade pública, trata-se
“de um acordo velado entre os profissionais de que cada equipe deve resolver os
casos que interna (...). O acordo implícito entre eles é o de que não é correto
deixar muito ‘trabalho’ para o plantão noturno. No dia seguinte todos terão que
trabalhar e, portanto, é preciso garantir que será possível ter um descanso durante
a noite” (Dias, 2006: 117).
Como é possível notar, diversos e complexos fatores convergem para
definir que tipo de parto as mulheres de diferentes estratos sociais irão vivenciar.
Nesse sentido, é possível afirmar que a probabilidade de uma gestante vir a ter um
parto cesáreo ou “normal” não depende necessariamente de seu histórico
individual de saúde, como já destacara Martin (2006), que chamou a atenção para
o fato de que “a origem social de uma mulher, juntamente com sua raça, afeta
73
profundamente o tipo de experiência de parto que ela terá na maternidade” (2006:
233).
Sendo assim, é importante destacar que no caso das mulheres que dão à
luz no setor público de saúde, não é incomum que faça parte de sua experiência de
parturição episódios de “violência institucional”47, termo que, de maneira ampla,
faz alusão aos abusos ou maus-tratos cometidos por profissionais de saúde durante
a assistência ao parto. Com efeito, pesquisas realizadas em maternidades públicas
de diferentes estados do país apontam nessa direção, como sugerem os estudos de
McCallum e Reis (2006), Gomes et al. (2010), Denyer (2008), Dalsgaard (2006),
entre outros.
Em sua tese de doutorado, Aguiar (2010) chamou a atenção para as
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diferentes formas através das quais a violência é exercida nas maternidades
públicas, compreendendo episódios de negligência, discriminação social e
violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação
intencional) até situações de violência física e abuso sexual.
De acordo com a autora, com alguma freqüência os profissionais de saúde
fazem declarações moralistas e preconceituosas sobre a vida pessoal e o
comportamento da paciente, com frases do tipo: “Está gritando por quê? Na hora
de fazer gostou!”, que explicitam estereótipos de classe e de gênero, sugerindo
que a dor do parto deva ser o preço a ser pago pelo prazer sexual e pelo exercício
da sexualidade, supostamente fora de controle, nas mulheres pobres.
Nesse contexto, não é de surpreender que a cesárea represente para essas
mulheres uma via para driblar os maus-tratos aos quais são submetidas durante o
47
Aparentemente buscando englobar a idéia de “violência institucional”, o conceito de “violência
obstétrica” ganhou força em anos recentes, com a disseminação do ideário da “humanização”.
Nesse sentido, o termo inclui critérios diretamente relacionados às demandas do movimento,
sendo considerado “violência obstétrica”, por exemplo, o uso de tecnologia “inapropriada” durante
o parto ou a falta de consentimento da mulher em relação aos procedimentos realizados, o que faz
com que um grande número de mulheres – em especial nas camadas médias –, julgue ter sido alvo
de “violência obstétrica”. No entanto, a percepção desses atos como “violentos” implica, de
antemão, o contato com o ideário da “humanização”. Por outro lado, os maus-tratos cometidos nas
maternidades públicas são percebidos mesmo por mulheres que não têm contato com o ideário.
Contudo, é importante destacar que, ainda que incomodadas e sentindo-se moralmente agredidas,
em muitos casos, a maioria das mulheres de camadas populares não reconhece tais abusos como
atos de “violência”, pois, como destaca Aguiar (2010), para elas o termo deve ser empregado
apenas aos casos de agressão física ou sexual.
74
parto “normal”, como sugere o trabalho de Denyer (2008), realizado na periferia
de São Paulo. Nas palavras da autora, “pregnant women actively seek to be
labeled ‘at risk’ during ante-natal care by doctors, nurses and health care
technicians in order to avoid the discrimination and physical abuse often
associated with vaginal delivery” (2008: 02).
Se a “violência institucional” exercida nas maternidades públicas parece
ser rotineira e gerar uma grande insatisfação nas mulheres de camadas populares,
que em alguns casos chegam ao limite de almejar a cesariana para escapar aos
maus-tratos de que são alvo durante o parto “normal”, entre aquelas provenientes
de camadas médias os relatos que fazem referência a esse tipo de violência são
menos freqüentes48, apontando para como a “violência institucional” está
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diretamente associada a questões de classe e “raça”.
No entanto, entre as mulheres de camadas médias, ou melhor, em uma
pequena parcela delas, também é possível localizar um sentimento de insatisfação
no que se refere à experiência de parto, principalmente com o fato de a cesariana
ter se convertido, no setor privado, no modelo de parturição, praticamente não
havendo alternativas a ele (Diniz, 2005). Assim, se é possível dizer que “existe
uma maioria que pede ou aceita a cirurgia, [há] também uma parcela que procura
escapar de sua realização”, como observa Carneiro (2011: 44).
O que se pretende argumentar é que o sentimento de insatisfação que
atingia mulheres provenientes de diferentes estratos sociais, ainda que com
origens diversas, possivelmente contribuiu para torná-las um público em
potencial, permeável à proposta de parto “natural” e “humanizado”. É importante
destacar que esta proposta disseminou-se inicialmente entre as mulheres de
camadas médias, que tiveram importante papel na sua divulgação, mas, aos
poucos, com a incorporação dessas práticas em algumas instituições públicas de
saúde – resultado da participação ativa de membros da ReHuNa em Secretarias
Municipais e no Ministério da Saúde, o que será explorado adiante – mulheres de
camadas populares também passaram a ter acesso a ela.
48
Como sugerem os resultados da pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e
privado”, publicada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo em parceira com o Sesc.
75
2.3.2.
Internet e mobilização feminina
No contexto de uma entrevista realizada com a doula e ativista Flora,
coordenadora do curso de preparação para o parto onde foi feita a pesquisa de
campo com mulheres de camadas médias, foi enfatizada a importância da Internet
nos anos 2000, considerada fundamental para a divulgação e ampliação do
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movimento em favor da “humanização” do parto e do nascimento:
“A internet foi tudo de maravilhoso para a gente! O movimento era muito
menor... imagina o que a gente conseguiu! Assim, em 1999 eu criei a primeira
lista [de discussão na internet] de parto natural. Daí nessa lista as mulheres
começaram a falar muito, tinha muita gente, as pessoas foram aderindo,
aderindo... Tinha muita mensagem e as pessoas começaram a reclamar, porque
eram mães com bebês que ficavam falando de fraldas, de coisas que não
interessavam muito às outras, aí criou um pouco de conflito e algumas saíram e
criaram outra lista: a Amigas do Parto. Foram 4 amigas que estavam na lista
Parto Natural. Elas continuaram falando de parto natural, mas criaram outra lista.
E a coisa foi se diversificando porque de uma lista saíam outras, saíam outras...
porque aí os grupinhos iam fazendo... “Não, a gente quer fazer uma lista só de
quem é do interior de São Paulo”, uma lista só de quem é não sei da onde, e aí
foram fazendo e a coisa foi se multiplicando”. (Flora)
Criado em 2001, o espaço virtual “Amigas do Parto”, site e lista de
discussão na internet, divulga artigos, depoimentos, informações sobre plano de
parto, direitos das mulheres, além de uma lista de profissionais afinados com o
ideário da “humanização”. O “Amigas do Parto”, que depois tornou-se também
uma Organização Não-Governamental (ONG)49, deu os primeiros passos,
juntamente com a lista “Parto Natural”, no que veio a se configurar como uma
importante mobilização de mulheres de camadas médias. Inspiradas no
movimento pelos direitos do consumidor, elas passaram a se organizar enquanto
“consumidoras” dos serviços médicos e hospitalares, a partir da crítica à prática
obstétrica (Carneiro, 2011, Diniz, 2005). De acordo com Carneiro (2011: 14),
“elas procuravam indagar a razão de determinados procedimentos, em nome do
desejo de parirem de acordo com suas crenças, estilo de vida, ética e
autodeterminação”.
49
O site continua na Internet, mas não tem sido atualizado. Ainda assim, é muito acessado por
mulheres interessadas no assunto. A ONG, por sua vez, foi criada por uma das fundadoras do site
original.
76
No esteio dessa mobilização surgiu o grupo virtual “Parto do Princípio:
Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa”, formado por voluntárias de diversos
estados do país que, de acordo com informações obtidas no site, “crêem em seus
direitos e, acima de tudo, em sua capacidade de tomar para si as decisões a
respeito de seus corpos, de sua saúde, de suas vivências”. A rede é bastante ativa
politicamente e há alguns anos apresentou denúncia ao Ministério Público Federal
contra o número abusivo de cesáreas no sistema privado de saúde. Em 2010, a
denúncia acabou resultando em uma ação civil pública, que pretende obrigar a
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a regulamentar os serviços
obstétricos realizados por planos de saúde privados no Brasil. Recentemente, o
grupo elaborou um dossiê sobre violência obstétrica, que foi entregue à CPMI da
Violência contra a Mulher.
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Além dos diversos sites e listas de discussão (sendo possível citar também
as listas “Materna”, “Parto Nosso” e “Mães Empoderadas”), um número
significativo de blogues foi criado, de forma independente, por mulheres de
camadas médias que tinham passado pela experiência de parto “natural” e
“humanizado” ou que gostariam de vivenciá-la, multiplicando de forma
exponencial a divulgação do ideário e contribuindo para a ampliação do
movimento nesse segmento. Grupos presenciais, gratuitos e organizados pelas
próprias mulheres, também começaram a surgir em vários estados, com o intuito
de oferecer apoio emocional e fornecer informações sobre gravidez e parto,
tomando como referencial os pressupostos da “humanização”. Na avaliação de
Flora, graças à Internet, “o movimento explodiu nos anos 2000”50.
Deve-se destacar que um evento internacional organizado no final do ano
2000, pela ReHuNa, foi fundamental para a consolidação do movimento no
Brasil. A chamada “Conferência de Fortaleza” contou com apoio do governo do
Estado do Ceará e assumiu, de acordo com Tornquist (2004), um caráter
cosmopolita, com a presença de diversos palestrantes internacionais, dentre eles o
50
Carneiro (2011) chama a atenção para a particularidade dessa forma de ativismo, que diverge do
movimento social nos moldes tradicionais, em termos de organização e representatividade. Nesse
sentido, a atuação das mulheres “não conta com uma agenda ou mobilização organizada nacional,
estadual ou regionalmente. No entanto, por outro prisma, talvez pudesse ser entendido como novo
modelo de ação social, que tem na internet sua maior ferramenta de ativismo, ou então, no limite,
como rede de atores sociais mobilizados por uma causa comum” (Carneiro, 2011: 17).
77
médico francês Michel Odent, a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd, a
parteira americana Ina May Gaskin e o ex-coordenador do setor Materno-Infantil
da OMS, Marsden Wagner.
A expectativa inicial era de haver mil participantes, número que quase
dobrou com as inscrições feitas no primeiro dia da conferência, chegando a 1800
pessoas, de 26 países diferentes (Rattner et al. 2010). Além da ReHuNa, também
participaram da organização do evento a Associação Brasileira de Obstetrizes e
Enfermeiros Obstetras (Abenfo) e a Agência Japonesa de Cooperação
Internacional (JICA), dentre outras organizações, tendo resultado do encontro a
criação da Rede Latino-Americana e Caribenha pela Humanização do Parto e do
Nascimento (Relacahupan).
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O formato do evento era basicamente científico – com mesas redondas,
conferências, palestras e oficinas – e o público composto majoritariamente por
enfermeiras obstetras que, como se verá a seguir, se converteram em personagem
central do projeto de disseminação das práticas “humanizadas”.
2.3.3.
Institucionalização do projeto
Como referido anteriormente, uma importante diferença entre o
movimento pelo parto “natural”, na década de 1980, e o da “humanização”, que se
seguiu a este e englobou a maior parte de seus preceitos, refere-se à preocupação
com a saúde coletiva, resultado da significativa participação na ReHuNa de
médicos sanitaristas e assalariados, que atuam no sistema público de saúde ou em
ONGs. Noutras palavras, não havia nos anos 1980, ou era ainda incipiente –
sendo um exemplo o trabalho desenvolvido pelo médico Galba de Araújo, em
Fortaleza –, uma proposta de disseminação mais ampla do projeto, a partir de sua
incorporação ao sistema público de saúde. Por outro lado, esse tem sido um ponto
caro ao atual movimento pela “humanização” do parto e do nascimento.
Tornquist (2007) e Costa (2009) destacam que, após a ditadura, diversos
movimentos sociais passaram a apresentar propostas, formulando políticas
públicas de uma forma participativa, prática que veio a tornar-se comum nos anos
1990, ocasião em que muitos movimentos profissionalizaram sua atuação
78
militante e passaram a atuar como “parceiros” do Ministério da Saúde. De fato,
esse parece ter sido o caminho percorrido pela ReHuNa, que, desde 2002, tem
prestado assessoria ao Ministério da Saúde em determinados programas e atuado
como parceira em iniciativas relacionadas ao tema da “humanização”51. É
importante destacar que, paralelamente, de forma individual, vários membros da
Rede também passaram a ter acesso às instâncias governamentais – como
consultores ou integrando seus quadros oficiais –, vindo a contribuir para o
desenvolvimento de políticas públicas comprometidas com o ideário.
Já na década de 1990, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
(SMS/RJ), à época coordenada por um grupo de feministas, destacou-se por ser a
primeira a integrar em suas políticas de saúde projetos concretos de
“humanização”, como observam Rattner et al. (2010). O principal deles foi a
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reabertura, em 1994, da Maternidade Leila Diniz, local onde as parturientes,
assistidas por enfermeiras obstetras, tinham direito a acompanhante, possibilidade
de escolha de posição de parto, podiam fazer uso de banheira para alívio da dor,
etc.
Considerado pelos ativistas um marco em termos de política pública, o
Prêmio Galba de Araújo, criado em 1998, vem sendo concedido a maternidades e
hospitais que aderem às recomendações para o parto da OMS e mantêm
controladas as taxas de cesárea. O prêmio é concedido em nível estadual, regional
e nacional e tem contribuído para conferir legitimidade ao modelo “humanizado”
(Diniz, 2005).
Data também do final dos anos 1990, mais precisamente de agosto de
1999, a portaria número 98552, do Ministério da Saúde, que institui os Centros de
Parto Normal (CPN) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais centros,
de acordo com a legislação, podem ser intra-hospitalar ou funcionar como uma
unidade autônoma, isto é, sem estar fisicamente vinculado a um hospital ou
maternidade – como é o caso da casa de parto onde foi realizada parte da pesquisa
de campo. A portaria abriu caminho para que a parturiente considerada de “baixo
51
52
Para informações detalhadas, ver: Rattner et al. (2010).
Portaria GM/MS 985: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port99/GM/GM-0985.html
79
risco” pudesse ser atendida por enfermeiras obstetras, o que era uma das bandeiras
da ReHuNa.
Vale destacar que o modelo de assistência ao parto proposto com a criação
dos CPNs (e incentivado pelo movimento pela “humanização”) encontra
inspiração em países europeus – como é o caso da Inglaterra, Holanda, Suécia,
Alemanha e França – e também no Japão, como indica Rattner (2009). A autora
informa que nesses países,
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“além dos hospitais, o parto tanto pode ocorrer em casas de parto ou em
ambulatórios53, sendo que se reservam os hospitais para casos em que
comprovadamente são esperadas complicações (...). Nesse modelo, a profissional
de eleição é a parteira (midwife, sage-femme, hebamme), responsável tanto pelo
acompanhamento do processo de trabalho de parto como pela detecção precoce
de problemas, quando então indica remoção para instituição com condições de
atender”. (Rattner, 2009: 600).
Assim, a “classificação de risco” da gestante é que determina quem será o
profissional que lhe prestará atendimento, ficando reservados aos médicos
obstetras os casos que inspiram mais cuidados e às parteiras (ou seu equivalente)
as situações de “baixo risco”. Na maioria desses países, a mulher que é saudável e
não apresenta complicações ao longo da gravidez pode optar por dar à luz em uma
casa de parto, sendo atendida exclusivamente por parteiras. Esse modelo também
vem sendo implementado nos EUA, desde a década de 1970, como uma
alternativa ao parto hospitalar, geralmente mais tecnológico e medicalizado.
Tomando a realidade brasileira como pano de fundo, Maia (2008) chama a
atenção para como, ao longo do século XX, a assistência ao parto foi se tornando
um ato estritamente médico, com a transferência dos partos realizados no
ambiente doméstico, por parteiras, para o ambiente hospitalar, sob supervisão de
médicos. No momento atual, isto é, no início do século XXI, uma nova mudança
pode ser observada na assistência ao parto, com a valorização da enfermeira
obstetra que – como se verá no próximo capítulo – busca reivindicar o “legado”
das parteiras.
53
E, deve-se incluir, também no domicílio da parturiente. Na Holanda, onde cerca de 30% dos
partos são realizados em casa, essa prática é oficialmente incentivada pelo governo (De Vries,
2004).
80
Maia (2008) destaca que as políticas de “humanização”, as quais passaram
a legitimar a enfermeira obstetra na condução do trabalho de parto e parto sem
complicações, representaram uma grande mudança no cenário da assistência ao
parto no Brasil, considerando que a enfermagem foi tradicionalmente
desprestigiada na relação hierárquica e desigual com a medicina54.
Com o intuito de implementar esse novo modelo de assistência, além da
criação dos CPNs, o Ministério da Saúde passou a financiar cursos de capacitação
e introduziu o pagamento, pelo SUS, de parto assistido por enfermeira obstetra.
Tais medidas fizeram parte do Programa de Humanização no Pré-Natal e
Nascimento (PHPN), lançado em junho de 2000 pelo governo federal. Segundo
Serruya (2003), a questão dos direitos e da cidadania aparecia como o princípio
estruturador do programa, que pretendia ser um divisor de águas, adotando o
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paradigma da “humanização” como novo modelo de atenção. O PHPN, contudo,
foi alvo de críticas dos ativistas, por supostamente ter se transformado em um
instrumento de gestão, não incorporando os questionamentos relativos às
intervenções médicas de rotina (Diniz, 2005).
A mais recente aposta do governo na área de “humanização” da assistência
à gravidez e ao parto é o Programa Rede Cegonha, que foi lançado em março de
2011. A partir de uma série de diretrizes que buscam melhorar o acesso e a
qualidade do atendimento no sistema público de saúde, o projeto prevê:
oferecimento de teste rápido de gravidez em todos os postos de saúde; garantia de
pelo menos seis consultas médicas, além de uma série de exames clínicos e
54
Sobre esse aspecto, Maia (2008) afirma que, além de a enfermagem ter surgido justamente para
ser uma atividade de auxílio à medicina, há uma questão de gênero fortemente presente,
considerando que “enquanto a enfermagem é uma ‘profissão no feminino’, a medicina foi, por
muito tempo, uma profissão no masculino, até porque as mulheres estavam proibidas de ingressar
no ensino superior” (2008: 65). Até a década de 1970, por exemplo, apenas 11% dos profissionais
de Medicina eram do sexo feminino. A autora chama a atenção ainda para o fato de que o ethos de
ambas as profissões também se articula a questões de gênero, o que estaria expresso nas
dualidades: medicina/qualificação e enfermagem/qualidade; medicina/tratar e enfermagem/cuidar.
Nesse sentido, observa Maia (2008), “a medicina se apresenta como um corpo complexo e extenso
de conhecimentos técnicos e científicos que precisa ser apreendido por meio de um longo processo
de qualificação que inclui, no mínimo, a graduação universitária e a residência médica. Uma vez
formado, o médico ‘tratará’ dos seus pacientes. Por sua vez, a enfermagem é vista como a
transferência do trabalho feminino e doméstico, entendido como uma habilidade ‘natural’ para o
cuidado, para o espaço hospitalar (...). À enfermeira basta ter as qualidades femininas para ‘cuidar’
dos seus pacientes” (2008: 65). O estudo de Menezes (2004) também aponta para a
femininilização da área de Cuidados Paliativos, que seria o equivalente a uma proposta de
“humanização da morte”.
81
laboratoriais; garantia de vínculo e leito, desde o pré-natal, à maternidade onde
será realizado o parto; auxílio financeiro para cobrir os gastos com os
deslocamentos até o local das consultas de pré-natal e até a maternidade na hora
do parto; qualificação dos profissionais de saúde, com vistas a torná-los aptos a
prestar uma assistência “humanizada”; criação de estruturas de assistência à
gravidez de alto risco, como a Casa da Gestante e a Casa do Bebê e a criação de
Centros de Parto Normal intra-hospitalares, para atendimento às gestantes de
baixo risco.
Além disso, o programa exige das maternidades o cumprimento do que
qualifica como “boas práticas” na atenção ao parto e ao nascimento: respeito ao
direito a acompanhante de livre escolha da mulher durante o trabalho de parto,
parto e puerpério; acesso a métodos de alívio da dor; possibilidade da mãe ficar
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em contato pele a pele com o bebê imediatamente após o nascimento e o incentivo
à participação do pai no momento do nascimento do filho. Como é possível notar,
há uma forte adesão do programa às práticas incentivadas pelo ideário da
“humanização”.
Para a implementação do Rede Cegonha, que tem como objetivo geral
erradicar os altos índices de mortalidade infantil e materna no país, o Ministério
da Saúde prevê disponibilizar 9,4 bilhões de reais aos estados e municípios até o
fim de 2014. Inicialmente o foco do programa foi a Amazônia e a região
Nordeste, mas também foram consideradas prioritárias as regiões metropolitanas
de todo o país, onde se concentra a maior parte dos 2 milhões de gestantes
atendidas anualmente pelo SUS.
Em recente artigo, Carneiro (2013) buscou problematizar algumas
questões, como a orientação, eficácia e limites do programa, tomando como ponto
de partida as impressões, anseios e insatisfações de mulheres adeptas do parto
“humanizado”, em especial aquelas provenientes de camadas médias, as quais
pesquisou em sua tese de doutoramento. Nesse sentido, a autora chamou a atenção
para o incômodo dessas mulheres com a padronização e despersonalização do
atendimento hospitalar, o que as levou a valorizar a proposta de “humanização”
justamente pela possibilidade de a equipe de saúde levar em conta seus desejos,
crenças e trajetórias pessoais. Dito isso, Carneiro (2013) atenta para o fato de que
82
o governo, ao adotar uma política nacional para a assistência ao parto e ao
nascimento, corre o risco de solapar essas diferenças, desrespeitando um
importante preceito da proposta de “humanização”, ao menos do ponto de vista
das mulheres de camadas médias que a ela aderiram.
“[S]e o Rede Cegonha vem como defesa da cidadania, direitos fundamentais
consignados na Constituição Federal de 1988, exercício e segurança do parto
cidadão; as envolvidas com a crítica do modelo obstétrico vigente na rede privada
e, também, pública, por outro lado, trazem à tona a possibilidade de
despersonalização das parturientes no sistema de atenção, alertando para os riscos
de uma política que se pretende nacional e cujas conseqüências poderiam ser o
privilégio da igualdade com o preço de pouca atenção às diferenças e ao desejo
de singularidade” (Carneiro, 2013: 54).
Segundo a autora, para se pensar sobre o direito universal à saúde, deve-se
refletir também sobre as crenças, habitat, raça e etnia, não desprezando as
diferenças existentes entre as mulheres. As observações de Carneiro (2013), devePUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912435/CA
se destacar, estão em sintonia com os questionamentos levantados por alguns
médicos, já na década de 1980, quanto à possibilidade de se implementarem, em
especial nos hospitais públicos, práticas que atentassem para as idiossincrasias de
cada mulher (Salem, 2007). Sem dúvida, o dilema de conciliar o particular ao
universal se impõe como um grande desafio à meta de disseminação do projeto de
“humanização” do parto e do nascimento.
2.3.4.
Mulher(es)
Como já se procurou apontar, com a incorporação da proposta pelo
sistema público de saúde, mulheres de camadas populares, que representam a
maior parte das usuárias do SUS, passaram a ter acesso ao parto “natural” e
“humanizado”, antes acessível apenas àquelas que integravam os segmentos
médios e altos da sociedade brasileira. Diante dessa realidade, considerou-se
relevante analisar de que maneira essas mulheres, bem como aquelas provenientes
de camadas médias, recebem e atualizam a proposta de parto “natural” e
“humanizado”, levando em conta que, enquanto em décadas anteriores a tendência
era a de universalizar as mulheres e suas experiências, mais recentemente a ênfase
dos estudos de gênero tem recaído sobre as diferenças que podem ser mapeadas
entre elas.
83
Com efeito, a existência de uma categoria universal “mulher” tem sido
questionada no interior do pensamento feminista, não apenas no Brasil, mas
internacionalmente, tendo o feminismo negro, nos Estados Unidos, dado o
pontapé inicial nesse debate. Bairros (1995) observa que a discussão não apenas
sobre a categoria “mulher”, mas também sobre as de “experiência” e “política
pessoal”, até então pensadas como chaves para compreender o que unia as
mulheres sob a égide do feminismo, foi levantada por escritoras negras
americanas, para quem a perspectiva feminista prescindia de uma identidade
comum para todas.
No esteio das críticas levantadas pelo feminismo negro, surgiram diversas
correntes que passaram a reivindicar o reconhecimento da pluralidade e das
diferenças entre as mulheres, dentre as quais situam-se, por exemplo, as lésbicas,
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campesinas e indígenas. Estas colocavam em xeque um feminismo que se
pretendia igualitário, mas que na prática vocalizava as demandas das mulheres
brancas, heterossexuais, provenientes de camadas médias, e demonstrava pouca
sensibilidade à heterogeneidade das experiências que a categoria mulher poderia
supor.
De acordo com Bairros (1995), o feminismo negro, bem como outras
correntes críticas que seguiram seus passos, podem ser considerados expressões
da teoria do ponto de vista (standpoint view), segundo a qual a experiência de ser
mulher se dá de forma social e historicamente determinadas. Noutras palavras,
essa teoria sugere que a experiência é permeada pelo gênero, mas também pela
raça, orientação sexual, classe social, dentre outros marcadores analíticos, que
interceptam-se de diferentes maneiras, reconfigurando-se mutuamente e formando
um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade.
Para Brah (2006), a afirmação de que “mulher” não é uma categoria
unitária não significa dizer, por outro lado, que a própria categoria careça de
sentido, mas que este seria constituído dentro e através de configurações
historicamente específicas de relações de gênero. Na visão da autora,
84
“[O signo mulher] assume significados específicos em discursos de diferentes
‘feminilidades’ onde vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e
experiências culturais históricas particulares. Diferença nesse sentido é uma
diferença de condições sociais” (2006: 341).
Carneiro (2013), ao tratar do tema, chama a atenção para como o
movimento de pulverização da categoria “mulher” teria dado lugar, na década de
1990, não apenas ao reconhecimento das diferenças, mas à valorização da
subjetividade: “Da identidade ter-se-ia passado a tematizar mais a ideia de
subjetividade, em nome de uma maior fluidez e na tentativa de fuga das
identidades fixas, rígidas e estanques” (2013: 55).
A partir do exposto, o presente estudo toma como premissa a pluralidade
que a categoria “mulher” comporta e, dessa forma, busca analisar como
parturientes de diferentes camadas sociais55 significam a experiência de parto
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“natural” “humanizado”. A perspectiva adotada é de que a classe interfere na
forma como os sujeitos enxergam o mundo, isto é, define o ponto de vista de onde
partem. Nesse sentido, é importante esclarecer que a investigação aqui proposta
faz um recorte a partir das classes sociais, porém filia-se aos estudos – como os de
Heilborn (2004), Duarte e Gomes (2010), Fonseca (2000), Sarti (2011), dentre
outros – que adotam a esfera simbólica como explicativa da lógica desses grupos.
Dessa forma, a análise acerca das diferenças de comportamento e de visão de
mundo das mulheres etnografadas não privilegiará a dimensão das diferenças de
ordem material, notadamente marcante nos estudos que focalizam a questão da
estratificação social.
Outra importante ressalva a ser feita diz respeito ao fato de que o interesse
pela dimensão simbólica e pelos significados atribuídos ao parto por mulheres de
diferentes camadas sociais, não deve, contudo, redundar em uma total
desqualificação da dimensão encarnada e material dessa experiência que é,
inegavelmente, corporal.
Como bem observou Jones (2012), ainda que o parto seja inteiramente
permeado pela cultura, sofrendo enormes variações de acordo com o contexto no
55
Sobre essa questão, é fundamental reconhecer, como o fez Brah (2006), que mesmo uma
categoria individual, como “mulheres de camadas populares”, por exemplo, tampouco é
internamente homogênea, uma vez que “compreende grupos muito diferentes de pessoas tanto
dentro quanto entre diferentes formações sociais” (Brah, 2006: 341).
85
qual a parturiente está inserida, não se deve perder de vista que trata-se de uma
experiência que é também, e ao mesmo tempo, conformada pelo próprio corpo.
Segundo a autora, privilegiar apenas o aspecto discursivo da experiência significa
conceber a relação entre natureza e cultura como oposta e dicotômica, em vez de
compreendê-la como permeável e interconectada, como sugere a definição de
experiência tal qual formulada pela autora: “as a product of the entanglement of
both nature and culture. On this basis, it is not possible, in principle, to cleanly
distinguish the role of nature from culture in the constitution of experience”
(Jones, 2012: 111).
Dito isso, o esforço empreendido nesse estudo será no sentido de tentar
contemplar as dimensões simbólica e carnal que, inextricavelmente conectadas,
permeiam as experiências femininas de parturição. No próximo capítulo, se
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buscará abordar como a proposta de parto “natural” e “humanizado” é recebida e
vivida por mulheres de camadas populares, a partir de uma pesquisa realizada em
uma casa de parto pública no Rio de Janeiro. Como se verá a seguir, a CP assume
importante papel na divulgação dessa proposta entre sua clientela, tendo em vista
a menor permeabilidade das gestantes provenientes desse segmento ao projeto,
que disseminou-se inicial e principalmente nas camadas médias.
3.
Casa de parto pública na Zona Oeste
A casa de parto (CP) onde foi realizada parte da pesquisa que resultou
nessa tese é uma instituição pública reconhecida pela ReHuNa como modelo de
“humanização”56. A CP foi inaugurada em 2004 (não por coincidência no Dia
Internacional da Mulher), época em que o grupo de feministas que também
reinaugurou a Maternidade Leila Diniz, 10 anos antes, esteve à frente da
Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ).
Localizada na Zona Oeste da cidade, a CP qualifica-se como um Centro de
Parto Normal (CPN) autônomo, isto é, que não está fisicamente vinculado a um
hospital ou maternidade, e define-se como uma instituição de saúde primária, que
atende apenas gestantes de “baixo risco”. O local é gerido exclusivamente por
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enfermeiras obstetras, que prestam assistência durante o pré-natal, parto e pósparto, dentro do âmbito de suas competências, sendo o único estabelecimento
desse tipo no município. Como em outras casas de parto no Brasil e no mundo, a
infra-estrutura da CP é montada para atender casos de menor complexidade e faz
parte de sua proposta incentivar a presença da família, buscando enfatizar a
“normalidade” do evento.
A CP integra o conjunto do sistema de saúde, contando, para os casos que
apresentam complicações, com os serviços de um hospital de referência, para o
qual o deslocamento em ambulância leva cerca de oito minutos. No local são
realizados, em média, 250 partos ao ano, e são atendidas principalmente mulheres
da região e de bairros vizinhos. Para dar à luz ali, as gestantes devem estar
vinculadas ao pré-natal e participar regularmente de oficinas, também chamadas
de “grupos educativos”, durante as quais são apresentadas à proposta de parto
“natural” “humanizado”.
56
Em artigo (Rattner et al., 2010), membros da ReHuNa classificam a implantação da CP, em
2004, como um dos primeiros “projetos concretos de humanização” e um “modelo para atenção
em Centros de Parto Normal (CPN) extra-hospitalares do país”.
87
3.1.
A “casa”
Cheguei à CP por indicação da doula Flora, que havia me dito durante a
primeira entrevista realizada para a pesquisa que “ali era o melhor lugar para se
ter filho no Rio de Janeiro”. Após um contato telefônico, deixei a Zona Sul da
cidade e me desloquei em direção à Zona Oeste para conhecer o trabalho
desenvolvido na casa de parto.
Na primeira visita, fui recebida pela coordenadora do lugar e logo percebi
que, no dia-a-dia, “casa” é a forma como os que trabalham ali e as mulheres que
fazem o pré-natal a chamam. E, de fato, parece tratar-se de uma casa. Sem cheiro
de hospital, mobiliário de ferro ou profissionais vestidos de branco. E isso é algo
intencional, me diria mais tarde Eugênia, a coordenadora. O objetivo era construir
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um ambiente que em nada remetesse a maternidades e hospitais. Em comum com
aqueles lugares, apenas as muitas barrigas que ocupam diariamente a sala de
espera. Aliás, as diferenças já podem ser notadas ali mesmo: paredes cor de rosa,
cadeiras de balanço (para adultos e crianças), sofás cobertos com almofadas
coloridas. Todo o mobiliário é de vime, inclusive a estante, que comporta, além da
televisão, porta-retratos com fotos de bebês nascidos na “casa”.
Como é possível observar, a CP aparentemente representa uma tentativa de
reporoduzir, no espaço público, um ambiente que evoca o espaço doméstico. Isso
significa uma ruptura com o próprio entendimento e significado comumente atribuído
ao parto em nossa sociedade, na medida em que este deixa de ser encarado como um
evento de risco, que deve ser circunscrito ao ambiente hospitalar, para ser tratado como
um evento de saúde e que, em princípio, não requer uma intervenção medicalizada,
podendo ser plena e eficazmente realizado em contexto não hospitalar. De maneira
geral, é possível dizer que a CP busca ocupar o espaço que estaria no “meio do
caminho” entre um parto hospitalar e aquele que tem lugar no domicílio da parturiente.
Isto é, ao mesmo tempo em que dispõe de profissionais e de uma infra-estrutura básica
de assistência a eventuais situações de risco, busca agregar referências da casa,
remetendo a um ambiente de aconchego e pessoalidade, por oposição à formalidade e
frieza comumente associada ao ambiente hospitalar.
88
3.1.1.
O Acolhimento
Quando chegam ali pela primeira vez, as gestantes que pretendem
ingressar no pré-natal preenchem uma ficha com a secretária, que agenda um
horário no chamado encontro de Acolhimento. Elas devem retornar nesse dia
junto com um acompanhante, presença estimulada em todas as consultas e
também no parto.
O encontro de Acolhimento acontece duas vezes por semana, de manhã
cedo, e busca apresentar a proposta do lugar às gestantes recém-chegadas. Quando
adentram a sala, as mulheres devem tirar os calçados e se sentar nos colchões que
margeiam as paredes, recostando-se em grandes almofadas, com cores vibrantes,
que dão um ar lúdico ao ambiente. Esta sala será um lugar muito freqüentado por
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elas ao longo do pré-natal.
Assisti algumas vezes ao encontro de Acolhimento, que geralmente é
conduzido pela diretora ou pela coordenadora da “casa”, ambas enfermeiras
obstetras.
Pelo que pude notar, normalmente há uma narrativa que acompanha essa
apresentação, que inicia recordando as mulheres de que, no passado, o parto
acontecia em casa com “parteiras”.
“Eram mulheres apenas”, disse Lúcia, diretora da casa de parto, no
encontro do dia 28 de junho de 201157. Seu comentário parecia ter o intuito de
situar a enfermeira obstetra como a sucessora da “parteira” tradicional – uma
referência não tão distante no contexto das classes populares –, valendo-se do fato
de que na área de enfermagem há uma predominância massiva de mulheres, o que
se reflete também na equipe que integra a casa de parto58.
“Vocês vão dizer: Ah, mas muitos bebês morriam... Mas quais morriam?
Os que hoje seriam classificados como de alto risco”, argumentou Lúcia. Esse
57
Nesse dia estavam presentes: cinco casais, uma adolescente acompanhada da mãe, uma gestante
acompanhada do filho pequeno (que nasceu na “casa”), outra que veio com a cunhada e uma que
estava sozinha. Ao todo, nove gestantes participaram do encontro nessa ocasião.
58
Na casa de parto há apenas dois enfermeiros obstetras do sexo masculino, de um total de 18
profissionais com essa formação.
89
dado costuma ser bastante enfatizado nesses encontros, pois, como se verá
adiante, a CP conta com um rígido protocolo para definir as mulheres que estão
ou não aptas a darem à luz ali.
Naquele dia, Lúcia continuou sua apresentação abordando o processo de
transferência dos partos para o hospital e enumerou algumas das práticas que
passaram a acompanhar o nascimento por ocasião de sua incorporação ao novo
ambiente: “Como é o parto no hospital? Com lavagem intestinal, raspagem dos
pêlos, jejum, não pode andar... tudo diferente do que acontecia no parto em casa,
com a parteira”.
Pouco a pouco, Lúcia tentava mostrar às gestantes presentes que a
proposta de parto “da casa” encontrava mais semelhanças com a do parto “em
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casa”, tradicionalmente acompanhado por “parteiras”, do que com aquela dos
hospitais e maternidades. De maneira sucinta, é possível dizer que o parto
“natural” e “humanizado” pode ser pensado como uma “técnica”, “como um ato
tradicional eficaz” (Mauss, 2003), que foi esquecido e substituído por outros
procedimentos, mas que a casa de parto busca atualizar, ao mesmo tempo em que
também o recria, tendo como referente positivo a tradição representada pela
“parteira”.
Assim, durante o encontro a diretora procurou valorizar o ambiente da
casa de parto que, assim como o doméstico, seria, na sua descrição,
“aconchegante” e “familiar”. Em seguida, buscando desconstruir a ideia de
segurança geralmente associada aos hospitais por seus recursos tecnológicos, mas
onde estariam ausentes os recursos humanos e afetivos, Lúcia afirmou que a
ambientação da “casa” contribuiria para deixar a parturiente “segura” para dar à
luz.
Durante a exposição daquela manhã a diretora sentou-se em um pufe
baixo, na altura das demais mulheres, em sintonia com a filosofia da instituição de
buscar reduzir as assimetrias entre os profissionais de saúde e a clientela, visando
90
a uma relação mais igualitária59. De maneira geral, o referente contrastivo parece
ser o lugar de saber-poder tradicionalmente ocupado pelos médicos, de quem as
enfermeiras da CP claramente buscam diferenciar-se, seja no uso de roupas do
cotidiano durante o atendimento – sem jalecos ou evitando fazer uso da cor branca
–, seja na valorização da tradição representada pelas “parteiras”.
Naquela manhã, Lúcia deu continuidade à exposição mantendo o modelo
de perguntas e respostas que acompanharia quase toda sua apresentação: “O que é
intervenção?”, indagou, para responder ela própria em seguida: “É tudo aquilo
que a gente faz atrapalhando a natureza”. Com efeito, a visão do parto como um
evento “natural” e “fisiológico”, que idealmente deve sofrer o mínimo de
interferência do profissional de saúde, é um aspecto central da proposta
impulsionada pela casa de parto. O problema, segundo Lúcia, é que nos tempos
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atuais a vida ficou muito acelerada, repleta de demandas e obrigações, e o
profissional quer que o parto termine logo porque tem outros afazeres a cumprir.
“Ele faz isso sob o pretexto de ajudar a mulher”, afirmou.
O comentário de Lúcia, eu viria a compreender mais tarde, travava um
diálogo implícito com a percepção corrente entre as mulheres naquele contexto de
que o uso do hormônio ocitocina60 e a prática da episiotomia61 – corriqueiros nas
maternidades quando se trata de parto “normal”, mas evitados na “casa” –
representam uma “ajuda” à mulher, na medida em que reduzem o tempo do
trabalho de parto. No entanto, na visão da diretora e dos ativistas da
“humanização” em geral, essas práticas de rotina representam uma interferência
negativa no parto. Noutras palavras, as intervenções são percebidas como mais
danosas do que benéficas ao trabalho de parto, que idealmente deveria transcorrer
de forma “natural” ou “fisiológica”, sem qualquer medicamento ou incisão62.
59
Isto se traduz inclusive na forma como, de maneira geral, é organizado o espaço físico na CP,
não havendo, por exemplo, mesas separando paciente/enfermeira nas salas de consulta. Ambas
sentam-se em um sofá e conversam de maneira informal.
60
Hormônio produzido pelo corpo e que provoca as contrações uterinas. Na versão sintética, é
usado para induzir ou acelerar o parto (Diniz e Duarte, 2004)
61
Corte realizado na entrada da vagina com o intuito de facilitar ou acelerar a saída do bebê (Diniz
e Duarte, 2004).
62
É interessante destacar que, na casa de parto, as oficinas pouco abordam quais seriam os usos e
indicações das intervenções, sendo o assunto pouco debatido ou questionado. O que as gestantes
sabem sobre o assunto normalmente advêm de experiências anteriores ou de informações obtidas
junto a outras mulheres.
91
Em sintonia com essa visão, Lúcia acrescentou que o parto e a gravidez
não deveriam ser tratados como doença, mas como eventos que fazem parte da
vida. Ao longo da gestação “a vida continua normal, se trabalha, se estuda”, disse
ela, aparentemente dirigindo-se às adolescentes, que costumam abandonar os
estudos nesse período. Mas apesar de enfatizar a normalidade da experiência, a
diretora fez questão de destacar que, tal como vivido na “casa”, o parto se
constituiria, ao mesmo tempo, em um evento transformador. “Vocês vão sair
daqui outra mulher. Vão se sentir e vão ser percebidas pelos outros assim:
empoderadas. Vocês vão parir o filho de vocês!”, afirmou, colocando em
evidência o papel “central” e “ativo” que ela esperava que as gestantes viessem a
assumir durante o parto. Segundo Lúcia, as enfermeiras e os acompanhantes iriam
apenas prestar apoio, pois o parto, em última instância, seria “da mulher”.
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Na ocasião, Lúcia não chegou a se aprofundar na discussão, mas a idéia de
um “parto ativo”63 se constrói por oposição à postura percebida como “passiva”
assumida pela parturiente no parto “normal” medicalizado. Nesse tipo de parto o
profissional de saúde assume o papel central e conduz todo o processo. Assim,
cabe a ele toda a iniciativa: determinar a temporalidade do parto (através do uso
de ocitocina), fazer pressão na barriga da parturiente (a chamada “manobra de
Kristeller”), cortar seu períneo para apressar a saída do feto (episiotomia) e, no
caso das mulheres que tomam anestesia, muitas vezes é a ele que cabe informar
quando a parturiente deve fazer força para expulsar o feto. Segundo essa visão, a
posição de litotomia seria o paradigma da “passividade” feminina, uma vez que,
deitada com a barriga para cima, a mulher não teria acesso, em seu campo de
visão, ao que ocorre em seu próprio corpo. Ao contrário, tal posição expressa a de
um corpo situado para o outro, facilitando a intervenção deste sobre o próprio
corpo. De fato, afirmam os ativistas, a posição de litotomia teria sido adotada para
facilitar a visualização do períneo pelo médico e seria considerada inclusive
desfavorável para a parturiente, que dessa forma não tiraria proveito da gravidade.
63
A expressão dá título a um livro muito lido pelos adeptos da “humanização”, escrito em 1983
pela educadora perinatal Janet Balaskas, que tem origem sul-africana, mas vive na Inglaterra.
Balaskas frequentemente visita o Brasil, onde ministra palestras a um público composto,
sobretudo, por adeptos do ideário.
92
Buscando contrapor-se a esse cenário, na CP as mulheres são incentivadas
a assumir um papel “ativo” durante o trabalho de parto, o que significa reassumir
o controle sobre o próprio corpo. Segundo essa leitura, isto ocorre, por exemplo,
quando a parturiente pode experimentar e escolher as posições que lhe parecem
mais confortáveis, movimentar-se livremente durante o trabalho de parto e usar
suas próprias forças para dar à luz. O potencial transformador da experiência
dependeria dessa atuação, uma vez que o lugar central assumido pela parturiente
romperia com a representação da mulher passiva e dependente, abrindo a
possibilidade de reconfigurar não só a relação com o profissional de saúde, mas
também com seu parceiro. Não por acaso, a presença do homem no parto é
altamente incentivada pela CP. A intenção é que o parceiro assista ao desempenho
da mulher, cuja atuação seria considerada fundamental para o desfecho do parto
desmedicalizado. Nesse sentido, além de presenciar o nascimento do bebê, o
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homem é incentivado a assistir ao nascimento de uma “nova mulher” – o que será
explorado ao longo do capítulo.
Outro assunto abordado por Lúcia no encontro de Acolhimento daquela
manhã foi o fato de não haverem médicos integrando a equipe da casa de parto.
Apesar da ênfase dada pela diretora à questão, as mulheres presentes já tinham
sido previamente informadas e inclusive assinado um termo, no momento em que
inscreveram-se no pré-natal, declarando estarem cientes de que o atendimento
prestado é feito exclusivamente por profissionais de enfermagem64.
Durante o encontro, Lúcia esclareceu as diferenças nas atribuições entre
enfermeiras e médicos obstetras: enquanto as primeiras estão habilitadas a atender
exclusivamente parto “normal” de “baixo risco”, os médicos estão aptos a atender
também aqueles de “médio” e “alto risco”, tanto “normal” quanto cesárea. Além
disso, a diretora informou que quando são detectadas complicações que escapam
às atribuições das enfermeiras, as mulheres são transferidas de ambulância para a
64
Foi possível verificar durante as entrevistas que algumas mulheres e seus familiares
continuavam referindo-se aos profissionais da CP como “médicos” ou “doutores”. Esta prática
parece estar associada ao lugar de sujeito responsável pelos cuidados, posto atualmente ocupado
por aqueles com formação em Medicina, e também à atuação autônoma das enfermeiras, que não
costuma ser verificada em outros contextos e se assemelha àquela geralmente esperada dos
médicos.
93
maternidade de referência e os médicos do local dão continuidade ao
atendimento65.
Depois de enfatizar a ausência de médicos na CP, o que costuma gerar
grandes resistências, Lúcia procurou enumerar algumas das vantagens da “casa”:
durante o pré-natal as mulheres têm consultas com uma assistente social (“Ela vai
falar sobre os direitos de vocês”) e uma nutricionista (“Uma consulta custa 80
reais por aí”), além de assistirem a uma palestra sobre saúde bucal (“Para aprender
como evitar cáries nos bebês”). Em seguida, a diretora explicou que ali era o
único lugar público que garantia a vaga na hora do parto para as gestantes que
fizeram o pré-natal66. Esse aspecto é considerado um forte atrativo, tendo em vista
que a clientela da CP é, em sua maioria, usuária dos concorridos serviços públicos
de saúde. “A mulher que faz o pré-natal aqui, tem bebê aqui. Não precisa procurar
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vaga nas maternidades na hora do parto”67.
Outro ponto enfatizado pela diretora no Acolhimento referia-se à presença
de acompanhantes. Apesar de haver uma lei federal que prevê o direito ao
acompanhante nas maternidades, esta norma nem sempre é respeitada e muitas
vezes é franqueada a entrada apenas a acompanhantes do sexo feminino, sob a
alegação de que as instituições dispõem de enfermarias coletivas. Por outro lado,
na CP a presença do homem não só é incentivada, mas praticamente prescrita,
como sugeriu o comentário feito por Lúcia naquela manhã: “A mulher não só
pode escolher ter o pai do bebê presente, mas também um segundo
acompanhante”, afirmou. Em seguida, no entanto, a diretora esclareceu que, no
modelo de parto proposto, o acompanhante também deveria participar,
enumerando algumas de suas possíveis atribuições: “seja fazendo massagens,
65
Lúcia naturalmente não abordou o assunto, mas há uma forte tensão entre médicos e enfermeiras
que, não raro, se reflete no tratamento dispensado às mulheres transferidas. Um exemplo é o fato
de a casa de parto ser chamada pelos profissionais da maternidade de referência, localizada em um
bairro vizinho, de “casa de perturbação”.
66
É possível que com a implantação do Programa Rede Cegonha essa realidade venha a mudar, já
que, entre suas diretrizes, está a garantia de leito (desde o pré-natal) na maternidade onde será
realizado o parto.
67
A busca por atendimento nas maternidades é recorrente entre as mulheres de classe popular e
costuma ser objeto de atenção da imprensa. No dia 20/02/12, por exemplo, o jornal O Globo
noticiou matéria com o seguinte título: “Para ter o bebê, peregrinação por oito dias”, relatando o
caso de uma gestante de Pernambuco que teve que percorrer seis hospitais em busca de
atendimento.
94
dando apoio emocional ou apenas oferecendo um copo d’água à mulher em
trabalho de parto”.
O preparo da parturiente e de seus acompanhantes ocorreria, segundo
Lúcia, durante os chamados “grupos educativos” ou “oficinas”, que são
agendados ao longo do pré-natal e cuja assistência é obrigatória para as mulheres
que pretendem dar à luz ali. “Às vezes as mulheres estão em trabalho de parto na
‘casa’ e vocês não ouvem nada. Não é porque elas estão amordaçadas, é porque
elas estão preparadas”, festejou a diretora, em um prenúncio da ênfase dada pela
instituição à preparação emocional durante o pré-natal. “Quem quer tirar carteira
de motorista não tem que treinar? Então, para ter bebê é a mesma coisa”,
comentou. Dirigindo-se às multíparas, Lúcia afirmou que a preparação oferecida
por meio dos grupos educativos também teria algo a lhes acrescentar, pois ali
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viveriam uma experiência de parto nova, diversa da que conheciam.
Na parte final do encontro, Lúcia informou que as mulheres precisariam
fazer uma série de exames – chamados de “primeira rotina”68 – e explicou
minuciosamente cada um deles, esclarecendo as razões pelas quais eram
relevantes para o acompanhamento da gestação. “A gente só dá importância se a
gente entende para quê serve aquilo que é solicitado”, afirmou ao grupo.
Foi possível notar ao longo da pesquisa que a explicação de todos os
procedimentos e exames, expondo as razões e os conhecimentos que
fundamentam e dão sentido a essas práticas, foi pacientemente repetida pelos
profissionais ao longo das consultas, o que foi visto de maneira positiva pelas
usuárias: “Aqui eles explicam tudo”, comentou a mãe de uma gestante
adolescente, considerando ser essa uma vantagem oferecida pela “casa”. Essa
prática certamente chama a atenção pelo fato de ser um tanto incomum na relação
que os médicos travam com pacientes de classes populares, relação em geral
bastante assimétrica, como bem observou Boltanski (1979)69.
68
São eles: urina, fezes, hemograma completo, VDRL (para identificar se a mulher tem sífilis),
toxoplasmose, HIV, glicose e tipo sanguíneo.
69
“As explicações dadas pelo médico ao doente variam, efetivamente, em função da classe social
do paciente; os médicos, em geral, não dão longas explicações senão àqueles que julgam ‘bastante
evoluídos para compreender o que vai lhes ser explicado’. Para o médico, efetivamente, o doente
das classes populares (...) não está em estado de compreender a linguagem e as explicações do
95
Já próximo de encerrar o Acolhimento daquela manhã, a diretora colocou
um vídeo em que foram exibidas imagens de mulheres em trabalho de parto e
dando à luz (algumas delas na banheira), imagens da equipe, das instalações da
CP, da ambulância, de mães amamentando seus bebês, etc. As cenas, com uma
linguagem de clipe, foram acompanhadas por uma música de fundo, que tinha
como refrão a frase: “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo,
nós podemos mais”. Ao final, algumas pessoas ficaram visivelmente
emocionadas.
É interessante observar, como sugere Diniz (2005), que o modelo de parto
proposto tem inspirado uma nova estética, cujas imagens, sempre acompanhadas
de uma música tranqüila e suave, contribuem para que o parto seja percebido
como um evento sob controle e não como algo “medonho”, que gera incômodo e
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repulsa, passando a evocar emoções de outra ordem.
A diretora, que havia se retirado da sala durante a exibição do DVD,
retornou em seguida com uma agenda para marcar a primeira consulta do prénatal. Antes, indagou às mulheres, então cientes da proposta da “casa”, se tinham
interesse em dar continuidade ao acompanhamento da gestação ali. Todas
concordaram.
3.1.2.
Sem médicos e sem “ajuda”
Foi com estranhamento que, de maneira geral, as entrevistadas informaram
terem reagido seus familiares, amigos e vizinhos quando informados de que elas
fariam o acompanhamento pré-natal e dariam à luz em uma casa de parto.
Segundo as mulheres, é sobretudo a ausência de médicos que costuma ser uma
grande fonte de preocupação e as gestantes que optam por ingressar ali são
frequentemente taxadas de “malucas”:
“Todo mundo falou que aqui era hospital de maluco. Porque aqui não tem
médico; porque é só assistido por enfermeiras; esse monte de palestras, né? As
pessoas falavam que aqui era hospital de maluco.” (Janice)
médico, e a quem, se se quer fazer compreender, convém dar ordens sem comentários, em vez de
conselhos argumentados” (Boltanski, 1979: 44).
96
“Todos [na família] me chamaram de maluca, todo mundo... Disseram que eu ia
morrer aqui e que eu estava colocando a minha vida e a vida do meu filho em
risco. Teve gente até que falou assim: ‘Ah, eu lavo as mãos se acontecer alguma
coisa com você’, foi a minha mãe e tal...” (Elaine)
A questão do risco associado ao parto, destacada por Elaine, esteve
presente em várias entrevistas. De fato, alguns autores, como a sociológa
Alessandra Chacham (2004), vêm chamando a atenção para o fato de haver uma
crescente percepção em nossa sociedade de que o nascimento é, por princípio e
potencialmente, um fenômeno perigoso e arriscado, especialmente no caso do
parto “normal”70. Com efeito, nos hospitais e maternidades, diferentemente de nas
casas de parto, a estrutura é toda montada para atender às situações que
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apresentam complicações.
“On retrouve deux types de risques: le risque anticipé par une surveillance
médicale tout au long de la grossesse, et le risque non prévisible qui est pris en
charge dans l’urgence. Tout se passe en fait comme si cette double conception du
risque servait à justifier le suivi très médicalisé de la grossesse et de
l’accouchement physiologique.” (Jacques, 2007: 56).
Nota-se, portanto, que a questão do risco está sempre presente e dela
decorre uma série de procedimentos que acompanham e justificam a
medicalização. A questão, como bem destacou Jacques (2007), é que cabe aos
médicos tratarem da patologia, mas também anteciparem-se a ela, o que faz com
que essas duas lógicas se articulem, gerando uma situação de permanente alerta e
sensação de risco. Seguindo esse raciocínio, não seria possível tratar qualquer
gestação como sendo de baixo risco, já que esta classificação pode, em tese,
mudar a qualquer momento. Diante desse cenário, os médicos se apresentam
como os especialistas na gestão do risco, tal qual observou Jacques (2007) em
relação ao contexto francês, e que, nesse aspecto, é bastante semelhante ao
brasileiro.
Assim, não é de surpreender que a CP, que por princípio possui menos
recursos que a maternidade ou o hospital e onde o atendimento é feito
exclusivamente por enfermeiras obstetras, seja fonte de tanto estranhamento e
preocupação por parte dos familiares das gestantes.
70
Por outro lado, observa Chacham (2004), a cesárea costuma ser vista em nossa sociedade como
“segura” e “inócua”.
97
A não realização de procedimentos que são rotineiros em partos “normais”
hospitalares – como a administração de ocitocina e o corte no períneo,
tecnicamente chamado de episiotomia –, são também pontos de difícil aceitação
social, como relatam as entrevistadas:
“Alguns vizinhos deram uns pitacos: ‘Ai, meu Deus, você vai ter lá? Lá eles não
dão ponto, eles deixam o neném rasgar a pessoa toda’. Tanto é que eu perguntei à
Paula [enfermeira] e ela falou: não, se for necessário a gente dá aquele corte e
costura sim. Mas se não for, a gente faz de tudo e tal. Aí eu já fiquei mais
tranqüila, né? Porque nas minhas duas filhas eu tive que tomar o corte. Mas
algumas pessoas ficaram assim: você é louca, vai ter igual índio. Minha tia
então... ‘Valquíria, tu vai agüentar? O neném vindo, vai te rasgar toda...’ Falaram
muita coisa”. (Valquíria)
“As minhas colegas falaram: ‘a neném vai sair te rasgando toda e vai te machucar
porque lá não corta’. Falaram um monte de coisas”. (Mônica)
Entre aquelas que aderem ao modelo, o processo de aceitação sempre
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começa com a própria gestante, que é a primeira que precisa romper com uma
série de padrões de cuidado, disseminados na nossa cultura, para ingressar ali. A
episiotomia é um deles e está relacionado à maneira como é concebido o corpo
feminino. Este procedimento, além de ser percebido como uma “ajuda” – por
ampliar a abertura da região vulvo-perineal na hora do parto –, também costuma
ser concebido como um expediente para minorar os estragos que o parto é suposto
provocar no corpo da mulher. O que supostamente a episiotomia previne e evita é
que o órgão sexual feminino seja “rasgado” ou fique “frouxo” e “largo” depois da
passagem do bebê. Como bem observou Tânia, assistente social da CP, a visão
predominante “na nossa cultura [é de que] o parto normal estraga a mulher”.
Esta crença é bastante difundida, até mesmo por profissionais, como é o
caso de Jorge de Rezende, um dos autores brasileiros com maior número de
publicações na área de Obstetrícia: “A passagem do feto pelo anel vulvo-perineal
será raramente possível sem lesar a integridade dos tecidos maternos, com
lacerações e roturas as mais variadas, a condicionarem frouxidão irreversível do
assoalho pélvico” (Rezende, 2007: 349 apud Diniz71). A idéia de que o
nascimento do bebê pode comprometer de maneira irreversível o corpo feminino
revela que esse corpo é concebido como imperfeito e dependente da atuação do
profissional de saúde, que deve corrigir esta incapacidade através da episiotomia.
71
http://www.amigasdoparto.com.br/episiotomia3.html (último acesso em 03/04/2013).
98
Assim, a visão amplamente disseminada é de que, quando é feito o
procedimento, a vagina não precisa se distender tanto e os pontos dados no
momento da sutura contribuem para deixá-la mais “fechada”. Há inclusive o
chamado “ponto do marido” (Diniz e Duarte, 2004), um ponto a mais na incisão
realizado ainda hoje nas maternidades, supostamente devolvendo a mulher à
“condição virginal”. O nome dado a esta prática reitera uma visão do corpo
feminino em que este é pensado quase que exclusivamente como um corpo para o
outro, isto é, “alter definido” (Salem, 1983 apud Giacomini, 1985), que serve de
fonte de prazer masculino. Nesse sentido, a vagina assume o estatuto de órgão
receptor do pênis, devendo ser devidamente estimulante para sua penetração72.
Em campanha pela abolição da episiotomia de rotina, a médica e ativista Simone
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Diniz destaca que:
“No Brasil, prevalece um ‘sistema erótico’ baseado nas noções de atividademasculino e passividade-feminino. Essa idéia ratifica a teoria da vagina apertada
ou frouxa (passiva, diante do falo que a estimula e é estimulado), em oposição à
compreensão de vagina e vulva como órgãos ativos, capazes de se contrair e
relaxar, de acordo com a vontade feminina, pois são músculos voluntários.”73
Na casa de parto esse aspecto da fisiologia feminina é particularmente
enfatizado. Os profissionais repetem como um mantra a informação de que a
“vagina é um órgão elástico” e, consequentemente, depois retorna ao seu tamanho
normal. Como se verá adiante, os grupos educativos assumem um importante
papel no trabalho de “desconstrução” dos procedimentos de rotina associados ao
parto. É necessário destacar que, nesse contexto, a adesão da mulher ao parto
“natural” depende de um trabalho de convencimento por parte da equipe, em um
processo que é pensado de maneira bastante ampla, inclusive como de construção
da cidadania.
Ainda que no início as gestantes se mostrem inseguras e apreensivas, elas
geralmente aceitam permanecer ali ao serem cativadas pela atenção e pelo
tratamento recebido no encontro de Acolhimento. É assim que as mulheres – que
costumam chegar a CP por indicação de alguém próximo – vão pouco a pouco
72
Certa vez ouvi de uma mulher que tinha feito cesárea que o bom da cirurgia é que, assim,
“ficava intacto o playground”, referindo-se à vagina.
73
http://www.amigasdoparto.com.br/episiotomia3.html (último acesso em 03/04/2013).
99
ganhando confiança nos profissionais e aceitando a proposta de parto74, processo
para o qual as oficinas e grupos educativos parecem assumir um papel
fundamental.
Após alguns meses de observação participante, foi possível notar que para
a maioria das mulheres contactadas a ausência de médicos, que inicialmente
parecia uma preocupação incontornável, já não o era. Com efeito, algumas
entrevistadas – em especial aquelas que já tinham filhos – comentaram que, via de
regra, são as enfermeiras que se ocupam dos partos de “baixo” risco nas
maternidades públicas. Deve-se mencionar que, antes mesmo da recente
regulamentação da assistência ao parto por enfermeira obstetra, pelo Ministério da
Saúde, essa já era uma prática informal nas maternidades públicas.
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“[A ausência de médicos para mim] é indiferente porque lá, no hospital, na
maternidade, quem fez o meu parto foi um enfermeiro obstetra. [Para mim é]
Indiferente”. (Adriana, referindo-se ao parto de seu primeiro filho).
“Ele [o companheiro] ficou preocupado, porque ele falou assim: ‘Ah, mas eu
acho que o hospital é melhor. Porque lá [na casa de parto] são enfermeiros
obstétricos’. Mas na maternidade eu tive com a Zilda75. A Zilda fez o meu parto e
ela é enfermeira. (...) Ainda mais... Uma com 16 anos [de experiência]. Tinha
outra com 25 anos de enfermagem, a Francisca. Só fazendo em hospitais parto e
parto. Eu falei assim: “Um profissional com 25 anos sabe muita coisa.” (Marisa,
referindo-se ao parto do primeiro filho)
“[O fato de ter não ter médico] Não me assustou não, porque, no [parto] da minha
filha, quem fez o parto da minha filha foi uma enfermeira. Apesar de ter médico,
foi uma enfermeira que fez”. (Analice, também referindo-se ao parto anterior)
“Nas outras maternidades também quem faz os partos são os enfermeiros.
Médico é para o caso de emergência” (Evelin, primípara).
“Eu não acredito que nos hospitais todas as pessoas que fazem partos são
médicos. Eu acredito que, em muitos dos casos, são as enfermeiras que fazem e
ninguém sabe. Porque a paciente não sabe quem é que está fazendo o parto dela”.
(Carla, primípara)
Entre as mulheres de classe popular – majoritariamente usuárias de
hospitais e maternidades públicos – ser atendida por profissionais de enfermagem
74
É importante destacar que uma parcela, no entanto, não adere ao projeto ou acaba sucumbindo à
forte resistência da família. Como se verá adiante, essas frequentemente dão continuidade ao prénatal, mas, quando entram em trabalho de parto, dirigem-se – ou são dirigidas – a maternidades
públicas.
75
Zilda é uma das várias enfermeiras obstetras da “casa” que também trabalham na maternidade
de referência.
100
no momento do parto é algo relativamente corriqueiro, como sugerem os relatos
acima. A larga experiência desses profissionais compensaria a defasagem que
supostamente representa não terem a (esperada) formação em medicina, como
sugere o depoimento de Marisa. Já Evelin atenta para uma separação de domínios,
tal qual observada em países europeus, onde há uma clara divisão de
responsabilidades de acordo com o risco presumidamente associado ao parto.
No caso das mulheres de camadas médias, o espaço ocupado pela
enfermeira- obstetra – também chamada de “parteira urbana”76 – é quase que
exclusivamente o do parto domiciliar. E isto porque os médicos, por pressão do
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), estão
hoje praticamente ausentes desse cenário. Considerando que apenas um número
muito reduzido de mulheres faz a opção pelo parto domiciliar, é possível dizer que
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os médicos detêm um amplo monopólio sobre os partos nas camadas médias, o
que é fomentado pelos próprios planos de saúde, uma vez que estes só autorizam
pedidos de exame que tenham sido solicitados por profissionais com essa
formação.
3.2.
As mulheres
3.2.1.
Quem são elas?
Ao todo foram entrevistadas 25 mulheres, das quais 10 estavam grávidas e
15 tinham dado à luz recentemente77. As entrevistas foram realizadas na própria
CP, em ambientes reservados, na maioria das vezes apenas com a mulher, mas em
alguns casos na presença de familiares (do companheiro, da mãe, da irmã, da
cunhada, etc.) que, quando desejavam, também emitiam opiniões e participavam
76
A denominação “parteira urbana” costuma ser utilizada para identificar as enfermeiras obstetras
que assistem partos domiciliares no meio urbano, em alusão à parteira, que passou a ser designada
como “tradicional”. Esta não possui educação formal e atua, hoje em dia, principalmente nas áreas
rurais. As enfermeiras que atuam na CP, contudo, não se auto-denominam “parteiras”,
possivelmente por não atuarem em âmbito domiciliar, que seria o espaço, por definição, dessa
ocupação. Ainda assim, como anteriormente referido, reconhecem-se, assim como as “parteiras
urbanas”, como herdeiras desse legado.
77
Por se tratar de um grande número de entrevistadas, optou-se por apresentar os dados relativos à
idade, local de moradia, renda, escolaridade, dentre outros, de forma agregada. No entanto, em
uma tabela (Anexo II) é possível observar as informações que se referem a cada entrevistada. No
caso do outro grupo, por envolver um menor número de entrevistadas (12), essas informações
estão disponibilizadas no próprio corpo do texto, como se verá no capítulo 4.
101
da entrevista. Em geral, as gestantes selecionadas foram convidadas a integrar a
pesquisa após terem participado dos grupos educativos, enquanto no caso das
puerperas a maioria dos convites foi feito àquelas que aguardavam receber alta, o
que costuma ocorrer 24h após terem dado à luz, mas também a algumas que
retornavam para consultas de revisão no período pós-parto.
Uma parcela minoritária das entrevistadas era proveniente de bairros
longínquos da cidade (12%), que inscreveram-se no pré-natal motivadas pela
proposta de parto, ao passo que a maioria era composta por moradoras da região,
que buscaram a CP após terem ouvido comentários positivos sobre o trabalho
desenvolvido ali, mas na prática tinham poucas informações sobre as
particularidades do serviço. Estas acabaram tomando conhecimento da proposta
de parto – nesse contexto quase sempre referido apenas como parto “natural”78 –
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durante o Acolhimento, mas também ao longo das consultas do pré-natal e dos
grupos educativos.
Com idades entre 14 e 38 anos79, a maior parte das entrevistadas se
identificou como solteira (52%), categoria em que se incluíram muitas das que, na
prática, viviam em união estável. Ainda que a maioria tenha informado residir
com o marido/parceiro ou com o marido/parceiro e filhos (52%), um número
significativo (28%) residia com marido/parceiro, filhos e com membros da família
de origem (pais/padrastos/sogros, podendo incluir também cunhados/irmãos). Isto
é, a família de origem muitas vezes coabitava com o casal. Além disso, 16% das
entrevistadas
moravam
apenas
com
a
família
de
origem
(pais/padrastos/avós/irmãos), sem o parceiro. Essa situação foi observada não só
entre aquelas que já não se relacionavam com o pai do bebê, mas também entre
algumas que mantinham um relacionamento estável com ele.
78
É importante destacar que o termo parto “humanizado” era desconhecido por muitas das
entrevistadas e, entre aquelas familiarizadas com ele, poucas se sentiam à vontade para defini-lo.
No entanto, durante todo o período da pesquisa de campo esteve afixada na porta de entrada do
local uma faixa com a seguinte frase: “Parir e nascer com dignidade e humanização”. Sobre esse
aspecto, não se deve desconsiderar o fato de que os profissionais, que são os que na prática
apresentam à proposta de parto da CP à clientela, poucas vezes faziam uso da expressão parto
“humanizado”, o que será explorado ao longo da tese.
79
Dentre as entrevistadas, 52% tinham entre 14 e 24 anos.
102
Considerando que a maior parte dos atendimentos do SUS concentra-se
em usuários com faixa de renda entre ¼ e ½ salário mínimo80, é possível que uma
parcela das mulheres que integram a pesquisa faça parte de uma “elite” dentro do
segmento popular, tendo em vista que 40% declararam ter renda familiar entre 2 e
5 salários mínimos e foi registrado apenas um caso de integrante do Programa
Bolsa Família81.
Assim como a renda, também chama a atenção naquele contexto o nível de
escolaridade das entrevistadas: a maior parte tinha o ensino médio completo
(48%). No entanto, a relativamente alta escolaridade não se traduziu em
engajamento no mercado de trabalho, já que 60% declararam-se “do lar”. Destas,
contudo, 33% eram estudantes que abandonaram a escola por conta da gravidez.
Como observam Machado e Barros (2009), a maternidade tende a reduzir as
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possibilidades de qualificação e de inserção das mulheres na esfera pública.
Em menor número, as entrevistadas que trabalhavam (32%) assumiam
ocupações variadas, tais como: operadora de caixa, auxiliar de serviços
operacionais, secretária, pastora, enfermeira, comerciante e manicure. Além disso,
8% declararam-se “estudantes”.
No que se refere à religião, 52% declararam-se evangélicas. Essa
constatação vai ao encontro do que observaram Machado e Barros (2009: 374),
que afirmam que “a capacidade de influência das comunidades confessionais
sobre as mulheres varia segundo os estratos sociais e se mostra muito mais efetiva
nas camadas populares”.
A maior parte das entrevistadas estava grávida pela primeira vez ou tinha
recentemente dado à luz o primeiro filho (64%). No entanto, a maioria não havia
planejado a gravidez. De fato, apenas 20% o fizeram. De acordo com os
depoimentos, para uma parcela expressiva a gestação foi recebida com um grande
“susto”, quando não com “desespero” e “tristeza”. Isso fez com que a gravidez
fosse vivida por muitas delas como um período de “aceitação” ou mesmo de
“superação”, para reproduzir alguns dos termos utilizados.
80
Fonte: Retrato das Desigualdades, 2011.
Programa do governo de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de
pobreza e de extrema pobreza. Para mais informações, ver: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia
81
103
3.2.2.
Motivações
A partir das entrevistas e também com base nas observações feitas ao
longo da pesquisa de campo, foi possível identificar o que as mulheres mais
valorizam na casa de parto e o que motivou a escolha por esse serviço.
Em sua maioria usuárias dos serviços públicos de saúde, as gestantes que
compõem esse estudo pareciam estar um tanto quanto alheias ao debate sobre a
“epidemia” de cesáreas no país, até mesmo porque no SUS a taxa de partos
cirúrgicos é muito inferior àquela observada nos hospitais e maternidades
privados, como visto no capítulo 2. Da mesma forma, a crítica sobre o que seria
um uso excessivo de medicamentos durante o parto, que está na ponta da língua
das mulheres de camadas médias que freqüentam o outro grupo de gestantes,
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também não ecoa muito por lá. Elas identificam apenas duas práticas, que seriam
o “corte” e o “soro”, em referência à episiotomia e à ocitocina, mas em geral não
julgam que sejam práticas negativas. Como já mencionado, muitas usuárias da CP
consideram que trata-se de uma “ajuda” ou formas de “cuidado” – visão que é
questionada ao longo do pré-natal, especialmente nos grupos educativos.
Um detalhe, contudo, chamou a atenção nos relatos das mulheres desse
grupo: no rol de “ajudas” e “cuidados” possíveis, a anestesia não foi mencionada
por nenhuma delas. Durante uma entrevista, indaguei sobre o assunto e recebi
como resposta de uma parturiente: “Ué? Mas se toma anestesia durante o parto?”.
Não sem alguma surpresa, me dei conta de que as mulheres de camadas populares
não costumam ter registro desse recurso, pois essa possibilidade não está colocada
não só na casa de parto, mas também nos hospitais e maternidades públicos em
geral82.
Os resultados preliminares da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito
Nacional sobre Parto e Nascimento”, confirmam a tese, ao indicarem que a
82
Certa vez peguei carona com Paula, que na época era residente de enfermagem, e aproveitei para
perguntar sobre o assunto. Durante o período da residência ela percorreu diversas maternidades e
hospitais da rede municipal, passando cerca de 1 mês em cada um. Paula me contou que,
realmente, o uso de anestesia nos partos não era comum, a menos que a instituição estivesse
recebendo residentes dessa especialidade. Nesses casos, afirmou, os residentes estavam
aprendendo a aplicar o medicamento e a dosagem injetada nem sempre era a adequada, o que
acabava prejudicando o desenvolvimento dos trabalhos de parto.
104
anestesia foi aplicada em apenas 17% das mulheres que deram à luz em hospitais
públicos. Em entrevista, o médico obstetra Marcelo, que atende em um
consultório particular e atua na rede pública, explicou que não existe qualquer
orientação técnica ou de despesa de custos. Segundo ele, ocorre que, na prática,
“os anestesistas, assim como os médicos, fazem um ‘esquema’83, então
efetivamente você nunca tem o número [de profissionais] que deveria ter”. Com
isso, os anestesistas privilegiam as situações de urgência, assim como as cesáreas
e curetagens, praticamente não atuando nos partos “normais”.
“No hospital [público] onde eu trabalho fazer uma analgesia para o trabalho de
parto é quase ter que ameaçar o cara: ‘Não quero saber’! É preciso criar um
constrangimento para conseguir fazer o procedimento” (Marcelo, médico
obstetra).
Diante dessa realidade, é possível dizer que, ao aceitarem o modelo de
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parto “natural”, tal como proposto na CP, as mulheres não estão exatamente
abrindo mão da anestesia, pois essa “ajuda” provavelmente também não estaria
disponível na outra alternativa possível, isto é, na maternidade pública. Em uma
prova de que muitas mulheres de camadas populares sequer têm registro desse
recurso, em sua entrevista Valquíria afirmou acreditar que, mesmo que pagasse
pelo parto, não teria como escapar da dor:
“A dor é a única coisa que a gente não pode dizer que foi melhor [na casa de
parto] porque a dor é igual em qualquer lugar (risos). Se você pagar mil reais, 2
mil, 3 mil, 4 mil vai ser a mesma dor, então quer dizer... por isso que eu optei até
de ter aqui, porque o pessoal falava: ‘lá não fazem isso, não fazem aquilo’, mas
eu pensei: Poxa a dor que eu vou sentir lá eu vou sentir em qualquer outro lugar,
só que na casa de parto eu vou ter algumas vantagens: vou ter a dor, mas vou ter
o meu esposo do meu lado, a minha família, e um lugar mais aconchegante com
pessoas educadas, que me dão mais atenção. E no hospital eu vou ter a dor, com
pessoas que não param nem para te dar atenção, não vou ter nem ninguém do
meu lado. Eu coloquei na ponta do lápis e vi que aqui ia ter mais vantagens para
mim”.
O cálculo feito por Valquíria, sobre as vantagens e desvantagens da CP, é,
obviamente, feito por todas as mulheres que optam por dar à luz ali. O que varia,
no entanto, são os elementos que entram na equação.
83
“Esquema” é o nome dado à prática, corrente entre os médicos no serviço público, de um
profissional cobrir os demais durante o plantão. Assim, quando em tese vários deveriam estar
trabalhando, inclusive recebendo para isso, apenas um o faz. A prática é denunciada na matéria
intitulada “Hospital agoniza com médicos que só dão plantão no papel”, disponível em:
http://odia.ig.com.br/portal/rio/hospital-agoniza-com-médicos-que-só-dão-plantão-no-papel1.578572
105
Proposta de parto
Do total de entrevistadas, apenas 24% mencionaram ter ido à CP
motivadas pela proposta de parto. Sendo que, dessas, apenas 12% eram moradoras
da região. Isto significa que, na prática, o parto “natural” precisa ser pouco a
pouco assimilado e aceito ao longo das consultas do pré-natal e dos grupos
educativos84.
Dentre as que moravam nas redondezas, uma das que buscou a CP
motivada por sua proposta foi Elaine. Ela mora com o companheiro e os dois
filhos, tem 21 anos e concluiu o ensino médio. É auxiliar de serviços
operacionais, evangélica e declara ter como renda familiar entre um e dois salários
mínimos.
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Durante a entrevista, Elaine contou que ficou sabendo da CP pela Internet
e por algumas amigas, que a recomendaram. Ela estava traumatizada com o parto
do primeiro filho, que havia sido em uma maternidade pública, e queria uma
experiência de parto “diferente”. Quando viu as fotos da “casa” na Internet, não
teve dúvidas: “Aqui você não precisa ficar numa cama do hospital sem se mexer,
sem isso e aquilo. Se você está fora de risco, então você pode ter um parto
diferente. Foi isso que me atraiu bastante”.
Denise, 25 anos, evangélica, é operadora de caixa em uma farmácia. Ela
tomou conhecimento dessa proposta de parto após ter visto uma reportagem e
feito pesquisas na Internet. “Eu sempre sonhei com o parto na banheira85 e me
interessei em vir para cá por isso, entendeu?”.
Já Joana, 26 anos, evangélica e secretária, também tomou contato com
esse tipo de parto depois de ver uma reportagem na televisão. Ela é uma das
poucas pessoas, dentre as que moram na região, a utilizar o termo “parto
84
Janice, 21 anos, conta sobre como reagiu quando foi informada, durante o “Acolhimento”, de
que ali eram atendidos apenas partos “naturais”: “No começo foi difícil para mim, né? Mas depois
eu fui me acostumando. Psicologicamente eu fui tentando me acostumar”. Luciana, 19 anos,
estudante, também relata ter vivido um processo de aceitação em relação ao tipo de parto:
“Conforme você vem fazendo o pré-natal têm os grupos que te ajudam a ter uma mente fixa para
ter o parto natural”.
85
O “parto na banheira” já era mais conhecido das mulheres naquele contexto, que, entretanto, não
o associavam à proposta de parto “natural”. Diversas entrevistadas almejavam dar à luz na água, o
que, contudo, nenhuma concretizou, por motivos variados.
106
humanizado” – ainda que, quando indagada, não se sinta capaz de formular uma
definição.
“Eu já tinha visto uma reportagem sobre parto humanizado. Daí eu procurei na
Internet um lugar próximo à minha casa que teria esse parto humanizado e tal e,
graças a Deus, tinha aqui, bem próximo da minha casa”.
O plano de Joana era dar à luz na banheira, com pétalas de rosas. Ela
passou a gravidez selecionando as músicas que tocariam durante o trabalho de
parto. As canções incluídas no CD foram escolhidas, segundo ela, de acordo com
as reações do feto. Quando estava tocando determinada música e ele mexia na
barriga, Joana incluía a canção no disco.
Como é possível notar, mesmo entre as mulheres que optaram por
ingressar na CP entusiasmadas com a proposta parto, há uma certa variação no
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entendimento que têm da proposta e no que motivou sua adesão. Assim, enquanto
para Denise o que lhe interessou foi basicamente a possibilidade de dar à luz na
banheira; Joana, além de desejar o mesmo, ficou atraída pela chance de poder
criar uma ambientação para o parto, com música e pétalas de rosa. Já Elaine
queria ter liberdade de movimentos e vivenciar uma experiência mais semelhante
a do parto em casa – o que parece estar mais em sintonia com o projeto da CP.
Conforto e privacidade
Aspectos como conforto e privacidade, traduzidos na possibilidade de ter
um quarto individual, com suíte e banheira, de ser um local limpo, poder ter dois
acompanhantes86, fotografar o parto, etc. foram os motivos que levaram 24% das
entrevistadas a escolher a “casa” para dar à luz. Todas elas são moradoras do
bairro ou das redondezas.
Lara tem 28 anos, é vendedora de roupas autônoma, e o marido, Marcos,
que também participou da entrevista, é técnico de áudio e vídeo. Ambos declaram
ter uma renda mensal de 2 mil reais. Foi Marcos quem contou no que se baseou,
inicialmente, a escolha da mulher pela CP:
86
É interessante fazer uma reflexão sobre a noção de privacidade nesse contexto. Para as mulheres
entrevistadas, privacidade era estar um quarto individual, porém, acompanhada de membros da
família e de profissionais da CP, o que costumava ser muito valorizado por elas.
107
“A grande preocupação que ela tinha era em relação a ter um parto com um
quarto separado. Ela queria ter um quarto separado e o plano de saúde que eu
entrei não ia cobrir o parto por causa da carência de 300 dias”.
Assim como Lara, Janice, que tem 21 anos e é dona de casa, também
valorizou o fato de a CP oferecer um quarto individual às parturientes. O marido
de Janice trabalha como motorista e a renda do casal se situa entre 2 e 5 salários
mínimos. Ela deu início ao acompanhamento da gestação em uma clínica
particular, mas acabou buscando a casa de parto por questões financeiras, apesar
de reclamar que ali o pré-natal era “bem mais cansativo”, por conta da
obrigatoriedade de participar dos grupos educativos.
Já Mônica, que tem 14 anos, mora em uma favela nas adjacências e é
beneficiária do Programa Bolsa Família, tinha menos expectativas. Para ela, o
valor da CP não estava exatamente na possibilidade de ter um quarto individual,
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mas na garantia de que teria um leito disponível:
“A minha vizinha, ela falou para mim que, quando ela teve o filho dela, ela teve
que dormir no corredor e que não tinha quarto para ela dormir. Aqui, eu sei que
não vai acontecer isso comigo”.
