Ricardo Araujo Dib Taxi
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RICARDO ARAUJO DIB TAXI A HISTORICIDADE INTERPRETATIVA DOS DIREITOS HUMANOS - TENSÃO ENTRE RE-AFIRMAÇÃO E TEMPORALIDADE Belém 2009 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO A HISTORICIDADE INTERPRETATIVA DOS DIREITOS HUMANOS - TENSÃO ENTRE REAFIRMAÇÃO E TEMPORALIDADE Trabalho enviado ao V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade 17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA), para o Grupo de Trabalho – Teoria e História dos Direitos Humanos. Belém 2009 3 A HISTORICIDADE INTERPRETATIVA DOS DIREITOS HUMANOS - TENSÃO ENTRE REAFIRMAÇÃO E TEMPORALIDADE 1 Ricardo Araujo Dib Taxi RESUMO: 'O presente trabalho pretende tratar o conteúdo e alcance dos Direitos Humanos em face da temporalidade de toda interpretação e contínua reformulação das noções legadas pela tradição humanista na qual tais direitos foram erigidos. A emergência de direitos afirmados historicamente, que todavia são continuamente re-interpretados, faz da teoria dos direitos humanos um processo dinâmico de contínua reformulação de seus conceitos basilares como dignidade humana, igualdade, solidariedade. Assim, este trabalho busca encontrar bases que norteiem a sempre inevitável interpretação do alcance de tais direitos, na consciência de que a contínua re-afirmação e alteração da compreensão dos mesmos não representa um obstáculo à sua plena efetivação, mas a sua condição de possibilidade, tendo como parâmetro sempre a realidade, em uma hermenêutica da facticidade.' ABSTRACT: 'The present work intends to treat the content and reach of the Human Rights in face of the temporality of all interpretation and continuous reformulation of the notions delegated by the tradition humanist in the which such rights were erected. The emergency of rights affirmed historically, which are interpreted continually, does a dynamic process of continuous reformulation of their basic concepts of human rights such a as human dignity, equality, solidarity. With that knowledge, this work intends to find bases to orientate the always inevitable interpretation in reach of such rights, knowing that the continuous reversestatement and alteration of the understanding of the same human rightst doesn't represent an obstacle to its full implementation, but it`s condition of possibility, based always on the reality, in an hermenêutics of facticity.' PALAVRAS-CHAVES: Direitos humanos; tradição; História; hermenêutica; KEY-WORDS: Human rights; tradiction; History; hermeneutics; INTRODUÇÃO Muito embora o pensamento jurídico desperte hoje, tal qual em muitas épocas, profundas dicotomias e seja assim um campo no qual florescem múltiplas concepções não só acerca de resultados pragmáticos a que deve chegar o Direito como também das premissas sob as quais se deve partir em tal busca, pode-se dizer que a grande maioria dessas concepções comunga a idéia de que os Direitos Humanos constituem o fundamento a partir do qual o Direito deve ser pensado. Com isso quer-se dizer que a realização de tais direitos deve ser a finalidade precípua dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Ademais, pode-se dizer também que já desde o século XX é comum às diversas correntes jus-filosóficas o reconhecimento dos Direitos Humanos como construção histórica dos vários povos que constituem a civilização ocidental em torno de valores comungados por todos e, por isso, ditos universais. 1 Bolsista-CAPES do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected]. 