Processos de Fibrilação na obra de Schwanke
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Processos de Fibrilação na obra de Schwanke
Processos de Fibrilação na obra de Schwanke1 Priscilla Menezes de Faria2 Resumo Identificam-se na obra de Luiz Henrique Schwanke constantes trânsitos entre o concreto e o orgânico, o informe e o modular. No presente artigo, procura-se refletir acerca da série conhecida como Os Linguarudos e do trabalho Cubo de Luz, buscando possíveis tangências entre essas obras de matrizes conceituais aparentemente distintas, a partir dos conceitos nietzschianos de Apolíneo e Dionisíaco. Palavras-chave Imagem; Forma; Luiz Henrique Schwanke Abstract Luiz Henrique Schwanke‟s work constantly varies between concrete and organic shapes. In this paper we try to reflect about the serie known as Os Linguarudos and on the work Cube of Light seeking possible tangencies between these works using Nietzsche‟s concepts of Apollonian and Dionysian. Key-words Image; Shape; Luiz Henrique Schwanke Da mesma forma que, sob a broca, a areia espalhada sobre uma placa que vibra se molda para desenhar figuras que combinam entre si com simetria, um princípio oculto, mais forte, mais vigoroso que qualquer fantasia inventiva, atrai entre si as formas que se criam por cissiparidade, por deslocamento da tônica, por correspondência. (Henri Focillon) Na obra de Luiz Henrique Schwanke (Joinville, 16 de junho de 1951 – Florianópolis, 27 de maio de 1992), figuram trabalhos feitos a partir da apropriação de objetos industriais e suas seriações, tais como objetos plásticos, espetos de ferro e fontes luminosas, obras estas que tangem estéticas de matriz conceitual: o minimalismo e a calculada repetição da forma, e a pop art, com o procedimento de apropriação de 1 Parte integrante da pesquisa Imagem-Acontecimento. Uma história das persistências e consistências da arte moderna na atualidade ( coordenado por Rosângela Cherem). 2 Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas – CEART/UDESC, Bolsista PIBIC orientada por Rosângela Cherem. 215 objetos triviais. Paralelamente a estes trabalhos, Schwanke criou uma numerosa produção de desenhos e pinturas, sendo estes aproximados a uma sensibilidade neoexpressionista, de matriz mais gestual ou expressiva. Assim, identificam-se na obra do artista intensos trânsitos entre o concreto e o orgânico, o informe e o modular. Henri Focillon3 propôs uma noção de vida da formas, pensando nesta força que intrínseca às aparições formais: “mesmo se nos contentarmos em voltar os olhos para simples esquemas lineares, a ideia de uma pujante atividade das formas se nos impõe. As formas tendem a se realizar com uma força extrema”. Assim, busca-se investigar percursos da vida destas formas inquietas de Schwanke, verificando aproximações e distanciamentos, procurando identificar como se dão as convivências de formas aparentemente distintas na obra do artista. Ao se apropriar de objetos industriais, o artista tange as sensibilidades modernistas que acreditavam na produção industrial como via de progresso social, aliando a produção plástica à fatura despersonalizada e à apropriação do objeto industrializado. Entretanto, na produção de Schwanke, o industrial nunca repousa em si mesmo, cria constantes tangências com o universo orgânico: o artista escreve em carta4 a Frederico de Morais que a pior tragédia é o corpo, e esta intensidade trágica do elemento orgânico comparece em seus trabalhos, sendo que sua obra não dialoga apenas com questões espaciais e formais, mas expande-se para problematizar esse espaçocorpo, de subjetividades trágicas. Agnaldo Farias aponta o conceito de repetição como característica que persiste nos trabalhos de Schwanke: “mas o ponto em comum que eu saliento no trabalho do Schwanke é a série, a repetição, a ideia de uma insistência, de um ritmo”5. Pode-se pensar tanto na repetição de um mesmo objeto, de uma imagem que se serializa, como nos gestos de sua fatura que se repetem intensamente: empilhar, encaixar, emparelhar. Porém a noção de repetição na obra do artista pode ser estendida para uma noção de fibrilação, sugerida pelo artista em carta para Frederico de Moraes em 1991, na qual 3 FOCILLON, Henri. A vida das formas: seguido de Elogio da mão . Lisboa: Ed. 70, 1988. p.16 Material gentilmente cedido pela jornalista e pesquisadora Néri Pedroso ao grupo de pesquisa ImagemAcontecimento. Uma história das persistências e consistências da arte moderna na atualidade , e posteriormente publicado no livro Percurso do Círculo, organizado por Kátia Klock, Ivi Brasil e Vanessa Schultz, na editora Contraponto, em Florianópolis, 2010. 