Edição n.º 1 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa
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Edição n.º 1 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa
O REAL NAS LINHAS DA FICÇÃO: criatividade e sensibilidade de um jornalismo feito literatura ª 8 COLINA ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL • DIRECTOR: PAULO MOURA • TRIMESTRAL• N.º 1 • OUTUBRO 2005 AUTÁRQUICAS DE LISBOA A ambição de José Sá Fernandes em poder intervir nas decisões da capital. O compromisso de arrumar Lisboa, assumido por Maria José Nogueira Pinto. Entrevistas aos dois candidatos à Câmara de Lisboa. Pág. 4 O RITMO DA REVOLTA MARKETING POLÍTICO Quando um político se transforma num champô. As estratégias que apoiam os políticos nas eleições. Os pormenores que ditam a diferença. A arte de bem vender pessoas e ideias. Pág. 2 HOMEM-ESTÁTUA Partiu em busca da cura, voltou estátua. Não precisou de mexer um músculo para entrar no livro de Recordes do Guinness. Tudo isto sem pestanejar. Pág. 12 POETAS BIPOLARES Vivem a vida num trilho de riso e lágrimas. A poesia para eles é mais do que uma forma de arte. É um alívio, um prazer. São os poetas bipolares. Pág. 26 TEATRO EM SUA CASA O actor entra sem bater à porta. Dentro das casas, das ruas, das pessoas. Não lhe interessa questionar os limites do teatro. Deseja antes pertencer ao mundo de alguém, fazendo do teatro um momento da vida, que não a interrompe. Pág. 28 O MONGE ASSASSINADO Alguém morreu no Convento dos Capuchos, em Sintra: aqui jaz Frei Bonifácio. Siga as pistas e descubra o assassino. Pág. 10 NAS RUAS DO BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO, EM ALMADA, A POBREZA E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL AFOGAM E SUFOCAM. HISTÓRIAS DE QUEM ENCONTROU NO HIP-HOP A FORÇA PARA LUTAR. 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 POLÍTICA 2 • MARKETING POLÍTICO NAS AUTÁRQUICAS Quando o produto fala Os pormenores que (não) se vêem I ndependentemente da estratégia adoptada, os pormenores na propa- ganda fazem toda a diferença. É através de detalhes, como a roupa ou um sorriso, que se conquistam muitos vo- LISBOA FOI INUNDADA POR CARTAZES DOS CANDIDATOS À CÂMARA. MAS POR TRÁS JOÃO GODINHO E MARTA MESQUITA DAS IMAGENS, DAS CARAS EM GRANDE PLANO E DOS SLOGANS ESTÃO VERDADEIRAS Candidato ou champô? Q tos. Viegas Soares, professor de Semiologia, defende que nada do que aparece nos cartazes é escolhido ao acaso. Todos eles passam uma ima- uando alguém se pretende can- ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO. NADA É FEITO AO ACASO, TUDO É VISTO AO PORMENOR. didatar deve começar a pensar numa estratégia para conseguir al- cola Superior de Comunicação Social, PROMOVER UMA PESSOA OU UM PRODUTO PARECE SER A MESMA COISA. O CONSUMIDOR, cançar o seu principal objectivo: o voto dos eleitores. A publicidade, o ma- gem que, segundo o professor da Esna propaganda dos vários partidos para Lisboa é muito igual e pouco imagi- NESTE CASO, QUEM VOTA, NEM DÁ PELOS DETALHES QUE FAZEM TODA A DIFERENÇA. rketing e o trabalho de assessoria nativa. A postura de pai protector e que arranja soluções é, na opinião do pro- interligam-se para criar a imagem fessor, a adoptada por Carmona Rodri- certa para cada político. gues e Manuel Maria Carrilho. Em Portugal, o marketing políti- Mas existem ainda diferenças entre co ainda tem um passado recente. ambos os candidatos. Carrilho apre- Enquanto nos Estados Unidos, por senta-se em muitos cartazes sem exemplo, a imagem do candidato re- gravata, com um visual casual, o que, quer um trabalho constante dos téc- para João Carlos Oliveira, vai ao en- nicos de comunicação, em Portugal contro da ideia que os eleitores têm isso não acontece. Só mesmo pa- de Carrilho: pessoa de mente aberta, ra campanhas eleitorais é que essa culta e humanista. Já Carmona con- preocupação surge, primeiro, porque juga um visual mais executivo, de bla- ainda não se criou esse hábito e, se- zer e gravata, com uma apresentação gundo, porque sai caro. mais prática, sem o casaco e arrega- Mas quando se tem de promover çando as mangas. Para Viegas Soa- um político, as técnicas utilizadas res este acto de Carmona mostra que são iguais àquelas que se usam pa- “está pronto a lançar-se ao trabalho”. ra promover um outro produto qual- A estratégia de Carmona Rodrigues, e quer. Quem o diz é João Carlos Oli- que se percebe desde o primeiro car- veira, presidente da agência de co- taz (o candidato no meio das pessoas), municação Bates Red Cell e da é a de um homem que trabalha com Associação as pessoas mas capaz de se respon- Portuguesa das Em- presas de Publicidade e Comunica- sabilizar, dando “a cara por Lisboa.” ção (APAP): “é exactamente a mes- Já Carrilho, na opinião de João Car- ma coisa promover um político ou los Oliveira, tentou desde o início li- um champô, mas com o risco de o gar-se a Lisboa, mostrando através champô falar”. da cor rosa o seu amor pela cidade e Para se lançar um candidato há que também pela família. Para o publici- perceber que produto se tem, o que o tário, ao utilizar a família logo no íni- A diferença necessária lo resultado das urnas. Até lá, os técni- ter para ganhar. Segundo o presiden- Hoje em dia é a publicidade que distin- cos de comunicação tentam reposicio- tar do partido. te da APAP, começa-se por “pegar no gue os produtos entre si. Com os polí- nar o seu candidato, consoante as re- A propaganda política tem sempre do-se um homem de família, capaz candidato, perceber quais são os seus ticos não é diferente, daí haver por to- gras do mercado, “como um produto uma intenção por trás, não é inocente. de assumir compromissos”. No caso do candidato do PS, os efeitos cola- mercado quer e que imagem é preciso o que reflecte a própria forma de es- cio da campanha, Carrilho pretendeu “resolver alguns boatos, mostran- atributos, os benefícios que pode dar, da a cidade cartazes cor-de-rosa, caras a reagir às suas vendas”, afirma João Com os cartazes e com os discursos, os seus valores e traços de persona- em destaque e slogans que convidam ao Carlos Oliveira. Cada candidato faz uma os candidatos pretendem estabelecer terais, ou seja, o conhecimento pré- lidade e constrói-se comunicação.” E trabalho. Segundo João Carlos Oliveira, aposta ao posicionar-se no mercado. Se uma ligação afectiva com o eleitora- vio que as pessoas têm do político, é é com base nestas variáveis: tipologia “o problema de hoje em dia é que os po- uns decidem privilegiar os atributos, po- do. Para João Carlos Oliveira esta li- decisivo. “Ser casado com a Bárba- do consumidor, meio envolvente e ca- líticos não são inovadores. As coisas são de-se fazer um túnel para a cidade; se o gação é sempre conseguida emotiva- ra Guimarães e ser casado com uma pessoa que ninguém conhece faz di- racterísticas do candidato que se joga cada vez mais iguais. É cada vez mais dí- que mais apela ao eleitor são os valores, mente; vota-se naquele político por o processo comunicativo. ficil ser diferente”. Assim , a única forma então a seriedade e a honestidade po- razões muitas vezes inconscientes. ferença. Apesar de ter sido criticado Para João Carlos Oliveira, aquilo que de distinção entre os candidatos é atra- dem fazer a dife- Porém, cada um ao por muitos por ter utilizado a famí- o candidato é nunca deve ser igno- vés dos cartazes e da propaganda políti- rença no voto. rado. “Uma boa estratégia de comu- ca que aparece nos media. Nas nicação pode matar mais depressa Em cada cartaz há uma mensagem po- autárquicas, co- um mau candidato”, afirma. Assim, a lítica para o eleitor. Mas esta nunca é mo defende Vi- eleições imagem que cada político quer pas- unívoca. Segundo Vidal Oliveira, pós- dal Oliveira, as sar nestas autárquicas não pode ser graduado em Political Management, ideologias algo criado só para dar ao público “há muitos traços de conhecimento en- o candidato que quer. Como defen- tre os eleitores, em que uns percebem “Uma boa estratégia de comunicação pode matar mais depressa um mau candidato.” di- eleger um candida- lia para fazer propaganda, não quer to tenta dar sem- dizer que as pessoas inconscien- pre um motivo ra- temente não adiram à estratégia”, cional para o voto: afirma o presidente da APAP. Embo- as propostas apre- ra seja proibido pelo Código da Pu- sentadas pelo can- blicidade utilizar crianças em anún- luem-se. “Cada vez mais os eleito- didato ou a obra feita. Vidal Oliveira cios que não sejam destinados a elas, res votam em pessoas e não em par- defende que o segredo da candidatu- Carrilho colocou o filho na sua cam- de João Carlos Oliveira “não se deve muito bem a mensagem, outros não fa- tidos”. Esta afirmação pode ser fa- ra de um político reside em estabele- panha. Como ressalva João Carlos mentir às pessoas. Não se pode dizer zem ideia do que o político quer dizer cilmente reconhecida nos cartazes: cer um compromisso com os eleitores. Correia “o Código da Publicidade foi que o Alberto João Jardim é um pri- e outros se calhar até a percebem ao quem aparece é o candidato, que se “O que cada político procura é o com- feito por políticos, por isso há uma mor de boa educação. Temos de es- contrário. É o grande problema da co- mostra como um líder, digno do voto mitment. Os eleitores depois de psico- alínea que afirma: «este código não tar conscientes dos atributos reais municação política”. de cada um. Excepção feita aos car- logicamente aderirem a um candidato, se aplica aos políticos».” • dos candidatos”. A melhor estratégia é sempre ditada pe- tazes da CDU, onde aparece a equipa, dificilmente votam noutro.” • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 POLÍTICA 3 • DANIEL DE OLIVEIRA EDITORIAL “A Propaganda exige reflexão” por Paulo Moura DANIEL DE OLIVEIRA FICOU CONHECIDO ATRAVÉS DA BLOGOSFERA. ADMITE QUE FAZ PROPAGANDA COM O QUE ES- Algo mudou no skyline? CREVE, MAS NÃO GOSTA QUE COLOQUEM EM CAUSA A SUA INDEPENDÊNCIA EM RELAÇÃO AO SEU PARTIDO. DETESTA D TUDO O QUE É MAINSTREAM E NÃO ENCONTRA NADA MAIS DESINTERESSANTE DO QUE JOSÉ SÓCRATES mas mais focado, mais assumido na sua epois de uma edição experimental, eis o primeiro número do Oitava Colina. Decerto ainda com muitas falhas, vocação. Mais à vontade a responder à pergunta: o que se vê da 8ª Colina? MARTA MESQUITA O NAZARET NASCIMENTO O skyline da cidade que nos interessa dirigente do Bloco de Esquerda, mentários é acusado de ter uma tole- é-nos cada vez mais nítido, mais fa- é uma das figuras mais conheci- rância relativa… miliar embora também mais estra- das na blogosfera política portugue- Não faço intróitos enormes a ama- nho. O que queremos mostrar é o per- sa. Juntamente com um grupo de ami- ciar o debate, que é uma coisa comum fil de uma metrópole simultaneamen- gos, Daniel Oliveira fundou o Barnabé, o em Portugal. Dizer que se tem muito te desmistificada e surpreendente. blog de esquerda mais visitado. Saiu do respeito ou muita estima, quer dizer… Para um jornal escrito por estudantes Barnabé por falta de tempo e por já não não os insulto, mas não gosto desse de jornalismo é vital provar que ain- se identificar com o conceito inicial do tipo de debate que se faz imenso em da há mundos por descobrir. E partir blog. A sua saída levou ao encerramen- Portugal. Insulto-os, mas com conteú- à sua descoberta. Não há outra coi- to do Barnabé, depois de algumas dis- do. Para mim, de Esquerda é quem se sa a fazer. Por isso temos dezenas de cussões ideológicas com outro membro define a partir da tradição da esquerda repórteres à solta pela cidade. Que do blog, Bruno Cardoso Reis. Conhecido nascida da Revolução Francesa. trouxeram eles desta vez? pelo seu combate político cerrado e pe- Quando saiu do Barnabé, o blog aca- O caso do Pica-Pau Amarelo, um bairro de Almada que transformou pobreza e las críticas agressivas, o cronista do Ex- bou. Era a sua escrita que caracteri- presso admite voltar de novo à blogosfe- zava o Barnabé? ra com o seu cunho provocador. Os blogs têm personalidade própria. Eu ganda exige reflexão. A propaganda sem ataco pessoas que me são leais. Mas, Porque é que o Barnabé acabou? achava que o blog estava descaracteri- reflexão é má, ineficaz, pelo menos em se for preciso atacar politicamente os de expressiva”, que viajou para Espanha Eu saí, não fechei o Barnabé. O Bar- zado. De repente, senti que o Barnabé meios minimamente politizados. meus melhores amigos, ataco. Não em busca da cura para uma doença e se transformou no primeiro homem-está- discriminação em ritmos hip-hop. A história do homem que inventou a “quietu- nabé não era propriedade minha. Eu e se estava a tornar no blog de esquerda A propaganda tenta sempre passar ataco o carácter deles. Sou contra o os fundadores do blog passámos a ter do José Sócrates. E não encontro nada uma mensagem… amiguismo. tua. Uma empresa que vende emoções cada vez menos disponibilidade. Até mais desinteressante do que defender o Discutir é uma actividade pública que Hoje pode-se ser político através de fortes na Serra de Sintra, com um jan- porque eu não me identificava com José Sócrates e não encontro nada mais nos ajuda. Quem não muda de opinião trabalho exclusivamente nos media? tar misterioso e um monge assassina- o blog, não tinha tempo para escre- desinteressante do que o próprio José é porque não é ver ou contribuir para que me identifi- Sócrates. Defender o José Sócrates é o confrontado. Sou casse com ele. Portanto, não era justo suicídio de qualquer blog que queira ter ultraliberal. estar a queixar-me, quando não tinha interesse. E depois, os moldes em que o que é que eu te- disponibilidade para mudar as coisas… debate se fazia eram desinteressantes, nho de opinar so- o blog é para dar prazer e eu já não re- eram mainstream e se há coisa que eu bre a maneira co- tirava dali nenhum prazer. não suporto é o mainstream. mo as pessoas vi- Mas as criticas do Bruno Cardoso O Barnabé não era um projecto político. Reis, que escrevia também no Barna- Não encontro nada mais desinteressan- bé, contribuíram para a sua saída? te do que um debate entre a esquerda ra- O Bruno Cardoso Reis não é a questão dical e a esquerda mainstream. mais relevante aqui. Não me incomoda o que os outros escrevem. O que fez a dife- “ Não encontro nada mais desinteressante do que o José Sócrates” Por “O que a política faz é criar condições para que as pessoas tenham a vida que queiram.” Não. do. Um actor que vai fazer teatro a casa O Daniel faz par- dos espectadores, depois os convida pa- te da direcção ra a sua casa, torna-se parte da sua vi- do Bloco, mas é da, deixa-lhes bilhetes a dizer “eu amo- mais te”. Doentes bipolares, que sofrem de conhecido pelo que escreve hipertrofia dos sentimentos e se trans- nos jornais e nos formam em poetas. E ainda histórias de vem a sua vida? Nesse aspecto, não sou blogs; faz propaganda política das suas claques de futebol, fado, blogues, praxe nem de esquerda nem de direita. A po- ideias e é mais conhecido por isso… académica, projecto Erasmus, a Revol- lítica não traz felicidade; o que a política O reconhecimento por parte das pes- ta dos Pasteis de Nata... E um manual de instruções para vender um candida- faz é tentar criar condições para que as soas de um determinado político não Acho que a Es- pessoas tenham a vida que queiram. lhe confere importância. to-champô. E entrevistas com os candi- querda mainstre- Apesar de todos poderem ter um blog, Mas a última intenção dos políticos datos autárquicos José Sá Fernandes e am está tão à de- não são sempre os mesmos blogs que é o voto… Maria José Nogueira Pinto (No núme- fensiva que não são lidos? Não será a blogosfera mais Não. ro anterior publicámos as de Carmona tem nada que ver uma maneira de os que já têm lugar no Não é? Rodrigues e Ruben de Carvalho. Ma- debate público serem ainda mais lidos? Não. Não é a única nem a última. O voto nuel Maria Carrilho achou que não deve- posts do Barnabé o discurso do Bagão Uma das razões para que a esquerda ra- Até num jantar é assim. É a vida. Se ago- é um meio. Posso dizer que tudo o que ria perder o seu precioso tempo com o Félix. Mas o blog tinha uma personalida- dical estivesse na blogosfera foi para ter ra for a um jantar e estiver lá o Pacheco faço na blogosfera não tem como ob- 8ª Colina. Obviamente subestimou-nos). de própria que aguentava bem estas dife- um debate com a nova direita, que, para Pereira e mais vinte pessoas, você vai ou- jectivo o voto. Durante a campanha elei- Mas para os estudantes de jornalismo renças. De repente comecei a ver que os mim, é bem mais interessante. É um de- vir com mais atenção o Pacheco Pereira. toral eu não escrevi. E podia ter escri- é também vital mostrar que há novas formas de comunicar o que se desco- rença foi ver nos com sectarismo. posts mais frequentes eram contra a es- bate que interessa entre duas alternativas. As ideias do Daniel não são ignoradas to. Para mim, o que eu faço nos media querda à esquerda do PS, eram a defen- Disse no último post que o Barnabé foi nem pela esquerda nem pela direita. tem uma função política que não é o vo- briu. A secção Dossier analisa as cor- der o culto mariano e a Irmã Lúcia, e co- criado com objectivos definidos e por É por ser combativo e agressivo na to, nem o Bloco. Ou seja, não estou nos rentes do jornalismo literário ou narra- mecei a sentir que aquilo já correspondia palavras suas: “Era propaganda, sim. defesa das suas posições? media pelo Bloco ou para o Bloco. A ra- tivo, entrevista alguns dos seus intér- pouco ao sítio onde eu queria estar. Se o Não tenho nada contra ela. Era contra- Sim, penso que sim. zão pela qual eu estou no partido é por- pretes em Portugal e no estrangeiro. Barnabé passasse a ter provocações po- propaganda.” Isto define a sua posição E ainda há pouco desse debate com- que sou mais eficaz se juntar a minha in- Na Oitava Colina, queremos mostrar que liticamente incorrectas de pessoas de di- em relação à propaganda? bativo em Portugal? tervenção política, tentando fazer as coi- é possível fazer jornalismo com uma es- reita, eu acho que, se calhar, ficava. Agora, A propaganda visa transmitir ideias. Eu Sim, há pouquíssimo. Toda a gente sas em grupo, do que estando sozinho. crita penetrante, rigorosa, criativa. Não a repetição dos lugares comuns: de que mostro claramente as minhas posições. tem alguma coisa a perder. Eu tam- Pensa voltar à blogosfera? podemos nem queremos substituir-nos a segurança social é insustentável e que Sou do Bloco e as pessoas percebem bém tenho, mas sou mais irresponsá- Sim. à imprensa diária e semanal, aos novos não há outro remédio e que se tem de