4 Tal dimensionamento, ao apontar para a história como a fonte mais fecunda de resgate desses direitos, toma parte no velho debate acerca da origem e fundamento de validade dos direitos humanos, dimensionando-os não como uma realidade inata a qual cabe ao jurista perceber e respeitar, mas como valores dialeticamente construídos e que precisam de um resgate histórico para se compreender a razão de sua importância. Como corroboração dessa tese, levanta-se sempre o holocausto nazista como um marco que, através da negação absoluta de qualquer dignidade humana, fortaleceu a emergência da irrenunciabilidade e concretude que são características dessa concepção contemporânea dos direitos humanos. O presente trabalho, ao direcionar-se à historicidade dos direitos humanos, buscará mostrar que o reconhecimento desse caráter histórico não implicou em um comprometimento de diálogo com a tradição histórica como fio condutor da interpretação de tais direitos. Com efeito, a inserção da perspectiva histórica aparece como fundamento dos direitos humanos apenas sob uma perspectiva formal. Tal qual nos diversos manuais doutrinários que, em seus capítulos introdutórios, tecem longos comentários principiológicos fazendo parecer que dali decorrerão todas as regras tratadas ao longo do livro mas que, logo no capítulo seguinte, tratam da operacionalidade das diversas regras jurídicas de modo mecânico, desligado dos princípios que foram anteriormente anunciados como a base da disciplina. Nesse sentido, defender-se-á que os direitos humanos são tratados como autoevidentes, ignorando-se a historicidade na qual estão imersos e a partir da qual podem ser compreendidos. Conceituando-os de maneira aparentemente técnica e fixa, tal como se fossem constatações transcendentais, apela-se à historicidade apenas para justificar a ampliação dos direitos através dos tempos (em diversas gerações), sem discutir até que ponto a compreensão que se faz de cada um dos direitos fundamentais está ou não em um diálogo legítimo com a tradição no qual tais direitos foram erigidos. Entretanto, se a compreensão da natureza e do alcance de tais direitos está ligada à temporalidade e historicidade existentes em qualquer interpretação, a fixação dos mesmos conceitualmente não pode dar-se de maneira fixa, tal qual uma teoria oriunda das ciências naturais, mas precisa ser uma espécie de filosofia prática, respeitando a facticidade e temporalidade inerente à hermenêutica. Assim, este trabalho pretende indicar o caminho a partir do qual se pode relacionar a exigência de uma base para se pensar os Direitos humanos sem desconsiderar a mobilidade inerente à compreensão humana. Espera-se, assim, aproximar o pensamento axiológico de uma ontologia da compreensão, que permita o dimensionamento da interpretação de tais direitos em uma perspectiva concreta e originária. 5 1. O ROMANTISMO E A NOVA NOÇÃO DE HISTÓRIA Para que o problema da historicidade dos direitos humanos possa ser adequadamente proposto, é antes de tudo imprescindível que se entenda a reviravolta ocasionada pelo romantismo (sobretudo alemão) nas noções de razão e história, uma vez que o germe para o pensamento de uma filosofia da história brota inteiramente daquele movimento. Quando, no auge do esclarecimento, Kant pensou a dignidade da pessoa humana a partir de categorias transcendentais da razão, mormente a capacidade do homem de elevarse acima do sensível e comportar-se racionalmente (KANT, 2006) restou inconteste que o filósofo, na esteira de seu tempo, vislumbrava em mais alta conta a capacidade libertadora e sólida da razão. De fato, o iluminismo tornou-se conhecido por, em oposição a tradições e crenças mais ligadas a aspectos emocionais e culturais, alçar a razão à juíza da verdade e autêntica criadora e reveladora dos valores corretos. Dizer naquela época que determinados direitos eram fundamentais na medida em que foram assim historicamente reconhecidos pela humanidade seria um argumento de cunho não científico, pautado em premissas não comprováveis e por isso fluido de mais para ser levado a sério. No entanto, pouco a pouco, a certeza esclarecedora que brotara a partir da fé na razão foi cedendo espaço à insegurança. Como a atividade de recompor rupturas no pensamento ocidental exigiria uma pesquisa bem mais ampla do que esta que aqui se propõe, não serão levantados os fatos e pensamentos ocasionaram tal ruptura. Importa dizer, nesse caso, que os acontecimentos anunciados pelos propagadores da racionalidade pareceram não se concretizar. A racionalidade, entendida