5 BRASIL, Ivi; KLOCK, Kátia; SCHULTZ, Vanessa. Percurso do círculo: Schwanke – séries, múltiplos e reflexões. Florianópolis: Contraponto, 2010. p. 15. 4 216 escreve sobre uma de suas pinturas, constituída de faixas coloridas paralelas: “as listras comumente trepidam - fibrilação é o que faz o coração na hora do infarto, bate tão rápido que não bomba mais sangue, só trepida.” Repetição que abre mão da exatidão, para incluir o orgânico em seus percursos, a trepidação parece ser esse ritmo que não dá mais satisfação sobre si mesmo, não é motor de nada além da própria tremulação, deixa de encadear-se em casualidades para se tornar o motor trágico de seu ritmo - um ritmo tão referente a si mesmo que pode ser tomado como pura arritmia. A artista norte-americana Kiki Smith afirma: “existe um poder espiritual na repetição, uma qualidade devocional, como rezar rosários.” 6 Nesse sentido, pode-se pensar o gesto de repetir para além de suas relações com o industrial, com a busca pela impessoalidade, pela seriação sem original e a assepsia do ritmo previsível. Esta outra noção de repetição-fibrilação estaria mais relacionada à repetição como gesto de expurgo, trepidação como êxtase da forma, que guarda o caráter sagrado e devocional da repetição como uma via de ascese. A forma que se repete, convulsa, até atingir a tragédia do orgânico. Pode-se pensar esse movimento na obra de Schwanke a partir das noções nietzschianas das forças estéticas apolínea e dionisíaca. Nietzsche associa a forma apolínea às noções de sonho, de forma idealizada e resplandecente, enquanto a potência dionisíaca está relacionada à embriaguez e à desmedida. Entretanto, apesar de serem potências opostas, pode-se entender que o apolíneo só existe junto ao dionisíaco, assim como é possível identificar um estrutura no corpo do caos, ou ainda, perceber o próprio caos como uma forma de estrutura, e é essa convivência que figura a noção de fibrilação citada por Schwanke. Pois, se um artista minimalista negaria uma forma subjetiva e o artista expressionista não desejaria nenhuma estrutura para a sua subjetividade, Schwanke escapou de qualquer uma dessas negações e usou as potências da subjetividade orgânica e da estrutura organizadora para criar sua forma singular, sua forma-fibrilação. Corpo-cosmos 6 Livre tradução de I think there’s a spiritual power in repetition, a devotional quality, like saying rosaries retirado do site da artista www.moma.org/kikismith, consultado em 20/02/2010. 217 Durante a década de 80, Schwanke produz uma série de pinturas sobre papéis e folhas de livro de contabilidade. Esta série de imagens, que ficaram conhecidas como Os Linguarudos, foi construída de maneira intensa e numerosa resultando em pinturas que sugerem perfis quase abstratos de homens ou mulheres com a boca aberta de onde surge um volume semelhante a uma língua. Feitas em papéis individuais, ou repetidamente em grandes murais, na fatura destas imagens importava muito menos a minúcia e a qualidade do suporte que a força do gesto e da sensação provocados pelo ato pictórico. Os Linguarudos provocam a noção de urgência, de rapidez. Sistematizam um excesso, uma forma que não cessa de se repetir, revelando, a cada repetição, uma potência criadora de diferença. Ainda que guarde um aspecto figurativo (o formato de um rosto antropomórfico com a boca aberta), esta série constrói um território limite entre a forma e a dissolução. O rosto sempre retorna, mas retorna justo no ponto de se dissolver. No prólogo de Lógica do Sentido,7 Deleuze sugere uma noção de infusão periódica de caos no cosmos, um jogo entre o sentido e o não-senso, ou entre linguagem e o indizível. Na série Os Linguarudos comparece essa imagem de um caos-cosmos da forma, feita de uma desordem premeditada, ou ainda, de uma ordenação cuja lógica fundante