Apostila de Literatura

Transcrição

Apostila de Literatura
Apostila de Literatura
Material complementar
2
Análise de textos do Gênero Lírico
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!
Fernando Pessoa
O cravo brigou com a rosa
O cravo brigou co’a rosa,
Debaixo de uma sacada,
O cravo saiu ferido,
E a rosa despedaçada.
O cravo ficou doente,
A rosa foi visitar,
O cravo teve um desmaio,
E a rosa pôs-se a chorar.
A rosa fez serenata
O cravo foi espiar
E as flores fizeram festa
Porque eles vão se casar.
Cantiga popular
A Árvore da Serra
- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...
- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Augusto dos Anjos
Contrabando
Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
Uma saudade feliz
De Paris.
Oswald de Andrade
Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.
Millôr Fernandes
Amar é um elo
Entre o azul
E o amarelo
Paulo Leminski
Os grilos cantam apenas
do meu lado esquerdo
estou ficando velho.
Paulo Franchetti
Literatura – Prof. Fabrício César
3
Cantigas trovadorescas
Cantigas de Amor
Cantiga da Ribeirinha
No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai,
ca ja moiro por vós e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vós retraia
quando vos eu vi en saia.
Mao día me levantei,
que vos entón non vi fea!
Ai Deus, que grave coita de sofrer!
Desejar mort'e haver a viver
com'hoj'eu viv', e mui sen meu prazer.
Con esta coita que me ven tanta,
desejo mort'e quería morrer,
porque se foi a Raínha franca!
[...]
E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía d’ua correa.
Paio Soares de Taveirós
Tradução da Cantiga da Ribeirinha
No mundo ninguém se assemelha a mim
enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
minha senhora, de pele branca e faces rosadas,
quereis que vos retrate quando vos vi sem manto.
Maldito dia que me levantei
que não vos vi feia!
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de bom Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo
de vós nunca recebi algo,
mesmo sem valor.
Ai coitado, con quanto mal me ven,
porque desejo mia morte, por én
perdí o dormir e perdí o sén,
e choro sempre quand'outren canta,
e máis desejo morte doutra ren,
porque se foi a Raínha franca!
Pero Garcia Burgalês
Cantigas de Amigo
- Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi há jurado!
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
Senhora minha, desde que vos vi,
lutei para ocultar esta paixão
que me tomou inteiro o coração;
mas não o posso mais e decidi
que saibam todos o meu grande amor,
a tristeza que tenho, a imensa dor
que sofro desde o dia em que vos vi.
Afonso Fernandes
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Literatura – Prof. Fabrício César
Dom Dinis
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Cantigas de escárnio
Cantigas de maldizer
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv’en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
em que vos loarei toda via
e vedes como vos quero loar
dona fea, velha e sandia!
Martim jogral, que defeita,
sempre convosco se deita
vossa mulher!
Vedes-me andar suspirando;
e vós deitado, gozando
vossa mulher!
Dona fea! se Deus me perdon!
e pois havedes tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon,
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçan:
dona fea, velha e sandia!
Do meu mal não vos doeis;
morro eu e vós fodeis
vossa mulher!
Juan Garcia de Guilhade
Dona fea, nunca vos eu loei
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja un bon cantar farei
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
Juan Garcia de Guilhade
Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por ũa dona que gran ben queria:
e, por se meter por mais trobador,
porque lhe ela non quis ben fazer,
feze-s'el en seus cantares morrer,
mais resurgiu depois ao tercer dia!
Ben me cuidei eu, María García,
en outro dia, quando vos fodi,
que me non partiss'eu de vós assi
como me parti já, mão vazia,
vel por serviço muito que vos fiz;
que me non deste, como x'omen diz,
sequer un soldo que ceass' un dia.
Mais desta seerei eu escarmentado
de nunca foder ja outra tal molher,
se m'ant'algo na mão non poser,
ca non hei por que foda endoado;
e vós, se assí queredes foder,
sabedes como: ide-o fazer
con quen teverdes vistid'e calçado.
Esto fez el por ũa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria:
por que cuida que faz i maestria,
e nos cantares que faz, a sabor
de morrer i e des i d'ar viver;
esto faz el que x'o pode fazer,
mais outr'omem per ren' nono faria.
E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mais sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for,
e faz-[s'] en seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.
Ca me non vistides nen me calçades
nen ar sej'eu eno vosso casal,
nen havedes sobre min poder tal
por que vos foda, se me non pagades;
ante mui ben e mais vos en direi:
nulho medo, grad’a Deus e a el-Rei,
non hei de força que me vós façades.
E, mia dona, quen pregunta non erra;
e vós, por Deus, mandade preguntar
polos naturaes deste logar
se foderan nunca en paz nen en guerra,
ergo se foi por alg'ou por amor.
Id'adubar vossa prol, ai, senhor,
c'havedes, grad'a Deus, renda na terra.
E, se mi Deus a mim desse poder
qual oj'el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca temeria.
Afonso Eanes do Coton
Pero Garcia
Literatura – Prof. Fabrício César
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Classicismo Português - Camões
Camões épico
Segue abaixo um trecho do Canto II, da obra “Os
Lusíadas”, no qual a deusa Vênus implora à
Júpiter que ajude os Portugueses, visando
protegê-los:
“Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso
Que, pera as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afabil e amoroso,
Posto que a algum contrairo lhe pesasse;
Mas, pois que contra mi te vejo iroso,
Sem que to merecesse nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei, enfim, que fui mofina.