Como é possível notar, há uma variação no perfil das entrevistadas, o que
certamente influencia suas motivações para dar à luz ali. Janice e Lara parecem
integrar uma espécie de elite no segmento popular, que se esforça para ter acesso
a serviços particulares de saúde e enxerga na CP uma opção viável no setor
público, principalmente por julgarem que o serviço oferecido ali encontra
semelhanças com o particular em quesitos como conforto e privacidade. Já
Mônica, que claramente se situa em outro patamar econômico, adota como
referencial a maternidade pública – assim como a maioria das entrevistadas – e vê
na CP uma possibilidade de escapar da realidade de superlotação dessas unidades
de saúde.
“Nos hospitais não tem esse tratamento”
A qualidade do atendimento dispensado pelos profissionais à clientela foi,
para a maioria das entrevistadas, o grande atrativo da “casa”. Com efeito, este
aspecto foi mencionado por 56% das mulheres. E os adjetivos usados para
qualificar a equipe foram muitos: paciente, educada, atenta, carinhosa, amiga,
108
familiar, receptiva, dedicada, hospitaleira, etc. Ainda que não tenham utilizado o
termo “personalizado” para qualificar o atendimento, os depoimentos apontam
nessa direção, como sugere o relato de Jussara, 28 anos, mãe de três filhos:
“Uma coisa que me chamou bastante atenção foi eles [os profissionais da casa de
parto] saberem, assim, chamar a gente pelo nosso nome, né? Porque nos hospitais
geralmente não tem isso, esse tratamento. E eles... até mesmo a primeira doutora
[enfermeira obstetra], ela se lembrava de mim. Quando eu chegava para as outras
consultas, ela vinha e falava comigo. Então, eu achei isso, assim, bastante
gratificante”.
Bosi e Affonso (1998), que realizaram pesquisa em cinco unidades
públicas de serviços básicos na região da Ilha do Governador e Leopoldina, no
município do Rio de Janeiro, também observaram a importância atribuída pelos
usuários de camadas populares à qualidade da relação com o profissional de
saúde. Partindo de uma concepção de saúde que engloba várias dimensões, dentre
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elas a psico-afetiva, a clientela no contexto investigado parecia esperar dos
serviços prestados “muito mais do que um conjunto de cuidados dirigidos a um
corpo biológico” (1998: 362). De fato, Bosi e Affonso (1998) notaram que a
relação de afeto estabelecida com o cuidador foi o elemento que mais sobressaiu
na avaliação dos entrevistados sobre a qualidade do atendimento.
Em “As classes sociais e o corpo”, Boltanski (1979) argumenta que isso
ocorre porque os membros das classes populares não teriam critérios objetivos
que os permitissem apreciar as qualidades dos médicos que lhes prestam
assistência. O mesmo não seria observado entre os sujeitos que integram as
camadas superiores, uma vez que, em havendo uma menor diferença social entre
estes e os médicos, que não raro integram seus círculos de sociabilidade, poderiam
recorrer a seus contatos para informar-se, com base em títulos e reputação, quais
seriam os profissionais que ocupam o centro do campo médico. Segundo
Boltanski (1979), a ausência de critérios específicos como estes levaria os
membros das classes populares a adotar outros, que o autor classifica como
“difusos”:
“Como não possuem os critérios específicos que lhes permitiriam medir a
competência profissional do médico, os membros das classes populares só podem
avaliá-los em função daqueles critérios difusos, usados cotidianamente na
apreciação de outrem: a ‘amabilidade’, a ‘boa vontade’, a ‘complacência’”.
(Boltanski, 1979: 38)
109
Sugiro que, se pertinentes, as observações do autor se prestariam também
a analisar a interação de membros das classes populares com outros profissionais
de saúde, como é o caso da enfermagem, especialmente no contexto investigado,
em que as profissionais dessa área atuam de forma autônoma e são responsáveis
por todo o atendimento prestado.
Porém, diferentemente do que observou Boltanski (1979) em seu estudo,
algumas entrevistadas do grupo parecem não ter dificuldades em adotar critérios
específicos para avaliar a competência dos profissionais, como é o caso de Marisa,
que citou a longa experiência das enfermeiras como um importante fator para
avaliar a qualidade do serviço87.
No entanto, não há como negar que critérios subjetivos, como a atenção, o
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respeito e a amabilidade dos profissionais são extremamente valorizados pelas
usuárias da CP, o que atribuo não exatamente à ausência de critérios objetivos,
mas ao fato de o referente contrastivo da maioria das mulheres do grupo ser o
atendimento prestado nos hospitais e maternidades públicos, sobre o qual as
entrevistadas não poupam críticas. De fato, são freqüentes os relatos de mulheres
que sentiram-se “abandonadas” pelos profissionais durante o trabalho de parto e
parto, momentos que reputam delicados e de grande vulnerabilidade.
Valquíria foi uma das que narrou traumáticas experiências em
maternidades públicas. Ela, que tem 36 anos e não chegou a concluir o ensino
médio, é bastante articulada e extrovertida. Tem o corpo musculoso, tatuagem no
braço e a voz grave, o que a levou a ser convidada para cantar louvores na igreja.
Conversamos três vezes durante a pesquisa, a primeira delas depois de um grupo
educativo. Valquíria sentou-se ao meu lado e, espontaneamente, começou a contar
sobre sua gravidez. Emocionada, disse que o filho que estava a caminho tinha sido
fundamental para a revitalização de seu casamento, que durava 20 anos e parecia
ter chegado ao fim. Mas, na visão de vizinhos e amigos, ela já não estava na idade
considerada adequada para engravidar e havia sido bastante criticada por isso. De
87
“[Tinha] Uma [enfermeira] com 16 anos [de experiência]. Tinha outra com 25 anos de
enfermagem, a Francisca. Só fazendo em hospitais parto e parto. Eu falei assim: ‘Um profissional
com 25 anos sabe muita coisa’”.
110
fato, chama a atenção a diferença de idade das gestantes nos dois contextos
investigados, bem como de seus limites ideais para a gravidez.
Valquíria tem duas filhas adolescentes, que nasceram em maternidades
públicas, onde ela também fez uma curetagem em 2011, após ter sido detectada
uma gravidez anembrionária. Ela contou em detalhes suas experiências em
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diferentes hospitais públicos da cidade:
“[No parto da minha segunda filha] esqueceram placenta dentro de mim, me
costuraram com a metade da placenta, eu tive que voltar para o médico, foi
complicado. Eu fiquei com medo, né? Então eu tenho que tirar esse fantasma da
minha cabeça, porque foi um parto que ela demorou a nascer, pressionaram a
minha barriga e eu não tinha mais força, então não foi um parto legal, não. Se eu
falar que foi é mentira. (...) Em setembro eu tive uma gravidez anembrionária,
que eu nunca tinha ouvido falar nisso. Eu tive que me internar para fazer uma
curetagem e também fui tratada muito mal aqui no hospital aqui do lado. Então
eu tomei pavor de médico, de hospital. Então o hospital que é para te trazer
tranqüilidade para mim estava me trazendo pavor. Porque você pergunta uma
coisa eles te tratam muito mal, te deixam muito jogada. E na minha gravidez das
outras filhas e nessa curetagem eu fiquei assim, jogada. (...) O hospital, mesmo
tendo tanta aparelhagem, te deixa mais nervosa e [lá] não cuidam de você como
cuidam aqui”. (Valquíria)
Episódios semelhantes foram narrados por outras entrevistadas:
“[No parto da minha segunda filha] deixaram resto de parto dentro de mim:
deixaram o cordão umbilical, deixaram gaze. Depois eu tive que ir ao hospital
novamente, me internar e fazer uma curetagem. (...) No hospital, eles olham
você, rabiscam lá e vão embora. Nem olham para a cara da gente praticamente.
(...) Os médicos e os enfermeiros das maternidades são muito ignorantes. A gente
não pode falar um ‘ai’ que eles: “Vocês estão acostumadas já, tem que sofrer para
ter neném”. Eu acho que eles podiam ser mais humanos com a gente”. (Marta)
“Quando eu fui ter a minha filha, eu cheguei na sala de pré-parto, eu fiquei
jogada. Lá ninguém vinha ver. Para ser sincera, quem vinha olhar para ver se a
minha filha já tinha nascido era uma faxineira que ficou preocupada, porque eu
estava passando muito mal. Ela vinha olhar. Ela toda hora olhava porque ela
ficou preocupada comigo. O médico e a enfermeira só vinham e falavam: “Faz
força.” E saíam”. (Raquel)
Mesmo as que nunca tiveram filhos têm uma imagem negativa do hospital
e da maternidade públicos, obtida através da escuta de narrativas de outras
mulheres, de maneira que existe no universo estudado uma visão consolidada a
esse respeito. Andressa, de 16 anos, estava grávida do primeiro filho na época da
entrevista, mas foi enfática na hora de tecer críticas aos médicos que trabalham
em hospitais públicos, tomando como referência a experiência da irmã:
111
“A gente está lá, sentindo dor e o pessoal faz o quê? Ah, é mais um. Trata como
se fosse fantoche. Deixa lá. Não dá aquela assistência legal. Eu sei que é muita
gente, sabe? Mas pelo menos uma educação. Tem médico que vem com uma
grosseria extrema, entendeu? Porque com a minha irmã já fizeram isso”
(Andressa).
É interessante notar que, em contraste com a imagem negativa dos
profissionais que atuam nos hospitais e maternidades públicos, a equipe da CP é
várias vezes associada a membros da família. O atendimento personalizado e que
leva em consideração também os aspectos emocionais da paciente são
frequentemente associados ao tratamento dispensado a parentes ou àqueles que
compõem o círculo de amizade mais próximo – assunto que será retomado ao
longo do capítulo.
Ambientação
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Além da proposta de parto, do conforto e da privacidade, e do atendimento
personalizado, outro critério também pesou na escolha da CP: a ambientação, que
foi citada por 28% das entrevistadas. Com este termo pretende-se agregar
expressões como: “aqui parece a casa da gente”, “é tranqüilo”, “é calmo” e “é
silencioso”.
“Aqui é muito calmo, tranquilo (...). Você não escuta gritos. Porque, imagina,
você vai fazer pré-natal e escuta as mulheres gritando? Lá, no hospital, quando eu
fazia o [pré-natal] da minha filha eu ia e escutava mulheres gritando. Aqui não.
Aqui é calmo. Eu até uma vez perguntei se as mulheres que fazem pré-natal aqui
tinham neném mais à noite, porque, de dia, você não escuta nada. Eu acho isso
bom”. (Analice)
“Aqui parece que você está mais em casa. (...) Não tem aquele tumulto de
hospital, um entre e sai, mulher gritando e a outra chorando, máquina passando
para lá e máquina passando para cá”. (Adriana)
“O ambiente é acolhedor, assim, parece uma casa, um quarto ou uma suíte. Não
assusta, nem nada”. (Evelin)
O silêncio mencionado por Analice – e que também fora destacado por
Lúcia no Acolhimento – foi valorizado por aquelas que já vivenciaram ou
ouviram relatos sobre partos em maternidades públicas. Nessas instituições, a sala
de pré-parto costuma ser coletiva, acomodando mulheres em diferentes estágios
do trabalho de parto. O “choque” gerado nas parturientes que adentram esse
ambiente foi relatado por McCallum e Reis (2006), que realizaram pesquisa em
112
uma maternidade pública em Salvador. Segundo as autoras, “de modo geral, as
mulheres internadas manifestam muita dor e gemem a cada exame de toque
vaginal, insistentemente repetido”. A reunião de diversas mulheres nessas
condições em um mesmo ambiente levaram as entrevistadas de McCallum e Reis
(2006) a descrever a sala de pré-parto como “apavorante”, tendo uma delas
inclusive comparado o local a “um manicômio” e a “um show de horrores”.
Mais uma vez a maternidade pública aparece, portanto, como referente
contrastivo, o que permite compreender o tom elogioso com o qual Analice
refere-se ao silêncio que predomina na CP. Na percepção das entrevistadas, os
gritos que costumam ser ouvidos nas maternidades públicas contaminam, trazem
nervosismo, desconcentram, além de gerar insegurança e medo. Por outro lado, o
silêncio e a tranqüilidade que as entrevistadas assinalam haver na CP remetem ao
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“aconchego” do lar, propiciando um ambiente que consideram agradável e
favorável ao trabalho de parto.
3.3
O “programa”: “entrar é fácil, difícil é ficar”
Durante a pesquisa, mais de uma vez foi possível ouvir a diretora da CP
dizendo às gestantes que não era difícil conseguir inscrever-se no pré-natal da
casa de parto, contudo, manter-se nele era um desafio. “Aqui é uma escolha. Esse
modelo é muito diferente e é para poucos. É fácil entrar, o difícil é ficar”, afirmou
Lúcia durante um dos encontros de Acolhimento. A observação da diretora, de
fato, não parece infundada. Das aproximadamente 700 mulheres que ingressam ao
ano no pré-natal da CP, apenas cerca de 1/3 delas efetivamente dá à luz ali.
Além da concordância com o modelo de parto proposto – em princípio,
desmedicalizado –, as exigências do pré-natal incluem também a adoção de um
comportamento disciplinado e preventivo por parte das mulheres, que devem
aderir a uma espécie de “programa”. Este inclui a assistência a nove grupos
educativos ou oficinas (que duram em média 2h cada), a realização de exames de
rotina (cuja coleta costuma ser feita às 6h da manhã), o comparecimento às
consultas mensais do pré-natal (que no fim da gestação tornam-se semanais) e a
adoção de uma alimentação “equilibrada”, de modo a evitar um ganho de peso
113
excessivo durante a gestação, o qual estaria associado a
complicações que
poderiam mudar a classificação de risco da gestante.
Composta principalmente por jovens e adolescentes de camadas populares,
não é incomum que a clientela da CP tenha dificuldades em se adequar a essas
normas de comportamento, cuja filosofia implícita exige uma determinada atitude
– regrada e planejada – frente à vida, o que entra em conflito com o fato de, na
maioria dos casos, as mulheres sequer terem planejado a gravidez. Nesse sentido,
é possível dizer que tais regras de comportamento exigem uma conduta racional
com vistas ao controle do corpo e da gestação, que em geral parecem divergir das
práticas cotidianas e da forma como essas mulheres encaram a gravidez, isto é,
como algo sobre o qual não detêm total poder ou ingerência, estando de alguma
forma sempre sujeita ao imponderável. Como observou Boltanski (1979: 166),
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nas classes populares prevalece um ethos e uma atitude em relação ao tempo,
onde não predomina o planejamento de longo prazo das decisões – o que poderia
explicar a dificuldade em adotar esse tipo de comportamento em relação ao
acompanhamento da gestação, por exemplo.
A questão específica da alimentação merece algumas observações.
Diferentemente do sujeito pós-moderno descrito por Ortega (2008) que, no que se
refere às práticas de saúde, tem como característica fundamental a “autoperitagem”, isto é, ele se “auto-controla, auto-vigia e auto-governa”, na casa de
parto as mulheres devem ser incentivadas a adotar esse tipo de comportamento88.
O estímulo se baseia principalmente na retórica do risco e as gestantes são
vigiadas com o intuito de verificar sua disciplina em relação à alimentação. Nesse
sentido, como assinalou Boltanski (1979), os alimentos consumidos refletem e se
inscrevem em um estilo de vida, sendo o controle da dieta um critério de distinção
de classes. Nas consultas coletivas de Nutrição, regularmente realizadas na casa
de parto, as gestantes são instigadas a falar sobre seus hábitos alimentares. Nesses
88
De acordo com Ortega (2010), “se no decorrer do século XIX as figuras de anormalidade
passavam pelo louco ou pelo criminoso, a principal figura desviante na atualidade é a daquele que
não quer se responsabilizar por si mesmo, dos incompetentes no controle da vontade para o
domínio do corpo e da mente. O fracasso em atingir e manter os ideais de saúde socialmente
definidos é considerado uma expressão da fraqueza da vontade. O irresponsável por si mesmo é
marcado pela fraqueza da vontade, em tempos em que cada um deve gerir responsavelmente sua
saúde. Em contraposição, a normalidade desejável é o indivíduo capaz de autocontrole” (2010: 9293).
114
contextos, as mulheres são, de maneira geral, repreendidas pela nutricionista pela
pouca preocupação que exibem em consumir alimentos classificados como
“saudáveis”, havendo um número razoável de gestantes consideradas com
sobrepeso.
Diante do descompasso entre o comportamento das usuárias e as
exigências do pré-natal, ao longo da gestação há um monitoramento das gestantes
pelos diferentes profissionais. Aquelas que não se enquadram no “programa”, não
comparecendo aos grupos educativos ou não realizando os exames solicitados, por
exemplo, têm essa informação registrada em seus prontuários, que são então
identificados com adesivos, seja na cor amarela (como um primeiro sinal de
atenção), seja em vermelho (quando requer uma conversa com a diretora para
prestar esclarecimentos)89. Se a advertência formal não for capaz de reverter a
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situação, a mulher pode ser convidada a desligar-se do pré-natal.
Além dos critérios associados à disciplina da gestante, há outros dos quais
também depende a possibilidade de dar à luz na CP, relacionados à saúde e sobre
os quais a mulher não teria muita ingerência. São fatores como, por exemplo, ter
sido submetida à cesariana anteriormente, ter problemas cardíacos, de tireóide,
diabetes (gestacional inclusive), pressão alta, já ter tido toxoplasmose, ser HIV
positivo, estar com infecção urinária na época do parto, estar com placenta prévia,
entrar em trabalho de parto antes de completar 37 semanas, passar de 41 semanas
e 3 dias de gestação, ter resultado positivo no exame que verifica se a mulher tem
estreptococos B, etc. Alguns desses problemas já são detectados na primeira
consulta e, nesses casos, a gestante é logo informada de que não pode dar
prosseguimento ao pré-natal da CP. Outros, no entanto, podem vir a desenvolverse ao longo da gestação e a mulher é encaminhada à maternidade de referência
para dar continuidade ao acompanhamento da gravidez sob supervisão médica.
89
Os adesivos também são utilizados para apontar possíveis problemas de saúde, que sugiram que
a gestante está em vias de deixar de ser classificada como “baixo risco”, bem como questões
emocionais que a diretora e a coordenadora, que lêem diariamente os prontuários de todas as
mulheres que passam por consultas do pré-natal, julgam que merecem especial atenção da
enfermeira que irá realizar a próxima consulta. Há uma intencional rotatividade, para que a usuária
conheça o maior número de profissionais de enfermagem ao longo do pré-natal. Na hora do parto
ela será atendida por aquela que estiver de plantão no momento.
115
De maneira geral, é possível notar uma tensão entre a filosofia da “casa”
de tratar o parto como um evento “normal”, que faz parte da vida, e o constante
monitoramento da classificação de risco das pacientes. A rigidez no protocolo da
instituição, às vezes lamentada pelas enfermeiras por “perderem” muitas mulheres
para o hospital, é, no entanto, considerada necessária pela equipe, uma vez que o
trabalho realizado ali é vigiado de perto pelo Conselho Regional de Medicina do
Rio de Janeiro (Cremerj). O órgão já se manifestou abertamente contra o
funcionamento da casa de parto devido à ausência de médicos na equipe e recebe
os prontuários de todas as mulheres transferidas para a maternidade de referência,
para monitoramento.
As que querem, mas não podem
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Estava na sala de espera aguardando o início de um grupo educativo
quando ouvi a conversa entre um senhor, já idoso, e uma mulher franzina e
bastante falante. Ela comentava, em voz alta, os benefícios do parto “normal”.
Supus que Renata estava com poucas semanas de gestação, pois a barriga ainda
não se notava, e ela acabava de se matricular no pré-natal. Veio por indicação de
uma vizinha e disse morar no bairro, mas, segundo ela, tinha esquecido de trazer o
comprovante de residência90.
Sentei-me ao lado deles e integrei-me à conversa. O senhor disse-me que
estava preocupado com a filha, que naquele momento estava conversando com a
diretora da casa de parto. Eles moravam em um bairro distante, que não consta da
área de abrangência da CP. Era a primeira vez que iam até lá e ele viera
acompanhar a filha. O senhor me perguntou, em tom de desconfiança, o que eu
achava da CP, se era “boa” e “segura”. Eu lhe disse que as gestantes com as quais
tinha mantido contato costumavam elogiar o serviço. Ele estava preocupado com
a ausência de médicos.
Não demorou muito e sua filha retornou à sala de espera. Magra, cabelos
cacheados, usava óculos e uma calça de viscose, larga e estampada. Ela se sentou
90
É comum mulheres que não moram na área de abrangência da casa de parto, que inclui o bairro
onde está localizada e aqueles que estão no seu entorno, darem o endereço de parentes que moram
na região para conseguirem matricular-se ali. Dessa forma, elas driblam a necessidade de ter que
consultar a diretora, para que esta autorize o ingresso no pré-natal.
116
ao lado do pai e falou algo em voz baixa. O pai lamentou e a abraçou: “Puxa vida!
Que pena, filha...”. Em seguida, ele dirigiu-se a mim e contou que ela não poderia
dar à luz na CP. A despeito de todas as dúvidas que ele manifestara até aquele
momento, senti que seu pesar era sincero: a filha estava visivelmente chateada
com a notícia e o pai se solidarizara com ela. Perguntei o motivo e ela contou que
tivera febre reumática na infância e por isso não se enquadrava no perfil de
“baixo” risco, estabelecido pelo protocolo da CP.
Apresentei-me, expliquei que estava fazendo a pesquisa e Clara contou
que era fotógrafa. Ela trabalhava em um estúdio e costumava ser contratada para
fazer fotos de gestantes. Aos poucos se deu conta de que as mulheres que
fotografava nunca tinham partos “normais”, ainda que assim o desejassem. “Elas
sempre tinham problemas e aí comecei a me perguntar: será que as mulheres hoje
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não conseguem mais parir?”, indagou Clara, neta de uma mulher que teve 13
filhos em casa, todos acompanhados pela parteira que naquela época era
referência no bairro onde sua avó morava. Sem compreender bem o fenômeno que
estava observando, Clara resolveu pesquisar sobre o assunto. Entrou para listas de
discussão na Internet e, quanto mais se informava, mais se convencia: quando
engravidasse, teria um parto “humanizado” domiciliar.
O momento chegou, mas de forma inesperada. Clara descobriu que estava
grávida, sem ter planejado, e se deu conta de que não tinha condições de arcar
com os custos de um parto como esse. Foi então que a CP, indicada por uma
amiga, despontou como uma alternativa gratuita e afinada com a proposta que
buscava.
Ao tomar pé de sua história, compreendi o desalento que demonstrara com
a notícia de que não poderia dar à luz ali. Naquele momento, Clara parecia estar
sem rumo. Saiu amparada pelo pai e disse que iria buscar outras alternativas ou
então conseguir o dinheiro necessário para arcar com os custos de um parto
domiciliar91.
91
Voltei a entrar em contato com Clara, alguns meses depois, para saber o desfecho de seu parto.
Ela ainda não havia dado à luz, mas estava na reta final da gestação, com 37 semanas. Ela e o
companheiro tinham se mudado para Teresópolis e conseguiram juntar dinheiro para pagar um
117
Clara faz parte de um grupo minoritário, mas que não deve ser desprezado,
de mulheres de camadas médias que chegam a CP em busca de uma proposta de
parto “natural” e “humanizado” sem os elevados custos que representam um parto
como este na rede particular de saúde (que varia entre 6 mil e 14 mil reais, de
acordo com a experiência e reconhecimento do profissional). Raros são os
médicos “humanizados” que atendem pelo plano de saúde e, quando o fazem, a
cobertura do parto não costuma estar incluída, apenas as consultas. No caso do
parto domiciliar, normalmente assistido por enfermeira obstetra, os custos são
mais baixos, mas ainda assim elevados: giram em torno de 4 mil ou 5 mil reais.
As que podem, mas não querem
Estava fazendo anotações no caderno de campo, perto da bancada onde as
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enfermeiras escrevem nos prontuários depois das consultas, quando ouvi a técnica
de enfermagem Eneida comentando que uma jovem chegara dizendo estar com
7cm de dilatação. A enfermeira perguntou como a parturiente poderia ter essa
informação e Eneida disse que ela havia passado antes em um hospital, onde fora
examinada. Essa informação me pareceu um pouco estranha e imagino que para a
enfermeira também.
Fui até a sala de espera para ver de quem se tratava e ali me sentei para
observar. Marcela aparentava ter menos de 20 anos, era negra, alta, magra e de
cabelos longos trançados. Ela estava acompanhada da cunhada, do companheiro e
de mais uma mulher, um pouco mais velha, mas que não parecia ser sua mãe,
talvez sua sogra. Eles estavam de pé, carregando a mala do bebê, enquanto ela
estava sentada no sofá, ao lado de uma jovem que acompanhava a irmã a uma
consulta. No momento em que adentrei a sala Marcela reclamava, em um tom um
tanto agressivo, que ali só se faziam partos “naturais” e que as mulheres só eram
atendidas se o feto estivesse saindo, com a cabeça aparecendo. A jovem ao seu
lado tentou convencê-la de que fazer parto “natural” era melhor, sob o argumento
de que a dor era sentida de uma vez só, diferentemente da cesárea. Marcela não
parecia muito interessada em seus comentários e demonstrava impaciência, apesar
de ter chegado há bem pouco tempo.
parto domiciliar, que seria assistido por uma médica que mora nas redondezas e por uma
enfermeira obstetra.
118
A família da parturiente estava bastante agitada e tensa e achei que fosse
por conta da ansiedade em relação ao nascimento do novo membro. Saí da sala de
espera e retornei ao local onde estava antes. Notei que duas enfermeiras-obstetras,
Ingrid e Roberta, estavam lendo o prontuário que supus ser o de Marcela.
Aproximei-me e notei que o documento continha vários grifos e um escrito em
vermelho: “Encaminhar para a coordenação”.
Depois de concluírem a leitura, as duas enfermeiras dirigiram-se para a
sala de espera. Perguntei se poderia acompanhá-las e Ingrid inicialmente hesitou,
mas logo concordou. Elas chamaram Marcela e foram para o consultório. Entrei
com elas na sala e me posicionei de pé, enquanto Marcela, sua cunhada, Ingrid e
Roberta sentaram nos dois sofás de vime. Ingrid perguntou como Marcela estava
se sentindo e ela respondeu que estava com 7cm de dilatação. Ingrid indagou
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como ela tinha aquela informação e a jovem contou que antes havia passado em
uma clínica particular e lá havia recebido um exame de toque92. Questionada
porquê ela não tinha ido diretamente para a CP, Marcela contou que tinha feito
um plano de saúde, mas que quando chegou à clínica foi informada de que este
não cobriria cesárea e talvez nem parto “normal”. Em seguida, ela afirmou que
processaria a pessoa que lhe havia vendido o plano e que a havia enganado93.
Ingrid advertiu que Marcela não tinha participado de qualquer grupo educativo e
que havia dito expressamente à diretora da CP, quando chamada para uma
conversa formal, que não tinha interesse, pois daria à luz em uma clínica
particular. Marcela ficou calada diante do comentário da enfermeira.
Ao perceber que a conversa não iria muito longe, Ingrid pediu que
Marcela fosse ao banheiro trocar de roupa, pois a iria examinar. A jovem
obedeceu as instruções e deitou-se na maca de roupão. A enfermeira palpou sua
barriga, ouviu os batimentos cardíacos do bebê e fez o toque. Em seguida, Roberta
fez o mesmo e as duas confirmaram que ela estava com 7cm. Nesse período,
92
O exame de toque avalia a condição do colo do útero da parturiente através de sua textura,
posicionamento e dilatação.
93
A idéia de que a cesárea tornou-se um “bem de consumo” – mencionada pela primeira vez por
Daphne Rattner (1996) – é frequentemente expressa por profissionais vinculados ao movimento
pela “humanização” do parto e do nascimento. Este seria um efeito adverso do aumento da
distribuição de renda, uma vez que mulheres que antes eram atendidas em hospitais públicos
passariam a ter acesso a planos de saúde, onde as taxas de cesarianas são muito mais elevadas do
que no SUS.
119
Marcela teve algumas contrações fortes. Ingrid orientou que ela relaxasse, que não
contraísse o corpo, porque assim sentiria mais dor. A cunhada de Marcela falava
ao celular e Ingrid pediu que desligasse e que estivesse presente, ficasse ao lado
de Marcela, lhe desse apoio.
Em seguida, Roberta saiu da sala de consulta e foi chamar Lúcia, diretora
da CP, que logo adentrou o recinto. Em tom sério, a diretora recordou que a
própria Marcela havia lhe dito pessoalmente que daria à luz em uma clínica
particular e não na casa de parto, lembrou que ela não havia participado de
qualquer grupo educativo e que, desde o primeiro dia do pré-natal, durante o
Acolhimento, foi advertida de que este seria um pré-requisito para ter o parto ali.
Recordou ainda que lhe foi dada uma segunda chance, durante uma conversa em
que a diretora lhe sugeriu que participasse dos grupos de modo intensivo, já no
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fim da gestação, mas ela se recusou. Lúcia em seguida se dirigiu à cunhada de
Marcela e perguntou se elas estavam de carro. A cunhada disse que sim e Lúcia
orientou Marcela a trocar de roupa e buscar outro lugar para dar à luz.
A diretora saiu da sala e Marcela não questionou, encaminhando-se para o
banheiro. Ingrid e Roberta saíram do consultório, mas Ingrid pediu que a jovem
não fosse embora enquanto elas não retornassem. As duas se dirigiram à sala da
direção, onde estava Lúcia. Fiquei um pouco constrangida de acompanhá-las, mas
Roberta me chamou. Na conversa, Lúcia argumentou que a atitude da jovem
desvalorizava o trabalho da equipe e que não podia aceitar alguém que não tivesse
participado de nenhum grupo educativo, isto é, que não tivesse se comprometido
com a proposta. Em seguida, convocou as outras enfermeiras obstetras presentes
para que deliberassem em conjunto sobre a situação – o que notei ser uma prática
bastante comum na CP. As duas que se inteiraram por último da situação
apoiaram o posicionamento da diretora e Ingrid saiu da sala para despedir-se de
Marcela, dizendo-lhe que fosse com Deus. Ela agradeceu e foi embora.
Tive a sensação de que Ingrid ficou um pouco incomodada com o fato de
eu ter presenciado o episódio. Nos cruzamos em silêncio e evitei olhá-la nos
olhos. Confesso que fiquei um pouco constrangida pelo fato de aquela ser apenas
minha segunda visita à CP. Logo depois do episódio, Lúcia comentou o ocorrido
em voz alta, diante das outras enfermeiras, e senti que se dirigia também a mim.
120
Ela explicou que no estado em que Marcela se encontrava – 7 cm de dilatação,
com o colo do útero íntegro e sendo primípara – o bebê provavelmente ainda
levaria algum tempo para nascer, o que lhe deu segurança para não admiti-la.
“Imagina se ela fica 3h aqui? Ela não fez nenhuma oficina, não sabe de nada, iria
ficar deitada aí sem saber o que fazer”. Ao que a enfermeira Roberta emendou,
dizendo que os grupos educativos são imprescindíveis para a familiarização da
mulher com a proposta.
***
Ter presenciado este episódio deixou claro que a CP é bem diferente de
uma instituição de “portas abertas”, tomando de empréstimo uma expressão que
costuma ser usada pelas enfermeiras para referirem-se aos hospitais e
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maternidades públicos. Ali as gestantes são cuidadosamente selecionadas ao
longo do pré-natal e este processo avalia não apenas os aspectos físicos e de saúde
– como os que excluíram Clara –, mas também a disciplina, comprometimento e
adesão ao projeto de (trans)formação que a casa de parto propõe.
E é principalmente através dos grupos educativos, que Marcela recusou-se
a assistir, que são transmitidos os valores que visam a construir essa “nova
mulher”: independente, auto-confiante, com consciência corporal, política, de
direitos e de cidadania. Ou, como preferem chamar na casa de parto, uma mulher
“empoderada”.
Na visão da equipe da CP, o processo de (trans)formação atinge seu ponto
máximo com a experiência de parto “natural”, desmedicalizado, no qual espera-se
que a mulher assuma uma participação ativa e central, em uma espécie de
dramatização, corporificada, da transformação subjetiva. Assim, a CP oferece não
apenas um projeto de parto, que culminará com o nascimento do bebê, mas
também um projeto de mulher.
Ao analisar a construção da identidade “mulher” na sociedade brasileira no
final do século XIX, período de consolidação do higienismo, Giacomini (1985)
faz algumas reflexões que parecem servir como um interessante contraponto para
se analisar o projeto impulsionado pela CP. A autora toma como objeto as
121
matérias de cunho pedagógico e normativo publicadas em um jornal dirigido ao
público feminino, nas quais a identidade “mulher” aparece inexoravelmente ligada
à maternidade e se efetiva não apenas biológica, mas socialmente, a partir do
cumprimento de uma série de deveres que definem o que é ser mãe. Dentre esses
deveres – prescritos por um médico, autor de quase todas as matérias do jornal –
estariam amamentar, cuidar e socializar os filhos.
Giacomini (1985) observa que, naquele contexto, a identidade feminina se
constrói em uma esfera determinada, isto é, no espaço da família e, a partir da
relação estabelecida com os personagens que permeiam este ambiente, quais
sejam, o filho e o marido, a mulher é identificada enquanto “mãe” e enquanto
“esposa-mãe de família”. A autora enfatiza que o discurso sobre a conversão da
mulher em mãe, tal como exposto no folhetim, se pretende genérico, apresentando
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um “modelo global, indiscriminado de mulher, [mas na realidade] corresponde a
um tipo específico de configuração familiar: aquela individualizada e nuclear da
família burguesa” (Giacomini, 1985: 89), fazendo com que a escrava e as
mulheres pobres se convertessem em “não-mulheres” ou “quase-mulheres”, por
não se adequarem a esse padrão.
Se no final do século XIX, momento de consolidação do higienismo, o
esforço era no sentido de converter a “mulher” em “mãe”, no contexto atual,
tomando como referência o trabalho desenvolvido na CP junto às mulheres de
camadas populares, parece ocorrer o inverso. Isto é, o projeto da casa de parto –
também impulsionado por profissionais de saúde – aparentemente tem como
objetivo converter a “mãe” em “mulher”. De acordo com o projeto da CP, “ser
mulher” ou, pelo menos, “ser uma nova mulher” significa não construir a
identidade feminina a partir da maternidade, como costuma ocorrer nas camadas
populares, em especial entre a clientela da casa de parto, composta
majoritariamente por donas de casa. Nesse sentido, o modelo de mulher e também
de família valorizados no projeto parecem encontrar maior correspondência com
aqueles observados nas camadas médias, onde, em geral, as mulheres desfrutam
de maior individualização e de maior equidade na relação com o parceiro.
Sem pretender desqualificar o empenho e a dedicação da equipe na
concretização do projeto, é preciso reconhecer que algumas de suas premissas
122
merecem ser problematizadas. Uma delas é o fato de que, de maneira implícita, a
proposta de (trans)formação impulsionada tem como pressuposto uma visão
acerca da clientela que parece ser estritamente marcada pela “falta”. Rodrigues
(2006) destaca que, de fato, é freqüente haver uma presunção implícita e
apriorística de “carência” por parte das camadas populares. No caso das usuárias
da casa de parto, esta “carência” não é abordada pela perspectiva material, mas
principalmente como falta de informação, de educação, de consciência política, de
direitos, etc.
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A questão também é tratada por Sarti (2011), que afirma que:
“Se a carência material não é mais suficiente como critério de definição do que é
ser pobre, pela crítica amplamente difundida aos limites da perspectiva
puramente econômica, há uma tendência a considerar a pobreza como ausência
de direitos (...). Se antes o referencial de falta na análise dos pobres estava na
‘consciência de classe’, agora se encontra na noção de ‘direitos de cidadania’”
(2011: 36).
Esta percepção, segundo a autora, está em sintonia com a visão
sociológica que predominou na literatura, sobretudo naquela produzida a partir
dos anos 1960, quando prevaleceu a tendência a definir os membros das camadas
populares por uma negatividade que, de maneira geral, os representava como “o
avesso do que se deveria ser” – em vez de tentar compreendê-los por sua
positividade própria, como propõe Rodrigues (2006). E se no passado a condição
social dos pobres foi definida a partir da exploração do trabalho pelo capital, mais
recentemente ganhou força e legitimidade o discurso sobre a ausência de
reconhecimento de seus direitos de cidadania. Esta é justamente a lacuna que a
casa de parto pretende preencher, através de um processo, levado a cabo
especialmente via grupos educativos, que tem, dentre seus objetivos, a
“cidadanização” de sua clientela (Duarte et al., 1993).
Segundo Duarte et al. (1993), qualquer projeto de intervenção social
visando à “cidadanização”, como aquele desenvolvido no contexto investigado,
pode ser classificado ou compreendido a partir de três grandes processos, quais
sejam: “individualização”, “racionalização” e “responsabilização”.
A individualização remete a uma forma de organização societária que
prevê a preeminência do sujeito sobre a totalidade social, seja esta a sociedade, a
123
comunidade ou a família, e opõe-se à noção de relacionalidade, em geral
predominante nas camadas populares. De acordo com Duarte et al. (1993), a
“cidadanização” depende, em primeiro lugar, desse processo, isto é, que o sujeito
passe a se perceber como um indivíduo.
A racionalização, por sua vez, remete ao meio pelo qual os sujeitos sociais
se relacionam com o mundo, com os instrumentos de apreensão do tempo, lugar,
causalidade, relação, ordem, etc. Os autores situam o pensamento mítico,
prevalecente entre os “outros”, como termo de oposição a essa razão, aqui
entendida em seu sentido estrito, enquanto racionalidade ocidental moderna.
Por último, o processo de responsabilização ou conscientização também é
apontado como fundamental para a “cidadanização” e corresponde, segundo
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Duarte et al. (1993), à relação moral entre os dois anteriores, isto é, entre o sujeito
individualizado e suas razões racionais.
A “conversão” que, de acordo com os autores, é o que prevalece no
discurso e prática das organizações de promoção social, corresponde de maneira
quase literal à tentativa de produzir uma “responsabilidade” ou “consciência” nos
atores e tem como objetivo último sensibilizar os sujeitos para o ideal liberalindividualista, que está implícito na própria idéia de cidadania.
Como se verá a seguir, os grupos educativos, cuja assistência é obrigatória
durante o pré-natal na casa de parto, parecem ter como objetivo propiciar que as
gestantes passem a se enxergar como cidadãs, ou seja, como sujeitos livres e
iguais, percebendo-se como indivíduos, capazes de fazer escolhas “conscientes” e
“racionais”94. Algumas tensões e conflitos que podem resultar desse projeto serão
abordadas ao longo do capítulo.
94
Em uma crítica ao que denominou de “culto do eu” na modernidade, Rodrigues (2008) chama a
atenção para como os valores de liberdade e independência, parte das regras impostas por um
sistema político e econômico, mas também pela própria cultura, acabam por escravizar o sujeito,
que se vê obrigado a comportar-se dessa maneira, isto é, como alguém que compulsoriamente
desempenha o papel de ser livre, autônomo e independente. Em suas palavras: “como em nossa
sociedade de consumo, baseada na ‘livre-concorrência’ e na ‘liberdade de opções’, ninguém é tão
livre que não possa decidir por não optar, na sociedade burguesa, fundada na ‘liberdade
individual’, nenhum ser humano é livre o suficiente para se considerar ‘não livre’ (2008: 178).
124
3.3.1.
Grupos educativos: (trans)formação em curso
Os grupos educativos, agendados ao longo de toda a semana, são
conduzidos pelas próprias enfermeiras-obstetras, que costumam revezar-se, e
também por uma assistente social, que se encarrega especialmente do grupo de
“Direitos”. As gestantes que fazem acompanhamento pré-natal na casa de parto
devem assistir a todos os grupos, que somam ao todo nove e abordam os seguintes
temas: 1) relações de gênero, 2) direitos (sociais, trabalhistas, da mulher, etc.), 3)
modificações corporais e emocionais ao longo da gestação, 4) vínculo com o
bebê, 5) trabalho de parto, 6) “tecnologias”, isto é, recursos não-farmacológicos
que podem ser utilizados durante o trabalho de parto, 7) cuidados com o recémnascido, 8) amamentação e 9) medos e inseguranças em relação ao parto95.
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Os quatro primeiros grupos são oferecidos às grávidas que se encontram
no início da gestação e têm como objetivo dar os primeiros passos em direção à
“construção” dessa “nova mulher”, isto é, uma mulher ciente de seus direitos,
questionadora das relações de gênero tradicionais, consciente de – e detendo
controle sobre – seu corpo e suas emoções, e preocupada em estabelecer um
vínculo intra-útero com o “bebê” – muitas vezes resultado de uma gravidez não
planejada.
Já os outros grupos educativos são direcionados às mulheres que se
encontram no terceiro trimestre de gestação e alguns deles têm um enfoque mais
prático. Os de cuidados com o recém-nascido e amamentação96, por exemplo,
buscam questionar as práticas “tradicionais” consideradas prejudiciais dentre
aquelas transmitidas pelas mulheres da família da gestante (como colocar pó de
café e moeda no umbigo do recém-nascido, tomar cerveja preta para aumentar a
produção de leite, etc.).
95
Esta oficina é chamada de “Chá do Parto” e dela participam apenas gestantes que encontram-se
com 37 semanas ou mais de gestação. Foi criada mais recentemente, em função do alto número de
mulheres transferidas para a maternidade durante o trabalho de parto, o que a equipe atribuiu a
possíveis medos em relação ao parto. Segundo a coordenadora Eugênia, após a criação do grupo,
no qual as mulheres são incentivadas a falar sobre suas emoções, houve uma redução significativa
nas transferências.
96
É interessante destacar que há um forte incentivo à amamentação exclusiva até os seis meses, o
que, em princípio, não parece estar em sintonia com o projeto de conversão da “mãe” em
“mulher”, impulsionado pela CP. Na realidade, o incentivo ao aleitamento materno permeia o
ideário da “humanização” como um todo e encontra na valorização da “natureza” e do “natural”
seu principal fundamento.
125
Os grupos sobre parto e tecnologias apresentam, em detalhes, o projeto de
parto proposto: são sugeridas alternativas de postura à tradicional posição de
litotomia,
destaca-se
a
importância
de
o
acompanhante
ser
alguém
emocionalmente equilibrado (através do uso de adjetivos como “calmo” e
“tranqüilo”) e alguém com quem a gestante tenha intimidade. A despeito da
representação negativa do parceiro – especialmente no grupo de “direitos” – sua
presença é altamente incentivada no parto.
Apesar de acreditar que a análise de todas as oficinas seria extremamente
profícua para a pesquisa, procurou-se selecionar três delas, que pareceram mais
enriquecedoras para o conjunto do trabalho, quais sejam: Oficina de Gênero, de
Direitos e de Modificações. A seguir, se passará à descrição e análise dos
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encontros.
Oficina de Gênero
A enfermeira Zilda entrou na sala de grupo um pouco atrasada naquela
tarde. A sala estava cheia e as gestantes e seus acompanhantes já tinham se
posicionado, sentando-se nos colchões próximos às paredes ou em pufes ali
distribuídos. Era uma oficina direcionada a grávidas no início da gestação, mas
incluía também aquelas que começaram mais tardiamente o pré-natal ou que
faltaram na época em que foram agendadas. Assim, havia mulheres em estágios
variados de gestação, dois homens, que acompanhavam suas esposas, uma mãe,
que foi com a filha que estava grávida, além da irmã de uma gestante, uma amiga
e o filho pequeno de outra. Em menor número estavam aquelas que foram
desacompanhadas.
Zilda deu início à oficina perguntando o que era gênero e, como não
obteve resposta, recordou as aulas de português do ensino fundamental, dando
como exemplo: “o pato, a pata”. Ela falou vagamente que gênero referia-se a
masculino e feminino, mas não desenvolveu muito. Em seguida, separou as
pessoas presentes em dois grupos. A um deu a tarefa de escrever o que
considerava que fosse exclusivo dos homens e ao outro o que fosse exclusivo das
mulheres. Zilda saiu da sala e deu 15 minutos para que debatessem e redigissem
quais eram as diferenças identificadas.
126
Ao regressar, pediu que alguém do primeiro grupo lesse as respostas. A
mãe de uma gestante assumiu a tarefa de vocalizar o que os membros do grupo
achavam que era exclusivo dos homens. Coincidentemente, a essa equipe
pertenciam os dois únicos homens presentes. A primeira resposta foi: “ser chefe
de família”.
Zilda contestou com veemência: “Eu sou chefe da minha família!”.
Algumas mulheres do outro grupo fizeram coro, em discordância. Sem muita
resistência, a mãe riscou o que estava escrito e passou para a próxima: “sair sem
camisa na rua”. Zilda novamente desqualificou a resposta e disse que, se ela
quisesse, ainda que fosse criticada e considerada maluca, poderia sair na rua sem
camisa. “Essa é uma questão cultural, a sociedade que criou essa regra, mas isso
pode ser diferente”, afirmou. Alguém do outro grupo deu o exemplo das mulheres
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indígenas. “É verdade! As índias andam sem camisa!”, disse Zilda, agradecendo o
exemplo. Os membros do grupo que tinham selecionado essa característica dessa
vez contestaram, argumentando que vivem numa determinada sociedade e que
nela as mulheres não saem na rua sem camisa. Mas a enfermeira alegou que havia
pedido que escrevessem apenas aquilo que era exclusivo dos homens, explicando
que se referia aos “homens em geral”. A mãe que estava representando o grupo
prosseguiu com a leitura das respostas, mas já desanimada, pois sabia que a
maioria das características que seu grupo tinha selecionado seria desqualificada.
“Usar sunga”, disse, novamente sendo rebatida.
Ela prosseguiu com a leitura e ao responder “pênis” finalmente contou
com a concordância da enfermeira, que afirmou que, no fim das contas, as
diferenças entre homens e mulheres se restringiam ao aparelho reprodutivo:
“Pênis é de homem, vagina é de mulher e mudar o mundo é do ser humano”, disse
assertivamente. Antes que a mãe concluísse a leitura – que incluía ainda “fazer
consertos na casa” e “ser técnico de futebol” –, a principal polêmica ficou por
conta de “trair” e “mentir”, práticas consideradas exclusivas dos homens. “A
mulher que trai é considerada puta”, afirmou uma gestante, criticando a aceitação
social da traição masculina. O assunto virou “burburinho” e todos os presentes
tinham uma opinião para emitir sobre o assunto.
127
Essa parecia ser a oportunidade que Zilda estava esperando. Em meio ao
debate, a enfermeira tomou a palavra: “As mulheres que não concordam com isso
podem criar seus filhos com valores diferentes, plantar essa sementinha em casa.
As grandes mudanças começam assim, pequenininhas dentro de casa. As
mulheres têm muito poder, porque através da educação dos filhos podem construir
uma sociedade muito melhor. É o poder da transformação. Vocês têm noção de
que podem criar o homem para ter uma performance diferente daquela que vocês
estão criticando?”, indagou Zilda. A enfermeira concluiu abordando o tema da
violência doméstica e informando sobre a Lei Maria da Penha97: “As mulheres
têm que denunciar, não podem aceitar e se calar”.
Ao passar a palavra à porta-voz do segundo grupo, esta, que já havia
entendido o propósito da dinâmica, fez uma seleção na lista inicialmente
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elaborada para elencar as características que seriam exclusivas das mulheres. Foi
deixado de fora “usar vestido”, “brincar de casinha”, “usar salto alto”,
“maquiagem” e “brinco”. A resposta que a gestante leu, imaginando que seria
considerada adequada, foi: “amamentar”, “gerar filho”, “menstruar” e “resistir
mais às dores”. Em minoria, os homens reagiram ao último item, dizendo que
resistiam tanto quanto as mulheres. Ao que algumas retrucaram: “Queria ver se
fossem vocês a parir!”. Zilda, dessa vez, não se posicionou.
***
É de chamar a atenção a forte demarcação de gênero presente naquele
contexto e que veio à tona a partir da dinâmica proposta na oficina. Como foi
possível observar, há um repertório muito bem definido de papéis, atributos e
comportamentos que correspondem ao homem e à mulher na percepção do grupo
investigado. Assim, no topo da lista elaborada pela primeira equipe foi inserido
97
Segundo informações obtidas no site do Conselho Nacional de Justiça, “a Lei Maria da Penha
estabelece que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através
de inquérito policial e ser remetido ao Ministério Público. (…) A lei também tipifica as situações
de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, amplia a pena de
um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de
violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência
social. A Lei n. 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, passou a ser chamada Lei Maria da
Penha em homenagem à mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes e que desde então se
dedica
à
causa
do
combate
à
violência
contra
as
mulheres”.
Fonte:
http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/pj-lei-maria-da-penha/lei-maria-da-penha (último acesso
em 28/03/2013)
128
“ser chefe de família”, que corresponde, idealmente, ao papel central que o pai
deve ocupar na organização familiar entre as camadas populares, ao lado do da
mãe/dona-de-casa (Sarti, 2011).
De acordo com a autora, ao “chefe da família” cabe prover teto e alimento,
mas também comportar-se de maneira “honrada” – a bebida é, nesse sentido, um
importante desqualificador – de modo que, renda e honra combinados lhe
garantem a autoridade paterna. O papel de destaque do “chefe de família” perante
o grupo é, por sua vez, complementar ao da mulher, cuja autoridade se manifesta
no âmbito da casa: ela é a “chefe da casa”. Inspirada por Louis Dumont, Sarti
(2011) sugere que casa e família sejam interpretadas como um par complementar,
mas hierárquico, na medida em que a casa é englobada pela família.
“O homem corporifica a idéia de autoridade, como mediação da família com o
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mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade familiar. Sua
presença faz da família uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o
respeito. Ele, portanto, responde pela família. Cabe à mulher outra importante dimensão
da autoridade, manter a unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que tudo
esteja em seu lugar.” (Sarti, 2011: 64)
A diferenciação marcante entre os gêneros, simultaneamente percebidos
como complementares, é central e fundadora da lógica que norteia o grupo
investigado. Na dinâmica proposta, ao homem coube ainda a associação direta
com determinadas tarefas ou atribuições (como “fazer consertos na casa” e “ser
técnico de futebol”), o que aponta para a divisão sexual do trabalho, dispositivo
que, segundo Lévi Strauss, busca “instituir um estado recíproco de dependência
entre os sexos” (1980: 30). Mas, o que sem dúvida gerou maior debate e interesse,
foi a associação com determinados comportamentos, como “mentir” e “trair”,
praticamente percebidos como parte da “natureza masculina”.
Esta visão parece respaldar-se no que Salem (2004), com base na
representação nativa sobre a sexualidade masculina em classes populares, definiu
como uma “teoria sexual pulsional”. Segundo a autora, um dos pontos centrais
dessa teoria é “a representação de uma proeminência, naturalmente fundada, do
corpo sobre a cabeça no domínio da sexualidade. Fundamenta-se aí a percepção
129
de uma incompatibilidade entre negar sexo e a condição de ser do masculino.”
(2004: 19, grifos da autora).
Assim, “trair” e “mentir” seriam atributos quase inatos, justificados por
um suposto impulso “natural” e incontrolável para o sexo, o que converte a traição
masculina praticamente em um ato involuntário. Outro fator a contribuir para a
manutenção de relacionamentos simultâneos seria, segundo os homens
entrevistados por Salem (2004), o descompasso – também percebido como
naturalmente fundado – entre suas necessidades sexuais e as de suas parceiras.
Vale destacar que as mulheres, em oposição aos homens, são vistas como detendo
maior controle sobre a sexualidade, o que torna a traição feminina, além de menos
freqüente, moralmente mais condenável. Essa representação sobre os gêneros se
pauta em uma oposição contrastiva, sendo a mulher percebida como “o avesso
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complementar do homem” (Salem, 2004: 59).
E se a lista de atributos masculinos elaborada na dinâmica de grupo
proposta pela casa de parto se pautou principalmente em comportamentos e papéis
sociais, ainda que percebidos como “naturais”, no caso das mulheres essas
diferenças parecem se inscrever quase que exclusivamente no corpo: na aparência
(usar vestido, salto alto, maquiagem, brinco), mas principalmente nas capacidades
fisiológicas de “amamentar”, “gerar” e “menstruar” – todas relativas à capacidade
reprodutiva feminina. Estas faculdades correspondem ao que Le Breton (2007)
define como “traços estruturais” – aos quais acrescenta ainda a faculdade do
homem de fecundar – e servem de base para que as sociedades humanas elaborem
infindáveis significados para definir socialmente o que seja o homem e o que seja
a mulher, “as qualidades e o status respectivo que enraízam suas relações com o
mundo e suas relações entre si” (2007: 65).
No caso do grupo pesquisado, os atributos listados sugerem o papel de
destaque conferido à maternidade na definição do feminino. Essa relação foi
observada por diversos autores que se dedicaram ao estudo sobre gênero e família
em camadas populares, dentre eles Sarti (2011). Segundo a autora, “a autoridade
feminina vincula-se à valorização da mãe, num universo simbólico em que a
maternidade faz da mulher mulher, tornando-a reconhecida como tal, senão ela
será uma potencialidade, algo que não se completou” (2011: 64).
130
Deve-se destacar que, no grupo pesquisado, uma parcela significativa das
mulheres se identifica como “dona de casa”, o que talvez contribua para reforçar
representações de gênero tidas como mais tradicionais. De fato, Machado e Barros
(2009), em pesquisa sobre gênero, geração e classe, sugerem que mulheres com
maior escolaridade e engajamento no mercado de trabalho têm maior
probabilidade de questionarem essas representações. As autoras inclusive
destacam que atualmente registrou-se um aumento na participação de mulheres de
camadas populares entre a população economicamente ativa do país. No entanto,
entre aquelas que fazem o pré-natal na casa de parto, ainda que a maioria tenha
concluído o ensino médio, a relativamente alta escolaridade não se reverteu em
inserção no mercado de trabalho, o que faz com que sejam financeiramente
dependentes.
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É certo que a maternidade interfere nesse cenário, uma vez que “tende a
reduzir as possibilidades de qualificação e de inserção das mulheres na vida
pública” (Machado e Barros, 2009: 380), o que poderia conduzir ao seguinte
questionamento: as mulheres que freqüentam a casa de parto estão fora do
mercado de trabalho justamente devido ao fato de terem entrado no ciclo
reprodutivo?
É bastante comum que as adolescentes vinculadas ao pré-natal da CP
justifiquem a evasão escolar em função da gravidez. E também não há dúvidas de
que essas mulheres se deparam com serviços públicos precários, sendo
diretamente afetadas, por exemplo, pela quase inexistência de creches públicas.
Mas também não se deve negar que muitas mulheres de camadas populares
conseguem driblar tais condições desfavoráveis, principalmente com o apoio da
família (Sarti, 2011), e inserirem-se no mercado de trabalho ou darem
prosseguimento aos estudos. Sendo assim, tendo a acreditar que no universo da
pesquisa este fenômeno seja mais bem compreendido a partir do peso atribuído
naquele contexto ao desempenho do papel de mãe e de esposa para o processo de
construção da identidade feminina, como sugerem os estudos de Sarti (2011),
Paim (1998), Fonseca (2006), Tornquist (2003) e outros.
Com efeito, nessa direção aponta o comentário feito por uma gestante
adolescente, durante entrevista à pesquisa. Ela estava na companhia do namorado
131
e da mãe, aguardando na recepção a consulta do pré-natal, quando me aproximei.
Elisa tinha 16 anos, estava no nono ano e havia parado de estudar por causa da
gravidez. O namorado também era adolescente e fazia “bicos”. Eles atualmente
moravam juntos na casa da mãe dela, onde a renda familiar era de um salário
mínimo. Perguntei se Elisa tinha planejado a gravidez e esperava ouvir um “não”
como resposta, como costumava acontecer com as adolescentes entrevistadas,
quando fui surpreendida: “sim”, disse-me ela. Transcrevo abaixo um trecho dessa
conversa:
Você planejou a gravidez?
Elisa: Sim.
Você antes usava algum método anticoncepcional e parou de usar?
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Elisa: Não.
Como foi que você reagiu à notícia de que estava grávida?
Elisa: Foi uma surpresa, né? Foi diferente.
Mas você não estava querendo engravidar?
Elisa: Tava. Mas quando eu fiquei eu não sabia, só com uns 3 ou 4 meses que eu
descobri.
Confesso que fiquei bastante surpresa e um tanto desorganizada com a
resposta, que lamento não tê-la explorado durante a entrevista como gostaria. De
qualquer maneira, o posicionamento de Elisa aponta, como já salientado, para a
importância atribuída à gravidez e à maternidade, que são vividas não apenas
como processos corporais, mas “como condição inerente e necessária para sua
completa realização como sujeito deste universo simbólico”, garantindo um status
superior à mulher em relação àquelas que não tem filhos (Paim, 1998: 35). Este
rito de passagem demarca então a transformação da jovem em adulta, status muito
valorizado nas classes trabalhadoras (Duarte, 1986, Fonseca, 2006).
Outro aspecto da oficina que merece ser destacado diz respeito ao esforço
da enfermeira por questionar a marcante diferenciação entre os gêneros presente
naquele contexto, de modo a abrir caminho para o que seria a construção de uma
“nova mulher”: independente, auto-confiante, consciente de seu corpo e de seus
132
direitos. É possível dizer que, a longo prazo, o projeto com o qual a CP está
comprometida tem como meta a transformação da sociedade. Em primeiro lugar,
a partir da transformação da mulher, que é incentivada durante todo processo de
preparação para o parto a se perceber como um indivíduo, que tem domínio sobre
si e que toma suas próprias decisões98. A experiência de parto proposta ali, isto é,
um parto em que a mulher pode escolher a posição de dar à luz, com liberdade de
movimentos e domínio sobre seu corpo, seria, de acordo com o projeto, uma
espécie de dramatização desses valores. A segunda etapa de transformação da
sociedade – e que é mais explicitamente enunciada pela enfermeira – se daria
através da educação que essas “novas mulheres” transmitiriam a seus filhos: uma
educação pautada por ideais igualitários.
Por fim, cabe fazer uma última observação relativa à percepção do grupo
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sobre a maior resistência das mulheres à dor. O comentário feito por uma gestante
sugere que essa visão está diretamente associada ao ato de parir, que é percebido
como extremamente doloroso. É curioso que a enfermeira, que dedicou quase
todo o tempo da oficina a desnaturalizar as representações de gênero, calou-se
diante desse comentário. Isso possivelmente se deve ao fato de que a
representação de feminino que a casa de parto pretende incentivar está, de certa
maneira, afinada com a imagem de uma mulher forte e resistente à dor. Assim,
questionar a percepção das gestantes sobre esses atributos – ainda que também
“naturalizados” – poderia gerar um curto-circuito, que Zilda parece ter preferido
evitar.
Oficina de Direitos
A oficina de “Direitos” era invariavelmente conduzida por Tânia,
assistente social da CP. Ela geralmente seguia um roteiro definido de assuntos e
costumava iniciar os encontros abordando o tema dos direitos trabalhistas, assunto
um tanto distante da realidade das mulheres dali, a maioria donas de casa. Ciente
disso, Tânia destacou em um dos encontros que tais direitos, como a licençamaternidade, as férias e o 13o salário, foram conquistados a partir de muita
98
A emergência de sujeitos individuais favorecida pela modernidade e a consequente tensão entre
autonomia e pertença familiar serão debatidas adiante, na seção sobre a família nas camadas
populares.
133
mobilização e que as mulheres deviam informar-se sobre eles: “A informação é a
nossa melhor arma”, afirmou.
Nessa ocasião, ela explicou que as gestantes que não tinham vínculo
empregatício, mas que contribuíam com o Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) pagando autonomia tinham direito ao salário de licença-maternidade. O
mesmo valia para as que trabalhavam com carteira assinada e pararam há até um
ano.
Para as poucas gestantes que se encontravam formalmente empregadas,
Tânia lembrou que desfrutavam de estabilidade provisória, não podendo ser
demitidas durante a gestação e nem 5 meses depois do nascimento do bebê. Já os
pais, caso possuíssem vínculo formal, tinham direito a 5 dias de licença
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paternidade, a contar do dia do parto. “Não é para ficar no bar bebendo. É para
registrar o bebê e ajudar a mãe”, sentenciou.
No caso das gestantes que freqüentavam a escola, Tânia salientou que a
partir de 32 semanas elas tinham direito a ter o conteúdo das disciplinas em casa,
por até 3 meses. A assistente social perguntou se Patrícia, uma gestante que tinha
19 anos e estava acompanhada da madrasta, continuava estudando. A jovem
contou que estava no 1o ano do ensino médio, mas que havia interrompido os
estudos quando engravidou. A madrasta – que explicou que é quem “cria” Patrícia
desde os 9 meses, quando casou-se com seu pai – disse não ter apoiado a atitude
da jovem, afirmando que ela deveria estudar e profissionalizar-se para não
depender do marido: “Depois ele morre, separa, fica desempregado...”. Tânia
acrescentou: “A gente tem que ocupar o espaço que as mulheres lutaram tanto
para conquistar!”. Patrícia, que tem um biotipo alto e magro, como sua “mãe de
criação”, retratou-se dizendo que pretendia fazer um curso de cabeleireira.
Tânia também informou as mulheres sobre seus “direitos sociais”.
“Alguém gostaria ou pretende se casar?”, perguntou ela. O assunto parecia
despertar maior interesse e três gestantes disseram que sim. A assistente social
134
explicou que elas poderiam ir ao “Poupa Tempo”99, que conta com um estande em
um shopping localizado em um bairro próximo ao da CP. Lá elas poderiam pedir,
junto à Defensoria Pública, a isenção das taxas normalmente pagas ao Judiciário
para o casamento ou contrato de união estável (de cerca de 300 reais). A assistente
social argumentou que a formalização do relacionamento facilitava o pagamento
de pensão, no caso de uma fatalidade. “Não sou urubulina, não, mas já vi idosas
ficarem sem pensão, depois de 20, 30 anos juntos, mas sem comprovantes100”,
disse, acrescentando que “só o filho não é prova para a Previdência”.
Sobre a certidão de nascimento, Tânia afirmou que todos tinham direito a
obtê-la gratuitamente e recomendou que o documento fosse retirado logo após o
nascimento do bebê: “Façam isso logo para a criança ser uma cidadã”, disse ela,
lamentando que quem tenha que tirar o documento seja o pai, “porque vivemos
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numa sociedade patriarcal”. Nesse momento, Tânia foi interrompida por uma
gestante, que comentou que não pretendia colocar o nome do pai no registro do
filho. Ela foi imediatamente repreendida pela assistente social: “Esse é um direito
do bebê, você não pode escolher por ele”. Tânia afirmou ainda que se o pai não
quisesse reconhecer a criança, a mãe deveria buscar os meios legais: “Registre e
depois procure a Defensoria Pública para exigir que seja feito um exame de
DNA”101. “Mas e se o bebê for criado por outro pai?”, perguntou outra gestante.
Tânia explicou que, nesse caso, poderia ser feita uma adoção. O assunto gerou um
grande debate e uma gestante revelou que ela própria não foi registrada pelo pai, a
99
Trata-se de um programa de atendimento ao cidadão criado pelo Governo do Estado que tem
como propósito reunir, em um mesmo espaço físico, entidades públicas (municipais, estaduais e
federais) e privadas, com vistas a tornar mais acessíveis e agilizar serviços de utilidade pública.
100
Em outra ocasião, Tânia listou os documentos aceitos pela Previdência como prova do vínculo
de união estável: ser dependente no cartão de crédito, no plano de saúde, ter conta conjunta no
banco, ser dependente em algum clube ou associação e ser dependente no trabalho do(a)
parceiro(a). Não é de surpreender que, quando questionadas, as mulheres dali costumem responder
que não possuem nenhum desses comprovantes. Com exceção talvez do cartão de crédito, esses
documentos exigem um nível de renda e um grau de formalização incompatível com a realidade de
vida da maioria das gestantes que faz o pré-natal na CP. Assim, é possível dizer que, nas camadas
populares, o casamento formal continua sendo necessário para comprovar a estabilidade da
relação, não sendo as pessoas desse contexto beneficiadas pela flexibilização na legislação que
trata do assunto.
101
Em artigo sobre o uso legal de testes de DNA para a detecção da paternidade, Fonseca (2004)
problematiza o que definiu como uma “aliança” entre a lei e a ciência, questionando as possíveis
conseqüências dessa forma de biologização das relações familiares. Segundo a autora, com a
disseminação do teste “não são mais os fatos da vida social (relações, afetos) que definem o
‘verdadeiro’ pai, mas sim os fatos biológicos que ‘revelam’ os comportamentos” (2004: 15).
Noutras palavras, “trata-se de uma certeza técnica biológica que pretende resolver dúvidas em
torno de uma relação que é eminentemente social – a paternidade” (Fonseca, 2004: 15).
135
quem nunca procurou. Com efeito, quando tive acesso às fichas de matrícula das
mulheres que ingressaram no pré-natal da CP nos anos de 2011 e 2012 notei que a
ausência do pai na documentação não era algo muito incomum ali.
Por fim, a assistente social tratou sobre o direito à saúde reprodutiva. “A
gente tem quantos filhos a gente quer. Se eu quiser ter 10 filhos, o Estado não
pode me impedir. Se sou soro-positiva, também tenho direito a ter filhos”,
afirmou, para, em seguida, destacar a importância do planejamento familiar: “Mas
vocês devem se perguntar: quantos filhos eu quero ter?”. Tânia explicou que há
um programa nas unidades básicas de saúde e que as mulheres deveriam se
inscrever para se informarem sobre qual método contra-conceptivo poderiam
adotar depois da gravidez. A assistente social comentou ainda sobre a
possibilidade de se ter acesso à laqueadura de trompas e à vasectomia pelo SUS.
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“Mas vocês devem fazer a laqueadura porque querem, não pelo homem. O corpo
é de vocês. Vocês têm que pensar em vocês. Depois a relação termina e o SUS
não paga cirurgia de reversão”, alertou.
***
Em sintonia com o projeto de (trans)formação da mulher que a CP propõe,
a Oficina de Direitos busca incentivar a individualização das gestantes, de modo
que elas se tornem seus próprios agentes (Singly, 2007), conduzindo, não apenas a
experiência de parto, mas, de maneira mais ampla, seus corpos e suas vidas.
No discurso de Tânia parece que a independência incentivada se direciona
em grande medida à relação com o parceiro102. Este é retratado como detendo
controle sobre o corpo da mulher (como no caso da laqueadura de trompas, que
Tânia supõe ser fruto de decisão masculina), e como alguém pouco envolvido
com o filho e seus cuidados, o que significa que essa tarefa recai exclusivamente
sobre as mulheres (esta visão fica explícita no exemplo do bar, que representaria
um uso indevido da licença paternidade).
102
Em um breve momento a assistente social referiu-se também à importância da autonomia da
mulher frente ao “Estado”, em uma clara alusão à intensa política de controle demográfico e à
generalização abusiva da esterilização feminina (Scavone, 2001: 144).
136
Por outro lado, ciente da alta taxa de coabitação entre a clientela da casa
de parto, Tânia incentiva a formalização dos relacionamentos, acenando com a
possibilidade de os casamentos serem oficializados sem custos. Na visão da
assistente social, a relação com o parceiro aparece, portanto, de maneira ambígua:
trata-se de alguém de quem a mulher deve emancipar-se, rompendo os elos de
dependência, mas ao mesmo tempo oficializar seu vínculo103.
O ideal de conjugalidade presente no discurso de Tânia parece ser pautado
por valores igualitários, como aqueles que norteiam o “casal grávido”,
proveniente de camadas médias e estudado por Salem (2007). De acordo com a
autora, entre esses casais “a relação matrimonial, fundada em um laço de
indivíduos iguais em valor porém distintos em suas individualidades, encerra um
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complexo jogo de reciprocidade e dependência afetivas” (2007: 174/175).
No entanto, apesar do incentivo à formalização e à equidade nas relações
conjugais, o maior investimento da CP parece ser mesmo no “empoderamento” da
mulher, parte de um processo mais amplo de “cidadanização”. Adotando como
pressuposto a submissão da mulher de classe popular em relação ao parceiro, a
igualdade na relação homem-mulher exigiria, portanto, sua prévia conversão em
indivíduo. Segundo essa visão, é a mulher que precisa mudar de lugar e
posicionar-se em relação ao parceiro de outra maneira, mais autônoma e
individualizada. O envolvimento do pai na gravidez e nos cuidados com o bebê,
também incentivado, seria, nesse sentido, uma conseqüência da transformação
feminina. Ou seja, o foco da CP não parece ser o casal – como no fenômeno do
“casal grávido” investigado por Salem (2007) –, mas a mulher e, como resultado
ou conseqüência, a família conjugal, o que será retomado adiante.
A questão financeira é considerada um pilar importante para o processo de
individualização incentivado. Por esse motivo, a assistente social procurou,
durante a oficina daquela tarde, encorajar as presentes a “ocuparem o espaço que
103
Essa visão contrasta com a suposta coerência que Singly (2007) observa haver nas
transformações da família contemporânea francesa, na qual há uma clara recusa da instituição do
casamento e ao mesmo tempo uma crítica à divisão sexual do trabalho. “O homem e a mulher
querem ser eles mesmos no âmbito de sua vida familiar. O casamento não é mais atrativo na
medida em que é concebido como uma possível amarra aos papéis determinados anteriormente.”
(Singly, 2007: 128/129).
137
as mulheres lutaram tanto para conquistar”, em referência à entrada no mercado
de trabalho, uma reivindicação do movimento feminista em sua primeira onda.
No entanto, o comentário feito pela madrasta de Patrícia sugere que o
incentivo à qualificação das mulheres se baseia, sob seu ponto de vista, em dados
mais próximos daquela realidade: a possibilidade de fracasso do parceiro no
desempenho de seu papel de provedor, sua morte ou o fim do relacionamento.
Suas preocupações parecem não ser infundadas, uma vez que, como observa Sarti,
“as famílias pobres dificilmente passam pelos ciclos de desenvolvimento do grupo
doméstico, sobretudo pela fase de criação dos filhos, sem rupturas” (2011: 65).
Ao que parece, parte-se do pressuposto de que cabe ao homem o papel de
provedor, mas a mulher deve estar preparada para, nas situações de adversidade,
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assumir esse lugar.
É interessante destacar que a CP entra em contato com as mulheres
justamente no período da gravidez, isto é, no momento em que elas se preparam
para se tornarem mães, atualizando a percepção que predomina entre as camadas
populares de que a maternidade é parte central e constitutiva da identidade
feminina (Lo Bianco, 1985, Paim, 1998, Sarti, 2011). Pois é justamente nesse
momento, que viria a confirmar a estabilidade do lugar da mulher naquele
contexto, que a casa de parto busca promover um questionamento do papel
feminino, de modo a apresentar às futuras mães outras definições do “ser mulher”,
não subordinadas à esfera materna. Isso se dá, como anteriormente referido,
através do incentivo à inserção no mercado de trabalho e à autonomia individual,
com a intenção de que sirvam de suporte para novas definições da identidade de
gênero. O objetivo é acenar com a possibilidade de as mulheres desempenharem
outros papéis, que não exclusivamente o de mãe/esposa/dona de casa, este
desvalorizado por não estar em sintonia com os valores da modernidade, tal como
incentivados na CP.
A valorização da individualização se dirige também ao bebê, que assim
como a mulher é portador de direitos, sendo a certidão de nascimento considerada
um primeiro reconhecimento oficial dessa condição. Segundo a assistente social, o
recém-nascido deve ser registrado o quanto antes, de modo a possibilitar sua
conversão institucional em “cidadão”.
138
Sobre essa questão, Singly (2007) observa que a criança vem desfrutando
de uma individualização progressiva nos tempos atuais, o que também é
explicitado pelo estudo de Chazan (2007) sobre o ultrassom obstétrico, o qual
indica que este processo tem início até mesmo antes do nascimento:
“A busca de uma individualização precoce do feto coaduna-se com a ampliação e
a radicalização da ideologia individualista moderna, na medida em que a ultrasonografia, ao permitir a visibilização bem antes do nascimento, possibilita, em
um primeiro movimento, percebê-lo como destacado da gestante. Transformá-lo
em consumidor e em ‘mini’ cidadão é apenas um passo a mais na construção de
sua identidade – inclusive de gênero – antes do nascimento. Ao mesmo tempo,
nesse processo, o feto singularizado e medicalizado é tornado público e pode ser
inscrito socialmente como indivíduo.” (Chazan, 2007: 200).
De maneira geral, é possível dizer que os profissionais da CP buscam
promover uma experiência de individualização (que se estende ao futuro bebê),
em um contexto no qual os vínculos tradicionais assumem lugar muito
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importante.
Com
efeito,
“a
prevalência
da
relacionalidade
sobre
a
individualização nas famílias populares nas sociedades ocidentais é uma de suas
características essenciais” (Duarte e Gomes, 2010: 172).
Assim, o processo de (trans)formação que a CP pretende desencadear nas
mulheres – através dos grupos educativos ou oficinas e que tem seu coroamento
com a experiência de parto – de certa maneira entra em choque com a lógica
particular da noção de família nos segmentos populares104. Como observa
Fonseca, “a relação indivíduo-família não pode ser pensada da mesma forma em
todo lugar” (2005: 52), uma vez que o valor “família” encontra significados
distintos dependendo da categoria social. O conflito entre os valores transmitidos
pela CP e aqueles que norteiam as relações familiares nas camadas populares pôde
ser observado em vários momentos da pesquisa e será retomado adiante.
Oficina de Modificações
“O que vocês entendem por modificações?”, indagou a enfermeira Bianca
às 15 gestantes presentes naquela ensolarada tarde de setembro, dando início à
104
Esta lógica pode ser verificada a partir de exemplos suscitados pelas próprias gestantes ao
longo da oficina: a jovem que tem na companheira do pai sua “mãe de criação”, a gestante que não
se relaciona mais com o pai do filho e pretende que o atual companheiro o registre, a outra que até
hoje não conhece o pai, entre outros casos, que sugerem uma trama cotidiana de relações sociais à
primeira vista classificadas como desconexas (Fonseca, 2000).
139
oficina sobre o tema. Uma, em tom de brincadeira, respondeu: “Engordar”!
Bianca insistiu: “O que mais?”. Outra afirmou: “Tem mudanças por dentro e por
fora”. Bingo! Era disso que se tratava o encontro daquele dia.
Bianca explicou a dinâmica que iriam realizar: as mulheres seriam
divididas em dois grupos para refletirem sobre as “mudanças físicas, sociais e
emocionais” relacionadas à gestação. Ao final, um grupo deveria apresentar o que
identificava como sendo mudanças positivas e o outro como negativas. A
enfermeira sugeriu que as mulheres se sentassem em círculos para debater.
Logo que se reuniram, antes de colocar em prática o exercício proposto, as
gestantes queriam saber o sexo dos bebês, assunto que despertava grande interesse
no grupo. Nem todas tinham essa resposta para dar, pois ainda estavam no início
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da gestação105, mas já tinham palpites, em geral baseados em crenças
compartilhadas pelas mulheres da localidade: “Eu acho que é menina, porque
emagreci”, disse uma, acrescentando que “menino engorda, menina emagrece”.
Outra alertava que “parto de menino dói mais do que de menina”.
A forte demarcação de gênero presente naquele contexto, torna a busca
pela detecção do sexo uma prática bastante freqüente. Segundo as mulheres, a
diferenciação pode ser notada ainda na gravidez, por exemplo, a partir da
observação do formato do corpo materno: através do ganho ou perda de peso,
como já dito, mas também da forma da barriga – pontuda é menino, redonda é
menina. Acredita-se ainda que o sexo do bebê tenha influência na experiência de
parto (partos de meninos são reputados como mais dolorosos) ou no resguardo,
isto é, no tempo considerado necessário para que a mulher retome suas atividades
após o parto. Nesse sentido, recordo-me de ter ouvido diversas vezes as gestantes
dizerem que o resguardo no caso de ter dado à luz um menino deve ser maior (45
dias) do que quando se trata de uma menina (30 dias). Essa informação, que
circulava com freqüência entre as mulheres, era constantemente refutada pelas
105
Diferentemente do grupo estudado por Paim (1998), todas as gestantes que entrevistei fizeram
ultra-sonografias ao longo da gestação, o que permitia a detecção precoce do sexo fetal. Esses
exames foram feitos às expensas das gestantes, pois não são oferecidos pela rede pública. Apesar
de terem que arcar com os custos, umas comentaram que algumas vezes fizeram o exame mesmo
sem que este tivesse sido solicitado, apenas para ver “se estava tudo bem com o bebê” ou para
identificar seu sexo. Como destacou Chazan (2007: 199), houve uma “transformação do
significado do ultrassom obstétrico, de um meio diagnóstico, produtor de um tipo de saber médico,
para objeto (...) de consumo e também de lazer”.
140
enfermeiras, que alegavam que as mulheres poderiam retomar suas atividades,
inclusive sexuais, tão logo se sentissem dispostas106. Mas algumas mostravam-se
resistentes, muitas vezes prevalecendo a orientação recebida das mulheres da
família107. Segundo ouviram de suas mães e avós, a quebra dessa interdição
poderia levar à loucura e fazer o leite materno “secar”.
Outro tópico que tomou conta da discussão naquele dia foi a questão da
disposição sexual – ou a ausência dela – durante a gravidez. Com efeito, esse é
um assunto frequentemente debatido pelas gestantes nos grupos educativos. Como
de costume, algumas relataram um forte aumento do desejo sexual (“Meu marido
agora vive dizendo que está com dor de cabeça”, brincou uma jovem), enquanto
outras admitiram um total desinteresse. O medo de machucar o bebê, sentido por
algumas mulheres ou por seus parceiros, foi mencionado – em diferentes oficinas
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e consultas – como um fator que levou à redução ou até mesmo à interrupção total
das relações sexuais durante a gravidez.
Em outra oficina, na qual o sexo foi incentivado como uma “tecnologia”
que favorecia o trabalho de parto a partir da liberação do hormônio ocitocina pelo
próprio corpo, a questão foi novamente motivo de debate. Um dos homens
presentes disse que costumava brincar com a mulher falando, na hora do sexo, que
iria “dar uns cascudos no moleque!”. Outra gestante contou a piada que seu
marido, com quem confessou não ter relações há 7 meses, lhe contara: “Dois
gêmeos, ainda dentro da barriga da mãe, estavam conversando. Um perguntou ao
106
De acordo com Boltanski (1979), “a história da medicina é a história da luta contra os
preconceitos médicos do público e, mais especialmente, das classes baixas, contra as práticas
médicas populares, com o fim de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o monopólio dos
atos médicos e colocar sob sua jurisdição novos campos abandonados até então ao arbítrio
individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimentação” (1979: 14). Novamente,
sugiro que as observações do autor sobre o assunto podem ser facilmente aplicáveis aos
profissionais de enfermagem, que também apresentam-se como divulgadores da ciência oficial, a
despeito de, em determinadas situações, buscarem aproximar-se das parteiras “tradicionais”.
107
A entrevistada Adriana contou em uma oficina que a avó vigiava se ela estava seguindo o
resguardo e quando a via andando descalça em casa chamava sua atenção, dizendo que ela iria
ficar louca. Adriana riu e disse que não levava a avó a sério, mas em outro momento comentou que
estava seguindo o resguardo, apresentando como justificativa o fato de ter brigado com o marido.
Como é possível notar, Adriana faz questão de destacar a relação distante que mantém com as
crenças e práticas herdadas do passado, ainda que, de alguma forma, siga suas prescrições. As
observações de Boltanski sobre o uso de remédios “caseiros” parecem ser interessantes para a
comparação: “Trata-se evidentemente de dar a entender que ela [a entrevistada] utiliza esses
remédios sem alimentar muitas ilusões sobre seu valor de cura, e principalmente, sem confundi-los
com os “verdadeiros remédios” prescritos pelo medico. Dizer que são “remédios caseiros” é
distinguir-se ostensivamente daquelas mulheres simples que os utilizam ingenuamente, sem
considerá-los assim” (Boltanski, 1979: 25).
141
outro o que queria ser quando crescer. O primeiro disse “Doutor”. O segundo,
“caçador”. “Caçador? Por que?”, perguntou o primeiro. “Para matar essa cobra
que todo dia fica importunando a gente!”. As brincadeiras revelam, com humor,
um certo incômodo entre os casais em fazer sexo durante a gravidez, momento em
que a “mulher” está justamente em vias de converter-se em “mãe”108. Nesse
sentido, a gravidez representa um período liminar, ambíguo, em que a mulher
ainda não está investida do novo papel, porém, tampouco, ocupa o mesmo lugar
de antes, tal qual propõem estudiosos dos ritos de passagem, como Van Gennep
(1978) e Turner (1974).