fa- isso. Mas não escrevia no blog o que o vel. Há muito poucas coisas que me ir- Brevemente? jornais gratuitos ou às revistas caras. zer o choradinho… é tudo o que eu não su- Bloco pensa. Escrevia o que eu penso. ritam; uma das coisas que me irritam Sim. Mas queremos, e podemos, ter algo de porto politicamente, mesmo na esquerda. Mas porque é que se dá uma conota- mais é pôr em causa a minha indepen- Já tem alguma coisa pensada? novo, na forma e no conteúdo. O seu desentendimento com o Bruno ção negativa à propaganda? dência. Claro que não sou completa- Tenho várias possibilidades. O nosso skyline é único. Tem mais uma Cardoso Reis não pode mostrar into- A propaganda é uma forma eficaz de co- mente independente, porque sou di- E será com um grupo de pessoas? colina. Que se pode esperar de uma no- lerância política no que diz respeito à municarmos a um público mais ou me- rigente político. Há um limite que eu É isso que estou a ponderar. Mas, em va geração de jornalistas senão que nos definição de esquerda? Em alguns co- nos informado a nossa posição. A propa- não passo, que é o da lealdade. Eu não princípio, espero voltar em Outubro. • mostrem o jornalismo do futuro? • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 4 POLÍTICA • JOSÉ SÁ FERNANDES “Quero outro tipo de intervenção na cidade” NAZARET NASCIMENTO a certeza de que quando se taxar a en- liária. Como pretende geri-lo com os trada na cidade o problema dos trans- lobbies que já existem em termos da portes vai estar resolvido. construção e das imobiliárias, e ade- Mas, concretamente, como é que vai quá-lo à implantação do Plano Verde, resolver o problema dos transpor- de Ribeiro Telles? tes públicos? Não é preciso fazer grandes altera- Se houver menos carros em Lisboa, ções ao PDM para implantar o Pla- teremos necessariamente melhores no Verde. Há uma estrutura ecoló- transportes públicos, porque eles an- gica definida no PDM. Para se gerir dam muito mais rápido. bem a cidade, é preciso perceber Mas a integração entre os transpor- que ela é gente mas também é um tes também não funciona como devia. espaço físico. Para se delinear uma Tem que funcionar bem. Se eu ti- cidade é preciso contar com os edi- ver menos carros a andar na cidade, fícios, é importante não haver bair- eu facilito os transportes públicos. A ros periféricos, haver centralida- maneira de os financiar é através do des em vários sítios. Portanto, se dinheiro que se ganha com estaciona- houver planeamento e se for dito mento pago e portagens. Em Londres aos construtores que existem re- demora-se dez minutos para ir das gras a ser respeitadas… Eu não me zonas limítrofes ao centro. Há auto- importo que se construa, não sou carros de cinco em cinco minutos. E contra os construtores. É neces- há comboio metropolitano...Isso por- sário é que as regras estejam bem que a circulação se torna mais fácil definidas, para não andarem aqui a colectivo. Se se continuar a defender dentro da cidade. fingir que uns as conhecem e ou- os interesses individuais, daqui a uns Mas os transportes precisam de estar in- tros não. Com as regras bem defini- QUÊS QUER COMBATER O TRÂNSITO, REABILITAR A VIDA NA tempos é impossível trazer os carros tegrados entre si. Há problemas estrutu- das eliminam-se os lobbies e a pro- para a cidade, porque não andam, não rais graves que o impedem. É o caso do miscuidade entre Câmaras e cons- CIDADE E DEFENDER OS INTERESSES DOS LISBOETAS. SÁ cabem cá dentro… Metro. É neces- Como se controlaria o estacionamento? sário FERNANDES ASSUME-SE SOBRETUDO COMO CIDADÃO INTE- Com uma boa fiscalização. 70% várias linhas pa- das pessoas que vêm da ponte 25 ra nos deslocar- O ADVOGADO CONHECIDO POR EMBARGAR O TÚNEL DO MAR- RESSADO, E, POR ISSO, PARTE PARA A LUTA POLÍTICA. ISABEL ALVES E LAÍS CASTRO U percorrer de Abril não pagam estacionamen- mos entre zonas to. Se pagassem não haveria tan- geograficamente tos carros. Mas não há aqui tam- próximas. bém alguma injustiça relativamente Porque não es- trutores. “Para se gerir bem a cidade, é preciso perceber que ela é gente mas também é um espaço físico”. pensadas. Como é que se tornam as regras mais claras? Com planos bem feitos, que não admitam segun- a quem vive fora de Lisboa? É claro tão que há. Então qual é a alternativa? Por exemplo, a linha até à estação ções. No fundo, é marcar no território das interpreta- ma hora e quarenta minutos de aqui que está o problema. As pesso- Transportes públicos. Essas pesso- do Oriente é uma linha caríssima. Um os sítios onde se pode ou não cons- espera no escritório da Rua do as têm transportes públicos em Lis- as devem poder utilizar os transpor- eléctrico rápido resolvia o problema truir. Por exemplo, dizer que num de- Crucifixo. A assistente passa e em- boa? O dinheiro do estacionamento tes públicos para se deslocarem aos com muito menos custos e muito mais terminado sítio não pode haver edifí- baraçada tenta retractar-se por um tem de ser canalizado para melho- centros urbanos. eficácia e ia integrar na cidade toda a cios mais altos do que outros, ou que atraso que não é seu: “peço imen- rar os transportes públicos. Lisboa O que é preciso para melhorar os zona do vale de Chelas e arredores. O não pode haver edifícios. As nossas sa desculpa, mas o Dr. Sá Fernan- não comporta mais carros. Isso é transportes públicos? que é que se fez ali? Estradas atrás de torres têm deser as sete colinas. des está preso no trânsito”. Ironia pa- uma evidência. Dinheiro. O di- estradas e viadutos, criando guetos Não haver edifícios, por exemplo, na ra quem aposta nos transportes pú- Tem de zona ribeirinha do Tejo? blicos ou mais uma motivação? Na uma medida ob- conversa de uma hora, num escritó- jectiva sobre es- haver rio submerso em pilhas de processos, ta matéria. Co- o candidato a presidente da Câmara mo é que isso “Quem tem de decidir a localização das estações de Metro é a Câmara de Lisboa. Não os interesses imobiliários”. nheiro vem de que agora dificilmente se integram. uma boa fiscali- Mas isso tem de ser feito. Não haver edifícios na zona ribeirinha zação do estacio- É por isso que fala em reclamar a mu- do Tejo é bom, junta as pessoas ao rio. namento e, pro- nicipalização da Carris e do Metro? O que não é bom é alterarmos a pers- vavelmente, de É nesse sentido. Quem tem de deci- pectiva da cidade com edifícios altos, um sistema de dir a localização das estações de Me- porque isso altera a sua geografia. To- portagens. Isso tro é a Câmara de Lisboa. Não os in- das as cidades têm as suas caracterís- era um assunto de Lisboa apresentou as suas ideias e se faz? Há dois deixou claro que o trânsito é um dos caminhos. Um é seus cavalos de batalha. controlar muito teresses imobiliários. Veja-se o Me- ticas. Se isso não for respeitado, Lis- Assume que condicionar o trânsito na bem o estacionamento. Outro é ofe- para começar a estudar já. tro até à Falagueira. Agora vai para boa perde a sua alma. cidade é uma prioridade. Que medi- recer transportes públicos. Mas taxar a entrada na cidade antes lá, porque está previsto um empre- Na sua opinião, das obras feitas por das pretende tomar? Já pensou que pode ser do interesse de resolver o problema dos transpor- endimento imobiliário naquela zo- esta governação autárquica, quais Para já, regular o estacionamen- dos cidadãos utilizar o carro e não os tes públicos será justo? Não será obri- na. Como aconteceu com a Expo. Fez- têm descaracterizado a cidade? to. 70% das pessoas que vivem fo- transportes? gar as pessoas a passar demasiado se a linha do Oriente, simplesmente O que existe é uma inércia desta Câ- ra de Lisboa e estacionam na cida- Mas quais cidadãos? tempo nos transportes quando de car- por causa da Expo. Não foi para ser- mara para qualquer questão que te- de não pagam estacionamento. Se Os de Lisboa e os que vêm de fora... ro fazem o percurso mais depressa? vir a cidade. nha que ver com a cidade. Mas o pe- isso fosse bem controlado as pesso- Lisboa não comporta mais carros. É O que eu estou a dizer é que esta deve Defende um Plano Director Munici- rigo não está na obra que eles es- as pensavam na opção transportes. É impossível! Existe aqui um interesse ser uma medida simultânea. Pode ter pal (PDM) livre da especulação imobi- tão a fazer. Está nos planos que eles 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 POLÍTICA “Sou uma pessoa desligada de interesses” 5 sar, procurar, participar. Acho que dade. Neste últimos quatro anos é muito positivo. O negativo é faze- têm-se aprovado planos que são rem-se obras mal feitas, mal conce- terríveis para Lisboa. Pode ser o bidas, sem preocupação com os ci- fim da sua identidade e portanto eu dadãos, sem se fazerem estudos. A acho que tem de haver uma inter- minha acção é positiva. venção com regras e com a partici- so pode ser uma mais-valia? Um dos apoios que tem é o do Bloco pação das pessoas. As pessoas es- Que percepção tem da imagem que os Bloco. Acho que isso já se conseguiu media estão a dar da sua candidatura? demonstrar. Também as linhas pro- Penso que é importante as pesso- de Esquerda (BE). Isso não pode pre- tão cansadas da forma como a cida- Já ninguém duvida de que seja mes- gramáticas não têm qualquer incoe- as perceberem que se trata de uma judicar o carácter de independência de tem sido gerida pela autarquia, estão cansadas de grandes mega- mo uma candidatura independente. rência com a minha actividade cívi- pessoa desligada de interesses. da sua candidatura? Isso tem ficado claro? ca passada nem com as ideias do BE As pessoas têm essa noção? Não. A minha candidatura é indepen- lomanias. Ou é o elevador da Bai- Pode, por vezes, não ser tão claro, para a política municipal. Espero que sim, porque corresponde dente e tem um programa. Portanto, xa ao Castelo, ou é o Parque Mayer… mas parece-me natural. Afinal sou A sua candidatura pode ser conside- à verdade. Acho que as pessoas es- o que importa aqui é o programa. Se o Ao invés de tratarem de coisas sim- cabeça de lista do BE. Não rejeito is- rada pioneira nos moldes em que se tão cansadas das promessas e da- BE aceita esse programa, óptimo. ples: dar um centro de saúde em so. É uma candidatura independente, deu. Será a primeira vez que temos queles que dizem que fazem e não Mas fica necessariamente colado a Marvila às pessoas, ou lares de con- mas cuja comissão política tem mais um cidadão que primeiro intervém e fazem nada. Eu acho que já dei pro- um partido. valescença para os idosos, fazer os independentes do que apoiantes do só depois se candidata. Acha que is- vas de que faço. • Ficamos ligados a um programa. parques para as pessoas poderem Mas quem repare na sua intervenção passear à vontade. cívica e veja a sua candidatura como Pode considerar-se que Gonçalo Ri- querem aprovar ou que têm tentado mecanismos para o fazer. Um de- Vou suspender isso tudo. independente, ao vê-lo agora ligado a beiro Telles é o pai da sua candidatura aprovar. Por exemplo, o caso de Al- les é obrigar aqueles que têm os fo- Como é que volta atrás em compro- um partido, poderá mudar a percep- e do seu pensamento cívico e político? cântara, onde está a ser idealizada gos devolutos a pagarem mais con- missos já assumidos? ção que tem de si. Gonçalo Ribeiro Telles é o homem do uma edificação gigantesca. Veja-se tribuição do que aqueles que têm os Para já não sei que compromissos Os partidos fazem parte da vida da ci- Plano Verde e é quem, seguramente, o caso da Feira Popular e do Parque fogos ocupados. Porque não há o di- foram assumidos, mas era o que dade. Não nos podemos esquecer dis- mais tem lutado por Lisboa. Se se ti- Mayer. Nada disto está ainda a ser reito de haver pessoas com 50 e 100 faltava não se poder voltar atrás so e não podemos dizer que não que- vessem feito metade das coisas que executado. Mas o frenesim destes fogos devolutos apenas a pensar na em decisões que são terríveis para remos os partidos. E neste caso a ele tem dito ao longo destes 60 anos, quatro anos tem sido atirarem-nos especulação imobiliária. Lisboa. Isso é uma ideia errada que atitude do BE foi uma atitude muito Lisboa estava diferentíssima. Não se constantemente com ideias disper- A Câmara tem verbas para o fazer? as pessoas têm. Se o acordo que foi democrática: ter aceite um programa tinha feito os disparates que já se fi- sas para a cidade, ideias que incomo- Através de um mecanismo financeiro feito é mau para a cidade, tem de de um candidato independente... zeram, como construções ao pé das dam as pessoas e contrárias às que com a banca. Não é deitar dinheiro fo- ser anulado. Foi o Bloco que aceitou o seu progra- linhas de água. Tínhamos zonas ver- defendo. Devem ser colocadas aos ci- ra. É adquirir um imóvel. Vale dinheiro. Acha que está associado a um rótulo dadãos alternativas que lhes permi- E põe-se no mercado. de contestatário? tam escolher. Impor às pessoas de- Mas com a actual situação da Câma- Eu acho que é um contestatário no terminado plano não é justo. A Ad- ra será possível levar tudo isso para a bom sentido, mas cada pessoa pen- ministração para decidir tem de ter frente? A Câmara está bastante endi- sa o que quiser. Sou contestatário poder de escolha. A cidadania é fei- vidada e com as restrições de crédito das coisas mal feitas na cidade. Con- ta de escolhas. aos municípios... testo quando as coisas não se fazem. No seu programa fala do problema Mas não se trata de crédito, trata-se Tenho vontade de fazer imensas coi- dos guetos e da necessidade de parar de operações financeiras que a Câ- sas em Lisboa. a construção dos bairros sociais. Que mara tem de fazer. Agora tem é de in- O rótulo de contestatário não é nega- Não há cedências, há um programa dade, uma melhor ligação aos outros solução defende? tervir, isso é que é a boa gestão mu- tivo para um candidato independente com as suas linhas programáticas que concelhos... “A única maneira de gerir bem a cidade é as pessoas poderem participar nela, ao nível da rua. Não tenho nenhuma máquina nem interesse por trás, e a diferença é essa: eu sou totalmente livre”. ma ou teve de fazer cedências? des, hortas, mercados dentro da ci- Tem de haver sempre integração. nicipal. Vamos continuar a deixar que que tem de reunir o maior número de são o que são. Disse há pouco que é importante a Esses bairros têm de vir para den- se construa indefinidamente enquan- apoios possível? A ideia da candidatura foi sua ou do participação das pessoas na gestão tro da cidade. Existem 70.000 fogos to existem prédios devolutos no cen- As pessoas procuram nessa minha grupo de pessoas que o apoia? da cidade. O que é que pode ser feito devolutos em Lisboa, espalhados por tro da cidade? maneira de ser uma forma de des- Do grupo de pessoas que me apoia. para motivar a participação? várias zonas. E isso significa que po- O que vai fazer com projectos já apro- valorizar a minha candidatura, mas Era algo em que eu nem sequer Chamá-las. Dar-lhes informação. Se demos integrar mais de duzentas vados que acha que não servem a ci- eu acho que é uma forma muito po- pensava. O que eu senti é que é pre- eu puser um placard na rua ou um e cinquenta mil pessoas dentro da dade? Se ganhar… sitiva de exercer a cidadania. Avi- ciso outro tipo de intervenção na ci- capital. Esta tem de ser uma aposta, parece-me evidente. Têm de se NAZARET NASCIMENTO folheto na caixa de correio a dizer: “A Junta de Freguesia está a pensar mudar os ecopontos da rua e temos aproveitar estes fogos devolutos pa- três alternativas. Os senhores estão ra chamar os lisboetas, e não só, pa- interessados em escolher alguma ra o centro da cidade. das opções?” Há pessoas que parti- Como se iria atrair jovens para a cidade? cipam, há outras não, mas ao menos Esse é um dos objectivos da EPUL, que há uma proximidade na gestão. Is- dá preferência de venda aos jovens. so é exponencial. O problema é que Jovens? Foram assim tantos? A EPUL as pessoas não acreditam que po- está a servir de intermediário imobiliá- dem participar. Há sempre tendên- rio. Veja-se o negócio que fez com a ur- cia para pensarem: “bem, disso tra- banização do Benfica. Gastou 6 milhões tam eles”. Não pode ser assim. Isto de contos para comprar uns terrenos também é uma maneira de respon- que eram da Câmara. E foi algum jo- sabilizar a cidadania. vem viver para lá? Está lá algum estu- Porque é que acha que a sua candida- dante que queira ir para a Universidade tura faz a diferença, dentro do quadro e tenha vindo viver para Lisboa? dos outros candidatos à CML? Mas então como se chamariam jovens Para começar, porque é uma sequên- para vir viver para a cidade? cia normal. Há dez anos que luto pe- Existem devolutos. las coisas. É a sequência lógica de dez Existem várias possibilidades finan- 70.000 fogos anos de actividade cívica, e a diferença ceiras, nomeadamente através da é exactamente essa. Eu acredito mes- banca. A Câmara deve exigir que es- mo na participação das pessoas e na ses fogos sejam postos no mercado. gestão da cidade. A única maneira de Portanto, ou os senhorios os põem gerir bem a cidade é as pessoas po- ou põe a Câmara. derem participar nela, ao nível da rua. E é a Câmara que paga? Não tenho nenhuma máquina nem in- Com certeza. Então isto não é do in- teresse por trás, e a diferença é essa: teresse da cidade? Existem vários eu sou totalmente livre. • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 6 POLÍTICA VERA MOUTINHO VINTE ANOS DEPOIS, UMA MULHER VOLTA A ASSUMIR O DESEJO DE COMANDAR OS DESTINOS DE LISBOA. MARIA JOSÉ últimas. Nós temos freguesias de várias dimensões e sabemos que as mais NOGUEIRA PINTO É A CANDIDATA DO CDS-PP AO GOVERNO DA CIDADE. NUMA ATITUDE QUE DIZ SER FEMININA, MAS pequenas são aquelas que concentram NÃO FEMINISTA, DÁ A CARA PELA DIREITA E TENTA CONQUISTAR O SEU ESPAÇO NA CAPITAL. uma população mais envelhecida. Não mais património histórico, mas que têm queremos extinguir nenhuma freguesia, mas podemos agrupá-las por se- • MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO “Lisboa podia ser a capital da Península Ibérica” e estamos sempre a pensar em cons- melhança e através destes bairros se- truir, quando o esforço financeiro devia ria possível um tratamento muito mais ser concentrado na reabilitação. A habi- rápido de questões que dizem respeito tação devia ser construída nas zonas re- àquele agrupamento de freguesias. abilitadas, porque actualmente Lisboa é A criação destas instâncias irá retirar uma cidade que não se integra. A cidade algum poder às juntas de freguesia? está muito fragmentada em termos de Pelo contrário. Com a criação dos Bairros como a população está localizada. Administrativos