Este povo, que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo tu tanto contar meu desejo,
Por ele a ti rogando, choro e bramo,
E contra minha dita, enfim, pelejo,
Ora pois, porque o amo, é mal tratado,
Quero-lhe querer mal: será guardado.”
(Os Lusíadas. Canto II - Estrofes 39 e 40)
Camões lírico
Soneto
Amor é fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se eu não tivesse o amor,
seria como sino ruidoso
ou como címbalo estridente.
[...]
se eu não tivesse o amor,
eu não seria nada.
Apóstolo Paulo (I Coríntios 13: 01-02)
Medida nova
Medida velha
Soneto
Ao desconcerto do mundo
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que só para mim
Anda o Mundo concertado.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.
Literatura – Prof. Fabrício César
6
Quinhentismo
Trechos selecionados da Carta de Pero Vaz de
Caminha:
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma
que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos
traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos
sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os pousaram.
[...]
A feição deles é serem pardos, maneira de
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bemfeitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem
estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas;
e nisso têm tanta inocência como em mostrar o
rosto.
[...]
O Capitão, quando eles vieram, estava
sentado em uma cadeira, bem vestido, com um
colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés
uma alcatifa por estrado. [...] Entraram. Mas não
fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão
nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no
colar do Capitão, e começou de acenar com a mão
para a terra e depois para o colar, como que nos
dizendo que ali havia ouro. Também olhou para
um castiçal de prata e assim mesmo acenava para
a terra e novamente para o castiçal como se lá
também houvesse prata.
[...]
Ali andavam entre eles três ou quatro
moças, bem moças e bem gentis, com cabelos
muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas
das cabeleiras que, de as muito bem olharmos,
não tínhamos nenhuma vergonha.
[...]
E uma daquelas moças era toda tingida, de
baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não
tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da
nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela.
[...]
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta
aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e
setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas
também compridas e os ferros delas de canas
aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns
que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.
[...]
Andavam já mais mansos e seguros entre
nós, do que nós andávamos entre eles.
[...]
Parece-me gente de tal inocência que, se
homem os entendesse e eles a nós, seriam logo
cristãos, porque eles, segundo parece, não têm,
nem entendem em nenhuma crença.
[...]
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja
acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua
salvação. E prazerá a Deus que com pouco
trabalho seja assim.
[...]
Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou
oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se
foram meter debaixo dela, para nos ajudar.
[...]
E quando veio ao Evangelho, que nos
erguemos todos em pé, com as mãos levantadas,
eles se levantaram conosco e alçaram as mãos,
ficando assim, até ser acabado; e então tornaramse a assentar como nós. E quando levantaram a
Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se
puseram assim todos, como nós estávamos com as
mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,
que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita
devoção.
[...]
Porém a terra em si é de muito bons ares,
assim frios e temperados como os de Entre Douro
e Minho, porque neste tempo de agora os
achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
[...]
Porém o melhor fruto, que nela se pode
fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta
deve ser a principal semente que Vossa Alteza em
ela deve lançar.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa
Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum
pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo
que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr
pelo miúdo.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera
Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de
1500.
Pero Vaz de Caminha
Literatura – Prof. Fabrício César
7
Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.
Barroco
Gregório de Matos
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
[...]
Todos somos ruins, todos perversos,
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Poesia Satírica:
A uma que lhe chamou pica-flor
Se Pica-Flor me chamais,
Pica-Flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome que me dais,
Metei a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica,
Que fico então Pica-Flor
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.
Soneto
Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade
da Bahia
A um nobre que insistentes vezes lhe pedia um soneto
e de quem o poeta nada tinha a dizer.
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para o levar à praça, e ao terreiro.
Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Soneto
Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
Soneto
Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
Aos vícios (fragmentos)
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.
[...]
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.
[...]
Se souberas falar, também falaras,
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazio a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Literatura – Prof. Fabrício César
8
Poesia Lírica-Religiosa:
Poesia Lírica-Amorosa:
Soneto
A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na
última hora de sua vida
Soneto
Rompe o poeta com a Primeira Impaciência
querendo declarar-se e temendo perder por
ousado.
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro:
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor e meu delito:
Porém, pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
Soneto
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?
Quem veria uma flor, que não a cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatra?
Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
Soneto
Retrata o poeta as perfeições de sua senhora a
imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma
dama traduzindo-o na língua portuguesa.
Se há ver-vos, quem há de retratar-vos,
E é forçoso cegar, quem chega a ver-vos,
Sem agravar meus olhos, e ofender-vos,
Não há de ser possível copiar-vos.
Com neve, e rosas quis assemelhar-vos
Mas fora honrar as flores, e abater-vos:
Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos,
Mas quando sonham eles de imitar-vos?
Vendo, que a impossíveis me aparelho,
Desconfiei da minha tinta imprópria,
E a obra encomendei a vosso espelho.
Porque nele com Luz, e cor mais própria
Sereis (se não me engana o meu conselho)
Pintor, Pintura, Original, e Cópia
Literatura – Prof. Fabrício César
9
Arcadismo
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Cláudio Manuel da Costa
Soneto
Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Soneto
Torno a ver-nos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte rico e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria
Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
Vila Rica
Canto X
[...]
Vê-se o outro mineiro, que se ocupa
Em penetrar por mina o duro monte
Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte
Da gruta, que abre, a terra que extraíra;
Os lagrimais das águas que retira
Ao tanque artificioso logo solta;
Trazida a terra entre a corrente envolta,
Baixa as grades de ferro; ali parados,
Os grossos esmeris são depurados,
Deixando ao dono em prêmio da fadiga
Os bons tesouros da fortuna amiga.