De acordo com Van Gennep (1978), os ritos de passagem definem-se
como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado e posição social de
idade”. Uma das grandes contribuições de Van Gennep diz respeito à busca por
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discernir os mecanismos básicos que compõem os ritos que acompanham essas
transições. E é a partir desse esforço que o autor observa que o rito é composto
por fases invariantes, que sofrem pequenas alterações de acordo com o tipo de
transição que o sujeito deverá realizar naquele momento de sua trajetória social.
Em se tratando das diferentes “etapas” que marcam a vida social – como o
nascimento,
a
puberdade,
o
casamento,
a
maternidade/paternidade,
a
especialização de ocupação e a morte – são realizadas cerimônias diversas que
têm em comum o objetivo de marcar a passagem de uma situação a outra.
De forma resumida, é possível dizer que o ritual de passagem caracterizase por um padrão, que implica em três fases distintas: separação, liminaridade e
incorporação ao grupo. Em um primeiro momento, o sujeito é afastado do grupo,
seja do lugar que ocupava na estrutura social ou de um conjunto de condições
culturais. Na segunda fase, que corresponde a um período de transição, ambíguo e
marginal, o sujeito ritual já não conta com os atributos de que dispunha no
passado, porém, tampouco dos que se investirá no futuro. É apenas na última
etapa que o sujeito ritual é reincorporado ao grupo, ocasião em que retorna a um
108
Ao longo das consultas e nos grupos educativos, o sexo é frequentemente incentivado pelos
profissionais da CP, não apenas durante a gravidez, mas depois do parto, tão logo a mulher tenha
vontade, procurando desmistificar a necessidade do chamado “resguardo”. “Isso ajuda na
cumplicidade do casal”, afirmou a enfermeira Zilda em uma das oficinas. É possível que o
incentivo ao sexo encontre relação com o projeto de conversão da “mãe” em “mulher”,
anteriormente referido.
142
estado de relativa estabilidade, voltando a fazer parte da estrutura, regida por
normas e padrões éticos de que deve compartilhar.
No caso que aqui nos interessa, isto é, nos ritos que envolvem o
nascimento do primeiro filho, a mulher adquire um novo papel social, o que
converte esta etapa em um rito de passagem não só para o recém-nascido – um
neófito, iniciante na vida extra-uterina –, mas também para a mulher, que passa
desse status para o de mãe. Nesse sentido, a gravidez deve ser entendida como um
período liminar, momento em que a gestante, que carrega dentro de si o feto, tem
o corpo alterado, não sendo ainda mãe de fato, mas tampouco apenas uma mulher,
vivendo os interstícios dessa transição. Quando está à margem, o indivíduo não é
mais o que era, mas também ainda não é o que será após a conclusão do rito,
sendo, portanto, uma fase de indeterminação social, percebida como delicada ou
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perigosa.
Em sintonia com a idéia de liminaridade como um estágio transitório e
ambíguo, é possível dizer que a gestação, na percepção das mulheres do grupo, é
percebida como um momento particular, de intensa variação emocional e
corporal, incluindo aí alterações na libido, no humor109, no paladar110, etc., sendo
considerado um momento de oscilação entre os extremos.
Na definição de Luciana, uma das gestantes que participavam da oficina,
“a gravidez parece uma TPM que dura 9 meses”. Corroborando a afirmação, uma
das mulheres narrou um episódio que disse ter vivido recentemente: “Eu expulsei
meu marido de casa: arrumei as roupas dele e ele foi. Uma hora depois liguei e
disse: volta!”. Todas riram. Outra comentou sobre as discussões que vinha tendo
com os colegas de trabalho: “Uma vez peguei a bolsa e fui embora. Entrei no
109
Entre as entrevistadas, várias comentaram que havia momentos em que se sentiam mais
emotivas e sensíveis, mas também períodos em que se irritavam com facilidade, principalmente
com pessoas próximas. “Fiquei mal-humorada, fiquei chata, mas agora passou. No começo eu
sentia uma variação de humor do riso para o choro”, disse a entrevistada Denise, no final da
gestação. Na oficina de Modificações, várias gestantes fizeram comentários semelhantes, entre
elas uma jovem que afirmou se sentir “bipolar”: “num dia feliz, no outro triste”.
110
Algumas comentaram que, por sentirem enjôo, perderam o interesse por determinados
alimentos. Outra afirmou que só queria comer comida feita pelos outros, porque enjoou da própria.
“Outro dia pedi feijão para a vizinha”, conta. Em oposição ao enjôo, isto é, a rejeição a
determinados alimentos que antes integravam a dieta alimentar, há os relatos de desejo, em que as
mulheres revelam um interesse súbito por comer algo nem sempre exótico, mas em horários e
momentos que escapam à rotina: “Acordei às 5h querendo comer feijão”, disse uma gestante.
“Acordei de madrugada querendo caldo de cana”, revelou outra.
143
primeiro ônibus que apareceu e fui parar em Marechal [Hermes]111. Depois voltei
para casa”. Ao ouvir os comentários, a enfermeira afirmou que as mudanças
percebidas pelas mulheres eram geradas pelas modificações hormonais –
diagnóstico que, aliás, foi feito diversas vezes nas oficinas. “Mas isso depende de
cada um e de cada gravidez”, ressalvou.
A idéia de que as emoções resultam do equipamento biológico, segundo
Rezende e Coelho (2010), de fato prevalece em algumas áreas disciplinares, bem
como na mídia e no senso comum. Um exemplo corriqueiro desse entendimento é
a concepção dos hormônios como causadores e/ou reguladores das emoções,
expressa pela enfermeira e que estaria no cerne de várias características emotivas
associadas aos gêneros. Nessa visão, os hormônios seriam os responsáveis por
uma série de reações emotivas que marcariam as várias etapas do ciclo de vida das
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mulheres, como os dias que antecedem a menstruação, a gravidez, a menopausa,
etc. Rezende e Coelho (2010) atentam para o fato de que nessa concepção está
implícita a idéia de que as emoções acontecem de maneira independente da
vontade dos sujeitos e de que, da mesma forma que haveria uma unidade
biológica entre os seres humanos, haveria também uma unidade psíquica.
“Encontramos uma tensão entre a visão da emoção como emanando de uma
natureza interior e não social do indivíduo, e a concepção que a toma como
qualidade universal de todos os seres humanos. Passaríamos assim do plano da
singularidade individual para o universal sem qualquer mediação da sociedade ou
cultura.” (Rezende e Coelho, 2010: 23/24).
Apesar de os profissionais que integram a equipe da CP frequentemente
destacarem a individualidade das mulheres, no que se refere a suas experiências e
reações ao longo da gravidez e no parto, a visão biomédica convencional, quase
sempre conflitante com esta, também permeia seus discursos. Em alguns
momentos, no entanto, essas contradições ficam mais evidentes.
Ao final da oficina, como havia sido pedido, as gestantes elaboraram uma
lista de modificações que consideravam negativas associadas à gestação, na qual
incluíram: “alterações de humor, sensibilidade emocional, enjôo, desconforto para
dormir, indisposição, dor nas pernas, inchaço nos pés, estrias, manchas na pele,
varizes, espinhas e celulite”.
111
Bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro.
144
Já a lista de mudanças classificadas como positivas, redigida pelo outro
grupo, incluía: “aumento dos seios112, paparicos/mimos113, cabelo114, alimentação
mais saudável, a mulher fica mais carinhosa, desejos, compras de bebê115, os
sentidos ficam mais aguçados, a mulher fica mais bonita e atraente”.
A enfermeira foi comentando cada um dos itens listados, com dicas para
tentar minimizar os incômodos apontados. Sobre ganho de peso 116, que não
chegou a entrar na lista, mas foi mencionado, Bianca fez o seguinte comentário:
“Quer ver vocês ficarem com um corpo beleza? Dando de mamar!”, disse ela,
acrescentando que
amamentação emagrece. Nesse aspecto, o incentivo ao
aleitamento materno, que se baseia na valorização do “natural”, presente no
ideário da “humanização” como um todo, encontra no padrão de beleza atual um
aliado. No entanto, após a observação da enfermeira, uma gestante rapidamente
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retrucou: “Ah, mas se o peitinho da [cantora] Claudia Leite cair ela coloca
silicone. E a gente?”.
Este comentário e vários outros feitos durante o grupo educativo
chamaram a atenção para a grande preocupação dessas mulheres com o corpo e a
112
Parece vigorar no Brasil um novo padrão de beleza, no qual os seios fartos ganham destaque,
disputando com a “bunda”, analisadas por Gilberto Freyre, o posto de paixão nacional. O aumento
no país da procura por cirurgias para colocação de implantes nos seios parece ter inspiração na
sociedade norte-americana, onde há tempos o silicone é usado em larga escala com este objetivo.
A gravidez se revela, portanto, um momento em que, ainda que transitoriamente, a mulher alcança
ou pelo menos se aproxima desse ideal.
113
É como se a mulher, por levar no ventre o feto, fosse tratada como a própria criança que está
para nascer, sendo alvo de cuidados especiais. O corpo da grávida deixa de ser apenas seu e passa
a ser objeto de cuidado e atenção constantes, sendo a gestante vigiada, mas ao mesmo tempo
“paparicada” durante os 9 meses subseqüentes.
114
Umas diziam que o cabelo ficava mais bonito, mas a inclusão desse item gerou polêmica, pois
algumas lamentaram não poder mais usar produtos químicos, segundo orientação transmitida no
pré-natal. “Como eu faço para domar meu cabelo? Vai virar um ninho de cobra!”, reclamou uma
gestante. Durante a gravidez, a autonomia que a mulher dispunha sobre seu corpo é parcialmente
revogada, em nome da saúde do feto.
115
Sobre o consumo de produtos destinados ao futuro bebê, Chazan (2007) analisa que “ao
adquirir objetos para o futuro bebê, a mãe ‘modela’ o feto e revela quem ela própria é, seguindo a
lógica contemporânea de consumo de que ‘a pessoa é o que ela consome’. O feto é inserido
socialmente, não apenas porque é medicalizado, singularizado, psicologizado, sexuado e nomeado.
Sua inclusão social e a construção de sua identidade de gênero passam igualmente pela aquisição
de bens de consumo. Em última instância, o novo sujeito – feto-Pessoa – é também um novo
consumidor generificado, inserido na rede econômica de trocas (2007: 198/199).
116
Na consulta coletiva de Nutrição, o momento da pesagem era sempre acompanhado de
brincadeiras que expressavam o incômodo sentido com o ganho de peso na gravidez: “É preciso
mesmo se pesar?”, disse uma gestante certa vez, enquanto outra comentou: “Ela [a balança] não
diz a verdade, não pode acreditar nela!”. É possível que a pesagem gerasse tanto incômodo por
poder denunciar a falta de disciplina da gestante em relação à alimentação, o que era monitorado
pelos profissionais.
145
aparência, sendo a gravidez e a amamentação considerados momentos ambíguos.
Se por um lado trazem efeitos positivos, como os seios fartos e o crescimento da
barriga, que atraem a atenção, fazendo com que se sintam mais bonitas, por outro,
esses estágios podem trazer outras transformações corporais indesejadas e, em
alguns casos, até mesmo irreversíveis. Assim, “estrias, manchas na pele, varizes,
espinhas e celulite” ocuparam parte significativa da lista de aspectos negativos
associados à gravidez, além da já mencionada preocupação sobre como ficará o
seio após a amamentação.
É interessante que situação bastante diversa foi observada por Paim (1998)
em pesquisa com gestantes e puerperas de classe popular em Porto Alegre. De
acordo com a autora, elas exibiam, sem constrangimentos ou julgamentos, “as
marcas permanentes que a experiência da maternidade deixou em seus corpos”
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(1998:44), tais como: estrias na barriga e nos seios, ventre avantajado, corte de
cesariana, entre outras. Na avaliação de Paim, não houve uma preocupação em
prevenir tais “marcas”, pois estas funcionariam como registros do status de
mulher adulta, alcançado através da maternidade.
Apesar de ambos os grupos pertencerem a camadas populares, acredito
que o fato de as mulheres com as quais tive contato viverem no Rio de Janeiro
não deve ser menosprezado. Tecendo considerações sobre a vida na cidade,
Goldenberg (2004) chama a atenção para o fato de que as praias e as altas
temperaturas durante a maior parte do ano favorecem o “desnudamento” dos
corpos. Isso contribui, segundo a autora, para que a aparência física assuma uma
centralidade na vida das pessoas, que também ocorre em outros espaços, mas aqui
se torna muito mais evidente. Com base em suas pesquisas, Goldenberg constata
que “a preocupação com a aparência e a juventude se tornou uma obsessão entre
as cariocas” (2004: 48). É certo que a autora concentrou suas investigações em
mulheres de camadas médias, mas ao que tudo indica as gestantes que fazem o
pré-natal na casa de parto encontram, nesse aspecto, mais semelhanças com suas
conterrâneas do que com as mulheres de camadas populares pesquisadas por Paim
(1998), em Porto Alegre.
146
3.4.
A família em rede
Há anos dedicando-se a pesquisar o tema da família em camadas
populares, Duarte (1995) e Fonseca (2000) destacam em seus estudos que a
maioria das afirmações evocadas no senso comum sobre a instituição “família” no
mundo ocidental moderno adota como premissas as características do universo de
camadas médias, no qual predomina um modelo individualizante de família: a
chamada “família nuclear”, identificada com a modernidade.
Isso fez com que outros formatos da família contemporânea fossem,
durante muito tempo, interpretados como uma oposição à norma e não como um
“modelo alternativo”. O que ambos os autores advogam, respaldados por uma
vasta bibliografia sobre o tema, é que existem diferenças significativas no que se
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refere à organização familiar dos grupos populares, o que, por sua vez, deve
conduzir à busca pela coerência interna dessas práticas e não percebê-las como
variantes do modelo hegemônico.
De acordo com Duarte, uma diferença crucial diz respeito à “fraca
subordinação da cultura desses grupos de nossas sociedades à ideologia
individualista e da concomitante preeminência de uma visão relacional e
hierárquica de mundo” (1995: 33). Nesse modelo de família há um
reconhecimento da diferença complementar dos membros do grupo doméstico e
um “comprometimento não com a produção de Indivíduos mas com a de Pessoas
relacionais” (1995: 33).
São características fundantes dessa relacionalidade as redes de ajuda
mútua, parte de um sistema de obrigações recíprocas, do qual a “circulação de
crianças” (Fonseca, 2006) é apenas mais um elemento da dinâmica que orienta a
organização familiar. Segundo Sarti (2011), a noção de “rede” é fundamental para
a compreensão do significado da família nesses segmentos:
“A família pobre não se constitui como um núcleo, mas como uma rede, com
ramificações que envolvem a rede de parentesco como um todo, configurando
uma trama de obrigações morais que enreda seus membros, num duplo sentido,
ao dificultar sua individualização e, ao mesmo tempo, viabilizar sua existência
como apoio e sustentação básicos” (grifos no original, 2011: 70).
147
Na visão da autora, a importância da família nas camadas populares se
assenta, em grande medida, na incapacidade das instituições públicas de
substituírem as funções privadas do grupo doméstico, haja vista a precariedade
dos serviços públicos de educação, saúde, previdência, amparo à velhice e à
infância.
Sem negar a predominância da hierarquia nesses segmentos, estudos
mais recentes (Machado e Barros, 2009, Duarte e Gomes, 2010, Machado, 2001)
buscam apontar as possíveis combinações entre os valores que pautam o ideário
individualista e os preceitos relacionais e hierárquicos que estruturam a
subjetividade nas camadas populares. Segundo Duarte e Gomes (2010), isso se
deve à difusão permanente de valores associados às “cosmologias modernas” –
como mercantilização, igualitarização e liberalização do espaço público –, que
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pouco a pouco vêm provocando mudanças em todas as esferas sociais.
Em “Três Famílias: Identidade e trajetórias transgeracionais nas classes
populares” (Duarte e Gomes, 2010), por exemplo, os autores observam haver
entre as famílias investigadas uma conciliação do modelo nuclear e conjugal de
família com um modelo de família extensa, “aberta e porosa à relacionalidade
englobante”, na qual há espaço para as relações de vizinhança, compadrio e
parentesco.
Os autores destacam que os casos mais extremos de auto-afirmação
individual, no entanto, acabam gerando um afastamento do grupo de origem, o
que provoca rompimentos mais ou menos intensos com essa ideologia,
diminuindo a solidariedade entre a parentela.
3.4.1.
O parto: uma decisão muitas vezes coletiva
Considerando a prevalência da relacionalidade e da hierarquia na
estruturação da família nas camadas populares não é de surpreender que durante a
pesquisa se tenha observado que para a gestante seguir adiante no pré-natal e dar à
luz na CP é fundamental o apoio da família – em especial do companheiro e da
mãe. Isso significa que o plano de ter o filho ali deve ser encampado pela família,
fazendo com que as decisões relativas ao parto assumam um caráter coletivo.
148
Observação semelhante foi feita por Fonseca (2006), que afirmou estar
convencida de que nas camadas populares as decisões envolvendo as crianças
(seja como criá-las, escolarizá-las e até mesmo o número considerado desejável)
“não estão de maneira alguma confinadas ao casal” (2006: 32). Nesse sentido, eu
diria que o parto, na medida em que envolve a criança que está por nascer, pode
ser compreendido como estando inserido no processo de coletivização que
permeia a dinâmica familiar nesses segmentos.
Possivelmente este é um dos motivos que leva a equipe da CP a incentivar
as gestantes a trazerem os parentes nas consultas e grupos educativos, de modo
que não apenas a mulher, mas todos se familiarizem – aliás, um termo bastante
apropriado – com a proposta da “casa”. “Para parir aqui a mulher precisa que a
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família esteja junto dela”, comentou certa vez a enfermeira Susana.
Essa aproximação se revela ainda mais necessária na medida em que os
dois acompanhantes aos quais a mulher tem direito no momento do parto são, em
geral, selecionados entre os membros da família. Como no modelo de parto
proposto o acompanhante não deve ser um mero espectador, mas espera-se que
assuma algumas funções durante o trabalho de parto (como fazer massagens e dar
apoio físico e emocional à parturiente, assumindo o papel que nas camadas
médias muitas vezes é ocupado pela doula), a preparação não só da gestante, mas
também daqueles que estarão com ela no momento do parto é vista como
fundamental. Com efeito, o comentário feito pela enfermeira Ingrid aponta nessa
direção: “O parto aqui é diferenciado e se as pessoas não vêm antes, não
acompanham, elas não entendem”, afirmou, reforçando a importância da presença
da família nas oficinas.
Outro motivo para que a decisão de dar à luz na casa seja tomada em
conjunto diz respeito ao fato de que, como já referido, nas camadas populares o
conceito de família está ancorado nas redes de ajuda mútua. No caso das crianças,
essa rede é acionada de maneira ainda mais evidente: a partir da “coletivização”
das responsabilidades dentro do grupo de parentesco, como observou Fonseca
(2006) em pesquisa sobre a prática de “circulação de crianças” nesse segmento.
Esta prática pode ser acionada, por exemplo, nas situações de ruptura e
instabilidade familiar, quando a mulher decide “dar para criar” seus filhos ou
149
algum deles, ainda que temporariamente. Mas mesmo no cotidiano, em especial
nos casos em que a família extensa compartilha uma mesma casa ou “quintal”117,
os cuidados com a criança costumam ser compartilhados por diferentes membros
da família.
Diante desse cenário, a CP se esforça para promover a aproximação da
família de origem – e não apenas da família nuclear –, sendo seus membros
constantemente convidados a participar dos grupos educativos118 e a acompanhar
a gestante nas consultas do pré-natal. Eugênia, coordenadora da CP, justifica o
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investimento feito pela equipe nessa aproximação:
“No nascimento não nasce só a mãe, não é? Nasce uma família. É avó, avô, tios
e essa família vai ser a rede de apoio dessa mulher. Essa mulher passa um tempo
com a gente [na casa de parto], mas o tempo maior é em casa com essa família.
Então essa família precisa acreditar na ‘casa’ também, porque senão... se a
família não acredita, como é que essa mulher vai dar conta de acreditar? Então é
por isso que a gente fala que a casa de parto trabalha a família. A gente valoriza
muito a presença da família. Quando a família não consegue estar presente,
quando ela [a gestante] vem muito sozinha, a gente sinaliza no prontuário. A
gente pede para a família vir. (Eugênia)
As reflexões de Duarte et al. (1993) parecem ser de grande valia para
compreender o dilema em que se encontram os profissionais da CP, pois ao
mesmo tempo em que procuram cultuar e disseminar os valores articulados pela
“individualização”, “racionalização” e “responsabilização” – necessários ao
processo de “cidadanização” e de construção de uma “nova mulher”, com o qual
estão comprometidos –, não podem romper com a família de origem da gestante,
uma relação que é marcada justamente pela hierarquia e gradação (DaMatta,
1991).
Dessa forma, a equipe da casa de parto parece se confrontar com algo
semelhante ao que seria o “paradoxo do bairro popular”, referido pelos autores.
Segundo eles,
117
Fonseca (2005) usa o termo “pátio”, mas a categoria nativa aqui utilizada é “quintal”. Segundo
a autora, “muitos dos moradores de bairros pobres pensam não em termos de ‘casa’, mas sim em
termos de ‘pátio’. Em um terreno, por menor que seja, sempre tem lugar para construir mais uma
‘puxada’” (2005: 53). No Rio de Janeiro, em vez de “puxada” diríamos “puxadinho”. Ainda que
com esses pequenos ajustes semânticos, a prática e os significados atribuídos a essas categorias
parecem ser os mesmos.
118
Há inclusive uma oficina, que não é realizada de forma regular, mas que está direcionada às
avós.
150
“o processo primordial da cidadanização é o da ‘individualização’, que pressupõe
uma série de mudanças ideológicas e societárias entre as quais avulta a
desenfatização crescente dos laços de parentesco e de vizinhança e um regular
afrouxamento da superposição e/ou intensidade de suas redes” (Duarte et al.,
1993: 9)
Contudo, diante da realidade e forma de organização das camadas
populares, a estratégia dos “agentes de cidadanização” em relação à população
desses segmentos centra-se na preservação, consolidação e manutenção dos
bairros populares, em geral através de suas associações de moradores (Duarte et
al., 1993). No exemplo da casa de parto, parece ocorrer algo semelhante, uma vez
que a aproximação com a família de origem, incentivada pela equipe, atua no
sentido de reforçá-la e fortalecê-la. A questão, porém, é que, segundo os autores,
com essa estratégia “se tende a coibir (...) o processo da ‘individualização’ (e seus
corolários) pelo reforço de entes intermediários de pertencimento, que ocupam
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parte da ‘responsabilização’ pretendida (Duarte et al., 1993). Ou seja, dessa
forma, o processo de individualização pretendido se vê ameaçado.
A CP, no entanto, não consegue se ver livre desse paradoxo, pois, como
constatado diversas vezes ao longo da pesquisa e também exposto por Eugênia, se
a família de origem da gestante (especialmente a mãe) não compactua com o
modelo de assistência proposto, há grandes chances de a mulher, mesmo tendo
feito o acompanhamento pré-natal, não dar à luz ali. O caso relatado por Eugênia
é bastante ilustrativo:
“Na semana passada a [residente] Pâmela foi atender uma gestante que veio com
a mãe. A primeira vez que a mãe entrou na casa, a mãe destratou a Pâmela.
Quando a [enfermeira] Ingrid entrou, ela destratou a Ingrid, dizendo que nunca
viu disso, uma casa de parto que não tinha médico e que não sei o quê, que a
gente estava ilegal, falando um monte de besteiras. Falou aqui fora, falou lá
dentro do consultório... Aí a [diretora] Lúcia pediu para eu conversar com ela [a
gestante], porque ela viria na quarta-feira. E quando eu fui conversar ela falou
que, realmente, era muito conflito, porque as pessoas não queriam que ela parisse
aqui. Todo mundo ficava falando um monte de coisa, mas que ela queria muito
parir aqui. Porque onde ela ia ter uma suíte só para ela e para o filho, onde ela
pudesse ficar longe de perturbações da cabeça? E quando ela veio conversar, ela
me lembrou disso. Mas, assim, o pai da criança não dá conta dela, sumiu. Não
quer apoiar e quem está dando conta dela é a mãe. E a mãe falou com ela que se
ela parir aqui, pode esquecer que ela existe. Eu virei para ela e falei: “Poxa, mas
então é melhor que, realmente, você vá ter seu bebê na maternidade, porque
como é que vai ser depois? Você precisa da sua mãe”. E aí, a gente viu... só
confirmou: se a família não compra a idéia, faz isso. Como ela não é empoderada
e depende financeiramente da mãe, ela vai baixar a cabeça”.
151
Como é possível observar a partir desse relato, é comum que nos casos em
que não haja uma adesão coletiva ao modelo de atendimento e cuidado oferecido
pela casa de parto, as gestantes vejam-se diante de um grande conflito. Nessas
situações, não é raro que, quando em trabalho de parto, a mulher acabe sendo
levada para maternidades próximas.
É preciso dizer também que um fator que contribui para que isso aconteça
é o protocolo da CP de internar a parturiente apenas quando o trabalho de parto é
considerado efetivo, a partir de 4 ou 5cm de dilatação. A incompreensão de
pessoas da família, acostumadas com a prática hospitalar de – nos casos em que
há leitos disponíveis – internar a mulher ao primeiro sinal de trabalho de parto,
algumas vezes fala mais alto.
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A enfermeira Bianca justifica o protocolo da CP:
“Nada melhor do que a casa da gente, por mais que a gente se esforce para tornar
a ‘casa’ aconchegante. Em casa você pode namorar, relaxar, comer um doce...
ficar aqui causa ansiedade, atrapalha, a mulher fica tensa, ainda mais quando vêm
muitas pessoas junto. Ela quase tem que dar satisfação para as pessoas que estão
esperando”.
O risco, no entanto, é de que a família confunda o que é parte de um
modelo de assistência, isto é, de um projeto de parto e nascimento, com falta de
assistência ou, o que é pior, com um “castigo”: sem “ajuda” de episiotomias,
ocitocinas e com internação “tardia”119. É o que na vizinhança é chamado, pelos
críticos, de “parto da idade da pedra”.
***
119
Teresa, uma das enfermeiras da casa, conta que às vezes a própria parturiente ou seu
acompanhante empurram a barriga para baixo, fazendo uma pressão que lembra um procedimento
chamado “Manobra de Kristeller”, realizado com freqüência nos partos hospitalares. Teresa
acredita que os que fazem esse procedimento provavelmente já viram em outros lugares e acham
que “ajuda” no parto.
152
O sumiço de Rita
Encontrei-me com Rita algumas vezes durante o trabalho de campo.
Assisti a uma de suas consultas no pré-natal, estive em uma oficina onde ela
também estava presente e conversamos algumas vezes na sala de espera enquanto
ela aguardava para ser atendida. Rita é negra, tem cabelos crespos na altura dos
ombros, dentes projetados para frente, aparentando ter chupado dedo ou chupeta
por muito tempo, e parecia estar acima do peso. Ela é bastante falante e
extrovertida. Naquela tarde, sentei-me ao seu lado na sala de espera. A sala estava
vazia e Rita deve ter sido uma das primeiras a chegar para as consultas da parte da
tarde.
Ela contou que engravidou perto do Ano Novo, de um rapaz com quem
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teve um relacionamento fortuito e com quem pouco teve contato ao longo da
gestação. No início da gravidez teve muitas dúvidas, foi difícil aceitar, mas contou
com o apoio da mãe, que achava que ela, aos 24 anos, já estava mesmo passando
da hora de lhe dar netos. Rita é filha única por parte de mãe e, apesar da
proximidade que parece haver entre as duas, não moram juntas. A mãe reside na
Baixada Fluminense e ela em um dos bairros das redondezas. Durante a conversa,
Rita contou que antes morava sozinha, mas que há alguns meses a irmã (por parte
de pai) e o sobrinho foram morar em sua casa, depois de uma separação conjugal
conflituosa. Rita ajudava a cuidar do menino quando não estava em seu horário de
trabalho, em uma fábrica de embutidos. Ela estava no fim da gestação e dizia que
estava ficando muito cansada para ir trabalhar. Estava pensando em dar logo
entrada na licença-maternidade.
Ao longo da conversa perguntei o que sua família achou dela fazer o prénatal na casa de parto e, em breve, dar à luz seu bebê ali. Ela contou que sua mãe,
que nunca tinha visitado a CP, sempre se mostrou bastante insegura pelo fato de
não haver médicos e preferia que Rita tivesse o parto em uma maternidade. Insisti
um pouco mais nesse tópico da conversa e ela disse que sua mãe apenas se
tranqüilizou depois que a irmã de Rita lhe avisou que não se preocupasse, pois, na
hora do trabalho de parto, a futura avó poderia levar a filha para onde quisesse,
pois esta não estaria em condições de decidir. A mãe concordou com o que dissera
153
e apaziguou. Rita falou sobre isso com um sorriso no rosto, demonstrando certa
anuência, sem esboçar qualquer reação à atitude, já anunciada, de sua mãe.
Recordo-me de ter visto Rita na semana seguinte, novamente enquanto
aguardava uma consulta. Ela cochilava na cadeira de balanço, já com 39 semanas
de gestação. Mas depois nunca mais a vi. Nem seu nome foi incluído no livro
onde se registram as mulheres que deram à luz na CP ou naquele onde constam os
casos em que houve necessidade de transferência.
A cesárea de Taiane
Taiane foi, acompanhada da mãe e com a filha recém-nascida nos braços,
a uma “Roda de conversa”. Esse encontro reúne puérperas que freqüentaram a CP
para contarem sobre suas experiências no pré-natal e no parto. O intuito, explicou
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a enfermeira durante a reunião, é ter um retorno das mulheres sobre o serviço
prestado e o que poderiam fazer para melhorá-lo. É também uma forma de
saberem como foi o atendimento prestado na maternidade de referência, nos casos
em que houve transferência. A adesão à “Roda de conversa”, no entanto, costuma
ser baixa e o agendamento é feito durante as consultas de revisão do bebê. No dia
em que conheci Taiane, na véspera do Natal, participaram da “Roda” apenas ela e
mais uma puérpera. É certo que a data e o calor que fazia naquela tarde não
contribuíam muito para que as demais mulheres agendadas comparecessem com
seus bebês recém-nascidos.
Taiane tem 17 anos, é branca, tem baixa estatura e os cabelos longos
castanhos. Usava naquele dia um decote que exibia os seis fartos e um short, curto
e justo, que à primeira vista não combinavam com a timidez que a jovem revelava
ao falar. A mãe, que a acompanhava e passava mais tempo com o bebê no colo do
que a filha, tinha a pele envelhecida pelo sol e possivelmente devia ser mais
jovem do que aparentava.
A enfermeira que conduzia o encontro naquela tarde era Bianca, que
estava acompanhada por Tânia, assistente social da CP. Logo que entrou na sala
Bianca disse em tom de brincadeira – mas não sem esconder uma pequena
repreensão – que iria fingir que não estava vendo que a filha de Taiane estava com
154
uma chupeta na boca120. A jovem riu, com algum constrangimento, e guardou a
chupeta na bolsa. Em seguida, Bianca pediu que ela relatasse como foi o parto de
sua filha.
Taiane contou que deu à luz em um parto cesáreo em um hospital
localizado no mesmo bairro da CP. Em seguida, justificou que foi levada para lá
pelo marido e pela sogra porque o hospital era mais próximo de sua casa. Bianca
se mostrou surpresa com a notícia e questionou por que Taiane fez o pré-natal na
casa de parto se era longe do lugar onde morava. A enfermeira tentou ser delicada,
mas não escondeu a decepção. Ela disse que precisava respeitar a decisão de
Taiane, mas explicou que a equipe da CP presumia que as mulheres que
ingressavam no pré-natal o faziam porque queriam dar à luz ali. Lamentou que
todo o trabalho, tanto de Taiane, ao participar dos vários grupos educativos,
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quanto dos profissionais da CP, que investiram ao longo dos 9 meses para que ela
estivesse preparada para um parto “natural”, tivesse sido em vão. Bianca
continuou e afirmou que se a cesárea a qual ela foi submetida fosse realmente
necessária Taiane teria sido submetida à cirurgia mesmo que tivesse ido
inicialmente para a casa de parto, pois os profissionais a teriam encaminhado para
a maternidade. Ainda demonstrando certo inconformismo, a enfermeira perguntou
se Taiane sabia o motivo pelo qual havia sido feita uma cesariana. A mãe tomou a
palavra e respondeu pela filha, dizendo que o bebê estava “alto” e “não descia”.
“Eles empurraram, mas ela não descia”, justificou. Bianca continuou dirigindo-se
à Taiane, apesar da intervenção da mãe, e perguntou se ela ficou deitada durante o
trabalho de parto. Ela contou que sim, porque sentia muita dor nas costas. A
enfermeira disse que na CP o acompanhamento teria sido diferente, pois a
estimulariam a usar a água quente do banho para aliviar as dores, a fazer
exercícios e a se movimentar, o que poderia ter favorecido a passagem do bebê
pelo canal de parto.
A assistente social, que também estava presente, não se conteve e
manifestou-se, lembrando que os profissionais da CP já atenderam quase 2 mil
120
O uso de chupeta e de mamadeira é condenado na CP, em consonância com recomendações do
Ministério da Saúde, pois acredita-se que representa uma ameaça à amamentação. É possível que
isso ocorra também porque esses elementos são percebidos como “artificiais”, em contraposição
ao valor atribuído ao “natural” naquele contexto.
155
partos e que “sabem o que fazem”. Ela falou da “grande chance” que as mulheres
tinham ali de ter um parto “humanizado” pelo sistema público de saúde e deu
como exemplo a modelo Gisele Bündchen, que pagou caro para ter um parto
como o oferecido ali. Tânia mencionou ainda o caso de uma gestante, que morava
em Copacabana e estava fazendo o pré-natal na CP, sobre a qual ouviu falar
quando morava no exterior121.
Mãe e filha ficaram um tempo caladas, constrangidas com a situação e
possivelmente arrependidas de terem ido ao encontro, do qual acabaram tornandose o foco principal. Em seguida, Bianca pediu que Taiane retomasse o relato de
seu parto. Taiane iniciou o depoimento, mas foi interrompida pela mãe diversas
vezes, até que esta acabou assumindo a palavra. Buscando enfatizar os pontos
negativos da experiência e conquistar a solidariedade das profissionais da CP, ela
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contou que, depois do parto, a filha ficou 10 dias internada no hospital, porque
teve rejeição aos pontos. A enfermeira fez algumas perguntas para compreender
melhor o que havia se passado e, aos poucos, a mãe detalhou a história. Segundo
ela, Taiane teve uma hemorragia durante o parto e, por conta disso, ficou anêmica
e precisou receber transfusão de sangue. “Quando eu levantava eu não conseguia
controlar o meu corpo”, disse Taiane. Indagada por Bianca, ela afirmou que, ao
todo, recebeu três bolsas de sangue. Diante desse quadro, nos primeiros dias não
pôde amamentar a filha – que naquele momento dormia no colo da avó, sem se
incomodar com a conversa. Todas na sala ficaram comovidas com o relato.
Ao fim da “Roda de conversa”, a enfermeira convidou as duas puérperas a
retornarem à “casa” para visitar e trazer as crianças, dizendo que seriam sempre
bem-vindas, inclusive para fazer o pré-natal novamente. Bianca, no entanto, logo
121
A entrevistada Adriana também compartilha dessa percepção: “Antigamente, só tinha [parto na
banheira] quem tinha dinheiro, não é?”. Como é possível notar, o parto “natural” e “humanizado”
é associado pela equipe da CP e, talvez como consequência disso, também pelas mulheres, a uma
determinada classe social, isto é, aos segmentos médios e altos, tendo sido de fato onde
inicialmente disseminou-se a proposta. Através dessa associação, os profissionais tentam fazer
com que as mulheres de camadas populares valorizem a proposta de parto impulsionada pela CP,
que nesse contexto reveste-se de status, posto que considerada um atributo ou sinal diacrítico das
classes dominantes. Uma matéria publicada no ano passado no Diário Oficial e postada no blogue
da CP procura reforçar essa ideia, a partir da associação entre as experiências de parto de Kate
Middleton, esposa do príncipe William, no Reino Unido, e a de uma mulher que deu à luz na CP
no mesmo dia e horário. A matéria encontra-se disponível em: http://smsdccasadeparto.blogspot.com.br/2013/12/publicado-no-diario-oficial-do.html. Último acesso em
25/02/2014.
156
se retratou e lembrou que Taiane, por ter feito uma cesárea, não poderia mais
fazer pré-natal ali. A partir daquele momento, ela escapava ao rígido protocolo da
CP.
***
A firmeza de Raquel
Conheci Raquel em uma oficina, no início da sua terceira gestação. Ela já
havia dado à luz na CP e estava retornando, depois de ter engravidado sem
planejar. Moradora do bairro, ela trabalhava como operadora de caixa e sustentava
a família com sua renda, pois o companheiro estava desempregado.
Raquel completou o ensino médio, é comunicativa e bastante articulada.
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Ela contou que, no início da gravidez anterior, teve um pouco de receio por não
terem médicos na CP, mas que ao participar dos grupos educativos acabou
“pegando segurança”. Na época ela tinha 24 anos e estava grávida do segundo
filho. Na última consulta do pré-natal, um exame de toque detectou que já estava
com 6cm de dilatação, apesar de não estar sentindo nada. “Eles me examinaram,
examinaram meu líquido, examinaram tudo e viram que eu estava bem”. Raquel
ficou em observação até meia-noite, quando recomendaram que fosse para casa e
retornasse pela manhã. “Vim e continuava a mesma coisa”. Segundo ela, o
“líquido” estava claro e ela ainda não havia entrado em trabalho de parto. Mais
uma vez sugeriram que fosse para casa e, de acordo com Raquel, deram a seguinte
orientação a seu marido: “Dá um trato nela, porque eu quero ela aqui de volta à
noite”.
No entanto, o retorno para casa, sem o bebê nos braços, começou a
preocupar os que ansiosamente o aguardavam. “A vizinha começou a encher a
cabeça da minha mãe e aí ela ficou com um pouco de medo. Apesar dela ser mãe
de seis filhos, ela começou a ter um pouco de medo, entendeu? Aí elas
começaram a assustar o meu marido: ‘Leva essa garota para o hospital. Vai passar
da hora dessa criança nascer!’”. Diante da pressão sobre o marido para que
tomasse uma atitude à sua revelia, Raquel se posicionou: “Aí eu falei assim:
‘Gente, quem está fazendo o pré-natal lá sou eu e quem tem confiança lá sou eu.
157
Então eu só vou sair daqui se for para a casa de parto, para ter neném lá. Eu não
vou sair daqui para mais nada”. O marido a apoiou: “A decisão é dela e ela não
quer ir para outro canto. Então a gente vai esperar o horário dela”. Na manhã
seguinte, Raquel entrou em trabalho de parto e deu à luz na CP.
***
A autonomia das mulheres e o apoio ou não de seus companheiros
parecem ter influência direta no desfecho dos partos das gestantes que fazem o
pré-natal na CP. No caso de Rita, ela já não se relacionava com o pai do bebê,
com quem teve apenas um encontro fortuito. Na prática, era com sua mãe que
contava e compartilhava a gravidez – o que não é incomum entre as gestantes ali –
e esta se mostrava bastante reticente em relação à CP, que nunca havia visitado,
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pois mora em outro município.
Já Taiane é adolescente, não trabalha nem estuda e mora com a família do
companheiro, que tem 22 anos. Ela conta que ele esteve uma vez na CP, mas ficou
com vergonha de participar do grupo educativo, porque havia poucos homens
presentes. Na prática, a jovem foi acompanhada quase sempre pela mãe nas
oficinas e consultas, mas, na hora em que entrou em trabalho de parto, ela não
estava presente. Sem o apoio da mãe, Taiane acabou sendo levada pela sogra e
pelo companheiro a um hospital próximo.
No caso de Raquel, a postura segura diante da oposição manifestada pela
mãe e pela vizinha, além do apoio do marido, foram fundamentais para que desse
à luz na CP. É curioso que a mãe de Raquel, vendo frustradas suas tentativas de
convencer a filha, tenha pressionado o genro para que tomasse uma atitude à
revelia da esposa, o que aponta para a percepção, naquele contexto, da
ascendência do homem sobre a mulher. É possível que o posicionamento firme e
independente de Raquel encontre respaldo em sua autonomia financeira, associada
à situação de desemprego do marido. De fato, Sarti (2011) chama atenção para
como a perda do emprego, no caso do homem, priva-o das referências
fundamentais de sua identidade social, qual seja: a de trabalhador/provedor/pai de
família. Trabalhando como operadora de caixa, Raquel sustenta a família,
ocupando o espaço que, em tese, seria o de seu parceiro.
158
“Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econômica da família,
ocorrem modificações importantes no jogo de relações de autoridade e,
efetivamente, a mulher pode assumir o papel masculino de ‘chefe’ (de
autoridade) e definir-se como tal”. (Sarti, 2011: 67)
Para concluir, arriscaria dizer que o posicionamento autônomo da jovem
perante a família pode ser interpretado como fruto da incorporação de alguns
valores do ideário individualista, favorecidos por uma série de fatores. Entre eles,
a escolaridade (Raquel tem ensino médio completo), a inserção no mercado de
trabalho e, não menos importante, o acompanhamento do pré-natal na CP, através
do qual foi exposta a valores alinhados com esse ideário, tendo como foco a
(trans)formação da mulher.
3.4.2.
A vizinha
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Ao longo da pesquisa de campo deparei-me diversas vezes com relatos
que sugeriam a relevância e a presença da vizinha na vida das mulheres
investigadas. Raquel, que comentara a influência da vizinha sobre sua mãe para
que a levasse à maternidade, conta que foi também uma vizinha que, anos antes,
acudira sua mãe depois que esta deu à luz em casa, sem que tivesse planejado;
Marisa, que dissera ter pedido ajuda à vizinha quando, no meio da madrugada, a
bolsa de águas rompeu e o namorado estava de “serviço” no quartel; Joana, que
revelara ter pedido feijão à vizinha depois que sentiu o cheiro do refogado e ficou
com “desejo”; Lara, que comentara ter sido a primeira entre as vizinhas da rua a
ter um parto “natural”; além dos incontáveis relatos de que fora a vizinha que
recomendara a casa de parto, ou, justo ao contrário, de que esta havia criticado a
gestante, após ter notícia de que pretendia dar à luz ali.
Sarti (2011) concentrou sua pesquisa na periferia de São Paulo, mas suas
observações parecem fazer sentido também para se refletir sobre as relações de
vizinhança e sociabilidade no subúrbio carioca. A autora destaca que no contexto
da periferia o vizinho é muito mais do que alguém que mora ao lado: trata-se de
uma “sucursal da casa”. A lógica que prevalece nas camadas populares é a de que
as relações de parentesco se estabelecem a partir de uma relação de confiança (e
não necessariamente por vínculos consanguíneos), o que abre caminho para que,
com freqüência, o vizinho seja percebido como um parente. Um recurso para essa
159
conversão é o chamado “compadrio”, que busca consolidar os laços de amizade.
Não por acaso o compadrio envolve as crianças, uma vez que é em torno do
cuidado com elas e das atividades domésticas que principalmente se baseiam as
relações com a vizinhança no caso das mulheres.
Segundo Sarti (2011), as relações de vizinhança operam a partir de uma
lógica de obrigações morais, que de maneira geral caracteriza a sociabilidade nas
camadas populares. Essa lógica tem como premissas dar, receber e retribuir, ainda
que a retribuição não seja imediata – e, portanto, aí reside a importância de que o
vínculo se estabeleça com alguém em quem se possa “confiar”. Assim, o vizinho,
com quem se estabelece uma relação de amizade, em quem se confia e pode
mesmo ser considerado um parente, torna-se o “espelho”, isto é, “o ‘realimediato’ que serve de parâmetro para a elaboração da identidade social” (Sarti,
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2011: 116).
3.4.3.
Mãe, sogra, avó
Diversas vezes durante a pesquisa as gestantes referiram-se ao bom
relacionamento que mantinham com suas mães: “Minha mãe é minha melhor
amiga”, “minha mãe é uma das pessoas mais importantes da minha vida”, etc. A
sogra, diferentemente do imaginário jocoso popular, também apareceu algumas
vezes como uma pessoa bastante próxima (“Minha sogra é como uma segunda
mãe para mim”, disse Monique), tendo em um dos casos até mesmo tido o
privilégio de escolher o nome da neta que iria nascer. Em algumas situações, o
mesmo parece se estender à avó, figura que, para determinadas mulheres, ocupava
o papel de mãe, inclusive ajudando na “criação” dos netos. Com efeito, mais da
metade das entrevistadas (52%) informou morar com outros membros da família,
como pais, sogros ou avós. Talvez não por coincidência, o mesmo número de
gestantes relatou que teve (ou que desejaria ter, no caso das que ainda estavam
grávidas) a mãe, sogra ou avó como uma das acompanhantes no momento do
parto.
Como no relato de Rita, foi possível notar que muitas vezes a gestante
acaba compartilhando os assuntos da gravidez e do parto principalmente com essa
figura feminina (seja a mãe, a sogra ou a avó), com quem deverá em um futuro
160
próximo compartilhar também os cuidados com a criança122. Em algumas
situações, em especial na ausência do parceiro, é a mãe da gestante quem
“assume” a gravidez, principalmente em se tratando das adolescentes.
***
Solange, mãe de Tatiana
Alta, negra, robusta e muito ativa, Solange, que iria se tornar avó aos 36
anos, falava da neta que ainda estava na barriga da filha como se mãe dela fosse.
Ela saiu do trabalho no supermercado para poder acompanhar a gravidez de
Tatiana, de 19 anos, que morava com ela, o pai, os irmãos e a avó, em uma favela
em um bairro próximo à CP. Do ex-namorado da filha, ela fazia duras críticas e
afirmava com veemência que não queria que ele registrasse o bebê: “Ele nunca
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deu nada, nem uma camisetinha de pagão de 3 reais. Mas dinheiro para maconha
ele tem!”, disse Solange, em voz alta durante nossa conversa na sala de espera. A
filha, sem parecer se incomodar com os comentários da mãe, assentia com a
cabeça. “Senão depois a outra avó vai querer reivindicar seus direitos, ficar com a
criança nos finais de semana”, acrescentou, revelando o que parecia ser seu maior
incômodo. Mas se Tatiana não negava a falta de participação do pai na gravidez,
ela discordava da mãe sobre o registro, pois dizia lhe desagradar a idéia de não
constar na identidade da filha o nome do pai: “Ela tem pai, eu sei quem ele é”,
argumentou, parecendo estar mais preocupada com o fato de que a ausência de pai
no documento pudesse revelar certa promiscuidade de sua parte. O assunto ainda
estava sendo negociado por ambas.
Sobre o ingresso no pré-natal da casa de parto, Solange também tratou
como se a decisão tivesse sido sua. Contou que um dia chegaram 15 minutos
atrasadas para a consulta no “postinho” (como as gestantes costumam referir-se
aos postos de saúde localizados próximo a suas casas) e não foram atendidas.
Solange decidiu que não voltaria mais ali. Por indicação de uma vizinha, foram
até a casa de parto. Tatiana já estava com quase 7 meses de gravidez e a mãe
122
Fonseca (2006) destaca que, nesses casos, há uma coexistência de laços de “sangue” e de
“criação”, que conferem à “avó” da criança um alto poder de manipulação de demandas (sobre a
criança ou usando-a como instrumento para outras reivindicações), uma vez que se inscreve na
relação hierárquica entre mãe e filha.
161
arrependia-se de não terem ido antes: “Aqui parece uma família, as consultas são
longas como uma conversa e a mãe [da gestante] pode participar”, explicava os
pontos que considerava mais positivos.
Em seguida, perguntei sobre seus partos e ela contou que teve 3 filhos. O
primeiro, aos 17 anos, teve em uma clínica particular, mas Solange avaliava que
não tinha sido tão bem tratada quanto a filha era na “casa”. Na ocasião, ela levou
o “corte” e tomou “soro”, o que acha que tornou o parto muito doloroso. No
segundo filho resolveu fazer diferente: “Eu quis fazer força em casa para ter meu
filho ali mesmo, como na ‘roça’”. Ela contou que a inspiração veio da mãe, que
tivera 12 filhos em casa. “Não me parecia tão difícil”, disse. Na última hora, no
entanto, acabou indo para o hospital e deu à luz o bebê em seguida, sem “soro” ou
“corte”. “Foi natural”, afirmou Solange, usando um termo com o qual se tornou
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familiarizada depois que a filha começou o pré-natal na “casa”. “Eu que chamei a
enfermeira para avisar que o bebê estava coroando”, disse, considerando,
possivelmente aos olhos de hoje, ter tido uma experiência positiva. O terceiro
nasceu de cesárea, porque ela resolveu “ligar as trompas”. “Sinto um incômodo no
corte até hoje, é muito ruim”, afirmou, queixando-se da cirurgia.
***
Foi possível notar que a experiência de parto de mães e avós costuma
permear a narrativa das mulheres, quando indagadas sobre o que compreendem
pela expressão parto “natural”. Elas contam que, ao chegarem a CP, a maioria
nunca tinha escutado a expressão – menos ainda parto “humanizado”, termo
poucas vezes usado ali. Mas elas logo identificam semelhanças entre a proposta
de parto da CP com a experiência vivida por mulheres de outras gerações da
família. Pelos relatos, é possível perceber que partos domiciliares e parteiras ainda
compõem o imaginário feminino naquela região, figurando em um passado não
tão distante. Com algumas poucas exceções123, em geral, depois que as mulheres
tomam contato com a proposta de parto da CP passam a recuperar e até
romantizar essas experiências, que de certa maneira servem para dar sentido à
123
Por exemplo, a de uma gestante, grávida do 4o filho, que ficou com vergonha de contar durante
uma oficina que um de seus partos havia ocorrido em casa. A enfermeira, por sua vez, procurou
valorizar esta experiência perante o grupo.
162
atual, ajudando-lhes a aceitar o parto desmedicalizado, que não foi propriamente o
que as motivou a buscar a CP. Assim, por oposição ao “parto da idade pedra”,
expressão usada pelos críticos da casa de parto, as mulheres fazem referência ao
“parto como de antigamente” ou “como na roça”, ao qual procuram, ao longo da
gravidez e por incentivo dos grupos educativos, atribuir uma conotação positiva.
Andressa, de 16 anos, quando indagada sobre o significado que atribuía à
expressão parto “natural” contou sobre a experiência da avó, que teve todos os
filhos em casa. Se essa experiência possivelmente não era antes valorizada, agora
Andressa a considera positiva e menciona ter havido uma transmissão desse
conhecimento entre as mulheres de diferentes gerações da família:
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O parto natural é assim... Minha avó teve 17 filhos. Todos naturais e tudo dentro
da casa dela. (...) Como a mãe dela – a minha bisa – falou, a minha avó acolheu e
passou para a minha mãe.
Deve-se ressaltar que a proximidade com as hoje chamadas “parteiras
tradicionais” é inegável naquele contexto, chegando até mesmo a membros da
família. Esse é o caso de Marta, por exemplo, cuja bisavó era parteira. Mãe de 4
filhas, Marta deu à luz a última na CP e comparou ali com o ambiente doméstico,
um lugar em que, segundo ela, o parto não é tratado como um “tabu”.
[Aqui] É como se tivesse em casa. Não tem aquela internação que ninguém pode
entrar e ninguém pode te ver, aquele tabu. Então, agora, é como se fosse
antigamente. Antigamente, você tinha em casa com a parteira, não é? Na época
da minha mãe e da minha avó.
Entrevistadora: A sua mãe nasceu em casa, você sabe?
Nasceu em casa e a avó que era a parteira.
Entrevistadora: Ah, é? E você ouvia muitas histórias sobre os partos que ela
acompanhava?
Eu ouvia que era normal. A mulher vinha, deitava na cama, fazia aquela força e a
criança saía. Não precisava corte e não precisava ponto, não precisava nada. Era
natural. Então, antigamente, não tinha nada disso, não tinha ultra e não tinha
nada.
Já Raquel, 30 anos, relatou a experiência que teve há 11 anos, quando
aparou o irmão que nasceu em casa. Ele foi o sétimo filho de sua mãe, que
163
pretendia ir ao hospital, mas não teve tempo. Essa experiência a ajudou a construir
uma visão positiva sobre o parto “natural”, como veio a nomeá-lo mais tarde.
Meu irmão mais novo tem 11 anos. Ele nasceu em casa. Quem acabou fazendo o
parto da minha mãe fui eu, no susto. Porque não tinha mais ninguém. Estava todo
mundo desesperado, até chegar uma enfermeira que morava na minha rua. Mas
quando ela chegou, ele já estava no meu colo, chorando. Ela só cortou o cordão
umbilical. Porque minha mãe estava em pé e, se eu não [o] tirasse, meu irmão ia
cair no chão. (...) Então quebrou aquele tabu. Eu falei assim: “Gente, é uma coisa
tão bonita”. Foi até... “Ah, tu teve coragem?” Eu falei: “Gente, é um ato tão
bonito ver uma criança nascendo que não me deu medo não. Acho que me deu
mais coragem ainda”.
É interessante que tanto Marta quanto Raquel fazem referência a uma
quebra de “tabu” quando tecem comentários sobre o parto “em casa” e sobre o
parto “na casa”. Como mencionado no capítulo 2, por ocasião da transferência do
parto do domicílio para o hospital, este passou a ser interditado aos membros da
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família e sua ocultação acabou transformando-o em algo desconhecido. Com
efeito, Salem (1983) aponta como na sociedade tradicional, em que prevalecia um
modelo de família extensa, a gravidez, o parto e a socialização das crianças eram
eventos públicos, que envolviam toda a comunidade, principalmente a feminina.
No entanto, com o surgimento da família nuclear e a medicalização da gravidez e
do parto, pouco a pouco este se converteu em um evento privado, individual, que
ocorre em um ambiento fechado e interdito, simbolizado pelo hospital. Foi assim
que o parto, que estava integrado ao cotidiano e contava com a presença da
família, como relata Marta, virou um “tabu”, cercado de restrições. Talvez por
isso um dos atrativos da CP seja a possibilidade de a parturiente dar à luz cercada
por membros da família, o que foi especialmente valorizado pelas entrevistadas
Evelin e Raquel:
[O parto ideal] é com a família ao lado. Igual eles fazem aqui. É o melhor parto
mesmo. (Evelin)
O parto ideal eu acho que é aquele que você tem a companhia da família, das
pessoas que você gosta. (Raquel)
É importante lembrar que o referencial contrastivo das mulheres atendidas
ali é o parto tal como realizado em maternidades e hospitais públicos. Como
referido, nessas instituições, não raras vezes a entrada do acompanhante – mesmo
do sexo feminino – é vetada, a despeito da existência de uma lei que obriga a
164
instituição a franquear acesso a um acompanhante de escolha da parturiente.
Nesse sentido, enfatizam McCallum e Reis (2006), “há uma clara mensagem da
instituição de que o parto não é um assunto da família” (2006: 1485).
Chama a atenção o fato de que a valorização da presença da família parece
se estender também aos profissionais da CP, tendo em vista que, por diversas
vezes durante a pesquisa, as mulheres relataram considerá-los “amigos” ou parte
“da família”. De fato, a relação estabelecida com eles era o que as entrevistadas
mais valorizavam na CP. A conversão do profissional de saúde em alguém
familiar ou que compõe o círculo de amizade próximo se deu principalmente por
meio das consultas do pré-natal, ocasiões em que a paciente era incentivada a falar
sobre seus medos e inseguranças em relação à gravidez – muitas vezes não
planejada124– e ao parto – como visto, tampouco almejado. Na visão dos
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profissionais, a exposição desses sentimentos era parte necessária do processo de
aceitação da proposta de parto “natural”, algo percebido como fundamental para
que a mulher efetivamente desse à luz ali.
Nesse sentido, é possível dizer que as emoções, antes reprimidas e
silenciadas, são colocadas em um novo regime discursivo, articulando-as a novos
dispositivos de poder e de saber, nos termos em que propõe Foucault (1980).
Como ocorreu com o sexo, as emoções são submetidas a um mecanismo de
crescente incitação, que teria se disseminado primeiramente nas camadas médias,
como observou Salem (2007) na década de 1980, e hoje parece se aplicar às
gestantes de camadas populares, através da disseminação da proposta de
“humanização” do parto e do nascimento por meio de sua incorporação ao sistema
público de saúde. Por outro lado, como argumenta Chazan (2007), deve-se
reconhecer que, em comparação com os anos 1980, houve uma retração da
chamada “cultura psicanalítica”. Esta, com efeito, teria exercido papel
124
Jussara, Analice e outras mulheres com que tive contato durante a pesquisa de campo
destacaram a importância das “conversas” com a equipe da CP para a aceitação da gravidez. “No
início, eu não estava querendo aceitar muito bem a gravidez. Então, assim, eu estava muito
frustrada e não queria conversar com ninguém em casa e com a minha família. Quando eu cheguei,
aqui, na primeira consulta, eu consegui conversar com a enfermeira, consegui desabafar e ela me
incentivou. Conversou comigo e falou que isso ia passar. Então, assim, eu me senti melhor, bem
melhor, do que eu estava. Aquilo dali, aquela conversa e aquele esclarecimento, conseguiu mudar
o meu modo de ver e de pensar, não é? Do jeito que eu estava pensando a gravidez” (Jussara).
165
fundamental no processo de “colocação das emoções em discurso” nos segmentos
médios.
Do ponto de vista das mulheres atendidas na CP, ser incitada a falar sobre
seus medos e anseios, bem como ser chamada pelo nome e reconhecida como
“pessoa” pelos profissionais de saúde é algo que valorizam e com o qual não
estavam acostumadas nas maternidades públicas – cuja marca é a impessoalidade
e padronização da assistência – levando-as a comparar a equipe da CP a “amigos”
ou a membros da “família”:
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“Assim, eles [os profissionais da casa de parto] são verdadeiros amigos, não é?
São pessoas que a gente não fala só coisas clínicas, coisas que se restringem
mesmo ao pré-natal, a gente pode expor a nossa vida para eles porque eles, assim,
nos aconselham. São verdadeiros amigos mesmo”. (Elaine)
“A gente acaba conhecendo todo mundo e vira uma família. Então acaba criando
um vínculo, porque durante o pré-natal você vem aqui muitas vezes. (...) Até hoje
eu venho aqui, a minha filha está com quatro meses, e as pessoas me conhecem
pelo nome, entendeu? Apesar de terem muitas mulheres grávidas”. (Carla)
“Uma família, né? A gente pode considerar a casa de parto...” (Andressa)
Ao analisar as raízes ibéricas de nossa sociedade, Holanda (2005) destaca
que o sistema de relações no Brasil constrói-se a partir de laços diretos, de
“pessoa” a “pessoa”, e não entre “indivíduos” – relação que seria notadamente
marcada por uma ordenação impessoal e mecânica. Noutras palavras, o autor
ressalta que as origens personalistas constituem traço marcante da sociedade
brasileira, o que faz com que os vínculos entre “pessoas” sejam, freqüentemente,
os mais relevantes. Cabe esclarecer que a categoria “pessoa” aqui é compreendida
enquanto ser basicamente relacional, integrante de uma estrutura hierarquizada de
relações sociais, por oposição à noção de impessoalidade e indiferenciação
representada pela categoria “indivíduos” (DaMatta, 1997).
Assim, se no hospital/maternidade elas são “indivíduos”, isto é, anônimas e
chamadas indiscriminadamente de “mãezinhas” – porque na prática não se sabe o
nome delas –, na CP elas são “pessoas”, reconhecidas em sua individualidade,
história e percebidas como envoltas em redes sociais mais amplas. Dessa forma,
as mulheres sentem-se acolhidas e seguras, pois têm a percepção de que driblaram
166
o “risco” que a individualização e o anonimato representam em uma sociedade na
qual a qualidade de vida se baseia nas relações pessoais.
É interessante destacar que, enquanto a CP está comprometida com a
individualização de sua clientela, parte de um projeto de construção de uma “nova
mulher”, que se pretende também de “cidadanização”, as mulheres que a
freqüentam a valorizam justamente por encontrarem ali um tipo de relação e um
ambiente que, na visão delas, se assemelha ao espaço doméstico, local por
definição da família e da relacionalidade. Como ressalta Da Matta (1991), a casa
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é:
“o espaço da intimidade, da hospitalidade, onde não existem indivíduos, apenas
pessoas, que se relacionam entre si por meio de laços de sangue, idade, sexo,
vínculos de hospitalidade e simpatia. Casa é o lugar da hierarquia, da gradação.
Casa se distingue pela calma, repouso, recuperação e hospitalidade, enfim por tudo
aquilo que se soma e define a nossa idéia de “amor”, “carinho” e “calor humano”
(DaMatta, 1991: 63).
3.4.4.
Namorado, companheiro, marido
Sem incorrer em exageros, é possível dizer que a presença masculina no
parto é uma novidade entre os casais provenientes de camadas populares,
considerando que, na época em que foi realizada a pesquisa de campo, além da
CP, apenas duas maternidades públicas no município do Rio de Janeiro permitiam
a entrada de acompanhantes do sexo masculino. Essa limitação, segundo
alegavam as instituições, se devia ao fato de que a maioria dispunha apenas de
pré-partos coletivos. Para evitar constrangimentos e garantir alguma privacidade à
parturiente, esta só podia ser acompanhada por outra mulher, papel que em geral
era desempenhado pela mãe – reforçando a visão amplamente disseminada no
universo das camadas populares de que gravidez, parto e bebês são assuntos de
mulheres (Tornquist, 2003).
No entanto, algumas unidades de saúde identificadas com o ideário da
“humanização” e que têm como clientela mulheres de camadas populares têm
procurado incentivar a presença do parceiro no parto. É interessante que, de
maneira geral, as mulheres assistidas por essas instituições mostram-se resistentes
à proposta, como sugerem os estudos de Hotimsky e Alvarenga (2002) e
167
Tornquist (2003)125. Por outro lado, na CP é possível dizer que o incentivo à
presença masculina foi bem aceito pelas usuárias. De fato, entre as entrevistadas,
76% tiveram ou afirmaram que desejavam ter – no caso daquelas que ainda
estavam grávidas na época em que foi realizada a pesquisa – o pai do bebê
presente no momento do parto126.
A aceitação das mulheres da CP possivelmente encontra relação com o
trabalho desenvolvido pelos profissionais nos grupos educativos, ocasiões em que
a presença do parceiro no parto é praticamente prescrita, como sugere o
comentário da diretora durante o encontro de Acolhimento: “[Na CP] A mulher
não só pode escolher ter o pai do bebê presente, mas também um segundo
acompanhante”.
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No entanto, se na CP, em alguns momentos a valorização da presença
masculina no parto parece estar relacionada a um incentivo ao casal igualitário e à
constituição da família nuclear, noutros, aparentemente mais freqüentes, a ênfase
parece recair principalmente sobre a mulher, ainda que a igualdade na relação
com o parceiro também seja almejada e incentivada. Contudo, é como se,
considerando o lugar de submissão em que se encontra a mulher de classe
popular, a igualdade só pudesse advir de seu “empoderamento”. Nesse sentido,
seria a mulher que precisaria mudar de lugar e se posicionar em relação ao
parceiro de outra maneira, mais autônoma e individualizada, o que faz com que o
foco do trabalho desenvolvido na CP incida, na maior parte das vezes, não
propriamente sobre o casal, mas, sobretudo, na mulher, sendo a transformação da
díade e da família vista como um resultado ou consequência disso.
125
Na pesquisa de Hotimsky e Alvarenga (2002), em uma casa de parto em São Paulo, cuja
clientela também é majoritariamente de classes populares, as mulheres desejavam que as
acompanhantes fossem preferencialmente do sexo feminino. Observação semelhante foi feita por
Tornquist (2003), em uma maternidade “humanizada” em Florianópolis. Segundo a autora, as
mulheres de camadas populares não esperavam que os homens assistissem ao parto e
manifestavam estranhamento com o que consideravam uma excessiva preocupação da equipe em
relação à presença do marido.
126
É certo que, mesmo na CP, uma parte das gestantes também parecia demonstrar certa
resistência a ela. A vergonha da exposição do corpo costumava ser o principal motivo. “Eu sou
muito tímida, vou ficar com vergonha de ficar pelada na frente dele [o marido]. Onde eu vou eu
carrego a minha mãe”, comentou Paula, durante uma oficina em que foi estimulada a presença do
pai do bebê como acompanhante. O sentimento de vergonha parecia eventualmente afetar o
trabalho de Álvaro, um dos poucos enfermeiros da CP, o que me levou em alguns momentos a
refletir sobre a importância de ser mulher para fazer uma pesquisa como essa, uma vez que essa
condição me permitiu ter acesso aos diferentes ambientes da CP.
168
Assim, é possível dizer que a presença do homem no parto é altamente
incentivada não por dramatizar um ideal de conjugalidade, como ocorre no
fenômeno do “casal grávido” investigado por Salem (2007), mas por ser o homem
percebido como uma testemunha – central e necessária – do projeto de
“empoderamento” feminino, o que, em um segundo momento, possibilitaria a
redefinição da relação homem-mulher. A idéia é que o parceiro assista à
performance da mulher assumindo uma postura “autônoma” e “ativa”,
considerada decisiva para o nascimento do filho. Nesse sentido, além de
presenciar o nascimento do bebê, o homem é incentivado a presenciar o
nascimento de uma “nova mulher”, que dá à luz sem qualquer tipo de “ajuda”,
farmacológica ou de procedimentos médicos, fazendo uso de suas próprias forças.
O parto, tal como propõe o projeto impulsionado pela CP, viria, portanto,
dramatizar um ideal de indivíduo, isto é, de uma mulher independente e
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autônoma, cuja atuação é considerada fundamental para seu desfecho.
É interessante destacar que a participação masculina, ainda que desejada
pela maioria das entrevistadas e incentivada pela CP, normalmente exige um
esforço de convencimento. Se no caso da participação nas oficinas, durante a
gestação, o incômodo manifestado pelos homens é com o fato de a CP ser um
ambiente predominantemente feminino (“O meu marido não vinha nas oficinas
porque ele tinha vergonha”, comentou Adriana127), no que se refere ao parto eles
em geral sentem-se inseguros e incapazes de presenciá-lo128, admitindo não
suportar ver sangue e dor. Os homens, que nesse caso não costumam ter vergonha
de admitir “fraqueza”, frequentemente argumentam que poderiam ter reações
físicas incontroláveis – como “desmaiar” ou “passar mal” –, que viriam a
prejudicar o próprio trabalho de parto e parto.
“Eu achava que eu fosse ficar nervoso, até falava com a Valquíria: ‘Não sei se eu
vou conseguir, não. Ta arriscado eu desmaiar ali e vai ser dois trabalhos’”.
(Miguel, marido Valquíria)
“Eu cheguei num momento a dizer que eu não queria ver o parto, porque eu achei
que não ia agüentar”. (Marcos, marido Lara)
127
É como se a presença em um ambiente feminino como a “casa” representasse uma ameaça, uma
vez que os feminilizaria também.
128
Tornquist (2003), que pesquisou uma maternidade pública em Santa Catarina, fez observação
semelhante sobre os homens de camadas populares com os quais teve contato durante o estudo.
Segundo ela, “os homens argumentam não ter ‘estômago’ para coisas de hospital” (2003: 422).
169
Essa imagem do homem como frágil e emocionalmente incapaz de
participar da experiência de parto é compartilhada também pelas mulheres:
“Ele [o marido] vai estar junto comigo. Quer dizer, o homem fala que vai estar
mas não se sabe se realmente vai ter coragem, né? De ver assim... Mas vai estar
sim, ele está sendo forte, como eu também”. (Denise)
“Com esse jeito calado eu pensei até que ele não ia conseguir assistir, porque ele
passa mal (risos)”. (Jussara)
“O meu marido, ele disse que é fortão, quero ver ele ver um parto... (risos)”
(Andressa)
O depoimento de Denise – reforçado por várias outras gestantes – sugere
que a experiência de parto “natural” é vivida como um teste de coragem, força e
bravura, que acaba se estendendo também àqueles que dele participam ou
simplesmente o assistem – o que também foi referido por uma entrevistada do
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outro grupo, como se verá no próximo capítulo. Como num ritual de inversão, o
parto tal como vivido na CP – sem anestesia, ocitocina ou episitomia – embaralha
as posições que homem e mulher normalmente ocupam na sociedade: ela, de
“sexo frágil”, é alçada à categoria de forte e resistente, enquanto o homem assume
temporariamente sua “fraqueza”, diante de assuntos que não são de sua esfera.
Isto é, diante de assuntos vistos como sendo de ordem da “natureza”,
considerados de competência feminina (Ortner, 1974).
O diálogo entre um casal de namorados, no dia seguinte em que a mulher
deu à luz, retrata bem essa inversão de papéis:
Wiliam: “Ela tinha muita força e provou até o final. Doze horas de trabalho de
parto... ela tem força e sabe disso. Com certeza isso deve influenciar para aquela
questão da mulher ser frágil e tudo mais. Eu com certeza não ia aguentar um
negócio desses. Não ia mesmo! Doze horas? Tá brincando!”
Iara: “Por isso que homem não foi feito para parir!”
170
3.4.5.
O(A) filho(a)
Considerando que a maioria das mulheres vinculadas ao pré-natal da CP
não planejou a gravidez129 e que, possivelmente, não foram poucas as gestantes
que cogitaram fazer um aborto, a CP claramente procura estimular, através das
consultas e grupos educativos, o vínculo entre a mãe e o feto. De fato, a Oficina
de Vínculo, da qual a mulher deve participar no início da gravidez, parece ter sido
criada justamente com esse propósito.
Em uma dessas oficinas, a enfermeira Zilda, após conduzir um
relaxamento em que sugeria que as “mães conversassem com seus bebês”, fez
vários comentários sobre a interação entre a gestante e o feto, já o tratando como
um indivíduo. “O bebê interage com vocês o tempo todo, absorve suas emoções, o
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que vocês sentem, ele sente também”, disse, alertando sobre o papel de proteção
que a gestante – aparentemente já incumbida do papel de mãe – deveria
desempenhar na gravidez, de modo a evitar que o feto fosse atingido por
sentimentos considerados “negativos”. Ao final, Zilda pediu às mulheres que
redigissem uma carta endereçada ao futuro bebê, o que levou algumas às lágrimas.
A idéia de que a relação entre a mãe e o filho se estabelece ainda na
gravidez foi manifestada em diferentes momentos pelos profissionais da CP, não
se limitando à Oficina de Vínculo. Na consulta de Nutrição, por exemplo, as
recomendações sobre o consumo de alimentos também se baseavam na percepção
de que os cuidados com a criança deveriam começar antes mesmo de seu
nascimento. “O que vocês estão dispostas a dar para os seus bebês?”, costumava
indagar a nutricionista.
Com efeito, uma parte das gestantes manifestava compartilhar dessa
percepção, fazendo comentários que sugeriam que a relação entre mãe e filho
tinha início ainda durante a gestação e de que o feto era, desde então, um
129
Para se ter uma idéia, em uma oficina na qual as mulheres foram questionadas sobre se tinham
planejado suas gravidezes, das 22 presentes apenas cinco responderam positivamente à pergunta.
171
indivíduo130. Nesse sentido, Valquíria recorda a companhia que o filho lhe fazia
quando ainda estava na barriga:
“Com a barriga você está sempre acompanhado, alguém está sempre andando
com você. E o neném quando ele sai ele já vai para o colo das outras pessoas e
você fica um pouco sozinha. Aí tem momentos que parece que eu tô sozinha e eu
falo: ‘Me dá ele aqui um pouquinho’. Senti falta da barriga assim nesse sentido, a
barriga era a minha companhia, ele [o filho] estava sempre comigo, 24h”.
(Valquíria)
Já Marisa conta que durante a gravidez costumava conversar e cantar para
a filha, o que também fez assim que ela nasceu:
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“[Durante a gravidez eu] conversava e cantava música [para a filha]. Tu não sabe
da maior? Ela nasceu e começou a chorar, e eu comecei a cantar [a música] “Os
olhos do pai”. Porque eu cantava, sempre, desde pequenininha. A bichinha parou
de chorar. Quietinha aqui, no meu colo. Lembrou tudinho e parou de chorar. Eu
cantava essa música para ela”. (Marisa)
A música também marcou a relação de Joana e Alberto com a filha
durante a gravidez:
“Na gestação dela ela sempre escutou... a Sara [a filha], ela sempre escutou umas
músicas que ela gostou muito. A gente notava que mexia com ela, então a gente
fez uma seleção de músicas, botamos num CD e tal e pensou: na hora que ela
estiver nascendo ela já vai sair escutando as músicas. Tanto até que a gente
pensava: qual música será que ela vai nascer, né?” (Afonso)
“No Acolhimento a gente já fica sabendo como é o processo da ‘casa’, que tem o
plano de parto131, tudo isso. Então eu já fiquei imaginando, pensando: “Pô, será
como que vai ser?”. Fiquei pensando, tal. Aí eu tive a idéia de sempre colocar
músicas para ver qual era a música que ela [a filha] dava uma melhor reagida.
Mas não assim no começo [da gestação], eu tinha que esperar ela começar a se
mexer, né?” (Joana)
De acordo com Lo Bianco, “o feto é, pois, tornado um bebê com
qualidades concretas. Gostos e preferências são já entrevistos, e, acredita-se,
conseguem ser expressos num diálogo com a futura mãe” (1985: 114). As
130
Em todas as oficinas as gestantes eram instadas a se apresentar, dizendo seus nomes e os dos
bebês. Nos casos em que o sexo ainda não havia sido identificado, elas costumavam informar
quais eram as possibilidades de nome.
131
Documento redigido pela gestante no qual informa como gostaria que fosse seu parto, quem
desejaria que estivesse presente como acompanhante, se gostaria de ouvir alguma música e de que
tipo, em qual posição gostaria de dar à luz, etc. Os planos de parto costumam ser feitos com
capricho pelas gestantes da CP, que os enfeitam, colorem, colocam fotos, enfim, os personalizam.
Alguns são redigidos como se tivessem sido escritos pelo próprio bebê. Segundo a coordenadora
da casa de parto, um dos objetivos do plano de parto é fazer com que as mulheres se percebam
como capazes de fazer escolhas e de decidir por elas mesmas, em sintonia com o projeto de
“individualização” impulsionado pela instituição.
172
observações da autora parecem se adequar aos relatos de Joana e Alberto, dentre
outros, não fosse pelo fato de que ela as identifica como parte de uma experiência
típica de gestantes de camadas médias. Estas, segundo a autora, seriam
supostamente mais influenciadas pelo processo de psicologização, que ganhou
terreno no Brasil nos anos 1980, quando instaurou-se uma “cultura psicanalítica”
nas camadas médias, que teria como um de seus princípios básicos o bem-estar
emocional da criança a partir de uma boa relação com a mãe. O processo de
“psicologização do feto” seria, nesse sentido, uma tentativa de aperfeiçoar essa
relação, instaurando-a antes mesmo do nascimento da criança.
O argumento da autora é que as mulheres de camadas populares seriam
menos suscetíveis a essas experiências, uma vez que estariam menos expostas aos
valores dessa cultura específica. Assim, para elas a gravidez seria um estágio
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transitório “para a” maternidade, enquanto para as mulheres de camadas médias a
gestação seria um período transitório “da” maternidade (Lo Bianco, 1985: 51).
No universo da CP, contudo, as observações de Lo Bianco parecem não se
confirmar. Como foi possível notar, vários foram os comentários feitos durante a
pesquisa que sugeriam que as mulheres de camadas populares investigadas
também compartilhavam de uma visão “psicologizada” do feto.
Segundo Chazan (2007), teria havido atualmente uma retração da “cultura
psicanalítica” e, quase como um como um contraponto ao fenômeno de
“psicologização” do feto, estudado por Lo Bianco (1985), existiria hoje o que ela
designa como uma “fisicalização” do feto, possibilitada pela visibilização
mediada pelo ultrassom obstétrico. Deve-se concordar com Chazan (2007) quanto
à menor expressividade da chamada “cultura psicanalítica”, largamente difundida
nas camadas médias intelectualizadas nos anos 1980. Entre os segmentos
populares certamente não foi nem é possível referir-se a uma tal cultura, contudo,
não se pode negar que as gestantes etnografadas compartilham de uma visão
“psicologizada” do feto, que possivelmente lhes foi apresentada durante os grupos
educativos da CP.
Nelson (1983), que realizou um estudo comparativo com mulheres de
camadas populares e médias em um hospital-escola no estado da Nova Inglaterra
173
(EUA), chamou a atenção para a influência exercida pelos cursos de preparação
para o parto sobre as gestantes de diferentes camadas sociais. Apesar de ter
mapeado diferenças significativas entre os dois grupos investigados, a autora
destacou que as entrevistadas provenientes de camadas populares que tinham
assistido aos cursos exibiam atitudes parecidas com as gestantes de camadas
médias.
Esta observação parece reforçar a hipótese de que o pré-natal e as oficinas
oferecidas na CP podem de fato influenciar – ainda que de diferentes maneiras e
em graus variados – as gestantes que deles participam. Esta influência pode ser
observada de diversas formas, como a partir da construção de um olhar
“psicologizado” sobre o feto ou na percepção positiva que as mulheres parecem
elaborar sobre a participação masculina no parto, um evento que, nas camadas
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populares, é considerado primordialmente feminino.
3.5.
O parto
Nesta seção, se buscará analisar de maneira mais específica a experiência
de parto das puerperas entrevistadas, isto é, como significam, vivenciam,
elaboram e atualizam a proposta que lhes foi apresentada pela CP. Antes, contudo,
a intenção é fazer uma reflexão sobre o lugar que elas atribuem, ainda durante a
gestação, à dor do parto para, em seguida, verificar como esta é significada após a
experiência, isto é, após a terem vivenciado.
3.5.1.
O medo da dor
Se, como visto anteriormente, o temor dos homens antes do parto é o de
“ver sangue” e a mulher em sofrimento, o das mulheres, por sua vez, é
principalmente o medo da dor e a insegurança sobre se serão realmente capazes de
suportá-la. Com menos freqüência, algumas entrevistadas relataram também
temer não ter forças para expulsar o bebê e, outras, em menor número, referiramse ainda ao medo de morrer. Unânime foi que todas, sem exceção, afirmaram ter
medo do parto.
174
É interessante que esse sentimento foi relatado mesmo pelas mulheres que
já tinham outros filhos e, portanto, passado pela experiência de dar à luz. Na
realidade, o parto anterior muitas vezes contribuía para deixá-las ainda mais
inseguras, por terem vivido uma experiência que, na maioria das vezes,
consideravam negativa. Já as que estavam grávidas pela primeira vez tentavam
não se “contaminar” pelos comentários dos “outros” sobre o parto: “[As pessoas
falam que] não é mole não, dói muito e não sei o quê, é o maior sofrimento... Eu
não posso pensar desse jeito. Cada um é de um jeito, né?”, indagava Denise,
parecendo desejar ouvir de mim palavras de apoio.
O comentário de Denise, na realidade, faz eco ao dos profissionais da CP,
que a todo tempo buscam individualizar a experiência, tal como propõe o ideário
da “humanização”. “Cada parto é de um jeito”, repetem, alertando que mesmo
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aquelas que já tiveram outros filhos vivem experiências diferentes, pois se trata de
um momento diferente da vida e a própria mulher também já não é a mesma. “A
dor é igual Marisa, de mulher para mulher”, costuma brincar a diretora, Lúcia,
fazendo referência ao slogan de uma popular loja de roupas.
Tratar o parto como uma experiência única é parte de uma visão mais
ampla desse processo que o entende como estando diretamente relacionado a
aspectos fisiológicos, emocionais, sociais e culturais – o que remete à noção de
“fato social total”, tal como proposta por Mauss (2003). Tomando como
inspiração o ideário da “humanização”, o entendimento compartilhado na CP é de
que do ponto de vista fisiológico o processo que culminará com o nascimento do
bebê é o mesmo para todas as mulheres, mas acredita-se que a fisiologia seja
diretamente afetada pela subjetividade da parturiente que, por sua vez, sofre
influências daqueles que a rodeiam, do ambiente no qual está inserida e também
da cultura em que foi socializada.
No que se refere especificamente à dor, tema dessa seção, Le Breton
(1999) aponta que a forma como o sujeito se relaciona com essa sensação corporal
depende do significado que atribui a ela. Segundo o autor, tal significado, longe
de ser unívoco, é fruto de um “entremeado” que se constrói a partir da “manera en
que el hombre se apropia de la cultura, de unos valores que son los suyos, de su
relación con el mundo” (1999: 09). Assim, a anatomia e a fisiologia – a chamada
175
“máquina do corpo” – não dão conta de explicar porque os sujeitos não reagem de
uma mesma maneira diante de situações semelhantes de dor, nem possuem o
mesmo grau de sensibilidade. Para Le Breton (1999), esses fenômenos estão
associados a variações sociais, culturais, pessoais e até mesmo contextuais, o que
significa que “para comprender las sensaciones en las cuales está en juego el
cuerpo no hay que buscar en el cuerpo, sino en el individuo, con toda la
complejidad de su historia personal” (1999: 10). O comentário feito pela
enfermeira Ingrid durante uma oficina aponta nessa mesma direção:
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“Quando a Kelly [citando o nome de uma gestante presente] vai parir ela não vai
‘zerada’. Vai ela, que é filha da mãe tal, que está preocupada porque engordou,
porque o marido está diferente... e você não vai ser a mesma depois desse filho,
será outra mulher. Minha mãe sempre dizia que eu tinha arrebentado ela no parto,
porque eu estava sentada. E teve uma falta de luz e demoraram 40 minutos para
costurar ela. Então quando eu cheguei no meu parto eu me preparei para sentir
uma dor muito maior, uma dor que eu estou esperando até hoje. A gente não
chega ‘zerada’ para parir, vem tudo isso junto”.