iremos dar mais compe- Mas a expressão “arrumar a casa” tências às juntas de freguesia. Quem vai não se refere também à arrumação ter menos poderes é a Câmara. Por um da Câmara de Lisboa? lado, vai haver um reforço do poder das Esse é o outro sentido de “casa”. A “ca- juntas, que poderão passar a tratar de sa – câmara” existe para servir a cida- certos assuntos com muito mais efici- de e os lisboetas, mas tornou-se numa ência do que a Câmara. Por outro lado, máquina buro- crática e pouco amiga da população. Temos de inverter esta filosofia de interven- CATARINA SANTANA ção, lembrando a E IRINA MELO A “Há muita trapalhice nesta cidade, e é como nas nossas casas, ou se limpa ou não se limpa”. competência de muitas pessoas que lá ao agruparmos freguesias, poderemos resolver problemas transversais com uma solução concertada entre elas. Qual o futuro das empresas munici- s provas dadas no campo da soli- didata promete arrumar Lisboa, ou, atenção. Se investíssemos nessa ar- trabalham e que estamos ali ao serviço pais neste realinhamento da cidade? dariedade são a sua bandeira. Ma- nas suas palavras, “alindar a cidade”. rumação já teríamos efeitos visíveis. do cidadão. Tempo é dinheiro portanto, As empresas municipais foram criadas ria José Nogueira Pinto apresenta-se Afirmou que era necessário “arrumar a São coisas simples que passam por tudo o que seja mais atrasos tem um com objectivos que até são razoáveis, ou à cidade e recorre ao passado na San- casa”. Em que é que consiste esta ideia? “alindar” a cidade. A desarrumação de grande impacte negativo na economia seja, para a gestão de actividades que ta Casa da Misericórdia e na Materni- Entendo a “casa” como Lisboa, e a ci- Lisboa torna-a mais hostil. da cidade e no quotidiano das pessoas. têm de ser geridas empresarialmente, e dade Alfredo da Costa para lançar no- dade não é mais do que uma grande Por outro lado, temos neste conceito Os Bairros Administrativos vão no para as quais o quadro jurídico da Câma- vos projectos. Num piscar de olhos à casa de família – ou pelo menos deve- de arrumação a ideia de que, em vez sentido dessa desburocratização? ra era desadequado. E o que aconteceu a classe média, rejeita a habitação de ria ser – que, neste caso, está em de- de construir mais coisas novas, devía- Vão. Os Bairros Administrativos são essas empresas? Criaram-se as empre- luxo em nomedo arrendamento e as- clínio, desleixada, por pequenas coi- mos cuidar do que já temos. Metade da uma instância intermédia entre a Câ- sas e ficaram as competências, duplican- segura novas infra-estruturas. A can- sas que não custam dinheiro, mas cidade está a degradar-se a olhos vistos mara e as freguesias, agrupando estas do tudo o que a Câmara já tinha sem fa- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 7 POLÍTICA zer distinção de serviços. Nós queremos da Península Ibérica, visto ter muito me- fazer uma avaliação dessas empresas. lhores condições do que Madrid. Pode- Penso que algumas terão de ser fundi- ria ser a capital de negócio, das grandes das, outras, que se mantenham, acarre- multinacionais, mas teria de criar atrac- No seu discurso, frisa sempre muito to mais imediata do que funciona mal, melhor que a dos homens. A minha tarão a transferência dos serviços da Câ- tivos. No entanto, não podemos pensar a questão das mulheres. O facto de porque temos uma vida mais diversifi- mais-valia é achar que tenho com- mara correspondentes, e outras, prova- em repovoar Lisboa com os ricos. ser mulher dá-lhe uma perspectiva cada. Há muita trapalhice nesta cidade, petência igual, ou mesmo superior a velmente, terão de ser extintas. De que forma Lisboa tem mais condi- diferente da dos outros candidatos? e é como nas nossas casas: ou se limpa alguns deles, se não, não me metia A EPUL entrará no lote da reestru- ções do que Madrid para ser a capital Eu não sou feminista. Mas há uma per- ou não se limpa, ou se cose o que está nesta luta, mas acredito que o meu turação? da Península? cepção feminina da vida diferente da roto ou não se cose. olhar feminino seja importante. Des- “A minha mais-valia não é ser mulher, é a minha cabeça” A EPUL é um caso paradigmático de Lisboa tem água, um bom clima e, ape- masculina, que, no âmbito autárquico, É essa a sua mais-valia para o go- de sempre foi a mulher que geriu a uma empresa municipal que cumpriu sar de tudo, é uma cidade segura. Claro adquire grande importância. Nós da- verno da cidade? despensa, e não há uma grande dife- um papel importantíssimo e que de- que seria necessário melhorar a quali- mos mais importância ao detalhe e ao A minha mais-valia não é ser mulher, rença entre as finanças da Câmara e quotidiano, temos uma percepção mui- é a minha cabeça, que é tão boa ou as despesas da casa. • pois o perverteu. Era uma empresa dade dos serviços. Mas eu acredito mui- que tinha a função de corrigir o merca- to nas dinâmicas e se quiséssemos ter do imobiliário e agora compete no mer- essa meta iria gerar-se uma dinâmica cado imobiliário com as imobiliárias. É para melhorar as infra-estruturas. ces muito bem feitos, é muito complexo, vos para as pessoas. Talvez aquela loca- desperdício que não será inferior a 20% e uma situação perfeitamente absurda! E como é que vai atrair a classe média são condições que temos de criar. lização não fosse a melhor, mas o que é que poderá ser rapidamente eliminada. A A habitação tem uma função social e a para que esta se fixe na cidade? É contra a taxa de entrada na cidade? certo é que ficámos sem feira. E vamos despesa tem de ser racionalizada e nor- Câmara tem a obrigação de disciplinar Considerando que a classe média se des- Sou, porque ainda não criámos alterna- ter de fazê-la rapidamente. malmente estes dois caminhos têm re- o mercado imobiliário, através da EPUL, loca todos os dias de fora para dentro da tiva. Para quem tem dois filhos e tem de E o Parque Mayer? sultados relativamente rápidos. No lado que tem de voltar ao que era antes, e da cidade, perdendo horas no trânsito, eu vir trabalhar para Lisboa e pôr as crian- É um disparate absoluto. Foi uma tei- da receita, há muita receita mal cobrada criação de habitação para a classe média, acredito que, para os agregados familia- ças na creche é muito complicado e caro mosia do Dr. Santana Lopes, porque, na ou por cobrar e há financiamentos com- o que me parece ser a única forma de re- res, residir em Lisboa constituísse uma vir de transporte público. Ora, a taxa não realidade, o teatro de revista teve a sua plementares que a Câmara podia ir bus- vitalizar a cidade. melhoria de vida enormíssima. Iria per- distingue estas situações, é uma medi- época. Nós temos uma crise de especta- car com bons projectos e não vai, porque mitir mais tem- da cega. Já criadas alternativas ao uso dores em geral, não fomentámos a cria- não tem agilidade. Naturalmente não se po de convivência do automóvel, é possível introduzir a ta- ção de público e temos muita infra-es- pode fazer tudo de uma assentada, mas e lazer. Temos de xa como uma medida dissuasora do uso trutura (o D. Maria, o S. Carlos, o CCB e é por isso que é preciso estabelecer prio- atrair as pesso- egoísta e pouco cívico do automóvel. mais o que a Câmara tem – o S. Luís, o S. ridades, e isso devia ser dito na campanha honestamente às pessoas. E, actualmente, vemos muito pouco esse tipo de habitação em Lisboa... Vemos mui- to pouco. Lisboa está desertifica- da. Se virmos os “Há uma percepção feminina da vida diferente da masculina, que, no âmbito autárquico, adquire grande importância”. Censos de 2001, as para uma vi- É seu objectivo restringir o trânsito Jorge, o Maria Matos). Não precisamos da mais humana, em zonas da cidade, à semelhança do de mais hardware cultural, mas sim de Nestas autárquicas, o que é para si através da habi- que se fez no Bairro Alto? software cultural. Podemos deixar que uma vitória? tação de arrenda- Sim, é importante prosseguir esta os privados façam esse circuito. Para mim é uma carta muito fecha- mento. Nós temos restrição nas zonas históricas. Mas é O Parque Mayer não é para guardar? da, porque há cinco candidatos e o meu partido é pequeno, mas, por outro lado, a de ajudar as pes- claro que, para que ela não tenha um Assim como está, acho que não. Hoje há temos a classe alta, gente muito enve- soas a montar a sua própria operação efeito catastrófico no comércio, não soluções arquitectónicas que conser- maneira como tenho estado nesta candi- lhecida e ainda uma percentagem de financeira, calculando uma renda com- podemos deixar de ter uma visão sis- vam as fachadas. O Condes, que agora datura, pelo menos pelos fazedores de 50,1% - que mete medo! - de gente aci- patível com os rendimentos do agrega- témica, de ver tudo ao mesmo tempo, é o Hard Rock, não está melhor assim opinião, que são de esquerda e insuspei- ma dos 15 anos que não tem nenhuma do. Tal como se faz lá fora, fixaríamos a e restringirmos sem mais. do que quando era um espaço decrépi- tos, tem sido bem recebida. actividade de trabalho nem rentabilida- renda em um terço dos seus rendimen- Mas o Túnel do Marquês não vai contra to, malcheiroso e desertificado? A vida é Está disponível para uma coligação de económica e vive de pensões e refor- tos. Depois, temos de preparar estes es- o sentido dessas medidas? um contínuo. pós-eleitoral com Carmona Rodri- mas ou à custa das famílias. Não pode- paços com os devidos equipamentos, co- Sempre achei que o túnel era facilitador A manutenção mos ter uma cidade assim: que exclui! mo creches, serviços, comércio, ilumina- da entrada de mais carros e que não in- de equipamen- Os velhos estão cada vez mais isolados e ção pública, segurança… teressava nada aos lisboetas. Agora tem tos e a criação de estas pessoas foram deslocadas e con- Mas o problema da mobilidade entre de ser acabado, porque custou muito di- outros projectos centradas num sítio sem se inter-rela- Lisboa e a periferia mantém-se… nheiro aos contribuintes, mas eu sem- tem os seus cus- cionarem com outro tipo de realidades. Só 35% dos 500 mil activos residem em pre disse que não era prioritário. tos e ainda há as “Eu talvez seja o único candidato que tem experiência de chegar a instituições com buracos financeiros e de as deixar com muito dinheiro”. gues, mesmo após tê-lo criticado? Não falando em nenhum parti- do em particu- Não se consegue cortar com a reprodu- Lisboa. Não se consegue resolver isso Este foi um dos temas quentes das au- dívidas da Câma- ção geracional da pobreza, e depois te- do pé para a mão, pois trazer as pesso- tárquicas em Lisboa. Outros dois foram ra. Como pensa mos os ricos no Chiado, contra os quais as para Lisboa e impedi-las de sair vai a Feira Popular e o Parque Mayer. Qual abatê-las? não tenho nada, mas que não revitali- demorar tempo, bem como todo o pa- o destino destes dois equipamentos? Como sempre fiz. zam a cidade. cote de medidas relativas à mobilidade. Em relação à Feira Popular, acho que Eu talvez seja o único candidato que tem A atracção das classes mais abasta- O prolongamento das linhas de metro, Lisboa tem poucos divertimentos popu- experiência de chegar a instituições com Se for para fazer durante quatro anos das não poderia ser um estímulo para o acabamento da CRIL e do Eixo Norte- lares. Se nós nos referimos com pena e buracos financeiros e as deixar com mui- um programa de revitalização da ci- a economia da cidade? Sul, que iria permitir o afastamento de censura ao facto de toda a gente passar to dinheiro. E a receita é muito simples. dade, nós somos um partido que nun- Sou muito a favor da economia da cidade, muito tráfego do interior da cidade, e o os fins-de-semana em centros comer- Do lado da despesa, temos de agarrar os ca se furtou a assegurar governabili- de motivar os agentes económicos, por- pacote de transportes alternativos, que, ciais, não podemos eliminar os poucos recursos humanos e os aprovisionamen- dade, mas não estou neste momento que acho que Lisboa podia ser a capital por envolver estacionamentos e interfa- divertimentos que possam ser atracti- tos, porque há sempre uma margem de a pensar nas coligações. • ESPÍRITO ACADÉMICO lar, acho Lisboa de que precisa governabi- lidade, precisa de estabilidade para ser governada. por Edgar Silvestre 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 8 SOCIEDADE D.G.B fala pa guetto cu sentido/Cusa ki • BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO sta passa é cusa ki en sata fala/En tem A luta por uma voz liberdade de esprecon por isso en ka sata bem cala. Aqui todos têm histórias, insólitas, aparentemente irreais, longe de políticas e instâncias superiores. Sobretudo, não parecem fazer parte do mesmo mundo em que a Europa se bate por maior unidade, em que houve uma guerra no Ira- NAS RUAS DO BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO, EM ALMADA, A POBREZA E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL AFOGAM E SUFOCAM. COR- que. Aqui a guerra vive-se todos os dias na rua. Usando a frase mais recorren- TAM AS PERNAS E OS SONHOS. HÁ QUALQUER COISA QUE QUER SAIR DO PEITO E SEM CONSEGUIR SE TRANSFORMA EM RAIVA. AO te: é a lei da sobrevivência. “Basta dizer que sou do Monte de Caparica pa- RITMO RÁPIDO DO BATER DO CORAÇÃO, JUNTOU-SE UM INSTRUMENTAL E SOLTOU-SE A ALMA. RIMOU-SE A REVOLTA. E O SOM ra já não me darem trabalho” diz o Fox, confessando que actualmente está de- QUE SE OUVIU FOI O DO HIP-HOP. sempregado. Dos seus 26 anos, mais de 8 foram passados atrás das grades. “Eles começam a chamar crimi- ANA BRASIL D noso, criminoso, criminoso. Uma pes- ebaixo de um arco-íris, os bair- só ele ouvisse. Sobem e descem no ar ria. E assim começam a interessar-se”. outros, cada um a tentar superar o ou- soa está sempre a levar com isso até ros sociais tomaram a paisagem quando se entusiasma com a conversa. Dentro do Espaço Jovem, um recinto tro. Quem está ao meu lado não tem na- que um dia acorda e pensa: ‘eu sou um do Monte de Caparica. Há o Bairro Cor- As mãos estão muitas vezes fechadas tutelado pela Santa Casa da Misericór- da a ver comigo mas tem tudo a ver co- criminoso’. Já estive preso duas vezes. de-rosa, há o Bairro Branco e o Bairro em concha. Quando fala de hip-hop o dia de Almada, a MTV passa os mais migo. Nós somos Wu Tang Clan. Somos A primeira vez foi por agressão e a se- Amarelo. A pobreza estende-se impo- efeito é garantido. As palavras saem-lhe recentes videoclips, dando uma músi- todos independentes mas ao mesmo gunda por assalto à mão armada. Acu- nente pelo espaço que ocupa. cantadas mas muitas vezes incorrectas. ca de fundo aos rapazes que jogam bi- tempo somos um só”. Com esta refe- saram-me de coisas que tinham a ver O Bairro do Pica-Pau, o Amarelo no É que o Zé não domina muito bem o Por- lhar e aos grupos de raparigas que os rência aos WuTangClan, um dos gru- com aquilo que eu fazia no meu dia-a- colorido mapa da pobreza no conce- tuguês. Como a maior parte dos rapazes observam sussurrando segredos atre- pos de hip-hop mais famosos de sem- dia, coisas mínimas que qualquer garo- lho de Almada, hoje consta na lista dos daqui, as suas origens são africanas. Ca- vidos aos ouvidos das amigas e soltan- pre, Fox mostra o seu gosto pelo estilo to de bairro faz, como entrar em super- bairros de risco. Zonas de pobreza, na bo-verdianas. “Eu quero fazer do criou- do risinhos abafados. Na maior parte dos anos 90. Nessa altura os EUA eram mercados para roubar, apanhar pes- mira da polícia, que lá é frequente- lo um língua internacional!” diz, alto, e do tempo ninguém liga muito à tele- um laboratório de experiências onde soas na rua e tirar-lhes os trocos”. mente chamada para resolver situa- ri-se muito. “Eu só canto crioulo. Come- visão. Às ima- através de beats ções complexas de criminalidade. Se- cei a cantar a ouvir o hip-hop americano gens de podero- inovadores e le- guindo a terminologia americana, é e não percebia nada de inglês. Era o flow sos negros que um gueto. Em Portugal chamam-lhe e o beat! Vibrava com Tupac, Snoop Dog, ostentam “pontos quentes”. Diferentes palavras Dr.Dre. Não entendia nada mas cantava ro e mulheres para explicar que aqui vivem juntas to- à minha maneira. Agarrava o flow e co- em das as minorias problemáticas. meçava a escrever. Nunca me interes- a passar na te- Pelas ruas, crianças e velhos passam sei pelo inglês. Se o percebesse se ca- levisão o espa- o tempo como podem. Idosas pesadas lhar tinha imitado as coisas deles e não ço contrapõem o arrastam-se devagar pelo terreno que escrevia o que eu canto agora. Quero fa- seu próprio mo- sobe, vestidas de preto. O Pica-Pau zer uma cena minha!” Criar um estilo delo. “Aquilo é o estende-se como uma jibóia enrolada próprio passou pela inclusão do crioulo, Bling-bling sobre si mesma. O seu amarelo é sujo, a primeira língua que conheceu. Mais do EUA. Se formos gasto, mas a sua alma sente-se bem. que isso, a língua dos que como ele vi- traduzir a letra É o som das ruas que sai de todos os vem em bairros sociais, os guetos que para português não é nada. Existe pa- das rimas de Tupac Shakur, um cantor cantos. Dos carros que passam, das o Pica-Pau representa tão bem. É sobre ra vender. Isso não é hip-hop. As nos- que morreu no seguimento de um tiro- janelas mais altas e das vozes das eles que escreve e é para eles que can- sas letras falam da realidade na stre- teio com um grupo de rap rival. “Somos crianças que já querem ser homens ta. “Se tivesse vindo de um sítio diferen- et, falam do que é que se passa aqui seguidores do estilo Pac (Tupac). Nós no “É necessário tugas aprendi ta ama/ te se calhar cantava fado. Mas o hip-hop porque muita gente julga sem saber”, Monte de Caparica somos real! Canta- vem mais do bair- explica o ZédaGuida. Um grande gra- mos de gueto para guetos. Não canta- ro. É a revolta”. ffiti ocupa a parede mais ampla e li- mos na cidade. Queremos é cantar pa- Direcção di mic é vre de móveis. Lá um MC esconde as ra o povo, para a máfia. Máfia não são para guetto/D.G.B mãos nos bolsos de umas calças lar- os bandidos, máfia é o povo dos guetos”. representa tudo gas enquanto por baixo do boné lan- Bishop é o membro da crew que faltava. preto/Guetto ou ça um olhar descontente sobre toda a Chegou atrasado mas ainda veio a tem- street/ street ou Margem Sul, abarcando uma panorâ- po de confirmar as palavras de Fox: ”En- guetto/Guetto ou mica que vai desde o Cristo-Rei até ao tre os que ouvem os nossos sons, pelo street revolucon/ Bairro do Pica-Pau Amarelo. menos nos bairros, muitos vão ouvir as Strett ou guet- “Nós somos um grupo de putos que dicas e dizer que a cena é mesmo as- to