Por entre a pedra est’outro vai buscando
As betas de ouro; aquele vai trepando
Pelo escabroso monte, e as águas guia
Pelos canais, que lhe abre a pedra fria.
Não menos mostra o gênio a agricultura
Tão rara do país, aonde a dura
Força dos bois não geme ao grave arado;
Só do bom lavrador o braço armado
Derriba os matos, e se ateia logo
Sobre a seca matéria o ardente fogo.
[...]
Soneto
Soneto
Estes os olhos são da minha amada:
Que belos, que gentis, e que formosos!
Não são para os mortais tão preciosos
Os doces frutos da estação dourada.
Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:
Por eles a alegria derramada,
Tornam-se os campos de prazer gostosos;
Em zéfiros suaves, e mimosos
Toda esta região se vê banhada;
Literatura – Prof. Fabrício César
10
Tomás Antônio Gonzaga
Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo
Do rosto de meu bem as prendas belas,
Dai alívios ao mal, que estou gemendo:
Mas ah delírio meu, que me atropelas!
Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,
Eram (quem crera tal!) duas estrelas.
Soneto
Não vês, Nise, brincar esse menino
Com aquela avezinha? Estende o braço;
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
Então me prende mais meu desatino.
Em um contínuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.
Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.
Soneto
Não vês, Nise, este vento desabrido,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta,
Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,
Entre o horror de um relâmpago incendido?
Não vês a cada instante o ar partido
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,
O raio a cada instante despedido.
Ah! não temas o estrago, que ameaça
A tormenta fatal; que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina;
Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então, o que é ruína.
Marília de Dirceu – (parte I)
Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Literatura – Prof. Fabrício César
11
Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado:
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Ali descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço:
Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Depois de nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
Lerão estas palavras os Pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes.”
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito,
Que ele já feriu meu peito:
Por isso o conheço bem.
Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos,
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
Tem redonda e lisa testa,
Arqueadas sobrancelhas,
A voz meiga, a vista honesta,
E seus olhos são uns sóis.
Aqui vence Amor ao céu:
Que no dia luminoso
O céu tem um sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.
[...]
Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.
Lira XXX
Junto a uma clara fonte
A mãe de Amor se sentou;
Encostou na mão o rosto,
No leve sono pegou.
Lira II
Pintam, Marília, os poetas
A um menino vendado,
Com uma aljava de setas,
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido,
E de Amor ou de Cupido
São os nomes que lhe dão.
Porém eu, Marília, nego,
Que assim seja Amor, pois ele
Nem é moço nem é cego,
Nem setas nem asas tem.
Cupido, que a viu de longe,
Contente ao lugar correu;
Cuidando que era Marília,
Na face um beijo lhe deu.
Acorda Vênus irada:
Amor a conhece; e então,
Da ousadia que teve
Assim lhe pede o perdão:
“Foi fácil, ó mãe formosa,
Foi fácil o engano meu;
Que o semblante de Marília
É todo o semblante teu.”
Literatura – Prof. Fabrício César
12
Lira XIV
Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do céu brilhante,
Já foi pastor de gado.
[...]
Ornemos nossas testas com as flores,
E façamos de feno um brando leito;
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo que se passa
Também, Marília, morre.
Com os anos, Marília, o gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado:
Triste o velho cordeiro está deitado,
E o leve filho, sempre alegre, salta.
A mesma formosura
É dote que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.
Que havemos de esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça!
Marília de Dirceu – (parte II)
Lira XV
Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,
fui honrado Pastor da tua Aldeia;
vestia finas lãs e tinha sempre
a minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
Para ter que te dar, é que eu queria
de mor rebanho ainda ser o dono;
prezava o teu semblante, os teus cabelos
ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo,
além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te ao menos compassivo rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
as quentes horas da comprida sesta,
escrever teus louvores nos olmeiros,
toucar-te de papoilas na floresta.
Julgou o justo Céu que não convinha
que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha bela, se a fortuna volta,
se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
por essas brancas mãos, por essas faces
te juro renascer um homem novo,
romper a nuvem que os meus olhos cerra,
amar no céu a Jove e a ti na terra!
Fiadas comprarei as ovelhinhas,
que pagarei dos poucos do meu ganho;
e dentro em pouco tempo nos veremos
senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
que as afague Marília, ou só que as veja.
Se não tivermos lãs e peles finas,
podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
com canas e com cestos os peixinhos;
nós iremos caçar nas manhãs frias
com a vara enviscada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
c'os filhos, se os tivermos, à fogueira:
entre as falsas histórias, que contares,
lhes contarás a minha, verdadeira:
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
ainda o rosto banharei de pranto.
Literatura – Prof. Fabrício César
13
Quando passarmos juntos pela rua,
nos mostrarão c'o dedo os mais Pastores,
dizendo uns para os outros: — Olha os nossos
exemplos da desgraça e sãos amores.
Contentes viveremos desta sorte,
até que chegue a um dos dois a morte.
Marília de Dirceu – (parte III)
Soneto III
Enganei-me, enganei-me – paciência!
Acreditei às vezes, cri, Ormia,
Que a tua singeleza igualaria
A tua mais que angélica aparência.
Enganei-me, enganei-me – paciência!
Ao menos conheci que não devia
Pôr nas mãos de uma externa galhardia
O prazer, o sossego e a inocência.