Mais especificamente sobre a dor do parto, Le Breton (2010), em outra
obra, destaca que:
“La souffrance est plus ou moins grande d’une femme à l’autre selon son histoire
personelle, son appartenance sociale, culturelle, son expérience antérieure de
l’accouchement, les représentations qu’elle en a, la valeur incarnée às sés yeux
par l’enfant à naître, la présence ou non des autres à son entour. Le contexte est
décisif au regard de son ressenti” (2010: 205/206).
Isso explica o fato de as mulheres lidarem de diferentes maneiras com a
dor que normalmente acompanha o trabalho de parto. Em algumas culturas,
observa Le Breton, o parto sequer é percebido como um evento doloroso. Na ilha
indonésia de Alor, mencionada pelo autor, registros etnográficos de 1944 apontam
que a visão predominante ali era a de que o nascimento é um processo fácil e
cotidiano. Isto não significa que situações difíceis nunca tenham sido registradas,
mas que a sociedade não as amplifica e reverbera, de modo que o imaginário
predominante sobre o parto não se pauta por elas. Em contrapartida, nas
sociedades onde o discurso católico-cristão disseminou-se com força não se pode
negar a influência da visão quase condenatória do parto expressa na afirmação
“Parirás com dor”, contida em uma passagem da Bíblia. Nesse contexto, as dores
são associadas ao ato de dar à luz de maneira quase inescapável, na medida em
176
que, enquanto “filhas de Eva”, todas as mulheres devem pagar pelo pecado
original.
Além de buscar individualizar a experiência, os profissionais da CP
frequentemente buscam ressignificar a dor132, sugerindo que esta seja interpretada,
por exemplo, como resultado de um “abraço” que a mãe dá, com seu corpo, no
bebê, isto é, “a cada contração um abraço”. A dor também deve, segundo essa
leitura, ser vista como positiva, pois a contração que a gera tem como função
trazer o bebê cada vez mais para perto da mãe. Nesse sentido, o que se diz é que
“a dor é amiga” ou que “a dor é aliada”, uma vez que, sem ela, ou seja, sem a
contração, o bebê não nasce.
Outro aspecto que costuma ser enfatizado é que a dor desencadeada pelo
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trabalho de parto tem um “resultado”, diferentemente da dor provocada por uma
doença ou por uma dor de dente, por exemplo. Da mesma forma, ela termina
imediatamente quando o bebê nasce, noutras palavras, é uma dor que, apesar de
forte, é temporária e passageira. Segundo a metáfora usada pela enfermeira
Bianca, é como uma “onda”, que “vem para mostrar o caminho de saída para o
bebê” e depois “vai embora para os dois respirarem”.
Consideradas “mais naturais” e “menos invasivas”, as técnicas para alívio
da dor empregadas na CP baseiam-se em recursos mecânicos e psicológicos.
Nesse sentido, a Oficina de Tecnologias se propõe justamente a apresentar às
gestantes algumas possibilidades desse repertório, bastante amplo, que inclui: a
presença do acompanhante, banho morno, música, chás, aromas, massagens, sexo,
além de técnicas respiratórias e corporais, como deambulação, agachamento e o
exercício chamado de “bambolê”, em que a mulher fica de pé, fazendo
movimentos circulares com o quadril. Para o momento do parto efetivamente,
costumam ser apresentadas posições alternativas à de litotomia, como ficar de
cócoras (sustentada por alguém por trás ou sentada, usando uma banqueta de
parto133), deitada de lado ou posicionando-se em quatro apoios. Mas não é
132
Recomenda-se que até mesmo o uso da palavra “dor” seja evitado, sugerindo às mulheres que
refiram-se exclusivamente à “contração”.
133
Pequeno banco, de acrílico ou de plástico, onde o assento tem formato de “U”, havendo uma
abertura na frente, para a passagem do bebê.
177
incomum que as gestantes apresentem alguma resistência, dizendo que preferem
ficar deitadas na posição “tradicional”.
Durante essa oficina, uma vez apresentados os recursos técnicos que as
mulheres poderiam lançar mão durante o trabalho de parto, a tônica costumava
incidir principalmente sobre a questão do controle. Segundo Rezende (2012), o
controle de si é um tema central em muitos grupos de apoio, freqüentes nas
sociedades ocidentais modernas. Propondo-se a abordar diferentes temas (desde
adições e enfermidades à gestação e parto), esses grupos pretendem auxiliar os
participantes a superarem momentos considerados críticos, muitas vezes partindo
do pressuposto de que os que neles ingressam almejam implementar mudanças
subjetivas. “Aparece aqui a visão de uma subjetividade não apenas capaz de se
modificar, mas principalmente que valoriza este processo, tomando[-o] como um
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aperfeiçoamento de si”, afirma Rezende (2012: 833). É comum que as mudanças
propostas sugiram a adequação das emoções a modelos considerados apropriados,
uma vez que o processo de transformação esperado deve se dar principalmente na
dimensão subjetiva.
Na Oficina de Tecnologias do Parto, as recomendações feitas por
diferentes profissionais tinham como foco justamente o corpo e as emoções
durante o trabalho de parto: “Respire fundo porque a contração não é mais forte
do que você”; “A gente controla ela [a contração], não é ela que nos controla”;
“Pensa que você está no controle, a contração vem, mas você está no comando. E
as tecnologias estão aí para ajudar a deixar seu corpo mais relaxado”; “Se a gente
contrai junto com a contração, a gente sente ainda mais dor”.
Como é possível notar, predomina nessas orientações uma visão dualista,
caudatária da longa tradição do pensamento ocidental, que considera o corpo uma
entidade separada da mente, cabendo à mente o controle sobre o corpo. No caso
do parto, destacou Martin (2006), é como se as contrações ocorressem de maneira
involuntária, apontando para um isolamento entre a pessoa e suas sensações
físicas. “Uma vez que o útero é tido como músculo involuntário, considera-se que
ele, e não a mulher, faça a maior parte do trabalho de parto” (2006: 111).
178
Ainda que os profissionais da CP estejam comprometidos com um projeto
de “humanização” que busca reinventar o parto, a visão biomédica de que o útero
é um músculo involuntário ainda se faz presente, como sugerem as orientações
acima. No entanto, essa visão é combinada a outra, também apresentada em meio
às oficinas, na qual o parto é descrito como uma ação realizada pela parturiente e
as sensações físicas descritas como parte intrínseca da mulher. A transmissão
dessas idéias, aparentemente contraditórias, aponta para como essa visão
fragmentada está arraigada em nossa cultura.
Segundo Rezende e Coelho (2010), na etnopsicologia ocidental moderna
prevalece ainda um outro binarismo no que se refere aos fenômenos associados à
mente: a separação entre emoções e razão. Enquanto as primeiras estão associadas
ao corpo, a segunda estaria diretamente relacionada à mente. Em diversos
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contextos, destacam as autoras, a mente é considerada superior ao corpo e a razão
superior à emoção. O que significa que “o corpo e a emoção podem ser
controlados pela mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais
involuntários e mais incontroláveis” (Rezende e Coelho, 2010).
Na visão da equipe da CP, expressa através dos grupos educativos, cabe à
mente e à razão incumbirem-se da tarefa de evitar reações imprevisíveis diante da
dor, ditando ao corpo um relaxamento consciente. Assim, diante da contração do
músculo uterino, o que se recomenda é que, sob o comando da mente, os
membros do corpo caminhem no sentido inverso a partir do relaxamento, também
ele calculado, de braços, pernas, ombros, músculos da face, etc, proporcionando
um frágil equilíbrio entre controle e relaxamento.
Por trás dessas recomendações, há a expectativa de que as mulheres
expressem suas emoções dentro de parâmetros considerados adequados. Como
também observou Tornquist (2003), é esperado que as parturientes não gritem,
não se desesperem e acatem os conselhos da equipe. O controle das emoções
durante o parto deve ser desenvolvido ao longo das oficinas, momento em que as
mulheres são informadas sobre todas as etapas do trabalho de parto. Para a equipe,
a informação –também uma forma de controle, uma vez que dá previsibilidade ao
processo – está associada à segurança e tranquilidade da mulher no momento de
dar à luz. “Aqui a coisa mais difícil é uma mulher gritar no trabalho de parto”,
179
comemorou a assistente social, antes de acrescentar: “Tem que conhecer o seu
corpo, saber do que ele é capaz, se empoderar”. Como já salientado, o silêncio da
casa de parto é visto de maneira positiva principalmente pelas mulheres e pode ser
interpretado como uma vitória do controle da mente e da razão sobre o corpo e as
emoções.
Mais uma vez, é preciso destacar que o referencial contrastivo da clientela
da CP é a maternidade pública, onde o pré-parto costuma ser coletivo e, de modo
geral, as mulheres internadas manifestam muita dor, como observaram McCallum
e Reis (2006) e como também sugerem as entrevistadas, baseando-se em
experiências anteriores:
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“[No parto do primeiro filho, em uma maternidade pública] Eu achei que eu ia
sentir três vezes mais dor do que eu senti, porque a mulher que estava do meu
lado na sala de pré-parto gritava muito e aquilo me deixava nervosa. Na casa de
parto é uma tranqüilidade, tem quarto individual... é outra coisa!” (Fabiana).
“[Na casa de parto] é mais tranquilo. (...) Você não escuta gritos. Porque,
imagina, você vai fazer pré-natal e escuta as mulheres gritando? Lá no hospital,
quando eu fazia o da minha filha eu ia e escutava mulheres gritando. Aqui não.
Aqui é calmo”. (Analice)
Apesar de os relatos sugerirem que os gritos, percebidos como
responsáveis por criar um clima de nervosismo e tensão, são relativamente
freqüentes nas maternidades públicas, as mulheres advertem que estes devem ser
evitados, por poder levar a uma intencional (e punitiva) falta de assistência por
parte dos profissionais134. Ainda que na CP elas afirmem não se sentir
pressionadas a manterem-se caladas, ouvi certa vez a mãe de uma jovem em
trabalho de parto comentando que havia dito à filha para não gritar, sugerindo
predominar entre as mulheres a idéia de um “comportamento ideal”, que prevê a
evitação do “escândalo”, de expressões de desespero e descontrole (Tornquist,
2003).
Sobre essa questão, Elias e Dunning (1992) destacam que no mundo
contemporâneo o espaço para a expressão das emoções ficou cada vez mais
134
Marta, que procurou fazer silêncio quando deu à luz na casa de parto, conta que se comportou
dessa maneira porque em experiência anterior considera que sofreu retaliação no hospital por ter
gritado: “No hospital você não pode fazer nada que toma esporro. No hospital, se você abrir a
boca, você toma esporro e é largada. Na minha [outra] filha, eu gritei, eles me largaram lá e foram
ver o jogo [em 1998, Copa do Mundo]. Eu gritando de dor e eles vendo o jogo”.
180
reduzido, havendo toda uma etiqueta responsável por garantir sua regulação. É
interessante que, na percepção dos entrevistados, as instituições de saúde não
configuram, hoje em dia, locais onde uma expressão menos contida das emoções
seja algo bem aceito.
“Ela tava gemendo por causa das contrações, mas pelo que eu já vi, assim, eu
acho até que ela não perdeu muito a linha, não.” (Alberto, marido Joana)
“Quando vinham as contrações eu fazia força, mas não gritava. Vou gritar para
quê? Vou dar uma de maluca?” (Adriana)
“[No parto] Da primeira e da segunda [filha], gente, eu chorava... eu sou muito
chorona... chorava baixinho, baixinho, nunca fiz escândalo. Eu falava: ai meu
Deus, eu vou morrer, eu não vou agüentar não. (...) [Choro baixinho] porque eu
não gosto de causar escândalo e não gosto de mostrar fraqueza.” (Valquíria)
O estado de descontrole – definido por Alberto através da gíria “perder a
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linha” – é associado até mesmo à “loucura”, como aponta Adriana. Além disso, os
gritos podem ser compreendidos como uma demonstração de “fraqueza”, como
opina Valquíria. Com efeito, o parto “natural” configura-se, na prática, como um
ritual de exibição da força – ou da fraqueza – feminina, a depender do
desempenho da mulher.
***
O parto de Carla
Conheci Carla quando internou-se num fim de tarde na CP, com 5cm de
dilatação, para dar à luz sua primeira filha. Com sua concordância, resolvi passar
a noite ali para assistir ao parto. Ela estava sozinha, pois a cunhada e a sobrinha
que a acompanhavam quando foi admitida tinham ido embora, e Carla aguardava
a chegada de duas amigas. Ela havia tirado a roupa com que viera e estava vestida
apenas com um avental, que lhe foi entregue na CP.
Carla trabalha como manicure e faz tranças. É uma mulher negra, alta e de
personalidade forte. Ela tem algumas particularidades, que a tornavam uma
exceção entre as mulheres do pré-natal: Carla tinha na época 36 anos, uma idade
bastante superior a da média, especialmente em se tratando de uma primípara, e
morava sozinha, a única com quem tive contato ali que vivia nessas condições.
Ela já não se relacionava com o pai do bebê, de quem fazia apenas comentários
181
negativos, e também não se dava bem com a mãe – o que era incomum naquele
contexto. Naquele dia, Carla não avisou nenhum dos dois sobre sua admissão na
CP.
As amigas chegaram um pouco mais tarde e enquanto isso fiquei lhe
fazendo companhia. Agitada, Carla reclamou de não ter uma TV no quarto e
pediu para caminhar no jardim. Enquanto isso, falava animadamente no celular.
Ela parecia suportar as contrações sem grandes dificuldades, apenas apoiando-se e
mantendo-se calada no momento em que as sentia: nada que tirasse seu bom
humor.
Um pouco mais tarde, Carla voltou para o quarto e a enfermeira Eugênia
tratou de criar uma ambientação, colocando um aroma e apagando as luzes mais
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fortes. A partir daquele momento a suíte ficou na penumbra e uma música tocava
ao fundo.
As amigas de Carla chegaram pouco tempo depois. Elas nunca tinham
visitado a CP ou participado dos grupos educativos e não conheciam muito bem a
proposta da instituição. Com o passar das horas, começaram a achar que o
trabalho de parto de Carla estava demorando muito e uma se direcionou a mim
para perguntar se ali eles não davam nenhuma “ajuda”, referindo-se aos
procedimentos e medicamentos que são administrados de rotina nos partos
“normais” realizados nas maternidades.
De tempos em tempos uma dupla de enfermeiras, responsável pelo plantão
noturno, adentrava o quarto para examinar Carla, auscultar os batimentos
cardíacos do feto, avaliar a dinâmica das contrações e fazer o toque. Em um
desses exames tiveram a impressão de que havia mecônio135 no líquido amniótico.
Em conversa com Carla, explicaram-lhe que, diante desse quadro, havia duas
possibilidades: ser transferida para a maternidade de referência ou tomar ocitocina
para tentar acelerar o trabalho de parto. A parturiente já não demonstrava o
135
“Primeiro conteúdo do intestino do bebê, mas que ainda não são fezes, de aspecto verde escuro
e denso” (Diniz e Duarte, 2004: 161). Segundo as autoras, a eliminação de mecônio durante a
gravidez pode ser sinal de maturidade fetal (o que não é problemático) ou de sofrimento fetal, pois
quando o feto está mal oxigenado aumenta a contratilidade dos intestinos e relaxam-se os
esfíncteres, fazendo com que libere o mecônio. Neste caso, a situação inspira cuidados.
182
mesmo bom humor de antes e a cada contração parecia sentir muita dor, mas
manteve-se firme e disse que preferia ficar. “Eu vou até o fim, não vou desistir”.
Carla ficou cerca de 1h30 recebendo soro com ocitocina através de punção
intravenosa. Com o passar do tempo, ela passou a demonstrar grande irritação
com a dor desencadeada pelas contrações. De personalidade forte, ela parecia ter
ascendência sobre as amigas, que também davam sinais de nervosismo. Em
determinado momento, Carla disse que não queria mais receber o hormônio
sintético, pois já não suportava as dores. As enfermeiras insistiram para que
mantivesse, mas ela ameaçou arrancar o soro com as próprias mãos. As
enfermeiras, que se mantinham calmas e esboçavam pouca reação diante do
nervosismo que passava a dominar o ambiente, acabaram acatando seu pedido.
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Uma das enfermeiras sugeriu a Carla fazer alguns exercícios de
deambulação e agachamento, para favorecer a descida do bebê, o que ela acatou,
mas por pouco tempo, alegando que os exercícios intensificavam a dor. Carla
preferiu ficar deitada na cama, posição que, segundo as enfermeiras, reduzia o
ritmo do trabalho de parto. Entre as contrações, Carla costumava lamentar-se e
pedir desculpas. “Eu queria o parto natural, mas não estou conseguindo. Desculpa,
eu estou com vergonha... Vocês me tratam tão bem, eu acho aqui ótimo, mas eu
não estou conseguindo. Eu não quero gritar, não quero fazer escândalo, eu estou
com vergonha...”, disse ela, que em alguns momentos tentava abafar os gritos de
dor mordendo um pedaço de pano.
Do lado de fora da suíte, uma das enfermeiras buscava no prontuário de
Carla informações sobre sua história de vida que pudessem ajudar a compreender
o porquê de sua reação, nitidamente considerada desmedida pela equipe. “Alguma
hora as resistências vão cair”, disse, acreditando no desfecho positivo do trabalho
de parto.
Em determinado momento, a bolsa de águas de Carla se rompeu
espontaneamente e o líquido estava claro e com um cheiro considerado normal,
sugerindo que a suspeita sobre a existência de mecônio não se confirmara. O
trabalho de parto, porém, continuava progredindo lentamente, em especial na
avaliação de Carla, que dava sinais claros de impaciência e intolerância à dor.
183
Com o passar do tempo, Carla foi tornando-se cada vez mais irritadiça,
dizendo que desejava ser transferida para a maternidade de referência para fazer
uma cesárea. As enfermeiras disseram-lhe que a transferência não poderia ser feita
sem que houvesse uma indicação clínica – que se tornara inexistente, depois que o
líquido se revelou claro e com um cheiro normal – e que, de qualquer maneira,
mesmo que ela fosse para a maternidade, não havia garantias de que seria
submetida à cesariana, pois a decisão sobre a realização da cirurgia não lhe cabia,
mas aos médicos.
Carla, manifestando sentir muita dor, chegou a arrancar o toalheiro do
banheiro e a socar as paredes em reação às contrações. Foi então que começou a
telefonar para os amigos, no meio da madrugada, pedindo-lhes ajuda. Entre um
telefonema e outro, Carla colocou novamente a roupa com a qual havia chegado,
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dizendo que queria sair dali e ir para um hospital particular fazer uma cesárea. A
essa altura ela já estava com 9 cm de dilatação: “Eu pago o que for para fazer uma
cesárea agora! Eu pago com cartão [de crédito] e depois trabalho para pagar. Eu
não tenho medo de trabalho!”. Em determinado momento vociferou: “Se elas
[enfermeiras] respeitam que o parto seja como eu quero, então tem que respeitar
que eu quero ir embora e ter uma cesárea. Eu não agüento mais sentir dor!”.
As acompanhantes de Carla oscilavam entre se solidarizar com a dor da
amiga – e nessas horas pressionando-me para que eu intercedesse junto às
enfermeiras136 – e repreendê-la. Uma delas comentou comigo em voz baixa: “Ela
faz isso aqui porque sente como se fosse a casa dela. Duvido que faria isso se
fosse no hospital público... Eu nunca imaginei que a Carla faria esse papelão!”. A
atitude de Carla foi vista pelas amigas como uma inesperada demonstração de
fraqueza, o que ficou explícito no diálogo entre ela e uma de suas acompanhantes:
“Uma mulher grande dessas, as pessoas vão rir quando souberem o que
136
Talvez justamente para evitar serem pressionadas pelo nervosismo que dominava o ambiente,
as enfermeiras não permaneciam todo o tempo dentro do quarto. Como eu circulava entre os dois
ambientes (o quarto da enfermagem e aquele onde se encontrava a parturiente), as acompanhantes
me viam como alguém que pudesse interferir de alguma forma para tentar solucionar o impasse.
Isso me colocou em uma situação um tanto quanto delicada, muito distante da visão idealizada de
uma pesquisadora neutra e que não interfere na realidade que observa. Uma enfermeira chegou
inclusive a brincar, alguns dias depois, chamando-me de “pé frio” e sugerindo que o descontrole
de Carla de alguma maneira pudesse estar relacionado à minha presença.
184
aconteceu!”, ao que Carla respondeu, no intervalo de uma contração: “Ih, essa não
me pega! Melhor um fraco vivo do que um forte morto!”.
Após ter recebido o telefonema de Carla, uma amiga que é técnica de
enfermagem e mora nas redondezas foi, acompanhada da mãe, ao seu encontro na
CP. Carla insistiu para que a amiga lhe tirasse da CP e a levasse a um hospital
particular para fazer uma cesárea, mas esta disse que não podia se responsabilizar
por ela. Em conversa no corredor, do lado de fora do quarto, a mãe da amiga, que
quando jovem havia dado à luz a gêmeos, perguntou: “Ué? Mas ela não sabia que
para parir ia sentir dor?” .
As acompanhantes de Carla chegaram a telefonar para seu irmão, que é do
Exército, com a intenção de que pudesse ir até lá demovê-la (ou contê-la?) da
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ideia de fazer uma cesárea, mas, segundo elas, ele estava de “serviço” no quartel e
não pôde ir. De manhã cedo, a equipe de enfermagem que chegou para substituir a
que estava no plantão noturno decidiu pela transferência de Carla para a
maternidade de referência. Ela deu à luz, por volta de meio-dia, um bebê grande e
com cerca de 4kg, que nasceu de parto “normal”.
***
A experiência de Carla pode ser interpretada como um exemplo de
“descontrole”, na medida em que ultrapassou os limites de comportamento
esperados, especialmente em um lugar cuja reputação é a de oferecer um ambiente
tranquilo e acolhedor. Segundo Le Breton (1999), cada experiência de dor está
associada a um limite impreciso de sofrimento, o que faz com que a sociedade
indique simbolicamente quais são os limites considerados aceitáveis e, ao fazer
isso, rejeite os possíveis excessos.
Em conversa com Carla alguns meses depois, ela classificou sua atitude
como um “surto”, palavra que não à toa remete à perda temporária de consciência,
o que justificaria ter reagido de maneira inversa àquela incentivada durante as
oficinas de preparação, nas quais a tônica incide no auto-controle sobre o corpo e
as emoções.
185
Em “O processo civilizador”, Norbert Elias (1994) analisa como se deu o
processo que, no Ocidente, culminou neste rigoroso controle dos impulsos
corporais e das emoções. Assim, se inicialmente o que se observava era um
controle social e externo, com o passar dos séculos este domínio foi sendo
gradualmente introjetado pelo sujeito, até se converter em auto-regulação. Nas
sociedades complexas, o controle sobre as emoções tornou-se ainda mais forte e
eficaz, sendo esperado que o sujeito evite demonstrações passionais em público, o
que, quando ocorre, não é visto como algo normal, sendo uma situação “que casi
siempre pone en aprietos al observador y causa verguenza o pesar a quienes se
han dejado arrastrar por ella” (Elias e Dunning, 1992: 85). Nesse contexto, a
intimidade do círculo privado desponta como um dos últimos redutos para essas
manifestações – permitidas em público às crianças, mas condenadas aos adultos,
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de quem se espera que o controle sobre si já tenha se tornado automático.
No caso de Carla, a observação feita por sua acompanhante sugere que, na
visão dela, o comportamento “desmedido” e “descontrolado” da amiga ocorreu
justamente por Carla estar em um lugar que remetia ao âmbito doméstico,
sentindo-se “como se [ali] fosse a casa dela”. Esse comentário corrobora a idéia
de que é na casa – e não no espaço público – onde se pode dizer que é pelo menos
aceitável que o sujeito se comporte de forma mais passional. Como visto, para
fazer com que Carla recobrasse o controle sobre si, cogitou-se recorrer a seu
irmão, que não por acaso é do Exército. Mas isso só veio a acontecer efetivamente
quando ela foi transferida para o hospital, onde prevalece a impessoalidade do
espaço público.
É interessante que a reação de Carla diante da dor foi considerada
inadequada até mesmo por ela, que estava claramente envergonhada137 de suas
atitudes, o que ficou explícito na tentativa de abafar os gritos e nos constantes
pedidos de desculpas à equipe – que, por sua vez, demonstrou frieza diante da
situação, não se deixando contaminar pelo nervosismo que atingiu também as
acompanhantes. Nesse sentido, Sarti (2001) chama a atenção para o fato de que “a
137
Inspirando-se nas teses de Norbert Elias, Rezende e Coelho (2010) afirmam que, nas
sociedades contemporâneas, “as emoções passam a ser foco de um controle estrito regulado pela
possibilidade da vergonha. Esse sentimento agora se vincula a uma ansiedade e um medo de que o
indivíduo perca o controle dos impulsos e emoções que devem ser contidos. Se antes a fonte de
repressão dos impulsos era externa – pessoas e manuais de etiqueta – agora é interna” (2010: 107).
186
forma como o profissional reage diante da dor e das manifestações de dor do
paciente influenciará a própria reação do paciente ao tratamento, porque estamos
diante de uma relação em que se enfrentam dois mundos de significação, o do
médico e o do paciente e sua família” (2001: 11). Assim, é possível que os
pedidos de desculpas diversas vezes reiterados por Carla encontrem relação
também com a reação das enfermeiras, que nitidamente pareciam desaprovar seu
comportamento.
Sarti (2001) aponta ainda para a relação entre a dor e o lugar social do
indivíduo, uma vez que, dentro de uma mesma sociedade, os sujeitos possuem
condições sociais diferenciadas, segundo clivagens tais como gênero, classe e
etnia, que interferem na forma como qualificam a realidade da dor. De acordo
com a autora, “pode haver maior ou menor tolerância à dor, conforme aquilo que
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do indivíduo se espera, segundo seu lugar social” (2001: 09).
Como anteriormente referido, no caso das mulheres, em geral, parece
predominar uma imagem associada à força e resistência, possivelmente construída
pela própria capacidade biológica feminina de dar à luz. No que se refere às
mulheres de camadas populares, em particular, esse imaginário parece ser ainda
mais forte, uma vez que nesses extratos a principal referência de parto é o
“normal”, do ponto de vista nativo considerado mais doloroso do que a cesárea.
Além disso, como sugeriu a mãe da amiga de Carla, nesse segmento prevalece a
idéia de que a dor do parto é “inevitável”, o que não a torna menos temida, mas
talvez contribua para que seja mais aceita e esperada. Esta percepção certamente
está associada ao fato de que praticamente não são realizados partos “normais”
com analgesia nas maternidades públicas brasileiras, como já mencionado.
Luciana, de 19 anos, comenta como lidou com a dor, por ela percebida
como inescapável, quando deu à luz na casa de parto:
“Quando você sabe que vai ter dor, é obrigada a ter dor e tu não tem como se
livrar dela, não tem como fazer escândalo. (...) Quando tu sabe que tem uma
escapatória, ali... Eu faço escândalo mesmo. Mas como eu já sabia que a dor era
aquela e ia acabar assim... eu só ia me livrar dela com o neném nascendo, eu
preferi ficar quieta e agüentar” (Luciana).
Outras mulheres fizeram observação semelhante:
187
“Tinha que passar mesmo [pelas dores], não tinha outra opção”. (Adriana)
“O parto... não tem parto sem dor, independente de qualquer coisa”. (Raquel)
“Eu sei que a dor vai se sentir em qualquer lugar, isso não se pode evitar. (...)
Porque a dor o médico não vai te ajudar a aliviar, a dor você vai sentir aqui ou em
qualquer maternidade ou hospital”. (Geisa)
Assim, sendo a dor do parto aceita como inevitável pelas mulheres de
camadas populares e sendo elas consideradas fortes e resistentes, à Carla, uma
mulher alta e musculosa, coube o lugar de “fraca”, pelo “papelão” que teria feito
durante o trabalho de parto, do qual todos viriam a rir depois. Sobre essa questão,
Le Breton (1999) afirma que:
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“La expresión individual del dolor discurre conforme a formas ritualizadas que
alimentan la espera de los testigos. Cuando un sufrimiento exhibido parece
desproporcionado con la causa y escapa del marco tradicional (...) la reputación
del sujeto se pone en juego entonces”. (Le Breton, 1999: 130)
O desempenho de Carla só não foi ainda mais criticado, pois, ao fim e ao
cabo, ela deu à luz de parto “normal”, o que foi enfatizado por ela durante
entrevista realizada após o parto:
“Depois [as amigas que foram acompanhantes] ficaram brincando comigo: ‘eu
pensei que você fosse mais forte’. Eu falei assim: ‘Forte eu sou. Só que, na hora,
eu surtei’. E surtei mesmo e não me arrependo. Cada ser humano tem uma
reação. Aí, eu até falei para essas... E todas as amigas que ficaram brincando
comigo e que vieram aqui me acompanhar, as duas fizeram cesáreas. Eu falei:
‘Engraçado, né? Eu frouxa e encarei o parto normal até o final. Vocês correram e
fizeram cesarianas. Aí é fácil falar dos outros’.” (Carla)
Além do descontrole, a experiência de parto de Carla também evoca outra
questão central: a que se refere à possibilidade da parturiente fazer escolhas e
interferir nos rumos do parto. De fato, o parto “humanizado” se define, ao menos
segundo os ativistas, como aquele em que a mulher tem suas escolhas e seus
direitos respeitados, partindo da premissa de que a parturiente deve participar das
decisões que envolvem seu corpo.
Como foi possível notar a partir da descrição do trabalho do parto de
Carla, enquanto ela manifestava adesão à proposta de parto da CP, a equipe a
consultou sobre a realização de procedimentos, dando-lhe a opção de escolher
entre a permanência na CP ou a transferência para a maternidade. Isto é, as
188
enfermeiras compartilharam com ela as decisões relativas aos rumos do trabalho
de parto. No entanto, à medida que Carla desistiu da proposta e abriu mão de dar à
luz por via vaginal, passando a desejar uma cesariana, as enfermeiras não mais
acolheram suas escolhas, rompendo com qualquer possibilidade de negociação, o
que levou Carla a invocar um preceito central da filosofia da “humanização”: “Se
elas [enfermeiras] respeitam que o parto seja como eu quero, então tem que
respeitar que eu quero (...) ter uma cesárea”.
Como se verá no próximo capítulo, essa é uma diferença importante entre
as mulheres dos dois grupos, pois no outro contexto investigado a decisão quanto
à via de parto não se coloca como irrevogável. Como sugeriu o caso de Carla,
entre as mulheres que ingressam no sistema público de saúde, essa escolha não
lhes pertence, mas à equipe de assistência, o que também foi apontando por
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Chacham (2004b), tal qual exposto no capítulo 2. Nesse contexto, as parturientes
que não seguem as normas de comportamento e auto-controle esperadas e pedem
pela cesárea, como o fez Carla, em geral já sabem de antemão que muito
provavelmente não serão atendidas, tendo em vista que no sistema público o
profissional de saúde, como regra, se coloca como o detentor das decisões
relativas à via de parto, rejeitando o diálogo com a parturiente. O fato de no
serviço público de saúde brasileiro serem atendidas quase que exclusivamente
mulheres provenientes de camadas populares não deve ser ignorado, tendo em
vista que, como afirma Boltanski, “a relação doente-médico é uma relação de
classe e o médico adota um comportamento diferente conforme a classe social do
doente” (1979: 39).
A partir do exposto, talvez não seja gratuito o fato de que, na CP, os
profissionais de maneira geral evitem fazer uso da expressão parto “humanizado”,
dando preferência ao termo parto “natural” que, na realidade, parece ser mais
adequado à proposta de parto ali impulsionada, levando-se em conta as limitações
técnicas dos profissionais, bem como aquelas impostas pela própria infra-estrutura
do lugar. Não que a possibilidade de se ter um parto “humanizado” ali seja
inexistente, mas esta exige um grau de comprometimento com a proposta de
desmedicalização que nem sempre é observado entre as mulheres de camadas
populares, para quem o parto “natural”, de maneira geral, precisou ser aceito ao
189
longo da gestação, muitas vezes não se tratando propriamente de um projeto
pessoal.
3.5.2.
“É uma dor horrível, mas...”
“El dolor expresado nunca es dolor vivido (Le Breton, 1999: 48)
El hombre se empeña en desbaratar la impotência del lengague.
Y el dolor es uno, cautivo en la intimidad del ser humano que
intenta inútilmente traducirlo para los otros, quienes solo pueden
comprender por defecto, por medio de una traducción que es
traición más que nunca” (Le Breton, 1999: 48-49)
Se durante a gestação as mulheres fizeram referência principalmente ao
medo da dor, nas entrevistas realizadas após o parto elas com frequência a
definiram como “horrível”, muitas vezes recorrendo a analogias para tentar
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traduzir em palavras a sensação corporal. Carla, por exemplo, referiu-se à
sensação de ter o corpo “desmontado” durante o trabalho de parto e à união de
suas partes como um ímã, imediatamente após o nascimento da filha:
“Até a hora dela nascer, naquelas contrações, foi a coisa mais horrível do mundo.
Eu não tinha mais braços; mais pernas; eu não tinha mais corpo; eu não tinha
mais força; eu não tinha mais nada. Mas, quando ela nasceu, parece que eu não
tinha estado grávida na minha vida e eu nunca tinha sentido aquelas dores. No
mesmo instante em que ela nasceu, eu não senti mais absolutamente nada e
parecia que... nada. Aquilo tudo que eu passei... olha, para mim, foi uma sensação
que parecia que o meu braço estava num canto, a minha perna estava no outro e o
meu quadril estava no outro, quando eu estava com as contrações. (...) As dores
que vinham por trás, no quadril, eram muito fortes, entendeu? Aí, ela nasceu,
passou pelo canal vaginal e parece que, zoom, teve um ímã que juntou tudo de
novo e eu não senti mais nada. Tanto é que, quando eu subi para o quarto, eu
levantei da cama e fui ao banheiro. Eu fazia tudo. Parecia que eu nunca tinha
estado grávida e nem parecia que eu tinha dado à luz. É uma coisa, assim,
mágica. Para mim, foi muito mágico”.
Classificado como “a coisa mais horrível do mundo” e como uma
experiência de desagregação e descontrole – como se os membros do corpo
estivessem espalhados em diversas partes e lugares –, o trabalho de parto e as
dores a ele associados, por outro lado, cessaram com o nascimento da criança.
Noutras palavras, é como se tivesse havido o apagamento da parte negativa da
experiência. Assim, Carla narrou com satisfação a recuperação do corpo e a
disposição para realizar as atividades do cotidiano. A rapidez com que ocorreu a
190
inversão de sensações fez com que ela reputasse aquele momento como “mágico”,
isto é, como uma experiência quase sobrenatural.
Marisa, por sua vez, associou o momento expulsivo a um vulcão em
erupção, e descreveu a dor do trabalho de parto como sendo semelhante a “alguém
entrando nas suas entranhas e tentando tirar os seus órgãos puxando, porque é
uma coisa horrível. (...) Você sente como se aquilo fosse a sua última hora”.
Luciana, ao discorrer sobre o parto, contou ter adotado uma estratégia:
buscou comparar a sensação corporal do trabalho de parto com outras sensações,
que julgou dolorosas, experimentadas ao longo da vida. O objetivo do que veio a
se tornar uma “escala de dor” era ganhar auto-confiança (pois se já superou
aquelas experiências faria o mesmo naquele momento) e tentar transformar a dor
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do trabalho de parto, que nunca tinha vivido, em uma dor conhecida, isto é,
preparar-se para viver a nova sensação. De sua escala faziam parte a dor de cólica
menstrual e as dores que sentiu ao furar, ela própria, a orelha e o nariz, para
colocar piercings. No entanto, a dor provocada pela passagem do bebê pela vagina
foi classificada por Luciana como incomparável a qualquer outra antes sentida,
como indica seu relato:
“Na minha mente, eu ficava usando assim: ‘Ah, eu furei a minha orelha, então, eu
vou mandar a contração embora’. (...) Porque quando eu fui colocar o piercing,
eu me concentrava antes, ia lá e sentia. Já estava acostumada com a dor porque
eu me preparava antes, em casa. Aqui, eu tentei falar assim: ‘Ah, eu me furei na
orelha, eu botei um traçante, que pega dos dois lados; e botei um no nariz. Então,
eu consigo’. Porque são os lugares onde mais doem. ‘Então, eu consigo’. Aí, eu
pensava na dor que sentia quando eu botei o piercing, e não na contração. (...) Aí,
deu para levar; mas no último momento em que ele já estava nascendo, eu não
consegui mais comparar a dor. Já era muito maior do que as dores que eu sentia
antes. (...) Na última dor, eu não consegui pensar em nada”.
Como mencionado, de maneira geral as sensações desencadeadas pelo
trabalho de parto e parto foram descritas pelas entrevistadas de forma negativa,
muitas vezes através do uso do adjetivo “horrível”, em consonância com a visão
predominante na nossa sociedade. Porém, analisando mais detidamente as
entrevistas, foi possível observar que a frequente descrição negativa da dor do
parto costumou ser acompanhada de uma conjunção adversativa, que acabava por
minimizá-la. Assim, a dor do parto foi definida pelas puerperas entrevistadas
191
como intensa, mas: “suportável”, “depois
você esquece dela”,
“pára
imediatamente depois que o bebê nasce”, “aumenta aos poucos”, etc.
Dessa forma, é possível dizer que a dor – tão temida durante a gestação –
foi, pelo menos parcialmente, ressignificada pelas entrevistadas138 depois de terem
passado pela experiência de dar à luz. Noutras palavras, a dor aguda e intensa, que
quase todas relataram, foi frequentemente minimizada e, em alguns casos, até
esquecida, especialmente se o parto foi considerado rápido, o que será explorado a
seguir.
3.5.3.
Parto bom é parto rápido
A partir das entrevistas, foi possível notar que o tempo de duração do
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trabalho de parto despontou como um aspecto decisivo para a satisfação (ou não)
das mulheres com a experiência. Naquele contexto, o parto considerado “bom” é o
parto rápido, ainda que a dor seja descrita como “horrível”. É como se o
nascimento da criança, após um curto trabalho de parto, compensasse a dor,
mesmo nos casos em que esta é considerada extremamente aguda e intensa. A
valorização do “parto rápido” possivelmente encontra relação com o fato de que a
maioria das mulheres que faz o pré-natal na CP não escolheu dar à luz ali pela
proposta de parto. Noutras palavras, sentir dor não foi propriamente uma
escolha139. Não é de surpreender, portanto, que a intenção de livrar-se o quanto
antes do trabalho de parto tenha sido a meta da maior parte das puerperas
entrevistadas, revelando que o foco estava no nascimento do bebê e não no
trabalho de parto em si, isto é, no processo de parturição140.
“Eu só focava nele sair, eu não pensava em outra coisa, era só ele sair. [riso] Eu
falava [para as enfermeiras]: “Vocês não querem acabar logo com isso não? Anda
logo e me ajuda aqui!” [riso] (Adriana)
138
Foram exceções Evelin, Marisa e Luciana, o que explica o desejo manifestado pelas três de, na
próxima gravidez, terem partos cesáreos. Deve-se ressaltar que Evelin e Marisa consideraram seus
partos “muito demorados”.
139
Dentre as mulheres que foram entrevistadas depois de já terem passado pela experiência de
parto, Iara, sobre cujas particularidades voltarei a tratar mais adiante, foi a única que relatou ter
desejado sentir as dores provocadas pelas contrações. “Eu queria realmente sentir todo o parto. (...)
Porque apesar de ser uma dor, mas é uma dor benéfica. É a dor da vida da minha filha chegando ao
mundo. Então eu estaria junto com ela nesse momento, ela não passaria por isso sozinha”.
140
Deve-se destacar que o mesmo foi constatado por Nelson (1979) em pesquisa com parturientes
de camadas populares em uma maternidade-escola no estado da Nova Inglaterra, EUA.
192
“[O trabalho de parto] Foi com muita dor, mas eu gostei. Eu gostei. Foi rápido,
foi bem rápido.
Entrevistadora: E você gostou por isso, porque foi rápido?
Porque foi rápido. As dores foram constantes, muitas, mas foi rápido. Foi
rápido”. (Analice)
“Eu pensava: “sai, sai. Eu não quero ficar aqui muito tempo”. Eu tinha medo de...
Eu não tinha medo de nada dar errado, engraçado não é? Eu só queria mesmo que
a criança saísse rápido para eu não precisar ficar ali muito tempo, sentindo dor.
Eu não queria ficar com um trabalho de parto muito longo. Eu só pensava assim:
“Quero que saia! Quero que saia! Quero que saia!”. Só isso”. (Elaine)
“Olha, eu só pensava em ver ele sair”. (Raquel)
“O meu parto foi, assim, ótimo. Foi um parto bem rápido, não é?” (Jussara)
No relato de Adriana chama a atenção o pedido de “ajuda” que ela revela
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ter feito à equipe para que o parto terminasse logo. “Ajuda”, como já mencionado,
é a forma como as mulheres naquele contexto costumam referir-se aos
procedimentos de rotina realizados nos hospitais e maternidades, como a
administração de ocitocina sintética (“soro”), episiotomia (“corte”), manobra de
Kristeller, entre outros. Marisa, que comemorou a rapidez do parto do primeiro
filho, em uma maternidade pública da região, também se mostrou satisfeita com
as intervenções realizadas naquela ocasião:
Marisa: “[N]O [parto] dele: fiz a força. Ela [a enfermeira]: ‘Agora, mais um
pouquinho’. Eu: Ahm. Aí, a mulher viu que eu estava com dificuldade, porque eu
era marinheira de primeira viagem, veio aqui, em cima da minha barriga, e pulou
aqui. Uma enfermeira deste tamanho, uma negona. Apertou, assim, e ele fez
assim: vulp!”
Entrevistadora: Apertou em cima da barriga (manobra de Kristeller)?
Marisa: “É. Só levei aquele corte [episiotomia] mesmo. Ela costurou para o lado,
assim. Aí foi a maior alegria. Eu falei: ‘Pô, graças a Deus, não é?’”
Para algumas mulheres, as intervenções aparecem de maneira positiva,
uma vez que contribuem para acelerar o trabalho de parto e parto, o que, em
última instância, é o que se deseja. A expectativa dessas mulheres parece, nesse
sentido, ir ao encontro da dos médicos que atuam nos hospitais e maternidades,
que estão mais interessados em esvaziar os leitos do pré-parto – o que no jargão
médico é chamado de “rodar leito” – do que no processo de parturição.
193
Com efeito, Martin (2006) aponta que nos manuais de obstetrícia o
trabalho de parto é tratado como um processo puramente mecânico e a linguagem
utilizada nesses textos para descrever o efeito das intervenções aponta, com
freqüência, para o aumento da “produtividade”. Definido a partir de estágios,
medidas e cronogramas, o trabalho de parto é considerado “bom” ou “fraco” e as
contrações “eficientes” ou “ineficientes” a partir do “progresso” observado em
períodos específicos de tempo. Assim, as intervenções de rotina visam justamente
a adequar o trabalho de parto a uma temporalidade considerada adequada e eficaz,
buscando padronizá-lo, em uma tentativa de esquivar-se de sua imprevisibilidade.
Foucault já chamara atenção para como “o tempo penetrou os corpos e com ele
todos os controles minuciosos do poder” (1998:129).
A avaliação temporal rígida e minuciosa do processo de parturição é um
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legado da década de 1950, quando o obstetra norte-americano Emanuel Friedman
criou um gráfico do trabalho de parto, baseando-se nos resultados de uma
pesquisa feita com 100 mulheres, que foram submetidas a exames retais a cada
hora durante o trabalho de parto. Seu estudo é a base para a avaliação moderna do
progresso do trabalho de parto. No entanto, hoje existem variações nas políticas
hospitalares sobre o que é “progresso adequado”. Por exemplo, um colo pode
dilatar-se 0,5 cm por hora em um hospital e ser considerado adequado, enquanto
que, em outro, ele deve dilatar 1 cm por hora para que seja avaliado da mesma
forma141. Apesar dessas variações, o tempo ainda desponta como um critério
fundamental para a avaliação do trabalho de parto e desvios nos índices esperados
são tratados pelos manuais como “distúrbios” (Martin, 2006).
De maneira geral é possível dizer que os médicos e as enfermeiras que
atuam nos hospitais e maternidades públicos têm, nesse aspecto, as mulheres
como aliadas, uma vez que elas igualmente desejam um rápido desfecho para os
trabalhos de parto. Para as mulheres de camadas populares com as quais tive
contato durante a pesquisa, parece que o interesse maior está em livrar-se o quanto
antes da dor e, em última instância, ter o bebê em seus braços. Não é de
surpreender, portanto, que o relógio tenha surgido nos relatos de algumas
141
Fonte: Blog Midwife Thinking (http://midwifethinking.com/2010/08/18/the-effective-labourcontraction/), último acesso em: 10/04/2013. O post traduzido sobre a “Curva de Friedman” foi
divulgado em uma lista de e-mails de um grupo de gestantes de camadas médias.
194
entrevistadas como um importante elemento do trabalho de parto, considerando
que era ele quem regulava e atestava seu desempenho.
“Eu tava atenta mesmo [era] para ele nascer. Porque ela [a enfermeira] falou:
você está muito tensa, respira mais leve, mas a minha atenção era o relógio na
parede. Eu ficava toda hora olhando a hora. Não conseguia parar de olhar a hora.
Ela dizia, para de olhar, fica mais leve, solta, mas eu ficava olhando, porque eu
sou assim, eu penso muito, muito rápido, e eu olhava para o relógio e ele [o
marido] olhava junto, mas olhava de uma forma diferente, porque ele queria que
nascesse antes de meia-noite para ser câncer, não ser leão. (risos) E eu com
vontade de bater nele! (risos). Eu olhava no relógio para nascer logo, eu dizia,
meu Deus já passou esse tempo todo e fazia a dor e eu olhava para lá. (...) Então
foi isso eu me concentrei mais: na dor para nascer logo”. (Valquíria)
“[Eu estava nervosa] Porque estava passando... Por causa do horário que eu vim.
Eram duas e pouco da manhã, então estava passando... Três e pouca da manhã,
então estava passando o horário”. (Monique)
No entanto, se é possível afirmar que uma parte das mulheres vê os
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procedimentos de rotina realizados nos hospitais como algo desejável, outra, em
menor número, parece ter incorporado o olhar crítico sobre as intervenções,
difundido pela equipe especialmente através dos grupos educativos. Os
argumentos, no entanto, tendem a privilegiar questões de ordem prática,
pautando-se mais na forma como os procedimentos afetam de maneira direta a
experiência corporal da mulher. Assim, são mencionadas a demora na cicatrização
da episiotomia (corte), o fato de que isto interfere na recuperação do corpo no
pós-parto e a intensificação das dores provocada pela administração do hormônio
sintético ocitocina:
“[No parto da minha filha, no hospital,] teve aquele corte, que demora não sei
quantos anos, não sei quanto tempo para ficar bom”. (Raquel)
“Eu queria a recuperação mais rápida possível (...). Porque a pessoa vai para o
parto normal, fica lá sofrendo e no final acaba com um corte para ajudar? Não
vale a pena”. (Lara)
“Quando botam no soro, a dor é insuportável. (...) Não dá nem para raciocinar
com a dor”. (Evelin)
A valorização da rapidez na recuperação do corpo e da possibilidade de
retomar as atividades físicas após o parto possivelmente está associada ao fato de,
nesses segmentos, os sujeitos manterem uma relação mais instrumental com o
corpo, como afirma Boltanski (1979). Isso ocorre não apenas do ponto de vista
195
profissional, mas no que se refere aos cuidados com o bebê e aos afazeres
domésticos, que em geral são considerados de atribuição feminina.
A seguir, será feita a descrição do parto de Iara, que parece servir como
um interessante contraponto ao de Carla. Iara, assim como um reduzido número
de mulheres que busca a CP por sua proposta, destoa naquele contexto, parecendo
encontrar mais semelhanças com as parturientes do outro grupo investigado,
especialmente no que se refere aos significados atribuídos ao parto.
O parto de Iara
Cheguei à CP por volta das 13h e vi que, em uma das suítes, havia uma
plaquinha de madeira pendurada na porta na qual se podia ler “Trabalho de parto”.
Deixei minha mochila no quarto de descanso da enfermagem, como costumava
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fazer ao chegar, e fui para a cozinha, importante ponto de sociabilidade da “casa”.
Os enfermeiros Álvaro, Zilda e duas novas residentes estavam almoçando e
juntei-me a eles com minha marmita. Durante o almoço, perguntei se achavam
que seria possível assistir ao parto. Zilda disse que não via problema, mas que
antes consultaria Iara, a parturiente. Perguntei sobre o andamento do trabalho de
parto e me informaram que tinha começado de manhã e a parturiente estava com 7
para 8cm de dilatação. Alertaram-me ainda que o pai do bebê estava bastante
nervoso, mas controlado. Ele havia, há pouco, deitado para tentar tirar um cochilo.
Ao terminar de almoçar sentei-me perto da porta de entrada da suíte, na
cadeira onde costumava fazer minhas anotações. Zilda, que a essa altura já estava
dentro do quarto, me chamou. Entrei e senti um agradável cheiro de canela, que
havia tomado conta do ambiente. O namorado de Iara, um jovem negro e de
estatura mediana, estava sem camisa, deitado na cama. A suíte estava silenciosa e
na penumbra. A única luz que entrava no ambiente vinha da janela do banheiro,
para onde me encaminhou Zilda.
Deparei-me com Iara nua, dentro da banheira. De pele branca e cabelos
longos castanhos e cacheados, ela estava deitada de lado. Iara era nitidamente
grande para aquele espaço, mas esforçava-se para submergir a barriga na água.
Sua avó, Dona Luzia, aparentemente estava vestida com a roupa com que saíra de
196
casa, de camiseta e bermuda jeans, e estava sentada na beira da banheira,
apoiando uma das pernas da neta. O clima era de silêncio e espera. Fiquei na porta
do banheiro, temendo incomodar. Zilda entrou devagar, sentou-se no vaso
sanitário, ouviu os batimentos do feto e elogiou Iara pelo fato de ela conseguir
relaxar entre as contrações. Sua serenidade era mesmo surpreendente. Só
notávamos que ela estava tendo contrações pela expressão de seu rosto, que de
tempos em tempos se franzia. A avó e a enfermeira se revezavam tirando, com
uma espécie de coador, algumas membranas que boiavam na água, provavelmente
devido à ruptura da bolsa de águas.
Em uma contração mais forte Iara deu um pequeno grito, o que fez com
que Wiliam, seu namorado, se levantasse da cama e se aproximasse. O banheiro
ficou pequeno para tanta gente e eu, que a essa altura já tinha adentrado o espaço,
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recuei e voltei para a porta. Antes, peguei uma câmera que estava sobre a pia e
supus ser de Iara e comecei a tirar fotos. Zilda pediu que eu pegasse também a
câmera da casa de parto. Wiliam sentou em um banco ao lado da banheira,
abraçando Iara, e Dona Luzia afastou-se, deixando apenas o casal. Sob o som de
Djavan, que a enfermeira havia colocado, Wiliam sussurrava algumas palavras em
seu ouvido.
Uma funcionária da cozinha entrou no quarto nesse momento, trazendo em
uma bandeja o almoço do acompanhante. Wiliam disse à avó de Iara para que
comesse e permaneceu junto à namorada. Antes, contudo, comentou que, dali à
3h, precisaria sair, pois tinha uma prova da faculdade. Ele, que é do Exército e
estuda Psicologia, comentou que enquanto cochilara havia sonhado com a matéria
do exame. Imediatamente a enfermeira disse à Iara para que não se preocupasse,
que ela tomasse o tempo que fosse necessário, pois não havia pressa. Realmente, o
comentário de Wiliam destoava do clima reinante, que parecia não ser pautado
pelo relógio. As horas se passavam e nem nos dávamos conta delas.
Em um exame de toque, algum tempo depois, que eu não saberia precisar,
a enfermeira detectou que a parturiente já estava com 10 cm de dilatação, mas que
o feto ainda precisava descer. Zilda sugeriu que Iara colocasse a mão na vagina,
para que sentisse como a filha estava próxima. Em seguida, propôs que ela ficasse
em uma posição vertical, como a de cócoras, para favorecer a descida do feto. Iara
197
alegou que não tinha forças para ficar nessa posição e Zilda então ofereceu a
banqueta de parto. Iara concordou, mas antes queria comer um pedaço de
chocolate. Depois de tê-lo comido, no entanto, permaneceu onde estava.
A enfermeira Sandra, que havia saído para almoçar, retornou e enfatizou a
recomendação da colega. Iara aguardou ainda algumas contrações, parecendo
estar buscando forças para se levantar, o que o fez com a ajuda do namorado e de
Zilda. A parturiente caminhou até o quarto, onde estava a banqueta, e se sentou.
Wiliam sentou-se na cama, posicionando-se atrás da namorada, e Sandra e Zilda
no chão, diante de Iara, onde puseram um pano esterilizado, luvas e gazes. Eu e
Dona Luzia assistíamos de pé, tirando fotos. Dona Luzia inclusive acendeu a luz
em um determinado momento, para que a imagem da foto ficasse mais nítida, mas
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apagou em seguida, a pedido das enfermeiras.
Sandra colocou um espelho embaixo da banqueta, de onde pôde observar
com facilidade a vagina de Iara. Com menos visibilidade, Zilda pediu que a
colega a orientasse sobre quando deveria colocar as luvas. Wiliam ficou abraçado
a Iara, segurando-lhe as mãos, dando apoio às suas costas e fazendo carinho na
barriga. Novamente a enfermeira ouviu os batimentos do feto e disse que ele
estava muito bem. Em seguida, orientou Iara, que já tinha feito o puxo algumas
vezes, para que não fizesse força com a garganta, mas com o ventre. A parturiente
repetiu o puxo algumas vezes, até que Sandra deu o sinal para que Zilda colocasse
rapidamente as luvas, pois o feto estava coroando. Foi apenas o tempo de ambas
colocarem as luvas e Iara dar um forte grito para que Eleonora nascesse. Todos
nós que estávamos presentes comemoramos e nos abraçamos142.
Sandra amparou Eleonora e tirou o cordão que estava envolto em seu
pescoço para, em seguida, entregá-la à mãe. A bebê recebeu um gorro e foi
envolta em um pano, para não perder calor. Ela permaneceu bastante tempo no
colo da mãe, cheirando e lambendo seus seios. Wiliam continuou sentado onde
estava e, abraçado a Iara, observou, acariciou e emocionou-se com a filha. A avó
de Iara fez o mesmo, tentando identificar com quem a bisneta se parecia: “essa
142
É interessante como o fato de assistir ao parto gera instantaneamente um laço, um vínculo entre
as pessoas presentes. Encontrei-me com Iara, Wiliam e Eleonora mais algumas vezes, por ocasião
das consultas de revisão, e sempre que nos víamos era como se estivéssemos encontrando alguém
muito próximo, íntimo.
198
manchinha é do Wil!”, comentou, com o que ele, sorridente, concordou. Iara e
Eleonora permaneceram conectadas através do cordão umbilical, que foi cortado
pelo pai somente quando este parou de pulsar.
***
Dessa experiência, alguns detalhes me chamaram a atenção. O principal
foi, sem dúvida, a tranqüilidade e serenidade de Iara durante o trabalho de parto.
Seu comportamento parecia compatível com as instruções recebidas durante os
grupos educativos, ocasião em que a tônica incidia principalmente sobre o autocontrole do corpo e das emoções. Com efeito, Iara manteve-se em silêncio e de
olhos fechados durante a maior parte do tempo, procurando adotar uma postura
introspectiva, que percebi tão logo adentrei a suíte.
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De maneira geral, é possível dizer que o parto de Iara desponta como um
referencial contrastivo ao parto de Carla, cuja marca foi justamente o descontrole
do corpo e das emoções. Na realidade, é como se ambos estivessem nas pontas de
um continuum que compreende uma ampla e diversificada gama de experiências,
confirmando a tese de que o parto tem tanto de objetivo, isto é, fisiológico, quanto
de subjetivo, cultural, social.
Iara tinha 20 anos e morava em um bairro na Zona Norte com os avós e a
irmã. Solteira, ela concluiu o ensino médio, era evangélica, não tinha plano de
saúde e não planejou a gravidez. Seu perfil não destoava muito do das outras
entrevistadas. Contudo, apesar de compartilhar alguns marcadores com as demais
parturientes que integram a clientela da CP, Iara tinha um discurso e
posicionamento bastante singulares naquele contexto, o que foi possível verificar
durante a entrevista, realizada no dia seguinte ao parto. Nesse sentido, a descrição
feita por ela acerca do que considerava um “parto ideal” – em que fez referência a
“intervenções” e não à “ajuda” – era, como se verá no próximo capítulo, bem
semelhante àquela feita pelas mulheres de camadas médias etnografadas:
“Um parto ideal é quando a mulher pode administrar (...). Ela mesmo, estando
ciente do que está acontecendo com o corpo, do que vai acontecer, de como vai
ser o nascimento, podendo optar por intervenção ou não”.
199
Iara tomou contato com essa proposta de parto através da tia, que por meio
de redes sociais na Internet se familiarizou com o ideário da “humanização” e
veio a se tornar doula – palavra que a maioria das entrevistadas na CP nunca
ouviu falar. Assim, diferentemente da maior parte das gestantes, ela desfrutava de
um amplo apoio da família para dar à luz ali. Apoio que, na visão de Wiliam,
convertia-se quase em “pressão”. Com efeito, na entrevista ele contou que durante
o trabalho de parto, preocupado com a demora, perguntou se Iara não queria
desistir da proposta de parto “natural” e fazer uma cesárea. Ela na hora negou,
mas depois confessou que aquela oferta havia sido tentadora143.
“Na hora em que ele falou isso foi muito difícil, porque quando você sente a
contração a vontade que dá é: “Para tudo e mete a faca!”. Realmente dá essa
vontade, mas se você tem uma consciência, uma vontade muito grande de que
seja daquele jeito, você vai adiante”.
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E a “consciência” a qual Iara se referia certamente a convertia em uma
exceção entre as mulheres que frequentavam o pré-natal da CP. Diferentemente
das demais, Iara havia tido contato inclusive com o outro grupo de gestantes de
camadas médias, após ter assisitido a algumas palestras no instituto na Zona Sul,
onde é oferecido o curso de preparação para gestantes. Nesse sentido, Iara
circulava entre os dois grupos e, assim como as mulheres de camadas médias,
tinha na Internet uma grande fonte de informação. Sua visão era de que o parto
deveria ser fruto de uma agência da mulher que, livre de medicamentos, estaria
apta a fazer suas escolhas. A decisão pela casa de parto foi “justamente [por]
saber que [aqui] seria ao meu modo, que eu poderia dar as direções do parto, dizer
como eu gostaria”.
Para as mulheres que, como Iara, estão comprometidas com a proposta de
desmedicalização do parto, a CP desponta como o lugar ideal, tendo em vista que
os profissionais compartilham do projeto. Nesse sentido, a mulher “consciente”,
como Iara, encontra ali a garantia de que suas escolhas – feitas dentro do
repertório que lhes foi apresentado – serão respeitadas, posto que a
desmedicalização é, nesse caso, uma meta comum, compartilhada entre a mulher e
143
Na realidade, considerando a falta de ingerência da mulher sobre os procedimentos relativos ao
parto no sistema público, tal oferta dificilmente se concretizaria, como anteriormente discutido.
200
a equipe. Para essas, a assistência ao parto oferecida pela CP parece ser, nos
termos em que propõem os ativistas, de fato “humanizada”.
3.5.4.
“Dependia de mim para nascer”
Ainda que, diferentemente de Iara, a possibilidade de ter ingerência sobre
o parto não tenha sido o que levou a maioria das mulheres a buscar a CP, uma
parcela das que passaram pela experiência de dar à luz ali, disse acreditar que a
experiência de parto “natural” exigiu-lhes uma participação ativa e central144,
como sugerem os depoimentos abaixo:
Evelin: “Ali [na hora do parto], dependia de mim para a minha filha nascer, não
é? Se demorasse, poderia até acontecer alguma coisa com ela.
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Entrevistadora: Então você sente que no parto natural depende mais de
você?
É. Totalmente”.
“Quando começou o trabalho de parto, aí já era ela [Joana], não é? Era ela
praticamente que ia exercer a coisa ali, fazer acontecer”. (Alberto, marido da
Joana)
“O da menina [que nasceu na maternidade] doeu, mas o do menino, aqui na casa
de parto, a dor foi maior. Porque aqui a gente tem um trabalho... aquele trabalho
nosso. Porque não tem aquele corte, que demora não sei quantos anos, não sei
quanto tempo para ficar bom. (...) Na hora de botar para fora teve a dor de
empurrar e é muito mais difícil. Teve aquela dor, mas o dela não. Porque o dela
já estava tudo aberto [em referência à episiotomia realizada na maternidade]. Não
tinha nada empatando ela nascer”. (Raquel)
De diferentes formas, os relatos apontam para a importância da atuação da
mulher no caso do parto desmedicalizado. Sem qualquer tipo de “ajuda”, a mulher
desponta como a pessoa que efetivamente “faz [o parto] acontecer”, ou seja, é ela
a responsável pelo nascimento do filho. É interessante que esta visão é bem
diferente daquela que predomina em nossa cultura, considerando que geralmente
usa-se o verbo “fazer” para referir-se à atuação do médico, tanto em partos
cesáreos quanto em partos normais medicalizados. “Quem fez seu parto?” ou
“Aquele foi o médico que fez meu parto”, são expressões corriqueiras e apontam
144
Comentários nesse sentido foram feitos de maneira espontânea por cerca de 30% das
entrevistadas. No entanto, tenho a impressão de que se tivesse sido formulada uma pergunta
específica sobre o assunto, um número maior de mulheres teria afirmado compartilhar dessa
percepção.
201
para como predomina a idéia de que o processo de parturição é conduzido pelo
profissional de saúde e não pela mulher, que assume uma postura passiva. Nesse
sentido, é como se os procedimentos de rotina reduzissem de tal maneira a
possibilidade de participação da parturiente, que esta acaba sendo ofuscada pela
atuação do médico, eximindo-se de qualquer responsabilidade sobre o nascimento
do filho.
Outras expressões associadas ao processo de parturição, como “ganhar
bebê” e “passar mal”, são usadas com alguma freqüência no contexto investigado
e apontam para a mesma direção. Como fica evidente, a expressão “ganhar bebê”
sugere que o parto se conclui sem que implique em uma participação ativa da
mulher: o bebê surge quase como um presente, que lhe foi entregue por alguém,
isto é, pelo médico. Esta visão fica explícita no comentário feito por Valquíria, em
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entrevista ainda durante a gravidez:
“A barriga crescendo, eu comprando as coisas, fazendo as ultras, mas parecia que
eu não tava ainda... sabe, a ficha ainda não caiu totalmente? Eu falei para o
Miguel [o marido]: só quando tirarem e me derem a criança nos meus braços,
quando eu tiver que levar mesmo embora.” (Valquíria)
Valquíria acreditava que só se daria conta do que estava por vir quando o
bebê nascesse. Mas, como sugere seu relato, o parto era para ela algo sobre o qual
não teria qualquer participação. Nesse sentido, Valquíria se colocava quase como
uma espectadora, que receberia o filho, depois que ele fosse “tirado” de seu corpo.
Esta noção de passividade é a mesma implícita na expressão “ganhar
bebê” que, por sua vez, se contrapõe à idéia de pró-atividade associada à
expressão “trabalho de parto”. Nesse caso, sugere-se justamente um esforço por
parte da mulher com vistas a promover o nascimento do bebê. Com efeito,
naquele contexto essa expressão é algumas vezes substituída por “passar mal”, tal
como se apresenta no relato a seguir:
“Quando ela [a filha] começou a passar mal eu nem tava em casa. Eu deixei ela
em casa, fui na feira com a minha outra irmã e com a minha filha e quando ela
passou mal, que a irmã ligou, eles já tinham levado [para o hospital]. Porque
assim, se eu tivesse em casa eu tinha trago ela para aqui [na casa de parto]
primeiro, para eles verem, não é? Mas não, eles ficaram nervosos...” (mãe de
Taiane).
202
Não por acaso, “passar mal” remete à idéia de doença, ou seja, a algo que
acomete o sujeito e em relação ao qual não há muito a se fazer. Tal visão também
parece estar contida na expressão “pegar barriga”, usada por algumas para referirse à gravidez. Esta sugere que a mulher engravidou quase como por contágio, da
mesma forma que se “pega” uma gripe ou um resfriado, isto é, de maneira
involuntária – como, de fato, parece ocorrer naquele contexto, onde a gravidez na
maioria dos casos não é planejada.
Considerando o uso dessas expressões naquele contexto, e da própria
idéia, amplamente disseminada na sociedade, de que quem “faz” o parto é o
profissional de saúde, a percepção de que o parto, nos moldes em que é proposto
na CP, dependia exclusivamente das mulheres, merece destaque. O mais
interessante é que, ao que parece, esta visão, em parte construída a partir do que
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lhes foi apresentado durante as oficinas e consultas, foi confirmada com base no
que foi vivido e sentido com o corpo e no corpo durante a experiência de parto.
3.5.5.
Parto como passagem: a mulher “guerreira”
Ter superado a dor que – mesmo acompanhada de um complemento que a
atenue – é geralmente descrita como “horrível” e vivenciado o parto sem a
“ajuda” de medicamentos ou outros procedimentos de rotina, em muitos casos
(58%) leva a mulher a se perceber como uma pessoa forte e capaz de superar
qualquer desafio ou obstáculo.
“Hoje eu me sinto um mulherão. Um mulherão capaz de fazer tudo, de enfrentar
tudo e todos. (...) Hoje, assim, hoje parece que eu vou conseguir tudo, conquistar
tudo e eu vou conseguir. Vou conseguir sim. Eu enfrento tudo e é isso aí”.
(Joana)
“Na hora [do parto] eu estava me sentindo fraca, mas, depois... Pô, depois de
hoje, eu acho que sou forte, para aguentar o que eu aguentei...”. (Luciana)
“Quando saiu... Ah, minha filha, é como se saísse um vulcão de dentro de você. É
imediato. Eu falei: ‘Agora, eu aguento qualquer coisa!’”. (Marisa)
“Eu vi que eu tinha uma força dentro de mim que eu não calculava que era
grande assim, não. Graças a Deus eu vi que eu sou muito forte”. (Valquíria)
203
Como é possível notar pelos relatos, as mulheres muitas vezes se vêem
surpreendidas com uma força que dizem ter “encontrado dentro de si” pela
primeira vez – inclusive entre aquelas que já tiveram outros filhos. E essa força
parece ser não só física, mas também emocional e psíquica, isto é, a força que está
implícita na superação da adversidade, na resistência e no auto-controle. O parto
para essas pessoas aparentemente é vivido, tal como proposto no projeto da CP,
como uma experiência transformadora, que tem como marca a individualização
do sujeito. Pois ainda que em companhia da família e dos profissionais – que
estão ali não para “fazer” o parto, mas para “assisti-lo” –, elas vivem o parto de
maneira solitária, já que têm a percepção de que este depende exclusivamente de
sua performance. A experiência de solidão, incomum naquele contexto, possibilita
o encontro com uma mulher forte e corajosa, que elas desconheciam. Assim, é a
partir do ato de dar à luz que elas passam a se (re)conhecer e a ser vistas pelos
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demais como “guerreiras” – gíria comumente utilizada naquele contexto para se
referir às pessoas consideradas persistentes e fortes, capazes de superar desafios e
adversidades.
“[O meu namorado disse] ‘Você é uma guerreira!’ (Marisa)
“Eu fiquei muito orgulhoso [da minha mãe], porque ela foi muito guerreira
[inaudível] aquele tempo todinho com ela na barriga e sentindo essas dores...”
(Leonardo, 11 anos, filho Marisa)
“Eu pensava assim: ‘Poxa, eu sou muito nervosa’. E as pessoas falavam:
‘Valquíria, você é muito forte, você agüenta tanta coisa na vida’, ele [o marido]
falava, algumas pessoas falavam, pelo meu histórico de vida, assim, pelo que eu
já passei... Mas quando eu tive ele aqui aí o pessoal falou: ‘Pô, para ter lá na casa
de parto tem que ser mulher mesmo, tem que ser guerreira, hein?’”. (Valquíria)
“Ela tinha muita força e provou até o final. Doze horas de trabalho de parto. Ela
tem força e sabe disso. Com certeza isso deve influenciar as outras grávidas para
aquela questão da mulher ser frágil e tudo mais. Eu com certeza não ia agüentar
um negócio desses. Não ia mesmo! Doze horas? Tá brincando!” (Wiliam,
namorado Iara)
“Essa experiência mostrou que eu era capaz, não só para mim, mas para todo
mundo. Porque eu sou a primeira na família e acho que na rua [onde moro] a ter
um parto natural”. (Lara)
Os acompanhantes são, nesse sentido, testemunhas do desempenho da
parturiente, exposta a um rito de passagem, que implica em uma demonstração
individual de força, resistência e auto-controle. Os que estão presentes fazem a
204
notícia chegar aos demais, entre eles familiares e vizinhos, exibindo a capacidade
da mulher de dar à luz sem “ajuda” a todos os que dela duvidaram, como afirma
Lara. Já o comentário de Valquíria aponta que o revés do estigma que paira sobre
a casa de parto – onde os partos são como na “idade da pedra” – é que as
mulheres que dão à luz ali são automaticamente convertidas em “guerreiras”. A
“longa” duração do trabalho de parto aparece também como um critério para a
avaliação da força feminina, colocando por terra a imagem da mulher como o
sexo frágil, como afirma Wiliam.
De maneira geral, é possível dizer que o parto, nos termos em que é
proposto no contexto investigado, se apresenta como um rito de passagem que
tem como marca a individualização. Essa constatação contraria aquela feita por
Turner (1974) que, a partir da elaboração do conceito de communitas, estabeleceu
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o
estado
de
liminaridade
como
destituído
de
individualidade
e
compartimentalização, no qual a coletividade é posta em relevo.
Nesse aspecto, concorda-se com as observações feitas por DaMatta (1999)
de que o sentido atribuído a essa fase pode assumir diferentes conotações,
variando de sistema para sistema. Isto é, o estado de liminaridade deve ser
entendido como variável e contextual, não devendo ser, portanto, atribuído a
essências. Para DaMatta (1999), afirmar que a experiência de liminaridade
promove uma ênfase na dimensão relacional e coletiva da vida social é algo
pertinente apenas em sociedades nas quais a experiência diária é pautada pela
lógica oposta, isto é, por uma maior individualização, como é o caso da sociedade
norte-americana.
Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que a liminaridade varia de
acordo com o sistema acerca do qual se está promovendo um afastamento,
entendimento que, de fato, parece mais adequado para se compreender a
experiência das mulheres que dão à luz na CP. Como mencionado, o parto
“natural” representa para elas uma experiência de individualização, que não
costumam desfrutar no cotidiano, uma vez que estão inseridas em uma estrutura
familiar pautada por uma lógica relacional. Contudo, será essa mesma família que,
depois do parto, irá receber e compartilhar com essa mulher – convertida em
“guerreira” e mãe – os cuidados e responsabilidades com a criança.
205
O que ocorre, segundo DaMatta (1999), é que entre os sujeitos submetidos
ao ritual de passagem a experiência com a individualização é vivida como um
estado, não como uma condição central da condição humana. Nesse sentido, o
autor propõe que se tenha clara a distinção entre a “experiência da
individualidade”, isto é, aquela que implica em estar livre de obrigações sociais
imperativas e cotidianas, da idéia de “indivíduo”, enquanto instituição central e
normativa, fruto de uma construção ideológica do Ocidente. A percepção da
individualização como um estado, de acordo com DaMatta (1999), é determinante
para que a experiência de liminaridade seja vivenciada não como um momento de
ruptura, mas como fortalecimento da complementaridade em relação ao grupo de
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origem.
“A individualização dos noviços nos ritos de passagem não envereda pelo
estabelecimento de uma ruptura, por meio da ênfase extremada e radical em um
espaço interno ou em uma subjetividade paralela ou independente da
coletividade; antes, pelo contrário, essa individualização é inteiramente
complementar ao grupo. Trata-se de uma autonomia que não é definida como
separação radical, mas como solidão, ausência, sofrimento e isolamento que, por
isso mesmo, acaba promovendo um renovado encontro com a sociedade na forma
de uma triunfante interdependência quando, na fase final e mais básica do
processo ritual, os noviços retornam à aldeia para assumir novos papéis e
responsabilidades sociais” (DaMatta, 1999: 09).
Assim, o processo de individualização, diferentemente da construção
ocidental, não é percebido pela maioria das mulheres de camadas populares como
um “triunfo” da autonomia, mas como uma valorização do retorno ao grupo – no
caso, a família – com uma renovação do elo e do débito para com ele. Dessa
forma, é possível dizer que o projeto de construção de uma “nova mulher”, parte
de um processo mais amplo de “cidadanização” impulsionado pela CP, parece não
efetivar-se por completo, pois a experiência de “individualização” – primordial
para que o sujeito se perceba como um cidadão, portador de direitos e deveres
(Duarte et al. 1993) – é vivida pela maioria das parturientes como transitória, não
implicando em uma ruptura com os laços de parentesco, mas, ao contrário, em seu
reforço.
206
3.5.6.
Dívida de gratidão
Se, do ponto de vista da mulher, ao retornar para casa há uma valorização
do elo e da dívida para com a família, do ponto de vista do(a) filho(a) institui-se
uma espécie de dívida de gratidão em relação à mãe, isto é, um compromisso
moral pelo “esforço” e “sofrimento” a que esta foi submetida para “colocá-lo(a)
no mundo”. Esta dívida é honrada, segundo os relatos dos entrevistados que a ela
fizeram referência, “dando valor” à mãe, ou seja, dispensando-lhe um tratamento
“respeitoso” ao longo da vida.
No caso das mulheres que dão à luz, o parto de certa maneira representa
um momento de atualização dessa dívida, pois nessa hora elas se dão conta da
experiência pela qual passaram suas mães quando elas próprias nasceram. Noutras
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palavras, na relação entre mãe e filha, o parto possibilita uma identificação,
fazendo com que a parturiente se coloque no lugar da mãe e reconheça o
“sacrifício” feito por esta no momento em que lhe deu à luz. Essa identificação
promove, assim, uma reavaliação da relação entre ambas, na medida em que, “no
processo de tornar-se mãe, a jovem reflete sobre sua situação como filha”
(McCallum e Reis, 2006: 1487).
Mãe da Evelin: Ela sempre me deu valor, sabe? É uma filha que, graças a Deus,
nunca me deu trabalho e sempre, dentro do meu lar, me respeitou. Hoje, ela vai
me dar mais valor ainda, não é? Porque, hoje, ela é mãe. Então, ela sabe a dor de
botar um filho no mundo, não é? Porque muitos a mãe passa, bota um filho no
mundo e, hoje em dia, os filhos não respeitam a mãe. Hoje, ela tem essa
experiência do que é botar um filho no mundo.
Entrevistadora: E você concorda com o que ela disse? De dar mais valor à
sua mãe pelo fato de ter parido?
Evelin: Concordo. Eu tinha até falado disso com a minha sogra, eu sempre dei
valor à minha mãe e, hoje em dia, eu dou mais ainda. O sofrimento que é.
Entrevistadora: Quem estava te acompanhando [no parto]?
Jussara: Estava o meu esposo e a minha mãe.
Entrevistadora: E como é que foi a escolha dessas pessoas?
Jussara: Ah, são as duas pessoas mais importantes da minha vida, que contribuem
com a minha vida: a minha mãe, por ter me dado a vida, não é? Depois de Deus.
E o meu esposo, que faz parte desse momento todo especial, e não podia ficar de
fora.
207
No caso dos homens, a possibilidade de assistir ao parto como
acompanhante, em alguns casos, parece ter um efeito equivalente ao ato de dar à
luz para as mulheres, na medida em que lhes proporciona uma dimensão da
“dádiva” (Mauss, 2003) no passado recebida. Assistir ao “grande esforço” que a
parturiente faz para “colocar um filho no mundo” tem o potencial de gerar uma
valorização da esposa e da mãe, que deve se traduzir em “respeito” e até “ajuda”,
podendo levar o homem a assumir algumas tarefas que, até aquele momento, eram
consideradas de atribuição da mulher.
Valquíria: “Minha filha até falou, a primeira coisa que meu pai falou quando ele
chegou em casa (...): ‘Vocês tem que dar muito valor a mãe de vocês, vocês não
sabem o que uma mulher passa para colocar um filho no mundo’. [Miguel, seu
marido, ao fundo diz: É verdade, com certeza] Então, isso aí, eu acho que os
homens deveriam participar para ver realmente... porque é muito bonitinho você
pegar e dar o filho nos braços do pai, pegou, mas não viu nada. Ele era assim.
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Miguel: Não, é isso mesmo.
Valquíria: Eu acho até que ele ficou mais sensível, ficou diferente, ficou até mais
diferente assim de ajudar, porque ele viu o sofrimento, sofrimento assim entre
aspas, que a pessoa passa realmente para ter o filho. Não é aquilo de já chegou
com ele no braço: “Ah, chegou?”, todo mundo senta, “legal!”.
Miguel: É isso mesmo que a minha esposa falou. Eu conversei com ela, com as
minhas filhas, até comentei com a minha mãe, com as mulheres assim, que temos
que valorizar as mulheres, as nossas mães, as nossas esposas. Porque é um
esforço muito grande para colocar um filho no mundo e amanhã ou depois tu vê
os filhos respondendo às mães, respondendo os pais, muitas vezes a gente vê até
pelo noticiário filho batendo em mãe, até matando mãe, e o esforço que é feito
para colocar o filho no mundo é muito grande. Eu sou pai, mas tem que valorizar
muito mais a mãe. Eu falei com as minhas filhas e comentei também com a
minha mãe isso, temos que valorizar”.
Ainda que não exatamente nos termos em que propõe a CP, a experiência
de parto, vivida ou assistida, parece, de fato, poder surtir um efeito transformador:
1) seja para uma parcela das mulheres, que ganha em confiança e auto-estima,
ainda que isso não represente uma ruptura com os vínculos familiares, com os
quais deve contar para auxiliar na criação do recém-nascido; 2) seja para os
maridos/parceiros/namorados, que assistem suas mulheres em uma exibição de
força, auto-controle e resistência, alguns deles passando a valorizá-las e admirálas; 3) seja para as mães ou sogras, que vêem atualizada a dívida de gratidão que
seus descendentes têm para consigo.
4.
Curso de preparação para o parto na Zona Sul
Esse capítulo reúne a análise do material obtido principalmente durante a
pesquisa de campo em um curso de preparação para o parto “natural” e
“humanizado” na Zona Sul do Rio de Janeiro145, bem como a análise das
entrevistas realizadas junto a gestantes e puerperas provenientes de camadas
médias – em sua maioria frequentadoras do referido curso.
Na primeira parte do capítulo, o foco direciona-se à apresentação do curso
e de sua professora, uma doula e reconhecida ativista do movimento pela
“humanização” do parto e do nascimento no Brasil. Em seguida, é feita a
descrição e análise de uma “Aula de Parto”, que procura transmitir uma série de
conhecimentos, bem como prescrever ao casal determinados comportamentos e
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atitudes, que seriam vistos como necessários para o “sucesso” da proposta. O
curso de preparação, de maneira geral, também procura apresentar as
especificidades da forma de atuação do profissional “humanizado”, bem como
informar as gestantes sobre as intervenções médicas, seus usos e sentidos.
Na segunda parte, o foco é deslocado para as mulheres, apresentando
quem são elas e quais as suas motivações para dar à luz de forma “natural” e
“humanizada”. Em seguida, passa-se à questão da família conjugal e aos desafios
por ela enfrentados na tentativa de conciliar o “eu” e o “nós”. No que se refere ao
parto, do ponto de vista das mulheres que compõem esse grupo, as escolhas que o
envolvem parecem ser consideradas um momento em que a inflexão do “nós” se
faz necessária, considerando que a experiência de parto envolve diretamente seus
corpos. A relação com a mãe da gestante/parturiente e com a doula também será
objeto de atenção.