nunca chega a se revelar. No século IX, Escoto de Erigena8 escreve a respeito da Beleza da Criação, que seria formada pela consonância dos símiles e dos dissímiles, cujas vozes, ouvidas isoladamente, nada diziam, mas fundidas em um concerto único produziriam uma suavidade natural. Já no século XII, há uma corrente filosófica, herdeira das convicções de Santo Agostinho, que pensa a criação divina a partir das noções de ordem e medida, o cosmo, em constante oposição ao caos primogênio, de onde tudo que existe se originou. Em sentido aproximado, as pinturas de Schwanke, produzidas repetidamente, podem ser compreendidas como um movimento de gênese, no qual consta o combate secreto entre a forma e o informe, e cuja potência se revela na instauração de profunda intimidade entre o que se define e o que dissolve. Os Linguarudos não mimetizam um corpo natural no sentido edêmico, mas parecem estar revestidas da nostalgia de uma paisagem em estado paradisíaco – um 7 8 DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. p. 83 218 mundo agramatical, em que tudo é estranho, potencialmente perigoso e ainda aguarda pelo limite da nomeação. Trata-se, portanto, de uma natureza artificializada, em que o mais primitivo é puro excesso, pura forma em deslimite. Desviam radicalmente de uma noção narrativa, são antes operações de transbordamento. Essa forma que extrapola a si mesma tem a ver com a potência dionisíaca descrita por Nietzsche9: “uma realidade repleta de embriaguez que, por sua vez, não se preocupa com o indivíduo, persegue até mesmo o aniquilamento do indivíduo e sua dissolução libertadora” . Os Linguarudos encenam uma espécie de anticonfissão: ruído mudo que persiste. Enigma irreparável, eco de enigmas pregressos, labirinto de infindáveis desvios onde a explicação do enigma é sempre a restauração do próprio enigma. Também guarda essa espécie de silêncio-eloquente a obra Reunião, de Amélia Toledo. Reunião faz parte de uma série de obras de Amélia Toledo nas quais ela reproduz partes de corpos em formas de gesso: pés, mãos, dorsos. Essa série compôs a exposição Emergências, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975. Investigação acerca de resíduos, rastros e vestígios dos corpos, a obra Reunião inquieta pela persistência de uma forma – boca – que sempre retorna diferente, como é próprio do orgânico, sempre imprevisível, nunca estável. Agnaldo Farias 10diz (...) que cada boca pertencia a um rosto diferente. Um detalhe de alguém que não se sabia quem era. O denominador comum do trabalho era o silêncio ao qual estavam condenadas; o foco da nossa atenção concentra-se irresistivelmente em cada um dos lábios, como a examinar sua diferenças, registrar suas expressões e comissuras, a flagrar o momento em que se arriscassem a falar. Se as bocas em Reunião presentificam o silêncio, os Linguarudos são a constância de um grito que não cessa de se anunciar. Ambas as obras contém a potência de presentificar o ausente: o grito que se anuncia sem nunca se enunciar, o silêncio que não se conforma em calar. Nietzsche11 associa a potência dionísica ao que ele chama de destruição do principium individuationis. Dionisíaca seria a força de implodir o sujeito em seus limites subjetivos. Tanto a série de pinturas de Schwanke quanto os moldes de Amélia tratam do corpo em indistinção, não importa aqui a noção de identidade, mas o corpo como substância viva, que surge e se ausenta, que se define e se dissolve, que cala e 9 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. p.33 FARIAS, Agnaldo. Amélia Toledo: as naturezas do artifício. São Paulo: 2004. p. 155 11 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. p.30 10 219 grita. Se o trabalho de Amélia é mais minimalista e menos gestual, o orgânico se revela na inevitável diferença entre as bocas moldadas. Já em suas pinturas, Schwanke faz de seu próprio gesto convulso uma forma de molde, que se afirma em sua repetição. Figura 1: Schwanke. Sem título (1985). Painel, vinílica sobre papel - 130,5 x 180,5 cm Suspensão da eloquência, o grito de escárnio dos Linguarudos também é movimento de torção que perturba a imagem em perspectiva, no sentido renascentista, e marca a forma direção àquilo que transborda todo o calculável. Dobradiças, rugas, a forma em excesso e em inconclusão, toma o volteio como método, o trágico como discurso. O ponto de fuga renascentista é aqui sobreposto pela voluta barroca, que percebe a retidão como insuficiência diante desta gramática do além-bordas, que não é a retórica do visível, do verificável. Os Linguarudos se dobram sobre eles mesmos, operam entre o sufocamento e a frouxidão e se relacionam com uma sensibilidade barroca pela noção de pintura como artifícios dramáticos, o espaço pictórico como campo da produção de sensações, da fatura de efeitos. 