Enganei-me, cruel, com teu semblante,
E nada me admiro de faltares,
Que esse teu sexo nunca foi constante.
Mas tu perdeste mais em me enganares:
Que tu não acharás um firme amante,
E eu posso de traidoras ter milhares.
Soneto X
Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado;
Albina ingrata, adeus, em paz te deixo;
Adeus, doce rabil; neste alto freixo
Te fica, ao meu destino consagrado.
Se te for meu sucesso perguntado,
não declares, rabil, de quem me queixo;
não quero que se saiba vive Aleixo
por causa de uma infame desterrado.
Se vires a pastor desconhecido,
lhe dize então piedoso: "Ah! vai-te embora,
atalha os danos que outros têm sentido.
Habita nesta aldeia uma pastora,
de rosto belo, coração fingido,
umas vezes cruel, e as mais traidora."
Romantismo
Gonçalves Dias
Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Coimbra - 1843.
Se se morre de amor
Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n'alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d'amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Literatura – Prof. Fabrício César
14
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,
D'altas virtudes, té capaz de crimes!
[...]
É ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
[...]
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Se tal paixão porém enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d'êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!
Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!
I-Juca Pirama
I
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
[...]
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
II
Em fundos vasos d'alvacenta argila
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Reina o festim.
Literatura – Prof. Fabrício César
15
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
Jamais verá!
A dura corda, que lhe enlaça o colo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim!
[...]
III
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
[...]
Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!
[...]
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja - dizei!
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
Literatura – Prof. Fabrício César
16
V
Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
[...]
__ És livre; parte.
__ E voltarei.
__ Debalde.
__ Sim, voltarei, morto meu pai.
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."
IX
[...]
Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis __ o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
__ Não voltes!
[...]
__ Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
[...]
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d'homem, penetrou no bosque!
VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
__ Basta! clama o chefe dos Timbiras,
__ Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. __
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."
X
Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: __ "Meninos, eu vi!
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
[...]
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
"Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mim.
"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
[...]
Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tomava prudente: "Meninos, eu vi!"
Literatura – Prof. Fabrício César
17
Meu Sonho
Álvares de Azevedo
Lembrança de morrer
No more! O never more!
SHELLEY
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
EU
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
[...]
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei!... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
O FANTASMA
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...
Soneto
Ó tu, que à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se vivi... foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
[...]
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida
À sombra de uma cruz, escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protejei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia noite o céu repousa,
Arvoredo dos bosques, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa.
Os quinze anos de uma alma transparente
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, inda inocente.
Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura,
A linda mão na mágica cintura,
E uma voz que inebria docemente.
Um sorrir tão angélico! Tão santo
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto!
É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos
A visão de minh’alma distraída!
Literatura – Prof. Fabrício César
18
Namoro a cavalo
É ela! É ela! É ela! É ela!
Eu moro em Catumbi: mas a desgraça,
Que rege minha vida malfadada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura –
A minha lavadeira na janela!
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela...
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado...
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento...
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!
Ontem tinha chovido... Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando... uma carroça
Minhas roupas tafues encheu de lama...
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...
Oh! De certo ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
O cavalo ignorante de namoro,
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
É ela! é ela! — repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode...
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
Literatura – Prof. Fabrício César
19
Castro Alves
O Navio Negreiro (Tragédia no mar)
I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
[...]
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
[...]
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
[...]
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus!
Que horror!
IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
[...]
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
[...]
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
VI
[...]
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Literatura – Prof. Fabrício César
20
A Canção do Africano
Boa noite
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão...
Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
[...]
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito
— Mar de amor onde vagam meus desejos.
Julieta do céu! Ouve... a calhandra
Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
... Quem cantou foi teu hálito, divina!
Se à estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."
E noite ainda! Brilha na cambraia
— Desmanchado o roupão, a espádua nua —
O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
— São as asas do arcanjo dos amores.
A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!
Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
— Boa-noite!, formosa Consuelo!...
Literatura – Prof. Fabrício César
21
Parnasianismo
Olavo Bilac
Fragmento de “Profissão de fé”
Não quero o Zeus Capitolino
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino
Com o camartelo.
Que outro - não eu! - a pedra corte
Para, brutal,
Erguer de Atene o altivo porte
Descomunal.
Mais que esse vulto extraordinário,
Que assombra a vista,
Seduz-me um leve relicário
De fino artista.
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo,
Faz de uma flor.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.
Por isso, corre, por servir-me;
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.
[...]
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito.
[...]
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir; Deusa serena,
Serena Forma!
[...]
A um poeta
Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua!
Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo , Que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.
Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício.
Porque a beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a Graça na simplicidade
A Cigarra da Chácara
Volta a cantar no tronco da mangueira,
Mais corpulenta agora e mais sombria,
Esta mesma cigarra cantadeira,
Que o ano passado em tanta vez ouvia.
Ébria dos quentes raios da soalheira,
A pompa sideral do meio dia
Celebra, e enquanto a luz abrasa, e cheira
O mato verde, chia! chia! chia!
Canta, alma de ouro! Teu verão radiante
Tornou, tornou teu sol glorioso e lindo;
O meu declina, não quer mais que eu cante.
Oh! Como invejo este hino alto e canoro
Que, reiterado, entoa ali, zinindo,
A cigarra da chácara onde moro.
Língua Portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o tom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Literatura – Prof. Fabrício César
22
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Nel Mezzo del Camin...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...