Por fim, passa-se especificamente à questão do parto, o que inclui
reflexões acerca dos significados atribuídos à dor nesse contexto e como ela é
vivida pelas mulheres de camadas médias entrevistadas, bem como ao lugar
assumido pelo corpo durante o trabalho de parto. Como será explorado ao fim
145
Em determinados momentos se fará referência ao outro grupo de apoio à gestação e ao parto na
Zona Sul que, como mencionado na Introdução, também tive oportunidade de assistir algumas de
suas reuniões.
209
desse capítulo, o parto “natural” e “humanizado”, assim como ocorre entre as
mulheres de camadas populares, se apresenta como um teste de força e resistência,
que converte as que o superam em “supermulheres”, mas, por outro lado, gera
grande frustração naquelas que não têm a mesma experiência – o que não se
observa entre aquelas provenientes de camadas populares.
4.1.
O curso
O instituto onde foi realizada essa parte da pesquisa de campo é um espaço
que integra, segundo classificação proposta por Magnani (2000) em estudo sobre
o fenômeno da Nova Era no Brasil, o denominado “circuito neo-esotérico”,
podendo ser definido como um “centro integrado”146. O local ocupa duas salas em
um prédio comercial na Zona Sul do Rio de Janeiro: em uma são desenvolvidos
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trabalhos direcionados a “Gestantes, mães e bebês”, conduzidos por Flora, que é
doula e ativista da ReHuNa, e na outra, trabalhos de “Terapias naturais e yoga”,
levados a cabo por Heitor, seu companheiro. É válido mencionar que Flora é uma
das principais representantes da chamada vertente “alternativa” da ReHuNa,
segundo a classificação proposta por Tornquist (2004), sendo reconhecida como
uma importante liderança do movimento.
As aulas de “yoga para gestantes” ministradas por ela e oferecidas duas
vezes por semana em vários horários, são o carro-chefe do instituto e tem como
foco a preparação para o parto “natural” e “humanizado”. As aulas têm 1h30 de
duração e são divididas em uma parte teórica (cujos temas são, alternadamente,
“preparação para o parto” e “cuidados com o recém-nascido”), que dura cerca de
30 minutos, e outra prática, com 1h de duração.
146
De acordo com Magnani (2000), os “centros integrados” “reúnem e organizam, num mesmo
espaço, vários serviços e atividades como consultas através de um dos diferentes sistemas
oraculares, terapias e técnicas corporais alternativas, palestras e cursos de formação, venda de
produtos, vivências coletivas. Não apresentam um corpo doutrinário fechado, mas apresentam suas
escolhas (no campo editorial, no leque de serviços que oferecem, na linha de produtos que
vendem) com base em uma corrente em particular ou em conjunto de discursos mais ou menos
sistematizado, podendo, contudo, combinar elementos de várias tendências filosóficas, religiosas e
esotéricas clássicas. Gerenciados em moldes empresariais – muitos deles são microempresas – tem
como base o trabalho de profissionais da casa, que geralmente são os proprietários, mas abrem
espaço para a atuação permanente ou esporádica para pessoal de fora” (Magnani, 2000: 30)
210
Ao fazer a matrícula nas aulas de yoga, as alunas devem agendar uma
“avaliação”, durante a qual é realizada uma longa e detalhada anamnese, que
inclui perguntas sobre hábitos alimentares, atividade física, doenças familiares,
estilo de vida, percepção sobre a gravidez, expectativas em relação ao parto, além
de informações sobre o feto. A aluna também é orientada a levar os exames de
ultra-sonografia, não apenas nesse primeiro encontro, mas ao longo de toda a
gestação e as informações são anotadas por Flora em uma espécie de
“prontuário”, sugerindo um acompanhamento quase médico da gestação por parte
da professora, que não tem formação na área. De fato, não é incomum que alunas
do curso que apresentem complicações durante a gestação a procurem buscando
orientação e dicas de tratamento147.
Com base nessa “avaliação”, Flora elabora uma série individualizada de
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posturas de yoga e exercícios respiratórios. Assim, embora a mulher compartilhe
o horário da aula com outras, cada uma segue uma série distinta, individual, o que
parece ir ao encontro da própria filosofia da “humanização”. Esta série vai
aumentando de tamanho e complexidade com o passar do tempo e, nas últimas
semanas de gestação, passa a incluir exercícios mais direcionados ao trabalho de
parto, em especial aqueles na posição de cócoras – considerada a ideal por muitos
ativistas, por tirar proveito da gravidade.
Em todas as aulas, a parte final é dedicada a uma espécie de mentalização
dirigida, em que a professora orienta as alunas a ficarem deitadas, de olhos
fechados: a cada inspiração, Flora recomenda que se absorvam energias positivas
e, a cada expiração, se coloque para fora medos e inseguranças, que não raro
acometem as mulheres durante a gravidez, como atesta o estudo de Rezende
(2009). Em seguida, Flora sugere que as gestantes imaginem seus “bebês” em
posição cefálica, com o dorso para o lado esquerdo (posição que, segundo ela,
seria considerada a ideal para o parto “natural”) e recomenda às futuras mães que
147
Eu mesma a procurei quando, ao final da gestação, o feto encontrava-se pélvico (ou “sentado”,
como costuma-se dizer) e meu médico, que era “humanizado” e sempre se mostrou esperançoso
quanto à possibilidade de ele mudar de posição, disse que, se isso não acontecesse, achava mais
prudente fazer uma cesárea. Flora me orientou a fazer algumas posturas invertidas da yoga, a
tomar um floral de Bach e marcamos algumas sessões de acupuntura, que tinham como objetivo
estimular o feto a virar. A minha sensação era de que o tratamento prescrito por ela era quase
“mágico”, mas aderi a ele com afinco, pois estava preocupada com a possibilidade de ter que fazer
uma cesárea. Meu maior incômodo com a cirurgia era não viver a experiência corporal sobre a
qual tantas e tantas vezes ouvira falar antes e durante a pesquisa.
211
conversem mentalmente com seus “filhos”, dizendo-lhes como desejam que sejam
seus partos. Por fim, pede que as alunas enviem vibrações positivas às grávidas do
grupo que se encontram com mais de 37 semanas de gestação, cujos nomes ficam
anotados em um quadro e são lidos em voz alta por ela148.
Além da yoga para gestantes, são eventualmente oferecidos cursos de
curta duração (aos sábados, de 8h às 13h), também ministrados por Flora e com
temas diversos, tais como: “Aula de Parto”, “Amamentação”, “Cuidados com o
bebê: com orientações caseiras e naturais” e “Shantala: massagem oriental para
bebês”. Esses cursos costumam ser freqüentados pelas alunas de yoga e por seus
parceiros, sendo a “Aula de Parto” o mais procurado deles.
Aproximadamente a cada 15 dias também são realizadas sessões de vídeos
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e palestras com profissionais “humanizados”, gratuitas e abertas ao público. As
palestras, que tem em média 2h de duração, ocorrem logo após a aula de yoga do
turno da noite – horário que eu costumava freqüentar – e em geral são bastante
concorridas. Delas participam principalmente as alunas do curso, de todas as
turmas, e seus maridos.
Os palestrantes convidados por Flora são majoritariamente médicos
obstetras e pediatras, que costumam falar sobre a forma de atuação do profissional
“humanizado”, em geral apresentada como individualizada e “respeitosa” para
com a mãe e o bebê. Flora eventualmente também ministra palestras sobre o papel
da doula no parto e sobre shantala (massagem oriental para bebês), alguns dos
serviços que oferece.
Ocasionalmente, as palestras são substituídas por relatos de casais que
passaram recentemente pela experiência de parto. O convite é feito através de uma
comunidade em uma rede social, da qual participam alunas e ex-alunas do
instituto, não havendo qualquer tipo de seleção. Aquelas que já deram à luz são
148
Na época, ter o nome incluído no quadro me deu um “frio na barriga”, pois de certa maneira
oficializava a proximidade do parto – momento que foi muito aguardado mas, ao mesmo tempo,
temido. Quando se tem o nome inserido na lista significa que você está entre as próximas da “fila”,
o que gera uma sensação talvez semelhante àquela vivida por alguém que está no avião
aguardando para saltar de pára-quedas. Isto é, houve toda uma preparação prévia para a
experiência, possivelmente até mesmo com o intuito de torná-la mais controlável, mas, em última
instância, o que a define é sua imprevisibilidade, como tantas vezes sugerido nas aulas de
preparação para o parto.
212
convidadas a retornar, preferencialmente acompanhadas de seus maridos e bebês,
para contar suas histórias de parto, independentemente de ter sido “normal”,
“natural” ou cesárea. Em média 3 ou 4 casais atendem ao chamado e contam em
detalhes suas experiências149, que são aguardadas com interesse pelas demais
alunas do curso.
Uma vez por ano, Flora ainda organiza, com a ajuda de voluntários –
muitos dos quais alunas, ex-alunas e seus maridos – um encontro intitulado
“Gestação e Parto Natural Conscientes”, do qual costumam participar ativistas e
profissionais “humanizados”, além de gestantes interessadas no tema. A primeira
edição do encontro ocorreu em 1979, antes mesmo da institucionalização do
movimento em favor da “humanização” do parto e do nascimento, mas, desde a
fundação da ReHuNa, em 1994, abrigou a 1a Plenária Nacional da Rede, o que
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tem se repetido até hoje, convertendo o encontro em um importante fórum de
discussão e ponto de encontro para os ativistas.
Segundo Tornquist (2004), a definição pela realização da plenária
juntamente com o “Encontro de Flora”, como costuma ser chamado entre os
membros da ReHuNa, resultou da dificuldade inicial da Rede em articular ações e
em promover a comunicação entre seus membros, que na época se dava
principalmente por meio de cartas. No final do ano de 1994, o grupo buscava
organizar um evento de grande abrangência, e, após algumas tentativas, todas elas
frustradas, Flora propôs que este acontecesse juntamente com o encontro que
organizava. A proposta foi aceita e, segundo Tornquist (2004), conferiu grande
prestígio à Flora e ao grupo “alternativo”, que era minoritário no contexto de
fundação da ReHuNa, mas exibia uma grande capacidade organizacional e de
articulação. De acordo com a autora,
149
Os “relatos de parto”, tanto orais quanto escritos, são uma prática bastante comum entre
mulheres que passaram pela experiência de parto “humanizado” e costumam ser “consumidos”
com avidez pelas gestantes que almejam vivenciá-lo, em especial através de sites e comunidades
na internet, como será visto ao longo desse capítulo. Eu mesma compareci, com meu marido e
nossa filha recém-nascida, para contar como fora o parto. Com efeito, recordo-me que o relato do
parto de Lia foi repetido diversas e diversas vezes logo após seu nascimento e nos meses
subseqüentes. No meu caso, pelo fato de estar fazendo uma pesquisa sobre o assunto, tive a
sensação de que a expectativa e curiosidade sobre o desfecho do parto parecia ser ainda maior.
213
“Esta coincidência ou este acaso teve desdobramentos decisivos no processo de
consolidação de uma identidade para a REHUNA (sic), que passou aos poucos a
articular duas matrizes discursivas, já presentes em Campinas [no ato de
fundação da rede]. Apesar de influenciadas pelo feminismo, as pessoas de ambas
as vertentes [biomédica e alternativa] eram vistas como muito diferentes pelos
próprios participantes” (2004: 166).
O contato com a vertente biomédica do movimento teria contribuído para
definir um formato acadêmico-científico aos encontros organizados por Flora –
hoje frequentemente realizados em universidades –, distanciando-se do estilo
hippie que, segundo Tornquist (2004), deram a tônica dos primeiros eventos, no
qual predominava a realização de oficinas, vivências e retiros naturalistas.
O espaço físico
As salas ocupadas pelo instituto contam com um hall de entrada, onde há
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uma porta para um banheiro e outra para o espaço mais amplo onde ocorrem as
aulas e palestras. No hall da sala usada por Flora e suas alunas, as paredes contam
com vários pôsteres: um deles apóia o consumo de alimentos orgânicos, outro
informa sobre o tempo de decomposição dos materiais, um terceiro denuncia o
uso de animais para testes nos laboratórios de uma empresa de cosméticos, e há
ainda o que incentiva o uso de fraldas de pano. É possível dizer que os pôsteres
expressam, em grande medida, o estilo de vida e as crenças de Flora, que não
necessariamente são compartilhados por todas as alunas, como será exposto
adiante. Fixados nas paredes do hall estão ainda alguns certificados e diplomas de
cursos realizados por Flora, bem como entrevistas com ela que saíram na
imprensa, reportagens sobre os benefícios da atuação da doula no parto, além de
quadros de deuses hindus, sugerindo a influência de crenças orientais.
Em uma estante de madeira em estilo oriental, Flora expõe os livros que
publicou sobre o tema: um sobre meditação para gestantes, outro sobre yoga para
gestantes, um terceiro sobre a atuação da doula no parto e o último, publicado
recentemente, tem o formato de uma agenda e deve ser preenchido pela mulher ao
longo da gravidez, narrando suas sensações e emoções. No livro constam ainda
informações diárias sobre o desenvolvimento do feto, as transformações corporais
pelas quais passam as mulheres durante a gestação e, é claro, sobre o trabalho de
parto e parto, tendo como foco o parto “natural” e “humanizado”. Os livros
encontram-se à venda e podem ser manuseados pelas alunas, que se sentam ali
214
para aguardarem o início da aula. Naquele ambiente, as gestantes normalmente
têm um contato mais direto e trocam informações sobre assuntos variados, que
costumam girar em torno do tema da gravidez e do parto. Foi ali que, algumas
vezes, entrei em contato com as mulheres que viria a entrevistar, sendo
geralmente bem recebida por elas, que costumavam manifestar grande interesse
em compartilhar suas motivações e a busca por elas empreendida para vivenciar
um parto “natural” e “humanizado”.
Na sala mais ampla, onde são realizadas as aulas de yoga e as palestras,
um revestimento branco e macio recobre o piso e diversas almofadas coloridas
ficam dispostas próximas às paredes, sugerindo uma atmosfera informal e
descontraída, muito semelhante à observada na sala onde são realizadas as
oficinas da casa de parto. O espaço é pequeno para o número de alunas,
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especialmente no horário da noite, que costuma ser o mais concorrido.
Logo que comecei a freqüentar as aulas, fiquei surpresa com a presença de
dois homens que faziam parte da turma, acompanhando as parceiras em suas
séries de yoga e dividindo o exíguo espaço da sala com as demais grávidas. A
presença deles em meio a tantas barrigas me remeteu de imediato ao fenômeno do
“casal grávido”, que serviu de base e pilar para o movimento pela “humanização”,
tendo sido “englobado”150 por ele. Nesse sentido, é possível dizer que a presença
do pai, não só no parto, mas em todas as etapas da gestação, costuma ser bastante
incentivada por Flora, que vivenciou o fenômeno do “casal grávido” no final dos
anos 1970 e início dos anos 1980 (Salem, 2007), como será exposto a seguir.
A trajetória de Flora
Nos anos 1970, depois de ter abandonado a faculdade de Comunicação
Social e um emprego público, Flora foi viver com seu companheiro em uma
comunidade hippie no bairro de Santa Teresa, onde ambos davam aulas de yoga e
ministravam cursos de terapias “naturais”. Muito envolvida com a prática oriental,
Flora começou a pesquisar sobre yoga para gestantes, vindo a desenvolver um
método com posturas que poderiam facilitar o parto. Quando engravidou, em
150
Inspirado em Louis Dumont, DaMatta afirma que “englobar” seria a “operação lógica na qual
um elemento é capaz de totalizar o outro em certas situações específicas” (1991:19).
215
1977, teve a oportunidade de colocá-lo em prática. Sendo sua “primeira cobaia”,
considerou que o método havia sido bem-sucedido, pois teve um parto que
classificou como “ótimo”, tendo em vista que foi praticamente indolor.
Na época, Flora deu à luz em casa, decisão que tomou depois de assistir à
intensa – e frustrada – saga de outra gestante da comunidade que pretendia ter um
“parto de cócoras”. Ela engravidara alguns meses antes de Flora e acabou tendo
um parto “normal” hospitalar, repleto de “intervenções”, segundo explicou a
doula. Pela prática de yoga e por ter amigos em comum, Flora conhecia o filho do
“pioneiro” Moises Paciornik, também médico, que esteve juntamente com o pai
entre os índios Kaigangue, no Sul do Brasil. Ela contou ter sido incentivada por
ele a dar à luz sem assistência médica: “Olha, as índias têm sozinhas lá na
floresta, para que você precisa de médico?”. Com o incentivo, o casal decidiu ter
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o bebê sozinho, mesmo sem contar com o apoio dos demais membros da
comunidade, que fizeram uma reunião para anunciar que se eximiam de qualquer
responsabilidade.
Cerca de um mês antes do nascimento da filha, um monge budista que
frequentava a casa onde Flora morava, que era aberta para meditação, soube da
intenção do casal de dar à luz sem assistência médica. Preocupado, o monge
passou a levar uma médica recém-formada para meditar ali, que aos poucos se
aproximou e perguntou se poderia estar presente no dia do parto. O casal
inicialmente rejeitou a oferta, mas depois, tendo maior contato com a jovem,
concordou com sua presença, desde que silenciosa e passiva.
Flora conta que quando a bolsa estourou, no nascer do sol de um dia de
verão, em 1978, já estava “tudo preparado”:
“No quarto da gente não tinha nada, tinha uma esteira no chão, lençol e uma
caixinha que a gente tinha reservado todo o material que precisava, tudo
bonitinho e arrumadinho. No quarto não tinha nada, só isso. Para dizer que não
tinha nada, tinha uma comadre. Eu acocorei em cima da comadre”.
A médica, que chegou quando o trabalho de parto já estava avançado, teve
sua atuação limitada pelo casal. Na única hora em que se pronunciou – quando o
bebê estava coroando, avisou que aquele seria o momento indicado para fazer
uma episiotomia – foi interrompida pelo companheiro de Flora: “Não vai
216
precisar”, sentenciou ele. Depois do nascimento do bebê, a médica pinçou o
cordão e fez uma sutura em Flora, que se negou a tomar anestesia e ainda hoje
questiona a necessidade dos pontos, por considerar que praticamente não houve
ruptura do períneo. Após a experiência, o casal perdeu o contato com a médica.
“Acho que ela ficou muito traumatizada, porque não continuou a freqüentar a
casa”, comentou Flora, sorrindo.
Depois dessa experiência, o caminho para tornar-se “acompanhante de
parto”, como então definia a hoje doula, foi “natural”. Ela passou a dar aulas de
yoga para gestantes e, apesar da dificuldade de acesso ao bairro de Santa Teresa e
da divulgação se limitar ao boca-a-boca, as alunas vinham de diferentes regiões da
cidade. Flora montou grupos de gestante e se deu conta de que “não tinha
escapatória, o negócio tinha que fluir para esse lado”, sugerindo tratar-se de
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vocação e não propriamente de uma escolha. Devido ao convívio durante toda a
gravidez, as alunas começaram a perguntar se ela não poderia estar presente
também durante o trabalho de parto. Foi assim que deu início às atividades que,
mais tarde, passaram a ser – nacional e internacionalmente – identificadas como
sendo de atribuição das doulas.
A partir dessa breve descrição sobre a trajetória de Flora, na qual suas
experiências pessoais e profissionais estão diretamente imbricadas, gostaria de
destacar alguns aspectos.
Um deles é como o relato de seu parto enfatiza o lugar central assumido
pelo casal no parto, possivelmente um dos primeiros representantes do fenômeno
do “casal grávido” que, segundo Salem (2007), data do início dos anos 1980 e
previa a participação do pai na gravidez e no parto, assuntos que até aquele
momento eram restritos ao universo feminino.
Como conseqüência da ingerência do casal sobre o parto, a médica,
segundo o relato de Flora, claramente assume um lugar secundário na cena, sendo
sua presença, descrita como coadjuvante e passiva, fruto de uma escolha
deliberada do casal. Nesse sentido, é possível dizer que, da forma como é narrado,
o parto de Flora dramatiza uma contestação veemente ao poder médico e, em
217
última instância, promove uma inversão de papéis na relação hierárquica entre
médico e paciente.
A inspiração de Flora e Heitor teria vindo do Oriente, por influência das
obras de Leboyer e da prática de yoga, mas também de povos indígenas, cujas
experiências de parturição, descritas por Paciornik (1979) a partir do contato com
membros da etnia Kaigangue no Sul do país, atestariam o poder da fisiologia, isto
é, da biologia e da natureza, sobre a tecnologia e a cultura. Nesse sentido, os
povos “tradicionais” despontariam como importantes referências, pelo convívio
considerado harmonioso com a natureza e pela “simplicidade” que marcariam o
estilo de vida de seus integrantes, em oposição à “tecnologização” das sociedades
ocidentais contemporâneas.
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A opção pela “simplicidade”, de fato, parece ter sido uma marca do parto
de Flora, que deu à luz em um cenário quase espartano. Se na modernidade o
consumo é a tônica, Flora e seu marido, como legítimos representantes de uma
geração que questionava esses valores, fez a opção pelo “mínimo” necessário,
como uma espécie de fastio diante do excesso, que se manifestou não só na recusa
às intervenções, mas também no que se refere à infra-estrutura montada para o
parto.
Por outro lado, o depoimento de Flora sugere que para dar à luz com
“simplicidade” requer um preparo. Nesse sentido, o casal havia se informado151 e
estava inclusive sendo instruído à distância por um obstetra, o que significa que a
experiência não representou uma ruptura com o saber médico, considerando que
foi um de seus representantes quem justamente a teria avalizado.
Como será possível notar, muitos dos preceitos que nortearam a
experiência pessoal de parturição de Flora – como o da igualdade e da
antinormatividade152 – estão presentes no trabalho que ela veio a desenvolver no
curso de preparação para o parto e, por sua vez, também no discurso das
mulheres. O que sugere que, como uma via de mão dupla, através das aulas as
151
Prova disso está no domínio do termo técnico “episiotomia” e no conhecimento sobre a
finalidade do procedimento, o que possibilitou inclusive rejeitá-lo.
152
Preceitos que, de maneira geral, estavam presentes no fenômeno do “casal grávido”, estudado
por Salem (2007) nos anos 1980.
218
gestantes se identificam com a proposta, ao mesmo tempo em que são
conformadas por ela (Salem, 2007).
O enfoque
As mulheres entram no curso ao longo de todo ano, em momentos
variados da gestação e, por meio das aulas e palestras, logo tomam contato com a
discussão em torno do uso abusivo de tecnologias médicas no processo de
parturição. A crítica feita por Flora e pelos profissionais de saúde que freqüentam
o instituto incide não apenas sobre a cesárea, que seria o paradigma desse modelo,
mas sobre o próprio parto “normal” tal qual realizado nas maternidades
brasileiras, isto é, de forma medicalizada e padronizada. Ambos são interpretados
como manifestações do poder médico sobre o corpo feminino, que seria
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naturalmente apto e capaz de dar à luz sem a necessidade de intervenções.
Os médicos conveniados aos planos de saúde costumam ser os mais
criticados, sendo frequentemente acusados de terem submetido o parto a uma
lógica comercial e impessoal. De forma um tanto explícita, mas muitas vezes não
percebida pelas gestantes, o parto “humanizado”, tal qual apresentado nas aulas de
preparação, é associado a posicionamentos feministas, apresentando-se como uma
reivindicação e uma defesa dos direitos das mulheres, e também das crianças, na
assistência ao nascimento. Da mesma forma, também opera como pano de fundo a
idéia de direitos do consumidor, buscando enfatizar o poder de escolha da
parturiente nas decisões relativas ao parto, adotando como premissa a equidade na
relação médico-paciente. “Vocês estão pagando, o parto é de vocês!”, costumava
enfatizar Flora.
4.1.2.
(In)formando
Ao longo das aulas teóricas, o curso de preparação para o parto busca
instrumentalizar as gestantes para o que seria o exercício de seus direitos e dos da
criança que está por nascer, o que passa pela transmissão de informações
detalhadas sobre procedimentos e práticas médicas. O objetivo é que a mulher
tome conhecimento da proposta de parto “natural” e “humanizado” e se torne apta
a negociar com o profissional de saúde os rumos do parto, bem como os cuidados
219
que serão dispensados ao recém-nascido em suas primeiras horas de vida –
cenário bastante diverso daquele observado nos grupos educativos da casa de
parto.
Como se verá adiante, para algumas alunas as aulas do curso as colocam
em contato pela primeira vez com a proposta de parto “natural” “humanizado”,
enquanto para outras vêm a reforçar e legitimar uma busca individual, que na
maioria das vezes teve início através da Internet. Para todas, porém, é possível
dizer que as aulas, somadas às leituras de obras especializadas e à assistência a
uma série de vídeos, compõem uma espécie de “pedagogia do parto”, como
sugerira Tornquist (2004).
Nesse sentido, ainda que sejam constantes as referências à fisiologia, aos
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instintos e à natureza feminina, é possível notar a importância atribuída a um
aprendizado emocional e corporal para o parto. A transmissão orientada dessas
técnicas corporais, nos termos em que propõe Mauss (2003), faz-se necessária
uma vez que estas não compõem “o repertório da socialização espontânea ou
informal das mulheres”, como o afirma Tornquist (2004: 136).
A seguir passarei à descrição de uma Aula de Parto, que fiz quando estava
no final da gravidez, com o intuito de preparar-me para o parto e também de
colher material para a pesquisa. A Aula de Parto é indicada para mulheres que se
encontram no final da gestação – entre 28 e 34 semanas – e contempla alguns dos
assuntos abordados nas aulas teóricas ministradas ao longo do curso.
Aula de parto
Eu e meu marido colocamos o despertador e acordamos cedo naquele
ensolarado sábado de abril. Já estava com 37 semanas de gestação e, finalmente,
iria fazer a Aula de Parto. No início da pesquisa havia indagado Flora sobre a
possibilidade de assisti-la, mas na ocasião, ainda hesitante em relação ao estudo,
ela se mostrara reticente. Apesar de fisicamente cansada, eu estava animada e
curiosa para fazer o curso. Prestes a dar à luz, posso dizer que naquele momento o
interesse pessoal se sobrepunha ao da pesquisa. Naquele sábado, que caiu em um
220
feriado, poucas pessoas participaram da aula: éramos três casais e uma gestante,
cujo marido estava no exterior e chegaria perto da data prevista para o parto.
Flora iniciou a aula com a exibição do filme “Sagrado”, feito por um
médico “humanizado” do Espírito Santo e que exibe dois partos acompanhados
por ele em um hospital. No filme, que é em preto e branco e parece ser dos anos
1980, as mulheres, com um semblante tranqüilo e sem demonstrar sentir dor, dão
à luz, acompanhadas de seus parceiros, de cócoras. As imagens são frontais e
mostram a dilatação da vagina no momento da saída do bebê, o que na ocasião
gerou desconforto para um dos casais, que, supus, não fazia aulas no instituto.
Em seguida, Flora falou sobre as recomendações da Organização Mundial
da Saúde para o parto “normal”, acrescentando que, como “clientes”, tínhamos
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que reivindicar para que essas práticas fossem respeitadas. Repetindo uma
informação já transmitida em outras aulas do curso de preparação para o parto, ela
afirmou que para o “parto fluir” era necessário haver liberdade, respeito e
privacidade: “Não avise todo mundo quando entrar em trabalho de parto, deixe a
televisão desligada, fique em um clima introspectivo, na ‘sua’, na penumbra, com
uma música gostosa”, disse, acrescentando que “melhor é musica instrumental,
para não evocar memórias, lembranças”.
Flora alertou ainda sobre os principais “sinais” emitidos pelo corpo
quando do início do trabalho de parto: saída do tampão mucoso, contrações,
ruptura da bolsa de águas (“observem o líquido quando estourar: deve parecer
com água de coco e ter cheiro de água sanitária” e ainda: “se estourou a bolsa e
não teve contração, é preciso caminhar”), além de possíveis “sinais secundários”,
como enjôo e diarréia. “É o corpo se limpando, se preparando. Não se assustem, o
trabalho de parto tem sangue, líquidos, muitas mulheres evacuam, faz parte”. A
mesma gestante que se surpreendera com as imagens do parto no filme manifestou
incômodo com essa possibilidade e foi tranqüilizada pela professora: “Você não
vai nem perceber!”, acrescentando que deveríamos nos desconectar do que
estivesse acontecendo ao redor.
Segundo Flora, “a pessoa tem que se entregar no trabalho de parto”. Mas a
“entrega”, de acordo com suas instruções, era antecedida de uma grande
221
preparação, o que a levou a dedicar boa parte da aula transmitindo tais
conhecimentos. Um exemplo foi a informação, transmitida em detalhes, do que
deveríamos levar para a maternidade: guia de internação impressa, cópia do plano
de parto, aparelho de som, câmera de fotos, bolsa de água quente para colocar nas
costas durante o trajeto, além de alimentos energéticos, como mel, chocolate e
barra de cereal. “Deixem tudo preparado antes, para depois não precisar pensar
em coisas funcionais”.
Claramente inspirada nas teorias de Michel Odent, a professora afirmou
que na fase final do trabalho de parto agiríamos com a parte “primitiva” do
cérebro: “A mulher vira bicho”, afirmou, acrescentando que “isso é ótimo” e deve
ser incentivado pelos que estão ao redor, evitando falar ou dirigir-lhe a palavra.
“[A mulher em trabalho de parto] Não tem censura. Não fiquem chateados, nem
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levem nada para o lado pessoal”, orientou os parceiros, dando exemplos de
situações em que, nós, como parturientes, poderíamos demonstrar agressividade
ou sermos grosseiras.
Apesar de advertir que o trabalho de parto é extremamente variável, Flora
desenhou uma elaborada tabela no quadro, com uma estimativa dos intervalos e
do tempo de duração das contrações. O trabalho de parto, seguindo uma estrutura
que costuma servir de parâmetro para a prática médica, foi dividido em diferentes
etapas e fases: a primeira foi definida como “fase latente”, quando as contrações
ocorreriam de modo regular, porém com um grande intervalo entre elas. Em
seguida, haveria a chamada “fase ativa”, quando o intervalo entre as contrações
seria menor (de 5 a 3 minutos) e estas durariam por mais tempo. A última parte da
“fase ativa” corresponderia ao “período de transição”, quando as contrações
seriam ainda mais intensas e o intervalo entre elas mais reduzido. Este período
assinalaria a transição para a segunda etapa do trabalho de parto, ocasião em que o
colo do útero estaria completamente dilatado e teria início o chamado “período
expulsivo”, que se concluiria com o nascimento do bebê.
Se no início do trabalho de parto, a orientação de Flora era para que
tentássemos relaxar e dormir para que estivéssemos descansadas para a “fase
ativa” do processo, conforme o intervalo entre as contrações fosse reduzindo,
Flora recomendou a realização de exercícios respiratórios e físicos, não sem antes
222
reconhecer que “espontaneamente a mulher já começa a fazer posturas e
posições”. Depois, resumiu: “contração é trabalho”, sugerindo que nossa atuação
seria fundamental para favorecer o trabalho de parto. Para auxiliar, propôs ainda o
uso de chás (de gengibre ou canela em pau “bem concentrados”) e massagem,
estimulando certos pontos de Do-in153. “No intervalo entre as contrações, vocês
devem relaxar”, orientou.
Na descrição de Flora, o momento inicial do trabalho de parto deveria ser
passado em casa e vivido idealmente apenas pelo casal (“não avisem a família”,
recomendou mais de uma vez). Para ela, a família de origem poderia prejudicar,
pois desconcentraria, tiraria a privacidade e, diante da dor, tenderia a transformar
a parturiente em “vítima” – o que sugere o predomínio de uma visão
psicologizada. “A dor é amiga, é legal: tem que agradecer a contração, é
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necessária para o trabalho de parto. Você tem que estar sempre acima da dor, não
pode deixar ela te pegar”, disse, sugerindo-nos encarar a dor de forma positiva.
No entanto, para os casos em que o limiar individual fosse muito baixo,
reconheceu a analgesia como uma possibilidade. “Mesmo com o trabalho
psicológico de aceitação da dor, algumas precisam da analgesia para relaxar”. A
professora enfatizou, contudo, a diferença entre anestesia e analgesia: enquanto a
primeira se traduziria por uma grande dose do medicamento, que tiraria toda a
sensibilidade e impediria os movimentos, a segunda seria administrada em
pequena quantidade, o que não inviabilizaria a mobilidade durante o trabalho de
parto, isto é, não tiraria o controle sobre o corpo, possibilitando que se
continuasse “ativa no parto”.
Em casa, sem a presença da família ou de profissionais, o marido, segundo
esse script, assumiria um papel central, devendo-se encarregar de funções bastante
claras (“O marido a gente bota para trabalhar para não ficar muito nervoso”,
brincou). A primeira seria anotar as contrações, isto é, assumir uma atividade que
exigiria uma racionalização do processo, para que a parturiente, liberada dessa
função, pudesse manter-se introspectiva e relaxada, permitindo-lhe ir para a
“partolândia”, espécie de transe ou “estado alterado de consciência”, que a mulher
153
Técnica oriental de massagem.
223
poderia atingir durante o trabalho de parto154. Caberia ao parceiro também
massagear a mulher no momento das contrações e, ainda, fazer a interface com os
profissionais (médico e, nos casos em que tiver sido contratada, também a doula)
pelo telefone, quando julgasse necessário. Das informações transmitidas por ele
sobre o desenrolar do trabalho de parto dependeria a identificação do momento
ideal para a ida à maternidade155 – assunto que, pude notar ao longo das aulas,
costuma gerar grande insegurança nas gestantes156. No “roteiro” que nos foi
apresentado, este momento foi localizado de maneira precisa: quando as
contrações estivessem em intervalos de 5 minutos (para quem mora mais longe do
hospital) ou 3 minutos (para quem mora mais perto) e duração de
aproximadamente 1 minuto. A professora nos recomendou que a ida à
maternidade fosse retardada, pois o ambiente doméstico seria o mais adequado
para o “bom andamento do trabalho de parto”, devido à privacidade e liberdade
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que oferece à mulher.
Já na maternidade, que segundo alertou Flora tem a estrutura montada para
receber mulheres que vão dar à luz por meio de cesarianas previamente agendadas
(“Segunda-feira é o pior dia, porque os pais querem emendar os cinco dias da
licença com o fim de semana”, advertiu), arrumar um quarto seria quase uma
“batalha”. Como estratégia, ela nos orientou a fazer posturas e exercícios na
recepção: “Simule um pouco mais do que você sentindo”. Depois de
“conquistado” o quarto, sua recomendação era de que tentássemos criar o mesmo
clima que havia sido construído em casa: com música e penumbra, para que o
ambiente novamente favorecesse a introspecção e a “entrega”.
No hospital, de acordo com a professora, a maior fonte de perturbação
seriam os profissionais que lá trabalham, especialmente representados pela figura
da técnica de enfermagem, que “entra e sai quando quiser”, interferindo na
154
O assunto será retomado e explorado ao longo do capítulo.
Como se verá adiante, o público que freqüenta o curso é, em sua maioria, composto por
mulheres que dão à luz na maternidade, havendo algumas poucas exceções que fazem a opção pelo
parto domiciliar. É possível que isso ocorra pelo fato de que há uma equipe de enfermagem
obstétrica que atualmente assiste a maioria dos partos domiciliares na cidade e também oferece
esse tipo de preparação.
156
Uma das entrevistadas lamentou muito ter “errado” esse timing no parto do segundo filho e ido
para a maternidade quando já estava no período expulsivo. O bebê quase nasceu no táxi, o que
gerou um estresse muito grande para ela e para o marido. O atraso na saída de casa ocorreu,
segundo ela, porque queria “curtir” o trabalho de parto com o primeiro filho, que não iria para a
maternidade.
155
224
privacidade da paciente. Além disso, esta profissional também se colocaria como
uma espécie de “guardiã” dos protocolos da maternidade e, nesse caso, caberia ao
médico nos “proteger”: “O obstetra tem que avisá-la [a técnica de enfermagem]
para não fazer isso [entrar e sair da sala de parto]. Também tem que avisar que a
mulher pode beber água, senão ela confisca o copo”, afirmou, elencando ainda
outros protocolos do hospital que iriam de encontro à proposta de parto “natural e
“humanizado”. Dentre eles, estaria a obrigatoriedade da mulher ser transferida
deitada de maca do quarto para a sala de parto, colocando-se em uma situação que
remeteria à passividade e doença, bem como a de usar o avental do hospital,
necessariamente despindo-se de suas roupas e acessórios, o que representaria a
perda de sua individualidade. “Quer ir andando [para a sala de parto]? Quer beber
água? Quer ficar de calcinha e sutiã? Diga a eles: o meu médico disse que eu
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posso!”, orientou Flora.
Para o período expulsivo, suas recomendações tiveram como foco
principalmente a atividade corporal, orientando-nos sobre técnicas de respiração,
que deveriam ser combinadas a um pontual e preciso uso da força: “No período
expulsivo, respira comprido, longo e segura a respiração”; “Levanta o queixo para
inspirar, abaixa o queixo e segura bastante”; “A força, quando o corpo pedir para
fazer, não deve ficar no rosto, deve ir lá para baixo”; “Quando estiver coroando,
inspira muito, sopra longo e grita”, detalhou Flora.
***
Ao analisar as instruções transmitidas por Flora ao longo dessa aula, uma
espécie de “guia prático” para o parto “humanizado”, foi possível observar
algumas supostas tensões, como aquela entre natureza e cultura; inato e adquirido;
descontrole e controle157. Assim, ao mesmo tempo em que a aula se propunha a
informar, de maneira minuciosa, como o casal deveria se comportar e agir, por
outro lado destacava a importância da “entrega”, de se “deixar o processo
acontecer”, da observação de que “espontaneamente” se buscariam posições
157
Como Salem, gostaria de destacar que o fato de ressaltar essas tensões “não deve ser
confundido com o intuito de denunciar contradições entre representações, ou entre estas e sua
atualização prática, como se elas comprometessem o ideário. Se do prisma dos atores envolvidos,
tensões, ambigüidades, contradições e paradoxos podem ser identificados como incoerências
embaraçosas, considero tais qualidades como endêmicas ao social” (2007: 98).
225
favoráveis ao trabalho de parto e parto. Da mesma forma, assim como o trabalho
de parto foi definido como particular e idiossincrático, esquemas e gráficos
sugeriam uma padronização, o que, de certa maneira, parecia atender a uma
demanda das gestantes, trazendo uma sensação de previsibilidade e controle,
aspectos aparentemente muito valorizados entre as mulheres que optam por fazer
cesáreas eletivas, mas que não estão ausentes entre as gestantes do grupo. Nesse
sentido, a aula contribuiu para “construir” e “elaborar” o trabalho de parto e parto,
dando-lhe concretude, ainda que de um ponto de vista ideal e necessariamente
limitado.
Sendo o parto um “ato tradicional eficaz” (Mauss, 2003), cuja técnica
precisa ser transmitida, o curso procurou apresentar às mulheres uma série de
conhecimentos direcionados à proposta de parto “natural” e “humanizado”158.
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Tais instruções tinham como objetivo promover um preparo não apenas físico,
mas também emocional, além de orientar as gestantes sobre quem deveria ou não
participar do evento. Dois exemplos, citados pela professora ao longo das aulas
teóricas – no curso mais extenso de preparação para o parto –, foram bastante
ilustrativos.
O primeiro foi o de uma mulher que, grávida do primeiro filho, entrou em
contato com Flora já no final da gestação, sem ter feito qualquer tipo de
preparação para o parto. Na avaliação da professora, desde o início do trabalho de
parto as condições já não eram favoráveis: a mulher estava na casa dos pais, que
não entendiam porquê ela deveria ficar ali, em vez de ir para o hospital, acusando
o médico de “querer dormir”. Já na maternidade, mas ainda com poucos
centímetros de dilatação, a parturiente estava “descompensada” e “descontrolada”,
o que Flora atribuiu à sua falta de preparação. A parturiente acabou tomando
analgesia o que, avaliou a doula, no caso dela revelou-se um recurso necessário,
caso contrário o desfecho teria sido uma cesariana. “O preparo é muito importante
(...), você tem que estar com domínio sobre seu corpo, tem que estar nas rédeas:
deixar a coisa fluir e deixar o fisiológico acontecer”.
158
Como bem observou Mauss (2003): “Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos
animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral” (2003:
407).
226
O segundo exemplo foi o de uma estrangeira que já tinha dado à luz ao
primeiro filho em um parto “natural” e “humanizado”, mas apesar do preparo
emocional, estava com sobrepeso e não tinha feito qualquer atividade física
naquela gestação. Na hora do parto, com quase 100kg, ela teve dificuldades para
fazer exercícios e posturas. Segundo Flora, essa mulher era muito determinada e
tinha o preparo psicológico, mas “o corpo não acompanhava o que ela queria”.
Tratados como duas instâncias, corpo e mente precisam ser igualmente
preparados e treinados para o processo de parturição. Nesse sentido, a preparação
sugere a construção de um corpo, alvo de controles e cuidados, que deve ser ativo,
trabalhado e produzido para, de maneira eficaz, atender aos comandos da mente, o
que pressupõe uma atenção particular à alimentação e ao ganho de peso na
gestação – o que também ocorre na casa de parto. Do ponto de vista emocional,
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predomina o entendimento de que, durante uma parte considerável do trabalho de
parto, o auto-controle e a auto-contenção159 seriam as formas adequadas para se
lidar com a dor.
No entanto, quando as contrações tornam-se mais freqüentes e intensas –
momento que se convencionou chamar de “período de transição” –, a expectativa
é de que a parturiente entre em um “estado alterado de consciência” e se
“entregue” aos comandos de seu corpo. Essa “entrega” também é alvo de
instruções durante as aulas, através da recomendação de que a parturiente busque
a introspecção, mantenha-se na penumbra e concentre-se em suas sensações
corporais. Daí a orientação para que se evitem músicas que evoquem memórias ou
recordações, que poderiam tirar a atenção da mulher sobre seu corpo.
Ainda que gere certo estranhamento ao leitor, é possível associar as
orientações transmitidas na “Aula de Parto”, no que se refere à necessidade de
159
Durante a gestação peguei-me algumas vezes observando com maior atenção a forma como eu
reagia à dor e, de alguma maneira, encarava as situações variadas em que porventura a sentia como
pequenos testes para avaliar meu comportamento e minha capacidade de suportar a sensação de
desconforto por ela provocada. Diria que meu principal teste foi uma sessão de “moxa”, uma
espécie de acupuntura térmica, feita pela combustão de uma erva que, quando seca e triturada,
assume a forma de um cone e é colocada diretamente sobre a pele – no caso os dedos mindinhos
de meus pés. Por orientação de Flora, recorri à técnica para tentar estimular a virada do feto, que
encontrava-se pélvico, para posição cefálica. Na ocasião, ela, que foi quem fez a aplicação, me
orientou a dizer quando estivesse doendo, para que tirasse a erva em chamas de meus pés. Mas eu
buscava suportar o máximo de tempo possível, para avaliar minha capacidade de suportar a dor,
como uma espécie de preparação para lidar com a dor do parto, que então desconhecia.
227
uma preparação minuciosa e a aquisição de certas habilidades, bem como à ideia
de uma posterior “entrega”, com as experiências que acompanham o consumo de
drogas, analisadas por Almeida e Eugênio (2004), Becker (2008) Viana Vargas
(2002), Perlongher (1991) e outros.
Em estudo sobre consumo de ecstasy entre jovens no Rio de Janeiro,
Almeida e Eugênio (2004) apontam como esta experiência é mediada pelo cálculo
e pelo pragmatismo que caracterizam nosso espírito de época. Nesse sentido,
argumentam, trata-se de “uma entrega calculada e pontuada de cuidados” (2004:
07), que sugere um gerenciamento de si. O aproveitamento da experiência
desencadeada pelo consumo da substância, afirmam as autoras, depende da
aquisição de uma série de habilidades. Dentre os saberes exigidos, destaca-se a
construção de um cenário adequado, que inclui a “ambiência”, pensada para
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estimular os sentidos aflorados, assim como a seleção cuidadosa de um grupo de
pessoas, que deve prover o sujeito de uma “película de segurança” e cujo
comportamento deve ser contagiante. No rol de habilidades exigidas, está previsto
ainda saber detectar o momento ideal para ingerir o comprimido; ter controle
emocional para aguardar o intervalo entre o consumo da substância e o início da
“onda”; e, quando sob efeito da droga, saber gerenciar o corpo, desfrutando do
que ela promove, mas também descansando vez por outra.
No caso do parto, segundo as orientações transmitidas, a “entrega” e
entrada na “partolândia” também pressupõem uma série de competências, que
implicam em uma fiscalização e perícia do corpo e das emoções. O início do
trabalho de parto, nesse sentido, deve ser um momento de descanso, para que haja
uma otimização das potencialidades físicas, uma vez que a parturiente será muito
exigida na fase final do trabalho de parto e, portanto, deve poupar-se. O desafio,
relatado por algumas das mulheres etnografadas, é controlar a ansiedade, uma vez
que entre as primeiras contrações e a chamada “fase ativa” do trabalho de parto
pode haver um longo intervalo, momento em que a parturiente é orientada a
descansar e, se possível, dormir – o que lhe exige um grande controle emocional,
semelhante à “abstração” recomendável aos consumidores da droga.
Mesmo na “fase ativa” do trabalho de parto, uma economia do corpo deve
ser administrada, com o intuito de garantir que, ao final do processo, a mulher
228
tenha forças para expulsar o feto. Assim, os exercícios e posições realizados no
momento das contrações, que visam a favorecer a descida do feto, devem ser
intercalados com breves períodos de relaxamento. Nesse sentido, deve haver uma
oscilação entre atividade e descanso, que implica em um gerenciamento do corpo.
A identificação do momento ideal para a ida à maternidade também é
considerada crucial. Ainda que o ambiente doméstico seja considerado o mais
adequado para o trabalho de parto, se a mulher pretende dar à luz na maternidade
ela não deve chegar no período expulsivo, pois precisa ter tempo hábil para
construir o “cenário” ideal na maternidade, que inclui não apenas a ambiência
(música, penumbra e silêncio, que favoreceriam a introspecção e potencializariam
as sensações corporais), mas também a presença da equipe. Com efeito, os
especialistas “humanizados” assumiriam a função de assegurar uma proteção, mas
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sem interferir no processo de “entrega”. Da mesma forma, caberia a eles
transmitir apoio, incentivo e tranqüilidade, possibilitando à parturiente desfrutar
do processo que sucede a preparação e o cálculo.
No entanto, uma diferença importante deve ser mencionada. Enquanto os
consumidores de ecstasy buscam encontrar um equilíbrio entre as demandas de
prazer e intensividade, por um lado, e a manutenção dos valores da ordem da
extensão – como saúde e longevidade –, por outro, no caso da prometida
experiência proporcionada pelo parto “natural” extensividade e intensividade
(Viana Vargas, 2002) não se opõem. Pelo contrário, se somam.
A idéia é que quando a fisiologia do parto é respeitada, impõe-se uma
“alteração no nível de consciência”, que potencialmente promoveria uma
experiência intensa e prazerosa à parturiente, sem os possíveis danos associados
às práticas mediadas por substâncias sintéticas. Segundo essa visão, as sensações
proporcionadas pelas drogas (ilícitas ou lícitas, como no caso dos medicamentos)
podem ser plena e eficazmente substituídas pelas sensações desencadeadas pelo
corpo-em-trabalho-de-parto, por meio da liberação de hormônios que são
associados às sensações de prazer e satisfação, como seria o caso da ocitocina.
Nesse sentido, uma entrevistada chegou a dizer que o parto é “viciante” e, mais de
uma vez, ouvi comentários de mulheres que afirmavam que gostariam de passar
novamente pela experiência de parto, ainda que não desejassem ter mais filhos.
229
Outro ponto que parece interessante destacar no que se refere à aquisição
de habilidades é que, desta forma, o casal se qualifica para assumir o controle
sobre uma parte do processo, o que está em sintonia com a premissa de que o
trabalho de parto idealmente deve transcorrer sem a necessidade de intervenções.
Munidos de informações detalhadas sobre a fisiologia do parto e instruídos, cada
um, para suas funções específicas, a mulher e seu parceiro convertem-se em
sujeitos autônomos e também eles responsáveis pelo processo. Nesse sentido, na
medida em que, por exemplo, estão aptos a monitorar o intervalo e a duração das
contrações, a observar o aspecto e o cheiro do líquido amniótico por ocasião da
ruptura da bolsa de águas e a realizar exercícios ou posturas que favoreçam a
descida do bebê, a esfera de atuação do médico é reduzida.
Vale destacar que a ocupação desse espaço pelo casal – o que, por sua vez,
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sugere um maior equilíbrio na relação tradicionalmente hierárquica entre médico e
paciente – é incentivada pelo próprio profissional “humanizado”. Além do
estímulo à auto-determinação e a uma maior participação do sujeito no controle
sobre sua saúde, em sintonia com o que veio a se configurar como uma norma da
autonomia e da responsabilidade sobre si, imposta ao indivíduo na
contemporaneidade (Ortega, 2008, 2010), no caso do parto “natural” e
“humanizado” tal incentivo encontra também uma razão prática. Com efeito, no
ideário da “humanização” parte-se do princípio de que o parto tem uma
temporalidade específica, extremamente variável, podendo durar muitas horas ou
mesmo dias, uma vez que o ritmo – físico e emocional – é aquele apresentado por
cada mulher. Para tornar viável que o profissional aguarde essa temporalidade e
esteja presente no momento expulsivo – ocasião em que sua presença geralmente
é tida como mais necessária –, torna-se quase uma condição que o casal se
disponha a assumir o controle sobre uma parte do processo.
Por outro lado, no caso de não se ter o acompanhamento de um obstetra
afinado com o ideário – em geral representado pela figura do “médico do
plano”160 –, a aquisição de habilidades que possibilitem uma maior permanência
no ambiente doméstico também costuma ser recomendada, mas com outro
objetivo, isto é, como uma estratégia para evitar intervenções médicas de rotina. A
160
Expressão nativa utilizada para se referir aos médicos conveniados a planos de saúde.
230
idéia é que se a mulher chegar à maternidade em estágio avançado de trabalho de
parto, a equipe não terá tempo de lançar mão de seus recursos habituais.
Diante do exposto, é possível dizer que o ambiente doméstico desponta
como o ideal para o exercício da autonomia, uma vez que é nele que os sujeitos
são “supercidadãos” (Da Matta, 1991). Mas, e esta parece ser uma premissa, o
ambiente da casa só será adequado se dele estiver excluída a família de origem.
Acusada de ter perdido o referencial de parto “normal”, a família é retratada nas
aulas de preparação como potencial fonte de conflito, assunto que será explorado
ao longo desse capítulo.
Por ocasião da ida à maternidade, espaço onde a mulher e seu
acompanhante são “sub-cidadãos”161, o obstetra “humanizado” assume outro
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papel. Como uma espécie de “guardião” do parto “natural” e “humanizado”, ele
irá fazer uso do poder de que desfruta naquele contexto, onde os médicos
notoriamente encontram-se no topo da hierarquia162, para tentar permitir que a
parturiente vivencie a experiência da forma proposta pelo ideário, que muitas
vezes entra em choque com os protocolos da instituição.
Profissionais “humanizados”: quando “menos” é “mais”
Com o intuito de sensibilizar as gestantes para a proposta de parto
“natural” e “humanizado”, Flora organiza palestras regulares no instituto que
coordena, em geral ministradas por profissionais adeptos do ideário com os quais
costuma trabalhar nos partos em que atua como doula.
A rede de especialistas que envolve um parto como esse inclui o médico
ou a enfermeira obstetra, o pediatra e a doula163 164. No caso do grupo investigado,
161
Segundo Roberto DaMatta, na rua “as regras universais da cidadania sempre me definem por
minhas determinações negativas: pelos meus deveres e obrigações, pela lógica do ‘não pode’ e do
‘não deve’” (DaMatta, 1991: 100).
162
O médico “humanizado” Ricardo Jones reconhece essa hierarquia ao chamar a atenção para o
fato de que, no hospital, os médicos estão acima das regras (Jones, 2008: 63).
163
Diferentemente do que ocorria nos anos 1980, como observaram Salem (2007) e Almeida
(1987), a equipe de especialistas hoje em dia não inclui o profissional de Psicologia, cabendo a
todos os demais ocuparem-se da preparação emocional da parturiente.
164
Nos partos acompanhados por enfermeiras obstetras, a doula nem sempre integra a equipe, uma
vez que não é incomum as enfermeiras opinarem que seu trabalho engloba o da doula. Não por
acaso, não há enfermeiras obstetras entre os palestrantes do instituto, apontando para a existência
de uma forte clivagem de territórios e grupos.
231
a maioria das gestantes era acompanhada por médicos obstetras afinados com a
proposta, que costumam trabalhar em parceria com Flora, havendo uma clara
divisão de tarefas: enquanto o primeiro encarrega-se de fazer o acompanhamento
clínico da gestação e do parto, a segunda ocupa-se de prover suporte físico e
emocional à mulher durante o trabalho de parto e parto.
Durante as palestras, os profissionais convidados, bem como Flora,
costumavam enfatizar as particularidades da forma de atuação dos especialistas
afinados ao ideário da “humanização”, dando grande destaque à postura descrita
como não-intervencionista, em especial dos médicos (obstetras e pediatras), que
se limitariam a atuar nas situações de necessidade. Na abertura da palestra de uma
pediatra homeopata, por exemplo, Flora esquivou-se de qualquer menção à
formação ou filiação institucional e a apresentou da seguinte forma: “Essa é a
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Marcela, uma das neonatologistas que menos faz coisas”, afirmou, acrescentando
em seguida: “Quero dizer com isso que ela só faz o necessário”. Um médico
obstetra que também proferiu palestra no curso fez comentário semelhante durante
sua apresentação: “No trabalho de parto, quanto menos interferir melhor”. Esses
profissionais parecem ter encontrado inspiração nas palavras de Leboyer, para
quem “um médico deve ser imóvel, estático e invisível” (Apud Jones, 2008: 77),
de modo que sua presença não atrapalhe ou perturbe um processo que pode, na
maioria das vezes, transcorrer de maneira “natural”.
Jones (2008), médico obstetra que publicou um livro no qual descreve o
percurso que o levou a aderir às práticas “humanizadas”, também compartilha
dessa visão. Na publicação, o médico narra o episódio que teria sido responsável
pela reviravolta em sua trajetória profissional165, fazendo com que se tornasse um
outsider entre seus pares – percepção que não é incomum entre os adeptos da
“humanização”. Em um dos plantões em que estava presente, uma mulher com
cerca de 30 anos, descrita como alguém muito simples, chegara ao hospital já
prestes a dar à luz. Chamado às pressas pela técnica de enfermagem, ele adentrou
a sala de exames na qual a parturiente se encontrava acocorada. A despeito de
suas ordens para que ela se deitasse e aguardasse colocar as luvas para fazer uma
episiotomia, a mulher fez força e deu à luz o bebê, ignorando-o. “Ela me olhou
165
O processo de conversão dos profissionais que aderem à “humanização”, muitas vezes
inspirado por experiências pessoais, é analisado por Tornquist (2004).
232
como se eu fosse de vidro. Nada fez, não se moveu, não me obedeceu” (2008: 73).
Ao refletir sobre o ocorrido, se deu conta de que o pouco que fizera desde que
fora chamado a prestar assistência àquela mulher serviu apenas para atrapalhá-la.
“Mesmo entendendo a importância de um auxiliar de parto, seja ele um médico ou
uma parteira, não pode[ria] jamais esta presença significar o controle do processo.
Não nos cabe controlá-lo; apenas auxiliá-lo” (2008: 77-78).
O profissional “humanizado”, tal qual descrito por Jones (2008) e da
forma como é apresentado no curso de preparação para o parto, se diferencia dos
demais justamente por sua in-ação, isto é, por não interferir nos rumos do parto, o
que se espera que faça apenas nas situações que apresentem complicações. Não
assumir o controle, como referiu-se Jones (2008), implica em abrir mão do poder
tradicionalmente atribuído ao médico, ocupando o lugar de “auxiliar” da
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parturiente. Com efeito, em uma aula teórica, Flora destacou que o
“protagonismo” da mulher não deveria ser obscurecido pela atuação do médico,
cujo lugar teria sido reformatado:
“O parto é seu. O obstetra está ali só para prestar um serviço. Obstare quer dizer
estar ao lado, dar suporte. Noventa por cento dos obstetras no Brasil deveriam ser
chamados de outra forma: cirurgiões, porque quando fazem o parto normal
conduzem tudo”.
Auto-proclamado um “mero facilitador do parto”, como destacou Salem
(2007: 73), o obstetra “humanizado” deve idealmente subordinar seu saber àquele
atribuído à mulher, que supostamente deteria um conhecimento corporal inato,
mais eficiente, seguro e adequado para a parturição. A competência do
profissional é, nesse contexto, bastante relativizada, posto que, em princípio, basta
“estar ao lado” para agir somente no caso de complicações. Assim, caberia ao
médico e também à enfermeira obstetra ocuparem-se de funções secundárias,
como prestar apoio afetivo e emocional à parturiente ou até mesmo assumir a
função de fotógrafo, o que Jones (2008) afirma ter feito em muitos dos partos que
acompanhou.
No entanto, como bem observou Salem (2007), a valorização da
desmedicalização e o destronamento do lugar outrora ocupado pelo profissional
de saúde não permitem afirmar por um sentido antimedical do movimento e de
seus adeptos. Com efeito, “há um explícito reconhecimento dos progressos
233
alcançados pela obstetrícia, ressalvando-se apenas o recurso ‘abusivo’ e
‘desnecessário’ à moderna tecnologia médica” (Salem, 2007: 74). A idéia é que o
profissional esteja presente para que possa, com a anuência da parturiente, lançar
mão de seus conhecimentos e recursos caso haja necessidade. De maneira geral, é
possível dizer que o parto “humanizado” não prescinde da medicina tradicional ou
de seus representantes, uma vez que conta com este suporte e apoio, viabilizando
sua realização, mesmo nos casos de parto domiciliar. Carneiro (2011), que
também pesquisou o tema, faz observação semelhante:
“Optar por outros modos de parir não parece significar dar à luz sozinha, sem a
influência, sem a crença e sem a confiança no saber médico ou de outro
profissional de saúde; esses profissionais são, ao contrário, bastante valorizados e
considerados, ainda que, em seus discursos, as adeptas do parto humanizado
possam não reconhecer tão prontamente a sua importância e a sua influência em
suas práticas e atitudes” (2011: 132).
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Intervenções: do negativo ao relativo
Ao longo do curso de preparação, uma extensa parte das aulas teóricas
teve como tema o “Plano de Parto”, documento que começou sendo difundido nos
EUA e que contém uma lista de itens relacionados ao trabalho de parto, parto e
cuidados com o bebê após o nascimento, no qual a mulher informa com quais ela
está de acordo e quais prefere que sejam evitados.
O documento, cujo modelo foi distribuído por Flora durante o curso, foi
utilizado como ponto de partida para informar as gestantes sobre como geralmente
transcorria um parto “normal” no Brasil, apresentando-lhes um olhar crítico sobre
os procedimentos rotineiramente realizados, tais como: infusão intravenosa,
administração de ocitocina, de anestesia, ruptura provocada da bolsa de águas,
episiotomia, tricotomia, lavagem intestinal e outros.
Além disso, propôs a doula, o plano de parto poderia ser utilizado como
um instrumento para as mulheres “descobrir[em] quem [era] seu médico”, uma
vez que poderia servir como referência para uma conversa com o profissional,
sobre seu posicionamento em relação à necessidade de realização dos
procedimentos médicos ali relacionados. Tal conversa costumava ser sugerida por
Flora no caso em que a gestante não fosse assistida por um médico “humanizado”,
apontando para como a professora funcionava como uma espécie de “eixo de
234
mediação” entre a mulher e o médico, ao “fornece[r] o conjunto de instrumentos
críticos e o aparelhamento necessário para que a gestante demand[asse] uma
revisão dos critérios que regem sua relação com o médico” (Almeida, 1987: 74).
Nesse sentido, Flora, como doula e professora de um curso de yoga e preparação
para o parto, ocupa o mesmo lugar que na década de 1980, de acordo com
Almeida (1987), fora assumido pela especialista em Psicologia.
É importante destacar que o tom crítico de Flora em relação às
intervenções obstétricas em geral incidia sobre o fato de os procedimentos serem
administrados de maneira indiscriminada, independentemente das particularidades
e necessidades das parturientes, isto é, de sua individualidade. A visão que
procurava transmitir às mulheres era de que as intervenções poderiam atrapalhar a
fisiologia e representavam uma interferência, quando não uma “invasão” ao corpo
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da parturiente, sempre que usadas como regra e não em caráter excepcional.
Um alerta comumente feito por Flora era de que uma intervenção
conduziria à outra e, portanto, um procedimento poderia acabar provocando o que
se convencionou chamar de “cascata de intervenções”. Um exemplo seria o da
administração de ocitocina sintética, cujo objetivo é reduzir o intervalo entre as
contrações, aumentando o ritmo do trabalho de parto. A dor intensa e súbita
provocada pelo medicamento levaria as mulheres – de camadas médias – a
solicitar a aplicação de anestesia que, por sua vez, poderia fazer com que a
parturiente perdesse a sensibilidade no momento expulsivo, sendo incapaz de
fazer a força necessária para a saída do bebê. Tal quadro poderia, em última
instância, conduzir ao uso de fórceps ou à cesariana – consideradas pelos adeptos
do ideário como intervenções mais invasivas.
Não se limitando às aulas sobre plano de parto, o debate sobre as
intervenções obstétricas foi trazido à tona diversas vezes ao longo do curso, em
especial a partir dos relatos feitos por Flora sobre os partos em que atuava como
doula. Estes, em geral, eram assistidos por médicos “humanizados” e as
intervenções por eles realizadas costumavam ser avaliadas de maneira positiva,
235
uma vez que seriam feitas apenas nas situações necessárias, atendendo aos
critérios de individualização e contextualização esperados166.
Outro ponto bastante destacado nas aulas referia-se à intenção dos médicos
“humanizados” de atenuar ou suavizar os efeitos indesejados dos procedimentos.
Nesse sentido, a anestesia, por exemplo, seria aplicada em pequenas doses, sendo
inclusive chamada de outra maneira: analgesia. A vantagem da redução do
medicamento seria que a parturiente não perderia o controle sobre as pernas,
podendo manter-se ativa durante o trabalho de parto mesmo depois de sua
aplicação. Também o corte no períneo, a episiotomia, quando realizado por um
médico “humanizado” traria menos incômodo à puerpera, uma vez que o corte
seria executado em direção ao ânus, reduzindo as dificuldades da mulher para
sentar-se – o que posteriormente favoreceria a amamentação. Haveria, portanto,
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uma preocupação com o sujeito que é alvo dos procedimentos, seu bem-estar, suas
sensações e emoções. Em suma, é como se o profissional buscasse “humanizar” a
tecnologia, reduzindo o que seriam os efeitos colaterais a ela associados, em
especial, a “objetificação” do indivíduo, enxergado apenas como um corpo que
necessita de reparos.
Outro aspecto que merece destaque seria a transmissão, por meio dos
comentários feitos por Flora, de uma espécie de hierarquia das intervenções
médicas. Nesse sentido, em um dos extremos se situaria a cesárea, ou melhor, a
“desne-cesárea”167, e, pouco antes dela, a episiotomia, que da forma como
costuma ser realizada – um corte profundo, de rotina, feito em direção à nádega –
é classificada por Flora e outros ativistas como uma “mutilação genital feminina”
ou como uma “cesárea por baixo” (“O corte no períneo já é uma cirurgia”,
afirmou em aula certa vez). Na outra ponta se situaria a anestesia, uma vez que as
mulheres teriam diferentes limiares de dor, sendo sua aplicação aceitável como
forma de evitar outros procedimentos considerados mais “invasivos”, como seria
o caso do parto cirúrgico.
166
Vale destacar que no outro grupo de apoio à gestação e ao parto na Zona Sul as intervenções
praticadas por médicos considerados “humanizados” também passavam pelo crivo de suas
integrantes. Alguns obstetras, apesar de se identificarem com o ideário, eram mal avaliados e sua
atuação monitorada pelo grupo, que chegava a apresentar estatísticas (elaboradas a partir dos
relatos de parto das frequentadoras) relativas ao número de cesáreas por eles realizadas.
167
Termo êmico.
236
No entanto, é importante destacar que a qualificação da intervenção como
“necessária”, especialmente quando feita por um profissional “humanizado”, pode
promover uma profunda relativização do significado a ela atribuído, bem como à
experiência de parto como um todo. Nesse sentido, em uma das aulas Flora
comentou que o médico francês Michel Odent – como visto no capítulo 2, uma
importante referência para o movimento da “humanização” –, considera a cesárea
necessária como uma “cesárea de resgate”: é como se “o bebê saísse pela porta de
emergência”. Segundo Flora, nesse caso se trataria “quase [de] um parto normal”.
Por sua vez, o parto “normal” também poderia ser “quase uma cesárea”, como no
exemplo dado por ela de um parto em que atuou como doula e durante o qual a
médica, que não era “humanizada”, transferiu a parturiente no momento expulsivo
para o centro cirúrgico, a orientou a ficar na posição de litotomia e cobriu todo o
seu corpo, deixando apenas a vagina à mostra – procedimento semelhante àquele
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realizado no parto cesáreo. Por fim, a obstetra fez uma episiotomia, segundo Flora
“grande e profunda”, na mulher que estava prestes a dar à luz sem qualquer
intervenção.
Como é possível notar, há uma espécie de escala e gradação, cuja
elaboração é flexível e contextual. Assim, a mesma intervenção que, por
princípio, é taxada de negativa por supostamente atrapalhar a fisiologia do parto,
pode ser avaliada como benéfica e favorável, quando atender a uma necessidade
individual. Deve-se destacar que assume um importante peso nessa equação a
intenção do profissional – de intervir o mínimo possível – e a relação de confiança
que se tem com ele, sendo possível dizer que prevalece para com o obstetra
“humanizado”, de maneira geral, uma maior disposição a se confiar em seus
critérios de avaliação168. Por sua vez, o inverso também se pode dizer do
profissional conveniado aos planos de saúde, que aparece quase como uma
antítese do “humanista”: sua atuação é, por princípio, geradora de desconfiança e
passível de questionamento, como se verá mais adiante.
168
Apesar de não ter sido o caso de nenhuma das entrevistadas, já ouvi relatos de mulheres que
ficaram muito insatisfeitas com seus médicos “humanizados”, sendo mais freqüentes os relatos de
insatisfação entre aquelas que tiveram cesáreas.
237
4.2.
As mulheres
4.2.1.
Quem são elas?
Ao todo, foram entrevistadas 12 mulheres (três delas estrangeiras), das
quais 11 tinham passado recentemente pela experiência de parto e uma
encontrava-se grávida. Dentre as entrevistadas, todas eram freqüentadoras do
curso de preparação coordenado por Flora, na Zona Sul da cidade, à exceção de
uma, que participava do outro grupo de apoio à gestação e ao parto “natural” e
“humanizado”, que se reúne quinzenalmente na mesma região da cidade169. A
entrevistada desse grupo, cujo perfil difere um pouco do das demais, foi a única
que deu à luz em um parto domiciliar assistido por enfermeira obstetra, enquanto
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todas as outras pariram em maternidades privadas, a maior parte assistida por
médicos “humanizados” – ainda que nem sempre esse tenha sido o projeto inicial
e que, para algumas, o parto domiciliar desponte como uma meta a ser alcançada.
Como será possível notar, há certa homogeneidade entre as entrevistadas:
a grande maioria é branca, casada, com renda familiar superior a 10 salários
mínimos, alta escolaridade e reside apenas com o marido ou com o marido e o(s)
filho(s). Deve-se ressaltar que a amostra colhida não tinha qualquer pretensão de
ser representativa das adeptas do parto “natural” e “humanizado”, uma vez que,
pelo fato de parte da pesquisa ter sido realizada em um curso privado de
preparação para o parto, que cobra um valor por sua mensalidade, isso já implica
em um recorte, qual seja: o das mulheres que podem pagar por ele. Na realidade,
tal recorte interessava aos propósitos desse estudo, uma vez que uma de suas
pretensões era observar como mulheres de camadas sociais diferentes viviam e
significavam suas experiências de parto.
No que se refere às condições em que ocorreram as entrevistas, a maioria
foi realizada nas casas das mulheres, à exceção de duas, que tiveram lugar em
parques da cidade. Deve-se destacar que somente uma entrevista não contou com
a presença do bebê, o que parece apontar para o grande envolvimento das
169
É importante destacar que outras três entrevistadas (Sofia, Simone e Manuela), alunas do curso
de preparação para o parto coordenado por Flora, também participavam das reuniões desse grupo.
238
mulheres do grupo nos cuidados com o recém-nascido. Dois maridos também
participaram, de modo espontâneo, emitindo suas impressões. De maneira geral, o
convite para participar da pesquisa despertou grande interesse nas mulheres, que
demonstraram satisfação por compartilhar suas experiências de parto, uma prática
que, pude notar ao longo do estudo e da minha própria experiência enquanto
gestante, costuma ser bastante comum entre as adeptas do parto “natural” e
“humanizado”.
Ana
Tem 36 anos, é branca, alemã, casada com um brasileiro, trabalha em uma
organização internacional e está no país há 10 anos. Mora em Laranjeiras, Zona
Sul do Rio de Janeiro, onde vive com o marido e a filha, fruto de uma gravidez
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planejada. Não conhecia a proposta de assistência “humanizada” até chegar ao
curso de preparação para o parto, cujas aulas (teóricas e de yoga) também foram
freqüentadas por seu marido. Deu à luz de parto “natural” e “humanizado”, em
uma maternidade particular.
Andrea
Tem 32 anos, é branca, alemã, está no Brasil há seis anos, mora no Flamengo e é
professora de dança. Vive em união estável com um brasileiro, com quem tem três
filhos. Tomou contato com a proposta no curso de preparação para o parto, já na
primeira gestação. Como parece ocorrer com as demais multíparas entrevistadas,
seus partos descrevem uma espécie de “trajetória de aperfeiçoamento”, que teve
início com um parto “normal” medicalizado e concluiu com um parto “natural”,
assistido por uma equipe “humanizada” na maternidade.
Ágata
Tem 33 anos, é branca, francesa, casada e professora de matemática. Veio para o
Brasil há três anos com o marido, que é da mesma nacionalidade, e mora na Urca,
Zona Sul do Rio de Janeiro. Sempre desejou um parto “normal” com anestesia,
mesmo depois de tomar contato com a proposta “humanizada”, que considera
“muito radical”. Para ela, a anestesia é algo “moderno”, que possibilita ter um
239
parto com menos dor. Assistida por uma equipe conveniada a seu plano de saúde,
teve um parto cesáreo, por apresentar placenta prévia no final da gestação.
Angélica
Tem 28 anos, negra, designer de sandálias e professora de Artes, mora no
Flamengo e é casada com um alemão, com quem tem dois filhos. Tomou
conhecimento da proposta de parto “humanizado” por intermédio de uma amiga e
desde o início da primeira gestação buscou um profissional afinado com o ideário.
Apesar disso, sofreu no primeiro parto uma série de intervenções, que atribuiu ao
fato de o médico, que era de Niterói, ter demorado a chegar na maternidade, tendo
o primeiro atendimento sido feito pela equipe que estava de plantão. Compara os
dois partos e considera que o segundo, assistido pelo mesmo médico, mas não
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tendo sofrido qualquer intervenção, favoreceu a construção de um vínculo
imediato com o bebê.
Alice
Tem 35 anos, branca, casada, é engenheira civil e estuda Direito. Na época da
entrevista morava no Catete (Zona Sul), mas pouco tempo depois se mudou para a
Barra da Tijuca (Zona Oeste). É mãe de dois filhos e mora com eles, o marido e o
enteado. No nascimento do primeiro filho teve um parto “normal” medicalizado e,
insatisfeita principalmente com a experiência de ter tomado anestesia, que lhe
privou de sentir parte do trabalho de parto, buscou informar-se, vindo a tomar
contato com a proposta de parto “natural” e “humanizado”. Na segunda gestação
negociou os procedimentos com a médica, a mesma que acompanhara o parto
anterior, e contratou Flora como doula, a quem considerou ter sido uma
importante aliada para conseguir ter o parto da forma que desejava.
Elena
Tem 37 anos, é branca, casada, administradora (trabalha em uma empresa estatal),
católica e nasceu no Rio Grande do Sul. Tentou engravidar por três anos e hoje
reside com o marido e o filho em Niterói. Inicialmente tinha planejado ter uma
cesárea, mas mudou de idéia ao tomar contato com a proposta de parto “natural” e
“humanizado” no curso de preparação. Trocou de médico, passando a ser assistida
240
por uma equipe “humanizada”, mas acabou tendo uma cesárea, solicitada por ela
no final do trabalho de parto, quando a médica começou a realizar manobras para
ajudar o feto a encaixar. Não lamenta a decisão e pretende, caso engravide
novamente, agendar uma cesárea.
Kátia
Tem 42 anos, é branca, solteira, trabalha como tradutora e reside em São Conrado,
onde mora com a mãe e o filho. Fruto de um relacionamento recente, a gravidez
não foi planejada, apesar de por muitos anos ter tentado engravidar. Ouviu falar
sobre a existência de doulas 10 anos antes, por intermédio de uma amiga, mas
pouco sabia efetivamente sobre a proposta de parto até engravidar. É bastante
espiritualizada e suas reflexões sobre o parto em geral apontam para esse
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caminho. Deu à luz de parto “natural” e “humanizado”, em uma maternidade
particular.
Manuela
Tem 35 anos, é branca, economista, de origem paulista, vive em união estável
com o companheiro e mora em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. Reside com
o marido e o filho, fruto de uma gravidez planejada. Passou por alguns médicos
durante a gravidez até chegar a uma equipe “humanizada”, mas uma série de
imprevistos, na sua visão, atrapalhou seu trabalho de parto e parto, dentre eles a
presença indesejada da sogra, que é médica obstetra, na sala de parto.
Simone
Tem 31 anos, é branca, bióloga, casada e de origem baiana. Mora em Jacarepaguá,
Zona Oeste do Rio de Janeiro, com o marido e o filho. A gravidez foi planejada
dois anos antes, período em que buscou informações de forma independente,
principalmente através da Internet, sobre os diferentes tipos de parto. Foi assistida
no parto por uma equipe “humanizada” e só não ficou 100% satisfeita com a
experiência porque, em função das dores provocadas por um rebordo de colo de
útero, que considerou insuportáveis, tomou anestesia.
241
Sofia
Tem 29 anos, é branca, administradora e mora no Grajaú, Zona Norte do Rio de
Janeiro. É casada, ficou grávida de gêmeos e deu à luz de parto “natural” e
“humanizado” na maternidade. Ao tomar consciência, segundo ela, de que havia
uma “máfia das cesáreas” no Brasil, decidiu informar-se para tentar escapar dela.
Sua pesquisa começou três anos antes de engravidar, o que a levou, desde o início
da gestação, a fazer o acompanhamento pré-natal com uma médica “humanizada”.
Se engravidar novamente, pretende dar à luz em casa, que era seu projeto inicial e
do qual abriu mão pelo fato de estar grávida de gêmeos.
Tatiana
Tem 29 anos, é branca, economista, casada e de origem paulista. Mora em
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Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, com o marido e a filha, cuja gravidez
não foi planejada. Por indicação de uma amiga, desde o início se consultou com
um obstetra “humanizado”, que a apresentou o ideário. Precisou induzir o parto
(através do descolamento das membranas, feito pelo médico no consultório), pois
já estava quase com 42 semanas e não havia entrado em trabalho de parto.
Considerou a experiência de parto positiva, mas mudou de idéia quanto à
possibilidade de dar à luz em casa, que antes havia cogitado.
Vanessa
Tem 37 anos, branca, é paulista, fotógrafa, possui ensino médio completo e mora
na Tijuca, Zona Norte da cidade. É mãe de 4 filhos, tendo os três primeiros
nascido de partos “normais” medicalizados. O último ela deu à luz em casa,
assistida por uma enfermeira obstetra e por uma parteira alemã, depois de ter
tomado contato com a proposta de parto “natural” e “humanizado” por meio de
um grupo de apoio a gestantes, que conheceu pela Internet. A experiência do
último parto foi tão marcante para Vanessa que, ao longo da pesquisa, ela veio a
tornar-se doula, começou a trabalhar como fotógrafa de parto e atualmente
coordena os encontros do grupo que passaram a ser realizados também no bairro
da Tijuca.
242
“No início eu só queria um parto normal”
No que se refere ao contato com a proposta de parto “natural” e
“humanizado”, é possível dizer que as entrevistadas dividem-se em dois grupos:
as que foram apresentadas a ela durante a gestação (Tatiana, Alice, Angélica,
Kátia, Elena, Andrea e Ana), principalmente através do curso de preparação
coordenado por Flora, mas também por amigos, e aquelas que, cientes das altas
taxas de cesárea no Brasil, buscaram por conta própria, em alguns casos até
mesmo antes de engravidar, informações sobre outros tipos de parto (Sofia,
Manuela, Simone e Vanessa).
Elena foi uma das que passou a se interessar pela proposta de parto
“natural” e “humanizado” depois que se matriculou no curso de preparação para o
parto, quando, ao ouvir os relatos de mulheres do grupo sobre suas experiências,
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achou que poderia ser capaz de dar à luz dessa forma. Até então, as histórias que
ouvira das mulheres de sua família não eram muito encorajadoras.
Elena nasceu em um parto “normal” com fórceps, sempre tendo ouvido da
mãe e de outras mulheres da família que a dor do parto era “horrível”, o “fim do
mundo”. Desde o início da gravidez, a mãe, que é técnica de enfermagem e mora
no Rio Grande do Sul, lhe orientara a fazer uma cesárea: “Tu é muito sensível,
não vais aguentar”, costumava lhe dizer. Nas primeiras consultas com um médico
conveniado a seu plano de saúde ouviu a mesma recomendação, a qual justificou
baseando-se em sua idade, que seria considerada avançada e contra-indicada para
o parto “normal”.
Elena não teve dúvidas, logo no início da gestação fez a opção pela
cesárea, para “não sentir dor nenhuma e ir para o hospital sorrindo, com cabelo
escovado, maquiadinha”. No entanto, ao longo das aulas no curso de preparação
para o parto, no qual se matriculou para fazer uma atividade que a ajudasse a
relaxar e a aplacar a ansiedade, passou a colocar em xeque sua decisão.
“Quando eu comecei lá, que daí eu comecei a escutar aquelas palestras que
tinham com as pessoas falando como foi o parto, os depoimentos, aí eu comecei a
ver que eu podia tentar porque talvez não fosse o fim do mundo, não é? [riso] Fui
ficando forte nesse sentido e sentindo coragem para enfrentar o momento”
(Elena).
243
O caso de Elena é interessante. Em um aspecto ele compõe a regra, no
sentido de que as experiências de parto da mãe e de outras mulheres da família
costumam ser referências importantes para as gestantes, como também ocorre
entre as mulheres de camadas populares. Mas, por outro lado, é também exceção,
tendo em vista ser bastante incomum no contexto investigado que a gestante
inicialmente desejasse uma cesárea e tenha mudado de idéia, passando a almejar
um parto “natural” e “humanizado”.
Nesse sentido, a maioria das que buscaram o instituto já tinham como
meta o parto “normal”. Experiências positivas na família parecem ter influenciado
de maneira significativa170, bem como um estranhamento em relação às altas taxas
de cesarianas. Este se manifestou especialmente entre as estrangeiras, pois em
seus países (França e Alemanha) a cirurgia costuma estar associada a
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intercorrências durante o parto e a necessidade de sua realização é frequentemente
recebida com pesar pela parturiente e sua família. Havia ainda, entre as
entrevistadas brasileiras, as que tinham nascido de partos cesáreos, mas que não
foram desejados por suas mães. Entre essas, a tendência era a de questionar o
procedimento realizado naquela época, avaliando, com as informações de que
dispõem hoje, se sua necessidade era realmente pertinente.
Considerando-se as altas de taxas de cesáreas nas camadas médias, essas
mulheres, de alguma maneira, já destoavam de seus pares. Com efeito, não foi
incomum ouvir relatos de que praticamente todas as mulheres do meio social das
entrevistadas deram à luz por meio de partos cesáreos. Mas se o parto “normal”
parecia para elas o caminho “natural”, tal posicionamento mudou completamente
depois que tomaram conhecimento, principalmente durante as aulas no curso,
sobre como são realizados os partos “normais” no Brasil – com medicação
intravenosa e episiotomia de rotina, pernas atadas a estribos ou perneiras,
proibição de ingestão de líquidos ou alimentos, dentre outras práticas –, e que
170
Vários foram os comentários feitos nesse sentido: “Eu nasci num parto super rápido”; “Nasci
de parto natural, a minha mãe era do interior”; “Minha mãe me influenciou a ter parto normal,
porque ela teve 3 filhos de parto normal”; “Na minha família a grande maioria foi tudo de parto
normal. Eu nunca tive essa história de ficar ouvindo ‘minha mãe quase morreu, minha tia quase
morreu, minha avó...”. A pesquisa de Rezende (2009) também aponta na mesma direção, o que
levou a autora a afirmar que “a opção por um determinado tipo de parto [é] muitas vezes
informada pelos casos familiares, e não [é] fácil de ser modificada”. (2009: 09). Le Breton (1999)
destaca que, em relação à dor do parto, a dosagem esperada e as maneiras convencionais de
responder a ela são, da mesma forma, transmitidas de geração em geração.