no contexto iluminista como a racionalidade metódica nos moldes da matemática, relevara-se um instrumento hábil, porém incapaz de por si só ditar o rumo correto dos acontecimentos. O romantismo surgiu, então, como um movimento de recuperação da vida concreta, de retorno às origens e resgate da sensibilidade em face da mecanicidade da razão. O esforço iluminista em afastar o homem do passado em prol do conhecimento firme gerou o seu extremo oposto. O pensamento romântico surgiu então como defesa do resgate do passado, das amarras da tradição que, uma vez cortadas pelo iluminismo, deixara o homem perdido, desvencilhado do conhecimento de sua origem e de seu fim. (BERLIN, 2005). 6 Goethe exprime a essência do romantismo no primeiro trecho de sua obra Fausto quando o Doutor, cansado de ter se dedicado à razão e no fim não ter aprendido nada pragueja: “Ai de mim! Da filosofia, Medicina, jurisprudência E, mísero eu! Da teologia, O estudo fiz, com máxima insistência. Pobre simplório, aqui estou E sábio como dantes sou!” (GOETHE, Neste pequeno trecho da peça Goethiana, nota-se já o profundo descrédito do Doutor Fausto para com o conhecimento científico em todos os seus ramos, visto que, tendo estudado tudo que poderia, não havia chegado a lugar nenhum e permanecia sem nada saber, nada que “leve aos homens uma luz que seja, edificante ou benfazeja”. Assim, para além do Doutor, vislumbra-se aqui algo da essência do romantismo. O insaciável anseio por uma completude nunca alcançada, a “descoberta” de que a razão, no seu afã totalizador, esqueceu da tradição, do passado, da sensibilidade, da fé, tornando-se cega e vazia, levando o homem à perdição, ao desespero, à loucura. Não é a toa que a transição do iluminismo para o romantismo é conhecida pela sua descontinuidade e por uma transição de drasticidade raramente vista. Em todo caso, deve-se analisar mais minuciosamente em que consistiu o resgate da história anunciado pelo romantismo. Com efeito, o valor da História como orientadora das condutas humanas foi recorrente em grandes pensadores muito antes daquele movimento. Maquiavel, por exemplo, sempre se valera da história como forma de corroborar suas assertivas sobre a natureza humana e as relações entre o povo e a política. A diferença trazida pelo romantismo encontra-se de fato na forma como a história é vista. Desde bem antes do esclarecimento, o padrão pelo qual a história fora avaliada foi o da regularidade da natureza humana. Por mais mutáveis que fossem as civilizações e distintos os contextos, a atitude do Imperador romano de milênios atrás perante o povo poderia valer ainda de exemplo para um monarca europeu do século XVI. O reforço metódico iluminista colaborou ainda mais com uma visão objetivista da história, avaliada metodicamente como um objeto acessível à compreensão humana. 7 Quando se diz que o romantismo representou uma ruptura profunda no modo como se pensa o conhecimento humano sobre a história, devem-se então acrescentar à análise dois outros elementos, precisamente a singularidade e a continuidade. Por singularidade deve-se entender um movimento contrário à idéia aqui dita de que a natureza humana é uma só e de que o comportamento de diferentes pessoas em diferentes contextos segue um curso perene e cognoscível. A busca do auto-conhecimento voltou-se não mais para um padrão mas sim para as particularidades que envolveram cada momento histórico e o forjaram da maneira que é. O auto-conhecimento humano exige assim um olhar renovado sobre sua condição e sobre o que faz da mesma peculiar e que é em essência sua constituição. Obviamente, os padrões de cientificidade foram deixados de lado uma vez que regularidade e confirmação de experiência não funcionam em uma análise voltada ao aspecto único do objeto analisado. No entanto, tal singularidade não significou um alheamento ao passado. A certeza de que esse passado jamais se repete e que as épocas devem ser vistas de modo a que se conheça o que lhes é único deve ser aliado a uma questão igualmente importante. A singularidade não significa que se trata de algo inteiramente novo. O percurso do pensamento e a construção da tradição realizam-se mediante a re-significação do mesmo, através de uma construção que faz da história um movimento contínuo. Não se trata mais de fatos isolados que exercem mais ou menos influência sobre os fatos vindouros, mas de uma continuidade que só pode ser efetivamente compreendida retornando às suas origens e compreendendo o seu percurso. 2. HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE Conforme dito, as reflexões trazidas a partir do movimento conhecido como Romantismo foram fundamentais para uma nova concepção da História, fundamentalmente para um pensamento de continuidade e construção histórica. Ademais, foi dito também que aquele movimento representou uma aproximação com a vida em um sentido originário, uma tentativa de resgate das raízes humanas para além da onipotência da razão iluminista e materialista. Reavivou-se, assim, o valor da poesia e das artes como um modo privilegiado de conhecer, fortalecendo assim conceitos como sensibilidade, tato, formação e outros igualmente desacreditados pelo movimento ilustrado por sua a-cientificidade. Profundamente influenciado pelas idéias do romantismo, bem como por seu mestre Edmund Husserl, Martin Heidegger realizou um movimento fecundo na hermenêutica ao transportá-la ao cerne da filosofia ocidental (STEIN, 2002). 8 Partindo a princípio da fenomenologia de Husserl, Heidegger afastou-se no entanto das pretensões de seu mestre em apoiar-se na consciência de modo transcendental para realizar a sua visualização das coisas mesmas. Com efeito, Heidegger vira no desiderato de seu mestre um afastamento para com a vida fática, pensada histórica e temporalmente. Sob esse aspecto, deve-se então ver que Heidegger realiza um acréscimo significativo em relação ao pensamento dos românticos. Constata o filósofo que a pretensão de se conhecer a história adentrando ao horizonte dos que a escreveram é um processo impossível, pois contraria a facticidade na qual o interprete está sempre imerso. (HEIDEGGER, 2008). Nesse sentido, Heidegger utiliza o termo alemão Dasein (traduzido como ser-aí) para exprimir a imersão hermenêutica do interprete. Para tanto, o filósofo aduz que não há um sujeito que deve interpretar um objeto, não há um homem colocado em seguida no mundo, mas uma imersão não exatamente física e sim essencial. O ato de compreender deixa de ser uma faculdade e passa a ser a característica fundamental humana, de modo o homem está sempre compreendendo (e nesse sentido interpretando) a realidade à sua volta e reinterpretando a si mesmo nesse processo contínuo e circular. (HEIDEGGER, 2008). O termo “aí” da expressão “ser-aí” já demonstra que o filósofo vê a facticidade como a morada da compreensão, intransponível enquanto condição de possibilidade de qualquer entendimento. Muito embora não seja aqui o local apropriado para uma abordagem mais densa da filosofia heideggeriana, os pontos acima trazidos são fundamentais na medida em que reúnem como condição de possibilidade de qualquer interpretação a concretude, o “aí” do interprete como constituição fundamental de sua compreensão. Essa hermenêutica contrapõe-se a estatização dos conceitos com a qual desde Platão se atribui idéias imutáveis a entes almejando-se uma interpretação correta em si mesma e imutável. Contrapondo-se a esse pensamento, a hermenêutica da facticidade pretende tornar o interprete consciente da temporalidade e finitude que lhe são inerentes e mostrar que qualquer correspondência entre afirmação teórica e objeto analisado deve emergir da facticidade para que possa falar efetivamente em interpretação. Com base no exposto, surge naturalmente o aparente impasse que motivou essa pesquisa. Sendo a hermenêutica da facticidade considerada aqui como local apropriado ao diálogo no Direito e nas ciências humanas de um modo geral, não se estaria abdicando dos conceitos milenares com os quais se trata o Direito? Ao se dizer que tal hermenêutica pretende extrair qualquer teoria a partir de uma análise direta com o mundo da vida, não se estaria assim abdicando de qualquer teoria e recaindo em puro casuísmo? Afinal de contas, se não se pode criar teorias válidas para além de seu tempo e suas condições fáticas de surgimento, de onde retirar então o norte para se decidir casos concretos? 