Simbolismo
Cruz e Sousa
Antífona
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras
Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
Alberto de Oliveira
Vaso Chinês
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.
Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.
Mas, talvez por contraste à desventura,
Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura.
Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,
Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
[...]
Cárcere das almas
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.
Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!
Violões que choram
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.
[...]
Sutis palpitações a luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Literatura – Prof. Fabrício César
23
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
[...]
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
[...]
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.
[...]
Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorções de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!
Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca...
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.
Que tu vais por um coche conduzida,
Por esquadrões flamívomos guardada,
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida.
Que da Corte os luzidos Dignitários
Com seus aspectos marciais, bizarros,
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários.
[...]
Que os potentes canhões roucos atroam
O espaço claro de uma tarde suave,
E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Do Amor, por entre os sons que te coroam.
[...]
Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Envolto em finas e cheirosas vestes,
Sob o carinho das Mansões celestes
Ficará pela Morte encarcerado.
Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.
Plangente: que chora, triste, lastimoso.
Sutil: delicado, hábil.
Dilacerar: rasgar em pedaços.
Caveira
I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!
II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curva leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!
Audazes: audaciosas
Aquilina: recurvada (como bico de águia)
Falazes: que enganam, que iludem
A Ironia dos Vermes
Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.
Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.
Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
Para o teu corpo apodrecer com fausto.
[...]
Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!
Flamívomos: que cospem fogo
Literatura – Prof. Fabrício César
24
Excelsa: sublime, elevada
Atroar: fazer grande estrondo
Féretro: caixão
Séquito: cortejo
Faustos: que têm grande pompa
Ouropéis: ligas metálicas que imitam ouro
Atroz: desumana, cruel
Augusto dos Anjos - (inclassificável)
Monólogo de uma Sombra
Vida obscura
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
Sorriso Interior
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
[...]
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!
[...]
Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.
[...]
E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.
Literatura – Prof. Fabrício César
25
É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
[...]
Est’outro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.
Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E á noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.
[...]
Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!
[...]
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
Continua o martírio das criaturas:
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!”
[...]
Eterna mágoa
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Versos Íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Solitário
Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Literatura – Prof. Fabrício César
26
Mas tu não vieste ver a minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
Velho caixão a carregar destroços.
A Árvore da Serra
- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
Ermos = vazios.
Incisivas = afiadas; pontiagudas.
Tumbal = de tumba, de túmulo.
- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
O martírio do artista
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
A Esperança
A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas frontais células guarda!
Tarda-lhe a idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!
Manietar = amarrar as mãos
Literatura – Prof. Fabrício César
27
Semana de Arte Moderna
Os sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Manifesto Pau-Brasil
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— “Meu pai foi à guerra!”
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!
[...]
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os
erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há
só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos:
Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de
exportação.
[...]
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...”
Oswald de Andrade (Correio da Manhã, 1924)
Urra o sapo-boi:
— “Meu pai foi rei” — “Foi!”
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.”
[...]
Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão
e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul
cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da
raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os
cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
[...]
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— “A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Manuel Bandeira
Manifesto Antropofágico
Só a Antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de
todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os
tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
[...]
Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia,
1928.)
Literatura – Prof. Fabrício César
28
Modernismo – I fase
Oswald de Andrade
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
Senhor feudal
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia
Medo da senhora
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
O capoeira
— Qué apanhá sordado?
— O quê?
— Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
O gramático
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era Sipantarrou
Relicário
No baile da corte
Foi o conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o carnaval
Guararapes
Japoneses
Turcos
Miguéis
Os hotéis parecem roupas alugadas
Negros como num compêndio de história pátria
Mas que sujeito loiro
Literatura – Prof. Fabrício César
29
Canto de regresso à pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
As meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.
Contrabando
Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
Uma saudade feliz
De Paris
Verbo crackar
Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo a pala
Pessoal sarado
Mário Andrade
Artista
O meu desejo é ser pintor — Lionardo,
cujo ideal em piedades se acrisola;
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...
Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.
Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,
irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
nos lábios dos que imprecam ou que choram!
Acrisola = purifica
Penedia = rocha
Cardo = espinho
Imprecam = praguejam
Moça Linda Bem Tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
Coió = tolo; palerma
Plutocrata = rico e poderoso
Oxalá que eu tivesse sabido que esse verbo era
[irregular.
Literatura – Prof. Fabrício César
30
Inspiração
Onde até na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de
crudelíssimos invernos
Frei Luís de Souza
São Paulo! comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Aryz!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
Paisagem n° 1
Minhas Londres das neblinas finas!
Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas
[paulistanas.
Há neve de perfume no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.
[...]
Paisagem n° 2
Escuridão dum meio-dia de invernia...
Marasmos... Estremeções... Brancos...
O céu é toda uma batalha convencional de confetti
[brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!
[...]
Deus recortou a alma de Paulicéia
num cor de cinza sem odor...
[...]
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os [crimes
e também as apoteoses de ilusão...
[...]
Paisagem n° 3
Chove?
Sorri uma garoa de cinza,
Muito triste, como um tristemente longo...
A Casa Kosmos não tem impermeáveis em
[liquidação...
[...]
As rolas da Normal
Esvoaçam entre os dedos da garoa...
[...]
De repente
Um raio de Sol arisco
Risca o chuvisco ao meio.
Paisagem n° 4
Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...
Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...
Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!...
As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!...
Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...
Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados...
Oh! as indiferenças maternais!...
[...]
Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!!