244
passaram a tomar contato com a proposta de parto “humanizado”, muitas vezes
apresentada como seu contraponto.
“Na verdade, no início [da gestação] eu nem sabia muito. Para mim, só tinha dois
partos: cesárea e o normal. E depois, pesquisando e me informando, eu fiquei
sabendo que, na verdade, tem aquele terceiro, que é o natural humanizado. Então,
eu pensei: ‘Ah, na verdade, é esse que eu quero’ e não o normal, ‘frango
assado’171, que a Flora sempre fala, não é?” (Ana)
“Assim que eu fiquei grávida (...), eu queria o parto normal. Depois que eu vim a
saber que existe parto normal e parto natural. E eu não sabia dessa questão da
humanização do parto. Eu não sabia nem o que era isso”. (Kátia)
Assim como as freqüentadoras da casa de parto, essas mulheres não
tinham contato com a proposta de parto “natural” e “humanizado” antes da
gestação. Isto é, para elas essa não era a primeira opção de parto nem a mais
evidente. Contudo, uma diferença importante é que as mulheres de camadas
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médias, como se verá adiante, precisaram ser extremamente pró-ativas para
conseguir dar à luz dessa maneira, enquanto as usuárias da casa de parto tiveram
que ser convencidas da proposta pela equipe, ao longo da gestação, o que ocorreu
especialmente através dos grupos educativos.
“Peregrinação” de médico172
Com alguma freqüência as mulheres que não conheciam a proposta de
parto “natural” e “humanizado” no início da gravidez e passaram a se interessar
por ela trocaram de obstetra ao longo da gestação (Kátia, Elena, Ana) – o que
também ocorreu com algumas das que já conheciam a proposta, mas inicialmente
não tinham referências de médicos “humanizados” (Manuela, Simone). Durante a
gestação, algumas se consultaram com vários profissionais, em princípio
171
Nas aulas, o parto “normal” medicalizado costuma ser chamado de “parto frango assado”, pois
a parturiente geralmente fica com as pernas atadas a estribos ou perneiras. O termo, bastante
pejorativo, salienta, entre outros aspectos, a objetificação e a falta de agência da parturiente. Nas
listas de discussão sobre parto “humanizado” na internet, por outro lado, predomina o uso da
expressão “parto Frank”, possivelmente em alusão ao personagem Frankenstein, um monstro
criado em laboratório.
172
Essa expressão foi usada por um médico “humanizado” em uma palestra, durante a qual
comparou as mulheres de camadas populares de maneira geral (as usuárias da casa de parto não se
incluem nesse exemplo, uma vez que tem a vaga garantida na hora do parto) às de camadas
médias. Enquanto as primeiras “peregrinam” em busca de hospitais/maternidades na hora de dar à
luz, as outras “peregrinam” ao longo da gestação para encontrar obstetras que não sejam
“cesaristas”.
245
selecionados dentre aqueles conveniados a seus planos de saúde, até decidirem-se
por um médico afinado com o ideário.
Ao tomarem contato com diferentes obstetras ou então se baseando em
relatos de outras gestantes, as mulheres acabaram elaborando uma espécie de
classificação, na qual categorizaram os profissionais a partir de seu
posicionamento em relação à medicalização do parto, que teria na cesárea sua
mais forte expressão.
Assim, segundo elas, haveria o obstetra “honesto”, isto é, aquele que já na
primeira consulta informaria abertamente que só faz partos cesáreos, apresentando
justificativas práticas e que revelariam seu incômodo com a inerente
imprevisibilidade do parto “normal”. Dentre estas justificativas estariam os
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perigos de circular de madrugada na cidade, o trânsito, a falta de vagas nas
maternidades, a dificuldade para reunir a equipe em feriados e finais de semana,
etc. Também poderia se enquadrar nessa classificação – ainda que com algumas
ressalvas173 – aquele obstetra que, já na primeira consulta, avalia que a mulher
supostamente teria indicação para o parto abdominal, mas nesse caso geralmente
apresentando como justificativa uma característica física da gestante: ter idade
avançada (algo entorno de 36-37 anos em diante), a bacia estreita, ser muito baixa,
obesa, etc. Apesar das mulheres desse grupo discordarem da prática de cesáreas
eletivas e de atribuírem outras motivações à preferência do profissional pelo parto
cirúrgico174, elas tenderiam a avaliar esse profissional de maneira positiva, pela
franqueza e por logo manifestar a intenção de fazer uma cesárea.
O segundo tipo seria o obstetra “terrorista” ou “mentiroso”, qual seja:
aquele que se diria disposto a fazer um parto “normal” caso estivesse “tudo bem”
ao longo da gestação175. Contudo, geralmente no final da gravidez, o obstetra
173
As ressalvas se devem ao fato de que, apesar de ser “honesto” quanto às suas intenções, tal
obstetra atribui a uma condição corporal da gestante a motivação para fazer um parto cesáreo, o
que, na visão das mulheres, costuma encobrir um interesse pessoal.
174
Segundo as mulheres, esses profissionais agiriam motivados também por interesses
mercadológicos e por conveniência própria, uma vez que não precisariam desmarcar consultas,
poderiam fazer vários partos em um mesmo dia e teriam os finais de semana e feriados livres. Essa
percepção é confirmada por estudos realizados na área, como o de Salgado (2012), que afirma que
“conveniências e necessidades das equipes e instituições” costumam ser priorizadas, resultando em
um maior número de partos cirúrgicos.
175
Durante o filme “O Renascimento do Parto”, documentário lançado em 2013 que trata do
excesso de cesáreas na sociedade brasileira e divulga o ideário da “humanização”, a enfermeira
246
apresentaria argumentos que, segundo ele, indicariam a necessidade de realização
de uma cesárea, como, por exemplo, o fato de o bebê apresentar o cordão
enrolado no pescoço, de ser muito grande ou muito pequeno, de estar alto, etc.
Argumentos que, na visão das mulheres do grupo, não representariam indicações
“reais”176 para a realização de cesarianas, mas encobririam um interesse pessoal
do médico – que teria motivações econômicas ou de conveniência – para
privilegiar esse tipo de parto.
É importante mencionar que os argumentos apresentados pelos médicos
para justificar o parto abdominal costumam ser amplamente discutidos pelas
mulheres de camadas médias que almejam um parto “natural” “humanizado”. É
muito comum que elas compartilhem suas dúvidas com outras gestantes e façam
pesquisas na Internet sobre o tema, para avaliar a legitimidade do parecer médico,
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subvertendo o “esquema de delegação de confiança prévia e automática ao
profissional enquanto aquele que trata, sabe e prescreve” (Almeida, 1987: 76).
Documentos elaborados por profissionais “humanizados”, como é o caso
da lista intitulada “Indicações reais e fictícias para a cesárea” 177, que circula na
internet desde 2005, costumam ser uma importante fonte de consulta para as
mulheres de camadas médias que questionam as práticas de assistência dos
profissionais de saúde. Nesse documento, elaborado por uma médica e uma
obstetriz178, foram listadas seis indicações que elas classificam como “reais” para
a realização de cesarianas, outras três indicações que justificariam o parto
cirúrgico, mas que “frequentemente são diagnosticadas de forma equivocada”,
além de outras três “situações especiais” em que avaliam que a conduta do
obstetra Heloísa Lessa comenta ter havido uma inversão na lógica que rege a atuação médica: em
vez de o profissional dizer à gestante que, se houver algum problema, ela terá que ser submetida a
uma cesárea, ele comenta que, se tudo correr bem, ela poderá ter um parto “normal”.
176
Simone comenta: “Eu gosto muito de enfatizar essa palavra, real necessidade, porque de uma
maneira geral os médicos gostam de mostrar necessidades em que eu não acredito muito”.
177
O
material
encontra-se
disponível
em:
http://estudamelania.blogspot.com.br/2012/08/indicacoes-reais-e-ficticias-de.html?q=cesárea
Último acesso em 07/10/2013.
178
Obstetrizes são profissionais formadas pelo curso de graduação em Obstetrícia, que não está
vinculado à Enfermagem nem ao curso de Medicina. Extinto na década de 1970, o curso foi
reaberto em 2005 pela Universidade de São Paulo (USP). Os profissionais com esta habilitação
estão aptos, assim como as enfermeiras com pós-graduação em Obstetrícia, a atender partos
considerados de “baixo risco”. Os alunos do curso, no entanto, têm dificuldades para obter o
registro profissional, uma vez que não há atualmente uma legislação específica que regulamente a
profissão.
247
profissional deveria ser individualizada, considerando-se as peculiaridades de
cada caso. Em seguida, a lista apresenta 135 indicações “fictícias” apresentadas
pelos médicos para realizar cesarianas, que foram compiladas pelas autoras a
partir de depoimentos de suas clientes, mas que também contaram com
contribuições de outros profissionais e de grupos de discussão na internet. Nas
palavras das mulheres do grupo, estas seriam as chamadas “desculpas
esfarrapadas”, apresentadas por médicos que pretendem “enganar” suas clientes e
realizar o parto da forma que lhe seria mais conveniente e rentável. Ao fazer o
diagnóstico apenas no final, o médico “terrorista” ou “mentiroso” reduz as
chances da mulher informar-se para contra argumentá-lo ou mesmo para trocar de
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médico.
“Se o médico tem o direito de escolher que tipo de parto ele quer fazer, a mulher
também tem o direito de escolher que tipo de parto ela quer viver. É o parto dela,
não do médico. Então aquele médico que só quer fazer cesariana, que seja claro
desde o início e não roube esse momento da mulher. Porque é um momento
muito único, que não vem de novo”. (Kátia).
Esse profissional, que na visão das mulheres corresponde ao tipo mais
freqüente e seria o estereótipo do “médico do plano”, é o que inspira maior
cuidado e atenção por parte das gestantes, que costumam lançar mão de algumas
estratégias para tentar identificá-lo antecipadamente. Dentre essas estratégias,
estaria observar na sala de espera se outras clientes costumam entrar em contato
com a secretária com o intuito de agendar uma cesárea ou então perguntar
diretamente a ela qual dia da semana o obstetra costuma agendar as cirurgias. Se a
secretária não se surpreender com a pergunta e informar dias determinados da
semana, é sinal de que, de fato, trata-se de um médico desse tipo.
Por fim, haveria o obstetra “convencional” ou “padrão”, que privilegiaria o
parto “normal” em detrimento da cesárea, porém apenas sabe fazê-lo lançando
mão de procedimentos e intervenções, ou seja, de modo medicalizado. No parto
de seu terceiro filho, Vanessa, que deu à luz em uma maternidade-escola, lamenta
ter chamado a médica quando estava prestes a dar à luz sem qualquer intervenção:
“Quando eu chamei a médica, que eu já estava sentindo os puxos, ele já estava
coroando... quando ela viu aquilo, ela colocou a mão pra voltar a cabeça dele pra
dentro, pra dar tempo dos alunos ficarem ali e ela segurando, porque ela tinha que
fazer episotomia pra ele nascer. Então, ele já estava nascendo... pra demonstrar,
acho que na visão dela, que um neném só ia nascer se tivesse episio. Não sei
248
como a episiotomia é colocada na cabeça desses médicos. O que eles aprendem
na faculdade? (...) Ela falava pra eu parar de fazer força. ‘Para de fazer força. Não
faz força, não faz força.’ E segurando a cabeça, eu lembro nítido da mão dela
segurando e ela fez a episio, aí ele nasceu. Eu fiquei assim ‘por que eu chamei a
médica? Para quê?’” (Vanessa)
Os médicos “convencionais”, muito encontrados nos hospitais públicos,
seriam, segundo os relatos das mulheres desse grupo, mais raros do que os dois
tipos anteriores. Nesse sentido, haveria, na avaliação delas, pouca alternativa no
contexto das camadas médias entre a cesárea e o parto “natural” “humanizado” 179.
Para identificar o médico “convencional”, a estratégia utilizada costuma
ser a de indagar, de maneira despretenciosa, como o profissional avalia
determinados procedimentos de rotina, como o fizeram Simone e Manuela,
seguindo as instruções transmitidas por Flora durante o curso.
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“A segunda médica [com quem me consultei] faz bastante parto normal até, só
que esse normal convencional. Ela não é humanizada. E eu conversei com ela, eu
queria saber como ela via o parto. Então eu perguntei: “mas como é que é o
parto?” E ela me descreveu assim, palavras dela: “o parto é tranquilo. Você vai
começar a sentir as contrações e você vai estar na maternidade, vão colocar um
soro na tua veia, vão colocar anestesia para que você não sinta dor, vou chegar e
vou fazer um toque, vou ver o tamanho da dilatação e aí vou fazer a episiotomia,
porque é preciso fazer e vou te dirigir. Vou falar para você: “não, faz força agora.
Não faz.” Então percebe que é um parto normal que não é normal. Normal é só
no nome”. (Simone)
“Eu cheguei como quem não quer nada, aí eu falei assim: “Eu estava lendo sobre
o parto humanizado, não é? Que é um parto, assim, que estão fazendo... O que
você acha de parto sem anestesia?” Aí ela: “Ah, não recomendo de jeito
nenhum.” Eu falei: “Não?” Ela: “Não, menina! Você acha? Tem gente que gosta
de sentir dor e não sei o quê. Eu não recomendo”. Eu falei: “Tá, mas e se eu
quisesse fazer o parto sem anestesia?” Ela falou assim: “Eu ia te dizer para não
fazer.” Aí eu falei: “Ah, então tá bom. E me disseram também que tem umas
massagens, na hora, que ajudam, umas posições, não é?” Ela falou assim:
“Manuela, eu vou te dizer, isso é terrível. Não tem nada a ver, não ajuda em nada.
O que vai te ajudar é a respiração que eu vou te pedir para fazer na hora, isso é o
que vai te ajudar. A posição e essas coisas, isso não ajuda em nada. Pode
esquecer”. Aí eu falei: “Ah, tá. Nossa, que estranho, não é? Massagem não alivia
a dor?” “Não, o que alivia a dor é anestesia”. Todas as respostas [dela eram]
179
Essa idéia está expressa em alguns relatos, como no de Ágata: “O que eu vi no Brasil, no Rio
pelo menos, é que ou você tem cesárea ou você tem parto humanizado, mas não tem tanto assim de
parto comum, como na França, com peridural. Vai de um extremo ao outro”. O depoimento de
Simone aponta na mesma direção: “As mulheres que eu tenho contato são mulheres que passaram
por esse tipo de parto humanizado, através do grupo, da yoga,... ou o oposto completo, as minhas
amigas que passaram por cesáreas, porque a grande maioria das minhas amigas fizeram cesarianas.
Ou estão dentro da humanização ou não estão. É meio que uma faca de dois gumes. Você fica
imprensada na parede: ou você está realmente buscando isso ou acaba numa cesárea. (...) De todas
as minhas amigas que já tiveram filho, só uma teve parto normal”.
249
nesse sentido. Aí eu falei: “Beleza, agora eu tenho carta branca para fugir daqui”.
E nunca mais voltei nela. (Manuela)
Outra possibilidade seria questionar o profissional sobre sua opinião em
relação à presença de uma doula no parto. De fato, a doula não costuma ser bemvinda por obstetras que privilegiam partos medicalizados, uma vez que a atuação
da acompanhante profissional de parto visa justamente a reduzir a necessidade
desses recursos. Além disso, a doula frequentemente é percebida como alguém
que estaria ali julgando ou mesmo interferindo na sua forma de atuação, ou seja,
como uma potencial fonte de conflito.
Vale destacar que, dentre as mulheres que almejam um parto “natural”
“humanizado”, uma minoria decide permanecer sendo assistida pelo obstetra
“convencional”, especialmente se nessa categoria se incluir um ginecologista de
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longa data, porém, em geral tenta-se negociar os procedimentos de rotina. Esse foi
o caso de Alice, cujo saldo considerou positivo: apesar de ter dado à luz no centro
cirúrgico180, em posição de litotomia, com a veia pinçada181 e de ter sido realizada
uma episiotomia (que não estava acordada de antemão, mas que Alice considerou
necessária em função da posição do feto no momento do parto), a bolsa de águas
não foi rompida artificialmente, não houve aplicação de anestesia nem
administração de ocitocina, ela não ficou com as pernas atadas e nem precisou
permanecer deitada durante o trabalho de parto – o que havia acontecido em sua
experiência de parto anterior.
“Como era uma pessoa que eu não queria largar, assim, é uma pessoa que eu
gosto muito e se eu tiver um próximo filho eu quero que ela faça o parto, então eu
conversei com ela sobre algumas coisas porque eu acho que cada um tem que
ceder um pouco. Apesar do parto ser meu, eu acho o seguinte, se a pessoa quer
um parto totalmente humanizado – daqueles partos mesmo humanizados, que de
repente você está na água ou que você está em casa ou de cócoras, alguma coisa
assim –, eu acho que cabe ao paciente procurar um médico que faça esse tipo de
trabalho. Porque a gente tem que respeitar a metodologia de trabalho de cada um.
Então não dá para “ah, eu quero ter um parto assim e você vai ter que fazer tudo
que eu quero.” Eu acho que nenhuma relação funciona assim, nem a relação
médico-paciente. Então eu acho que a metodologia de trabalho da pessoa também
tem que ser respeitada até porque a pessoa já tem – como é que eu vou dizer? – a
prática de fazer as manobras se for necessário. Tem a prática de fazer o parto
180
A maternidade onde deu à luz conta com uma sala de parto “humanizada”, dentro do centro
obstétrico, mas a médica preferiu não usá-la, pois gostaria de contar com todos os recursos caso
fosse necessário realizar uma cesárea.
181
A medida foi tomada caso fosse necessário aplicar algum medicamento (anestesia, ocitocina ou
qualquer outro) durante o trabalho de parto.
250
daquela forma, com a mulher deitada. Já tem toda uma metodologia de trabalhar
no centro cirúrgico, então o que ela faz? Ela vai para o centro cirúrgico mesmo
que não seja um parto que tenha probabilidade de virar uma cesariana. (...) Foi
tudo negociado antes. Por que o que eu fiz? Aquela folha que eu recebi da Flora
do plano de parto, eu fui conversando, fui abordando os itens aos poucos ao
longo do pré-natal. E eu achei que teve muita sinceridade, muito respeito porque
o que ela falou que podia fazer, ela fez. O que ela falou que não dava para fazer,
ela explicou porquê. E algumas coisas ela falou que a gente só ia ver no momento
e, realmente, foi tudo como foi planejado. Em momento algum, eu me
decepcionei”.
O relato de Alice sugere que a visão que tem sua obstetra – que se reflete
também em suas práticas – é a do parto como um ato médico, que deve ser
atentamente controlado e ter seus possíveis riscos antecipados, sendo sua atuação
guiada pela constante e iminente possibilidade de haver alguma complicação que
converta o parto “normal” em cirúrgico. Em outras palavras, a visão do parto
“normal” nesse caso é de que as intercorrências são a regra, partindo da premissa
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de que o corpo-em-trabalho-de-parto representa um risco em potencial. Já os
profissionais “humanizados”, por sua vez, partem do princípio de que a norma é o
parto transcorrer sem a necessidade de intervenções, sendo o corpo-em-trabalhode-parto percebido como perfeito e detentor de um conhecimento próprio. Nesse
caso, o desvio não é considerado o padrão, mas encarado como uma exceção.
É importante destacar que a decisão de ter ser assistida por um médico
“humanizado” nem sempre é fácil e às vezes é tomada apenas na reta final da
gestação. Um dos motivos é que praticamente nenhum desses profissionais atende
pelo plano de saúde, o que significa que a mudança implica na maioria das vezes
em ter que arcar com um alto custo financeiro, que inclui as consultas do pré-natal
e o parto182. Outro, como no caso de Alice, é o fato de ter que abrir mão do
ginecologista com quem a mulher costumava se consultar antes da gravidez e com
182
Flora costuma dizer que, assim como as pessoas juntam dinheiro para comprar um carro,
deveriam economizar para o parto. Durante a pesquisa, uma aluna do curso pediu à família que,
em vez de dar presentes para o bebê, desse cotas em dinheiro que seriam usadas para cobrir as
despesas com a equipe “humanizada” que iria assistir ao parto. Como é possível notar, o parto se
configura como um projeto, isto é, como uma conduta organizada para se alcançar fins específicos
(Schutz, 1979). Segundo Velho (2008), o contexto das sociedades complexas, que favorece o
contato com a diversidade, ao mesmo tempo em que evidencia a singularidade dos sujeitos, se
revela especialmente propício à emergência de elaborados projetos, resposta à – muitas vezes tensa
– coexistência de diferentes configurações de valores. É o mesmo autor quem chama a atenção
para como a formação de um projeto coletivo, somatório de diferentes projetos individuais, está
diretamente relacionada à percepção de que compartilham seus membros acerca da existência de
interesses comuns.
251
quem já tinha um vínculo estabelecido. Não é incomum que a gestante se sinta
“traindo” o profissional e acabe adiando a decisão.
Mas apesar da resistência inicial, a troca de profissional costuma ser
qualificada como positiva pelas mulheres que optam por fazê-la, em especial no
que se refere ao tipo de relação que constroem com o obstetra “humanizado”.
Com freqüência, o médico é por elas descrito como um “amigo”, isto é, como
alguém com quem estabelecem uma relação informal e pessoal183. Um prérequisito para essa aproximação parece ser o fato de o profissional, também na
descrição delas, não se posicionar como uma “entidade”. Nesse sentido, trata-se
de uma “pessoa comum”, que não é “arrogante” e não se sente a “tod[a]
poderos[a]”, qualificativos que dizem se aplicar aos médicos de maneira geral.
Não é infreqüente, por exemplo, que médicos “humanizados” sejam chamados
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diretamente por seus nomes, sem fazer uso da palavra “Doutor”. Em alguns casos,
como o de um obstetra “humanizado” que atende na Zona Sul, ele próprio se
apresenta às clientes fazendo uso de seu apelido. Esse médico também não
costuma usar jaleco ou roupas brancas durante as consultas.
Outro aspecto muito valorizado na relação com o profissional
“humanizado” seria a “confiança”, manifestada pela maioria das mulheres, de que
este realizaria apenas intervenções necessárias, o que era a expectativa inicial de
quase todas as entrevistadas. Assim, as mulheres têm a sensação de que elas e
seus médicos “comungam esforços para um mesmo fim” (Salem, 2007: 81).
A confiança, contudo, não reduz a importância que as mulheres atribuem
ao diálogo para, sempre que possível, “chegarem à melhor decisão” junto com o
profissional. De maneira geral, é possível dizer que as entrevistadas acreditam
manter com o médico “humanizado” um relacionamento mais igualitário, que não
costuma marcar esse tipo de relação. Como observa a socióloga Maria Helena
Machado (1997), “o médico não só tem autoridade profissional sobre o paciente,
mas, principalmente, exerce um real e forte poder de ação sobre ele, tornando-o
um consumidor passivo, pouco à vontade para decidir sobre condutas
independentes da opinião de seu médico” (1997: 22).
183
Para dar um exemplo, Angélica comentou que o obstetra que a assistiu no parto esteve presente
no aniversário de 1 ano de sua filha.
252
A construção de uma maior simetria na relação entre médico e “cliente”184
é compreendida nesse universo como resultado de um esforço que envolve ambas
as partes: de um lado as mulheres, que buscam informar-se sobre a fisiologia do
parto, os diferentes procedimentos médicos e suas indicações, de modo a estarem
aptas a participarem do processo decisório, e de outro os médicos, que têm uma
postura crítica em relação à forma como a Medicina ocidental moderna costuma
ser exercida, isto é, desqualificando o sujeito da atenção e convertendo-o em
objeto. Esses profissionais em geral percebem-se como outsiders, sendo muitas
vezes criticados por seus pares devido à forma como atuam.
Contudo, não se pode desconsiderar a possibilidade de que, ainda que faça
parte da filosofia da “humanização”, esse ideal de simetria na relação entre
médico e “cliente” esteja também associado ao fato de que as mulheres desse
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grupo pertencem às camadas médias. Com efeito, afirma Bolstanki,
“Longe de ser uma simples relação ‘de homem para homem’ ou, como quer a
ideologia médica – que ensina a ver no doente apenas um ser abstrato e
indiferenciado, sem levar em consideração, por exemplo, sua classe social ou sua
religião – (...) a relação especialista-profano ou doente-médico é também sempre
uma relação de classe, modificando-se a atitude do médico em função
principalmente da classe social do doente” (1979: 48).
Parto “humanizado”: um projeto
Sofia tinha ouvido falar do que classificou como a “máfia das cesáreas” no
Brasil e não se conformava com a possibilidade de, quando engravidasse, ter que
“entrar na faca” para dar à luz. O projeto de ter filhos ainda estava distante e,
segundo seus cálculos, ela pesquisou sobre o assunto por cerca de três anos:
primeiro na internet, visitando sites, blogues e lendo relatos de parto, e depois por
meio de livros especializados que veio a comprar sobre o tema. Foi assim que, de
maneira independente, tomou contato com termos como parto “humanizado” e
“doula”.
Diferentemente das mulheres que trocaram de médico algumas vezes
durante a gestação, Sofia quando ficou grávida – de gêmeos – buscou diretamente
184
Algumas mulheres dão preferência a esse termo, em detrimento da palavra “paciente”, que
remete a uma postura mais passiva. A palavra “cliente”, por outro lado, põe ênfase no fato de que
a gestante, naquele contexto, é também uma consumidora, com direito de escolher e decidir sobre
o que “consome”.
253
um profissional “humanizado” (“Eu sabia que no plano eu não ia achar ninguém,
então eu fui direto à fonte”, afirmou). Como ela, Manuela e Simone relataram ter
pesquisado sobre o assunto muito tempo antes de efetivamente decidirem
engravidar, o que sugere uma grande ingerência dessas mulheres sobre seu corpo
e seu ciclo reprodutivo.
Vale destacar que, mesmo entre as mulheres que só vieram a almejar um
parto “natural” “humanizado” durante a gestação, a agência pessoal parece ser
uma condição necessária para dar à luz dessa maneira, levando em conta que,
como elas mesmas observam, a estrutura do sistema privado de saúde, do qual são
usuárias, está montada de maneira quase exclusiva para atender aos partos
cirúrgicos185.
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“Assim que eu fiquei grávida (...) eu comecei a correr atrás. Aí você dá de cara
com um médico que é cesarista. E você vê que, se você ficar ali, seu filho vai
nascer de segunda à sexta em horário comercial. Você tem que, realmente, correr
atrás. Porque quem quiser... não basta querer, infelizmente, não basta querer no
Brasil pelo menos. Você tem que buscar aquilo que você quer.” (Kátia)
“Desde o início [da gravidez] eu sempre pensei no parto. (...) Porque acho que se
você tem um pouco de consciência, eu acho que você começa a pensar nisso
desde o início, principalmente quando você quer estar ativa nesse processo.
Porque se você não pensa, é porque você não quer fazer o seu parto. Eu conversei
com uma amiga minha que está grávida de seis meses e eu falei assim: ‘E aí,
você vai querer ter normal?’. E ela: ‘A médica falou que depois a gente conversa
sobre isso’. Ou seja, ela não quer fazer o parto dela. Não é? Ela quer entregar na
mão da médica, ou seja, a médica vai fazer uma cesárea. Então eu acho que se
você quer tomar à frente disso, você começa desde o início a pesquisar, a se
informar, a trabalhar o seu corpo e a se dedicar a isso”. (Angélica)
Como sugerem Kátia e Angélica, para dar à luz de forma não cirúrgica,
das mulheres de camadas médias é exigido um grande esforço pessoal, o que fica
explícito pelo uso de expressões como “correr atrás” ou “tomar à frente”. Não por
acaso, quase todas afirmaram ter pesquisado profundamente o assunto (“Foi um
mundo novo que se abriu”, definiu Tatiana). Nesse sentido, é como se durante a
gestação ou no período que a antecede, a mulher, por conta própria, fizesse uma
“especialização”, buscando adquirir as “habilidades” necessárias para ter um parto
185
No final da gravidez, eu e meu marido fomos preencher a ficha de pré-internação no site da
maternidade na internet, o que nos disseram que agilizaria a burocracia no momento da internação.
Ali percebemos que as instruções são todas direcionadas às mulheres que vão realizar cesarianas
eletivas, como por exemplo a recomendação de que se chegue na maternidade pelo menos 2h antes
do horário da cirurgia e a solicitação de que se informe, com antecedência, a data da internação.
254
“humanizado”, o que pressupõe informar-se sobre o ideário, identificar e buscar
especialistas afinados com a proposta, conhecer os procedimentos médicos e saber
em quais situações podem vir a ser necessários (estando apta a dialogar com o
obstetra caso ele julgue que deva recorrer a um deles), conhecer os métodos não
farmacológicos para alívio da dor, além de controlar suas emoções.
A imersão, que não raro leva muitas das mulheres de camadas médias a
envolverem-se como ativistas ou profissionalmente, evidencia-se no uso freqüente
de termos médicos e no conhecimento que muitas exibiam sobre os diversos
procedimentos e intervenções. Sobre esse aspecto, Salem (2007), baseando-se em
análises de Lo Bianco (1983), chama a atenção para o fato de que a busca pela
desmedicalização acaba engendrando uma “medicalização de segundo grau”, na
medida em que “a exigência de conhecimentos técnicos em nome do exercício de
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autodeterminação redunda em seu maior envolvimento com o paradigma médico”
(2007: 74). A necessidade das mulheres de camadas médias de informar-se para
ter um parto “humanizado” acaba “consumindo” boa parte da atenção durante a
gravidez, como observa a entrevistada Kátia: “[N]a gravidez a gente fica voltada
para o momento do parto e esquece que o parto não é o fim, é o início”.
Narrando a experiência
A grande ênfase atribuída pelas mulheres à experiência de parto, muitas
vezes motivo de orgulho, faz com que elas com freqüência busquem divulgá-la,
seja por meio de imagens, postando os vídeos de seus partos na Internet ou através
dos chamados “relatos de parto”. Estes podem ser orais, como nos encontros
organizados no curso de preparação para o parto coordenado por Flora, ou
escritos. Nesse caso, os textos costumam ser publicados em sites especializados
ou em grupos de discussão na Internet, sendo avidamente consumidos por
gestantes que almejam um parto “natural” e “humanizado”.
Diferentemente do que ocorre na Aula de Parto, onde o processo de
parturição é descrito em termos ideais, nos depoimentos – muito mais até do que
nos vídeos, que passam por uma edição – a experiência de parto é narrada pelas
mulheres, em geral de forma positiva, mas não sem omitir seus percalços e
“imprevistos”. Tais narrativas de certa maneira reiteram as lições de Flora sobre
255
as especificidades da experiência, que se constrói por oposição a dos partos
“normal” e cesáreo, percebidos como previsíveis e padronizados, devido à
medicalização e à realização de procedimentos de rotina.
“Você vê mil partos e são mil partos diferentes e o seu também vai ser diferente”
(Ana).
Como sugere o comentário de Ana, diante da imprevisibilidade que
acompanha a experiência, vivê-la é quase uma “aventura” e o ato de contá-la seria
semelhante à experiência do viajante que regressa de um país pouco conhecido,
por exemplo, e que ao mesmo tempo deseja e é incentivado pelos demais a falar
sobre o que viu, sentiu ou viveu. Assim, é possível dizer que o caráter inesperado
e imprevisto da experiência é o que a torna tão atraente, o que explica tanto o
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desejo de vivenciá-la quanto de ouvir sobre as experiências de outrem.
É válido salientar que, durante a pesquisa, várias das entrevistadas
referiram-se à influência desses relatos nas opções tomadas e na “construção” e
elaboração prévias ao trabalho de parto, o que sugere que os relatos configuram-se
como parte importante do curso preparatório186.
4.2.2
Abrindo mão da anestesia
Enquanto as mulheres de camadas populares praticamente não tem acesso
à anestesia durante o parto “normal” realizado nos hospitais e maternidades
públicos, a grande maioria das gestantes que integra o grupo de camadas médias
prescinde deliberadamente desse recurso – ou pelo menos tem a intenção de fazêlo187. Tal decisão geralmente costuma gerar um grande estranhamento no meio
social do qual fazem parte, considerando que a luta contra a dor
“se encuentra en corazón de la ideología del Progreso. En la segunda parte del
siglo XIX, ciertamente, se aliviaron buena parte de los males de los hombres con
la difusión de la anestesia. Asimismo ocurre en la actualidad, con la
186
Eu mesma posso dizer que me encaixo nessa situação, que assumiu uma densidade ainda maior
por conta desse estudo.
187
Dentre as entrevistadas, a exceção era Ágata, francesa, que dizia estar agindo a partir de suas
referências culturais – segundo ela, a anestesia peridural é bastante disseminada na França nos
partos “normais”. Na época da entrevista, quando ainda estava grávida, Ágata afirmou que, desde
logo, pretendia tomar anestesia. Para ela, “a peridural é uma coisa moderna que permite fazer um
parto com pouca dor” e “não uma coisa ruim”.
256
generalización del empleo de los antálgicos en la vida cotidiana” (Le Breton,
1999: 20).
Com efeito, afirma Le Breton, há uma “cresciente opinión de que todo
dolor es inútil y conviene desembarazarce de él sin demoras” (1999: 31), o que
acaba contribuindo para a medicalização de dores que em outros tempos eram
socialmente reconhecidas como parte da existência, como ocorria com o parto.
Esta visão é, sem dúvida, bastante disseminada em nossa sociedade, o que faz
com que, no meio social no qual as entrevistadas estão inseridas, rótulos como
“radical”, “maluca”, “masoquista”, entre outros, não tardem em aparecer:
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“Parece que eu sou muito radical. As pessoas não conseguem entender que eu
quero tentar, pelo menos, parir sem anestesia. Eu quero tentar. Se eu não
conseguir, ok. Eu vou tomar anestesia, sabe? Não é o fim do mundo, mas eu
quero tentar assim. As pessoas me acham louca”. (Tatiana)
“As pessoas pensam o quê: Você quer ser Mulher Maravilha? Você é maluca?
Você é masoquista? As pessoas pensam de tudo”. (Alice)
“As pessoas têm muitos preconceitos ainda, não entendem, acham que é uma
coisa primitiva. Como não conhecem não entendem”. (Angélica)
“Meu marido não me apóia porque acha que parto sem anestesia é coisa de
hippie”. (Cíntia, nota do caderno de campo).
Para algumas, as críticas vieram principalmente da família de origem, em
especial da mãe e da sogra, que tinham dificuldades em compreender as
motivações para sentir dor diante da oferta de recursos medicamentosos para seu
alívio (Tatiana, Elena, Alice, Angélica). Já outras narraram a falta de
compreensão do marido (Alice), enquanto houve quem relatasse grande
dificuldade em sua escolha ser aceita por pessoas da mesma faixa etária (Tatiana),
supostamente mais propensas à cesárea, o que não se observava em gerações
anteriores ou nas situações em que a família de origem era proveniente de outros
países (Ana, Andréa).
A escolha por abrir mão da anestesia, segundo os relatos das mulheres,
tem mais de uma motivação. Uma delas refere-se ao interesse em vivenciar
plenamente as sensações corporais que advém da experiência, assunto que será
retomado e explorado mais adiante.
257
Outra está relacionada à possibilidade de a parturiente manter-se ativa
durante o trabalho de parto. Nesse sentido, as mulheres temem que o
medicamento as atrapalhe na hora de fazer posturas, exercícios ou simplesmente
buscar posições que lhes pareçam mais confortáveis. Elas argumentam que, a
depender da dosagem administrada, a medicação pode interferir no controle sobre
o corpo, em especial das pernas, comprometendo a liberdade de movimentos. Da
mesma forma, o cateter que é colocado na veia da paciente para a administração
do medicamento e ali permanece, caso seja necessário aumentar a dosagem da
droga, também contribuiria para isso.
Mas se a anestesia, sob esse aspecto, poderia interferir negativamente
sobre o trabalho de parto de maneira geral, haveria um momento específico que
suas conseqüências seriam percebidas como ainda mais prejudiciais, isto é,
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durante o período expulsivo. Isto porque o medicamento pode levar a mulher a
perder totalmente as sensações do corpo-em-trabalho-de-parto, vindo a depender
das instruções dadas pelo obstetra sobre quando ocorrem as contrações –
momento em que dela é esperado fazer força –, já que não saberia identificá-las.
Nesses casos, caberia ao médico informá-la, em alguns casos por meio da
observação do monitor fetal. Assim, a parturiente precisaria do profissional e do
aparato tecnológico para saber como e quando sua atuação seria necessária, o que
é avaliado, de maneira geral, como extremamente negativo, pois entra em choque
com o projeto de retomada de controle sobre o corpo feminino, compartilhado por
várias mulheres do grupo. Nesse sentido, Andréa, que teve parto “normal” com
anestesia quando deu à luz ao primeiro filho, conta ter se sentido infantilizada ao
perder suas sensações e depender das instruções da equipe médica para conseguir
parir:
“A partir do momento em que entra a anestesia, você não é mais dona do seu
corpo. Então foi o que aconteceu, não é? Ainda mais com eles empurrando [a
barriga], tendo que me falar as contrações. Eles se sentindo bem nesse domínio
sobre mim e eu, tipo, me senti uma criança (...), assim, que a mãe fala: “Ah, vai
fazer isso agora. Agora você faz isso”. (Andréa)
A dor, nesse sentido, seria um sinalizador da contração, mas, diante de sua
ausência – provocada pelo uso da anestesia –, Andrea teria se sentido alienada de
seu próprio corpo e do processo de parturição como um todo, como sugere o
relato a seguir:
258
“Quando saiu, eles botaram o Eduardo no meu colo. Aí, eu fiz: “Ih!” Fiz um
gritinho como uma menininha que perdeu uma coisa no chão. Assim, a gente até
apagou o vídeo, porque não dá para aguentar ver esse vídeo que o meu marido
filmou, não é? Já apagou. Nunca mais. A gente queria se livrar disso, porque foi
ridículo. Assim, até no vídeo apareceu eu “Ih!”, como se eu tivesse tropeçado em
alguma coisa. Aí, botaram ele no meu colo e eu senti: “mas como assim?”. Eu me
senti constrangida com ele, de ter ele no meu colo até. Porque eu pensei: “Nossa,
eu não fiz nada. Isso não pode ser o meu bebê agora”. Eu quase não acreditei
assim. Eu me senti mal assim. Eu senti como se eu não tivesse merecido ele no
meu colo”.
Como é possível notar, a ausência de sensações provocada pela anestesia
teria feito com que Andréa não reconhecesse qualquer participação ou
contribuição pessoal para o nascimento do filho, que teria, na sua percepção,
dependido exclusivamente da equipe médica, gerando um apagamento do papel
de parturiente. O comentário de Angélica, que é um pouco menos incisiva,
também aponta para a mesma direção: “Não é só a dor que você não sente, você
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não sente o seu filho saindo de você”.
As mulheres relatam ainda uma terceira motivação para optar por não
receber anestesia no parto. Muitas das drogas para alívio da dor atravessam a
barreira placentária, o que significa que o feto também as recebe, ainda que em
pequenas doses. Estudos sobre o assunto reconhecem o fato, mas indicam que os
progressos alcançados na área permitem oferecer um “bom nível de segurança
para o binômio mãe-bebê” (Chaves et al., 2009: 22). Algumas mulheres, porém,
dizem-se incomodadas com a possibilidade de o medicamento interferir não
apenas na sua experiência de parturição, mas também na do bebê188.
Por fim, há ainda o argumento, apresentado por algumas, de que o
medicamento pode vir a desencadear a chamada “cascata de intervenções”,
anteriormente referida. De fato, o exemplo do primeiro parto de Angélica parece
corroborar essa tese. Na ocasião, ela tomou anestesia, o que acabou diminuindo o
ritmo das contrações. Isso fez com que lhe fosse administrada, em seguida,
ocitocina sintética, para tentar compensar os efeitos da anestesia. Os
188
A preocupação com a forma como este vivencia a experiência de parto e nascimento aponta
para a influência das idéias do obstetra francês Frédérik Leboyer, que, como visto no capítulo 2, na
década de 1970 publicou o livro “Nascer Sorrindo”, obra até hoje referida por ativistas e adeptas
da “humanização”. Com efeito, algumas das entrevistadas revelaram ter lido o livro de Leboyer,
autor que afirma que os recém-nascidos não são reconhecidos como “pessoas”, mas tratados como
“objetos”, o que teria como base um postulado solidamente estabelecido de que “não sentem nada,
não ouvem, não vêem” (Leboyer, 1988: 15).
259
procedimentos limitaram sua liberdade de movimentos e conduziram a uma perda
parcial das sensações no momento expulsivo que, segundo ela, refletiu-se em uma
maior dificuldade para estabelecer um vínculo com o bebê. Nesse sentido, é como
se as drogas tivessem anestesiado não apenas a dor, mas todas as suas emoções,
inclusive as do registro do afeto189. Segundo ela, teria havido uma momentânea
“perda de sensibilidade afetiva”, que fez com que o vínculo com a filha não fosse
construído de imediato, como ela julga ter ocorrido com o segundo filho, que
nasceu em um parto sem intervenções.
Deve-se destacar que a recusa à anestesia, em geral, conta com o apoio da
equipe “humanizada”190 e é incentivada nas aulas de preparação para o parto.
Segundo as mulheres, esta decisão é tomada com antecedência e prevê uma
grande preparação, como o aprendizado sobre técnicas não farmacológicas para
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alívio da dor. O repertório descrito é semelhante àquele sugerido na casa de parto
e inclui o uso de água quente (banheira ou chuveiro), massagens, técnicas
respiratórias, etc. Além do preparo físico, o emocional também é considerado
fundamental. Tal preparo pressupõe uma ressignificação da dor, que é positivada
e encarada como necessária e até mesmo “amiga”. Alice conta ter se preparado
durante toda a gestação e faz uma comparação com a experiência do corredor de
maratonas:
“Eu falo que é tipo quando você vai correr uma maratona. Não é do nada. Assim:
‘Ah, eu levantei e vou correr uma maratona’. Não. Você tem que se preparar se
você quer mesmo. (...) você vai entendendo que aquela dor ali é para o seu bebê
nascer, que é boa e depois vai passar. Eu me preparei. Não foi uma coisa assim
que eu acordei, fui para a maternidade e tomei essa decisão no caminho. Foi uma
coisa que foram nove meses de planejamento”. (Alice)
Contudo, um aspecto muito importante a se destacar é que a opção por não
tomar anestesia não é necessariamente irrevogável, como indica o relato de
Tatiana:
189
De acordo com Le Breton, “la anestesia del dolor implica también la del placer. Al eliminar la
sensibilidad al sufrimiento, también se insensibiliza el juego de los sentidos, se suspende la
relación con el mundo” (1999: 208).
190
Uma prática bastante comum é o anestesista, que integra a equipe e é convocado quando a
mulher entra em trabalho de parto, nunca aparecer diante dela, a menos que expressamente
solicitado pela parturiente. É quase uma tentativa de se evitar que a mulher caia na “tentação”. No
meu trabalho de parto, por exemplo, em momento algum tive contato com o anestesista.
260
“Eu quero tentar, pelo menos, parir sem anestesia. Eu quero tentar. Se eu não
conseguir, ok. Eu vou tomar anestesia, sabe? Não é o fim do mundo, mas eu
quero tentar assim”.
Na realidade, trata-se de uma intenção, que pode ser reafirmada ou
abandonada durante o trabalho de parto, quando a mulher efetivamente souber o
que essa meta representa em termos de sensação corporal e controle emocional.
Ainda que seja possível argumentar que a escolha por abrir mão da anestesia e de
outros recursos médicos não é exatamente individual, mas direcionada por um
modelo “humanizado” de parir – que corre o risco de incorrer em uma
normatização assim como o modelo hegemônico –, no contexto das camadas
médias as mulheres parecem ter mais autonomia e liberdade para interferir no
processo de parturição. Noutras palavras, os rumos do parto parecem sofrer maior
influência das escolhas das parturientes, que podem, se assim o desejarem, até
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mesmo abandonar o projeto inicial de desmedicalização – comum a quase todas as
entrevistadas –, tendo todos os recursos tecnológicos a seu alcance, ainda que, no
caso do parto domiciliar, isso implique em uma transferência.
***
O parto de Elena
Quando conheceu a proposta de parto “natural” e “humanizado”, no início
da gravidez, Elena imaginava que, durante o trabalho de parto, sentiria dores
semelhantes às de cólica menstrual, que se intensificariam no final, já perto da
hora de dar à luz. Ela estaria de cócoras ou na água, “como elas falavam” –
referindo-se aos relatos que ouvira de outras mulheres do grupo que lhe serviram
de inspiração – e seu filho nasceria em um clima “bem tranqüilo”.
Era uma sexta-feira e Elena, que estava com 37 semanas e 5 dias de
gestação, não tinha ido trabalhar, pois funcionários da loja onde comprou os
móveis do quarto do bebê viriam montá-los. Deitou-se tarde, por volta das 23h e,
em torno de meia-noite, foi ao banheiro, onde notou que um líquido, que
identificou que não era xixi, escorria por suas pernas. Logo se deu conta de que a
bolsa de águas havia rompido. Chamou o marido e decidiram ligar para a
261
enfermeira obstetra, assistente de sua médica191, como havia sido previamente
combinado.
No telefonema, a orientação dada foi a de que Elena monitorasse o
intervalo entre as contrações e voltasse a entrar em contato quando este estivesse
ocorrendo de forma regular, aproximadamente a cada 5 minutos. A enfermeira
também a orientou a tentar descansar e dormir, alertando que o trabalho de parto
provavelmente só “deslancharia” na parte da manhã. O marido seguiu as
instruções e Elena, que não conseguiu pregar o olho, ficou assistindo televisão. Às
5h ela o acordou, já cansada de ficar sozinha e, pouco tempo depois, ligou
novamente para a enfermeira: “Olha, [a contração] já está forte. Eu estou achando
que já está em uma sequência que já dá para tu vir para me acompanhar”, disse ao
telefone. “Eu achava que ia poder ir para o hospital de manhã”, comentou durante
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a entrevista.
Quando a enfermeira chegou à sua casa fez um exame de toque e se
limitou a dizer que “ainda estava longe”, acrescentando que o melhor era ficar ali
e “trabalhar”. Elena começou a fazer exercícios, colocou compressa de água
quente nas costas, tentou relaxar no chuveiro, mas a dor que sentia àquela altura
era “horrível”: “Uma dor que parecia que estava abrindo as costas. Doía o
intestino, doía a barriga embaixo, não tinha nada que adiantasse”.
O tempo foi passando e, no início da tarde, Elena começou a dizer que
queria ir para o hospital tomar anestesia. A enfermeira fez um novo exame de
toque e tentou demovê-la da idéia, pois considerava que o melhor ainda era
permanecer em casa. “Naquela hora, depois meu marido me disse, eu estava com
1 dedo de dilatação e ela não me contou para não me deixar nervosa. Eu achava
que já estava com uns 5 dedos e que já era hora de ir para o hospital”. Depois de
muito insistir, Elena foi para a maternidade, acompanhada da enfermeira obstetra
e do marido. Com vergonha de fazer escândalo na recepção, aguardou dentro do
carro até que fosse concluído o processo de internação.
191
A médica de Elena, que é reconhecida e identifica-se como “humanizada”, costuma trabalhar
com uma enfermeira obstetra em sua equipe, que é quem faz o acompanhamento inicial do
trabalho de parto e, de certa forma, atua como doula. Essa não é uma prática comum entre os
obstetras “humanizados”, sendo a única equipe com essa configuração que tomei conhecimento
durante a pesquisa.
262
Contrastando com seu nervosismo e ansiedade, a médica chegou “bem
tranqüila” na maternidade, cerca de 2 horas depois. Um novo exame de toque foi
feito e Elena foi informada de que estava com 6cm de dilatação. Nesse momento,
ela foi transferida do quarto para a sala de parto e lá, atendendo a seu pedido,
recebeu a anestesia peridural. Apesar da dor da “agulhada”, Elena ficou satisfeita,
relaxou e conseguiu descansar. “Fiquei super tranqüila porque daí eu não sentia
mais nada”. O médico advertiu que o efeito da anestesia duraria por cerca de 2h e
foi, segundo Elena, justamente o que aconteceu.
Quando começou novamente a sentir as dores provocadas pelas
contrações, a médica fez um novo exame de toque e informou-a de que já estava
com 9cm de dilatação. Elena não teve dúvidas: “Eu quero mais anestesia”,
afirmou. A obstetra explicou que, naquele momento do trabalho de parto, teria
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que ser aplicada uma dosagem menor, para que ela pudesse sentir as contrações e
fazer a força necessária para dar à luz no período expulsivo. “Dito e feito”,
afirmou Elena, que mesmo anestesiada conseguia mudar de posição e sentir as
contrações.
Já com 10cm de dilatação, a parturiente tentou por diversas vezes – sem
sucesso – expulsar o bebê. Foi então que a equipe reuniu-se por alguns instantes e
em seguida informou-a de que o feto provavelmente não estava na posição
correta, o que estaria dificultando sua descida. Por esse motivo, disseram-lhe que
seria necessário fazer algumas manobras para tentar encaixá-lo. Elena
inicialmente concordou. “Só que daí eu sentia umas dores horríveis porque ela [a
médica] enfiava a mão lá dentro e girava”. Em uma dessas manobras, em um ato
reflexo, ela empurrou a obstetra com o pé. Em seguida, afirmou categórica: “Olha,
eu quero fazer uma cesárea. Eu queria um parto que fosse normal de normal, não
tendo que fazer essas manobras. Eu não quero passar por isso”.
Em 15 minutos Elena foi transferida para o centro cirúrgico. Lá, tomou
uma dose maior de anestesia e, pouco tempo depois, o bebê nasceu, às 22h45. Ele
foi levado para o berçário, acompanhado pelo pai. Elena, que apesar de não ter
sentido dor, tinha ficado incomodada na hora do parto por ter sentido a pele sendo
cortada e a busca pelo bebê dentro de seu corpo, pediu ao anestesista que lhe
desse mais uma dose do medicamento, dessa vez para “apagar”. “Eu quero dormir
263
e acordar depois que já costuraram e já fizeram tudo”. Ela voltou a si cerca de 1
hora depois.
***
Apesar de apoiar e ter como prática o parto desmedicalizado192, a equipe
médica “humanizada” que prestou assistência à Elena – não sem alguma
resistência – acabou agindo de modo a respeitar seu desejo. A parturiente, como
foi possível notar, interveio diretamente sobre os rumos do parto, que, a depender
exclusivamente da forma de atuação da equipe que lhe prestou assistência,
certamente teria sido muito diferente.
A experiência de Elena aparentemente refletiu um importante preceito do
ideário da “humanização”, qual seja: o de que “o parto é da mulher” e não do
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médico. Esse preceito, portanto, se sobreporia ao da desmedicalização, como
também sugere o depoimento do obstetra Marcelo, uma importante referência no
cenário nacional da “humanização”:
“O parto humanizado para mim é esse: que a mulher tem controle, que seus
desejos são respeitados, seja ele o desejo de fazer uma analgesia, seja o desejo de
parir dentro d’água, seja o desejo de poder comer, beber, de não levar uma
episiotomia. Ou de ter uma episiotomia se ela pedir, se ela quiser uma
episiotomia. E até, nesse sentido, reconhecer o direito da mulher de pedir uma
cesárea (...) se a mulher tem acesso à informação de qualidade e capacidade de
decidir. Então estou falando de alguém que pode realmente ser sujeito do
processo”. (Obstetra)
Segundo esse obstetra, um pré-requisito para o parto “ser da mulher” é que
a parturiente esteja devidamente informada sobre as conseqüências de suas
escolhas – não importam quais sejam elas. Assim, segundo essa visão, o parto
“humanizado” parece estar além da desmedicalização, sendo este também o
entendimento de algumas entrevistadas do grupo, ainda que quase todas
desejassem inicialmente ter um parto “humanizado” e desmedicalizado, isto é,
“natural”, para reproduzir o termo por elas utilizado.
192
E, nesse sentido, o fato de a enfermeira não ter contado à Elena que estava com apenas 1cm de
dilatação deve ser interpretado como uma estratégia condizente com essa prática.
264
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“O parto natural é um parto sem nenhuma intervenção, sem uso de ocitocina
sintética ou anestesia, por exemplo. É um parto totalmente fisiológico. E o parto
humanizado é onde o protagonismo da mulher é respeitado, onde todas as
decisões ou intervenções são informadas e consentidas ou não pela mulher. Um
parto pode ser humanizado mesmo com o uso de anestesia, se essa decisão partir
da mulher. Nesse caso seria um parto humanizado, mas não natural. O contrário
também pode acontecer: a mulher pode ter um parto natural e ser desrespeitada
na assistência ou sofrer algum tipo de violência obstétrica, que não precisa ser
necessariamente uma intervenção.” (Vanessa)
“Na minha opinião, o parto natural é o parto sem intervenções, como o uso de
drogas ou cirurgias. Já o parto humanizado é aquele em que a mulher tem seus
direitos, desejos e tempos respeitados, ela e seu bebê são tratados com cuidado e
respeito, e todo o ambiente é resguardado para que a mulher possa ter seu filho
sem interferências indesejáveis. Ou seja, a humanização é um papel realizado
pelos profissionais, a sua assistência é que é humanizada. O parto humanizado
pode ser natural ou não, porque se for o desejo da mulher ou se for necessária
alguma intervenção e ela for feita de comum acordo com os pais ele continua
sendo humanizado, mas não natural. Já o parto natural pode não ser humanizado
se a mulher sofrer algum tipo de violência no seu atendimento, se os seus tempos,
desejos e direitos forem desrespeitados, mas mesmo assim ela não fizer a
utilização de drogas ou cirurgias, se o parto acontecer apenas através das forças
naturais de seu corpo”. (Manuela)
“Eu defino o parto natural, seja ele assistido ou não, como um processo
exclusivamente determinado pela fisiologia da parturiente e do bebê sem
intervenções externas. E o termo parto humanizado, para mim, traz um conceito
mais amplo... eu vejo como uma resposta a uma realidade em que o parto tende a
virar um mero ato mecânico de médicos, não natural, antihumano... O parto
humanizado pra mim envolve um profissional ou uma equipe de profissionais,
incluindo pediatra, enfermeira... que são conscientes e convencidos do
protagonismo da mulher antes, durante e depois do parto. (Andréa)
“Eu acho que o parto humanizado é o parto onde você tem as suas vontades
respeitadas. Então, assim, na minha opinião, se você quer uma cesariana, você
pode fazer. Se você tem essa vontade respeitada e se você se sente bem, eu acho
que você teve um parto humanizado. Entendeu? Agora se você for levar em conta
que o parto humanizado é aquele com o mínimo possível de intervenções também
é outro conceito. Pode ser também, mas aí eu acho que seria mais, assim, um
conceito de parto natural. Então eu acho que um parto natural é o que tem o
mínimo possível de intervenção. E o humanizado eu definiria como o parto que
você teve suas vontades respeitadas. E aí um parto natural e humanizado eu acho
que seria o ideal”. (Alice)
Como é possível apreender dos depoimentos, as categorias parto “natural”
e parto “humanizado”, ainda que diversas vezes referidas nos discursos das
entrevistadas desse grupo de modo intercambiável, são aqui claramente
diferenciadas. Dessa forma, o parto “humanizado”, que com freqüência costuma
englobar o parto “natural”, isto é, desmedicalizado, não se limita a ele, podendo o
parto com intervenções ou mesmo o cirúrgico ser considerado “humanizado”,
desde que atenda à demanda de uma parturiente informada sobre seus riscos e
265
benefícios. Noutras palavras, a idéia de “humanização”, segundo essa leitura, põe
ênfase nos direitos da mulher sobre seu corpo e parto. Por outro lado, é
interessante
destacar,
o
parto
“natural”
tampouco
é
necessariamente
“humanizado”. Como apontam os relatos de Vanessa e Manuela, a ausência de
intervenções não representa garantia de que a parturiente tenha suas escolhas
respeitadas.
Nesse aspecto, a experiência de parto de Elena me remeteu a de Carla,
cujo trabalho de parto pude presenciar durante a pesquisa de campo na casa de
parto. O desejo de Carla de ter uma cesariana, diversas vezes expresso, foi
ignorado pela equipe. É certo que a CP possui limitações de infra-estrutura e as
profissionais que lá atuam (enfermeiras-obstetras) não estão habilitadas a realizar
um parto cirúrgico, como o que estava sendo demandado por ela. As enfermeiras
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também não podem administrar anestesia, recurso ao qual Carla possivelmente
teria feito uso se este lhe fosse acessível – o que, como já mencionado, tampouco
parece ser o caso nas maternidades e hospitais públicos. No entanto, a
transferência de Carla para a maternidade de referência, onde, em tese, poderia ser
submetida a uma cesariana, foi insistentemente rejeitada pela equipe, sob a
alegação de que, para ser realizada, deveria haver uma justificativa clínica, que no
caso era inexistente: tratava-se apenas de um desejo da paciente. Com efeito, a
transferência só veio a ocorrer no dia seguinte, após Carla tê-la solicitado durante
toda a madrugada e, ainda assim, apenas quando houve troca de turnos no plantão.
Como é possível notar, a escolha de Carla de ter um parto medicalizado ou
mesmo de ser transferida para a maternidade, abrindo mão da intenção inicial de
dar à luz ali, não foi atendida. Essa não era uma opção que lhe tivesse sido
oferecida. Na casa de parto, portanto, a proposta de oferecer um parto
“humanizado” esbarra em limitações de infra-estrutura e técnicas e só se
concretiza para as mulheres que estão fortemente comprometidas com a intenção
de ter um parto “natural”, o que nem sempre é o caso, como o demonstra a
experiência de Carla.
266
4.2.3.
Motivações
Como se verá a seguir, as entrevistadas apresentaram mais de uma
motivação para justificar o interesse em ter um parto “natural” e “humanizado”.
Ao analisar as informações colhidas ao longo das entrevistas, foi possível
categorizar tais motivações em quatro tópicos principais:
Liberdade de escolha
Das 12 mulheres entrevistadas, mais da metade (Andréa, Angélica,
Manuela, Sofia, Simone, Tatiana e Vanessa) mencionou ter feito a opção por esse
tipo de parto por acreditar que, dessa forma, teria mais liberdade para fazer suas
escolhas e confiança de que estas seriam respeitadas pelo profissional de saúde.
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Tais escolhas referiam-se à possibilidade de eleger as posições que lhes
parecessem mais agradáveis durante o parto, de movimentar-se livremente – sem
ter que ficar atada a aparelhos de monitoramento –, de decidir sobre o uso de
medicamentos e intervenções médicas, de ditar a temporalidade do trabalho de
parto, etc.
Na visão de algumas delas, essas escolhas, na realidade, não seriam feitas
racionalmente, mas pelo corpo-em-trabalho-de-parto. O pressuposto, nesse caso, é
de que o corpo é inteligente e detém um conhecimento inato, que tem a
possibilidade de expressar-se em condições adequadas (de ambiência e pessoas),
idealmente assumindo o controle sobre a razão. “É o que o corpo manda no
momento”, definiu Sofia.
À equipe médica, da qual a maioria não abre mão, caberia respeitar essas
escolhas – fossem elas emanadas do corpo ou da razão. Para as mulheres, dessa
forma se abriria caminho para que pudessem assumir o controle sobre o parto,
cabendo ao médico o papel de coadjuvante. Com efeito, o profissional de saúde
seria solicitado apenas nas situações em que o corpo-em-trabalho-de-parto
eventualmente falhasse. Com o controle sobre o processo, as mulheres
assumiriam a “autoria” do parto, que deixaria de ser realizado de forma
padronizada, ignorando indivíduos e particularidades.
267
É certo que a ideia de escolha, considerando-se que esta é feita em meio a
um repertório de possibilidades apresentado pelos especialistas e ativistas, pode e
deve ser problematizada, como fez Almeida (1987) em pesquisa realizada nos
anos 1980 junto a gestantes adeptas do parto “natural” e do que denominou de
uma proposta “alternativa” de maternidade. Baseando-se em Michel Foucault, a
autora argumenta que a capacidade que as mulheres tinham de escolher
livremente estava atrelada, de maneira paradoxal, a uma extensa rede de
mecanismos e estratégias disciplinares acionada pelas “novas autoridades”, isto é,
pelos especialistas, que vieram a assumir o lugar outrora ocupado pela família.
Almeida afirma que a complexidade desses mecanismos “consiste exatamente em
produzir eficazmente a operação que transforma ‘o seguir a disciplina e as
normas’ num ‘desejo’ do sujeito” (1987: 119), o que também parece ocorrer, em
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alguma medida, no projeto de “humanização”. Segundo a autora,
“é neste sentido que a noção de escolha individual (...) que aparece para as
gestantes como uma ‘liberação’ em relação à norma e à autoridade (médica,
familiar), pode ser entendida como uma nova estratégia de facultar ao sujeito o
‘privilégio’ de controlar-se a si próprio e, ao mesmo tempo, sentir-se ‘liberado’
porque escolhe” (Almeida, 1987: 119 - grifos da autora).
Desejo de sentir
O interesse em vivenciar as sensações corporais desencadeadas pelo
trabalho de parto foi mencionado por oito entrevistadas (Alice, Ana, Andréa,
Angélica, Kátia, Sofia, Simone e Tatiana), configurando-se como um fator
importante na decisão das mulheres do grupo para dar à luz dessa forma, como
sugerem os relatos abaixo:
“Eu acho que o parto é uma experiência muito intensa, muito importante na vida
da mulher e eu quero passar por isso assim... e tentar sentir o máximo disso,
extrair o máximo dessa experiência. Eu acho que quanto menos tiver intervenção
desnecessária mais eu vou conseguir extrair o máximo do meu parto. (...) Eu
estou disposta a sentir a dor mesmo, porque ela faz parte desse processo que é
muito bacana, não é? Eu acho que é uma dor que faz a gente crescer depois”.
(Tatiana)
“As mulheres marcam cesariana (...) porque [dizem] ‘eu não quero sentir nada’.
Eu acho muito estranho você ter um filho e não sentir nada”. (Kátia)
[O meu incômodo no primeiro parto foi] Não sentir, assim, era não saber... É
como se fosse assim, é o que eu falo para as pessoas: um filme que eu tinha o
início e o fim, que é quando você recebe o bebê, mas aquele meio ficou faltando.
268
(...) [Agora] Eu falei assim: “bom, se eu estou no parto, eu quero sentir o parto.
Porque eu vou estar fazendo um negócio e vou estar eliminando a sensação que
aquela coisa ali me dá?”. (Alice)
“Eu me senti muito realizada no meu primeiro parto, mas ficou essa dúvida:
como é que teria sido se eu não tivesse tomado anestesia? E dessa segunda vez eu
falei assim: “Nossa! Eu quero ir além. Eu quero sentir tudo. Eu quero dar o
máximo”. (Angélica)
Como sugere o relato de Alice, no caso do parto, a dor faz parte da
completude da experiência. De fato, ressalta Le Breton (1999), a anestesia, nas
situações em que o indivíduo espera sentir dor, provoca um sentimento de
“irrealização” ou “inacabamento”, na medida em que o priva de uma referência
essencial que o afasta da realidade da experiência. De maneira geral, o desejo de
vivenciar o parto da forma mais “natural” possível está associado à intenção de
não ter nada que reduza ou minimize as sensações por ele desencadeadas e, nesse
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sentido, a intensidade do processo é valorizada, pois considera-se que dela advém
a riqueza da experiência. O assunto, por sua relevância para a pesquisa, será
retomado adiante, mais precisamente na sub-seção “Parto como processo: em
busca do aperfeiçoamento subjetivo”.
“É melhor para o bebê”
A preocupação com a experiência de nascimento do bebê foi referida por
seis entrevistadas (Tatiana, Elena, Angélica, Manuela, Simone e Kátia), que
elencaram dentre os motivos que as levaram a optar por um parto “humanizado” o
fato de considerarem que essa proposta seria capaz de oferecer a seus filhos uma
experiência que qualificam como mais prazerosa e respeitosa, como sugere o
relato de Tatiana:
“[Quando eu penso no] parto humanizado, eu penso nos desejos da mãe sendo
todos atendidos, e nesse bebê chegando ao mundo com muito carinho, sem os
procedimentos de aspiração, colírio, incubadora, mamando na sala de parto e
tendo a presença de um dos pais em tempo integral”. (Tatiana)
Para essas mulheres, não só as intervenções de rotina do parto devem ser
questionadas, mas também aquelas realizadas nos bebês nas primeiras horas de
vida. Assim, seriam alvo de críticas o clampeamento precoce do cordão umbilical,
a aspiração com sonda, a aplicação de vitamina K por via injetável, a
administração de colírio de nitrato de prata nos olhos do recém-nascido, dentre
269
outras práticas. O colírio costuma ser especialmente questionado, pois, segundo as
mulheres, é indicado apenas nos casos em que as mães são portadoras de
gonorréia ou clamídia. No entanto, é aplicado de rotina nas maternidades,
inclusive em partos cesáreos, isto é, quando o bebê não passa pelo canal de parto,
onde poderia se contaminar.
As entrevistadas que manifestaram preocupação com o bem-estar do bebê
ao nascer parecem ter encontrado inspiração nas idéias do médico francês
Frédérik Leboyer. Como visto no capítulo 2, o obstetra francês foi o primeiro a
desviar o foco da atenção, durante o parto, da mulher para o recém-nascido,
denunciando que os procedimentos de rotina impunham um sofrimento ao bebê.
Ao contratar uma equipe “humanizada”, que inclui não apenas o obstetra e seu
assistente, mas também um pediatra afinado com o ideário, as mulheres
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esperavam reduzir as intervenções que costumam ser realizadas de rotina nos
recém-nascidos, o que acreditavam que favoreceria a formação do vínculo com o
bebê.
“Eu queria ter um parto o mais natural possível”
O desejo de ter um parto “mais natural” foi mencionado pela maioria das
entrevistadas, tendo aparecido com maior ênfase, contudo, nos depoimentos de
três delas (Ana, Simone e Vanessa). A idéia de um parto “mais natural” – que, não
se deve perder de vista, foi construída a partir de um conceito de natureza
culturalmente fabricado (Rodrigues, 2006) –, apareceu de maneiras diversas nos
relatos dessas mulheres, algumas vezes mesclando-se com a noção de parto
“humanizado”, noutras dela se diferenciando, como também observou Carneiro
(2011) em sua pesquisa.
É possível dizer que, em alguns momentos, a expressão “mais natural” foi
utilizada entre as mulheres etnografadas para referirem-se a um parto em que há o
mínimo de “interferência”, termo que nesse contexto foi associado à realização de
procedimentos médicos e ao uso de tecnologia. Com efeito, para elas tais
intervenções são percebidas como negativas e indesejadas, pois seriam capazes de
“bagunçar”, “atrapalhar” e “prejudicar” o processo de parturição, que é valorizado
em termos sensoriais, sendo esta considerada uma experiência “constitutiva”
270
(Duarte, 1998: 22), uma vez que através dela se busca aceder a uma
transformação interior.
Por outro lado, é interessante destacar, a ideia de aperfeiçoamento pessoal,
que está associada à valorização da experiência, não exclui uma visão fisiológica
universalizante, que também permeia a noção de parto “natural”. Com efeito, este
aparece nos relatos dessas mulheres como um parto que, simultaneamente,
obedece e é resultado de uma “ordem”, de um “encadeamento” ou de uma
“grande sinfonia”193, que é comum a todos os corpos, o que tornaria esse tipo de
parto, supostamente, acessível a todas as mulheres. Segundo essa visão, o
“natural” provê a ordem enquanto a tecnologia (ou a cultura) a desordem, a partir
de uma visão – muitas vezes presente nos movimentos ambientalistas e no próprio
conhecimento científico formal – de que a natureza está em estado perene de
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equilíbrio.
Diante disso, a tecnologia/cultura é positivada e vista como complementar
apenas nos casos, qualificados como excepcionais, em que são observadas falhas
no processo “natural” de parturição que, como regra, é considerado perfeito e
eficaz. Esta visão se opõe àquela, prevalecente na Obstetrícia e predominante em
nossa sociedade, na qual o parto é percebido como um fenômeno arriscado e
perigoso (Chacham, 2004a), havendo necessidade de um maior controle, através
da medicalização de rotina e do uso regular de tecnologias.
De fato, a ideia de um parto “mais natural”, tal como formulada pelas
entrevistadas, aponta para uma supervalorização do corpo e ao que seriam seus
“saberes” intrínsecos – leia-se, instintos –, além de sugerir, ainda, uma quebra de
hierarquia, tendo em vista que esse “saber” corporal é percebido como sendo
compartilhado não só pelas mulheres, mas por todos os mamíferos, sendo o parto
um momento que recordaria o humano de sua animalidade – o que denota grande
influência das idéias de Michel Odent.
É interessante que, em diversos momentos, o parto “mais natural” aparece
nos relatos das entrevistadas como aquele em que não há imposições (seja da
193
Nas palavras da entrevistada Simone: “Eu gostava de perceber como tudo é uma grande
sinfonia, não é? A coisa começa devagar com o tampão saindo e aí vai progredindo, pá-pá-pá até
chegar no nascimento”.
271
posição para dar à luz, de comportamentos ou de medicações) o que abriria
caminho para uma maior espontaneidade e liberdade, que permitiriam aceder aos
instintos mais recônditos – como previsto por Odent. Segundo Russo e Ponciano
(2002), como visto no capítulo 2, a singularidade e a liberdade, tal como
concebidas nas teorias neurocientíficas – que parecem inspirar essas mulheres –,
são percebidas como ancoradas na natureza biológica do homem, o que rompe
com a visão tradicional que concebia o biológico como sinal de determinismo
absoluto e, nesse sentido, como falta de liberdade e perda da singularidade.
Assim, o parto “mais natural” é valorizado por essas mulheres porque
supostamente dele emerge sua individualidade: sua fisiologia e seus instintos, mas
também suas sensações, sua subjetividade e experiência particulares, por oposição
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à padronização imposta pela medicalização.
4.3.
Família nuclear: conciliando o “eu” e o “nós”
Se entre as camadas populares prevalece um modelo de família extensa,
pautada por preceitos relacionais e hierárquicos (Duarte e Gomes, 2008, Fonseca,
2005, Sarti, 2011), entre as camadas médias parece haver consenso na literatura
(Ariès, 1978, Singly, 2007, Heilborn, 2004, Duarte, 1995, dentre outros) quanto
ao predomínio, ainda que com negociações, do modelo de família nuclear e
conjugal, fruto da reestruturação da família ocidental a partir da difusão do
individualismo como valor (Duarte, 1995).
Assim, buscando encontrar o tênue equilíbrio entre o reconhecimento da
singularidade individual e o englobamento pela própria instituição, a família
nuclear veio a assumir uma desafiadora tarefa, qual seja:
“viabilizar a própria ontogênese dos Sujeitos individualizados, propiciar que se
desenvolvessem na justa medida (e quão difícil foi sempre obter essa têmpera!)
entre ‘independência’ e ‘respeito’, entre integração e autonomia, entre o
compromisso com a singularidade monádica e o reconhecimento dos ‘deveres
para com o próximo’.” (Duarte, 1995: 39).
Enfocando principalmente a relação entre os cônjuges, Salem (2007) foi
uma das que chamou a atenção para o desafio de se conciliar a autonomia e a
liberdade dos sujeitos, valores centrais da pessoa moderna, com o desejo de
ambos de formarem um casal, considerando o risco de cada um ser encapsulado
272
por essa unidade maior. O dilema, segundo a autora, seria “semelhante ao de
manter a unidade na diversidade, que afeta a ordem individualista e pluralista
mais geral. Trata-se de formar um nós assentado em uma fragmentação
igualitária” (2007: 16-17).
Na busca desse difícil equilíbrio, Singly (2007)
observa que, em especial nas camadas médias e superiores, homens e mulheres
oscilam entre privilegiar as exigências do casal e aquelas de cada um dos
cônjuges, em determinados momentos reforçando a fusão e noutros a autonomia.
O dilema do “casal igualitário” (Salem, 2007, Heilborn, 2004) surgiu em
grande medida como resultado do processo de aceleração da individualização nas
sociedades metropolitanas, iniciado, segundo Singly (2007), na década de 1960,
momento que o autor francês localiza como sendo de transição entre a “primeira”
e a “segunda modernidade”. Assim, de acordo com o autor, enquanto inicialmente
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o foco da família nuclear era o grupo, estando os adultos a serviço da família e,
principalmente, das crianças, na contemporaneidade a ênfase maior recaiu sobre o
processo de individualização dos sujeitos. Nesse sentido, o elemento central
deixou de ser o grupo, passando a ser as partes que o compõem, o que converteu a
família atual em um “espaço privado a serviço de seus membros” (2007: 131). De
acordo com Singly (2007), hoje em dia a valorização das relações depende de sua
capacidade de satisfazer cada um dos membros da díade ou do grupo familiar.
Dessa forma, o que importa é a felicidade de cada um, tendo em vista que “o ‘eu’
é mais importante do que o ‘nós’” (2007: 132)194.
Para compreender essas transformações é necessário considerar que o
processo de individualização observado nesse momento atingiu principalmente
aqueles que seriam
os
sujeitos
menos individualizados
da “primeira
modernidade”, ou seja, as mulheres e as crianças, que assistiram a um crescimento
notável de seus direitos (Singly, 2007). No que se refere especificamente às
mulheres, o autor afirma que a intensificação do processo de individualização
pode ser atribuída à sua inserção no mercado de trabalho, à sua maior
escolarização e ao recrudescimento da organização do feminismo.
194
O autor, contudo, discorda daqueles que anunciam o desaparecimento do grupo conjugal ou do
grupo familiar, uma vez que, segundo ele, os indivíduos reconhecem na família um importante
meio para a realização pessoal.
273
Franchetto et al. (1980), por sua vez, argumentam que o feminismo, com
suas reivindicações por direitos iguais e autonomia, é, na prática, um
desdobramento do individualismo. Segundo as autoras, como expressão dessa
ideologia, o feminismo investiu intensamente sobre a família, “um dos domínios
renitentes à destotalização” (Franchetto et al., 1980: 37), e daí resultaram os
movimentos que reivindicavam a autonomização da sexualidade com relação à
família, que encontrou grande expressão na revolução ou liberação sexual da
década de 1960. Outro importante foco de atenção feminista direcionou-se à
alocação exclusiva da mulher no domínio privado e à distinção de papéis sexuais
expressa, especialmente, no seio da família nuclear. De maneira geral, é possível
dizer, portanto, que o movimento feminista adotou como postulado o
reconhecimento da mulher enquanto indivíduo, e, ao mesmo tempo, contribuiu
para torná-lo uma realidade social, favorecendo o rompimento com a totalidade
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hierarquizada da família.
No plano da atuação política, as autoras destacam que o feminismo, desde
a luta pelo sufragismo na segunda metade do século XIX, caracterizou-se pela
reivindicação da extensão dos direitos masculinos às mulheres. Nesse sentido,
afirmam Franchetto et al., “a luta política das mulheres enquanto sexo elege[u] o
indicador ‘direitos’ como aquele através do qual se pode mensurar a igualdade
entre os sexos” (1980: 40). Foi também a partir do registro dos direitos que o
corpo, importante “fronteira” que marca e pontua a diferença entre os indivíduos
(Le Breton, 2011), tornou-se alvo de uma série de reivindicações, como aquelas
ligadas à contracepção e à legalização do aborto. Com efeito, foi nesse esteio que
surgiu o movimento pela “humanização” do parto, na medida em que o ato de dar
à luz, como será possível notar a seguir, passou a ser visto, “em última instância”,
como um momento de expressão de direitos e um exercício de autonomia das
mulheres sobre seus corpos.
4.3.1.
O parto: decisão feminina
Se entre as mulheres de camadas populares o parto “natural” e
“humanizado” muitas vezes é fruto de uma decisão coletiva, que envolve a
gestante, o pai do futuro bebê e as mulheres da rede de parentesco (com maior
274
ênfase para a mãe da gestante), nas camadas médias essa decisão idealmente deve
ser tomada pelo casal, mas é percebida, “em última instância”, para reproduzir a
expressão usada pelas mulheres, como sendo delas.
Na maioria dos vídeos de parto “natural” e “humanizado” postados na
Internet é freqüente a imagem do parceiro fazendo massagem na mulher, lhe
fazendo carinho e prestando apoio, mas é preciso destacar que há também aqueles
em que o homem simplesmente não aparece na cena do parto, incidindo todo o
foco sobre a mulher que dá à luz. De fato, é interessante notar que, quando
solicitadas a relatarem seus partos, todas as entrevistadas fizeram longos e
detalhados depoimentos, mas algumas (Vanessa, Sofia, Andrea, Kátia)
praticamente não incluíram o pai do bebê na narrativa. A visão de Vanessa, de que
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o parto é um processo solitário, parece explicar o porquê dessa ausência.
“Apesar do apoio todo, de todo mundo que está ali assistindo e está querendo
ajudar de alguma forma nesse processo, que é solitário, a mulher tem que segurar
o rojão sozinha”195. (Vanessa)
Tal visão é compartilhada por seu marido:
“O pai está junto, mas essa coisa de passar, de conseguir, de conquistar e ter o
filho, é mérito dela”. (Jorge, marido Vanessa)
Outras entrevistadas parecem concordar com a idéia de que “o parto é da
mulher”, afirmação que inclui a vivência da experiência, mas também as decisões
relativas ao processo de parturição (como, por exemplo, local de parto, equipe,
opção pelo parto “natural” “humanizado”, etc.).
“A gravidez é um projeto do casal, mas o parto eu acho que é da mulher”
(Andrea).
195
É interessante notar que no grupo de apoio à gestação e ao parto, do qual Vanessa e mesmo
outras entrevistadas participavam, o protagonismo da mulher no parto era fortemente enfatizado.
Em um dos encontros uma das coordenadoras afirmou que o objetivo do grupo era justamente que
a mulher tivesse a sensação de que “pariu sozinha”, isto é, que “não transferiu [o parto] para
ninguém”, por oposição à mulher que, ao dar à luz, faria comentários como: “eu não teria
conseguido sem fulano”, seja doula, marido, médico, etc. A grande ênfase que esse grupo coloca
sobre a mulher – suas escolhas, sua experiência, seu corpo – parece diferir daquela observada no
curso de preparação para o parto coordenado por Flora, onde a tônica muitas vezes incide sobre o
casal. É importante destacar que há uma diferença geracional entre as coordenadoras do grupo de
apoio, que tem entre 30 e 40 anos, e Flora, que tem algo em torno dos 60 e deu à luz na década de
1980, auge do fenômeno do “casal grávido”, pesquisado por Salem (2007).
275
“O parto é da mulher. Eu acho que o parto é da mulher, a experiência é dela. O
marido vai ter uma experiência ali, mas ele vai ter não é de parto, ele vai ter do
nascimento do filho dele, de assistir aquele momento, e claro, com todas as
emoções que lhe cabem. Mas o parto mesmo é da mulher, é o que vai acontecer
com o corpo dela, com o ser que foi gerado dentro dela, que ficou tanto tempo
com ela, o vinculo é da mãe e do bebê. O pai tem o seu papel, mas o parto eu
acho que é um ato realmente da mulher e deve ser escolha dela” (Manuela).
Assim, se a gravidez deve ser um projeto do casal, como indica Andrea, o
mesmo não se pode dizer do parto, representado por ela, Manuela e Vanessa como
uma experiência feminina, que envolve seu corpo, suas sensações e emoções.
Contudo, isso não significa que, em termos ideais, o projeto não deva ser
compartilhado por ambos ou então que o parceiro apóie as escolhas da gestante.
Com efeito, este é considerado o cenário ideal por integrantes de uma comunidade
virtual, da qual participam alunas e ex-alunas de Flora, que se manifestaram sobre
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o tema:
“Todo o processo desde a gravidez até o nascimento deveria ser do casal. Aqui
em casa eu sempre quis normal e fui apoiada... o processo de convencimento foi
mais relacionado à humanização... sem intervenções desnecessárias... não [foi]
muito difícil, foi mais pelo desconhecimento do meu marido e pelo fato da exmulher dele ter tido uma cesárea... Então decidimos juntos, mas caso ele não
concordasse, a escolha seria minha. Então acho que a decisão é sempre da
mulher, pois o filho é dos dois, mas o corpo é dela, a vida está crescendo dentro
dela... O mundo perfeito é que seja um processo do casal, que esteja em
sintonia... Mas ainda existem muitos homens pouco participativos, e isso pode
dificultar o processo quando há divergência de idéias.” (Diana)
“Para mim, no pensamento romântico, [o parto] é do casal. Na minha
experiência, onde tenho um companheiro amoroso e respeitoso tudo foi pensado
e falado em conjunto, mas finalmente sempre tinha a frase de parte dele ‘o que
você quiser, eu vou estar do seu lado e te apoiar em tudo o que você precisar’.