9 Tais questionamentos revelam-se ainda mais importantes quando se trata de direitos humanos, pois se estes foram alçados na contemporaneidade a desiderato central do Direito, é preciso que se tenha o máximo de clareza ao expressar seu significado, delimitação e conseqüências, o que exige certo grau de objetividade e um arcabouço teórico com o qual possa se vislumbrar a realidade. Em todo caso, se o Direito não pode ignorar a facticidade na qual está imerso e ainda assim não pode prescindir de certa cientificidade que lhe sirva de guia, resta claro que o método científico a partir do qual o fenômeno jurídico deve ser tratado não pode ser o método oriundo das ciências naturais. A partir das reflexões de Gadamer, remontando a Aristóteles (GADAMER, 1999), vê-se que já desde a antiguidade clássica se diferenciou a ciência como um saber que se aprende para executa-lo na prática (sophia) daquela espécie de filosofia prática ou prudência (phronesis). Segundo Aristóteles (ARISTÓTELES, 2007), ciência no primeiro sentido (sophia) seria uma classificação correta para saberes prévios, tal qual o do artesão que, tendo aprendido o modo ideal de realizar seu ofício, emprega-o na prática e chega ao resultado esperado. Quando tal não é possível, isso se deve à alguma imperfeição do seu objeto de trabalho ou algum erro na execução que o obriga a modificar seu plano, sem refletir, contudo, uma falha ou descaracterização do saber antes aprendido. Em sentido contrário, não se pode dizer que a busca da Justiça e do agir ético seja uma ciência nesse sentido. Com efeito, a lei jamais é precisa o suficiente para que sirva de subsunção mecânica ao caso concreto. Essa pergunta, na verdade, nem seria a mais fundamental na medida em que o principal não é que se consiga aplicar a lei, mas que se consiga realizar o seu desiderato de justiça. Aqui jaz toda a diferença. A decisão ou comportamento correto não podem ser abstratamente decididos, mas devem emergir do caso concreto que se pretenda resolver. A escolha das balizas que se utilizará para se certificar de que se chegou à decisão correta já é em si um problema ético. Quando o Juiz interpreta uma lei de modo a fazer justiça ao caso concreto (utiliza-se da equidade), não está na verdade fazendo concertos com vistas a adequar seu conceito a uma inesperada realidade, mas sim realizando o autêntico sentido das leis. Como se sabe, a intenção primordial de Aristóteles não era discutir a interpretação no Direito, mas sim caracterizar os diversos tipos de saber. Entretanto, sua exposição traz um modo fecundo de se vislumbrar o nascedouro da hermenêutica. Sua caracterização do saber ético como ciência prática, distinta da Σοφία, mostra que a conceituação nas ciências humanas e no Direito não é prévia à sua aplicação, mas brota a partir de uma interseção entre o conceito, seu esclarecimento no caso concreto e a prudência do interprete enquanto disposição para a ética. Veja-se nesse sentido o comentário de José Carlos Moreira da Silva Filho em obra sobre a hermenêutica de Heidegger e Gadamer aplicada ao Direito Civil: 10 Não se trata de conhecer um objeto, mas sim de um agir mediador, o qual se comporta como a dinâmica da phronesis aristotélica. O interprete passa a ser um prudente, ele não decodifica um sentido prévio, ele não deduz conceitos a partir de premissas do sistema, ele faz o sistema mover-se de modo circular e aberto, alimentado pelo contexto vital onde desde sempre está inserido. Vislumbra-se, assim , uma dialética entre fundamentação e inventividade, entre sistema e problema. Enquanto o primeiro busca racionalizar diminuindo a complexidade, o segundo a aumenta. (FILHO, 2006 p. 103). 