Cincinato Braga: presidente do Banco do Brasil na década de
1910
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
Literatura – Prof. Fabrício César
31
Manuel Bandeira
Poética
Renúncia
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
[expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.
diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
[dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sobranceira
Sem um grito sequer, tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos
[universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de
[exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
[de si mesmo.
Desencanto
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
[amante exemplar com cem modelos de cartas e as
[diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
_ Eu faço versos como quem morre.
Consoada
Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
_ Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é
[libertação.
Nova poética
Vou lançar a poesia do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim
[branco muito bem engomada, e na primeira
[esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
[de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa do brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas,
[as virgens cem por cento e as amadas que
[envelhecem sem maldade.
Literatura – Prof. Fabrício César
32
Tragédia Brasileira
Poema do Beco
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de
idade.
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha
[do horizonte?
__ O que eu vejo é o beco”.
Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída,
com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança
empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a
num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista,
manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca
bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma
surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso:
mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado,
Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete,
Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso,
Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói,
Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio,
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do
Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael,
privado de sentidos e de inteligência, matou-a
com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em
decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa;
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira-livre e
[morava no morro da Babilônia num barracão
[sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
[morreu afogado.
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . .
— Respire.
...............................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão
[esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o
[pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
argentino.
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais
[triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Literatura – Prof. Fabrício César
33
Arte de Amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a
[tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Debussy
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança...
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
_ Psiu... _
Para cá, para lá...
Para cá e...
_ O novelozinho caiu.
Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
Momento num café
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida Confiantes na vida.
Um, no entanto, se descobriu num gesto largo e
demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem
finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
Literatura – Prof. Fabrício César
34
Modernismo – II fase
Carlos Drummond de Andrade
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
[no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Cota zero
Memória
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
[...]
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
[não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão
[infenso à efusão lírica.
[...]
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
Legado
Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.
Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.
Literatura – Prof. Fabrício César
35
Confidência do Itabirano
Cidadezinha Qualquer
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
[comunicação.
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e
[sem horizontes.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Quadrilha
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de
[visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento, Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes que não tinha entrado na história.
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
[...]
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
[...]
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Literatura – Prof. Fabrício César
36
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
[coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Gauche: adjetivo francês que aqui significa “sem jeito”;
“torto”;
Morte do Leiteiro
A Cyro Novaes
Literatura – Prof. Fabrício César
37
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
[...]
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
[...]
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
[...]
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;
[...]
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
[...]
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
As sem-razões do amor
Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
Literatura – Prof. Fabrício César
38
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Vinícius de Moraes
Soneto de fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Os últimos dias
Que a terra há de comer,
Mas não coma já.
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Ainda se mova,
para o ofício e a posse.
E veja alguns sítios antigos,
outros inéditos.
Soneto de separação
Sinta frio, calor, cansaço;
para um momento; continue.
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
O prazer de estender-se;
o de enrolar-se, ficar inerte.
Prazer de balanço, prazer de vôo.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Prazer de ouvir música;
sobre o papel deixar que a mão deslize.
Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.
Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.
[...]
E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minas veias
[grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso
[pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
vida aos outros legada.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
A rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Literatura – Prof. Fabrício César
39
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Poema enjoadinho
Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
A Casa
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto,
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela, não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos bobos
Número Zero.
Samba da benção
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza - bis
Senão, não se faz um samba não.
[...]
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança - bis
De um dia não ser mais triste não
[...]
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia - bis
Ele é negro demais no coração.
Literatura – Prof. Fabrício César
40
Cecília Meireles
Recordação
Retrato
Agora, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.
As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exaltação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.
E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.
Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Turismo
– Leve o doce de chila! – dizia.
E era pálida e suave,
sua boca de nata.
E seu vestido, de linho alvo.
Mirava com olhos de água e opala.
E embrulhava os doces com papel branco,
lentamente, sem ruído.
Nunca vi nada assim:
Toda a leiteria era cândida:
esmalte, mármore, porcelana.
E seus braços formavam rios de leite,
e suas unhas, como seixos pequeninos,
brincavam com o barbante, viborazinha de
[marfim.
Modinha
Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.
Levantou seu rosto que nem camélia.
E sorriu, com uma tênue espuma
nos dentes de crista.
Eu pensava-a abstrata,
e desmanchava-a em laranjeira florida,
sob um luar absoluto.
Mas disse-me, entre os queijos tenros:
– Faltam cinco centavos.
E esperou, com a palma da mão aberta.
Assim mesmo, sua mão parecia um narciso
[inclinado.
A chuva chove...
A chuva chove mansamente... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene...
A chuva chove mansamente... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine...
Chila: espécie de abóbora comum em Portugal.
Seixos: pedrinhas.
Tantos sóis e tantas luas
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!
O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.
E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono...
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono...
...Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de imensos corredores espectrais,
Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais...
Literatura – Prof. Fabrício César
41
Retrato em Luar
Pistóia, Cemitério brasileiro
Meus olhos ficam neste parque,
Minhas mãos no musgo dos muros,
Para o que um dia vier buscar-me,
Entre pensamentos futuros.
Eles vieram felizes, como
para grande jogos atléticos:
com um largo sorriso no rosto,
com forte esperança no peito,
- porque eram jovens e eram belos.
Não quero pronunciar teu nome,
Que a voz é o apelido do vento,
E os graus da esfera me consomem
Toda, no mais simples momento.
São mais duráveis a hera, as malvas,
Que a minha face deste instante.
Mas posso deixá-la em palavras,
Gravada num tempo constante.