220 Figura 2: Jacob Jordaens. O Rei Bebe (1640) Jacob Jordaens (Antuérpia, 1593- 1678) foi um pintor flamengo do século XVII. Pintor de temas populares e mitológicos, foi aprendiz de Adam van Noort, assim como Rubens, que foi para ele grande influência. Na pintura O Rei Bebe, de 1640, Jordaens constrói uma imagem convulsa, trabalhando com a ilusão e o sobressalto da forma. Seu gesto pictórico, de estética barroca, cava espaços e produz torções. Há um entrelaçamento entre os corpos que se tangenciam e se sobrepujam, constituindo um único corpo de volumes e formas. O movimento de incorporação e entrelaçamento é renitente em todo o corpo pictórico, marcado por tangências lânguidas e inflamadas de corpos que se fendem e se interpenetram. Corpos e panejamentos se misturam e se indeterminam, ruptura de bordas esta que Bataille12 relaciona à potência do erotismo, como a vocação para a violação e para a transgressão, revelada na capacidade de dissolução das formas e, sobretudo, na potência da destruição do ser fechado - a destruição do princípio individuador dionísiaco descrita por Nietzsche. A tendência barroca para a dissolução opera na pintura através de movimentos que furam, abrem, fendem e de gestos que juntam, fundem, misturam: o furo e a voluta, esvisceração e justaposição. Além de guardar aspectos da força dionisíaca pela própria construção formal, O Rei Bebe também trata da noção de deslimite pela própria representação de um chefe de estado embriagado. O rei, que aqui assume o lugar de toda norma, é tomado pela 12 BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1977 221 potência dionisíaca e participa desta festa alheia a qualquer protocolo, norma ou moralidade. Observa-se que as bocas dos rostos que figuram na pintura estão abertas, sugerindo que estejam cantando, falando ou gritando. Assim como os Linguarudos de Schwanke, essas bocas escancaradas sugerem a potência de corpos intensos, dissolvidos e indeterminados pela potência dionisíaca da forma que os constitui. Hospitalidade entre superfícies, as pinturas de Jordaens e de Schwanke tangem a potência da dissolução erótica, do puro preenchimento que acolhe o furo - a boca escancarada. A forma dionisíaca se dá como movimento em direção à supressão dos limites, nesta gramática além-olho, além-borda, que só é tangenciada em vertigem e desvario. A forma dionisíaca incide sobre esta tensão irresoluta do corpo que quer estar sempre para além de si, neste ponto único, justamente, onde ele nunca pode estar. A linha se dobra, se destorce, mas retorna ao mesmo ponto, estacionando sobre si mesma, compondo a tragédia do olho que quer ver o que não é visível e se depara com sua limitação irreparável a cada novo volteio, a cada grito que se repete. Festa dionisíaca, coleção de bocas silenciosas, rostos que gritam. Nietzsche 13 afirma que (...) somente a estranha mistura que forma a dupla característica das emoções dos sonhadores dionisíacos evoca sua lembrança – como um bálsamo salutar relembra o veneno mortal – quero dizer, esse fenômeno do sofrimento que suscita o prazer, da alegria que arranca sons dolorosos. Da mais elevada alegria brota o grito de horror ou queixa ardente de uma perda irreparável. Tratam-se, portanto, as obras de Schwanke, Amélia Toledo e Jordaens, de trabalhos que tocam a vocação trágica do orgânico, da forma convulsa que se revela em módulo, em um exercício de repetição. Obras em que o corpo se dá como um corpo-cosmos, esse desmedido que se repete modularmente em sua vertiginosa aparição. Olho Solar Se durante a década de 80, Schwanke produz a numerosa série dos Linguarudos, a partir da década de 90 passa a trabalhar intensamente