Então, romanticamente é do casal, mas ao final a decisão é de nós mulheres...”
(Janaína)
“O parto pode ser do casal se o casal está em sintonia e se o homem deseja
participar ou demonstra interesse em vivenciar essa experiência em conjunto,
mas a decisão final sobre como vai ser (se vai ser cesárea ou parto normal) e onde
vai ser (se vai ser em casa ou em hospital ou em casa de parto) É DA MULHER.
O corpo é dela e será ela quem vai vivenciar a frustração de não ter o parto que
esperava ou mesmo violência obstétrica...” (Carolina)
“O parto é da mulher contando com o apoio do marido. Não tem como dividir
completamente a experiência porque realmente é impossível que o homem
entenda exatamente o que está acontecendo dentro dos nossos corpos nessa hora
e o que estamos sentindo. Essa parte é ‘nossa’. Mesmo assim é claro que se torna
uma experiência muito mais maravilhosa com o apoio e amor do companheiro ao
lado” (Cíntia).
276
“[O parto é da mulher]. Quem pari, quem sente as dores, quem sabe o seu limite é
a mãe”. (Elvira)
“Eu acho que o parto é de ambos [casal], mas que na hora do ‘vamo' ver’, o
desejo (e os medos, a voz, a escolha) da mulher pesa mais, e que não poderia ser
de outro jeito. Porque, em última instância, o parto acontece no corpo da mulher
e, portanto, cabe a ela tomar as decisões sobre o que será feito (ou não) com o seu
corpo”. (Cecília)196
Como é possível notar, os depoimentos sugerem que, de um ponto de vista
romântico e ideal, o parto “natural” e “humanizado” deve ser resultado de um
projeto do casal ou então de um projeto da mulher, mas contando com o apoio do
parceiro. Porém, a participação masculina, ainda que desejável, não é percebida
como estritamente necessária, uma vez que seriam as mulheres a vivenciar a
experiência e, portanto, caberia a elas tomar as decisões envolvendo seus corpos.
Nesse
sentido,
a
afirmação
frequentemente
entoada
por
ativistas
da
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“humanização” de que “o parto é da mulher”, isto é, resultado de suas escolhas,
parece direcionar-se não apenas ao médico, mas também ao parceiro, de quem
também se espera que acolha suas decisões.
Uma breve comparação com o fenômeno do “casal grávido”, também
adepto do parto “natural” e cuja afirmação nos grandes centros urbanos brasileiros
data do início dos anos 1980, parece inevitável. Diferentemente do que se observa
hoje, para os sujeitos investigados por Salem (2007), a presença do pai no
nascimento era tratada como condição sine qua non, na medida em que o parto – e
também a gravidez – era representado como uma experiência a ser compartilhada
a dois, colocando em cena um ideal de conjugalidade que a autora designou como
“casal igualitário”. Nesse sentido, Salem afirma que: “A participação do pai
durante a gravidez, no parto e na fase do pós-parto constitu[ía] item-chave do
ideário” (2007: 185).
A mudança na forma como o parto passou a ser representado, isto é, de
uma experiência fundamentalmente do casal para um evento que deve ser do
casal, mas que, em última instância, é reconhecido como uma experiência da
mulher, não deve ser minimizada. A hipótese aqui levantada é a de que essa
196
Cecília, que ainda não tem filhos, mas planeja engravidar, é adepta do ideário, possui um
blogue sobre o assunto e costumava freqüentar as reuniões do grupo de apoio à gestação e ao
parto. Seu comentário foi feito por e-mail.
277
mudança encontra relação com a disseminação do conceito de “humanização”,
incorporado mais recentemente pelo movimento em favor do parto “natural”.
Como já referido, a “humanização” – ainda que se trate de um termo polissêmico,
como observou Diniz (2005) – é interpretada pela maioria dos ativistas e também
por muitas mulheres adeptas do ideário como o direito da parturiente de ter suas
escolhas respeitadas. Essa visão, fortemente influenciada pelo movimento
feminista e pela idéia de que “o meu corpo me pertence”, contribuiu para colocar
maior ênfase sobre a mulher do que propriamente sobre o casal, na medida em
que a dimensão corporal e subjetiva do parto ganhou proeminência em detrimento
de outros aspectos.
Outro dado que não deve ser ignorado refere-se ao fato de que o médico
Michel Odent se posicionou publicamente contra a presença do pai no momento
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do parto. Partindo da premissa de que o parto é um evento feminino, o obstetra
argumenta que o parceiro pode representar um perigo, ao dificultar a “entrega” da
mulher e o “reencontro com seus instintos”, como anteriormente referido. É
possível que seu posicionamento tenha contribuído para que o parto deixasse de
ser percebido como um evento primordialmente do casal e passasse a ser encarado
como uma experiência que diz respeito, sobretudo, à mulher.
Deve-se destacar, contudo, que o projeto como um todo, de maneira
alguma prescinde do pai. A equidade na relação entre os cônjuges continua sendo
um importante valor, especialmente no que se refere ao pós-parto. A expectativa,
nesse sentido, é de que ambos, pai e mãe, não deleguem para terceiros, mas
dediquem-se aos cuidados com o bebê, havendo idealmente uma divisão de
trabalho menos segregada entre o casal. Recentemente, foi inclusive cunhado o
termo maternidade e paternidade “conscientes” – assim como concepção e
gestação “conscientes” –, que prevêem o envolvimento direto dos pais nos
assuntos que concernem à criança e a tomada de decisão com base em “escolhas
informadas”, isto é, refletidas e não automáticas, o que significa, em geral, uma
disposição a romper com as práticas tradicionais ou hegemônicas.
278
4.3.2.
Mãe: ameaça ou apoio?
Salem (2007) e Almeida (1987), em pesquisas realizadas na década de
1980 com casais de camadas médias que almejavam um parto “natural”,
chamaram a atenção para como naquela época a presença das famílias de origem
no parto e mesmo no processo de elaboração desse projeto despontava como um
verdadeiro “tabu”. Nesse sentido, a família era percebida pelas mulheres – e
apontada pelo ideário “alternativista” (Almeida, 1897) – como capaz de promover
uma interferência prejudicial às gestantes, uma vez que tinha uma visão de mundo
diferente, não compartilhava da identificação quanto à visão transformadora da
maternidade e atribuía um peso menor aos aspectos emocionais e psicológicos da
gravidez. Em suma, a gestante e sua família de origem se pautavam por
referências e sistemas de orientação que não se correspondiam. Segundo Almeida
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(1987), era especialmente sobre a figura da mãe, “enquanto representante de um
modelo de maternidade ligado a gerações anteriores, que reca[ía] a função
‘necessária’ de ‘bode expiatório’ para a filha gestante, a qual, por sua vez,
procura[va] integrar-se às novas versões e referências ‘alternativas’ da
maternidade” (Almeida, 1987: 99).
A partir das observações feitas durante o trabalho de campo, pode-se dizer
que há certa continuidade, do ponto de vista do ideário da “humanização”, na
forma como é representada a família de origem, em especial a mãe. Esta
geralmente é descrita como uma interferência negativa, capaz de contaminar o
projeto, o que se atribui à sua incompreensão sobre a proposta e a um possível
descontrole emocional, que poderia comprometer o desempenho da parturiente. A
forma de atuação do profissional “humanizado”, idealmente menos propositiva,
também poderia ser mal interpretada pela mãe da parturiente, sendo confundida
com desatenção, como narrou Flora ao descrever um parto que acompanhara
como doula. Assim, apresentando justificativas variadas, os especialistas
“humanizados” costumam desaconselhar a presença da família no momento do
parto e sugerem algumas estratégias para que isso se concretize, dentre elas, não
informar os parentes sobre o início do trabalho de parto, avisando apenas após o
nascimento do bebê.
279
Vale destacar que, no caso das mulheres que optam por dar à luz na
maternidade, a restrição imposta pela instituição quanto ao número de
acompanhantes, que se limita a apenas um, vem de certa maneira reforçar o
afastamento sugerido pelos especialistas, posto que a mulher, para contar com a
participação da mãe no parto, por exemplo, teria que abrir mão do parceiro,
presença hoje em dia considerada inquestionável por aquelas que integram esse
segmento social, adeptas ou não do ideário da “humanização”.
No que se refere às mulheres, uma parte das entrevistadas (Ana, Tatiana,
Simone, Ágata, Angélica) compartilhava da visão de que a família de origem, não
apenas em decorrência da restrição imposta pela maternidade, mas, por princípio,
deveria ser afastada do trabalho de parto e parto. É interessante notar que, com
exceção de Angélica – cuja mãe mora perto de sua casa197 –, todas já tinham
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contatos menos freqüentes com seus pais, pois não moravam na mesma cidade ou,
em alguns casos, sequer no mesmo país. Tal fator possivelmente contribuiu para
que essas mulheres não problematizassem as recomendações feitas pelos
especialistas sobre o afastamento da parentela, percebendo-as como adequadas.
“Não gostaria mesmo [da presença da mãe ou sogra no parto]. Nenhuma das duas
saberia me passar tranquilidade, que é uma das sensações que eu acho mais
necessárias na hora do parto.” (Tatiana)
“Não, nunca [cogitei que minha mãe estivesse no parto]. (...) Eu acho que não
tem nada a ver. Eu acho que o marido é quem tem que estar presente. (...) Isso é
muito curioso. Eu acho que é uma diferença cultural, porque aqui todo mundo
fala: “E a sua mãe? Ela vem quando [da Alemanha]? Antes do parto?” E eu:
“Não, gente, só em julho” [A data de previsão para o parto era em abril]. E todo
mundo: “Ué, mas como assim?”. Mas saiu dos dois lados. Assim, eu não queria
ela aqui é... porque eu acho que pode atrapalhar. Assim, nada contra a minha
mãe, mas, nesse momento, pode atrapalhar um pouquinho, principalmente,
também depois, com o bebê já em casa. Porque a gente tem que aprender a pegar
aquele novo ritmo, criar aquela nova família, não é? E ela pensou a mesma coisa,
não é? Ela falou: “Ih, filha! Não, assim, no mínimo no primeiro mês, eu não
quero aparecer aí, não. Porque vocês têm que pegar o jeito. Eu só vou falar
coisinhas, vou te estressar, você vai ter que cuidar de mim também.” Então, ela
só vem depois”. (Ana)
197
Apesar de próximas, Angélica disse ter ficado incomodada com a presença da mãe durante o
início do trabalho de parto, que passou em casa. “A questão com a minha mãe é essa: para ela é
muito diferente o parto humanizado, o parto natural. Nós nascemos de cesárea, eu e minha irmã.
Então, ela queria que eu tivesse com a mesma médica que fez o parto dela. Então, para ela, era
tudo meio assustador... a experiência que eu estava passando. Era por isso que eu não queria que
ela estivesse no parto, ela estava muito nervosa”.
280
“Eu não tenho muito boa relação com a minha mãe. (...) Mesmo assim, na
França, isso é coisa de intimidade e tudo, que não se compartilha muito com as
mães. Não é como aqui, no Brasil, na América Latina, que é mais forte talvez,
não sei. Mas na França, geralmente, [quem participa do parto] é o marido”.
(Ágata)
Para Ágata e Ana, respectivamente de nacionalidade francesa e alemã, a
presença da mãe no parto em nenhum momento foi aventada, e a pergunta
inclusive causou certo estranhamento, o que atribuíram a uma diferença cultural:
segundo elas, em seus países a família de origem não costuma integrar a cena do
parto, sendo este um evento vivido primordialmente pelo casal.
Ana, que é casada com um brasileiro, teve inclusive um pequeno conflito
com a sogra, pois esta, ao ser informada do nascimento da neta, comprou uma
passagem aérea para vir no mesmo dia de Brasília para conhecê-la, a despeito das
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orientações transmitidas pelo filho para que aguardasse algumas semanas. Quando
recebeu a notícia de que a sogra chegaria em breve, Ana foi categórica e Carlos,
seu marido, telefonou constrangido, pedindo que a mãe trocasse a data da
passagem. Como é possível notar, para Ana, não apenas o parto deve ser uma
experiência compartilhada apenas pelo casal, mas também o primeiro mês de vida
do bebê, quando, segundo ela, se consolida a formação da “nova família”,
construída a partir do nascimento da criança.
Por outro lado, chama a atenção o fato de uma parcela das entrevistadas
(Vanessa, Alice, Elena, Sofia, Andrea) ter, a despeito das recomendações dos
especialistas afinados ao ideário, se mostrado favorável e receptiva à possibilidade
da mãe estar presente no parto. A restrição imposta pela maternidade de ter apenas
um acompanhante revelou-se um empecilho, mas algumas fizeram questão de
dizer que, caso o marido não pudesse estar presente na hora do parto, a mãe seria
sua substituta “natural”. Vanessa, a única que teve um parto domiciliar e por isso
não se deparou com restrições no que se refere ao número de acompanhantes, foi
assistida por vários membros da família quando dava à luz Aurora, dentre eles a
mãe e a sogra:
“[Estavam assistindo ao parto] Minha mãe, minha sogra, meus três filhos, a
madrinha da Aurora, que é minha sobrinha e que veio junto com minha sogra, a
Mariana [enfermeira obstetra], a Edith [parteira alemã], meu marido e a
empregada. É isso. Comigo e a Aurora, que nasceu, são 12. [risos] Superhumanizado... (...) Essa coisa do nascer, do momento íntimo, é muito do histórico
281
da pessoa, do contexto da família... Eu sou neta de italiano, eu falo alto, a casa
aqui é barulhenta, meu marido fala alto, a criançada grita mesmo... É uma casa
barulhenta mesmo. É porque o parto foi muito rápido, mas se eu estivesse em São
Paulo, onde eu tenho uma família enorme, eu acho que tinha feito como uma
americana que pariu em uma redoma de vidro e vendeu ingressos [risos]”.
Vale destacar que, enquanto Ana e Ágata fizeram referência às culturas de
seus países de origem (Alemanha e França) para justificar a ausência da mãe no
parto, Vanessa mencionou o fato de ser proveniente de uma família italiana, para
explicar o motivo pelo qual 10 pessoas presenciaram seu parto, dentre elas sua
mãe e sua sogra, número que, segundo ela, poderia aumentar se o parto não
tivesse sido tão rápido ou se tivesse ocorrido em São Paulo, sua cidade natal.
Por fim, um caso interessante parece ser o de Manuela, que durante a
gravidez estava convencida de que sua mãe não deveria estar presente no parto,
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pois poderia ficar muito nervosa ao vê-la sentir dor, vindo a “atrapalhar” o
trabalho de parto. No entanto, depois de ter tido um parto muito diferente do que
planejara198 – tendo feito uso de anestesia e contado com a presença indesejada da
sogra, uma médica não afinada à proposta de “humanização”, na sala de parto –,
Manuela afirmou que a ajuda da mãe para conseguir “aceitar” a experiência foi
fundamental e estava repensando seu posicionamento inicial sobre sua
participação no parto.
“Em um primeiro momento não [queria a presença da mãe]. Eu achava que tinha
que ficar sozinha, que ia ser melhor para mim. Depois, minha mãe foi uma
presença tão boa no pós-parto, em tudo... Ela que me ajudou a elaborar essa
questão [da frustração com parto] e tudo. Eu vi que, na verdade, minha mãe é
minha melhor amiga. Então, essa relação talvez... Assim, me fez ter desejo de
que ela estivesse lá comigo na hora para me ajudar, para me dar força”.
Como é possível notar, a aproximação com a mãe no pós-parto, peçachave para que conseguisse “elaborar” a distância entre o parto idealizado e o
vivido, fez com que Manuela se desse conta de que ela representava um
importante apoio afetivo e emocional – que não pôde ser suprido pelos
profissionais nem pelo parceiro, uma vez que, na visão de Manuela, este dividia
sua atenção entre ela e a mãe. Assim, diante das falhas do plano inicial, surgiu o
desejo de que sua mãe estivesse presente no parto e pudesse reverter a situação,
198
O possível hiato entre o parto idealizado e o parto vivido será abordado na última seção desse
capítulo.
282
passando de alguém que poderia minar o projeto, a alguém que poderia “salvá-lo”,
dando-lhe o apoio necessário para superar os “imprevistos” que o ameaçavam.
Na visão de Manuela, a presença da mãe no parto teria representado um
importante apoio, uma vez que disse ter percebido que ela era, na realidade, “sua
melhor amiga”. O vínculo com a progenitora também foi a justificativa
apresentada por Elena e Alice ao comentarem que desejariam, se fosse possível,
sua participação no parto. Segundo Alice, ela e a mãe têm “uma ligação muito
forte” e esta ficaria muito feliz por poder assistir ao nascimento do neto. Da
mesma forma, Vanessa, cujo parto foi presenciado por vários familiares,
acreditava que, assim, estava brindando-lhes uma “experiência de vida”. Nesse
sentido, o parto é percebido como uma experiência decisiva e marcante, a ser
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compartilhada:
“[Eu queria] dar essa oportunidade pra todo mundo. E isso [o parto] muda não só
a pessoa que está parindo, isso muda a vida de quem presencia um momento
desses, mesmo que como espectador. A pessoa que presencia um momento
desses, muda pra vida toda, uma experiência que vale pra vida”. (Vanessa)
Em resumo, é possível dizer que as advertências feitas pelos especialistas
de que a família poderia representar uma interferência negativa no parto foram
recebidas de maneira diversa: enquanto uma parte das mulheres concordou com
elas, enxergando nessa aproximação um risco, outra pareceu insensível a tais
advertências, seja pela intensidade do vínculo que mantinham, seja pelo desejo de
compartilhar a experiência, considerada marcante e transformadora não apenas
para a parturiente, mas também para aqueles que dela participam.
Rezende (2011),
que realizou pesquisa com um grupo de apoio a
gestantes no Rio de Janeiro, do qual participavam mulheres de camadas médias,
com nível superior e aproximadamente a mesma faixa etária das que integram o
presente estudo, observou entre suas entrevistadas, de maneira geral, uma grande
proximidade com a família de origem, o que levou a autora a afirmar que “family
participation during pregnancy seemed taken for granted, just as with partners”
(2011: 541).
Uma ressalva, no entanto, deve ser feita e esta talvez explique o fato de a
participação da família ter sido aparentemente um consenso entre as mulheres
283
entrevistadas pela autora. Apesar de Rezende (2011) ter adotado os estudos de
Salem (2007) e Almeida (1987) como referências comparativas, nem o grupo de
apoio onde realizou sua pesquisa de campo nem as gestantes que o frequentavam
estavam comprometidos – como no caso dos estudos anteriores – com um projeto
de parto “natural”, que, como visto, passou a ser englobado pelo ideário da
“humanização”. Isso parece ter grandes implicações, tendo em vista que os
especialistas afinados com essa proposta parecem ser peça importante na
disseminação da idéia de que a participação da família de origem deva ser evitada.
No entanto, não pode ser ignorado que tal idéia aparentemente não tem
tido a mesma receptividade por parte das mulheres que hoje almejam um parto
“natural” e “humanizado”, como parece ter encontrado entre as adeptas do parto
“natural” na década de 1980. Nesse sentido, a ressalva feita anteriormente em
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relação ao artigo de Rezende (2011) não invalida seu argumento.
Com efeito, a autora, baseando-se em Barros (2009), afirma que os valores
individualistas das mulheres que deram à luz nos anos 1980 – momento em que
ganhou notoriedade o fenômeno do “casal grávido”, expressão de um
individualismo psicologizante e libertário (Salem, 2007) – contribuíram para rever
e mudar papéis de gênero tradicionais e relações familiares, até então fortemente
baseados na hierarquia e na diferença. Partindo dessa premissa, Rezende (2011)
argumenta que a geração atual aparentemente já foi socializada com esses valores
individualistas, o que se reflete na escolha de uma carreira profissional e no fato
de a gravidez ter sido fruto de uma escolha, o que também foi possível observar
entre as entrevistadas do presente estudo. Dessa forma, a autora afirma que “the
family was no longer a threat to the affirmation of singular identities, but a
supportive group in which individuality could be developed” (Rezende, 2011:
544).
4.3.3.
Doula: em busca de um espaço
De origem grega, a palavra “doula” significa, em uma tradução livre,
“mulher que serve”. Sua função é oferecer apoio físico e emocional à parturiente,
não estando apta a realizar procedimentos médicos. Durante o trabalho de parto
seu papel costuma ser o de ajudar a parturiente a encontrar posições mais
284
confortáveis, mostrar formas eficientes de respiração, assim como propor métodos
não farmacológicos para auxilio no alívio da dor, como banhos, massagens,
técnicas de relaxamento, etc. Em geral, a doula faz também a interface entre a
equipe de assistência e o casal, ocupando o papel de “mediadora”. Nesse sentido,
cabe a ela explicar os termos médicos e os procedimentos hospitalares, o que em
alguns casos ocorre em um momento prévio ao parto, isto é, durante a gestação,
como no curso de preparação oferecido por Flora.
É importante mencionar que o trabalho da doula não é reconhecido como
profissão e, portanto, não é regulamentado no Brasil. Sua formação em geral é
feita por meio de cursos intensivos, que normalmente duram poucos dias e são
oferecidos pela Associação Nacional de Doulas (Ando), fundada e dirigida por
Flora, e por grupos de apoio à gestação e ao parto. Essa especialidade, no entanto,
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é incentivada pelo movimento em favor da “humanização”, que se apóia em
pesquisas realizadas no exterior, as quais sugerem que a presença de uma doula no
parto reduz significativamente a necessidade de intervenções médicas e
farmacológicas.
Apesar desse reconhecimento e de mais da metade das entrevistadas ter
contratado uma doula para lhes prestar apoio físico e emocional durante o parto, é
possível dizer que essa especialista ainda está conquistando seu lugar na cena do
parto “natural” e “humanizado”. Os desafios por ela enfrentados são variados:
para alguns parceiros sua presença é vista como negativa, pois reduziria sua
participação (como argumentaram os maridos de Angélica e de Alice); já algumas
mulheres se dizem incomodadas com o fato de ser uma pessoa com quem não tem
intimidade, sendo mais uma a participar do parto, quando consideram que o
menor número possível de pessoas seria o ideal; há ainda as que afirmam preferir
não ser tocadas durante o trabalho de parto (Simone199, Vanessa), o que reduziria
a atuação da doula, cujo trabalho muitas vezes envolve o contato físico, por meio
de massagens, por exemplo.
Por parte das equipes de assistência, seu espaço parece ter sido
conquistado apenas entre os médicos “humanizados”. De fato, nos partos
199
Simone foi uma das que contratou os serviços de uma doula, mas, durante o trabalho de parto,
disse ter se dado conta de que preferia não ser tocada por ninguém.
285
assistidos por enfermeiras obstetras, por exemplo, essa profissional costuma
argumentar que seu trabalho envolve não apenas a técnica, mas também o aspecto
emocional, o que tornaria a presença da doula prescindível, pois a enfermeira
obstetra – aparentemente diferenciando-se do médico – estaria apta a prover
também um apoio físico e emocional à parturiente. Já nas equipes médicas que
não se identificam como “humanizadas”, a presença da doula não costuma ser
bem-vinda, mas por outro motivo: pelo temor de que esta profissional possa vir a
questionar a conduta do médico, convertendo-se em uma espécie de “guardiã dos
procedimentos”.
Vale destacar que, devido a um episódio ocorrido há vários anos em uma
das principais maternidades da Zona Sul da cidade, durante o qual uma doula
aparentemente questionou a realização de determinados procedimentos médicos,
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essas especialistas até hoje têm sua entrada restringida na instituição. Em 2012,
depois de uma entrevista exibida no Programa Fantástico, da Rede Globo, em que
um médico obstetra paulista manifestou apoio à realização de partos domiciliares,
o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) elaborou duas
resoluções (n. 265 e 266/12) – uma das quais atingiu diretamente a atuação da
doula.
Enumerando riscos e responsabilidades, o Cremerj, em uma das
resoluções, vetou qualquer participação médica em partos domiciliares e casas de
parto, bem como proibiu que esses profissionais prestassem assistência imediata a
neonatos nascidos em ambiente domiciliar. Na outra, o órgão proibiu a
participação de doulas nos partos realizados em maternidades do estado,
instituindo que apenas médicos poderiam estar presentes. Segundo entrevista
concedida na época por Luís Fernando Moraes, um dos Conselheiros do Cremerj,
a proibição supostamente justificava-se pelo fato de as doulas não terem formação
na área de saúde: “Pessoas leigas dentro de uma sala cirúrgica, atuando, nós
achamos que isso é inseguro também para a paciente, porque essas pessoas não
têm formação, não têm noções de assepsia, de cuidados. Por isso, a gente tenta
proteger a paciente com essas resoluções.”200 Como é possível notar, o órgão
200
Entrevista concedida à Agência Brasil, em 23/07/2012. A matéria na íntegra encontra-se
disponível
em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-07-23/conselho-de-
286
procurou reforçar a noção do parto como um evento médico-hospitalar, indo na
contramão das diretrizes de programas lançados pelo governo federal.
Em pouco tempo as resoluções foram suspensas, após diversas entidades
terem entrado com ações na justiça e centenas de mulheres terem ido às ruas se
manifestar. De qualquer maneira, tais resoluções evidenciam o fato de que a
presença da doula na cena do parto ainda está sendo negociada. E, é importante
ressaltar, em certos aspectos isso ocorre até mesmo dentro do movimento, tendo
em vista que sua presença pode ser interpretada como conflitante com algumas
teses bem aceitas pelos adeptos da “humanização”, em especial com aquelas
propaladas por Michel Odent. Como apontado no capítulo 2, na visão do médico
francês o parto deve ser um momento íntimo, privado, presenciado pelo menor
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número possível de pessoas – limitação que inclui também os especialistas.
Aparentemente buscando conciliar essas ideias com a presença da doula
no parto, Ivana, uma das coordenadoras do grupo de apoio à gestante cujas
reuniões também assisti, afirmou que o papel dessa especialista deveria ser o de
atuar como uma “contra-regra”. Sem ser notada, a doula cuidaria do entorno para
que a mulher pudesse se “entregar” no momento do parto. Caberia a ela, por
exemplo, apagar a luz, proteger a intimidade da parturiente, cuidar para que fosse
mantido silêncio durante o trabalho de parto, etc.
Já para uma das mulheres etnografadas, a doula foi definida em uma
palestra como “a mãe que não pode estar no parto da filha, porque vai estar
ansiosa. É a mãe profissional, que vai te apoiar, estar atenta, cuidar de você, te
amparar” (caderno de campo, novembro de 2013). Nessa leitura, o espaço
ocupado pela doula seria aquele da mãe, afastada da cena de parto pelos supostos
riscos associados ao seu envolvimento emocional. Noutras palavras, a doula seria
uma espécie de “mãe de aluguel”, que teria como vantagem em relação à
progenitora o controle emocional.
Esta visão está em sintonia com as ideias difundidas pela Associação
Nacional de Doulas (Ando), segundo a qual essa profissional ocupa hoje o papel
enfermagem-do-rio-entrara-com-acao-civil-contra-resolucoes-do-cremerj.
21/02/2014.
Último
acesso
em
287
outrora exercido por mulheres da família, que espontaneamente ofereciam suporte
físico e emocional à parturiente201. A esse respeito, o site Doulas do Brasil
acrescenta que:
“Conforme o parto foi passando para a esfera médica e nossas famílias foram
ficando cada vez menores, fomos perdendo o contato com as mulheres mais
experientes. Dentro de hospitais e maternidades, a assistência passou para as
mãos de uma equipe especializada: o médico obstetra, a enfermeira obstétrica, a
auxiliar de enfermagem, o pediatra. Cada um com sua função bastante definida
no cenário do parto. O médico está ocupado com os aspectos técnicos do parto.
As enfermeiras obstetras passam de leito em leito, se ocupando hora de uma, hora
de outra mulher. As auxiliares de enfermagem cuidam para que nada falte ao
médico e à enfermeira obstetra. O pediatra cuida do bebê. Apesar de toda a
especialização, ficou uma lacuna: quem cuida especificamente do bem estar
físico e emocional daquela mãe que está dando à luz? Essa lacuna pode e deve
ser preenchida pela doula” 202.
Como é possível notar, atribui-se à transferência dos partos para os
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hospitais e à disseminação do modelo de família nuclear a perda do contato com
as chamadas “mulheres experientes”, isto é, com mães, tias, avós, que no passado
eram consideradas “referências significativas de aconselhamento, exemplos a
serem seguidos, fontes seguras de informação”, como destacou Almeida (1987:
43). Com efeito, esse conhecimento foi substituído por aquele fornecido pelo
especialista, que apesar de romantizar e idealizar esse passado, de maneira geral
procura incentivar o afastamento da família de origem, como visto anteriormente.
Outro aspecto interessante apontado por essa citação diz respeito à crítica
à extrema especialização do conhecimento, que teria redundado em uma profusão
de especialistas. Contudo, afirma o texto, nenhum deles se ocuparia do bem-estar
físico e emocional do sujeito, tendo a figura da doula – isto é, mais uma
especialista – surgido justamente para suprir essa lacuna.
4.4.
O parto
Como no capítulo anterior, esta última seção pretende focalizar de maneira
mais direta as experiências de parto das puerperas entrevistadas, procurando
compreender como elas significam, vivenciam, elaboram e atualizam a proposta
de parto “natural” e “humanizado”. Antes, no entanto, a intenção é analisar o
201
202
Fonte: www.doulas.org.br
Fonte: www.doulas.com.br, texto de autoria da obstetriz Ana Cristina Duarte.
288
lugar que atribuem à dor do parto ainda durante a gestação para, posteriormente,
verificar como esta é significada após terem vivido a experiência de parturição.
4.4.1.
O lugar da dor: curiosidade e desafio
Se entre as mulheres de camadas populares os relatos que antecediam ao
parto foram unânimes em enfatizar o medo que tinham da experiência, em
especial da dor, entre as entrevistadas de camadas médias não houve o mesmo
consenso. Enquanto algumas compartilhavam desse sentimento (Alice, Angélica e
Elena), ainda que, segundo elas, de maneira atenuada pelo fato de terem se
preparado para viver a experiência, outras procuraram esquivar-se da palavra
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medo, dando preferência a termos como ansiedade, expectativa e curiosidade:
“É claro que você imagina: ‘Pô, será que eu vou sentir muita dor? Como é que
vai ser isso? Será que eu vou aguentar?’ Isso é inevitável, passa pela cabeça da
pessoa. Mas não como um medo. Eu nunca senti medo. Talvez, às vezes, uma
ansiedade maior do que em outros momentos”. (Simone)
“Eu não tenho medo do parto. Eu acho que eu estou em uma expectativa muito
grande de como vai ser, mas medo mesmo eu não tenho não. Nem um pouco.
(Tatiana)
“[Não é medo] é uma curiosidade, porque é uma situação nova que a gente vai
enfrentar. (...) Eu quero, realmente, sentir o que é. Assim, por um lado, de
repente, um pouquinho por questões de orgulho. Tipo, ‘será que eu vou dar
conta?’, assim começou. E depois eu pensei: ‘Mas também não é só isso, eu
quero, realmente, ter aquela sensação, ver como que é’.” (Ana)
“Nunca tive medo [do parto]. Eu acho que é porque eu li muito, eu tenho muita
informação. Então, por mais que cada parto seja um parto, mas quando você tem
uma noção do processo fica mais fácil de lidar com as coisas que estão
acontecendo. (...) Eu sempre procurei resistir à dor em tudo, independente de ser
parto ou qualquer outra coisa. Talvez pela minha educação, meu pai é militar,
sempre teve aquela coisa em casa de engole o choro ou então para de frescura.
Então eu tive uma criação assim e, com o parto, eu acho que eu lidei da mesma
forma”. (Sofia)
A dúvida sobre “como é que vai ser?”, mencionada por Tatiana e Simone,
parecia mais instigar e despertar curiosidade do que propriamente medo, segundo
avaliaram as entrevistadas, fazendo com que o parto, em alguns momentos, fosse
interpretado quase como um desafio, isto é, como um processo revelador de si:
“Será que eu vou dar conta?”, indagou-se Ana. Já Sofia atribuiu sua confiança à
educação que recebeu em casa, onde desde cedo aprendeu a conter as emoções e
289
ser resistente à dor, mas também à informação obtida durante a gravidez sobre o
processo de parturição – o que, da mesma forma, serviu de atenuante para as
entrevistadas que admitiram ter algum medo da experiência. Para Andréa, mãe de
três filhos, segurança semelhante foi conquistada a partir não da preparação, mas
das vivências de parto anteriores – o que, é interessante ressaltar, não se verificou
entre as multíparas do grupo de camadas populares investigado.
Deve-se destacar, contudo, que a forma positiva com que as mulheres
encaravam o parto nem sempre encontrava correspondência em seus parceiros.
Com efeito, algumas entrevistadas revelaram que, até o final da gestação, não
estavam seguras de que seus maridos teriam “coragem” de assistir ao parto, ainda
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que, em praticamente todos os casos, apoiassem a proposta.
“Até o final, eu não sabia muito bem se ele [o marido] ia conseguir assistir ao
parto, porque ele tem medo até de injeção. Daí eu falei: ‘como é que ele vai
assistir um parto?’, não é?” (Tatiana)
De qualquer maneira, foi possível observar na pesquisa de campo e em
relatos colhidos nas entrevistas a importância do grupo de preparação, através das
aulas, sessões de vídeos e palestras, para que os homens também se preparassem
para a experiência, o que foi confirmado pelo depoimento de Carlos, marido de
Ana:
Carlos: “Antes da fase pré-Flora eu nem tinha certeza se eu queria estar presente
na hora do parto. Primeiro, porque eu não tinha certeza se eu ia aguentar,
suportar. (...) Eu falei: ‘Vamos acompanhando até lá. Vamos ver. De repente, eu
assisto’. E aí, foi bom também esse negócio da Flora, porque desmistifica um
pouco. (...) [Agora] Eu quero estar presente, não é? Se eu sentir, na hora, que eu
de repente não vou dar conta, vou passar mal... eu acredito que não, mas aí eu
falo.
Ana: Isso dá divórcio, hein? [riso]
Carlos: Não, mas não vai acontecer isso não”.
O depoimento de Carlos indica que, mesmo nas camadas médias, a
presença do pai no parto, ainda que bastante freqüente, não deve ser naturalizada.
Como é possível notar, trata-se de uma construção, na qual o curso de preparação
desempenha papel fundamental, seja por lhe atribuir relevância, em sintonia com
o projeto de família nuclear no qual se baseia o ideário, ou simplesmente por
contribuir para “desmistificar” o parto, como afirma Carlos. O diálogo
290
reproduzido acima sugere que a presença do parceiro foi de tal modo introjetada
por Ana, que ela, em tom de brincadeira – mas não sem esconder seu incômodo
com a possível ausência do marido –, ameaçou romper o casamento se Carlos
dissesse que não teria condições de assistir ao nascimento da filha. Nesse sentido,
talvez seja possível dizer que, entre as mulheres de camadas médias, há uma
maior expectativa no que se refere à participação masculina no parto e não
necessariamente um maior interesse por parte dos homens, que parecem, assim
como no contexto das camadas populares, ficar em princípio pouco à vontade
diante do corpo-em-trabalho-de-parto, alegando não suportar ver dor e sangue.
É importante destacar que no parto “natural” e “humanizado” o incômodo
gerado por esse corpo é ainda maior. As reflexões feitas por Rodrigues (2008)
acerca do corpo medieval, por ele definido como um corpo expansivo,
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indisciplinado, transbordante, com “orifícios dotados de liberdade de expressão”
(2008: 84) parecem ser fecundas para se pensar o corpo no parto “natural” e
“humanizado”.
“(...) o contexto corporal, especialmente em segmentos populares, caracterizavase, nos tempos medievais, por abraços freqüentes, por contatos próximos, por
gestos destemidos. Coexistência e troca de secreções, de cheiros, de tatos, de
olhares faziam o corpo inteiramente aberto aos sentidos próprios e alheios”
(Rodrigues, 2008: 84).
De certa maneira, é possível dizer que um corpo incontido, semelhante ao
do medievo, é socialmente aceito no contexto do parto “natural” e “humanizado”.
Assim, vômitos, fezes, suor, contato corporal, sangue, nudez, secreções e gemidos
fazem parte da rotina desse tipo de parto. Não há dúvidas de que, nos dias atuais,
assistir a uma cena como essas, para quem não foi devidamente treinado ao longo
de anos de exercício da profissão, não é algo corriqueiro, reforçando a tese de que
a preparação emocional, também do acompanhante, é fundamental, como afirma
Carlos em uma segunda entrevista realizada após o parto:
“Nossa! A impressão que você tinha, sem saber de nada, era ‘Nossa! Ela vai
morrer aqui’, de tanto que ela gritava. E sai muito sangue. É impressionante. Eu
fiquei pensando: ‘tem pai que desmaia em cesariana, que é um negócio
superlimpo...’ Se você não se prepara, pode assustar. Eu fiquei tranquilo.
Surpreendentemente tranquilo, mas eu acho que foi muito por causa da
preparação que eu fiz junto, não é?” (Carlos, marido Ana)
291
Analisando o comentário de Carlos, é possível notar que o sangue liberado
pelo corpo de certa maneira torna o parto “natural” e “humanizado” algo “sujo”,
em contraposição ao parto cirúrgico, por ele classificado como “superlimpo”.
Com efeito, Rodrigues (2006) destaca que, em muitas sociedades, opera uma
distinção entre o sangue “mau”, “que brota do corpo em desafio à vontade
humana, que comove e amedronta” (2006: 82), e aquele que é voluntariamente
derramado, isto é, controlado e provocado pela ação humana – o sangue “bom”.
Por trás dessa distinção – que também parece comportar adjetivos como “limpo” e
“sujo” – residiria, segundo o autor, a distinção entre cultura e natureza, sendo o
primeiro culturalmente produzido, como no caso da cesárea, e o segundo fruto de
forças naturais. E é justamente o contato com aspectos da ordem do biológico e do
fisiológico, como o sangue “sujo” e outras “impurezas” que emanam do corpoem-trabalho-de-parto, que requer uma preparação prévia da parturiente, mas
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especialmente de seu parceiro, que não estará vivendo o processo em seu próprio
corpo, mas assistindo-o.
4.4.2.
Em vez de dor, “força”, “intensidade” e “pressão”
Da mesma forma que, no momento que antecedia ao parto, várias
entrevistadas procuraram esquivar-se da palavra “medo”, depois de terem passado
pela experiência algumas rejeitaram fazer uso da palavra “dor” para narrar as
sensações vividas. Nesse sentido, a preferência foi por termos como “força”,
“intensidade”, “pressão”, “coisas” e “processo”.
“Eu não senti dor. Quer dizer, eu não sentia dor, eu sentia coisas. Mas não era
uma coisa alucinante que me fazia ver estrelas e que eu ‘Ai, eu vou morrer na
próxima contração’. Eu costumo falar que minhas contrações eram amigas. Eu
aguentei bem, assim, sem sofrer” (Simone).
“[O que eu senti] Era mais como se fosse uma pressão. Não era uma dor, assim,
mais como se fosse uma pressão, um incômodo. É muito difícil de comparar com
outra coisa porque é muito diferente”. (Ana)
“A dor do parto, ela não é uma dor local. ‘Ah, estou com dor de dente’. A dor de
dente se instala ali e antes de você tomar qualquer remédio para dor, ela se instala
ali. A dor do parto ela não se instala, ‘Ah, cheguei e me instalei’. Ela vem em
ondas, é um processo, então fica difícil você separar a dor... é muito raso você
tratar a dor do parto como uma dor. É todo um processo (...) [E] a dor [do parto],
ela tem que ser sentida. O papel dela é aquele. Estou sentindo dor? Então, vamos
sentir dor. Não lutar contra. Ela vem, mas ela vai. É você entrar na dança, é como
292
se fosse uma dança. Se aquela dor está ali, é porque ela tem que estar ali, você
tem que sentir dor, ela faz parte. É uma função. Aquela dor não está ali à toa,
então, ela é necessária”. (Vanessa)
“Você não pode falar em termos de dor a respeito do parto. Porque dor, você tem
dor de cabeça, dor de dente, dor de dar uma topada no chão, dor da queimadura.
A dor faz com que você fique recolhida em você mesma. É uma coisa que te
enfraquece, que te debilita. O parto, você não fica recolhida em si mesma. Muito
pelo contrário, não dá para você ficar deitada. E não é uma coisa que te debilita, é
uma coisa que te dá força. É uma força que vem não sei nem de onde, que está ali
adormecida no teu corpo, que te atravessa. É uma coisa muito forte. Sabe? É um
contato com a vida. Vida com “V” maiúsculo. Sabe? É a vida do bebê. É a vida
que permeia todas as vidas, que te atravessa e te subjuga. Te joga no chão
mesmo. Você fica de quatro e, isso aí, eu acho que não é dor. Não é para ser
chamado de dor, isso. Não é dor no sentido pejorativo que as pessoas dão, sabe?
É uma força”. (Kátia)
Ainda que não tenha questionado o uso da palavra dor, o relato de Alice é
semelhante ao das demais, no sentido de que procura destacar as especificidades
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das dores do parto em relação a outros tipos de dor. Além disso, assim como
Kátia, ela ressalta o fato de esta sensação tê-la impulsionado à ação203:
“Aquela dor ali [do parto] é uma dor que você sabe que é para uma coisa boa. É
diferente de uma dor que você está sentindo porque você está tendo um problema
de saúde ou está tendo uma dor de dente. É uma dor diferente. Ela tem um
intervalo. Ela vem em forma de onda, então ela te dá um descanso. (...) E quanto
mais forte a contração, quanto menor o intervalo entre elas, você sabe que está
mais perto de você conhecer o seu filho, de você ver o neném. (...) [Mas] Apesar
de você estar gostando de sentir aquela dor, ela também foi feita para passar.
Ninguém vai querer ficar a vida inteira, ali, sentindo dor. Então, quando você está
sentindo a dor, você mesmo quer fazer os exercícios, você quer agilizar, você
quer fazer força. Ela te bota para frente, entendeu? (...) [Ter sentido as dores do
parto para mim] Foi uma coisa muito boa”. (Alice)
Andréa, por sua vez, reconheceu ter sentido muita dor, mas qualificou a
experiência, na qual amor e dor se misturaram, como positiva:
“Eu senti dor para caramba, mas foi legal. Assim, eu gostei. (...) Eu acho que é a
única experiência da vida que o amor e a dor se juntam, não é? Amor e dor se
juntam ou que a dor é compensada pelo sentimento de amor quando sai e tal.
Então, é uma vivência profunda do corpo e única, não é?” (Andréa)
Como é possível notar, as entrevistadas procuraram ressignificar a tão
temida dor do parto, descrevendo-a fora do registro do sofrimento, predominante
em nossa sociedade – o que também buscaram fazer, como assinalado no capítulo
203
Observação semelhante foi feita por Sofia, para quem não era possível “fazer corpo mole”
durante o trabalho de parto. Esse comentário parece trazer implícita a idéia de um corpo ativo, ágil
e bem-disposto, que se exercita e movimenta, favorecendo o trabalho de parto.
293
anterior, os profissionais da CP. Nesse sentido, a dor foi classificada pelas
mulheres desse grupo como “amiga”, como tendo uma “função”, como sendo
uma dor “diferente”, etc. Para algumas, o significado negativo comumente
disseminado na sociedade só deveria ser aplicado às dores provocadas por
doenças, lesões ou ferimentos que – diferentemente das sensações associadas ao
parto – debilitam e sinalizam que há algo de errado com o corpo. Em
contraposição, a “dor da Vida”, revestida de um caráter sagrado na interpretação
de Kátia, teria um efeito mobilizador, dando força e instando a parturiente a agir.
Caberia à mulher, segundo Vanessa, “entrar na dança”, isto é, aceitar e desejar a
sensação percebida, entendendo-a como “necessária” e como parte de um
processo mais amplo de transformações, que tem como um de seus desfechos o
nascimento do bebê.
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É interessante destacar que, de todas as entrevistadas desse grupo, três
descreveram de maneira mais enfática e negativa as dores sentidas, foram elas:
Manuela, Tatiana e Elena. As duas primeiras, no entanto, atribuíram a intensidade
das dores a intercorrências durante o parto (edema e fibrose no colo de útero,
respectivamente) e não ao processo de parturição em si. Noutras palavras, o que
reputaram como negativo foi a dor provocada pela complicação e não as
sensações desencadeadas pelo trabalho de parto propriamente.
De maneira geral, deve-se destacar que, entre as entrevistadas de camadas
médias, havia de antemão o desejo de sentir as sensações provocadas pelo parto,
tendo a experiência sido fruto de uma escolha deliberada. Tal decisão foi, pelo
menos parcialmente, resultado de um processo de positivação das sensações, do
qual fez parte as aulas de preparação, o contato com outras mulheres que tinham
dado à luz dessa forma, os livros e filmes que tratam do tema, o material
publicado em blogues e redes sociais, etc.
Vale ressaltar que a associação entre parto e ato sexual costuma ser
frequente entre os ativistas, possivelmente fruto da disseminação das teorias
elaboradas pelo obstetra francês Michel Odent. Segundo Odent, tanto no parto
como no ato sexual o corpo libera o mesmo coquetel de hormônios, dentre eles a
ocitocina, por ele chamada de “hormônio do amor”. Tal hormônio seria
responsável por promover a contração uterina, o que ocorre durante o trabalho de
294
parto, mas também quando a mulher tem um orgasmo, o que atestaria a
semelhança desses eventos, sendo ambos considerados por Odent como parte da
vida sexual feminina.
Nessa mesma direção aponta o filme “Parto orgásmico” (Orgasmic Birth),
lançado nos EUA em 2007 e que teve grande repercussão entre os adeptos da
“humanização” do parto e do nascimento no Brasil. O filme retrata o parto como
um evento emocional, espiritual e físico e, de forma resumida, é possível dizer
que questiona a visão do parto como uma experiência dolorosa, apresentando-o
como possível fonte de prazer. Nesse sentido, são exibidas imagens de mulheres
tendo orgasmos durante o trabalho de parto, uma cena um tanto incomum em
nossa sociedade.
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Ainda que a correlação entre parto e sexo tenha sido pouco mencionada
pelas entrevistadas, todas foram expostas a ela durante a gestação, o que
provavelmente contribuiu para a positivação da experiência, que passou a ser
encarada como possível fonte de prazer e satisfação. Nesse sentido, pode-se dizer
que a ressignificação das sensações antecedeu a experiência de parturição das
entrevistadas, tendo esta sido vivida já sob sua influência.
Como observa Becker (2008) em relação ao consumo de drogas, além de
ser preciso aprender a reconhecer e identificar as sensações – o que também se
aplica ao trabalho de parto204 –, é necessário aprender a gostar das sensações que
se percebe. De fato, destaca o autor, as sensações produzidas pelas drogas não são
automática ou necessariamente agradáveis, sendo possível dizer que o gosto por
tal experiência é socialmente adquirido. Nesse sentido, afirma Becker, “o prazer é
introduzido pela definição favorável da experiência que uma pessoa adquire de
outras” (2008: 65), sendo a interação dos “noviços” com pessoas mais experientes
peça importante para o processo de aprendizagem através do qual a droga é
204
O relato de Alice sobre o trabalho de parto do primeiro filho é bastante ilustrativo dessa
necessidade de aprendizagem das sensações: “[Na primeira gravidez] Eu nem sabia como era um
trabalho de parto. No dia em que eu entrei em trabalho de parto do meu primeiro filho, eu liguei
para a minha médica e falei assim: “Olha, eu estou sentindo uma dor na barriga que vai e volta.
Será que eu comi alguma coisa que não fez bem?”. Ela: “Não, você está com 40 semanas e se você
está sentindo isso é trabalho de parto.” Eu não sabia. Eu achava que era outro tipo de dor, outro
tipo de sensação.
295
concebida como uma possível fonte de prazer. Noutras palavras, é necessário
aprender a gostar das sensações.
No caso do trabalho de parto, mais do que gostar ou ter prazer com as
sensações – o que foi referido por algumas entrevistadas – é preciso, de maneira
mais geral, atribuir um significado positivo a elas: seja por sua função,
sacralidade, capacidade mobilizadora, fonte de auto-conhecimento etc. Como
afirma Le Breton, “la relación intima con el dolor depende del significado de que
este revista en el momento en que afecta al individuo” (1999: 09).
4.4.3.
Parto como processo: em busca do aperfeiçoamento subjetivo
Tendo as sensações corporais desencadeadas pelo trabalho de parto sido
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previamente ressignificadas e o parto, em vez de percebido como fonte de
sofrimento, encarado como algo que desperta interesse e curiosidade, não é de
surpreender a ênfase atribuída pelas entrevistadas à experiência do trabalho de
parto e parto – que, em alguns casos, parece até mesmo superar aquela concedida
ao nascimento do bebê.
O caso de Andréa é, nesse sentido, bastante ilustrativo. Mãe de três filhos
nascidos no Brasil, ela, que é alemã e vive em união estável com um brasileiro,
narrou os partos vividos como uma trajetória de aperfeiçoamento da experiência –
o que constatou ser algo freqüente entre as entrevistadas multíparas.
Na primeira gravidez, Andréa fez aulas de preparação para o parto no
curso de Flora, mas só tomou a decisão de buscar um médico “humanizado”
poucos dias antes de entrar em trabalho de parto. Quando a bolsa estourou, ela
teve dificuldades em contatá-lo e acabou telefonando para a médica com a qual
havia feito todo o acompanhamento pré-natal, que lhe orientou a ir logo para a
maternidade e rejeitou a presença de uma doula. Como resultado, Andréa deu à
luz o primeiro filho em um parto “normal” medicalizado, experiência da qual
guardou como memória a sensação de ter sido “infantilizada” pela equipe médica,
o que atribuiu ao fato de não ter tido controle sobre o corpo e por ter sido
inteiramente conduzida pelos profissionais.
296
“Na medida em que foram acontecendo as intervenções, eu perdi totalmente o
domínio. Essa coisa foi um buraco, não é? Um buraco total.
No parto do segundo filho, já tendo desde o princípio sido acompanhada
por uma obstetra “humanizada”, Andréa demorou a identificar as sensações do
trabalho de parto e a comunicar a médica. Em razão disso, tardou a ir para o
hospital e o bebê quase nasceu no táxi, o que, segundo ela, gerou muito estresse e
nervosismo. A doula que havia sido contratada sequer chegou a tempo. Na
entrevista, Andréa lamentou ter “curtido” pouco o trabalho de parto.
Na última gravidez, Andréa planejou chegar cedo na maternidade, de
modo a, enfim, poder “curtir” o trabalho de parto. Na época, a entrada de doulas
havia sido restringida pela resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio
de Janeiro (Cremerj), anteriormente referida. Em uma mistura de ativismo e
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desejo de viver nesse parto tudo o que não conseguira nas experiências anteriores,
Andréa contratou duas doulas (uma delas era Flora), além da equipe da obstetra –
que já contava com uma médica assistente e uma enfermeira obstetra. Mas, ao
longo do trabalho de parto, ela acabou preferindo ficar apenas na companhia de
Flora, o que foi respeitado pelos demais membros da equipe, que saíram da sala
de parto. O marido de Andréa, que quase não apareceu em sua narrativa, esteve
presente, mas de maneira discreta, “ao fundo”, segundo descreveu.
“Eu estava só com a Flora, que me propôs alguns exercícios meio que simulando
um trabalho de parto de longo. Eu queria curtir como se fosse um trabalho
demorado. Assim, eu queria ter uma sensação dessa, de curtir o trabalho de parto.
Aí, foi legal...”
Como é possível notar, o foco de Andréa era o processo de parturição, a
experiência, que deveria idealmente transcorrer de forma “longa” e “demorada” –
o que era pouco provável em se tratando do terceiro filho e, por isso, deveria ser
simulada – e não apenas o nascimento do bebê. Esta visão fica ainda mais
explícita em outro trecho de sua entrevista:
“O trabalho de parto que é tudo. É uma preparação. O clímax é o nascimento,
mas eu queria, eu sabia que o trabalho de parto já é o início da expulsão. Tipo,
como se fosse o início da expulsão. (...) Na hora, eu falei: “Eu consegui!” Mas,
logo eu falei: “Conseguimos! Conseguimos! Obrigada, Senhor, por ter essa
sensação! Conseguimos, eu e ele! Conseguimos!”.
297
Instigada a descrever suas sensações corporais durante o parto e
questionada sobre o motivo pelo qual lhe parecia tão importante “sentir” o
processo, Andréa respondeu:
“A sensação foi plena. Eu senti tudo. Eu senti sair a cabeça. Senti sair o corpo.
Senti dilatar. Senti quando entrou em trabalho de parto, começando. Começou eu
já sentindo que agora era, sabe? Foi tudo certinho. Assim, eu pude ter uma
experiência de curtir, de sentir a contração, de sentir ele descendo, sentir abrindo,
sentir saindo. Não dá para falar mais, porque foi pleno. Eu senti uma gratidão
depois, não é? De poder ter sentido isso tudo. (...) [Eu desejava sentir tudo] Para
ser uma vivência completa. (...) Eu acho que é uma questão de consciência. É
uma experiência muito boa de autoconhecimento. E quem não quer ter
autoconhecimento? Eu acho que o mais natural deveria ser isso, aliás. Só que
hoje em dia tem que lutar para poder ter essas experiências”.
A gratidão manifestada por Andréa por ter experimentado a “sensação” de
parir de forma “plena”, valorizada como uma importante experiência de
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autoconhecimento, merece atenção e a reflexão de Duarte (1999) acerca do
império dos sentidos na cultura ocidental moderna parece ser profícua para
analisá-la. Ao traçar uma genealogia do que chama de “dispositivo da
sensibilidade”, Duarte aponta para três aspectos que estariam presentes nele,
desde seu surgimento – localizado entre os séculos XVII e XVIII, isto é, no
mesmo momento histórico em que Foucault identifica o aparecimento do
“dispositivo da sexualidade” –, até a contemporaneidade, quais sejam: a
perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo.
A idéia de perfectibilidade, expressa em Rousseau, por exemplo, sugere
que o que distingue os seres humanos dos demais é sua capacidade para se
aperfeiçoar de maneira constante e indefinida, o que abre caminho para noções
como a de progresso, desenvolvimento, transformação e vanguarda, palavras de
ordem em nossa cultura. Duarte (1999) destaca ainda que, na visão ocidental, a
perfectibilidade deve ser desencadeada a partir da experiência, fruto da relação do
sujeito, que é dotado de razão, com o mundo exterior.
“A razão humana só viceja através do contato dos sujeitos com o mundo
propiciado pelos ‘sentidos’; ela depende da maneira pela qual eles percebem o
mundo que os cerca, e é através desses sentidos que vão poder construir as suas
novas formas de relação com o mundo e se tornar eventualmente cada vez mais
aperfeiçoados, mais capazes, mais senhores de seu futuro” (Duarte, 1999: 25).
298
A preeminência da experiência, que aparece de maneira mais explícita na
corrente filosófica do empirismo, influencia também o romantismo, o que faz com
que os sentidos sejam percebidos como estando na raiz da razão, mas também na
das emoções.
O autor completa o quadro de aproximação entre as formas modernas de
sexualidade e sensibilidade abordando o tema do fisicalismo. A separação radical
entre o corpo e o espírito, tal qual expressa em Descartes, faz com que a
corporalidade humana seja percebida “como dotada de uma lógica própria, que
deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a condição humana”
(1999: 25). Segundo o autor, na prática, o fisicalismo “é a consideração da
corporalidade em si, como dimensão auto-explicativa do humano” (1999: 25), daí
derivando a concepção de fisiologia humana, frequentemente referida pelos
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adeptos da “humanização”. Dessa concepção deriva a noção “fisiológica” da idéia
de sensibilidade, que convive também com a noção “sentimental” da categoria e
que envolve uma linguagem moral, estética e psicológica das emoções sensíveis.
No artigo, o autor argumenta que há uma articulação interna entre esses
três temas (perfectibilidade, experiência e fisicalismo), a partir da qual constrói
sua análise acerca da sensibilidade ocidental nos dias atuais. Duarte (1999)
observa como as inúmeras estratégias de maximização da vida e otimização do
corpo – dentre as quais situa justamente a ginecologia e a anestesia –, foram
resultado da sistemática exploração do corpo “como sede da busca indefinida,
eternamente perfectível, da exacerbação da sensibilidade, do refinamento ou
intensificação do prazer” (1999: 27). De fato, afirma Duarte (1999), a busca
constante por um aprofundamento das intensidades é uma marca do hedonismo
moderno205. Tal busca faz com que experiências sensoriais novas sejam
205
As reflexões de Le Breton (2007) também parecem apontar nessa direção, ao sugerir que, em
tempos de dispersão de referências e de “multidões solitárias”, o corpo tem despertado um grande
interesse, tendo se transformado em uma espécie de “íntimo companheiro de estrada do ator”, isto
é, em um “corpo parceiro”, capaz de prover as sensações mais originais. “O indivíduo é convidado
a descobrir o corpo como forma disponível à ação ou à descoberta, um espaço cuja sedução é
necessário manter e cujos limites vislumbrados é preciso explorar. O corpo é o lugar tenente do
indivíduo, o parceiro. É precisamente a perda da ‘carne do mundo’ que força o ator a se inclinar
sobre o corpo para dar carne à existência. (...) Ao alcance das mãos, de certa forma, o indivíduo
descobre através do corpo uma forma possível de transcendência pessoal e de contato. O corpo não
é mais uma máquina inerte, mas um alter ego de onde emanam sensação e sedução. Ele se
transforma no lugar geométrico da reconquista de si, um território a ser explorado na procura de
299
valorizadas na medida em que, de alguma maneira, são percebidas como
acrescentando algo ao sujeito, isto é, representam uma via de aperfeiçoamento
subjetivo.
As reflexões de Duarte (1999) parecem ser extremamente profícuas para
se analisar não apenas a experiência de Andréa com o parto “natural” e
“humanizado”, mas também a de outras mulheres que integram o grupo
investigado. Com efeito, a possibilidade de vivenciar um parto sem qualquer tipo
de “intervenção” é, por muitas entrevistadas, valorizada também enquanto
experiência física, isto é, por suas sensações, as quais a mulher pode ter acesso
apenas poucas vezes na vida, considerando que a taxa de natalidade tem reduzido
gradativamente no país, em especial nesse segmento. Assim, a intensidade da
experiência parece estar atrelada à ausência de medicamentos, em grande medida
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da anestesia, pois esta representa justamente a perda, ainda que parcial, da
sensibilidade206.
No relato abaixo, fica evidente a atenção dispensada por Sofia às suas
sensações corporais, e o interesse em vivenciar, ou melhor, em “sentir” o
“processo” de parturição:
Sofia: “Eu passei praticamente o trabalho de parto todo de olho fechado para me
concentrar no meu corpo e tal. Saber o que estava acontecendo e em que estágio
que estava. (...)
Entrevistadora: Você queria saber em que estágio do trabalho de parto
estava a partir das suas sensações? É isso?
Sofia: É. Era assim, para saber, “agora eu estou no expulsivo.” “Entrei no
trabalho de parto ativo.” Era para eu ter noção do processo. Então eu sabia que no
começo as contrações eram mais espaçadas, que eram menos intensas. A medida
que isso vai progredindo, então é porque está chegando no final, não é?
Entrevistadora: Isso não era uma coisa que você perguntava para sua
médica? Você estava percebendo a partir do seu corpo?
Sofia: Eu estava sentindo”.
sensações inéditas a serem capturadas. (...) Nessa vertente da modernidade, o corpo é associado a
um valor incontestável” (Le Breton, 2007: 86-87).
206
As palavras de Alice a esse respeito são esclarecedoras: “Quando você toma medicação, você
bagunça um pouco, entendeu? (...) Eu estou falando, assim, bagunça a sua sensação. Eu não gostei
de ter tido essa sensação interrompida [no parto do primeiro filho]”.
300
Sofia, assim como outras entrevistadas, também relata a satisfação e o
prazer gerados pela experiência:
“Eu sentia de vez em quando ele girando dentro da barriga para encaixar na bacia
direito. Isso foi a melhor sensação que eu tive. Foi muito legal, porque isso não
dói e era uma sensação gostosa. Eu não vou dizer que foi um parto orgásmico,
porque não foi. Mas nesses momentos, que ele fazia o giro, sentir isso era muito
bom”. (Sofia)
Vanessa, que também esteve atenta a suas sensações durante todo o
trabalho de parto, narrou em detalhes as sensações percebidas durante o período
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expulsivo, que considerou o mais prazeroso.
“A parte dela nascendo pra mim foi fantástica. Eu entrei na banheira, coloquei a
mão na vagina e senti ela coroando, em cada contração ela coroava e depois
voltava. Tanto é que eu não tirei mais a mão, eu queria sentir a cada contração ela
vindo. Uma coisa total sabe, de você sentir dor no controle, eu com a mão ali, eu
sabia quando ela vinha, ninguém me falava. Na penúltima contração, no intervalo
dela, eu já sabia, ‘ela vai nascer’. E na próxima contração eu senti a cabecinha
dela vindo mesmo, senti que a cabeça tinha passado. Eu até grito no vídeo, ‘foi,
foi, agora foi’. Era eu falando comigo mesmo, porque eu sabia que dali não ia
mais voltar, que ela ia nascer. Aí eu grito, não é dor, porque na parte do expulsivo
não é mais dor que você sente, é o prazer mesmo. Você grita como num êxtase
mesmo, uma coisa de exteriorizar o ‘está vindo’, não era mais dor”.
Angélica, que também direcionou a atenção para suas sensações,
comparou o parto da primeira filha, no qual tomou anestesia, ao do segundo, que
transcorreu sem intervenções. Para ela, a droga interferiu no prazer da
experiência, ao inibir suas sensações físicas e emocionais:
“[No meu segundo parto] Eu estava querendo estar mais concentrada em mim,
mais fechada nessa experiência, com meu corpo, com o bebê. (...) foi um
aprofundamento da sensação, da experiência. [Sem a anestesia] você está mais
aberta ali, para as sensações, para tudo. (...) Eu pude sentir melhor, sentir o bebê
saindo. Do primeiro parto eu consegui ter ela de cócoras, me movimentar, mas
parece que inibe um pouco essa sensação do prazer, do afeto. A anestesia, no
caso. [O meu segundo parto] foi maravilhoso, foi incrível”. (Angélica)
Os relatos transcritos refletem a extrema atenção que as mulheres desse
grupo dedicam a seus corpos e as sensações deles emanadas, em sintonia com as
observações feitas por Boltanski (1979) de que o interesse e a atenção, bem como
a aptidão a verbalizar as sensações corporais são culturais e variam entre as
classes sociais. De acordo com o autor, a importância dada às sensações físicas,
sejam elas de prazer ou desprazer, aumenta de acordo com a elevação na
hierarquia social, quando proporcionalmente tendem a se reduzir os benefícios
301
que o sujeito pode tirar de seu próprio corpo, fazendo-lhe um uso instrumental.
Dessa forma, “sensações semelhantes são objeto de uma ‘seleção’ ou de
‘atribuição’ diferentes e são experimentadas com uma maior ou menor intensidade
conforme a classe social dos que as sentem” (Boltanski, 1979: 124).
No caso das mulheres de camadas médias, é possível dizer que, durante
boa parte da gestação e do trabalho de parto, predomina o que Csordas (2008)
definiu como um “modo somático de atenção”, expressão que se refere a
“maneiras culturalmente elaboradas de estar atento a e com o corpo em ambientes
que incluem a presença corporificada de outros” (Csordas, 2008: 372). Entre as
parturientes, essa atenção “ao” e “com” seu corpo incluía a atenção a si, aos
corpos dos que as rodeavam, isto é, da equipe e de seu parceiro207 e, ainda, ao
corpo que carregavam dentro do seu, ou seja, o do feto. Com a intensificação das
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contrações e o avançar do trabalho de parto, contudo, a atenção da parturiente
pareceu ter cada vez mais se deslocado apenas para si, o que será explorado a
seguir.
4.4.4.
“Partolândia”: o corpo no comando
O termo “partolândia” – desconhecido das mulheres de camadas
populares, onde a tônica das oficinas incide basicamente sobre a questão do autocontrole – é utilizado nas aulas de preparação para o parto na Zona Sul, bem como
em blogues e comunidades na Internet, para referir-se a um “estado alterado de
consciência”, que poderia ser atingido em um momento específico do trabalho de
parto, isto é, na chamada “fase de transição”, quando as contrações ocorrem em
intervalos mais curtos e por períodos mais longos. Sua descrição é semelhante a
de um transe e, ao “ir à “partolândia”, a mulher não perceberia o tempo passar
nem o que acontece ao seu redor. Segundo a interpretação corrente entre os
adeptos do ideário, claramente influenciada pelas teses do obstetra francês Michel
Odent, tal experiência seria fruto de uma prevalência temporária dos instintos
sobre a razão, o que permitiria ao corpo atuar de forma autônoma. “Quando a
207
Andrea relatou, por exemplo, que, mesmo de costas, sentiu que a médica estava com o relógio
em punho medindo o intervalo entre suas contrações. “Cada pessoa te olhando, você sente de
costas. Eu senti. (...) Eu percebi muito forte. Por isso é bom não falar nada e baixar a luz”, o que
geralmente é feito nos partos “humanizados” com o intuito de criar uma ambiência que favoreça a
introspecção que, como se verá adiante, é considerada necessária para a entrada na “partolândia”.
302
mulher está no planeta do parto ela vira bicho. Virar bicho é deixar o corpo agir”,
afirmou Flora em uma das aulas do curso.
Os relatos das entrevistadas que disseram acreditar ter ido à “partolândia”
durante suas experiências de parto (Alice, Angélica, Ana, Andrea, Kátia, Sofia,
Simone e Vanessa) 208, parecem ir ao encontro das idéias difundidas por Odent, no
sentido de que sugerem ter vivido uma espécie de transe, durante o qual a maioria
(Alice, Ana, Andrea, Sofia, Simone e Vanessa) considera ter se comportado de
forma instintiva.
“Na partolândia a gente não raciocina muito. Você fica meio aérea. Não bate lé
com cré, entendeu? Eu acho que é isso. Eu não sei se outras pessoas vão para
algum lugar, assim, transcendental ou alguma coisa do gênero. O meu foi mais
assim... Você não consegue raciocinar, você vai no instinto. Eu acho que isso é,
pelo menos, foi a minha partolândia”. (Sofia)
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“Nesse momento, quando a dor ficou mais intensa, eu fiquei meio como se fosse
em uma bolha, sabe? Você fica com o seu corpo... E só reage. Ele manda e você
reage àquilo que o corpo manda fazer. (...) Você não pensa mais. Você só... o
corpo vai como se fosse em piloto automático”. (Ana)
“É como se você ficasse numa sensação meio que de ausência. Você fica ali
deixando o seu corpo trabalhar, entendeu? É o seu corpo que faz”. (Alice)
“É um momento de total entrega e confiança no próprio corpo, um estado
primitivo, mamífero”. (Andrea)
“[Você fica] tipo em um transe, o racional não existe. Você é total instinto. Você
visita um lugar em você que realmente não tem acesso. Você entra em um
compartimento de acesso único quando você está parindo. Você não pode deixar
muito o racional entrar”. (Vanessa)
Mesmo Kátia, que não chegou a fazer referência a instintos e atribuiu
outro significado à experiência, por ela percebida como um encontro com a
“Vida”, com o sagrado209, afirmou ter a percepção, durante o trabalho de parto, de
não ter qualquer controle sobre o processo, deixando-se guiar por seu corpo.
208
Duas das entrevistadas desconheciam o termo (Elena e Tatiana) e uma disse só ter se dado
conta de que esteve na “partolândia” depois do parto, devido aos lapsos de memória.
209
A percepção da “partolândia”, ou mesmo do parto de maneira geral, como um momento
sagrado parece ocorrer com alguma freqüência entre as adeptas da “humanização”, como sugere a
pesquisa de Carneiro (2011). Há inclusive um filme sobre o tema que leva o título de “Sagrado”.
Entre as mulheres do grupo de camada média investigado, contudo, esta foi pouca vezes referida, o
que aconteceu de maneira mais explícita apenas no depoimento de Kátia, para quem o termo
“partolândia” deveria ser inclusive repensado, pois de alguma maneira remeteria à Disneylândia,
o que, na sua avaliação, não respeitaria o caráter sagrado da experiência.
303
“Você não tem controle sobre a situação. (...) o trabalho de parto começa e você
se entrega àquilo. Você não sabe o que vai acontecer. As contrações vão
aumentando de intensidade, te jogando, literalmente, no chão. Quanto mais você
se entrega àquilo, melhor. Para aquilo deixar acontecer através de você, sabe?
Deixar a vida acontecer através de você. Teu corpo sabe. Isso é... Você não está
no controle da situação”. (Kátia)
Como é possível notar, os depoimentos indicam que a “partolândia” é
percebida pelas mulheres como um momento de transe, em que “o corpo age
sozinho”, o que, segundo pontua Ana, ocorre em meio à incapacidade de
raciocínio provocada pela intensidade da dor. Seriam provas do estado de transe
os lapsos de memória no registro da experiência, o que a mulher só se dá conta
depois do parto, em geral com a ajuda do parceiro. Elas costumam mencionar
principalmente a incapacidade de enxergar e ouvir os que estavam ao redor, o que
aponta para uma extrema atenção direcionada ao próprio corpo, sendo esta uma
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habilidade aprendida e desenvolvida, a despeito da freqüente menção aos
instintos.
“Achei que não tivesse ido para partolândia. E depois eu vi que fui. Porque é
muito doido, eu me achei super consciente no meu parto. Eu conversava com as
pessoas, dava opinião e tal, mas depois no vídeo que foi feito pela doula eu
percebi que muitas coisas aconteceram, muitas coisas foram ditas pelas pessoas
que eu absolutamente não vi acontecer. Não me lembro de muitas coisas, não me
lembro de gestos, não me lembro... Enfim, não me lembro de uma série de coisas,
que apesar de eu estar ali era como se eu não estivesse. Então, no momento do
parto, eu achei que eu estava 100% presente. Depois eu percebi que não. Eu não
estava presente. Eu estava na partolândia, mas eu achei que eu não estivesse,
sabe? Eu achei que eu fosse ficar mais doidona, mas na verdade eu fiquei – o que
é mais louco! –, mas achei que eu não estivesse. Mas é legal isso. É engraçado.
Eu achei muita graça depois. Eu comentava com meu marido: ‘Nossa! Mas você
falou isso com o médico? Como que eu não vi? Nossa! Mas nessa hora aqui
dessa foto, a pessoa entrou no quarto? Mas como eu não vi?’. Ele: ‘Você não viu,
porque você estava na partolândia’, ele fica falando para mim”. (Simone)210
“Eu não lembro muito bem quem estava na sala [de parto], o que estavam
fazendo...”. (Ana)
“[No parto da minha segunda filha] eu fui para a partolândia com certeza. Eu fui
para a partolândia... (...) Tanto é que eu fui para a partolândia que eu não me
lembro de muita coisa do meu parto, entendeu? Apesar de ter sentido. O meu
marido até falou assim: ‘Nossa! Na hora do parto você estava com os dois pés no
ombro da sua médica, quase você enforcou ela, deu uma chave de perna nela’. Eu
falei: ‘Gente, eu não lembro. Coitada. Depois eu vou até pedir desculpas, porque
eu não lembro disso’. Não lembro mesmo... muita coisa eu não lembro. Você tem
210
O relato de Simone mais uma vez aponta para a necessidade de se aprender a reconhecer e a
identificar as sensações (cf. Becker, 2008), como referido anteriormente.
304
a sensação, mas lembranças das coisas externas que estavam na sala, quem estava
ali, quem não estava, isso muita coisa se apagou”. (Alice)
“Eu estava muito assim... eu sozinha mesmo. Tinham 10 pessoas no banheiro.
(...) Mas para mim não tinha ninguém ali, eu não via muita coisa, assim”.
(Vanessa)
A despeito das orientações para que a parturiente fique em um ambiente
intimista, considerado o ideal para que a mulher “reencontre seus instintos”211,
Vanessa permaneceu rodeada de membros da família, mas ainda assim disse não
ter notado a presença das pessoas que a rodeavam no exíguo espaço de um
banheiro. O que mais interessa reter dos relatos acima, no entanto, foi a menção
feita por Alice de que havia quase agredido sua médica, a quem pretendia pedir
desculpas pelo inusitado contato corporal durante o trabalho de parto e do qual
não tinha qualquer registro ou recordação. De fato, atitudes e comportamentos
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pouco “civilizados”, gritos, gemidos e até mesmo xingamentos não parecem ser
incomuns durante um parto “natural” e “humanizado”212:
“Eu gritei muito. (...) Nem mesmo se eu quisesse, naquele momento, eu não
podia falar: “Ah, não quero gritar mais. Vou ficar de boca fechada.” Não dá,
porque é algo, tipo, meio automático”. (Ana)
“Eu perdi o controle de mim. Tudo aquilo que eu aprendi de cultura, de
informação, de educação, tudo aquilo foi para o brejo. Aquilo ali ficou tudo de
lado. Sei lá onde foi parar. Você é aquele ser tomado por aquela força intensa,
não é? Aquilo toma conta de você. Então eu não tive problema nenhum em gritar,
de ter vergonha”. (Kátia)
“Teve uma hora em que a dor foi muito grande e eu empurrei ela [a médica] com
o pé. (...) Empurrei ela e empurrei a enfermeira, um pé em cada uma de tanta
dor”. (Elena)
“Na hora do parto, eu não deixei que ninguém colocasse a mão em mim. Fiquei
meio leoa, meio bicho assim, instinto. O Jorge [marido] até reclamou depois,
porque ele foi tentar entrar no quarto e levou uma bronca. O Júlio também levou
uma bronca. O Júlio, meu filho, ele ficou filmando. (...) Eu no trabalho de parto
no chão, apoiada e o Júlio filmando... só que na hora da contração não podia falar
comigo, e ele foi falar não sei o quê, na hora da contração, e eu dei um esporro
nele (...) Até a mamãe que é faladeira ficou quietinha, porque eu estava assim:
bobeou, levou uma resposta malcriada”. (Vanessa)
211
Segundo as teses de Michel Odent, expostas no capítulo 2.
Do meu próprio parto – cujo relato encontra-se no Posfácio dessa tese – guardo a recordação de
ter me comportado de maneira rude, grosseira e um tanto autoritária com as pessoas que estavam
ao redor.
212
305
Os relatos apontam para atitudes e comportamentos pouco afeitos às regras
de etiqueta que costumam regular as relações sociais, o que Vanessa atribui ao
fato de estar agindo impulsionada por seus instintos ou, como Ana, por um
“automatismo”, em relação ao qual tinha pouco ou nada a fazer. Ainda que os
ideólogos do parto “natural” e “humanizado” procurem descrever essa experiência
de descontrole, que julgam positiva, como sendo uma particularidade do processo
de parturição, deve-se ressaltar que a descrição feita por Le Breton (1999) sobre o
comportamento de indivíduos acometidos por dores intensas parece ser bastante
semelhante à narrada pelas entrevistadas, o que leva a crer que possivelmente
seria a dor a chave para compreender a experiência de descontrole por elas
vivida213.
Em “Antropología del Dolor”, Le Breton (1999) chama a atenção para
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como a dor intensa promove a perda do controle que normalmente organiza as
relações com os outros, pois, acometido por ela, o sujeito se permite comportar
(fazer caretas, chorar, empurrar, etc.) ou falar (xingar, reclamar, dar ordens, etc.)
de uma forma que rompe com as regras habituais. “A dor deixa os nervos à flor da
pele, um mínimo incômodo, um ruído, uma contrariedade, alcançam proporções
que deixam atônitas as pessoas que nos rodeiam; perturba a percepção do tempo”.
(Le Breton, 1999: 33). Comparando a dor a uma forma de possessão, o autor
menciona o poder que esta tem de ditar ao indivíduo sua conduta e ameaçar-lhe a
reputação, o que faz com que o sujeito converta-se em um desconhecido, até
mesmo para os mais próximos: “faz o que jamais haveria desejado fazer ou
profere palavras que teria desejado calar e das quais se arrepende em seguida
(1999: 26). Ao fim e ao cabo, afirma Le Breton, “toda dor, inclusive a mais
modesta, induz à metamorfose, projeta uma dimensão inédita da existência, abre
no homem uma metafísica que altera sua ordinária relação com o próximo e com
o mundo” (Le Breton, 1999: 26).
Mais uma vez a noção de rito de passagem (Turner, 1974, Van Gennep,
1978), exposta no capítulo anterior, parece pertinente para se analisar a
213
O relato de Alice, que tomou anestesia no parto do primeiro filho, parece confirmar essa
hipótese: “Eu acho que a dor, ela te tira dali. É como se você ficasse numa sensação meio que de
ausência. Você fica ali deixando o seu corpo trabalhar, entendeu? É o seu corpo que faz. Quando
você está anestesiado você está lúcido, apesar das pessoas falarem: ‘Ah, anestesia deixa a pessoa
grogue’. Não, essa do parto não deixa. Talvez a de cesariana. Aí eu não sei”.
306
experiência de parto “natural” e “humanizado”, tal como vivida pelas
entrevistadas do grupo. Como mencionado antes, o sentido atribuído ao estado de
liminaridade – que acompanha todo rito de passagem – deve ser analisado
contextualmente, uma vez que este pode assumir diferentes conotações a depender
do grupo investigado.
Assim, enquanto para as mulheres de camadas populares o trabalho de
parto teve como marca a individualização, é possível dizer que para as
parturientes de camadas médias o período de transição, enfatizado especialmente
pelo momento de entrada na chamada “partolândia”, teve como marca a perda de
autonomia, resultando em homogeneização e indiferenciação. Nuas, despidas de
suas roupas e pudores, essas parturientes percebem-se incapazes de controlar seus
atos e de tomar qualquer decisão em meio à dor, intensa e temporária, provocada
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pelas contrações. Dessa forma, as mulheres de camadas médias, que optaram por
esse tipo de parto justamente porque assim acreditavam poder assumir o controle
sobre seus corpos, não vêem outra alternativa a não ser, segundo elas, apenas
reagirem às suas sensações.
De acordo com Turner (1974), “ o comportamento [das entidades
liminares] é normalmente passivo e humilde. (...) É como se fossem reduzidas ou
oprimidas até a uma condição uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas
de outros poderes” (1974: 118). Assim, nos casos em que o período liminar tem
como marca o igualitarismo, “as distinções seculares de classe e posição
desaparecem, ou são homogeneizadas” (1974: 118) e este momento é vivido como
uma comunhão de indivíduos iguais que se submetem a uma autoridade geral. No
caso do parto “natural” e “humanizado”, essa autoridade não se encontra
propriamente na figura dos “anciãos rituais”, mencionados por Turner (1974),
mas, na percepção das mulheres, advém de seus próprios corpos. Da forma como
é significada a experiência, trata-se, portanto, de uma sujeição ao corpo, que as
iguala – inclusive aos demais mamíferos –, colocando em suspenso suas escolhas,
desejos, individualidade e autonomia.
Assim, é possível dizer que as parturientes desse grupo sucumbem não ao
poder médico, de que tanto procuraram esquivar-se, mas ao avassalador poder da
dor, que teria o potencial, na percepção das entrevistadas, de fazê-las serem
307
conduzidas por seus corpos durante a experiência. Enquanto no contexto
contemporâneo, “o selo do domínio é o paradigma da relação com o próprio
corpo” (Le Breton, 2011: 32), na cena do parto “natural” e “humanizado” advogase, por outro lado, pela sujeição do indivíduo ao corpo, reforçando a visão dualista
da modernidade, que coloca em lados opostos o indivíduo e seu corpo.
Da mesma forma, enquanto no extremo contemporâneo vigora, segundo
Le Breton (2011: 13), uma espécie de “ódio ao corpo”, fruto de uma tradição de
suspeita que percorre o mundo ocidental desde os pré-socráticos, devendo o corpo
ser constantemente modificado pela tecnociência, entre as mulheres etnografadas
parece predominar justamente o oposto: um “amor ao corpo”, na medida em que
este é percebido como “naturalmente” perfeito, saudável, inteligente, detentor de
um conhecimento próprio, auto-suficiente, forte e capaz. Um corpo que é
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“amado” também por possibilitar novas experiências sensoriais, como aquelas
relacionadas ao parto, que são percebidas, em última instância, como uma via para
o aperfeiçoamento subjetivo.