Nunca tive os olhos tão claros
E o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às arvores:
Solitária, perfeita e pura.
Aqui estão meus olhos nas flores,
Meus braços ao longo dos ramos:
E, no vago rumor das fontes,
Uma voz de amor que sonhamos.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Marte, porém, soprava fogo
por estes campos e estes ares.
E agora estão na calma terra,
sob estas cruzes e estas flores,
cercados por montanhas suaves.
São como um grupo de meninos
num dormitório sossegado,
com lençóis de nuvens imensas,
e um longo sono sem suspiros,
de profundíssimo cansaço.
[...]
Este cemitério tão puro
é um dormitório de meninos:
e as mães de muito longe chamam,
entre as mil cortinas do tempo,
cheias de lágrimas, seus filhos.
[...]
E as mães esperam que ainda acordem,
como foram, fortes e belos,
depois deste rude exercício,
desta metralha e deste sangue,
destes falsos jogos atléticos.
Entretanto, céu, terra, flores,
é tudo horizontal silêncio.
O que foi chaga, é seiva e aroma,
- do que foi sonho, não se sabe
- e a dor anda longe, no vento...
Romanceiro da Inconfidência (1953)
Romance II ou Do Ouro Incansável
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço, —
não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Mil bateias vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.
De seu calmo esconderijo,
O ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho..
É tão claro! - e turva tudo:
honra, amor e pensamento.
Literatura – Prof. Fabrício César
42
Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.
[...]
Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
- mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.
Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
[...]
Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranqüilo,
que a noite é um mundo de sustos.
Romance V ou Da Destruição de Ouro Podre
Toda vez que um justo grita
Um carrasco o vem calar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Foi trabalhar para todos
E vede o que lhe acontece
Daqueles a quem servia
Já nenhum mais o conhece
Quando a desgraça é profunda
Que amigo se compadece?
Romance XXI ou Das Idéias
A vastidão destes campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocafres e gamelas.
Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
Padres, intendentes, poetas.
[...]
Sinos. Procissões. Promessas.
Anjos e santos nascendo
Em mãos de gangrena e lepra.
[...]
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.
Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
- e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
“Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?”
[...]
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!
Romance LXII ou Do Bêbedo Descrente
Vi o penitente
de corda ao pescoço.
A morte era o menos:
mais era o alvoroço.
Se morrer é triste,
por que tanta gente
vinha para a rua
com cara contente?
(Ai, Deus, homens, reis, rainhas...
Eu vi a forca - e voltei.
Os paus vermelhos que tinha!)
Batiam os sinos,
rufavam tambores,
havia uniformes,
cavalos com flores...
- Se era um criminoso,
por que tantos brados,
veludos e sedas
por todos os lados?
[...]
Literatura – Prof. Fabrício César
43
Não era uma festa.
Não era um enterro.
Não era verdade
e não era erro.
- Então por que se ouvem
salmo e ladainha,
se tudo é vontade
da nossa Rainha?
Modernismo – III fase
João Cabral de Melo Neto
Catar feijão
(Deus, homens, rainhas, reis..
Que grande desgraça a minha!
- Nunca vos entenderei!)
Romance LXXXI ou Dos Ilustres Assassinos
Ó grandes oportunistas
Sobre o papel debruçados
Que calculais o mundo e vida
Em contos, doblas, cruzados,
Que traçais vastas rubricas
E sinais entrelaçados
Com altas penas esguias
Embebidas em pecados!
Ó personagens solenes
Que arrastais os apelidos
Como pavões auriverdes
Seus rutilantes vestidos
- todo este poder que tendes
Confunde os vossos sentidos:
A glória, que amais, é desses
Que por vós são perseguidos.
Levantai-vos dessas mesas,
Saí das vossas molduras,
Vede que masmorras negras,
Que fortalezas seguras,
Que duro peso de algemas,
Que profunda sepulturas
Nascidas de vossas penas,
De vossas assinaturas!
Considerai no mistério,
Dos humanos desatinos
E no pólo sempre incerto
Dos homens e dos destinos!
Por sentenças, por decretos
Pareceríeis divinos:
E hoje sois, no tempo eterno,
Como ilustres assassinos.
Ó soberbos titulares,
Tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
Vãs razões, falsos motivos,
Inutilmente matastes:
- vossos mortos são mais vivos;
E, sobre vós, de longe abrem
Grandes olhos pensativos.
1.
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão, entra um risco:
o de entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quanto ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
O engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sono do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
“A palo seco”
1.1. Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada
[...]
1.3. O cante a palo seco
é um cante desarmado;
só a lâmina da voz
sem a arma do braço
Literatura – Prof. Fabrício César
44
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Graciliano Ramos
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
Mortos ao ar-livre que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
***
[...]
Falo somente com o que falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
Tecendo a manhã
que é quando o sol é estridente,
e contra-pêlo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
***
A educação pela pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha alma
Cemitério Pernambucano
(Nossa Senhora da Luz)
Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos.