cresceram sempre juntos. Temos os sim. O mesmo não vai acontecer se for Antis di niggas bem aprendi ta odeia”. É a voz das minorias a levantar-se. Este é o seu terreno. Esta é a sua ameaça: “É necessário que os Portugueses aprendam a amar/Antes que “Há muita gente que não percebe e diz que isto não é nada mas há mensagem. No hip-hop, há quase sempre mensagem. Como um poeta faz o seu livro porque tem algo a dizer...” comparacon/ abundância dos “Somos seguidores do estilo Pac . Nós no Monte de Caparica somos real! Cantamos de gueto para guetos. Queremos é cantar para o povo, para a máfia. “ tras inteligen- tes se protestava contra o racismo e se falava do diaa-dia nas ruas. Os WuTangClan fo- ram um modelo para os cantores do Monte de Caparica, mas não foram os únicos. Fox evoca a força des nossos objectivos para além das difi- numa cidade. Essa pessoa não sabe o son/Pa tudo ni- culdades que advêm de viver num bair- que é andar na rua e aparecer um car- dam a odiar”. ggas nhas irmons. A especificidade da ro destes, que é visto como isto e aquilo ro da polícia de choque. Quando mui- “Há muita gente que não percebe e mensagem e da língua não impedem mas tentamos sempre mostrar que pa- to aparece um polícia e eles falam co- diz que isto não é nada mas há men- que pessoas diferentes apreciem o seu ra além disto dá para viver e construir mo deve ser. Se um polícia aparecer ao sagem. No hip-hop, há quase sempre som. Os tugas, como ele os chama, os coisas”. O Fox é o membro mais velho pé de mim e eu começar a chamar a mensagem. Como um poeta. Um poeta portugueses brancos, também mar- da crew que aqui se reúne. Um grupo de mim os meus direitos e os deveres de- faz o seu livro porque tem algo a dizer cam presença nos vários espectáculos rapazes que canta e escreve hip-hop se- le já me estou a armar muito. ‘Ah! Te- e quem escreve e quem gosta de ler dá que vai dando por toda a Margem Sul. “O guindo o ritmo dos acontecimentos do mos um esperto! Entra dentro do carro, valor àquilo”. O ZédaGuida dança muito crioulo é quase português. Eles estão a dia-a-dia no bairro. Ainda sem nome vamos para a esquadra’. Já me aconte- com as mãos quando fala, como se ti- curtir e de repente ouvem uma coisa em certo, já têm uma história em comum. ceu isso. Não podes mostrar a tua inte- vesse uma batida dentro da cabeça que português e começam a montar a histó- “Sempre estivemos uns a olhar para os ligência. Se não tens condições cala-te”. os pretos apren- Dedicaçon ou- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 9 NAZARET NASCIMENTO SOCIEDADE Bairro é uma palavra que está sempre são muito sociais. Têm um papo gos- sas”. Ka sta fixe por isso en ka sta ca- presente, deformando e moldando os toso, estás a ver?”, finaliza Fox com lado/ Se for preciso en ta canta pa cho- anos que passam, justificando os cami- um sorriso. Continuam os episódios ca estado/En ka sabi en geral ken ki é nhos feitos. “Os putos não têm motiva- de violência, a diferença é que os pro- kulpado/Kuza ki sta passa ka ta da pa ção nenhuma para a escola. Eles olham blemas agora vêm do exterior. “As coi- passa agu. para os mais velhos que conseguiram sas estão a melhorar a nível de conví- Fora do Espaço Jovem as paredes das fazer a universidade e que agora estão vio entre nós. Mas isso traz outras coi- ruas do Bairro do Pica-Pau Amarelo a trabalhar nas obras, no Jumbo ou no sas. Quanto maior for a união dentro estão cheias de rabiscos. São rascu- MacDonald’s e pensam logo: ‘Vou estu- de um bairro maior será a rivalida- nhos ou talvez desabafos, protestos ou dar para quê? Não, eu vou mas é ven- de com o exterior. Fechamo-nos num talvez avisos. Percebe-se que há mui- cerco e começa to para dizer. Os meios são poucos e a pressão da po- recorre-se ao que se tem. O Bishop lícia”. O Fox ex- explica o percurso habitual: “Há muito plica que hoje tempo que nos ajudamos uns aos ou- os grandes rivais tros e agora chegámos a um ponto em são os bairros de que se quisermos fazer uma letra co- Lisboa que vêm nhecemos alguém que nos faz um be- ao Bairro do Pi- at e conhecemos o sítio onde vamos: O convívio entre as diferentes etnias ca-Pau medir forças. A polícia, essa é só chegar lá e pagar. Ou se quiser- dentro do espaço do Bairro do Pica- é uma presença constante. “Só vêm mos uma gravação com menos quali- Pau Amarelo nem sempre foi fácil. aqui dar-nos paulada. ‘Fiquem no lu- dade podemos ir gravar a casa de um Apesar das diferenças, o passar dos gar. Vocês são animais, fiquem dentro colega”. A evolução foi feita a custo. O anos levou a uma maior cooperação. da cerca. Se saírem de dentro da cer- dinheiro é pouco e sai-lhes dos bolsos. ”Dantes, ninguém ligava a ninguém. ca a gente dá-vos: Bum!’ Ma,s hoje em No fim do dia, o ZédaGuida, ou DGB, Os pretos só lidavam com pretos, dia, muitos dos que andam aqui nessa encontra a recompensa nas vozes dos brancos só lidavam com os brancos, vida de criminalidade andam a contro- mais novos que repetem a sua canção. os ciganos só lidavam com ciganos. Os lar onde é que os polícias param e isso “Aqui no bairro é normal estar a andar blacks e os tugas hoje em dia já se dão vai causar outros problemas. Vai tor- e os putos estão a cantar o meu som melhor. Já há blacks casados com tu- nar-se aquela criminalidade mais evo- e chamam por mim. Dá sempre aque- gas, o que força a convivência. Já os luída. Eles nos bairros sociais andam le sorriso”. Mi en é di bairro por isso to dos olhos perdidos em pensa- Os perseverantes dos inquéritos brasileiros estão a ajudar bué porque a criar máfias e organizações crimino- mim en sta li/ En ca sta pára/ Mi en é mentos vadios, só interrompidos de rua parecem ter sido dos pou- pelo queixume dos carris e pela cos que não foram de férias. Aqui interminável sequência de para- e ali mais rostos conhecidos can- bar. Quando a polícia me apanhar vou preso! Vai lá a família visitarme e vendo droga dentro da prisão’”. “Só vêm aqui dar-nos paulada. Vocês são animais. Se saírem de dentro da cerca a gente dávos: Bum!” CRÓNICA por Inês Henriques À sombra C inco minutos antes das três de, quedam-se ao sol nas es- da tarde. Vultos breves, in- planadas e, apesar do calor, be- definidos, escapam-se pelo can- bem constantes litros de álcool. gens bruscas. Belém. Os vigilan- tam Lisboa, a troco de quase nada. tes do Palácio fitam eternamente Olhos semi-cerrados, vagabun- o horizonte, à sombra da pasma- dos, agradecem a caridade dos ceira, como que indiferentes aos transeuntes e permanecem tam- flashes dos turistas. Do alto do bém na desprotegida cidade, apa- seu irrepreensível porte, devem ziguando o coração na sombra. estar a suar em bica. Só os movi- Na Praça da Figueira correm os mentos sincronizados à hora mar- olhos pela imensidão do espaço. cada queimam o tempo. Os rostos dos candidatos que dão A meia dúzia de passageiros do “a cara por Lisboa” confundem-se 15, meio atordoados pelo calor, com as letras toscas de uma ci- sai quase toda para apanhar o barco com destino às praias da Costa. O flui trânsito sosse- gadamente como um rio, NAZARET NASCIMENTO der droga e rou- Um retrato de Lisboa em pleno Agosto, quando os portugueses procuram as praias e a cidade fica entregue aos turistas. dade afi- nal “em festa” até fins de Setem- bro. Concertos, festivais de jazz, peças de teatro, exposi- ções, festas até ao Terreiro, numa estranha ao ar livre impregnam-se na su- quietude jidade urbana das fachadas, des- metropolitana. Agos- to é um mês óptimo para se res- pertam do tédio e da languidez do pirar em Lisboa, não fosse o céu Verão a cidade ao sol. esculpido de fumos adivinhar as As janelas escancaradas da Gra- manchetes dos jornais. As mon- ça debruçam-se para a tarde já tras da Baixa arrastam os saldos alta que corre sem hora de pon- pela eternidade da época. “Últi- ta. Pendem, imóveis, as rou- ma oportunidade”. Outras avan- pas sem mácula, já ressequidas. çam com os tecidos quentes e as Uma réstia de movimento decli- cores fogosas da próxima estação na na agradável esplanada do mi- e incomodam a tarde desespera- radouro. Ali reinventa-se o olhar, damente quente. Lisboa a perder de vista. Um bulí- Turistas com rostos escarlate e cio vindo das praias ainda cheias camisas ensopadas de suor ani- ecoa no alto dos campanários. mam as ruas, cavaqueiam com os Espera-se pela noite do Bairro e vendedores de bugigangas, apre- que ela traga consigo as memó- ciam os retratos da velha cida- rias vivas de uma Cidade. • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 10 SOCIEDADE VERA MOUTINHO vultos que, por causa das vestes compridas, deixaram de andar para passarem a flutuar por ali como os pirilampos que os rodeiam. “Este será um ano de provas”, começa um dos frades a explicar aos novatos, que, a partir deste momento, passarão a ter uma vida marcada pela obediência, pobreza e pela castidade. “Não é licito sair da ordem, só com autorização do Grã Ministro. Devem ser pobres, nunca julgar quem se veste com roupas delicadas, ou, porventura, tome alimentos ou bebidas finas, mas antes se julgue cada um a si mesmo.” A noite ainda só está a começar, já passa das 21h e ninguém sabe como tudo se vai desenrolar. O que é que aquelas vinte e três pessoas terão de fazer a seguir? Ritos de iniciação à ordem? Decerto já todos ouviram falar das noites na Serra de Sintra, histórias macabras de seitas e de rituais estranhos. O frade prossegue com a explicação. “A vossa missão é resolver um crime ocorrido há 800 anos mesmo aqui neste convento.” Uma voz nervosa, procurando a graça, vinda do meio das três filas de vultos esguios, faz a pergunta mais estranha que poderíamos ouvir nesta situação: “Mas não podiam servir só os croquetes?”. É a festa de anos de Duarte Gonçalves e, embora o cenário seja sinistro, a lua cheia e os pirilampos verdadeiros, tudo não passa de um jogo. • MISTÉRIO NA SERRA DE SINTRA 1ª Pista: o início Quem matou Frei Bonifácio? ANA RITA HENRIQUES A Há uns anos, Rui Pereira assistia no cinema, com os amigos dramaturgos e argumentistas, a um filme de David Fincher chamado O Jogo. No final olharam uns para os outros e disseram: “Bem, nós fazíamos isto”. Estava criada a ideia que, anos mais tarde, se viria a concretizar na Bode Espiatório. A ideia é simples e parte apenas de uma pergunta: “O que é que se dá a alguém que tem tudo?”. E a resposta, segundo Rui, é evidente: “emoções”. “Aquilo que nós retemos é que podemos pegar nu- “O QUE É QUE SE DÁ A ALGUÉM QUE TEM TUDO”? A PERGUNTA É DO FILME DE DAVID FINCHER noite começa a cair. Para trás ficou o sol quente de final de tar- à volta disso, envolver as pessoas nu- O JOGO, MAS SERVIU DE MOTE À CRIAÇÃO DA BODE ESPIATÓRIO, UMA EMPRESA QUE PRETEN- de na Vila de Sintra, os turistas de bicicleta e as mesas de jantar nas espla- mo, Rui achou que era altura de mudar. Foi o mentor do projecto chamado TO DE HÁ QUINHENTOS ANOS, UM MORTO. VINTE E TRÊS PESSOAS CONVIDADAS PARA UM JAN- sos. Neste fim de tarde de sábado estamos prestes a passar para outra di- mentar emoções.” Depois de doze anos ligado ao jornalis- CENÁRIO PARA UMA NOITE DE AVENTURA INESPERADA. UMA ORDEM RELIGIOSA, UM CONVEN- O nevoeiro cerrado começa a descer e a humidade penetra na roupa e nos os- ma trama ficcional, levá-las a viver uma aventura de doidos e levá-las a experi- DE VENDER EMOÇÕES. O CONVENTO DOS CAPUCHOS, EM PLENA SERRA DE SINTRA, SERVIU DE nadas que já se começam a compor àquela hora. O cenário agora é outro. ma coisa muito banal e criar uma ficção Bode Espiatório e hoje em dia continua a ser o seu principal motor. Esta em- TAR… QUE NÃO ACONTECEU. presa está há um ano no mercado e mensão, mas ainda ninguém o sabe. A tudo o que pretende vender é experi- estrada infinda da Serra de Sintra, com ências e emoções. Rui Pereira expli- as curvas que se sucedem vertiginosa- segredo que ele tem guardado. Não se o espaço interior de cada um. Risos ner- raçados, cada elemento da sua trans- ca que “todas as sociedades tiveram mente não deixando adivinhar o cami- vê o fim da estrada, nem ninguém po- vosos misturam-se com o uivar de algu- formação: primeiro uma túnica casta- necessidades de lazer, seja ele qual nho, a vegetação densa que rodeia os de imaginar o que ela reserva. ma criatura perdida, escondida no meio nha, comprida, até aos pés, com um ca- for. O que acontece é que uma socie- dois lados da subida fazendo-nos que- O fim do caminho é o Convento dos Ca- das árvores e da vegetação, bem longe puz igualmente grande; de seguida, um dade pró-cultural, muito mediatizada, puchos. O segu- do olhar e da imaginação dos presen- cordão para atar à rança que con- tes. A lua cheia, as velas acesas e os pi- cintura; uma más- trola as entradas rilampos que flutuam no ar dão a cla- cara preta e uma e saídas do espa- ridade necessária para nos deixar vis- lanterna de latão ço será o último lumbrar o ritual que está a ter início com uma vela no sinal de moderni- mesmo em frente aos nossos olhos. interior, que cada dade e banalida- Vinte e três pessoas, separadas umas um dos recém-or- por o cenário de mistério e penumbra de que veremos esta noite. Àquela ho- das outras e alinhadas, lado a lado, em denados frades segura na mão. A par- que, é a fase da experimentação”. Se- parecem querer demorar o fim do ca- ra já o sol se pôs e os sons da noite co- três filas vão recebendo, pela mão de tir deste momento, cada um deixou de gundo ele, “muitos dos formatos a que minho, para que ninguém penetre no meçam a invadir o espaço do convento e dois frades, silenciosos mas desemba- ter rosto e em toda a volta só se vêem assistimos agora na televisão induzem rer adivinhar segredos secula- res, o nevoeiro que veio de lado nenhum mas que não podia faltar para com- “A vossa missão é resolver um crime ocorrido há 800 anos mesmo aqui neste convento.” “O que nós queremos é tirar as pessoas da realidade, enfiá-las num túnel de ficção.” uma socieda- de urbana, com muitas roti- nas, está a entrar agora numa fase muito interessante 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 11 SOCIEDADE UM ESPAÇO EM LISBOA por Inês Henriques A Barraca Um bar “manifestamente do caraças” A noite cai e arrasta consigo os e um bar, cada um com a sua pró- corpos ébrios, solitários, até ao pria programação, mas convivendo eterno Largo: “É proibida a entra- harmoniosamente entre a “ética e a da a quem não estiver espantado estética”, como afirma Changuito, da de existir”, ecoa. Entram. Procuram gerência do bar. Situado às portas de uma mesa vaga, a última, e ficam a Santos, mas indiferente àquelas ro- ouvir. Poesia deixada ao acaso, “pa- tinas nocturnas, o bar A Barraca fi- ra (e)levar”, José Afonso, um piano e ca na eternidade do tempo. Ali tudo uma voz feminina, sensual, uma cor- foi pensado para ser diferente, desde tina violácea de estrelas, um palco a cadência musical, “acima de qual- tosco, só. Tudo o resto é um estre- quer suspeita em termos de qualida- mecimento nostálgico, um trautear de” entre o samba, o tango, o reggae, de sorrisos, maneios e sombras que o ska, ou o jazz, até à beleza fran- se desvanecem no vermelho afogue- ca da sala, ao atendimento familiar, ado do vestido. As histórias cantam à diversidade de pessoas que o fre- sempre o mesmo nome, Maria. Maria quentam e da programação: recitais numa “noite de espanto e fulgor”... de poesia, concertos, teatro, matinés O edifício da Barraca já foi um arma- ça. Uma espécie de “ilha” em Santos. infantis, exposições ou aulas de danzém de alimentos, um cinema. Hoje abriga uma companhia de teatro Nas palavras de Changuito, um bar “manifestamente do caraças”. • RUI FALÉ as pessoas em determinadas experi- va. “Achei que à noite era giro. À noi- Já de noite, depois da iniciação à ordem, clique e estão noutra onda”. realmente tinha sido o assassino, mas, ências fortes, fazendo-as estimular te, Serra de Sintra, com frio, achei que depois da explicação do enigma, de lâm- Naquela noite de sábado a imaginação para compensação de todos, havia uma as suas próprias emoções”. Mas, para poderia ser engraçado.” Convidou toda padas na mão como única luz num sítio voou, pairou como os pirilampos pelo ceia franciscana preparada. Rui, existe um processo paralelo a es- a gente por e-mail para um jantar per- totalmente desconhecido, cada um dos espaço do convento. O túnel de ficção Rui Pereira diz que o que se fez nesta te, que está relacionado com a ciência to do Convento dos Capuchos. Às oito vinte e três convidados foi saindo, um a de que Rui falava foi atravessado vezes noite foi “abrir uma porta”. A activida- e que é ainda mais importante. Segun- da noite um grupo de vinte e três pes- um, totalmente sozinhos, com um único sem conta pelos vinte e três convida- de no Convento dos Capuchos, por ser do estudos do português Manuel Da- soas, que não desconfiavam de nada, pensamento: “para chegar ao assassino dos, que ao tal clique passavam para uma novidade, “ainda está em fase de másio, as pessoas para pensarem, pa- reuniu-se no espaço do Convento. O basta seguir o caminho da luz”. outra dimensão. Num espaço de três crescimento”, mas acrescenta que es- Quem olhasse para a frente só via um horas, o tempo que durou a viagem ao ta é a vantagem da Bode Espiatório, cenário. Um sítio que, mesmo de noite, passado, foi possível estar em 2005, e, “estar sempre a produzir coisas no- banhado apenas pela claridade da lua passados alguns minutos, estar em vas”. A empresa assumiu um compro- cheia e pelo bailado das dezenas de tempos remotos, a decifrar enigmas misso de, de quatro em quatro meses, pirilampos, se adivinhava lindíssimo para resolver o mistério que envolveu ter um produto novo e isto é assim por- e imponente. As ruínas do Convento, a morte de um dos frades. Se, num da- que “o mercado pede isso”. “Pessoas a vegetação que rodeava o caminho, do momento do jogo, uns quantos fra- como o Duarte querem estar sempre a flores brancas enormes, canas maio- des sentados numa mesa de pedra, de fazer coisas novas” e isso permite-lhe ra tomarem decisões, precisam de ter um conhecimento das suas emoções. “No fundo, as decisões mais importantes têm a “Podemos pegar numa coisa muito banal e criar uma ficção à volta disso, envolver as pessoas numa trama ficcional, levá-las a viver uma aventura de doidos .” ver com o culto e a aprendizagem das ambiente estava animado, diziam-se res do que cada um dos “frades espi- máscara na cara e candeeiro na mão, estar sempre na vanguarda. E termina emoções, que deve ser feito e cultiva- graças e toda a gente fazia planos pa- ões”, escadas de pedra estreitas e tor- discutiam a vida política nacional e an- dizendo que “faz parte do processo de