De maneira geral, é possível dizer que a noção de corpo vigente entre as
mulheres etnografadas parece romper com a representação historicamente
predominante de que o corpo feminino é imperfeito e não apenas diferente, mas
hierarquicamente inferior ao masculino (Laqueur, 2001), tendo suas funções
exclusivas sido tratadas como distúrbios ou patologias (Martin, 2007). Tal
percepção vai de encontro à idéia, atualmente em vigor, de que o parto deva ser
alvo de controles cada vez mais intensos, de modo a proteger o feto e a própria
mulher dos riscos tratados como inerentes à parturição, uma vez que essas
mulheres acreditam que o corpo, “naturalmente” perfeito, esteja, por princípio e
como regra, apto a dar à luz sem necessitar de tecnologias ou intervenções.
308
4.4.5.
Parto como passagem: o Hulk como metáfora
Quando consegue livrar-se da dor, o sujeito
“experimenta a veces este momento como un renacer,
el retorno maravilloso a la vida ‘ordinaria’.
El dolor se disipa en sus recuerdos”
(Le Breton, 1999: 34).
Seguindo o padrão que caracteriza os ritos de passagem, na última etapa
do processo o sujeito ritual é reincorporado ao grupo, assumindo novos papéis
sociais. Além do novo status de mãe – o que se aplica às primíparas –, a
experiência de parturição tal como vivida pelas mulheres do grupo parece
incorporar ainda outras mudanças, sendo possível dizer que o parto instaura a
maternidade, mas seu potencial transformador não se limita a ela, como sugerem
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os depoimentos abaixo:
“A Ivana [ativista em favor da “humanização” do parto] deu uma entrevista, que
eu vou usar até a fala dela, pois achei bárbara: ‘Caramba, olha o que eu sou e eu
não sabia que eu era’. Essa frase é bárbara, depois que você pari é assim mesmo.
‘Olha o que eu sou e não sabia que eu era’. É esse poder, você se sente a
supermulher. De tudo que eu fiz na minha vida, de tudo que eu podia ter me
realizado profissionalmente, o que mais me dá orgulho de falar é: eu pari”.
(Vanessa)
“É um lugar além que você toca. É uma força além, que está dentro de você, que
você toca, que você não sabe que tem. (...) Hoje em dia eu me sinto muito mais
intuitiva. Estou agora querendo construir duas empresas. Estou criando isso.
Estou com muito mais força para isso, sabe? Mesmo tendo bebê pequeno, mesmo
dormindo menos. Quer dizer, é uma força que fica, que te acompanha para
sempre e teu filho faz parte disso”. (Kátia)
“Eu fiquei me sentindo uma supermulher depois. ‘Caramba, eu consegui. Foi
maravilhoso’. Porque quando você ouve falar do parto normal, do parto
humanizado, parece uma coisa difícil, muito surreal. ‘Caramba, será que vou
conseguir e tal?’”. (Angélica)
“[Eu me senti] Assim, orgulhosa, realizada. (...) Também mais poderosa. Para
mim, era muito importante ter essa experiência do parto natural. Assim, fora do
aspecto médico, que é melhor para ela e para mim, eu queria saber como era e
queria saber se eu conseguiria ou não”. (Ana)
“Eu comecei a me sentir poderosa quando as pessoas perguntavam assim: ‘Ah,
como é que a sua filha nasceu? Foi cesárea?’. Eu falei: ‘Não, foi parto natural’.
Aí todo mundo: ‘Nossa! Caramba!’” (Alice)
Como é possível notar, o parto “natural” e “humanizado” foi classificado
pelas entrevistadas como uma experiência transformadora e marcante, tendo
309
várias delas passado a se perceber (Vanessa, Kátia, Angélica, Ana) e a ser
percebida pelos outros (Alice) como mulheres fortes, poderosas, em suma, como
“supermulheres”, para fazer uso da expressão utilizada por algumas delas.
Angélica e Ana explicitaram que tal sensação se construiu a partir do momento
em que se viram capazes de dar à luz, fazendo face ao desafio que tinham
assumido para si. Ter se proposto a sentir uma dor que desconheciam e que é
socialmente temida foi vivida como uma importante prova de superação214, da
qual se orgulham de dizer: “Eu consegui!” – o que também foi pontuado por Kátia
(“Dá uma sensação de ‘Yes, we can!’, é uma sensação gostosa”) e Andrea, em
outros trechos de suas entrevistas.
Deve-se ressaltar que a força que exibiram na hora do parto e as
transformou em “supermulheres” era, aparentemente, algo do qual já dispunham:
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“Olha o que eu sou e não sabia que eu era”, afirmou Vanessa. Ou, nas palavras de
Kátia: “É uma força (...) que está dentro de você, que você toca, que você não
sabe que tem”. Assim, é possível dizer que, na visão dessas entrevistadas, a
transformação advinda do parto seria, na realidade, uma descoberta, um
reencontro com a mulher forte e corajosa que em “essência” eram e não sabiam,
mas que teve no parto um momento privilegiado para sua expressão. Uma
metáfora utilizada por Vanessa durante outro trecho de sua entrevista parece
bastante interessante e rica para a análise:
“Na hora do parto a dor é como uma transformação, como o Hulk... [risos] Eu era
muito ligada na transformação do Hulk [risos]”.
A comparação com um super-herói que sofre uma metamorfose corporal
não parece casual. Em sua identidade original o personagem atende pelo nome de
Bruce Banner, um sujeito franzino, tímido e reservado, que se transforma
fisicamente quando se encontra sob situação de estresse emocional. Nos
quadrinhos que lhe deram vida, Hulk é descrito como um super-herói que possui
uma força ilimitada e quase não possui vulnerabilidades, atributos que se tornam
mais potentes à medida que ele fica irritado, situação que, sem dúvidas, encontra
semelhanças com o descontrole emocional desencadeado pela dor do parto, tal
214
É importante lembrar, nesse sentido, que, tendo a maioria dado à luz em maternidades privadas,
o desafio de viver uma experiência de parto desmedicalizado pode ser considerado ainda maior,
uma vez que essas mulheres poderiam ter solicitado a anestesia e outros recursos médicos a
qualquer momento durante o trabalho de parto.
310
como descrito por Vanessa e por outras entrevistadas. Com os nervos à flor da
pele em meio à dor provocada pelas contrações, essas mulheres vivenciam uma
espécie de possessão, que as torna socialmente irreconhecíveis. Do estresse físico
e emocional gerado por essa experiência resultaria a transformação maior, tal
como aquela vivida pelo personagem verde dos quadrinhos, cuja principal
característica é a força descomunal e avassaladora que exibe. No entanto,
diferentemente do Hulk, um personagem masculino, a vivência da dor e da
superação parece ser vista como capaz de promover uma “consolidação da
feminilidade”215 (Rezende, 2010).
Desse processo poderia resultar, por exemplo, uma ampliação da intuição
– característica que poderia revelar uma concepção essencialista da feminilidade –
, mas também da capacidade de trabalho, como assinala Kátia, que dizia estar
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abrindo duas empresas. Já Manuela, para quem a experiência de parto
proporcionou um “mergulho dentro de si”, que a tornou uma pessoa mais corajosa
e menos passiva, decidiu nos meses subseqüentes fazer uma mudança profissional
radical. Com a intenção de deixar a Economia e atuar na área de parto e
nascimento, Manuela fez um curso de formação de doulas e pretendia desligar-se
do banco onde trabalhava216.
Nesse sentido, é possível dizer que o parto “natural” e “humanizado” é
visto como uma experiência de autoconhecimento subjetivo e corporal,
apresentando-se como uma via para o aperfeiçoamento de si. Como observa
Rezende (2012: 834), apesar de a razão/mente ser com freqüência considerada o
elemento definidor do sujeito nas sociedades ocidentais, a via emocional, muitas
vezes vista como expressa pelo corpo, é a que parece ser percebida como capaz de
215
Sobre essa questão, Kátia comenta em outro trecho de sua entrevista: “Até a minha empregada
que acompanhou o meu parto, até ela falou assim: ‘Nossa, eu não imaginei que você...’ ela me
conhece desde os 15 anos, ‘eu não imaginei que você fosse capaz de virar aquela onça que eu vi na
hora, sabe? Quem te via assim, não imagina que existe essa mulher toda dentro de você’”. A partir
desse relato é possível notar que, segundo essa visão, a “onça”, um animal selvagem, seria na
realidade a expressão maior da feminilidade, aqui percebida como mais próxima da natureza (cf.
Ortner, 1974).
216
É importante destacar que são freqüentes os casos de mulheres que, depois que tomam contato
e vivenciam a proposta de parto “natural” e “humanizado”, decidem envolver-se profissionalmente
com o tema, seja atuando como doulas, ou mesmo reingressando na universidade para fazer cursos
como Medicina, Enfermagem ou Fisioterapia. Com efeito, esta era uma hipótese que estava sendo
aventada por Manuela.
311
promover as transformações mais substantivas nos indivíduos, já que
corresponderiam a sua essência fundamental.
Como todo rito de passagem, a experiência de parto “natural” e
“humanizado” parece criar uma identidade comum entre as mulheres que a
vivenciaram, que se vêem e passam a ser vistas como mulheres “fortes”,
“corajosas” e “poderosas”. Para reproduzir um termo utilizado pelas entrevistadas:
como “supermulheres”. Mas é importante destacar que, sendo o processo de
construção identitário relacional e contrastivo (Oliveira, 1976, Cunha, 1986), ao
mesmo tempo em que há uma identificação entre elas, por outro lado, parece
haver uma diferenciação destas em relação às que tiveram partos cesáreos ou
mesmo partos “normais” medicalizados – e vice-versa.
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Assim, a visão bastante presente em listas de discussão na internet, de que
o parto “natural” e “humanizado” é capaz de tornar “mais mulher” as que o
vivenciam, representando, nesse sentido, uma “consolidação da feminilidade”
(Rezende, 2010), pode redundar também em seu oposto, como sugere a
publicação feita em uma popular lista de discussão, da qual algumas entrevistadas
participam:
“Li uma vez que uma mulher que tem um filho de cesárea não é menos mãe, mas
é sim menos mulher! Parece um absurdo, mas eu concordo. Quando você abre
mão (conscientemente) de um rito de passagem tão importante quanto de
trabalhar junto ao seu filho para seu nascimento e supera cada dor sabendo que a
recompensa é magnífica, eu acho que essa mãe abre mão de ser denominada
Mulher! (É claro que existem as cesáreas necessárias e nesses casos a mulher já
passa por uma dor e superação grande o bastante para ganhar essa
denominação!) [Tamara, Lista de discussão na Internet, 29/04/11]217
Como indica o texto, a vivência da dor e da superação, segundo a
avaliação de Tamara, parece ser fundamental para a consolidação do ser
“Mulher”, revelando uma clivagem entre as que “pariram” e as que “foram
paridas”, para fazer uso de uma expressão nativa.
217
Vale destacar que este comentário despertou reações variadas na lista, algumas de apoio e
outras de rejeição, como a que segue: “Se vc disser que uma mulher que escolheu não parir é
“menos mulher” vai reduzir as mulheres à sua função reprodutiva ou à sua capacidade (ou desejo)
de parir. Ser mulher é bem mais do que isso... Eu continuo achando que o “menos mãe, menos
mulher” deve ser esquecido, pois em nada nos auxilia. Bjs, Roberto” [Roberto é obstetra e ativista
do movimento pela humanização do nascimento].
312
Também na Internet, uma reconhecida obstetriz e ativista, que teve um
parto cesáreo e, alguns anos depois, passou pela experiência de parto “natural”
“humanizado”, publicou um pequeno artigo, aparentemente buscando contornar as
críticas feitas por mulheres que tiveram partos cesáreos e sentiram-se ofendidas
com a possibilidade de serem taxadas de “menos mães” ou “menos mulheres”
devido à forma como deram à luz. No texto, a autora discorda que a via de parto
possa interferir na forma como exercem a maternidade, no entanto, parece não ter
dúvidas quanto ao potencial do parto “natural” e “humanizado” de promover uma
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consolidação da identidade feminina, como sugere o trecho reproduzido abaixo218:
“Você, mulher, mãe, que teve uma cesariana (necessária ou não) quando teve
seu(s) bebê(s), antes de mais nada queria lembrar que nós sabemos que você é
uma mãe maravilhosa, competente, amorosa e tão boa quanto qualquer outra mãe
boa. A via de parto não nos faz mais ou menos mães, mais ou menos mulheres,
mais ou menos seres humanos. Eu tive uma cesariana há 15 anos, um parto
normal há 12 anos, e me considero uma mãe boa o suficiente para ambos. E não
amo um mais que outro.
Mas minha amiga, quando você ler uma mulher dizendo “O parto normal me fez
mais mulher” ela não está dizendo que a tua cesárea te faz “menos mulher”. Ela
quer dizer que o parto fez ela se sentir mais mulher do que ela se sentia antes, ou
de que ela se sentia se ela tivesse feito uma cesariana. Ela não está criticando
você ou as suas escolhas. Ela está comemorando suas próprias conquistas, só
isso! Quando ela diz “quando eu dei à luz, eu me senti muito mulher, muito
feminina, muito poderosa” ela não está dizendo que a gente, por ter feito
cesariana, é menos mulher, menos feminina, menos poderosa. Ela está falando só
dela, não da gente, entendeu?”219
Como observam alguns autores (Cunha, 1986, Oliveira, 1976), todo grupo
constrói fronteiras simbólicas com os demais e, nesse sentido, as adeptas do parto
“natural” e “humanizado” parecem construir uma identidade comum pautada na
experiência de parturição. A partir desse rito de passagem, percebido como uma
exibição de poder e consolidação da feminilidade, o parto serve de base para a
construção de uma identificação entre aquelas que se dispuseram e foram capazes
218
O documento encontra-se disponível em: http://www.maternidadeativa.com.br/artigo16.html
Último acesso em 27/11/2013.
219
A entrevistada Sofia parece compartilhar dessa visão e, para ela, o conflito ocorre em razão da
forma “apaixonada” com que as mulheres que tiveram partos “naturais” e “humanizados” relatam
suas experiências, o que é interpretado pelas demais como uma tentativa de desqualificar seus
partos: “Geralmente, as cesariadas ou que tiveram parto normal padrão, às vezes acham que a
gente quer se achar melhor ou quer se pôr por cima ou qualquer coisa assim. E, na verdade, a gente
relata a nossa experiência com paixão, pelo menos é a minha posição. Então, assim, quem me
pergunta eu falo mesmo que foi legal, que não sei o quê. Todos os detalhes que quiserem saber eu
conto mesmo. [riso] E digo que foi a melhor coisa que eu fiz, mas não é para diminuir a
experiência do outro, é porque a minha foi assim, não é? Eu não vou diminuir a minha só porque o
outro se sente mal, entendeu?”
313
de superar a dor sem recorrer a medicamentos, ao mesmo tempo em que as
diferencia daquelas que deram à luz por meio de partos cesáreos ou “normais”
medicalizados.
A cesariana, em especial, costuma ser vista de forma bastante negativa
quando realizada sem indicação médica, isto é, a pedido da mulher ou por
sugestão do obstetra, por uma questão de conveniência – para ele ou para ambos.
Assim, nos relatos das entrevistadas, o parto abdominal foi descrito como
ausência de sensação; como uma cirurgia e não exatamente um parto; como um
corte; como excesso de planejamento e controle sobre a vida; como uma invasão
ao corpo e como um parto “artificial”.
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“Eu acho que é um parto muito invasivo, o normal [medicalizado]. A cesárea
nem se fala, não é? Não é nem um parto, é uma cirurgia”. (Simone)
“As mulheres marcam cesariana, às vezes a criança não está nem pronta, com 37
semanas, porque ‘eu não quero sentir nada’. Eu acho uma coisa muito estranha
você ter um filho e não sentir nada”. (Kátia)
“[No Brasil] está muito presente nas conversas, na mídia e tal, aquela mania de
marcar o parto. Eu pensei ‘Nossa! O que é isso?’ Quando eu fiquei sabendo disso
a primeira vez... ‘Isso é normal?’ Tipo: ‘Eu quero marcar às dez da manhã, na
sexta–feira, porque combina com a minha agenda de trabalho?’. Então eu pensei:
‘Não pode ser!’ (...) Na Alemanha, dizem que está mudando um pouquinho
também, mas, normalmente... assim, na minha família e as minhas amigas,
quando alguém precisou fazer uma cesárea, foi uma catástrofe total, assim. As
pessoas não gostam de falar. Falam: ‘Nossa, eu tive que fazer. Não teve outro
jeito e eu sinto muito e tal’. Então, é algo muito negativo, fazer cesárea. E aqui
não, aqui é o contrário, não é? (...) Aqui, o parto virou algo muito artificial. (Ana)
Como é possível notar, a cesárea eletiva é percebida como o avesso do
parto “natural” e “humanizado”, condensando e tornando-se o paradigma do que
seriam os “excessos” da Modernidade, isto é, da objetificação do sujeito, do
controle da natureza, da valorização da ciência e da tecnologia e da desconexão
entre corpo e pessoa.
Parto e maternidade: de destino a projeto
É importante destacar que a marcante valorização da experiência de
parturição entre as adeptas do parto “natural” “humanizado” parece estar em
sintonia com a corrente do feminismo da diferença sexual, que considera a
maternidade – e parece ser possível expandir tais idéias à reprodução biológica
314
como um todo, inclusive o parto – “como um poder insubstituível, o qual só as
mulheres possuem e os homens invejam” (Scavone, 2001: 140).
Vale ressaltar que essa idéia representa uma ruptura com os feminismos
herdeiros de Simone de Beauvoir que almejavam o direito à igualdade dos sexos e
tendiam a perceber a maternidade como uma forma de sujeição, que conduzia a
mulher à passividade. Nessa vertente, a maternidade foi percebida pelas
feministas como um “handicap”, isto é, como um defeito natural que confinaria as
mulheres ao espaço privado e à dominação masculina. As palavras de Beauvoir –
que parecem ter servido como uma inspiração às avessas para as mulheres
investigadas e para o sentido que atribuem à sua experiência reprodutiva –
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sintetizam essa visão:
“Engravidar, amamentar não são atividades, são funções naturais; nenhum
projeto está envolvido nisso; é por isso que a mulher não encontra aí um motivo
de afirmação orgulhosa de sua existência, ela suporta, passivamente, seu destino
biológico” (Beauvoir, 1975: 83).
De acordo com Agacinski (1999), na visão de Simone de Beauvoir e de
muitas outras feministas que se inspiraram nela, rejeitar a função materna era um
passo necessário para conquistar a emancipação, o que fez com que as mulheres
passassem a reivindicar a condição de sujeitos ativos, trabalhadores e produtivos,
em sintonia com a ideologia produtivista moderna. “Ser ‘como homens’ era a
melhor maneira de ser livre. Não foi com sua feminilidade, mas contra ela que as
mulheres pretenderam se libertar da alienação histórica e da alienação cultural”
(Agacinski, 1999: 75).
Foi apenas em uma segunda etapa que a reflexão feminista buscou
recuperar o saber o feminino a ela associado, promovendo o que seria uma espécie
de “negação do handicap”. Assim, após uma recusa inicial da maternidade, a
reflexão feminista buscou dar visibilidade ao poder exercido pelas mulheres por
meio da maternidade (Scavone, 2001), refletindo a luta pela afirmação das
diferenças e da identidade feminina, a partir das contribuições pioneiras de Luce
Irigaray (1981)220, Yvonne Knibiehler (1977), entre outras.
220
Para uma análise aprofundada do trabalho da autora e sua relação com o parto “humanizado”,
ver: Carneiro (2011).
315
Segundo Agacinski (1999), que tratou do tema mais recentemente e
também se filia a essa corrente, a maternidade deve ser reinterpretada como uma
potência e reivindicada pelas mulheres como uma força e não como algo que as
debilita. Se já no passado a fecundidade concedia à mulher o poder considerável
de dar uma descendência aos dois sexos, hoje em dia, quando se encontram
disponíveis diversas técnicas de contracepção e procriação que permitem o
domínio sobre a fecundidade, a mulher desfruta de grande liberdade, uma vez que
se torna plenamente responsável por essa potência. Para a autora, na medida em
que a mulher pode escolher não conceber, o desejo de procriar torna-se mais
evidente. Em suas palavras:
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“A oposição entre o destino suportado passivamente e o projeto soberanamente
decidido não se coaduna com o ato de dar a vida, que é, ao mesmo tempo,
conseqüência de um imperativo natural, o que outrora se chamava instinto, e
resultado de um projeto deliberado que implica uma escolha” (Agacinski, 1999:
63).
Na visão de Agacinski (1999), tais reflexões não implicam em reduzir as
mulheres à sua “fecundidade carnal” e nem ao papel social de mães, incorrendo
em essencialismos, mas pretendem acenar com a possibilidade de que a
maternidade não seja vista como algo que “mutila” a mulher, uma vez que, de
acordo com a autora, esta pode ser reconhecida como “uma paixão que nada tem
de passivo e da qual, pelo contrário, as mulheres extraem grande parte de sua
força” (1999: 74).
As idéias de Agacinski (1999) se revelam fecundas para analisar o grupo
de mulheres de camadas médias, que parece compartilhar dessa visão acerca da
maternidade e também estendê-la ao parto. Assim, se a maternidade foi vivida
pelas entrevistadas como fruto de uma escolha, que as potencializa e fortalece, o
mesmo deve-se dizer do parto que, em vez de ser encarado a partir do registro do
medo e do sofrimento, é interpretado como uma experiência transformadora e
percebido como resultado de um desejo, de uma escolha – ainda que esta tenha se
construído a partir da interação com outras mulheres, com especialistas e com
ativistas.
Em resumo, é possível dizer que as reflexões feitas por autoras
comprometidas com o feminismo da diferença sexual parecem estar em sintonia
316
com a visão que as mulheres desse grupo nutrem em relação à maternidade e à
forma como vivenciam suas experiências de parto: não como um fardo ou como
algo desafortunadamente inescapável – tão bem expresso na frase “Entrou vai ter
que sair!”, que costuma ser repetida pelos profissionais de saúde nas maternidades
públicas –, mas como uma experiência desejada e vista como potencialmente
prazerosa e enriquecedora.
4.4.6.
Entre o idealizado e o vivido
A partir da pesquisa etnográfica realizada junto a esse grupo e nos
comentários feitos em aulas e palestras, foi possível construir o que seria a
imagem de um parto “natural” e “humanizado” ideal: de preferência de cócoras,
na presença do parceiro, o parto deve transcorrer sem qualquer intervenção ou
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procedimento médico, sendo acompanhado por especialistas “humanizados”
cuidadosamente selecionados ao longo da gestação. A experiência deve iniciar de
maneira espontânea e o tempo não deve ser contado, mas vivido. O clima deve ser
intimista, introspectivo, em meio ao silêncio e à penumbra. Ao nascer o bebê deve
ir para o colo da mãe, amamentar e ter o cordão cortado pelo pai apenas quando
este parar de pulsar.
Esta seria a descrição do chamado “belo parto” (Tornquist, 2004, Fonseca,
2009) que, como é possível notar, inclui uma série de requisitos nem sempre
facilmente alcançáveis. De fato, nem todas as entrevistadas tiveram uma
experiência de parturição semelhante a esta, o que fez com que algumas
precisassem, posteriormente, “aceitar”, “digerir” ou “elaborar” seus partos,
mesmo que a maioria tivesse, ao fim e ao cabo, dado à luz por via vaginal221.
221
Se o parto vaginal medicalizado é motivo de frustração, maior ainda costuma ser a cesárea. À
exceção de quando a cirurgia é realizada como um último recurso, com o intuito de salvar vidas.
No entanto, as mulheres que almejam um parto “natural” “humanizado” parecem estar pouco
preparadas para vivê-la. Contribui para isso o fato de no curso de preparação para o parto o
assunto ser pouco abordado, não havendo uma aula destinada ao assunto, por exemplo. Os casos
concretos de alunas cujos partos tiveram esse desfecho, ainda que reconhecido como necessário,
em geral são lamentados pela professora. Sobre esse aspecto, Tornquist (2004), que observou
situação semelhante em sua pesquisa, destaca que “a cesárea é vista e sentida como um fracasso a
ser lamentado, um grande não-dito que – excluído do rol de possibilidades no processo de
preparação para o grand finale – se impõe como uma dura realidade, a qual, subitamente, a mulher
precisa elaborar”. (Tornquist, 2004: 318)
317
Tatiana foi uma delas. Ela estava com quase 42 semanas de gestação222 e
não havia entrado em trabalho de parto de maneira espontânea. Junto com seu
médico, um profissional “humanizado”, decidiu fazer uma indução, optando pelo
descolamento de membranas, técnica que seria considerada menos invasiva, em
comparação com a administração de ocitocina sintética. Tatiana entrou
efetivamente em trabalho de parto dois dias depois, quando, à noite, começou a
sentir contrações com alguma regularidade. Depois de passar a madrugada
monitorando o trabalho de parto em casa, Tatiana foi de manhã com o marido
para a maternidade, onde encontrou-se com a doula e o médico, que queria
examiná-la. Ela estava com apenas 3 centímetros de dilatação, mas o obstetra
achou melhor que ficasse internada, pois tinha a expectativa de que o processo
pudesse evoluir rapidamente.
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No entanto, as horas se passaram e Tatiana dilatava de maneira
parcimoniosa. Ela passou boa parte do tempo fazendo exercícios e tendo alguns
pontos de Do-in pressionados pela doula, o que, segundo ela, se revelou bastante
eficaz para estimular as contrações, mas aparentemente insuficiente para garantir
a dilatação esperada. Por sugestão do médico, Tatiana entrou no chuveiro. O
contato com a água quente lhe agradou e ajudou-lhe a relaxar, mas não pôde
permanecer muito tempo, pois teve uma queda de pressão que lhe obrigou a sair
do chuveiro.
Na parte da tarde, em um exame de toque, o médico identificou uma
fibrose no colo do útero, possivelmente provocada por uma cauterização que
Tatiana fizera muitos anos antes. Na avaliação do obstetra, isso possivelmente
estava dificultando a dilatação do colo. Pouco tempo depois, ela foi para sala de
parto, onde se instalou na banheira. Lá, disse ter vivido o momento mais difícil de
todo o trabalho de parto: “Quando eu estava na banheira, acho que foi a coisa
mais dolorida de todo o meu trabalho de parto, inclusive considerando a minha
filha nascer. Porque o meu médico tentou estourar essa fibrose na marra, na mão.
Isso doeu. Doeu muito, muito, muito”. Naquela altura as contrações já estavam
222
Este costuma ser considerado, por médicos “humanizados”, o prazo limite para aguardar o
início espontâneo do trabalho de parto – um prazo que costuma ser maior e mais flexível do que
aquele normalmente estabelecido pelos obstetras.
318
mais fortes e, ao sair da banheira, uma delas chegou a derrubar Tatiana,
literalmente, no chão:
“Eu não consegui me aguentar em pé de tanto que doeu. Daí eu falei: ‘Chega, eu
vou querer anestesia’. Porque eu sempre fui muito contra anestesia. Acho que, na
minha cabeça, eu não queria nem que o anestesista tivesse ido para o meu parto,
porque eu tinha certeza que não teria necessidade nenhuma de ter um anestesista,
sabe? Talvez eu não devesse ter relutado tanto... mas eu fico feliz de ter insistido,
sabe? Eu insisti o quanto eu pude. Eu, realmente, insisti o quanto eu pude”.
(Tatiana)
Tatiana recebeu uma “analgesia” que, segundo ela, não atrapalhou o
trabalho de parto, pois, ainda que a tenha impedido de andar, permitiu que ela
continuasse movimentando as pernas e sentindo o início das contrações, ao
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mesmo tempo em que eliminou a dor. O marido contou-lhe após o parto que ela
era “uma” antes da medicação e “outra” depois: Tatiana ficou mais calma e
tranqüila e, na sua avaliação, a anestesia “melhorou 300% o processo. O negócio
que era para ser natural e tudo mais não estava sendo bacana, sabe? Estava sendo
só sofrido”. Mesmo Tatiana estando mais relaxada, a dilatação do colo do útero
continuou evoluindo lentamente:
“Foi muito devagar, muito devagar mesmo, sabe? Cada um centímetro demorava
muito tempo e não estava mais rápido, o processo, conforme passava o tempo. O
último centímetro demorou para caramba, assim, demorou umas três horas, acho,
para dilatar um centímetro”. (Tatiana)
Por volta das 18h, o médico lhe propôs romper artificialmente a bolsa de
águas, o que deveria contribuir para estimular as contrações. Tatiana deu à luz 1h
depois, satisfeita pelo fato de a analgesia não ter impedido que sentisse o chamado
“círculo de fogo”, como é chamada a forte ardência que acompanha a passagem
da cabeça do feto pela vagina. A filha, que não tinha nome ao nascer, não mamou
imediatamente após o parto, mas permaneceu em seu colo, “chorando, chorando,
chorando, chorando sem parar, chorando muito”. O pai cortou o cordão umbilical
quando este parou de pulsar – experiência que lhe pareceu extremamente
desagradável, segundo Tatiana – e ela levou alguns pontos no períneo, necessários
devido à ruptura espontânea do tecido durante a passagem do feto, uma vez que
não foi feita qualquer incisão.
319
Tatiana preferia que sua família e a do marido, que moram fora do Rio,
tivessem sido avisadas apenas após o nascimento do bebê, pois gostaria de passar
o primeiro momento no quarto somente com a filha e o marido, “conhecendo-se”.
Mas o plano não se concretizou. Primeiro, porque a filha não parava de chorar,
não havendo a tranqüilidade que ela esperava ter nesse momento, “foi mais ou
menos tentar fazer ela parar de chorar”, explicou. E, também, porque os pais do
marido, avisados por ele no início da manhã sobre a internação, estavam desde
meio-dia aguardando na recepção e logo encerraria o horário de visitas da
maternidade.
“Às vezes, a gente fica idealizando tanto as coisas, mas na prática é diferente. Na
prática, as coisas são do jeito que dá para ser, sabe? Eu acho que essa foi a grande
lição que eu tirei de toda essa história”.
Manuela também teve uma experiência bastante diferente da que fora
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idealizada por ela – com a presença indesejada da sogra e tendo feito uso de
anestesia – o que lhe gerou grande frustração, ainda que tenha dado à luz por via
vaginal e não tenha perdido completamente suas sensações, em função da pequena
dosagem de medicação administrada. Depois do parto, levou um tempo para
conseguir “elaborar” a distância entre a experiência idealizada e a vivida:
“[Logo depois do parto] eu fiquei muito chateada por ter tomado anestesia. E,
assim, o tempo todo fiquei com isso na cabeça: que eu tinha tomado anestesia,
que eu preferia não ter tomado. (...) [No pós-parto minha mãe] me ajudou a
resolver esse problema, porque eu não estava conseguindo. Eu chorava. Eu
acordava chorando. Ia dormir chorando. E ela falava para mim: ‘Manuela, você
foi uma heroína. Você fez um parto normal. Você lutou até o fim, sabe? Você
tomou anestesia porque você precisou tomar anestesia. Você estava sentindo
muita dor. E qual é o problema de tomar anestesia? Depois a anestesia passou. E
da próxima vez, você já sabe a dor. Você já sabe como é que é. Você vai
conseguir se preparar de outra forma. Vai dar tudo certo. Não vai ter tanto
imprevisto. Os imprevistos não vão te afetar desse jeito. Você já sabe que você
tem mesmo que se proteger e bloquear a entrada das pessoas dentro da sala [de
parto], não é? Está tudo bem. Você fez a melhor coisa possível’”. (Manuela)
Aparentemente menos incomodada do que Manuela com sua experiência,
Simone contou que guarda uma memória bastante positiva do parto, mas também
não ficou completamente satisfeita:
“Eu gostaria de não ter levado [anestesia] e de ter realmente conseguido ter ele na
água, que eu não consegui” (Simone).
320
O incômodo denunciado por essas mulheres com suas experiências de
parturição apontam para a existência de um modelo que, assim como no parto
medicalizado, também parece estar presente no projeto de parto “natural” e
“humanizado”223. Ainda que se busque enfatizar o parto como um evento
individual e único, as mulheres parecem expostas a um modelo ideal de mulher e
de parturição que, dentre outros aspectos224, implica em um alto controle físico e
emocional, nem sempre facilmente alcançável, o que também foi destacado por
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Tornquist (2004):
“Na condição de ideário, o parto humanizado celebra um determinado modelo de
mulher e de parto e, em que pese a positividade que esta celebração representa
num contexto no qual as mulheres são – ainda hoje – vistas como ‘objeto solitário
da intervenção médica’, há que se considerar o peso do modelo sobre aquelas
mulheres que – por motivos diversos – não possam adequar-se a ele. (...) O
ideário da humanização inclui, portanto, uma estética do parto, um modelo para
parir e um modelo para nascer, tal qual aquele forjado nos últimos anos também
para a morte, e, no caso do parto, o lado sombrio será a sua não-realização, a sua
incompletude, significando a incapacidade da mulher”. (Tornquist, 2004: 318319)
Os depoimentos das entrevistadas sugerem que a ausência de medicação
para alívio da dor parece ter um grande peso na percepção de satisfação em
relação à experiência, em parte porque a medicação reduz o controle sobre o
corpo e a possibilidade de manter-se ativa, mas também por interferir na
percepção da parturiente sobre suas sensações. Noutras palavras, manter-se firme
no propósito de
não tomar anestesia – um recurso facilmente acessível no
contexto das mulheres de camadas médias225 – é visto como um aspecto
importante para a avaliação que as parturientes fazem da experiência. No entanto,
afirma Beckett (2005), o incentivo a esse tipo de parto, supostamente acessível a
todas as mulheres, aparentemente não leva em conta a diversidade de corpos e
223
Uma das coordenadoras do outro grupo de apoio à gestante e ao parto “humanizado”, do qual
algumas entrevistadas participavam, problematizou a questão. Durante palestra proferida a um
público de profissionais e mulheres afinados com o ideário, ela questionou o modelo no qual se
convertera o parto “humanizado”: “Troca-se a posição de litotomia pela de cócoras. Tem é que dar
liberdade à mulher”, afirmou, acrescentando: “Só existem dois tipos de parto: o parto com
liberdade e o sem liberdade”.
224
A heteronormatividade certamente é um desses aspectos e chegou inclusive a ser alvo de
críticas por parte de um casal de lésbicas que matriculou-se em uma “Aula de Parto”, no curso
oferecido por Flora.
225
Tive contato com gestantes que avisaram de antemão que, mesmo que pedissem anestesia
durante o parto, por favor não fossem atendidas, pois tratava-se de uma situação temporária de
descontrole e não propriamente de seu desejo.
321
experiências femininas, de certa maneira contribuindo para que algumas criem
expectativas pouco realísticas em relação a seus partos.
É importante destacar que o uso massivo de analgésicos na vida cotidiana,
fruto da percepção generalizada de que toda dor deve ser imediatamente
combatida (Le Breton, 1999), faz com que os sujeitos praticamente não sejam
expostos a dor na sociedade contemporânea, sendo quase inexistente o preparo ou
o aprendizado para vivenciá-la. Manuela, dentre as entrevistadas a que mais
manifestou frustração com o fato de ter tomado anestesia, reconheceu que não
tinha o hábito de sentir dor, geralmente recorrendo a medicamentos para seu
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alívio.
“Eu sou sensível, eu sou muito sensível. Eu não gosto de sentir dor. Então, assim,
eu ter dor de cabeça para mim já é o caos porque eu nunca... eu não tenho, não
fico doente. E quando eu fico eu tomo remédio mesmo porque eu quero que
passe a dor. E com o parto, primeiro eu tomei um susto, porque, assim, já era,
logo de cara, já era uma dor que eu ia ter que sentir. Então, isso já me assustava
muito. E depois, quando eu li sobre parto humanizado e parto natural sem
intervenções e tal, eu pensei: ‘Tá na hora de eu aprender a sentir dor’”.
Com esse objetivo, Manuela participou de inúmeras palestras, “devorou”
diversos livros sobre parto, participou de cursos, etc. O aprendizado teórico sobre
o processo contribuiu para que não ficasse ansiosa, porém, revelou-se insuficiente
durante o trabalho de parto, quando dela era esperado um maior controle para,
segundo ela, “aceitar a dor”. Noutras palavras, entre a teoria e a prática havia um
hiato, o que fez com que, pouco tempo depois de iniciado o trabalho de parto,
Manuela passasse a achar que não seria capaz de suportar a dor, o que só
contribuiu para aumentar a sensação de descontrole.
“[Poucas horas depois do início do trabalho de parto] As dores estavam fortes.
Para mim, as dores estavam fortes. Então, eu fiquei com medo de não aguentar. E
como as contrações não estavam em uma frequência, em um ritmo bom, não
estavam regulares, eu comecei a achar que eu não ia agüentar, não. E aí quanto
mais você pensa que você não vai aguentar, você não aguenta mesmo, não é? E
eu sabia disso e aquilo foi me dando muito nervoso (...) Assim, desde o começo
do parto, eu já estava descontrolada. Aí, por isso que eu falei que eu não estava
preparada. Não estava preparada para sentir aquela dor.”
Além de a preparação para a dor ser praticamente inexistente na sociedade
contemporânea, de acordo com Kukla (2008), outro ponto problemático da
proposta diz respeito ao fato de que os cursos preparatórios e o plano de parto,
322
ainda que louváveis em suas intenções, são responsáveis por gerar expectativas
irrealistas em relação ao controle que a mulher pode, efetivamente, exercer sobe o
processo de parturição.
A experiência de Manuela parece confirmar essa hipótese, evidenciando
uma série de “imprevistos” que, na sua visão, contribuíram sobremaneira para que
o parto transcorresse de forma diversa da que havia sido planejada por ela. Na
lista de “imprevistos” enumerada, Manuela incluiu, por exemplo, uma reação
alérgica ao óleo utilizado pela doula, inviabilizando a continuidade das massagens
para alívio da dor e gerando-lhe ainda maior desconforto; a necessidade de ter que
fazer um longo deslocamento de carro (da Zona Sul da cidade até a Zona Oeste na
hora do rush), pois não havia vaga nas maternidades próximas; a impossibilidade
da pediatra “humanizada”, criteriosamente escolhida durante a gestação, participar
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do parto, pois tinha compromissos pessoais naquele dia. Estes foram apenas
alguns dos fatores que escapavam ao seu controle e que Manuela considerou que
contribuíram para seu desequilíbrio emocional, levando o parto a ter um desfecho
diverso do que fora idealizado.
Observações semelhantes podem ser feitas em relação ao trabalho de parto
de Tatiana, durante o qual vivenciou situações que claramente escapavam ao seu
controle e que, em alguma medida, contribuíram para que o trabalho de parto e
parto se distanciassem do modelo – desejado e, ao mesmo tempo, incentivado
pelo projeto. Tais situações incluíram, por exemplo, o fato de Tatiana não ter
entrado em trabalho de parto espontaneamente quando já estava prestes a
completar 42 semanas de gestação; ter tido uma queda de pressão ao tomar um
banho morno, considerado um importante recurso não farmacológico para alívio
da dor; a filha ter chorado incessantemente em suas primeiras horas de vida,
impedindo que a nova família que se constituía tivesse um momento de
tranqüilidade para a consolidação do vínculo entre seus membros, o que costuma
ser incentivado por especialistas afinados com o ideário.
Na avaliação de Kukla (2008), a idealização do modelo e a alta
expectativa gerada em relação à capacidade da parturiente de controlar o processo
podem ter como conseqüência, nas situações em que o parto não transcorra como
o planejado, um sentimento de frustração e perda de confiança, o que
323
provavelmente deve ser reconhecido como um efeito colateral e indesejado da
proposta, que tem como objetivo justamente seu inverso, isto é, o
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“empoderamento” da mulher, para usar um termo caro aos ativistas.
5.
Considerações finais
O movimento em favor da “humanização”, surgido na década de 1990 sob
influência do feminismo, dos movimentos libertários dos anos 1960 e da
Medicina Baseada em Evidências, tomou como inspiração outras iniciativas
obstétricas dissidentes, em especial aquelas divulgadas na década de 1970 e que
tiveram como principais porta-vozes os médicos franceses Frédérik Leboyer e
Michel Odent.
Como discutido nos capítulos precedentes, o projeto de “humanização” do
parto e do nascimento surgiu em resposta aos “excessos” do modelo biomédico
hegemônico, que adota uma concepção moderna de corpo – tributária da
concepção de pessoa. Le Breton (2011) observa que nessa concepção, até hoje em
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vigor no Ocidente, o sujeito é percebido como “tripartido”, isto é, cindido de seu
próprio corpo – daí resultando a separação entre corpo e alma ou entre corpo e
mente –; distinto dos demais, a partir da ênfase na individualidade, singularidade
e autonomia; além de separado do universo e do cosmos.
Esse corpo veio a se tornar objeto de estudo da Medicina, que o analisou
simplesmente como receptáculo da doença, enxergando-o como um mecanismo,
análogo ao de outras máquinas. Dessa concepção resultaram, segundo Leder
(1992),
as
atuais
técnicas
de
diagnóstico
e
exames,
que
focalizam
primordialmente o corpo e sua anatomia, de forma fragmentada, como se este
tivesse autonomia em relação ao sujeito que encarna. Assim, houve um
privilegiamento da técnica, em detrimento das relações, tanto pacienteprofissional de saúde, quanto daquelas que envolvem o sujeito com seu meio
social, sua história, sua cultura, seu ambiente, suas sensações, sua subjetividade.
De acordo com Le Breton (2011), o que ocorreu foi uma despersonalização da
doença, processo que, na visão dos ativistas da “humanização”, se estenderia
também a outras experiências corporais, como o parto.
Parte desse processo foi, na segunda metade do século XX, a transferência
massiva dos partos para os hospitais, ocasião em que os saberes dali advindos,
bem como os profissionais que lá atuavam, passaram a ocupar um lugar central
325
nos serviços direcionados à saúde (Menezes, 2004). De acordo com Tornquist
(2003), essa mudança mais ampla contribuiu para converter o parto em um
fenômeno patológico, médico e fragmentado, inserido em um processo de
crescente medicalização e rotinização da assistência, dando origem ao que se
poderia chamar de um parto “moderno” – em alusão à definição de morte
“moderna”, tal como formulada por Ariès (1978).
Assim, a proposta de “humanização” do parto e do nascimento, segundo
seus divulgadores, surgiu no Brasil em reação a esse cenário. Contudo, é preciso
destacar, essa proposta não chegou a romper com a concepção moderna de
corpo/pessoa, tendo em vista que compartilha de alguns de seus preceitos, em
especial da ideia de indivíduo – presente nas reivindicações por direitos iguais e
autonomia feitas pelo feminismo (Franchetto et al., 1980), movimento que
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influenciou significativamente o ideário. Como já mencionado, as críticas tecidas
pela proposta de “humanização” do parto e do nascimento se direcionam mais
propriamente ao que seriam os “excessos” do modelo biomédico hegemônico,
posto que estes redundariam justamente na despersonalização e perda de
autonomia da mulher, rompendo com um preceito caro à “humanização” e mesmo
à concepção de sujeito que advém da modernidade, qual seja: a do indivíduo
como um valor.
Segundo argumentam os divulgadores da proposta de “humanização”, as
práticas biomédicas hegemônicas, altamente tecnológicas e institucionalizadas,
seriam
excludentes,
impessoais
e
uniformizantes,
desconsiderando
as
particularidades de cada parturiente e não as envolvendo no processo de tomada
de decisão sobre seus corpos. A medicalização do parto, realizada de rotina e em
larga escala, seria, nesse sentido, considerada extremamente negativa, pois
interferiria na capacidade de participação da mulher e no controle sobre seu
próprio corpo, impedindo-a de vivenciar de forma plena uma experiência
considerada central no ciclo reprodutivo feminino. Nesse sentido, é possível dizer
que o parto é ressignificado e encarado não como um fardo ou como algo
desafortunadamente inescapável, mas como uma experiência potencialmente
prazerosa e enriquecedora. Essa visão parece estar em sintonia com as ideias que
norteiam a corrente do feminismo da diferença sexual, que não se direcionam
326
exatamente à parturição, mas de maneira mais ampla à maternidade, “considerada
como um poder insubstituível, o qual só as mulheres possuem” (Scavone, 2001:
140).
Ainda que se trate de um termo polissêmico (Diniz, 2005), os divulgadores
do ideário com freqüência definem parto “humanizado” como aquele em que a
mulher tem suas escolhas e seus direitos respeitados, sendo tratada de forma
personalizada pela equipe de assistência. É importante ressaltar que o termo, em
especial quando utilizado no contexto das camadas médias, na maioria das vezes
engloba também a idéia de parto “natural”, sugerindo o compromisso com um
mínimo de intervenções médicas e farmacológicas possível.
No entanto, se em alguns momentos as expressões parto “humanizado” e
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parto “natural” são utilizadas como sinônimas, noutras os significados a elas
atribuídos parecem se distanciar, como visto ao longo da tese. Quando isso ocorre,
em geral o parto “humanizado” se define como aquele em que a mulher tem suas
escolhas e seus direitos respeitados, enquanto o “natural” desponta como o parto
em que não são administrados medicamentos nem realizados procedimentos
médicos.
Na casa de parto, entre as mulheres e os profissionais que ali atuam, o
termo “humanização” é poucas vezes referido, apesar da instituição ser
reconhecida como um importante modelo pelos ativistas da ReHuNa. A evitação a
essa palavra não parece ser casual, mas refletida, ao menos no que diz respeito aos
profissionais, que são os que, em geral, apresentam a proposta da casa de parto às
gestantes.
Antes de explorar esse assunto, talvez seja interessante buscar sistematizar
as diferenças e aproximações que podem ser mapeadas entre os grupos
investigados. De início, é importante destacar que as mulheres de ambos os
grupos manifestavam algum tipo de insatisfação com a assistência oferecida nos
serviços aos quais inicialmente tinham acesso. No caso das gestantes de camadas
populares, a referência principal eram as maternidades públicas, da qual eram
usuárias ou sobre as quais tinham informações através da escuta de narrativas de
327
outras mulheres, de modo que existia no universo estudado uma visão consolidada
– e bastante negativa – sobre os serviços ali oferecidos.
Em geral, as críticas tecidas a essas instituições se direcionavam à
despersonalização do atendimento – expressa por exemplo nos comentários de
que nas maternidades públicas se é tratada “como mais uma” ou que “nem olham
para a cara da gente” –, não raras vezes resultando em uma sensação de
“abandono”. Como regra, as mulheres sentiam-se alvo de maus-tratos e criticavam
a pouca atenção recebida dos profissionais, inclusive no que se refere a aspectos
técnicos, que ficariam
comprometidos
pela pressa na realização dos
procedimentos, em meio ao grande volume de atendimentos. Por outro lado,
quando feitos de forma considerada adequada, os procedimentos médicos
rotineiramente realizados nos partos “normais” não costumavam ser alvo de
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questionamentos. Pelo contrário, eram geralmente qualificados como uma “ajuda”
e percebidos como uma forma de “cuidado”.
Já entre as mulheres de camadas médias, o referente contrastivo era, de
maneira geral, o serviço prestado no sistema privado de saúde, onde a taxa de
cesáreas chega a 83%, mais do que o dobro daquela registrada no setor público,
que é de 38%, segundo dados de 2011. Mesmo entre aquelas que só tomaram
contato com a proposta de “humanização” ao longo da gravidez, a intenção inicial
em geral foi a de tentar escapar da “epidemia” de cesáreas que atinge as mulheres
daquele segmento social. Para elas, o parto cesáreo era visto como uma alternativa
em caso de necessidade e não como uma primeira opção. Noutras palavras, a
cirurgia, na visão dessas mulheres, não deveria configurar a regra, mas atender a
uma situação de excepcionalidade, ou seja, a uma particularidade pessoal. E, por
sentirem-se saudáveis e aptas a dar à luz, elas enxergavam o parto “normal” como
a via “natural”.
No entanto, quando informadas – através de pesquisas realizadas na
Internet ou por meio das aulas de preparação para o parto – sobre a maneira como
costumam ser realizados os partos “normais” no Brasil, isto é, com a realização de
procedimentos médicos e farmacológicos de rotina, essas mulheres passaram a
questionar a padronização imposta por esse tipo de parto. Na realidade, tal
questionamento, em sua essência, é semelhante àquele que já havia sido feito em
328
relação à cesárea, considerando que, na visão das mulheres etnografadas, a ampla
disseminação dos procedimentos médicos e farmacológicos no parto “normal”
não parecia corresponder às necessidades ou mesmo aos anseios de cada
parturiente.
Em alguma medida, é possível dizer que o incômodo dessas mulheres se
assemelha ao manifestado por aquelas provenientes de camadas populares,
quando estas reivindicam serem reconhecidas como sujeito, isto é, não serem
tratadas apenas como um corpo que dá à luz. Porém, diferentemente destas, as
mulheres dos segmentos médios direcionam à medicalização – quando realizada
de forma padronizada e rotineira – o foco principal de suas críticas, pois
consideram que dela resultaria a perda de sua individualidade. Nesse sentido, ser
reconhecida pelo nome e tratada de forma que reputam educada e polida é, de
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maneira geral, algo naturalizado e que aparentemente não está em questão para a
maioria dessas mulheres – como parece ocorrer entre aquelas provenientes do
outro grupo. A demanda delas é, portanto, outra, qual seja: a de serem
reconhecidas em suas particularidades e idiossincrasias. Assim, a expectativa é de
que o profissional que lhes presta assistência respeite o seu tempo físico e
psíquico (diferente daquele definido pelo relógio), sua liberdade (de movimento e
posição), suas escolhas quanto à medicalização e seu corpo. Com efeito, trata-se
de um corpo que, antes de tudo, é percebido como uma importante “fronteira”,
que marca e pontua a diferença entre os indivíduos (Le Breton, 2003). Sendo
assim, a intenção da maioria das mulheres de camadas médias etnografadas era
vivenciar um parto “natural” e “humanizado”, acreditando que dessa maneira
escaparia à padronização imposta pela cesárea e pelo parto “normal”.
É importante mencionar que a definição por um parto “natural” e
“humanizado” geralmente implica em uma agência por parte das gestantes de
camadas médias. Desse processo costuma fazer parte a busca por um profissional
de saúde afinado com o ideário, o que exige muitas vezes uma longa
“peregrinação” por consultórios médicos; a concordância em pagar à parte pelo
serviço, tendo em vista que a maioria dos profissionais “humanizados” não é
conveniada a planos de saúde; assim como toda uma busca por informação, que
329
inclui a assistência a palestras, vídeos, relatos de parto, leitura de livros, visita a
sites e blogues, participação em listas de discussão, etc.
Sobre esse aspecto, Lo Bianco (1983 apud Salem, 2007) observa que a
busca pela desmedicalização acaba engendrando uma “medicalização de segundo
grau”, tendo em vista que, “a exigência de conhecimentos técnicos em nome do
exercício de autodeterminação redunda em seu maior envolvimento com o
paradigma médico” (2007: 74). Nesse sentido, as diversas e possíveis
“intervenções”, termo utilizado com conotação um tanto negativa, estão na ponta
da língua dessas mulheres, que buscam no conhecimento técnico uma maneira de
obter maior participação nas decisões relativas ao parto.
Por outro lado, situação bastante diversa foi encontrada na investigação
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realizada junto às mulheres de camadas populares. Os procedimentos médicos –
nunca referidos como “intervenção” – parecem ser poucas vezes objeto de atenção
nos grupos educativos e, no repertório das etnografadas, em geral resumem-se a
apenas dois: “corte” (episiotomia) e “soro” (ocitocina). Como visto ao longo da
tese, a anestesia não é algo que esteja disponível a essas mulheres, não só na casa
de parto, mas também nas maternidades públicas. No entanto, não parece
descabido supor que esse recurso possivelmente seria almejado por elas, isto é,
caso fosse oferecido e se houvesse possibilidade de ter acesso a ele.
Com efeito, a proposta de ter um parto desmedicalizado não foi
exatamente o que motivou as entrevistadas de camadas populares a buscarem a
CP. Para elas, serem reconhecidas pelos profissionais de saúde como “pessoas”
(DaMatta, 1997), poderem ter dois acompanhantes (em geral selecionados entre
membros da família), ficarem em um quarto individual, darem à luz em um local
que reputam tranquilo e acolhedor, dentre outros aspectos, tiveram um peso muito
maior na definição pela CP do que a proposta de parto “natural”, o que sugere que
esta não se trata exatamente de uma escolha, mas de uma “moeda de troca”. Como
algumas entrevistadas abertamente admitiram, o parto desmedicalizado precisou
ser “aceito” ao longo da gestação, assim como o fato de a assistência ser prestada
exclusivamente por profissionais de enfermagem, uma vez que não há médicos
dentre os membros da equipe da CP.
330
Contudo, apesar do manifesto desinteresse da maioria pelo parto “natural”,
este não parece passível de ser negociado naquele contexto. De fato, uma vez
internada na CP por ocasião do trabalho de parto, a parturiente não encontra
abertura para interferir nas decisões relativas à medicalização, que se baseiam em
critérios estritamente clínicos e são tomadas de forma unilateral pela equipe, o que
de certa maneira entre em choque com o conceito de “humanização”, isto é, se
entendido como respeito às escolhas e aos direitos da parturiente. Nesse sentido, a
liberdade de escolha da mulher fica restringida aos aspectos que dizem respeito à
posição para dar à luz, à movimentação, ao uso de recursos não-farmacológicos
para alívio da dor, à música ambiente, etc. Em suma, não extrapola o repertório de
possibilidades apresentado pela equipe e considerado favorecedor do parto
“natural”, não incluindo, portanto, as decisões relativas aos procedimentos
médicos ou farmacológicos. Daí possivelmente resulta o fato de que, do ponto de
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vista daquelas que dão à luz na CP, a meta costuma ser livrar-se o quanto antes do
processo de parturição – como também observou Nelson (1979) em pesquisa
realizada nos EUA – encontrando no relógio um importante instrumento de
avaliação de seu desempenho.
Como mencionado ao longo da tese, o trabalho desenvolvido pela equipe
da CP durante o pré-natal – e do qual o parto seria uma dramatização –, faz parte
de um projeto mais amplo, impulsionado junto às gestantes com vistas a construir
uma “nova mulher”: independente, auto-confiante, com consciência corporal,
política, de direitos, em suma, uma cidadã. Ou, como preferem chamar na casa de
parto, uma mulher “empoderada”.
Esse projeto de “cidadanização” (Duarte et al., 1993) se depara com
algumas barreiras, tendo em vista que uma de suas premissas é que o sujeito passe
a se perceber como um indivíduo, com preeminência sobre a totalidade social.
Nesse sentido, o projeto impulsionado pela CP busca sensibilizar sua clientela
para o ideal liberal-individualista, implícito na própria idéia de cidadania, o qual,
por sua vez, se opõe à relacionalidade e hierarquia que costumam predominar nas
famílias de camadas populares. Como visto no capítulo 3, esse modelo de família
estrutura-se a partir de um reconhecimento da diferença complementar dos
membros do grupo doméstico, sendo as redes de ajuda mútua uma característica
331
fundante dessa relacionalidade. De acordo com Sarti (2011), nessas famílias “uma
trama de obrigações morais (...) enreda seus membros, num duplo sentido, ao
dificultar sua individualização e, ao mesmo tempo, viabilizar sua existência como
apoio e sustentação básicos” (2011: 70).
No que se refere especificamente às crianças, nas famílias de camadas
populares as decisões que as envolvem em geral são tomadas de forma coletiva e
seus cuidados e responsabilidades com freqüência compartilhados pela rede
familiar (Fonseca, 2006). Nesse sentido, a gravidez, o parto e o puerperio se
configuram como momentos em que, justamente, há um reforço dos laços que
unem a mulher à família, o que explica a resistência de uma parte delas à proposta
da CP.
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Não há dúvidas de que o projeto de “empoderamento” feminino permeia o
ideário da “humanização” como um todo e também é apresentado, talvez de
maneira mais sutil, às mulheres de camadas médias. Uma diferença que parece ser
digna de registro, contudo, é que estas, diferentemente das mulheres de camadas
populares, aderem com afinco à proposta de desmedicalização. Considerando que
no sistema privado de saúde, onde são atendidas, elas têm fácil acesso à anestesia,
dar à luz sem medicamentos exige das mulheres de camadas médias um grande
controle emocional, a despeito da predominância de um discurso que valoriza a
liberação do corpo e das emoções. Como bem observou Le Breton (1999), o uso
massivo de analgésicos na vida cotidiana, resultado da percepção de que toda dor
é inútil e deve ser imediatamente combatida, faz com que as pessoas praticamente
não sejam expostas à dor, sendo quase inexistente o preparo ou o aprendizado
para vivenciá-la, em especial nos segmentos médios.
Contudo, a dimensão do que encaram como um desafio é percebida como
proporcional aos benefícios que essas mulheres acreditam advir de sua superação.
Movidas pelo desejo de testar seus limites e de explorar ao máximo a intensidade
das sensações que a experiência de parto pode oferecer, elas ressignificam a dor
vivida, encarando-a de forma positiva. Assim, o parto passa a ser percebido, ao
menos por uma parte delas, como uma forma privilegiada de auto-conhecimento,
representando uma via para o aperfeiçoamento subjetivo (Duarte, 1999), que tem
como foco a corporalidade. A atenção é deslocada para o “processo” e não
332
unicamente para o “resultado” – isto é, o nascimento do bebê (Nelson, 1979). Se
fosse possível, o tempo idealmente se desconectaria das horas e do calendário,
possibilitando que a atenção se direcionasse exclusivamente ao corpo e às
sensações nunca antes experimentadas, parte de uma busca por um
aprofundamento das intensidades, marca do hedonismo moderno (Duarte, 1999,
Le Breton, 2007). Tal busca, afirma Duarte (1999), faz com que experiências
sensoriais novas sejam valorizadas na medida em que, de alguma maneira, são
percebidas como acrescentando algo ao sujeito.
Como o personagem Hulk, referido por uma das entrevistadas, as
mulheres acreditam passar por uma intensa transformação, que beira a
metamorfose. Da mesma forma que na história em quadrinhos, na qual um
homem franzino e comum muda de cor, cresce, se torna musculoso e
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irreconhecível, convertendo-se em um super-herói, as mulheres narram suas
experiências de parturição como um encontro com uma força – às vezes revestida
de um caráter sagrado – que tinham dentro de si, mas que desconheciam. Desse
encontro incomum – sem a intermediação de medicamentos que pudessem
interferir nas sensações, inclusive naquelas provocadas pela dor – teria nascido
uma “supermulher”, aos olhos de si e daqueles que as rodeiam.
Entre as mulheres de camadas populares, a experiência narrada ganha
contornos semelhantes, a despeito do parto “natural” não ter sido propriamente
almejado. Ao darem à luz sem qualquer tipo de “ajuda”, estas passam a se
considerar e a serem vistas pelos demais como “guerreiras” – gíria utilizada para
se referir às mulheres fortes e corajosas –, que abriram mão dos recursos que lhes
eram oferecidos nas maternidades públicas226 para parirem “sozinhas”. Ainda que
assistidas pelos profissionais da casa de parto e por seus familiares – dentre eles o
pai do bebê, considerado uma testemunha fundamental. Como parte do projeto
mais amplo de “empoderamento” feminino impulsionado pela CP, o homem é
convidado a assistir à performance da mulher assumindo uma postura “autônoma”
e “ativa”, vista como decisiva para o nascimento do filho.
226
Não se deve ignorar a possibilidade de tal atributo estar também associado ao fato de estas
mulheres terem dado à luz em uma casa de parto autônoma, assistidas exclusivamente por
enfermeiras obstetras, rompendo com a tradição – relativamente recente, porém muito consolidada
no Brasil – de que cabem aos hospitais e aos médicos os cuidados na atenção ao parto.
333
É possível dizer que o parto “natural”, nesse contexto, se apresenta como
um rito de passagem, cujo período liminar tem como marca a individualização. Se
no dia-a-dia essas mulheres encontram-se imersas em redes mais amplas,
compartilhando com seus membros inclusive as decisões relativas ao parto,
durante a experiência dar à luz, porém, percebem-se “no comando”, tal como
expressa na frase: “Dependia de mim para nascer”. Na avaliação dessas mulheres,
portanto, o resultado do parto depende exclusivamente de sua performance, pois,
sem contar com qualquer “ajuda” farmacológica ou de procedimentos médicos,
ela dispõe apenas de seu corpo e da capacidade de auto-controle emocional, tão
incentivada nos grupos educativos. No entanto, como propõe DaMatta (1999),
essa experiência de individualização é vista como um estado, não como uma
condição central da condição humana, o que possibilita que, quando da
reincorporação da mulher a seu grupo de origem, isto é, ao seu lar e à sua família,
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haja um fortalecimento da complementaridade que os une – o que evidentemente
não diminui o sentido da passagem e da nova condição conquistada.
Diferentemente das mulheres de camadas populares, entre aquelas
provenientes dos segmentos médios, o parto “natural” e “humanizado” é encarado
como um projeto idealmente do casal, mas, nos casos em que não há o esperado
apoio do parceiro, este, em última instância, é considerado um projeto individual e
cujas decisões cabem à mulher. Se, como observou Singly (2007: 137), nas
camadas médias e superiores, homens e mulheres oscilam entre privilegiar as
exigências do casal e aquelas de cada um dos cônjuges, o parto parece se revelar
um momento propício para o reforço da individualidade da mulher, sob o
argumento de que se trata de uma experiência que envolve de maneira direta seu
corpo e sua subjetividade.
É interessante destacar que, se entre as mulheres de camadas populares o
parto aparentemente se apresenta como um rito de passagem cuja liminaridade
tem como marca a individualização, entre aquelas provenientes dos segmentos
médios, em especial para as que referem ter estado na chamada “partolândia”227, o
227
Como já mencionado, essa expressão é desconhecida das mulheres da CP, onde as teses do
médico francês Michel Odent não costumam ser divulgadas. Nesse sentido, mais do que o apelo ao
“natural”, a ênfase dos profissionais da CP incide principalmente sobre a ressignificação do “parto
como de antigamente”, que é idealizado e valorizado, o que parece ter melhor aceitação e apelo
334
período liminar se caracteriza pela submissão, pelo automatismo, pela “entrega”,
como se tratasse de uma experiência involuntária. Dizendo-se incapazes de
controlar seus atos e de tomar qualquer decisão em meio à dor provocada pelas
contrações, essas mulheres acreditam serem conduzidas por seus corpos durante a
experiência, promovendo uma ruptura com a ideia de auto-controle que, segundo
Elias (1994) e Le Breton (2011), configura-se como o paradigma da relação com o
próprio corpo na contemporaneidade.
Na contramão dos ativistas da “humanização” mais afinados com o
movimento feminista, que levantam a bandeira de que “o parto é da mulher” – o
que também é feito pelos profissionais da CP –, as parturientes, aparentemente
influenciadas pelas teses de Michel Odent, parecem estar mais convencidas de que
o parto é, em última instância e medida, do próprio corpo. Assim, elas ignoram o
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fato de que se trata de um corpo que, durante as aulas de preparação para o parto,
foi social, física e psicologicamente treinado para comportar-se de forma
“natural”. Aparentemente sucumbindo à visão anátomo-fisiológica, elas
consideram que o corpo-em-trabalho-de-parto desfruta de autonomia em relação
ao sujeito que encarna. É importante ressaltar que essa visão, que enfatiza o corpo
como mecanismo corporal, não parece, contudo, redundar no aniquilamento da
ideia de interioridade – psicológica ou espiritual –, tendo em vista que, como foi
possível notar ao longo da tese, a experiência de parturição é considerada pelas
mulheres uma via privilegiada para o autoconhecimento e o aperfeiçoamento de
si.
entre o público de camadas populares, o qual não deseja virar “bicho” e sim ser tratado e
reconhecido como “pessoa”.
6.
Posfácio
Relato de parto
Meu obstetra estava com viagem marcada para sexta-feira à noite. Era
quarta, eu estava com 39 semanas e até aquele momento Lia não dera sinais de
que estava para nascer. Mas eu queria que o parto fosse com ele e decidi, naquela
manhã, sair para caminhar. De fato, durante as aulas de preparação Flora havia
comentado que essa era uma maneira de se estimular o início do trabalho de parto.
Coloquei um tênis e andei por cerca de 2h30 na companhia de Tiago, meu marido.
Minha intenção ao fazer isso era dizer para ela que eu estava pronta. Se acaso ela
também estivesse, seria muito bem-vinda.
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Minha preparação começou alguns dias antes, quando assisti a vários
vídeos sobre parto para tentar me fortalecer para o desafio que estava por vir. Sim,
eu encarava o parto como um desafio: será que eu consigo? – me indagava. O fato
de Lia ter ficado “sentada” até 37 semanas, quando fizemos uma versão cefálica
externa228, havia me desencorajado um pouco. Eu estava começando a aceitar que
a cesárea seria uma possibilidade concreta, que até então negara. Fiz isso para
evitar possíveis frustrações, mas, por outro lado, quando Lia virou, me vi menos
encorajada para o parto do que estivera ao longo de toda a gestação.
Pois bem, a caminhada daquela quarta-feira ensolarada surtiu efeito. Voltei
para casa por volta de 12h e às 15h30, aproximadamente, comecei a sentir
contrações leves e espaçadas. Sabia que o trabalho de parto, se realmente
engrenasse, seria longo e achei por bem observar os sinais de meu corpo antes de
informar qualquer coisa a alguém. Evacuei bastante, por duas vezes seguidas, e
estava ciente de que esse era também um sinal. Resolvi fazer os últimos
preparativos do que levaria para a maternidade. Às 17h30, temendo o trânsito,
telefonei para Tiago, meu marido, que estava no trabalho em Duque de Caxias,
para avisá-lo sobre o que estava sentindo. Ele falou que desligaria o computador
na mesma hora e viria para casa. Disse-lhe que viesse com calma, pois não havia
228
A versão cefálica externa consiste em uma manobra realizada sobre a barriga para reposicionar
o bebê que se encontra em apresentação pélvica (isto é, “sentado”), “virando-o” internamente
através de movimentos manuais combinados com pressão no abdome materno.
336
pressa. Telefonei para Flora, quem havia contratado para ser minha doula, e
perguntei se ela achava que eu deveria tentar descansar ou fazer algumas posturas
para favorecer o andamento do trabalho de parto. Ela sugeriu-me que descansasse,
pois seria bom que estivesse bem disposta, caso Lia realmente estivesse a
caminho. Ela disse ainda que depois da longa caminhada daquela manhã eu
provavelmente estava precisando recuperar minhas energias. Concordei com suas
ponderações. Recordando-me do comentário feito por Aline, uma mulher que
tinha dado à luz em uma maternidade pública e disse ter passado fome, resolvi
comer uma lasanha de berinjela que estava no forno e, em seguida, fui me deitar.
Tiago chegou por volta das 18h30. Sugeri que ele também comesse algo e acabei
indo para a sala lhe fazer companhia. Ele colocou um filme na TV e fiquei deitada
no sofá. Pedi que me preparasse uma vitamina de morango (novamente o maldito
medo de passar fome!), que tomei quase de um gole só. Em seguida, comecei a
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me dar conta de que havia uma regularidade no intervalo das contrações e pedi
que Tiago o anotasse. Elas vinham de 10 em 10 minutos. Depois de 8 em 8
minutos. Tiago tomou a feliz iniciativa de desligar a TV, apagar as luzes,
deixando apenas o abajour aceso, e ligar o som. Ele havia preparado uma extensa
lista de músicas para o parto, que incluíam “mantras”, músicas “tradicionais”,
“animadas” e de “relaxamento”. Preferi que colocasse os “mantras” e ele assim o
fez.
Tentei falar com o obstetra, que estava com o celular desligado. Deixei um
recado, avisando-o que o “gato havia subido no telhado”. Eu sabia que ele
acompanhara um parto naquela tarde e queria avisá-lo para que pudesse descansar
um pouco, caso Lia resolvesse nascer. Ele retornou minha ligação mais tarde.
Disse que estava em casa e pediu que déssemos notícias caso o intervalo entre as
contrações diminuísse.
Nesse meio tempo fiz posturas da yoga, sentei e pulei na bola suíça,
apoiei-me na rede e recebi massagem de Tiago, que se revezava entre essa função
e aquela, burocrática, de anotar o intervalo das contrações. Com o cair da noite
pedi que ele deixasse de lado essa tarefa, pois senti que o trabalho de parto estava
de fato acontecendo, independentemente do que informava o relógio. Também
337
pedi que ele tapasse o relógio do DVD, pois não queria saber as horas. Preferia
que o tempo transcorresse, sem que eu prestasse atenção nele.
De tempos em tempos o telefone tocava. Às vezes Flora, querendo
informações sobre o trabalho de parto, às vezes a sogra que, ao ouvir a música,
achou que estávamos dando uma festa, às vezes um primo, coincidentemente
querendo saber se Lia já tinha nascido. Com exceção de Flora, não contamos nada
sobre o que se passava ali. Eu preferia ficar quieta, concentrada na minha tarefa, e
não queria que ninguém mais criasse expectativas. A dor aumentava pouco a
pouco. Inicialmente na parte da frente, no “pé” da barriga, e nas costas e depois
apenas nas costas. Colocamos um saco de água quente para tentar aliviar, mas na
hora da contração pouco efeito fazia. A dor, como já havia ouvido pelos relatos de
minhas entrevistadas, vinha em ondas e era contundente. Não deixava dúvidas de
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que Lia recebera meu chamado e estava mesmo a caminho. Eu tentava descansar
nos intervalos, deitando-me no sofá. Mas à certa altura senti que já não era capaz
de lidar com ela apenas com os recursos de que nós dois dispúnhamos. Pedi a
Tiago que telefonasse para Flora e dissesse a ela para vir ao nosso encontro.
Enquanto isso, trêmula de dor, me encaminhei ao chuveiro, por sugestão dela. A
água morna sobre as costas e a grande barriga foi como um bálsamo. Senti um
alívio enorme, mas ao mesmo tempo percebi que diminuíra o intervalo entre as
contrações. Eu gritava e pensava na vizinha que mora no apartamento de cima.
Ela também estava grávida e eu ficava imaginando que meus gritos poderiam
desencorajá-la para o parto. Mas não havia possibilidade de contê-los. Eu gritava,
xingava, pedia socorro, pedia por Deus…
Tiago telefonou para o obstetra, que nos orientou a irmos para a
maternidade. Eu tinha calafrios só de imaginar que teria que sair do chuveiro e
entrar em um carro. Pedi ao obstetra que fosse até minha casa e me examinasse
ali, pois sabia que ele morava perto. Mas ele não concordou e tive que colocar
uma roupa, amarrar um saco de água quente nas costas e entrar no carro. Por sorte
era quase meia-noite e não havia trânsito. Mas ainda assim esse foi um dos
momentos mais traumáticos do trabalho de parto: cada bueiro, buraco, desnível,
paralelepípedo, freada, tudo intensificava a dor das contrações. Pedi a Tiago que
abrisse as janelas do carro e fui, com vento na cara, gritando pelo caminho. No
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sinal vermelho, o taxista parado ao lado me observava assustado. Durante o trajeto
senti o vestido ficar molhado e não sabia se era a bolsa que havia estourado.
Quando finalmente chegamos à maternidade avistamos um táxi estacionando. Era
Flora que, avisada por Tiago sobre a ida à maternidade, chegara junto conosco.
Ela estava carregada. Além da mala que normalmente carrega, eu havia pedido
que levasse a banqueta que mostrara na aula de preparação para o parto e que
tinha visto sendo usada por Iara, durante seu parto na CP.
Desci do carro, olhei para o vestido e vi que o quê o havia molhado era
sangue. Entrei na recepção da maternidade e Flora logo me acudiu, fazendo-me
massagem na região lombar. Do manobrista, a quem entregamos o carro, aos
funcionários da maternidade, todos pareceram bastante surpresos com a presença
de uma mulher em trabalho de parto. Tiago precisou apresentar documentos e
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fazer a internação, enquanto uma enfermeira veio ter conosco. Primeiro sugeriu
que eu fosse examinada pelo plantonista. Eu disse que não, que meu médico
estava a caminho. Depois perguntou quem era a Flora. Em seguida, pediu que eu
me encaminhasse para uma saleta, onde são realizadas as ultras. Eu disse que
estava bem ali, aguardando a chegada de meu obstetra. Ela então confessou que
iria parecer que eu estava “desassistida” – desassistida? Mas se eu estava com
minha doula?. Depois de muita insistência acabei indo para a tal sala, sempre na
companhia de Flora que, diante do curto intervalo das contrações, mal podia tirar
as mãos de mim. Eu ficava de cócoras, enquanto me segurava em uma bancada.
Flora passava óleo de arnica e massageava a região lombar.
O obstetra chegou minutos depois e ouviu de Flora o comentário de que as
contrações estavam vindo uma em cima da outra. Com dificuldade deitei-me na
mesa da ultra para que ele pudesse me dar o toque. Eu rezava para que estivesse
com pelo menos 6cm de dilatação229 e, não à toa, comemorei ao ouvir dele que já
estava com 8cm. O obstetra recomendou que fôssemos direto para a sala de parto,
em vez de ir para o quarto. Antes, levaram-me de cadeira de rodas para um local
onde me despi e coloquei um avental, uma touca e um protetor nos pés. No (curto)
intervalo de cada contração, Flora tentou fazer o mesmo. Ela era a única que me
229
No trabalho de parto de minha irmã, que assisti, quando o médico a examinou pela primeira
vez ela estava com 6cm de dilatação. Desconfio que foi daí que tirei esse número.
339
acompanhava naquele momento. Ali perdi o tampão mucoso, que saiu envolto em
sangue.
Em seguida, fomos para a assim denominada “sala de parto humanizado”,
uma sala de pequenas dimensões, localizada dentro do centro obstétrico. Por esse
motivo não tem janelas, o que tentou ser minimizado com a pintura de uma na
parede. Havia ainda um banheiro, com uma banheira de hidromassagem. Assim
que entrei ali tirei a roupa e voltei a me posicionar de cócoras, apoiando-me na
mesa de parto para receber a vigorosa massagem de minha doula.
Tiago, que depois de fazer minha internação também foi trocar de roupa,
adentrou a sala naquele momento e começou a instalar os equipamentos que
havíamos trazido: posicionou a câmera de vídeo no tripé, colocou as caixas de
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som do I-pod e deixou a câmera fotográfica à mão. Ele também trouxe a roupinha
que Lia iria vestir quando nascesse, mas Flora se deu conta de que estavam
faltando a manta e o cueiro. Tiago teve que sair e trocar-se novamente para ir ao
quarto buscar. Eu não tinha idéia de quanto tempo iria demorar para o nascimento
de Lia e volta e meia perguntava por ele. Temia que ela nascesse sem que ele
estivesse presente.
Assim que entramos na sala de parto meu obstetra tomou a iniciativa de
ligar a banheira e, quando estava cheia, perguntou se eu não gostaria de entrar
nela. Concordei, recordando-me da positiva experiência que tivera no chuveiro.
Mesmo a banheira sendo um pouco apertada e tendo barras de apoio mal
posicionadas, foi bom ter acatado sua sugestão. Tiago ficou em pé nas bordas,
dando-me seus braços, para que pudesse ter onde me segurar. Nesse momento eu
estava com 9 para 10cm de dilatação e já começava a sentir vontade de fazer
força. Mas, para isso, precisava me segurar em algum lugar (ou, no caso, em
alguém). O obstetra de tempos em tempos ouvia os batimentos cardíacos do bebê
e sempre fazia comentários positivos, dizendo que Lia estava muito bem. Ele
perguntou se eu queria dar à luz ali mesmo e eu disse que poderia ser. Na
realidade, o que eu não queria era mudar de posição, depois de ter encontrado ali
algum conforto – se é que se pode chamar assim. Flora, sentada na borda da
banheira com os pés para fora, continuava massageando minhas costas. Eu
oscilava entre ficar de cócoras e em quatro apoios, de modo a cobrir a barriga com
340
a água. Em determinado momento senti uma pressão para baixo e ouvi um
“ploft”. Em seguida, a água da banheira ficou turva e espumosa: a bolsa havia
estourado.
Naquele ambiente de pequenas dimensões, em penumbra, ficava ainda
mais intenso o cheiro peculiar de um trabalho de parto: uma mistura de sangue,
secreção, suor. A água da banheira estava quente e havia cinco pessoas no
banheiro: eu, meu marido, a doula, o obstetra e seu assistente. O calor era intenso
e eu estava nua. Junto com a roupa, havia me despido de qualquer pudor: eu
gritava, xingava, reclamava, chamava pela Lia, dava ordens. Em especial ao
assistente do obstetra, o único que parecia não ter uma clara função ali. Ao longo
do trabalho de parto, pedi a ele que retirasse o relógio da parede – motivada
principalmente pelo relato de Valquíria, que deu à luz na CP e cuja preocupação
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com as horas me pareceu um tanto agoniante. Além disso, pedi que filmasse, que
posicionasse melhor a câmera, que trocasse a fita, que aumentasse o volume do
som. Não fui para a “partolândia”, como relataram algumas das entrevistadas do
grupo da Zona Sul. Pelo contrário, eu estava totalmente presente, ligada e atenta.
E a sensação era de que o assistente era meu, não do médico. Ele, por sua vez,
parecia não se incomodar com isso.
A água turva da banheira após a ruptura da bolsa fez com que o obstetra
me sugerisse sair dali. Eu rejeitei em um primeiro momento e ele acatou. Mas
estava decidido a me convencer: disse que ficaria difícil tirar a circular de cordão,
identificada na ultra-sonografia, se não conseguisse enxergar. Na mesma hora me
levantei, aproveitando o intervalo de uma contração. Voltei ao quarto e pedi a
banqueta à Flora, que a posicionou ao lado da mesa de parto. O obstetra sentou-se
diante de mim, na escadinha de três degraus usada para subir na maca, e Flora
atrás, em um banco. Ela massageava minhas costas e apertava os joelhos com
força contra o meu quadril, favorecendo sua abertura. Tiago ficou de pé,
oferecendo-me seus braços, para que eu pudesse neles segurar e fazer força
durante os puxos. Aliás, esta veio a se tornar sua função durante praticamente
todo o tempo em que estivemos na sala de parto.
Durante o período expulsivo, o obstetra fez um comentário do qual não me
lembro e Flora riu. Como seu corpo estava encostado ao meu, isto é, como
341
estávamos fisicamente conectadas, a vibração de seu riso me fez tremer. Aquilo
me incomodou. Pedi que parasse de rir e fizesse silêncio. O momento não era de
des-contração. Muito pelo contrário. Queria ficar quieta, concentrada, focada nas
minhas sensações, aguardando a próxima contração e o momento preciso de fazer
força. Afinal, é preciso fazer muita força: uma força contínua, longa, como nunca
havia feito, nem por tanto tempo, nem naquela parte do corpo, normalmente
pouco acessada.
Não sei quanto tempo passamos posicionados dessa forma, nem quantas
contrações foram necessárias até o nascimento de Lia. A minha sensação é de que
foi muito tempo. Mas o clima nesse momento do trabalho de parto era totalmente
diferente: já não havia afobação, nem calor, nem gritos. As contrações eram
fortes, mas o intervalo entre elas era longo. Lembro-me de ouvir os mantras que
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tocavam, de tomar fôlego, descansar. Até ser interrompida pela sensação de que
outra contração se aproximava: “Tá vindo!”, disse eu, como em vários momentos
do trabalho de parto. Esta era quase uma senha para que Flora retomasse a
massagem nas costas. Em uma dessas contrações, fiz força pelo máximo de tempo
que pude, até sentir uma enorme queimação. Era o tal do “vulcão”, de que me
falara Marisa, uma de minhas entrevistadas na casa de parto. O obstetra
comemorou: “A cabecinha dela tá aqui!”. Aquele vulcão em erupção doía para
valer. “Ela está me rasgando! Dói muito!”. Mas eu queria logo que ela saísse e a
queimação não me paralisou, muito pelo contrário. Fiz o máximo de força que
pude, senti que minha vagina abriu-se – queimando, queimando, queimando...
Aaaaaaaaaaaaai! – e dali saiu Lia. Escorregadia, quente, com um cheiro peculiar,
que nunca havia sentido. Antes de mais nada, a sensação era de alívio: Ufa! Em
seguida, recebi minha filha em meus braços, tão logo o obstetra conseguiu
desvencilhar-se da circular de cordão. Fiquei um pouco perdida, sem saber como
segurá-la, o que fazer e como fazer. Flora rapidamente cedeu seu lugar a Tiago e
ficamos os três ali abraçados, nos olhando, nos cheirando, nos sentindo, nos
conhecendo.
***
Enquanto escrevia esse relato, me dei conta de como minha experiência de
parto foi influenciada pelas várias entrevistas que fiz e partos que assisti durante a
342
realização da pesquisa. Pude identificar com clareza quais situações busquei
reproduzir e outras que preferi não replicar. Isto é, as informações que introjetei
durante a gestação (e até mesmo antes dela) me serviram de base e suporte para
elaborar minha própria experiência de parto. Nesse sentido, parece não haver
dúvidas de que o que se escuta – ou se vê, como no meu caso – sobre o parto
interfere de maneira decisiva no que é vivido e sentido durante essa experiência,
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ao mesmo tempo individual e social.
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Anexo 1 - Tabela de entrevistadas da Casa de Parto

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