3. A COMPREENSÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. Feitos estes apontamentos acerca das linhas gerais da hermenêutica heideggeriana, torna-se necessário discuti-la frente aos Direitos Humanos, tanto em um plano filosófico como também visando conseqüências práticas. O título do presente tópico deve-se à reflexão gadameriana em sua obra Verdade e Método acerca da hermenêutica filosófica frente ao modo como a mesma era tratada no romantismo (GADAMER, 1999). Ao comentar a distinção entre ambos os contextos, Gadamer lembra como o romantismo significou o despertar de uma ingênua objetividade acerca da relação entre compreender e interpretar para uma constatação de que ambos ocorrem de maneira mútua. Com efeito, a partir do romantismo as reflexões hermenêuticas não mais diferenciaram a compreensão como um momento de simples conhecimento do conteúdo, a ser posteriormente interpretado conforme a subjetividade do interprete. Deu-se naquele movimento a fusão de ambos os acontecimentos como um só, denotando-se que compreender (entender) já é desde sempre uma forma de interpretar. Todavia, esta unicidade entre conhecer e valorar relegou completamente o papel da aplicação no processo hermenêutico. Obviamente o trinômio conhecer, valorar e aplicar é de longa data, porém não enquanto parte da extração de sentido de determinado conteúdo. Para tanto, a aplicação restou como um mero exaurimento para a hermenêutica, saindo assim de seu âmbito. As conseqüências dessa separação para o Direito são especialmente graves. Com efeito, se a aplicação não faz parte do processo hermenêutico, então no momento em que se deve aplicar uma lei a um caso concreto o jurista teoricamente já à compreendeu/interpretou, bastando apenas encaixá-la ao caso que se lhe apresenta. Ainda que por alguma razão a subsunção não possa ser feita, isso não será visto como um problema de interpretação da lei, mas unicamente de inadequação desta ao caso concreto. Com isso, afasta-se a facticidade de modo inelutável. Buscando entender um enunciado e dali extrair uma norma para depois aplica-la, diz-se de antemão que o caso concreto nada tem a acrescentar à interpretação daquela lei. Prescindindo da concretude para formar a lei, separa-se como Lênio Streck bem observou questão de fato e questão de 11 direito (STRECK, 2007), fazendo crer que são momentos distintos e que a parte do direito em uma tese jurídica é apenas conseqüência de determinada ocorrência fática. A interpretação que hoje se dá ao brocardo latino “Da me hi factum dabo ti be ius” é um exemplo dessa separação. A teoria dos direitos humanos é um bom exemplo dessa separação. Diz-se que os mesmos são universais, inalienáveis e muitas outras características a partir de uma análise apenas dos textos legais. Posteriormente, quando se trata de aplicá-los, a hermenêutica jurídica contemporânea conforma-se em estabelecer critérios que ditem a escolha de determinado direito sobre outro, muitas vezes a partir de regras de proporcionalidade ou de maior ou menor adequação lógico-argumentativa. Todavia, não se parece acreditar que o caso concreto tenha algo a dizer sobre o que são os direitos humanos, em outras palavras, que a compreensão dos direitos humanos dependa do caso concreto para emergir de maneira completa. Ao contrário, a mesma já teria sido elucidada através dos tempos e precisa agora ser apenas aplicada. Em se tratando de direitos humanos, esta cisão possui ainda outro ponto igualmente nefasto. O fato de se chamar “direitos humanos” decorre da ligação dos mesmos à essência do ser humano, reconhecida esta historicamente a partir da visualização de necessidades e direitos reconhecidos historicamente como imprescindíveis à vida humana. Porém, se a essência do ser humano possui como existenciais a temporalidade e historicidade, então o reconhecimento histórico de direitos ligados de maneira mais originária à situação humana precisam fluir como a historicidade humana e acontecer no presente. A delimitação fixa de direitos humanos erra do ponto de vista hermenêutico pois vira as costas ao Homem tornando-o