do”. Rui não crê que as pessoas quan- ra aquela noite: a ementa do jantar, o tuosas, bancos embutidos nos muros, siavam por um baralho de cartas e quem quer estar sempre na frente es- do procuram os produtos da Bode Es- bar para onde iam de seguida – planos fontes e grutas eram o caminho a per- uma Playstation, passado pouco mais tar sempre a arriscar”. piatório tenham noção de tudo isto, banais para a primeira noite de verão. correr. E no meio de toda esta imen- do que alguns minutos já estavam As lanternas apagaram-se por si mes- mas, mesmo assim, o que a empre- Para o Duarte, nada mais fácil. Bastou ir sidão distinguia-se, aqui e ali, o vulto dentro de uma das minúsculas celas mas mesmo no final do jogo, as túni- sa procura é “pegar nesta teoria toda à Internet, ao site da Bode Espiatório, e de um ou outro frade, figuras esguias do Convento com e criar um produto divertido. Não criar marcar um mistério para sábado à noite. de lâmpada na mão que se arrastavam o morto a seus uma parte científica, mas uma parte Este, do Convento dos Capuchos, foi a pri- pelos trilhos e se agachavam quando pés. Tapado por de comunicação, de aventura e trans- meira vez que foi comercializado. Apesar viam alguma luz no chão. “Para che- um lençol bran- fomar isso em produtos rentáveis”. de já se terem feito alguns ensaios, ex- gar ao assassino basta seguir o cami- co, Frei Bonifá- plica Rui Pereira, o aniversário de Duarte nho da luz”. Em cada vela havia uma cio, o frade as- Gonçalves foi a estreia do produto. pista, um enigma a decifrar. sassinado, jazia Duarte Gonçalves é o aniversarian- Rui Pereira, salvando a pouca modés- morto no chão da te, foi ele quem planeou tudo, é ele tia, revela: “Acho que na Bode Espia- sua cela. o “culpado”. “No ano que vem não há tório conseguimos juntar um bocadi- O mistério esta- ninguém nos anos do Duarte”, ou- nho de criatividade com inteligência”. va quase a chegar ve-se alguém exclamar, enquanto to- Explica que, no fundo, o que a empre- ao fim. Depois de da a gente é encaminhada pelos dois sa faz pisa três territórios: o entreteni- toda a gente ter frades de túnicas compridas, másca- mento, o turismo e a cultura. “A cultu- passado por to- ras na cara e candeeiro na mão. Pa- ra não é um favor, não é uma bengala, das as pistas só ficava a faltar uma coisa prio Duarte seguem para uma qual- ra comemorar os seus 27 anos, Duar- é uma parte fundamental no sucesso para dar o jogo por terminado e o mis- quer discoteca na linha de Cascais. O te quis fazer “uma coisa diferente, al- do produto.” E explica a razão dos mis- tério por resolvido. Afinal quem foi o as- Rui há-de pegar em caixas e arrumar guma coisa inovadora”, mas escondeu térios históricos. “Nós fazemos muitos sassino? Numa reunião já fora das ru- dentro do carro aquilo que restou dos tudo dos convidados. Como já tinha ex- mistérios históricos porque o que nós ínas do Convento, num dos pátios ex- frades dos Capuchos. Dentro de ins- queremos é tirar as pessoas da reali- teriores, já se ouviam muitas vozes e tantes, o Convento é novamente devol- dade, enfiá-las num túnel de ficção e gargalhadas sonoras. No final, apenas vido aos sons da noite, à lua cheia e ao elas, passado um momento, fazem um uma pessoa conseguiu descobrir quem bailado dos pirilampos. • perimentado o Jantar Mistério, o produto mais vendido da Bode Espiatório, desta vez optou por uma actividade no- VERA MOUTINHO 2ª Pista: a estreia Uma voz nervosa, procurando a graça, vinda do meio das três filas de vultos esguios, faz a pergunta mais estranha que poderíamos ouvir nesta situação: “Mas não podiam servir só os croquetes?” cas foram castanhas despidas e repousam agora, todas empilhadas, em cima de um monte de palha. As pessoas ganharam de novo rosto, cor e singularidade. Assim que acabarem de comer, todos os convidados e o pró- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 12 SOCIEDADE • O SER OU NÃO-SER DE UM HOMEM ESTÁTUA Entre a carne e a pedra UMA CAMINHADA A PÉ PARA ESPANHA EM BUSCA DA SOLUÇÃO PARA UMA ‘INCURÁVEL NEURODERMITE’. E NAS RAMBLAS DE BARCELONA DESCOBRE UMA IDENTIDADE TALVEZ NUNCA ANTES ENCONTRADA: ESPÍRITO DE YOGA, ALMA DE HOMEM, CORPO DE ESTÁTUA. DESDE ENTÃO ANTÓNIO GOMES DOS SANTOS TEM PERCORRIDO AS CIDADES EUROPEIAS COM A “QUIETUDE EXPRESSIVA”, A ARTE DAS ESTÁTUAS-VIVAS. LAÍS CASTRO N ão faz muito. Chega e monta um médicos disseram que não tinha cura”. garante ter a certeza quase absoluta de po da abstracção. “Estou a ver tudo, es- pequeno palanque no meio da Rua Fez os tratamentos normais por três me- que foi o primeiro a começar esta arte tou com atenção. Penso no que pensa- Fica ali quieto, tão quieto, que após Augusta. Liga uma pequena coluna de ses, mas sem resultados. Por isso um dia de rua, a que deu o nome de “quietude ria em qualquer outra situação, só que dezanove anos de treino chegou a um som, sobe no seu palco e imobiliza-se. pediu à mãe “para fazer umas sandes”, expressiva”. Conta que quando come- de forma mais atenta. A atenção máxi- dos pontos máximos da filosofia yo- Fica ali quieto, parado, imobilizado. meteu-as na mala e pôs-se à aventura. çou (“corria o ano de 1986/87”) havia nos ma está no controle da respiração. E ga, base da sua imobilidade: “ o que Em frente ao palanque um cartaz cola- Atravessou Espanha a pé, pelo menos a EUA um movimento parecido, chamado então todo o resto vem um bocado por eu praticava antes era o yoga daque- do no chão mostra palavras que sobre maior parte do caminho. Entre Badajoz fixing, estátuas-vivas dentro das gale- acréscimo, são pensamentos micros- las posições esquisitas. Depois fui len- ele já foram escritas: “Em pedra viva”, e Madrid foi de comboio, mas não curtiu rias de arte. Mas a ideia de ir para a rua cópicos: uma consideração, uma cena, do muito, tornei-me um entusiasta do crónica de José Cardoso Pires no Públi- “a experiência de ser expulso por não ter foi dele: “se não sou o primeiro, sou dos uma ideia, ou uma coisa que se vê. Só yoga filosófico. E cheguei à conclusão co quem faça isso é que percebe”. . Ao lado do cartaz uma pequena bilhete”. Chegou aos Pirinéus Orientais primeiros. Mas com um historial prova- que nunca é tão importante como estar de que aquilo que faço é o que um yoga placa com um diploma: Guiness Book of “sem dinheiro, a pé total”, à procura de do e seguido sou de certeza o pioneiro”, a pensar na respiração. Mas é muito di- quer fazer: conseguir encontrar-se na Records – Record Mundial de Imobilida- um centro Zen de que tinha ouvido falar: de, com o tempo de 15 horas 2 minutos “eu já praticava yoga, mas nesse centro e 55 segundos. Um caderno em formato comecei a potenciar muito a prática. Um A4 está ao lado da placa, convidando os ano depois comecei a ter um cabelinho afirma o Staticman. ficil explicar, só A arte de estar parado du- imobilidade total, conseguir dominar o corpo. Eu dei uma data de voltas e aca- rante tanto tempo – bei por encontrar uma das grandes cenas de qualquer yoga”. transeuntes a deixar ali as impressões aqui, uma cabelinho acolá... Quando vi Tudo o que faz é com base em – positivas ou negativas – que a estátua que estava a melhorar, pensei ‘vou con- “coisas muito pensadas e organizadas, com sustentações (ou homem?) provoca. Um cesto com seguir ter o cabelo todo outra vez’. E re- algumas moedas completa o trio de solvi visitar os meus pais, para dar a no- fortes” no Ken yoga, uma prá- personagens secundárias da actuação. tícia”, conta António. tica criada pelo Staticman: “é Agora, só falta o actor principal. Fez pequenos trabalhos, juntou algum uma junção do que sei de yoga, Staticman é o seu nome artístico. Antó- dinheiro e no caminho para Portugal a minha experiência como Ho- nio Gomes dos Santos, o nome real. Tor- (desta vez não a pé) encontrou na ca- mem-Estátua e exercícios de na-se António quando desce do palco dos pital da Catalunha a ideia que iria fa- respiração e quietude”. espectáculos de tantas e tantas cidades zer nascer o Homem-Estátua. “Na ida Quando está em actuação, pa- europeias; quando os seus músculos pa- para os Pirinéus já tinha visto em Bar- rado no meio dos centros urba- ralisados pela “quietude expressiva” dei- celona uns espectáculos de rua, pes- nos onde todos correm de um la- xam a aparência de pedra para se torna- soal a fazer de robots articulados. E do para o outro com ares de pressa, rem de novo carne, tomando expressão e quando estava a voltar vi de novo os a arte do Staticman parece uma for- movimento. Quando tira a roupa da actu- mesmos shows, uma coisa muito for- ação, a maquilhagem verde-escura que te e bonita. Tinha muito público e is- morena e diz que podemos conversar naquela esplanada lá ao fundo, que é mais sossegada. É ali que António conta como nasceu o primeiro HomemEstátua, e quem “Decidiu parar, ficar simplesmente ali, no meio da rua, imóvel, “não ser boneco articulado nem sequer robot, mas assumir a estátua, sem movimento nenhum”. rio afirma que não, que não se podem so chamou-me a de du- pôr as coisas no patamar de um pro- atenção. as ho- testo contra alguma coisa. “É antes um cei a pensar que ras por “protesto muito genérico contra a socie- podia ligar aqui- cada ac- dade normalizada. Por exemplo, a pró- lo com a prepa- tuação pria definição de trabalho. Fisicamente Come- ração que eu ti- a falando, trabalho é a deslocação num nha de estar pa- – uma leva per- ponto, implica movimento. Mas se eu consigo trabalhar para sobreviver mos- rado, por causa gunta intri- do yoga. Se pa- gante rássemos os ro- ra aqueles bots, como é que que o obser- pa- é esse ser intrigante. o pessoal reagiria?” vam quando Queria ser doutor. Foi estudar Geologia Decidiu parar, ficar simplesmente ali, no passam pela CATARINA MEALHA cobre a sua pela ma de protesto. Mas “hãToino” de Lícerca trando só o meu corpo imóvel encontro a minha definição de trabalho”. Os livros são outra faceta do HomemEstátua. O primeiro – Memórias de hoje ou pretérito perfeito de amanhã’ - data na Universidade de Coimbra. Como vinha meio da rua, imóvel, “não ser boneco ar- rua: em que de quando “tinha a mania de escrever”. de uma família pobre, teve de trabalhar ticulado nem sequer robot, mas assu- é que pensa Os outros – como por exemplo Ho- para pagar o curso. Cozinheiro, ajudan- mir a estátua, sem movimento nenhum”. um mens ou alucinações de uma estátua? homem ou Pensamentos de pedra’– ja falam so- te nos hospitais… Até que aos 24 de ida- Nasceu assim o Homem-Estátua, as es- quando se tor- de o stress lhe provocou uma neuroder- tátuas-vivas e a “quietude expressiva”. na Estátua? mite, um “breque na cabeça”, como des- Desde então António dos Santos, ou Para António é o que pensa quando creve. Os cabelos de todo o corpo caíram, hãToino de Lírio (como assina no seu si- difícil explicar, está em períodos de deixou de comer, tinha choro compulsi- te), já bateu três vezes o record mundial porque meditação ou os seus vo. Uma doença “muita estranha, que os de imobilidade (em 1988, 1997 e 2003), e entra no cam- isso bre a sua vivência como Estátua, contactos na rua. 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 13 SOCIEDADE • AUGUSTO RAPOSEIRO O taberneiro de livros MARTA MESQUITA É no meio dos prédios altos da linha Com os livros veio o conhecimento. Homem ávido de saber reúne perto de mais nenhum sítio onde estas dis- de Sintra que o senhor Augus- Não concordava com o regime, por- si pessoas como ele, que gostam de cussões aconteçam assim”, diz ex- to, conhecido por todos nas redonde- que o castrava na sua intelectualida- discutir e de ser contrariadas. A con- pectante o livreiro. zas, tem a sua livraria. Astrolábio é o de. Um amigo do seu pai um dia disse: versa, essa, varia consoante as notí- A discussão só é interrompida por nome do seu pequeno grande mundo. “Cuidado, olha que o teu filho é um agi- cias da semana. Falam do estado do uma menina que entra para ver os li- Pequeno, porque o espaço é apertado, tador de massas”. Consciente do peri- país, do estado das pessoas. “Estamos vros. No exíguo espaço, pelo menos grande, porque por lá passa todo o ti- go que corria sempre foi discreto mas a resvalar para a Idade Média; a filoso- um quarto é dedicado aos livros in- po de gente: desde os mais pequenos não menos eficiente. Na noite de 24 fia humana está nas mãos de ditado- fantis. O senhor Augusto orgulha-se aos mais graúdos. para 25 de Abril de 1974 lá partia ele res”, diz para um amigo que está na li- de conseguir cativar para a leitura os Quem entra na Astrolábio tem sempre de Santarém, rumo a Lisboa com os vraria num sábado à tarde. Passados mais pequenos: “é nesta idade que o um rumo. Mesmo que não saiba o que camaradas. A noite da liberdade es- alguns minutos chegam mais alguns gosto começa”, afirma com olhar em- JOÃO GODINHO quer, o senhor Augusto trata de sugerir: “Já leu Rosa Lobato Faria? Olhe que é muito bom”, sugere encantado a uma leitora que compra O Amor nos temPara o Staticman a reacção das pessoas pos de Cólera. Os amigos, como gosta bevecido. Relembra um miúdo que lhe disse um dia que não tinha gostado nada de ver o Harry Potter no cinema. No ecrã grande da sala não se sentia o cheiro a musgo que ele sen- é geralmente “porreira”: “é claro que há de lhes chamar, que lá aparecem já são tiu quando leu o livro. “É esta a magia 19 anos que alguém passa e diz: ‘Vai tra- da casa. Quem lá vai e conhece a sim- dos livros”, diz o livreiro. balhar, malandro!’, isso é clássico. Mas patia e o conhecimento deste homem Mas, mal a menina sai, lá continua a eu tenho um caderno para as pessoas nunca mais abandona a casa. má-língua da semana. Agora o tema é escreverem a opinião, e a maior parte Mas nem sempre a vida do senhor Au- o duelo entre Cavaco e Soares. Uns são reage bem. Também depende muito das gusto foram livros. Homem que sem- pelo antigo Presidente da República, personagens. Mas se não fosse uma re- pre arriscou e que nunca teve medo de outros pelo antigo primeiro-ministro. acção positiva não ganhava para viver”. nada, nem do regime salazarista, quis “Para mim o Cavaco é só um bom minis- Admite que há alturas em que se vê “à ser um técnico de contas. Trabalhou na tro das finanças, nunca um Presidente rasca para sobreviver”. No Inverno “o área durante muitos anos, mas depois da República!”, diz o senhor Augusto. clima mau, a crise, poucos contratos” a paixão pelas palavras escritas falou impedem-no de sair às ruas e se expor mais alto. Desde pequenino que gosta como o Homem-Estátua. Mas quando o tempo aquece os trabalhos “chovem”: E é neste ambiente de tasca, em que tava prestes a começar e ele estava compinchas: “um bando de generais cada um discute mais alto do que ou- de livros. Com 11 anos já tratava o Jú- lá, na primeira fila, ao lado do pro- em delírio” é como os denomina. tro, seja dentro da livraria seja à por- lio Verne por tu. Aos 13 e com a ajuda de tagonista e companheiro de armas, Neste grupo, ora cinco, ora seis, há ta, que a liberdade pela qual o livreiro lutou acontece. “Eu adoro isto! Dá- “agora não tenho parado. Este Verão an- um contínuo conseguiu tirar Os Maias, Salgueiro Maia. Aqui demonstrou o espaço para todos. Uns de direita, dei por Espinho, Seixal, Torres Vedras, então um livro proibido pelo Regime, seu afecto pela democracia, que ten- outros de esquerda, todos discutem me pena aquelas pessoas que têm Évora, Odemira, França, Áustria”. E da biblioteca da escola. Todo o dinhei- ta passar a todos os miúdos quando naquela tertúlia feita de improviso. saudades de uma mão de ferro que quando o Verão chega ao fim espera-o ro que juntava lá ia para mais um livri- é convidado, ano sim, ano sim, para Criticam tudo, desde o presidente da lhes diga o que podem ou não fazer Barcelona, o berço do Staticman. nho. E lia, lia muito, ora em casa, ora na mais uma palestra sobre o 25 de Abril Câmara aos passeios mal calcetados. ou o que podem ou não pensar”, de- Hoje, na capital catalã, as estátuas-vivas biblioteca de Santarém. nas escolas lá da zona. “Isto é que é bonito! Eu não conheço fende o senhor Augusto. • são o único espectáculo de rua que não precisa de licença. “A ideia das estátuas pegou. Eu vim-me embora mas um grupo de italianos que começou comigo ficou por lá imenso tempo. O pessoal foi fazendo mais, vieram outros de outro lado... Aqui na Rua Augusta também houve uma altura – por volta de 1993/ 94, quando Lisboa foi a capital da Cultura – em que havia umas sete ou oito estátuas, com alguma qualidade. Mas depois... não se aguentou. Não gostaram, não calhou bem... não sei. Mesmo assim, há um encontro nacional de estátu- GONÇALO NETO • POESIA AO JANTAR O poeta do restaurante as-vivas todos os anos, em Espinho. Mas em Barcelona... tornou-se uma coisa típica, não dá para explicar”. Hoje as estátuas-vivas pintam o cenário de Barcelona. Na Baixa de Lisboa, um só homem insiste em parar no GONÇALO NETO A caminho da Mouraria há uma um banquinho. “É um passatempo estória para contar em cada es- que me dá prazer”, afirma José Gui- quina. À entrada do Martim Moniz, lherme Carvalho.”Gosto de desaba- me limitar àquilo que sou. Se tives- constante e a pessoa que escreve fá- umas escadinhas íngremes apon- far, de transmitir aos outros a profun- se mais estudos, uma base cultural lo porque tem dentro de si uma se- meio da Rua Augusta e mostrar ali a tam o caminho para o Largo dos Tri- didade das coisas.”