com a luz como matéria-prima de suas obras. Cria instalações feitas com fontes de luz , destacando-se a obra Cubo de Luz, exposta na 21ª Bienal de São Paulo em 1991, que consistia em um cubo de 5 metros e meio instalado no jardim ao lado do prédio da Bienal, em cujas paredes internas o artista colocou 80 refletores de luz, quantidade suficiente para constituir a 13 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. p.35 222 iluminação de um campo de futebol. Esta grandiosa obra de Schwanke, apesar de se relacionar a processos industriais e geométricos, visto que a obra se trata de uma forma cúbica e que só é acionada por artifícios mecanizados, toca também na noção de sublime, perigo e milagre. Agnaldo Farias relata14 era tão intensa a potência das luzes que, na hora que ligava o trabalho, a luz na Bienal caía num certo momento. A ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), inclusive, teve de ser consultada, porque aquele facho de luz se projetava e atravessava o céu da cidade, poderia atrapalhar os aviões com rota para Congonhas. O Cubo de Luz é uma aparição milagrosa, um feixe de intensidade desestabilizadora que irrompe em um céu desprevenido. Com este trabalho Schwanke forja uma imagemmilagre, entendendo o milagre como o que irrompe, que não se prevê e nem se controla, que funda sua própria aparição e só pode ser pura intangibilidade, pura projeção luminosa dissipada em um noturno céu. Sublime, porque incomensurável, porque alheio a qualquer delimitação, qualquer margem. O Cubo de Luz é uma imagem do Fiat Lux, quando das trevas fez-se a luz. Sem casualidade, sem historiografia, a imagem como uma forma de fantasmagoria. A condição desta imagem é o que Nietzsche15 descreve como a forma apolínea, do estado de sonho, de puro irrompimento: “este é o estado de sonho apolíneo, no qual o mundo diurno se envolve num véu e no qual um mundo novo, mais claro, mais inteligível, mais comovedor e, contudo, mais sombrio, nasce e se transforma incessantemente sob nossos olhos.” Se Agnaldo Farias apontou a repetição, a criação de um ritmo, como uma constância na obra de Schwanke, já não se pode encontrar no Cubo de Luz a repetição no sentido da insistência da matéria, persistência orgânica; mas ingressa nos domínios do incontido, do inquantificável, da forma em puro êxtase. Porém, mesmo esta visão milagrosa que Schwanke nos oferece não é pura em sua aparição. A respeito deste trabalho, o artista escreve:16 (...) Philo (o alexandrino) nos conta que a luz era uma imagem do Verbo Divino, era uma „luz invisível‟ perceptível apenas pela Mente. Desta „totalidade de luz‟ o sol, a lua, a estrelas e os planetas retiravam porções de acordo com sua capacidade. O próprio processo da luz 14 BRASIL, Ivi; KLOCK, Kátia; SCHULTZ, Vanessa. Percurso do círculo: Schwanke – séries, múltiplos e reflexões. Florianópolis: Contraponto, 2010. p. 13 15 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. p.68 16 BRASIL, Ivi; KLOCK, Kátia; SCHULTZ, Vanessa. Percurso do círculo: Schwanke – séries, múltiplos e reflexões. Florianópolis: Contraponto, 2010. p. 91 223 passando de invisível para visível tornava-a inevitavelmente menos pura por entrar na esfera dos sentidos. Pode-se complementar este raciocínio lembrando que Plotino (205 – 207) dizia que se o olho humano não tivesse algo de solar, ele não poderia perceber o sol, sugerindo assim uma profunda intimidade entre o sublime e o orgânico. Desta forma, mesmo a pureza luminosa com a qual o artista trabalha está sempre maculada pelo orgânico que lhe apreende. A fibrilação, neste sentido, é a forma que, por um lapso, abandona sua rigidez formal e atinge âmbitos convulsos, uma convulsão modulada, sempre antiga e sempre nova - uma intensidade que esquece de se dissipar. Esta imagem da desmedida que é construída pela forma concreta também figura no trabalho Tetéia nº 1, de Lygia Pape (Nova Friburgo, 1927 - 2004), exposto na Bienal de Veneza de 2008. Neste trabalho, um dos pavilhões da Bienal foi ocupado com uma instalação feita com fios de ouro iluminados por spots presos ao teto. Figura 3: Lygia Pape. Tetéia 1 (2008). Fios de ouro e spots de luz – Bienal de Veneza Ângulos geométricos, incidências calculadas, paralelismos forjados foram criados para produzir a impressão de uma luz sobrenatural, um estado onírico e milagroso da forma. A imagem do milagre torna sua origem irrelevante e solicita apenas contemplação e recebimento fascinados. Lygia Pape refaz a imagem da anunciação, do modo com a pintou Fra Angélico entre 1435 e 1445. 