estático. Em sua obra acima citada, Gadamer busca então trazer a aplicação ao processo hermenêutico tal qual o entendimento e a interpretação. Para defender sua idéia, o autor se vale da hermenêutica jurídica como um exemplo paradigmático de tal fusão. Uma lei, observa Gadamer, não quer ser compreendida historicamente e bem interpretada, mas fundamentalmente resolver casos que se lhe apareçam. Obviamente a lei tem também como função ordenar condutas de acordo com a mesma. Mas nesse caso as condutas são os momentos de aplicação da mesma. (GADAMER, 1999). Assim, o caso concreto funciona como uma atualização da compreensão forjada pelo jurista de determinada lei. A união entre compreensão, interpretação e aplicação não significa apenas que esta última também faz parte da interpretação e da compreensão, mas também que compreender e interpretar ligam-se inexoravelmente à ação. Não são, portanto, uma ciência prévia ao agir, mas uma filosofia prática, nos moldes da citada phronesis. Desse modo, o jurista deve refazer a pergunta pelas constituições fundamentais do ser humano se quiser efetivamente compreendê-lo em suas relações jurídicas, e isso 12 obviamente ligando-se à facticidade na qual tais relações sempre se dão. Isso de maneira nenhuma significa que se reinventará sempre compreensões sobre o significado e alcance dos direitos humanos totalmente desvinculadas das anteriores. A constatação de que qualquer interpretação sempre movimenta-se no âmbito de uma tradição já mostra que o que ocorre de fato é uma atualização, re-significação de um conteúdo frente à historicidade na qual o mesmo precisa ser trazido à tona. Há aqui, todavia, um ponto que precisa ser esclarecido. Se a hermenêutica da facticidade se refere não a um modo como deveria se dar a interpretação, mas tenta ser uma explicação mais condizente com a realidade, com o ser da hermenêutica enquanto desvelamento das condições em que ocorre toda compreensão, então não faria sentido dizer que o jurista deve voltar-se ao caso concreto, vez que tal entrelaçamento com a facticidade não seria, como de fato não o é, um anseio, mas uma característica inafastável da relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Como então valer-se de tal hermenêutica para modificar a práxis dos direitos humanos? Para tal desiderato, deve-se ter em conta que o fato de a interpretação brotar da facticidade não significa que a relação entre ambas dá-se sempre do mesmo jeito. Pela crítica da abstração hermenêutica feita acima buscou-se mostrar que a relação entre entendimento e aplicação concreta é inconsciente aos interpretes do direito, levando-os a tratar a interpretação de modo irrefletido e assim impedem um diálogo fecundo e prudente em sentido grego. Desse modo, conscientizando-se da facticidade como condição de possibilidade da compreensão, é necessário resgatar a tradição na qual as compreensões da realidade são forjadas. A continuidade trazida pelo romantismo e explicitada no primeiro tópico desse trabalho é importante para que não se tenha a realidade como dada imediatamente, mas como um aglomerado de singularidades que, através da marcha da História, relegou fios da tradição que podem ser resgatados com o auxílio da prudência. Em se tratando de direitos humanos, o fio condutor humanista no qual os mesmos foram forjados e atualizados nas chamadas gerações são um caminho fecundo mas ainda insuficiente. Para um resgate autêntico e ao mesmo tempo crítico, é necessário antes de tudo trazer a compreensão dos mesmos de volta ao centro do debate, unindo-a à resolução dos casos concretos e debatendo seu percurso nas esteiras que forjaram o Estado democrático de Direito. CONCLUSÃO Ao longo de sua elaboração, este trabalho muitas vezes pendeu para a discussão secular em torno da hermenêutica enquanto filosofia e não se prendeu à discussão 13 puramente técnica no que concerne aos direitos humanos. Isso não se deu somente em razão da tese aqui defendida de que o Direito não é uma tekne, mas uma ciência prática que acontece mediante a tensão entre