. Com mais de 80 mais sólida onde pudesse assentar mente de loucura, que a leva a expor- “quietude expressiva”, que nasceu co- gueiros, e para o restaurante “Os poemas escritos, editou em 2001, Di- os alicerces da minha escrita, seria se, a ter coragem de dizer o que lhe mo uma resposta à “doença da escra- Galos”. Lá dentro espera-nos uma mensão e Circunstância, que segun- diferente”, afirma com simplicidade. vai na alma”. vidão sociomental que atormentava o figura serena que nos recebe com do o autor “encerrou uma fase da mi- Nunca leu outros poetas, e conside- Contudo, para José Guilherme Car- [seu] consciente”. Homem ou Estátua, um sorriso franco. É José Guilher- nha vida e uma determinada filosofia ra que é desta forma que gosta de valho, a exposição tem limites. Já confunde-se com a carne e a pedra, me Carvalho, proprietário do restau- da poesia, um bocado difícil de digerir, enquadrar o que lhe vem de dentro, recebeu vários convites, nomeada- com o ser e o não ser. Não procura o rante e um lisboeta por paixão. porque tem que ver com a dureza da sem pressões nem comparações. A mente dos seus vizinhos do “Cha- sentido. Procura só provocar os sen- Poesia. O tempero especial d’”Os Ga- vida, com os cornos da vida”. poesia é a sua maneira de levitar, de pitô”, para levar a sua arte para lá tidos: “olhem para mim aqui parado e los”. Quem aqui vem já sabe que en- O proprietário d’ “Os Galos” tem o 4º ocupar o pensamento frenético que das portas do restaurante. Recusou pensem no valor de tudo o resto. O que tre uma garfada e outra a sua aten- ano do ensino primário, mas, segun- de outro modo iria pousar em an- sempre. “Não quero que as pessoas é que faz sentido? Eu não faço sentido ção acabará por fugir para um poeta do o próprio, a frequência contínua gústias maiores. “A vida atira-nos comecem a exigir de mim. A poesia ou faço? E o resto, faz ou não faz?” • de ocasião que declama em cima de na universidade da vida. “Tenho de uns contra os outros, num fervilhar não é carregar no botão”. • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 14 MUNDO • UMA CIDADE FRANCESA COM MAIS DE TRÊS MIL ESTUDANTES ESTRANGEIROS Grenoble, capital Erasmus JOÃO TELMO DIAS CORRESPONDENTE A maior parte dos alunos que ini- do dele tinha sido rejeitado. “Conhece- ciam o seu Erasmus em Greno- mo-nos no aeroporto de Lyon, contei- ble aterra no aeroporto de Lyon, a cida- lhe a minha situação e ela disse logo de número dois de França, em meados que eu podia ficar no quarto dela até de Setembro e apanha o autocarro até arranjar casa”, lembra-se Max. A im- à pequena cidade situada num vale gi- previsibilidade é, talvez, a melhor e a gante dos Alpes franceses. Outros vêm pior das coisas durante este período. de comboio ou de carro de outras par- Nunca se sabe muito bem o que po- tes das Europa, já que Grenoble se en- de acontecer. contra quase no centro do continente. Julianna Hyjek vem da Polónia, mas já Quando se chega à cidade, a primeira viveu em Nova-Iorque, em Portugal, no reacção é, indiscutivelmente, observar o contraste entre ci- vilização e natureza. Os grandes edifícios, as longas avenidas, o metro de superfície e os automóveis opõem- “O que vale a pena em Erasmus são as pessoas, que são a tua família. É aquilo que aprendes de ti mesmo e dos outros. Isso sim, é o mais importante.” FAZ AS MALAS. NÃO TE ESQUEÇAS DO DICIONÁRIO NEM DA ES- já não se sabe de quem são os pratos, COVA DE DENTES. DESPEDE-TE DE TODOS OS TEUS AMIGOS E FAMILIARES E LEVA A BANDEIRA DO TEU PAÍS CONTIGO. ACE- FUSÃO QUE VIVEM MILHARES DE ESTUDANTES DESDE O ANO DES EUROPEIAS PROPORCIONADOS PELO PROGRAMA SÓCRA- vam os primeiros conhecimentos, que tros estudantes estrangeiros sem ser na universidade. Desde o princípio de TES - ERASMUS. GRENOBLE, A CAPITAL FRANCESA DOS ALPES, Setembro até finais de Junho, as festas nas casas dos estudantes e nas re- É UM DOS MELHORES EXEMPLOS DESTA MOBILIDADE INTENSA ra a jovem polaRelações As festas são um ponto forte da cultu- se tem o primeiro contacto com os ou- de cidade já não é ca, estudante de Faz as malas outra vez... ra Erasmus. É nas festas que se tra- DE 1987, ATRAVÉS DOS INTERCÂMBIOS ENTRE AS UNIVERSIDA- plomatas, a mu- um problema pa- se uma grande família a viver numa grande casa. e na Alemanha. dança de país e ma de viver. O ambiente torna-se acolhedor e descontraído; é como se fos- NA PELA ÚLTIMA VEZ E ENTRA NO AVIÃO. RÓI AS UNHAS TODAS Brasil, no Uru- Com dois pais di- as colheres ou as pantufas, é tão cómico!”, diz Maria perante esta nova for- DURANTE A VIAGEM E INSTALA-TE. É NESTE RODOPIO E CON- guai, na Escócia lianos. Chega-se a uma altura em que sidências não param, como se a realidade fosse filtrada por brindes, can- DE ESTUDANTES DENTRO DA UNIÃO EUROPEIA. UMA CIDADE Inter- torias, shots e muito sex appeal. O lema, aliás, não podia ser mais escla- INTERNACIONAL CHEIA DE HISTÓRIAS PARA CONTAR. se às montanhas imponentes, ao verde nacionais. Julianna já falava cinco lín- abundante e aos dois rios (Isère e Drac) guas e vir viver para França era uma No meio de tanta neve e de tanta festa, que se cruzam e entram pelas ruas de oportunidade única de conhecer o fran- o que, talvez, fica um pouco para trás Grenoble adentro, não fugindo à ima- cês e o país e, ao mesmo tempo, de ex- são as pessoas, que são a tua família. É que ouvem música numa língua im- são os amigos e a família. As sauda- gem da cidade tipicamente europeia. perienciar a miscelânea de línguas e de aquilo que aprendes de ti mesmo e dos perceptível, passando pela mistura de des da pátria começam a desvanecer- O grande marco da cidade é o tele- culturas. Quando confrontada com o outros. Isso sim, é o mais importante”. cheiros das comidas tradicionais de se, o francês já é quase perfeito e as férico, construído no princípio do sé- que o programa Erasmus trouxe de no- É nas residências que se cria o verda- cada país nas cozinhas. “No meu cor- aulas e os exames já estão em segun- culo XX e que se tornou o símbolo da vo à sua vida, Julianna tem a resposta deiro espírito Erasmus, desde a par- redor a minha vizinha da frente é tai- do plano. Só que o relógio não pára. O própria cidade. As oito bolas verme- pronta: “O que vale a pena no Erasmus tilha da casa-de-banho, aos vizinhos landesa e os outros chineses e austra- fim do ano lectivo aproxima-se e o ba- lhas de vidro, que mais parecem ovos mecânicos da Páscoa, transportam os JOÃO TELMO DIAS recedor: “Erasmus...orgasmus”. lanço de um ano fora de casa começa, naturalmente, a infiltrar-se na ca- habitantes e os turistas à Bastilha, on- beça de cada um. “Foi um ano de mu- de se observa toda a cidade e se bebe danças, pessoais e em todos os outros um café, pausadamente, na esplana- sentidos. Mudei; não sei quanto, mas da com vista para os Alpes. É, sem dú- mudei. Na forma de ver as pessoas, de vida, a grande atracção turística des- dar valor ao meu país, à minha casa, à ta cidade francesa, que não tem muito minha família”, confessa Maria Pere- para visitar, mas tem, certamente, grina a uma semana de voltar a Pue- muito para viver. bla, no México. As cerimónias iniciam- Dos estudantes internacionais que se e cada um tem direito a uma des- chegam a Grenoble, alguns já têm alo- pedida personalizada. Ninguém quer jamento garantido nas residências, acreditar que é o fim desta etapa. Se outros têm a difícil tarefa de procurar no princípio havia o medo do desco- um quarto de 9 m2 ou de conhecer ou- nhecido, as dúvidas e as inseguran- tros estudantes para partilhar uma ca- ças, hoje há a certeza de que se quer sa. Todos os anos chegam à cidade mi- mais, muito mais. Tirar o melhor par- lhares de estudantes vindos de todos tido das pessoas e das pequenas coi- os lados do mundo e as casas dispo- sas é, certamente, o que fica a navegar níveis começam a escassear logo em dentro de todos. O choro e os abraços fins de Agosto e princípios de Setem- começam a surgir. Há mesmo quem bro. Para Max Juno, vindo do Quebe- diga que já faz parte. Faz as malas ou- que, no Canadá, e Maria Peregrina, tra vez. Tira as fotografias da parede, mexicana de Puebla, a situação não o dicionário da secretária e mete tu- foi diferente. Chegaram no mesmo dia do na mochila. Desta vez levas contigo do outro lado do oceano e ela já tinha cada pedacinho do mundo dentro da quarto numa residência, mas o pedi- mala. E voilà! estás em casa.• DOSSIER | JORNALISMO LITERÁRIO 15 NAZARET NASCIMENTO E VERA MOUTINHO • A LITERATURA DO JORNALISMO JORNALISMO LITERÁRIO. NARRATIVO. CRIATIVO. HU- O real nas linhas da ficção MANO. DIFERENTES NOMES PARA HISTÓRIAS BEM NARRADAS, PERSONAGENS VIBRANTES, CENÁRIOS BEM PINTADOS POR UM NARRADOR QUE NÃO PÕE DE PARTE A SUA SENSIBILIDADE. FOI DISTO QUE VEIO FALAR O JORNALISTA AMERICANO MARK KRAMER NO PASSADO MÊS DE JULHO. É DISTO QUE FALA BAPTISTA-BASTOS HÁ MAIS DE 40 ANOS. DE UM JORNALISMO FEITO LITERATURA. SÃO SOUSA E VERA MOUTINHO A delino Gomes levanta-se da pri- homenagem pelos 50 anos de carreira até ao osso. Baixa da Banheira. Fre- Na casa das Laranjeiras, uns dias an- Está tudo aqui.” O alvoroço desentoa- meira fila da plateia, ocupa o lugar como jornalista e escritor, faz trans- guesia do concelho da Moita, distrito tes, Baptista-Bastos confessava: “As do desta aventura pequenina teve um no palco. Tira os óculos, põe os óculos, bordar de emoções a pequena sala do de Setúbal. Não dispõe de orago que homenagens valem o que valem”. E remate final setenta e duas horas de- arruma os papéis ao centro, um boca- Auditório Municipal Lourdes Norberto, a proteja e Deus passou por ali muito no momento em que falamos da “Rua pois; no primeiro dia, veio o fiscal do dinho mais à direita. “Trouxe aqui umas em Linda-a-Velha. Unicamente com o de repente. Dos coisas para ler, ou para não ler…”. poder da palavra. seus trinta mil A plateia aconchega-se no gracejo, Adelino Gomes tem na mão um dos habitantes dois ajeita-se na cadeira e encosta o ouvido papéis que escolheu do monte de deles ao início da história. “Recordo-o de pé, reportagens, crónicas e entrevistas trar nesta prosa. a dominar a redacção”. O cenário era o de Baptista-Bastos, que guarda co- Adelino já não do Diário Popular, em 1966, e Adelino mo as de nenhum outro autor. No ca- está sério, com- Gomes um jovem jornalista que che- beçalho deste lê-se “Um dia na vida penetrado; sorri gava à imprensa e com orgulho se jun- de Maria Ercília e José Adelino”, pe- e esclarece que tava àquilo a que hoje chama “a tribo ça que ganhou o Prémio Nacional de as palavras que leu são as de quem ria, de 17 anos, com companheiro e du- Mark Kramer não hesitaria em clas- do BB”. A alcunha denuncia a amizade Reportagem Gazeta em 1985. Uma fo- faz a “literatura do jornalismo”. E é as filhas, ocupou em Março o lusalite sificar esta reportagem como “jor- com Baptista-Bastos, que, em noite de me portuguesa e um remorso rilhado por isso que todos lá estão. nº 14 da Rua das Maravilhas. “Vêem? nalismo narrativo”. Está tudo lá: ce- vão en- “O jornalismo narrativo é uma vitória para os leitores, jornalistas e patrões.” - Mark Kramer das Maravilhas” bairro e disse que não; no segundo dia, entusiasma-se, veio a polícia da Câmara e pôs as cria- levanta-se, turas na rua; no terceiro dia, veio o tri- ras- ga o plástico que bunal e obrigou-as a pagar a multa de ainda envolvia As 7510$00. “Eu tomo partido nisto. Por- palavras dos ou- quê? Está aqui um adjectivo que diz tu- tros, procura a do: «o alvoroço desentoado». E depois reportagem. Pá- os tempos, porque em três tempos li- gina 36. Ana Ma- xam a vida de uma pessoa.” 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 16 VERA MOUTINHO DOSSIER • MARK KRAMER Resgatar velhas ideias Q uando era miúdo passava os dias nalismo narrativo pode ser a solução. fabetas, pelo contrário.” não só em Portugal mas também nos parecida mas diz assim: o que é que na livraria da mãe. “Era uma PEDRO ROSA MENDES: “O proble- ADELINO GOMES: “ Penso que ele EUA e na Europa. Acho que o interes- excita o português médio de hoje?” ALEXANDRA LUCAS COELHO: “O grande contadora de histórias”, re- ma – e acho que o Kramer o diagnos- tem razão: o jornalismo narrativo (is- se por alguns títulos tem a ver com es- corda. Dos livros ficou o gosto pela li- tica muito bem – é que as pessoas se to é, contar histórias nos jornais, rá- se encontro entre o leitor e os jornais, Mark Kramer diz que os jornais não teratura; da mãe a procura de histó- afastaram da imprensa, sobretudo da dios, televisões) é a melhor forma de que pode passar pelo jornalismo nar- podem ser só feitos de jornalismo rias bem contadas. Foi nisso que se diária, que está praticamente tão su- chegar próximo dos leitores. E chegar rativo. O jornalismo precisa de encon- narrativo. Precisamos de notícias e lançou nos anos 70, quando começou perficial como a televisão. O registo aos leitores/ouvintes/espectadores é trar novas fórmulas, senão pode en- é das notícias que extraímos sem- a publicar histórias sobre a vida ru- de tempo é nulo, não há recuo, não há uma condição sine qua non para que trar pura e simplesmente em falência. pre a base para uma história. Ami- ral nos EUA. O diploma em Literatu- tempo para palavras. (...) E estive três um jornal/rádio/televisão sobrevivam.” Se é jornalismo narrativo ou não, não gos não sei se é a palavra. Mas que ra e o mestrado em Sociologia acaba- meses em Belgrado e todos os dias PAULO MOURA: “Isso já não é tan- sei. Essas definições académicas…” o esforço na escrita é o de esten- ram por servir o jornalismo a que hoje mandava uma página. O meu tempo to uma opinião como uma fé (risos), se dedica e a que chama “jornalismo de contacto com cada uma das his- mas eu acredito que possa ser e gos- “Os jornais devem ter na maioria der uma ponte, de parar o leitor, de narrativo”. Foi disso que veio falar a tórias que eu contava não era nunca tava que fosse assim. E também gos- aquilo que actualmente têm. Mas história, com certeza.” Portugal, no passado mês de Julho, superior a um dia. Eu não tinha tem- tava que isso fosse visto dessa forma também precisam de ser amigos de BAPTISTA-BASTOS: “Tem de ser. O o director do curso de jornalismo nar- po. O pretexto para o jornal me enviar por quem tem poder de decisão nos confiança dos leitores.” jornalismo tem de ter coração. Como o deter para lhe poder contar uma rativo da Fundação Nieman na Univer- lá não são as pessoas, é a agenda po- jornais: que os leitores e os editores FERNANDO DACOSTA: “É uma boa diz o Mark Kramer e como digo eu há sidade de Harvard, relançando o velho lítica. (...)E isso é pobre. Normalmente começassem a ver o jornalismo nar- expressão, sem dúvida. Devem criar 40 anos antes dele (risos). Ele veio sa- debate sobre a relação entre jornalis- o pretexto também é pobre. Não é na- rativo como uma mais-valia, um re- laços de afectuosidade. Quando eu cudir as coisas. (…) Não acredito nu- mo e literatura. Às ideias de Mark Kra- da literário nem é nada narrativo. Pa- curso a incentivar. Não é converter comecei no jornalismo, muito antes ma literatura ou num jornalismo que mer juntam-se agora os comentários ra mim isso é evidente, para o Kramer os jornais todos em “poema” (risos), do 25 de Abril, nós fazíamos as agen- seja insultuoso ou que ignore as pes- de alguns dos protagonistas do jorna- também, mas parece que não é evi- mas ter a noção de que isso pode ser das e escolhíamos os temas guiados soas. Que ignore a condição humana. lismo português. dente para a maior parte dos edito- uma forma de chegar a mais leitores; por esta frase: o que é que preocu- Nós somos nigerianos, norte-ameri- res. O facto é que os números indicam e não é só chegar: é fidelizar o leitor”. pa o português médio de hoje? E era a canos, mexicanos, espanhóis, nós so- “Há uma crise no jornalismo escrito que os jornais perdem leitores. E não é CÁCERES MONTEIRO: “Essa crise partir daí que trabalhávamos. Hoje, a mos a condição humana. O jornalis- em várias partes do mundo.” E o jor- porque as pessoas estão a ficar anal- existe de uma forma muito profunda, frase não é essa. Hoje, a frase é muito mo é fundamentalmente isso.” • nário, personagens, voz interpretati- tre jornalismo e literatura. Segundo o Almeida, Eça de Queirós ou Ramalho mudança: “Se uma pessoa apenas uti- Baptista, para muitos um achado lite- va do narrador. Nas conferências que professor e jornalista, cujos trabalhos Ortigão. “Sabe o que é que dizia o Ale- liza os factos, os chamados elemen- rário. Uma longa nota de rodapé expli- faz pelos Estados Unidos da Améri- são apontados como modelo deste tipo xandre Herculano? «Sou da imprensa. tos objectivos, apenas chega ao exte- ca que o autor encontrou aquela carta ca e Europa, com o apoio da Universi- de jornalismo, os EUA vivem hoje um Tudo o que sou a ela lho devo»”, cita rior dos acontecimentos, das pessoas, através da descendente da bisneta de dade de Harvard, onde dirige o curso “movimento não oficial do jornalismo Baptista-Bastos. A frase soa-lhe bem. dos fenómenos. Se quer entrar den- uma senhora que vivia em Tete e que de Jornalismo Narrativo da Fundação narrativo”, que retoma o New Journa- Fernando Dacosta veio, mais tarde, tro dos acontecimentos, das pessoas era descendente do médico que tratou o escravo. “Toda a gente diz que é das Nieman, Kramer fala de um jornalis- lism dos anos 60, onde se destacaram “engrossar as fileiras”, defendendo e dos fenómenos, tem de usar outro ti- mo que é capaz de revelar a comple- nomes como Tom Wolfe ou Truman que “o jornalismo não é uma técnica, po de instrumentos: a poesia, a criati- melhores coisas. Mas é inventado. Só xidade de certas histórias pelo recur- Capote. Mark Kramer usa a expressão é uma arte que se serve de técnicas.” vidade, até ficção.” que as pessoas pensam que não é. Re- so a técnicas da literatura. E vai mais “jornalismo narrativo”, mas reconhece Com mais de vinte obras publicadas e No palco, a his- “Há uma arte do jornalismo. Mas isso não quer dizer que o jornalismo seja uma arte”. - Alexandra L. Coelho longe: o jornalismo narrativo pode ser que todos os nomes (literário, criativo, um currículo como jornalista que in- tória uma solução para a crise dos jornais humano) são apenas “diferentes taças clui passagem por títulos como o Di- De um lado, na hoje em dia. Ao afastamento dos leito- para a mesma sopa”. E de que é feita ário de Lisboa, o Diário de Notícias, o plateia, res, os jornais contrapõem mais ima- essa sopa? “É feita de histórias sobre Público e a Visão, Fernando Dacosta algumas das fi- gens, mais cor, artigos mais curtos, pessoas reais, pessoas bem escolhidas é uma referência na narrativa jorna- guras da velha celebridades e desporto. Mas isso não com algum simbolismo sobre o que re- lística. Ainda assim, hesita em acei- geração do jor- tem funcionado. A cura está, para almente se passa no mundo.” tar a designação “jornalismo literá- nalismo journa- rio”, porque considera logo à partida guês. Do outro lism foi feito pe- que o jornalismo ou é literário ou não lado, no palco, Adelino Gomes fala no sentido ficcional não está no con- lo Garrett!”. Em é jornalismo. “Concordo com criativi- de uma nova geração: Alexandra Lu- teúdo do texto mas está na expectati- Mark Kramer, numa aborda- gem mais timista, inmais “amiga”, longe da voz burocrática e quase militar da maioria dos jor- “O jornalismo não é uma técnica, é uma arte que se serve de técnicas.” - Fernando Dacosta nais. E garante: “O new continua. lacionam-se de estão portu- uma forma jornalística com o texto”, reconhece Pedro Rosa Mendes. “Às vezes a diferença entre o jornalismo e o literário Portugal a dis- dade. Com jornalismo criativo e huma- cas Coelho, Rui Cardoso Martins, Pe- va do leitor, está no embrulho”, por- cussão não é no- nista”. Acima de tudo, sabe por experi- dro Rosa Mendes. “O que é a 20. se não que quem lê um jornal espera factos; quem lê um livro, ficção. Mas o jorna- va. As Viagens na ência própria que o rótulo “jornalismo uma «Fernão Mendes Pinta» reporta- Minha Terra tem literário” pode ser demasiado pesado: gem?”