224 Imagem 4: Fra Angelico. Anunciação (1435 – 1445). Museu do Prado – Madri Nesta imagem, Fra Angelico justapõe temporalidade distintas, à esquerda se veem Adão e Eva após terem sido expulsos do Paraíso, sendo que o próprio jardim em que caminham parece ser terreno da casa onde se encontra o anjo da Anunciação. A Nossa Senhora recebe o anjo em profunda reverência e sobre seu corpo incide uma quantidade de feixes luminosos paralelos, vindos direto de uma fonte luminosa, semelhante a um sol. Fra Angelico cria diversos corpos geométricos em sua pintura, desde a arquitetura sólida da casa da Virgem até a luz divina que a atinge, formalmente organizada, reta e composta de linhas perfeitamente paralelas, ainda que seja a pura imagem do milagre do divino irrepresentável, que surge como a imagem solar. 225 Imagem 5: Schwanke. Cubo de Luz (1991) Tanto no Cubo de Luz, como em Tetéia 1 e na Anunciação a luz, como corpo milagroso, é fabricada a partir da forma geométrica. Esse convívio entre forma e desmedida é trágico e convulso – trepida – mas também revela a alegria das coisas mansamente domadas. Exatas e risonhas retas incorretas (1978, p.52). O caos e a precisão convivem delicadamente: é o milagre forjado, o sublime que se ensaia. Roberto Pontual escreve17: Na verdade, é exatamente a presença desse arcabouço de ordem e rigor, de economia e contenção, que funcionaliza a agudeza e/ou a violência do questionamento para que se voltam os artistas dessa causa. Sabem que o corte é mais drástico quando é calculado. O movimento de trepidação, aqui, é essa convivência entre o sublime onírico apolíneo e o êxtase da desmedida dionisíaca, convergência entre a forma trágica e a ideal, a premeditada e a acidental. Entende-se, portanto, que é esta potência drástica de reconhecer o mais violento que há na norma e o secreto ritmo de todo caos que se revela na convivência entre forma e informe na obra de Schwanke. Se fundem a correção e a incorreção em experiências que transitam entre o cálculo e a vibração, o determinado e o flexível, o instável e o variado, a linha e o espaço, a luz e a sombra. Em sua obra, 17 PONTUAL, Roberto (org.). América Latina: Geometria Sensível. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil/GBM, 1978. p.72 226 Schwanke recusa as fórmulas das vanguardas em sua pureza e ousa fazer do orgânico um módulo, e da grade um informe, uma aparição, pois mais lhe interessava as potências, os gestos intensos, a pura forma levada à fibrilação. Nietzsche 18escreve: (...) se, depois de termos feito grande esforço para fitar o sol de frente, nos desviarmos, machas escuras aparecem diante dos nossos olhos, como benéfico remédio que acalma nossa dor; de modo inverso, essas aparências luminosas do herói de Sófocles – numa palavra, o apolíneo da máscara – são as conseqüências necessárias de um olhar profundo para dentro do horroroso da natureza; são como manchas de luz que devem aliviar o olhar cruelmente dilatado pela horripilante noite. O olho solar e o corpo-cosmos produzidos na obra de Schwanke sobrevivem tanto ao horroroso do orgânico e à grandeza da luminosidade e fazem desse trajeto de sobrevivências a força e o ritmo de sua forma-fibrilação. Referência Bibliográfica BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1977 BRASIL, Ivi; KLOCK, Kátia; SCHULTZ, Vanessa. Percurso do círculo: Schwanke – séries, múltiplos e reflexões. Florianópolis: Contraponto, 2010. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. FARIAS, Agnaldo. Amélia Toledo: as naturezas do artifício. São Paulo: 2004. FOCILLON, Henri. A vida das formas: seguido de Elogio da mão . Lisboa: Ed. 70, 1988 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. PONTUAL, Roberto (org.). América Latina: Geometria Sensível. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil / GBM, 1978. http:// www.moma.org/kikismith 18 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Escala, 2007. p. 71 227