conceituação e afirmação. A razão desta abordagem teórica encontra-se na necessidade aqui defendida de considerar a importância do debate conceitual no que tange aos direitos humanos. Considerando ao se falar em conceituação se está naturalmente trazendo juntamente a aplicação, o que se defende aqui é que a discussão sobre a essência dos direitos humanos não seja tida como secundária. A tensão entre re-afirmação e temporalidade pretende justamente mostrar que o sentido de dignidade humana, liberdade, igualdade, vida, segurança e os vários outros direitos considerados fundamentais não pode ser encara como histórica apenas porque tais direitos foram sendo reconhecidos como tais ao longo da história ocidental. Em sentido contrário, pretende-se mostrar que a aplicação de tais direitos à realidade contemporânea e mais precisamente à facticidade brasileira traz consigo a necessidade de se re-compreender o significado dos mesmos, tendo como norte um diálogo legítimo com a tradição na qual os mesmos foram erigidos. Nesse “dialogar com a tradição”, não está incluída qualquer assertiva conservadora no sentido de manter conceitos do passado e tampouco um sentido puramente casuístico de se dar um significado totalmente novo ao conteúdo dos direitos humanos. A atualização já explicitada consiste justamente nessa tensão. Essa realidade é um existencial hermenêutico. Existencial porque é inafastável, constitui um modo fundamental pelo qual o homem enquanto Dasein se constitui e existe. O alcance dos direitos humanos, porquanto necessite de certa objetividade, não pode querer encontrá-la na estagnação, mas em uma espécie de “dinâmica sopesada”, na qual a temporalidade não seja um empecilho à segurança jurídica, mas uma característica fundante e por isso fundamental do auto-conhecimento humano e de suas relações sociais, objeto do Direito. Essa orientação da dinâmica conceitual e essencial, não pode por certo ser buscado em uma espécie de Direito Natural tal qual o Aristotélico. O lócus apropriado deve ser a historicidade, entendendo-se esta enquanto a complexa realidade forjada historicamente e que traz consigo o fio condutor da tradição humanista que os direitos humanos se propõem a resgatar e tornar materialmente eficaz. Por fim, deve-se asseverar que este trabalho não buscou definir o conteúdo dos direitos humanos na contemporaneidade. Buscou-se apontar um caminho a partir do qual a relação entre a historicidade de tais direitos e a necessidade de sua implementação possa se dar. 14 A delimitação do alcance desses direitos, mormente em um Estado que se pretenda democrático, não poderia ser de antemão traçada, nem aqui nem pelos jurista individualmente. Há que se dialogar com a sociedade em torno dessa delimitação. No próprio desenrolar de processos jurídicos, as partes e o Juiz devem construir juntos a aplicação/interpretação do direito. Não há diálogo histórico e regaste de tradição mediante um processo solipsista. O diálogo é, mais uma vez, peça fundamental para tal objetivo. BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad, textos adicionais e notas Edson Bini. Bauru, SP. EDIPRO, 2ª ed., 2007. BERLIN, Isaiah. A força das idéias. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo, Companhia das letras, 2005. BILLIER, Jean-Cassien. História da filosofia do direito. Barueri, SP: Manole, 2005. BLEICHER, Joseph. Hermenêutica Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1992. COELHO. André. Sobre a Dignidade da Pessoa (1) (Em negrito). Disponível em: http://constitucionalidadesvirtuais.blogspot.com. Acesso em 05 ago. 2009. COSTA, Paulo Sérgio Weyl Albuquerque. Autonomia e Norma Jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. GADAMER, Hans-Georg. El Giro Hermenéutico. Trad. de Arturo Parada. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. _________. Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. de Flávio Paulo Meurer. Rev. por Enio Paulo Giachini. 3 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. 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