. A analogia é entre a Peregri- lismo literário baralha o jogo: trabalha tudo: ficção, po- “Eu já há mais de 30 ou 40 anos que an- nação, do autor do século XVI, e o livro os factos com os recursos da ficção. do com esta ladainha, e fui logo rotu- de Pedro Rosa Mendes, ambas “litera- Deslizam como bichos rente aos mu- esia, informa- “É uma vitória para os leitores, que lêem ção”. Baptista-Bastos recorda ainda lado de jornalista literato, que é uma tura de viagens” que partindo do re- ros. Vêm em fila, das suas celas para coisas apelativas; é uma vitória para os que há 40 anos era o único a reconhe- maneira de depreciar a pessoa: «É um al se confundem com o imaginário do a capela. O jornalista Paulo Moura co- jornalistas, que escrevem histórias in- cer a ligação entre jornalismo e lite- literato»”. Crítico do jornalismo actual, autor. O jornalista confessa: “Deu-me nhece as regras desse jogo, falando da teressantes; é uma vitória para os pa- ratura. Lia-a na história da literatura acredita que a imprensa se deve reen- prazer espalhar algumas mentiras ao utilização de ferramentas da literatu- trões, que têm mais lucro”. Mark Kra- portuguesa, em nomes como Fernão contrar com o leitor, que se deve “re- leitor”. A meio do livro uma carta de ra e não criação. Surgem seis de um mer resgata, assim, o velho debate en- Lopes, Pêro Vaz de Caminha, Fialho de humanizar”, e para isso é preciso uma amor escrita pelo escravo Pedro João lado, seis de outro do grande claus- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 DOSSIER 17 NAZARET NASCIMENTO E VERA MOUTINHO tro, um após outro, em silêncio, cabeça baixa, capuz a cobrir a cabeça, todos na segunda metade da vida. Na reportagem “O segredo da Cartuxa”, escrita para a Pública em 2001, premiada pelo Clube Português da Imprensa, o literário torna-se cinematográfico, pois para além das personagens, dos cenários do convento da Cartuxa, em Évora, há a expectativa. Um segredo que um dos monges quer revelar e que provoca uma tensão ao longo de todo o texto, para se desvendar apenas no final. “A história no fundo estava na nossa cabeça (o que será o segredo?), porque para eles não se passou nada assim. Construiu-se um enredo e um suspense para manter o leitor preso até ao fim, mas não como um truque. Quis ilustrar como devemos respeitá-los e explicar porque é que eles estão ali. Isso também é missão do jornalismo literário: dar sentido às coisas para além do imediato”. Quando falamos num cenário do jornalismo literário em Portugal, Paulo Moura é peremptório: “Na Europa há muita confusão. Em Portugal nem se fala. Lembro-me muitas vezes de no Público colegas meus me dizerem: «Escreve tu sobre isso, tu que gostas de ficcionar um bocado». Isso é a coisa mais ofensiva que se pode dizer a um jornalista!”. Para Pedro Rosa Mendes simplesmente não há cenário porque não há mercado: “O jornalismo narrativo precisa de respirar em tempo, em espaço impresso e em meios de financiamento. Os media portugueses não permitem nada disso”. Cáceres Monteiro, director da revista Visão, concorda com a ideia de Mark Kramer de que um jornal não pode sustentar-se apenas de “jornalismo de histórias”. A maioria dos jornalis- • PEDRO ROSA MENDES “O meu olhar de escritor será sempre o de um repórter.” E stava previsto ser advogado mas depois da escrita do livro continuei tar uma determinada realidade, que casa para ir buscar comida e um sni- per matá-lo e depois ser comida pe- o desinteresse pelo curso e a falta a ser jornalista. Não é uma pessoa eu tinha coberto como repórter, foi de dinheiro para comprar discos em- diferente a escrever. O escritor está bom, porque de repente dei-me a li- los cães. Isso que o narrador conta, purraram-no para o primeiro traba- sempre lá. As duas pessoas que fi- berdade de ter todos os recursos da o horror absoluto, foi vivido por mi- cam outra coisa: “Hoje as pessoas não lho como jornalista, no Jornal de Coim- zeram a crítica à Baía dos Tigres no escrita fora do jornal. E foi essa a di- lhares de pessoas lá. E há uma ver- procuram o jornalismo como discipli- bra. Foi recrutado para o Público e for- Público foram o Adelino Gomes e a ferença no meu trabalho: foi introdu- dade jornalística aí; essa realidade tas também concorda. Contudo, Cáceres Monteiro acha que os leitores bus- na da literatura. Marginalmente, is- mou-se ao mesmo tempo que o jornal. Alexandra Lucas Coelho e ambos di- zir mais escritor no jornalista. (...) Há mais brutal aconteceu, só que não é so pode estar lá, mas as pessoas pro- Conheceu África como correspondente ziam a mesma coisa: este livro é ob- um capítulo quase no fim do livro so- ninguém verdadeiro. E eu, como jor- curam a explicação da história e isso internacional e como freelancer, mas viamente um livro de um jornalista; bre o Cuíto, que é o mais violento e nalista, não poderia escrever o Cuíto por vezes pouco tem a ver com a lite- foi com a viagem que fez sem cartei- não poderia ter sido escrito por uma que é escrito por um narrador que para o jornal Público dessa manei- ratura. E depois há a questão do tem- ra de jornalista e com uma licença sem pessoa que não fosse um repórter. E não existe; é alguém do Cuíto que vive ra. Mas como escritor e num livro as- po; aquilo tem de ser explicado em tão vencimento que descobriu os cheiros, o meu olhar de escritor será sempre toda a guerra, não é ninguém especi- sim, a que eu não chamo reportagem, poucas horas”... Ainda assim, realça os sabores, os sons de um território de um repórter. ficamente. Mas esse narrador conta posso. Eu recolho, ouço e depois que não há nada melhor que uma re- marcado pela guerra. A viagem de An- Baía dos Tigres é então um livro- coisas, todas verdade, que me foram construo um narrador que é inventa- portagem bem construída, com pesso- gola a Moçambique por terra, durante reportagem ou um romance? contadas e que eu sei que acontece- do mas que conta coisas verdadeiras. as “bem recortadas”, com ambientes cerca de 4 meses, está registada no li- É curioso porque na 1ª edição havia por ram – cenas de canibalismo, ou de al- E o que é que é isto? É reportagem? bem descritos, onde a informação não vro Baía dos Tigres, publicado em 1999 baixo do título um rótulo, que era “Ro- guém estar à janela e, durante o cer- É literatura? É ficção? É tudo ao mes- seja descurada. co, ver uma pessoa da família sair de mo tempo e não é nada. • e que recebeu o Prémio Pen Clube de mance”, que foi posto pelo editor da “O Baptista-Bastos tem sido a voz dos Romance. Na contracapa lê-se “Um li- Dom Quixote, Nelson de Matos. Isso de- que não têm voz e dos que, tendo-a, vro capaz de renovar a chamada litera- sapareceu a partir da 2ª edição, porque não a sabem usar”. Pouco depois de tura de viagens. Neste caso, grande li- era uma mentira. É uma mentira não lançado o elogio, o veterano jornalista teratura”. Escrito por um jornalista. estar cá nada, mas era uma mentira… do Público arrisca divergir do homena- Neste momento, considera-se es- Então o que é? geado da noite, pois sabe que ele ain- critor ou jornalista? Também tem romance, tem ficção, da terá hipótese do contraditório. Lem- Em Portugal, o escritor tem a co- mais do que as pessoas pensam. Há brando a célebre frase de Baptista- notação em primeiro lugar de ro- pessoas, aliás, que não lendo a Baía Bastos “o jornalismo é uma disciplina mancista; não se pensa que a es- dos Tigres acham que é a recolha superior da literatura”, Adelino Gomes crita pode ser escrever para jornais do que fiz antes para o Público. Não explica que prefere falar em literatura ou escrever não-ficção para além há uma linha no livro, em 400 pági- jornalística, “e essa só quando a notí- de ficção. Há essa confusão. Para nas, que tenha sido publicada antes cia, a reportagem, a crónica se liberta- mim, a confusão surgiu depois, com noutro sítio. (...) O exercício de fazer rem da lei do efémero e conseguirem a Baía dos Tigres: era jornalista mas a Baía dos Tigres e estar fora da car- permanecer na memória do leitor mui- seria escritor? (...) Antes, durante e teira profissional de jornalista a tra- to para além das canónicas 24 horas”. VERA MOUTINHO 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 18 DOSSIER VERA MOUTINHO • FERNANDO DACOSTA “O jornalismo já morreu” Mas pode ser ressuscitado É • “O jornalismo tem de ter coração” - Baptista Bastos Mas as opiniões contrárias estendem- muito empobrecedora a visão de e descaramento pelos respon- que muitos têm de que o jorna- sáveis desta geringonça monstru- lismo se reduz sobretudo à notícia, osa que é a comunicação social, retirando-lhe essa capacidade que que eu não sei o que é. O jorna- tem de criação, de ser uma discipli- lismo sei o que é, mas o jornalis- na nobre da literatura, como é o ro- mo já morreu. Cedeu lugar a es- mance, o conto, o teatro, a história, te guarda-chuva que foi inventado o ensaio. É uma faceta da literatura: pelos poderes instituídos para de- pelo menos eu defendo esse ponto baixo dele cometerem todo o tipo de vista e estou muito bem acompa- de manipulações, de corrupções, nhado. Basta ver ao longo dos sécu- de interesses, de tropelias. E aí a los os grandes escritores que povo- preocupação deles foi diminuir o avam as redacções dos jornais. Só papel e a importância do jornalis- hoje é que eles foram corridos. ta, que é a base. (…) Os jornalistas A partir da década de 90 obser- nas redacções foram transforma- vou-se uma coisa extraordinária: dos em engrenagens de uma má- todos os jornalistas com mais de quina que normalmente é coman- 40 anos começaram a ser pos- dada por uma caterva de edito- tos nas prateleiras porque esta- res e editores-executivos, que são vam velhos. Eu acho isso um pou- normalmente uns indivíduos car- co estranho, porque se fosse para reiristas, que nunca escreveram andar a carregar sacas de batatas uma linha. Como consequência, o público está a afastar-se, es- na crónica, na reportagem, na simples reza e intensidade. “É tudo o que pe- dentro da redacção eu percebia se também à objectividade. Para Adeli- notícia, nunca deixando o jornalista de ço numa história.” que tinha a sua lógica. Agora, para tá a deixar de comprar jornais. E no Gomes, este é ainda hoje um concei- ser um artista. Alexandra Lucas Coe- Histórias em que a realidade, escrita exercer um trabalho que vive so- isso não me admira nada. Só me to central da profissão, porque os lei- lho é cautelosa: “O jornalista não é um com todos os sentidos, se afirme sem- bretudo da memória, da experiên- surpreende como é que se ven- pre como mais fértil do que qualquer cia, da vivência, do conhecimento, dem ainda os jornais que se ven- tores esperam sempre ouvir os factos tal como são. “É aí que entra também o jornalismo narra- tivo, tal como o new journalism, pois entendo-o “Eu já há mais de 30 ou 40 anos que ando com esta ladainha, e fui logo rotulado de jornalista literato, que é uma maneira de depreciar a pessoa: “É um literato”. - Fernando Dacosta ficção. Ainda que seja preciso tempo, acho isso muito surpreendente. dem, como é que há tantos ton- coisa rara no jornalismo. Ainda que Esta atitude foi devastadora por- tos a comprar aquela bodega dis- seja preciso estar muito perto, per- que é precisamente o cruzamen- farçada de jornal ou revista, com tíssimo, “a cheirar o outro”, nas pa- to intergeracional que enrique- negociatas por trás e a transformar-se apenas num negócio. A lavras de Adelino Gomes, e isso tra- ce, quer os mais velhos, com as ga dilemas éticos ao jornalista. Com ideias e vitalidade dos mais novos, função da imprensa, que era a de o aumento da proximidade com o ou- quer os mais novos, com a experi- estar do lado do público, do lado tro, crescem proporcionalmente ga- ência dos mais velhos. Isto está a das pessoas que não têm voz pa- nhos e perigos: adquirem-se as fer- empobrecer o ambiente existente ra lhes dar voz, ajudar a resolver nimo de arbítrio ramentas para escrever personagens nas redacções. É uma árvore que problemas, perdeu-se. E como vai mas de «esfor- vivas e corre-se o risco de que o outro está a estiolar: muito farfalhuda, por este caminho, como é eviden- compreenda a relação entre jornalis- com estas tecnologias, estas in- te, vai tudo ao fundo. Não irá porque eu acredito – sou um optimis- não como sinó- ço explicativo» para o qual a subjectivi- criador. Poderá fazer o seu trabalho dade pode funcionar como auxiliar pre- com arte, exceder-se no cuidado com ta e fonte como a de dois amigos. Mas fografias, estas coisas muito bo- cioso”. Baptista-Bastos é um dos que já a verificação de elementos, com a pro- Fernando Dacosta tranquiliza: “A re- nitas e cores, que são de facto ali- ta a longo prazo – que as pessoas enterraram a objectividade, preterindo- fundidade de investigação, com a ar- gra número um é uma certa humilda- ciantes e sugestivas, mas depois vão reagir. Vão dizer: “Basta! Não a a um “tomar partido” na escrita. Sen- gúcia na captação de sinais, com a es- de e respeito pelo outro”. “A procura o conteúdo... Aliás, a palavra con- queremos este tipo de taberni- tado sozinho no palco escuro, garrafa crita. Ou seja, há uma arte do jorna- e o encontro do outro”, diria Baptista- teúdo generalizou-se e as coisas ces”, e vamos começar a exigir de água no chão, voz rouca, Baptista- lismo. Mas isso não quer dizer que o Bastos, é a tarefa de quem escreve, e de criação passaram a ser mer- outra vez um jornalismo que seja dirigido às pessoas, que seja cria- Bastos faz questão de lembrar o tra- jornalismo seja uma arte”. Para além aí o peso dos princípios da “distancia- cadorias, conteúdos. Esta pala- balho de uma jornalista. Uns dias an- disso, distingue bem o trabalho de um ção” e “objectividade” jornalística não vra foi realmente assumida e é tivo e que levante os problemas tes, falava-nos dela assim: “A Alexan- jornalista de o de um escritor de fic- se pode sobrepor ao sopro humano. É pronunciada com todo o à-vonta- que nos estão a afligir. • dra Lucas Coelho é uma das grandes ção, acima de tu- disso que é feito jornalistas europeias. Ela toma partido do porque os fins o jornalismo li- – só quem não quer ver. Toma e de que são completa- maneira, e ainda bem que toma. Mas o mente distintos. que é isto? Ela é indiferente à dor hu- “O escritor cria mana, à tragédia?”. um mundo, é li- Alexandra Lucas Coelho é mais uma vre e soberano. das operárias das “histórias com tem- O jornalista res- po, espaço, escapando ao padrão do ponde perante o lead comum”. A ideia vem por e-mail, seu órgão de co- de Jerusalém, onde a jornalista esta- municação, o seu rá por seis meses a trabalhar para o editor, os seus jornal Público. De lá vêm não só re- leitores. São es- “Às vezes a diferença entre o jornalístico e o literário no sentido ficcional não está no conteúdo do texto mas está na expectativa do leitor, está no embrulho” - Pedro Rosa Mendes terário: da palavra cuidada, da frase melódica, do pormenor humano. E no final, pousadas lado a lado as canetas de jornalista e artista, existe sempre uma resposta para portagens mas também notícias que ses os constran- traçam a linha do jornalismo literário, gimentos, o que a questão que a certa altura a reiterando a ideia de Mark Kramer de não quer dizer Ana Maria, na que o alcance do jornalismo literário que não se deva e não se consiga pen- “Rua das Maravilhas”, lançou a Baptis- não é limitado a um género jornalísti- sar em novas formas de contar as coi- ta-Bastos: “Mas então diga-me lá, es- co: pode ser trabalhado na entrevista, sas”. Contá-las com veracidade, cla- crever serve para quê?” • VERA MOUTINHO 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 DOSSIER 19 SÃO SOUSA • PEDRO SENA NUNES Documentário O tempo das coisas AS PERSONAGENS, OS CENÁRIOS, OS ARGUMENTOS QUE DÃO VIDA AOS DOCUMENTÁRIOS SÃO VERDADEIROS. SÃO REALIDADES CONTADAS PARA ALÉM DO IMEDIATO DA REPORTAGEM TELEVISIVA, COM ARTE, MAS SEM FICÇÃO. O REALIZADOR E PROFESSOR PEDRO SENA NUNES FALA DESTE OLHAR SOBRE O REAL, NO MÊS EM QUE SE ASSISTE AO PRINCIPAL FESTIVAL DE CINEMA DOCUMENTAL EM PORTUGAL, O DOC LISBOA. SÃO SOUSA E SÍLVIA DIAS A envolver a sala, cortinas pretas. A tes. Que eu tenha conhecimento, não A televisão não é o meio ideal para a tir um fenómeno de contágio, uma do- vigiá-la, câmaras espalhadas jun- há nenhum filme nem documentário exibição de documentários? ença saudável, daquelas que se passa E isso ajuda a perceber melhor as to às paredes. Do tecto, projectores que portugueses que tenham entrado num Tenho dúvidas sobre se é o meio ide- para toda a gente. As pessoas vão fi- situações? permanecem apagados. É no estúdio da campeonato dessa dimensão. al. Um documentário, enquanto ob- cando encantadas. As pessoas sentem-se mais confortá- elho para ir para o ar. ETIC que Pedro Sena Nunes dispõe três Mas há mais interesse pela realidade jecto, tem uma pulsação própria, uma O facto de, no cinema documental, se veis com a situação. Sinto fascínio em cadeiras em círculo para falar de docu- do que pela ficção? duração. Eu pensei naquilo, pesquisei, apresentar a realidade de uma for- estar com as pessoas e ouvi-las, trazendo coisas cá para fora que, de outra for- mentário. Em 1992, quando terminou o Acho que as pessoas sempre estive- preparei, gravei, editei e, no final, é ma mais artística permite aprofundar curso de Cinema, o festival da Malapos- ram interessadas pela realidade, mas um corpo. Mas a televisão obriga-me questões que, normalmente, são tra- ma, não conheceríamos. Não considero ta era o único a divulgar os documentá- não são elas que decidem o que é que ao corte, por uma questão de timin- tadas mais superficialmente? o documentário do Michael Moore nada rios guardados nos sótãos dos realiza- querem ver. Colaboram quando per- gs. Houve um programa, na RTP 2, que O tom mais artístico a que as pesso- de extraordinário. Tem uma manipula- dores. Treze anos depois, Doc Lisboa, cebem que há qualquer coisa que lhes potenciou a protecção dos documen- as se referem concentra-se na relação ção muito exposta. Tem um tom abusi- Doc’s Kingdom, em Serpa, e Encon- é atirada e podem reagir. Eu acredito tários portugueses. Nesse sentido, pa- que se estabelece entre o assunto re- vo com o qual, não sendo bom nem mau, tros de Viana catapultam o cinema do- que, se as pessoas pudessem esco- rece-me um bom serviço público. Esse tratado e a pessoa que o retrata. E es- não me identifico muito. Há ali uma zona cumental para a grande tela. Mas a di- lher, neste momento