De que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe esse grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Morte e vida Severina
(Auto de Natal Pernambucano) 1954-1955
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E
A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
Não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
Literatura – Prof. Fabrício César
45
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma a outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE
DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE
SABERÁ
— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
E se somos Severinos
[...]
iguais em tudo na vida,
— Deseja mesmo saber
morremos de morte igual,
o que eu fazia por lá?
mesma morte severina:
comer quando havia o quê
que é a morte de que se morre
e, havendo ou não, trabalhar.
de velhice antes dos trinta,
[...]
de emboscada antes dos vinte,
— Agora se me permite
de fome um pouco por dia
minha vez de perguntar:
(de fraqueza e de doença
como senhora, comadre,
é que a morte severina
pode manter o seu lar?
ataca em qualquer idade,
— Vou explicar rapidamente,
e até gente não nascida).
logo compreenderá:
[...]
como aqui a morte é tanta,
Mas, para que me conheçam
vivo de a morte ajudar.
melhor Vossas Senhorias
[...]
e melhor possam seguir
— E se pela última vez
a história de minha vida,
me permite perguntar:
passo a ser o Severino
não existe outro trabalho
que em vossa presença emigra.
para mim nesse lugar?
[...]
— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR
nessas profissões que fazem
PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE,
da morte ofício ou bazar.
CORTOU COM O VERÃO
Imagine que outra gente
de profissão similar,
— Antes de sair de casa
farmacêuticos, coveiros,
aprendi a ladainha
doutor de anel no anular,
das vilas que vou passar
remando contra a corrente
na minha longa descida.
da gente que baixa ao mar,
[...]
retirantes às avessas,
Devo rezar tal rosário
sobem do mar para cá.
até o mar onde termina,
Só os roçados da morte
saltando de conta em conta,
compensam aqui cultivar,
passando de vila em vila.
e cultivá-los é fácil:
Literatura – Prof. Fabrício César
46
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE
UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O
CAIS E A ÁGUA DO RIO
[...]
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega ao abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
— Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
— Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
[...]
— Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE
ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM
NADA
— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
Literatura – Prof. Fabrício César
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Poesia Concreta
Augusto de Campos
Décio Pignatari
Augusto de Campos
Augusto de Campos
Pedro Xisto
Literatura – Prof. Fabrício César
48
José Paulo Paes
Pedro Xisto
vai
e
e
vem e
vem
e
Décio Pignatari
vai
José Lino Grünewald
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
V
E
V
V
V
V
V
V
V
V
E
L
VVVVVVV
VVVVVVE
VVVVVE L
VVVVE LO
VVVE LOC
VVE LOC I
VE LOC I D
E LOC I DA
LOC I DAD
OC I DADE
Ronaldo Azeredo
Literatura – Prof. Fabrício César
Philadelpho Menezes
49
Poema/processo
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
Poema Código
FOME
- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Poema obsceno
Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
José de Arimatéia
Poesia Social
Ferreira Gullar
Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Maninho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema terá o destino dos que habitam o
lado escuro do país
- e espreitam.
Literatura – Prof. Fabrício César
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outra parte estranheza
e solidão.
O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.
Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.
Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem
de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.
Traduzir-se
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Dois e Dois: Quatro
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.
Uma parte de mim
é multidão:
Literatura – Prof. Fabrício César
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Paulo Leminski
Poesia Marginal
cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas
-- -- --
Cacaso
Jogos florais
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
-- -- --
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
minha mãe dizia
(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)
- ferve, água!
- frita, ovo!
- pinga, pia!
Descartes
Não há
no mundo nada
mais bem
distribuído do que a
razão: até quem não tem tem
um pouquinho
e tudo obedecia
-- -- -saber é pouco
como é que a água do mar
entra dentro do coco?
-- -- --
Chacal
Papo de Índio
Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri
aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí eles insistirum e nós comemu eles.
Rápido e Rasteiro
Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.
quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado
-- -- -ameixas
ame-as
ou deixe-as
-- -- -verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida.
-- -- --
Literatura – Prof. Fabrício César
52
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
-- -- -Lápide 1 - Epitáfio para o corpo
aqui jaz um grande poeta.
nada deixou escrito.
esse silêncio, acredito,
são suas obras completas.
-- -- -Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
-- -- -nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase
rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos
nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
-- -- -amar é um elo
entre o azul
e o amarelo
-- -- -domingo
canto dos passarinhos
doce que dá para por no café
-- -- --
Hesitei horas
antes de matar o bicho
Afinal,
era um bicho como eu,
com direitos,
com deveres.
E, sobretudo,
incapaz de matar um bicho,
como eu.
-- -- -Meu avô-macaco
Aquele que Darwin buscou
Me olha do galho:
Busca a força dos caninos
O vigor dos pulsos
O arfar do peito
O menear da cabeça
O trabalho
Tudo se foi
Nada mais resta
Do fulgor primata
Da força de boi
Saber
Saber mata
-- -- -ler pelo não
Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.
-- -- --
só mesmo um velho
para descobrir,
detrás de uma pedra,
toda primavera.
-- -- -Literatura – Prof. Fabrício César
53
aves
de ramo
Razão de ser
em ramo
meu pensamento
de rima
em rima
erra
até uma
que diz
te amo
-- -- --
queima me um beijo fogueira de restos do amor
queima
se pode
queima a suspeita que em meu peito teima
quebra meu dia
que em tanta pedra explode
queima meu nome que em fogo teu transforme
essa tempestade
a vida em tempo de poesia
queima me tanto
que me lembre sempre
o vento que me leva para a frente ventania
-- -- --
ali
só
ali
se
se Alice
ali se visse
quanto Alice viu
e não disse
se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da Alice
só Alice
com Alice
ali se parece
-- -- --
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,
quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
-- -- --
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
-- -- --
O assassino era o escriba
Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjunção.
Entre uma oração subordinada e um adjunto
adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava
um jeito assindético de nos torturar com um
aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas, conectivos e agentes da passiva o
tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
-- -- --
Literatura – Prof. Fabrício César

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