se via muito mais programa teve uma adesão muito boa. sa relação privilegia essencialmente o de tirinhos de uns para os outros, há só vulgação destes filmes esgota-se no cir- documentário do que o que se vê. O público não é um grupo de pesso- tempo: o tempo de preparação, de vi- um lado a ser ouvido. E acho que o docu- cuito festivaleiro. “Acredito que, se as Acha que isso pode acontecer, agora as tontas. As pessoas sabem perfeita- ver e conviver com a situação das pes- mentário não pode ser isso. pessoas pudessem escolher, neste mo- que o Nimas decidiu deixar o cinema mente distinguir aquilo de que gostam soas, o tempo de as ouvir, de as com- Pode haver uma atitude definida na mento, se via muito mais documentário francês e optou pela exibição de do- daquilo de que não gostam. preender. Não encontro nenhuma defi- realização de um documentário? “Eu do que se vê”, assinala Sena Nunes, que cumentários? Para a divulgação destes trabalhos, nição para o documentário, mas se me sou a favor ou contra isto”? admite que “as pessoas sempre estive- Eu acho que sim, desde que seja feita festivais como o DocLisboa são es- aproximasse de alguma teria sempre a Claro. E mesmo quando não se no- ram interessadas pela realidade”. E pa- uma divulgação séria e concertada, de senciais. E este é, de todos os festi- ver com o tempo das coisas, o tempo de ta, espero, pelo menos, que fique es- ra o realizador que encontra uma histó- maneira a que as pessoas saibam que vais de cinema documental, aquele estar. Passa por essa ideia da partilha. boçada. Não sou um activista políti- ria empolgante, que tem o tempo para aquilo está a acontecer. Sempre que eu que é mais conhecido. Porquê? Até pode haver realizadores que não co, mas reconheço que é um assunto ouvir, para sentir a história, que pode ti- encontro algum espectador que assis- Primeiro, porque acabou o festival da são grandes comunicadores, mas têm que me preocupa. Exponho as situa- rar da escuridão um tema que o preocu- tiu a um documentário sinto uma sen- Malaposta, onde estava concentrado disponibilidade para ouvir, enquanto ções sob um ponto de vista que per- pa, “é possível ficcionar, mas fica sem- sação agradável no ar. Há qualquer coisa o documentário. E, depois, porque a há situações em que isso não aconte- mite perceber qual é o meu. pre aquele sabor…”. de confiança, qualquer coisa que lhes foi primeira edição do Doc Lisboa foi no ce: há coisas a arder e alguém a insis- A ideia de uma intervenção cívica... tir e a perseguir respostas. São coisas Sim, a ideia de um esclarecimento é que têm um tom ob- fundamental. Ter uma identidade pró- sessivo, doentio até, e pria, na qual eu me reconheça. Porque é que tem aumentado o inte- mostrado, que foi partilhado, que traz um CCB, que é um centro cultural por ex- resse pelo documentário? vínculo. Não estou a ver o grande herói celência. Come- Se medirmos isto num plano interna- americano remetido para uma historiazi- çou cional, são abordados temas que, glo- nha. Há uma identificação diferente: po- muito balmente, são interessantes. Os tra- deria ser facilmente aquela pessoa. Não Depois, a Cultur- num sítio especial. balhos de Agnés Varda, Michael Mo- estou no registo de espectáculo propria- gest, que é uma ore, Wim Wenders, Nicolas Philibert, mente dito. E depois existe um cansaço referência inter- são exemplos concretos. As grandes imenso da televisão, daqueles formatos nacional, acaba distribuidoras mostram-se interessa- ditos documentais. O documentário na das por este tipo de abordagem, mas sabendo que do ponto de vista da promoção e do marketing há um nome precisam de ver, de respirar outras coi- sonante, há um tema interessante. E, portanto, faz sentido apostar. No caso nacional, os caminhos são diferen- “Não considero o documentário do Michael Moore nada de extraordinário.” que ficam por ali: é o Isso não se consegue com ficção? instantâneo, é a per- Cada projecto é um projecto. Mas no seguição, a insistên- documentário há algo de mais credí- cia… O documentário vel, mais sensível. As pessoas fazem não é isso: represen- as pausas onde fazem, respiram onde por herdar o festival. Além disso, ao ta uma persistência, uma resistência e respiram, dizem o que dizem. O docu- televisão tem um formato, uma duração, haver uma equipa que organiza tão não uma insistência. Há um enquadra- mentário nasce ao contrário da ficção: um estilo. Isso quer dizer que as pessoas bem este festival e que consegue fa- mento deontológico por trás que tem vemos uma situação e pensamos “era zer uma boa promoção, mesmo a ní- de ser equilibrado. E isso traz uma vi- nisto que eu devia pegar”. É possível sas. As mesmas coisas, de um ponto de vel internacional, facilmente se chega são mais contemplativa e com ela virá ficcionar, mas fica sempre aquele sa- vista menos viciado, tanto a nível técnico, a números poderosos, a números fi- talvez esse tom mais artístico, porque bor… a ficção, para mim, não faz senti- como estético e, mais ainda, narrativo. xos de espectadores. Acaba por exis- as coisas não são feitas em cima do jo- do: as coisas são assim e pronto! • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 ENSINO 20 • PRAXES SISTEMAS DE ENSINO por Irina Melo e Patrícia Silva Pintados de fresco O sonho finlandês E O CHEIRO A TINTA, OS GRITOS HISTÉRICOS E AS VOZES pria ditadura. A crise estudantil de 1969 ROUCAS INVADEM A CIDADE. É ALTURA DAS PRAXES xistas e os estudantes mais politizados, provocou uma rara união entre os pra- m 2003, os alunos finlande- Desde a Segunda Guerra Mundial ses alcançaram uma façanha: que este país nórdico apostou na o primeiro lugar no estudo PI- educação como o melhor instru- SA para a educação. O estudo in- mento para alcançar a prosperida- ternacional, da responsabilidade de, tendo introduzido um sistema da Organização para a Coopera- gratuito, de forma a proporcionar que substituíram as actividades pelo ACADÉMICAS. AMADAS POR UNS, ODIADAS POR OUTROS, “luto académico”, em forma de protesto. TODOS OS ANOS ELAS SE REPETEM. SIMBOLIZAM A NOVA grupo de veteranos volta a bater-se pe- VIDA DAQUELES QUE INICIAM UM FUTURO. dição e funda a “Ordem Praxe e Acade- Quatro anos depois do 25 de Abril, um lo fim do luto e pela recuperação da tra- ção e Desenvolvimento Económi- igualdade de oportunidades e de- mia”.1979 é, pois, o ano do regresso da co (OCDE), avalia de três em três sincentivar o abandono precoce. queima das fitas e das praxes. anos as capacidades dos alunos Os resultados estão à vista: neste de 15 anos nas áreas da matemá- momento, apenas 10% dos alunos tica, leitura e ciências. Os finlan- saem da escola com o 9º ano ou deses foram considerados os me- menos, enquanto em Portugal os lhores de entre os 41 países estu- valores atingem os 46%. dados. Depois de em 2000 terem Para além da escolaridade obri- conseguido o topo da tabela na leitura, ocupam actualmente o primeiro lugar nas três áreas. Na matemática e nas ciências, os O Estado financia totalmente o ensino até ao 9º ano e não existem propinas, nem mesmo no superior. nórdicos passaram mesmo à fren- João Teixeira Lopes, sociólogo e proINÊS HENRIQUES fessor da Faculdade de Letras da Uni- E TÂNIA REIS ALVES N versidade do Porto, considera a massi- ão há cadeiras que cheguem para to de vista… ficação do ensino superior, iniciada nos todos os doutores e doutos-vete- Ali, como em tantas outras comissões anos 80, a principal responsável pelo ranos que disputam um lugar senta- de praxe e faculdades, há uma hierar- recente apego às tradições académi- do na pequena sala de reuniões da As- quia mais ou menos clara entre os es- cas. Para o sociólogo, a entrada no en- sociação de Estudantes (AE) da Es- tudantes. O vértice superior da pirâ- sino superior “é a prova visível de um cola Superior de Comunicação Social mide é ocupado por quem frequenta percurso de ascensão social”, que os (ESCS). Os corpos dourados pelo sol a escola há mais tempo, a base pelos estudantes têm necessidade de exi- das despreocupações estudantis pa- alunos do primeiro ano, os caloiros. É bir “da forma mais ruidosa e exuberan- recem ter abdicado de umas horas de essa mensagem praia nesta manhã de fim de Verão, e que gatória gratuita, o governo inves- trocaram a capa e a batina pelos cal- transmitir é preciso aos te dos países da high-tech: Japão te fortemente no ensino superior: ções e chinelos de dedo. É que a tra- novatos desde o e Coreia do Sul. os gastos por cada universitário dição pesa e o tempo ainda é de ca- primeiro dia. Para os peritos, a cultura das fa- aproximam-se dos 6.800 euros, o lor. “Bem-vindos à Comissão de Praxe As praxes aca- mílias finlandesas é responsável dobro do dispendido por Portugal. 2005-2006. Quem é que daqui tem três démicas foram pelo bom desempenho dos jovens A permanência dos estudantes na ou mais matrículas?” Levantam-se sempre uma na leitura e na escrita, o que não universidade é facilitada pela con- braços em sinal de resposta. “Alguém marca da Univer- será estranho num país em que cessão de bolsas e subsídios de daqui não foi praxado? Não, eu praxei- sidade de Coim- te possível”, atra- “Os caloiros são caloiros e os veteranos são veteranos. Não há beijinhos nem sorrisinhos. Há uma coisa que é preciso perceber que é a hierarquia.” - Cláudia Soeiro vés de rituais como as praxes, o cortejo ou a queima das fitas. Ao mesmo tempo, existe, para João Teixeira uma Lopes, “profunda frustração” e in- os níveis de literacia atingem aos alojamento. Existe ainda um siste- vos a todos!”, ironiza Cláudia. bra, onde come- 100%. Já o sucesso na matemáti- ma de empréstimos que são con- João frequenta o terceiro ano e parece çaram a ganhar ca e nas ciências, duas áreas que cedidos pelos bancos e assegu- ainda não ter entendido bem o funciona- força no século provocam à maioria dos outros rados pelo Estado, que fica como mento das coisas. “Só lhe falta dar bei- XVI sob o nome de “investidas”. Algu- e pessoal do estudante, que podem tra- países “dores de cabeça”, deve-se fiador. Depois de terminados os jinhos aos caloiros.”, repreende Cláudia. mas das duras regras coimbrãs, como o duzir-se “na agressividade, cada vez ao profissionalismo dos professo- estudos, o aluno terá de reembol- “Os caloiros são caloiros e os veteranos facto de os estudantes não poderem sair mais notória, que os rituais da praxe res, que adequam os exercícios às sar a banca até um período igual são veteranos. Não há beijinhos nem à rua depois das sete da tarde ou de te- académica ostentam”. Ricardo Morei- capacidades dos alunos, ao mes- ao dobro da duração do curso. Por sorrisinhos. Há uma coisa que é pre- rem uma jurisdição especial, conhecida ra, do Movimento Anti-Tradição Aca- mo tempo que os conscienciali- tudo isto, e apesar de a lei não o ciso perceber: que há uma hierarquia.” como “foro académico”, nunca chega- démica (MATA), vai mais além. Afir- zam para a importância destas proibir, quase não existem esco- Edgar diz que só entrou este ano para ram, no entanto, a implantar-se em ci- ma que os estudantes universitários matérias. Outro contributo vem las privadas. a Comissão porque só agora sente que dades como Lisboa e Porto. Muitas ve- constituem uma espécie de “elite virtual que possui roupas, comportamen- certeza em relação à futura situação profissional de um corpo docente estável, es- Apesar do cenário idílico em ter- tem direito a praxar: “No 2º ano ainda zes posta em causa ou até proibida pela colhido por cada estabelecimento mos de educação, estão sempre a cheirava a tinta, no 3º vi como era e no sua violência, é com o Estado Novo que tos e leis que a diferencia. Pensa, cons- de ensino, não existindo concur- surgir novos desafios. Hoje, a Fin- 4º acho que já tenho autoridade”. Os ou- a praxe ganha um cariz político, sendo cientemente ou não, ser superior a to- tros parecem não perceber o seu pon- considerada tão opressora como a pró- dos os que não tiveram a oportunidade sos de professores. O estudo PISA demonstrou ainda lândia Apesar de a lei não proibir, quase não existem escolas privadas. que os fac- de tem resolver o TÂNIA REIS ALVES de frequentar a universidade e de es- proble- tudar ‘para ser Doutor’”. As praxes im- ma da falta põem também esta visão do mundo de assente na diferenciação ao nível da profes- sores. De- própria universidade, a começar pela tores sócio-económicos não são pois de um período excedentá- hierarquia entre estudantes: “Um alu- determinantes no sucesso esco- rio, a desvalorização da profissão no com mais matrículas é mais inte- lar, uma vez que o Estado financia nos últimos anos conduziu à situ- ligente, competente, inventivo do que na totalidade o ensino obrigatório, ação actual. O país discute tam- um aluno que acaba de chegar ao ensi- até ao 9º ano. Todos os estudan- bém a melhor forma de integrar no superior?”, questiona Ricardo. tes têm direito a material escolar os filhos dos emigrantes no siste- Se, por um lado, o reinventar da praxe gratuito, incluindo livros, trans- ma de ensino, que deverá passar veio recuperar a tradição boémia e ma- portes e uma refeição. Também por uma reorganização dos currí- rialva coimbrã, por outro, desvirtuou o não existem propinas, mesmo no culos, pensados especificamente significado do espírito inconformista e ensino superior. para este novo público. • reivindicativo que sempre caracterizou o mundo académico. Ricardo Mo- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 21 ENSINO TÂNIA REIS ALVES TÂNIA REIS ALVES reira considera que a praxe é mais uma a fazer nada contra a sua vontade, tal- forma de criar apatia, levando os estu- vez pelo seu “ar grande”. Não sente ne- dantes a alhear-se de causas natural- cessidade de ser compensado por aqui- mente suas, como a discussão sobre o lo que passou, nem de praxar. Acredita estado actual do ensino, os métodos de que a praxe tem um papel integrador, avaliação, as condições no futuro mun- “sobretudo para os mais desprotegidos”, do do trabalho. “O “come e cala”, a re- que vêm de meios mais pequenos para produção de comportamentos prees- a universidade, mas é contra o facto de tabelecidos, a aceitação de tudo em os veteranos se quererem “emancipar” nome da sacrossanta “tradição” não em prejuízo “dos mais tímidos, peque- desenvolve o espírito de discussão e de nos, feios, altos ou baixos” e esse “po- de não atribuir qualidades e privilégios to, olhos grandes, já tem cinco ma- alunos mais velhos que tentam trans- abertura. Como é que se pode pedir a der exacerbado” que surge uma vez por a pessoas só porque elas estão na fa- trículas no Ensino Superior, chefia a mitir aos primeiros “como se deve vi- um aluno que foi “praxado”, que acei- ano. “A partir do momento em que a culdade há mais tempo. Somos todos Comissão de Praxe da ESCS há dois ver na faculdade”. Diz que as praxes no tou um pacote pré-fabricado de atitu- tradição prejudique uma única pessoa iguais, por isso, em vez de submeter anos e é a pessoa mais respeitada IPAM são “leves”, que não recusou ne- num grupo, dis- e humilhar tentamos integrar os ca- em época de praxes. Os caloiros te- nhuma, mas que o teria feito se algu- crimine, humi- loiros”, explica Ricardo Correia, pre- mem-na, porque tem ar de má: não ma delas colidisse com os seus valo- lhe, separe, não sidente da AE. Na Faculdade de Be- ri, não salta com eles, não lhes dá res. São muitas as praxes de que ainda pode continuar”. las Artes defende-se um “convívio de confiança. Considera que a praxe é a se recorda: “Os típicos joguinhos entre Defende alterna- integração”, em que a AE recebe os melhor forma de integração dos ca- rapazes e raparigas, em que a rapariga tivas que estejam alunos, organiza uma visita guiada pe- loiros e que “a esmagadora maioria” estava de frente para o rapaz e cantava «é pudim Danone» e o rapaz respondia, des, que lute, por exemplo, contra as propinas?”, prossegue. A par da questão da tradição, a suposta legiti- “Um aluno com mais matrículas é mais inteligente, competente, inventivo do que um aluno que acaba de chegar ao ensino superior?” - Ricardo Moreira mais “de acordo la escola, “sempre em tom de brinca- gosta e diverte-se. “Há sempre ca- com uma deter- deira”. Os caloiros escolhem os padri- sos de caloiros minada idade e nhos e estes perguntam se os podem que não gostam, maturidade que pintar. “Se eles consentirem, o padri- 2 ou 3 em 200, se no nho pinta o afilhado e o afilhado tam- mas isso não é ensino superior”, bém pinta o padrinho. Todas as brin- significativo”. conceitos esses que o movimento an- como colóquios, discussões, incursões cadeiras são recíprocas.”, explica Ri- Catarina Reis de ti-praxe considera enganadores. Pa- à universidade conduzidas pelo vetera- cardo Correia numa voz calma. No Brito está no 2º ra Ricardo Moreira, o aluno que aca- no, que evitem o alheamento dos estu- entanto, reconhece que o convívio do ano de Adminis- ba de chegar à universidade sente-se dantes do seu “papel social”. ano passado foi algo “insuficiente” e tração de Marke- quase obrigado a colaborar num sis- A Associação de Estudantes da Facul- que para este ano estão a planear no- ting no Instituto Português de Adminis- tema de regras já definidas para que dade de Belas-Artes de Lisboa pare- vas actividades, “mais diversão” e du- tração de Marketing (IPAM) e considera fim, lembro-me que eram 11 da ma- seja legitimado, tal como os seus pa- ce concordar com Rui. “O pensamen- rante um período mais alargado. que a utilidade das praxes passa pela nhã e tivemos de beber aguardente, res. “A pressão de grupo cria condi- to que as pessoas da faculdade têm é Cláudia Soeiro, morena, cabelo cur- interacção existente entre caloiros e midade da praxe assenta, geral- mente, nos conceitos de aceitação e integração, ções em que recusar a praxe é muito adquire “Há sempre casos de caloiros que não gostam, 2 ou 3 em 200, mas isso não é significativo”. - Cláudia Soeiro com movimentos de ancas alternados, «não pares, não pares!». Casais escolhi- dos tinham de simular cenas de sexo, repetindo vezes sem conta até ficar do agrado dos veteranos. Por meio litro cada, e comer algo estranho, com um sabor horroroso. Quem dei- difícil. É simplesmente mais fácil em- tasse fora, tinha de pôr uma ponta de barcar nela naquele momento. Além esparguete na boca, de um lado o ra- disto, nunca a opção de recusa da pra- paz, do outro a rapariga e chegar à bo- xe é posta sem condições, existe sem- ca do outro.” pre uma ameaça de perda de “direitos” A reunião prossegue na ESCS. Faltam para quem recusa a praxe.” apenas quinze dias para o início da O conceito de integração é um lega- melhor semana do ano lectivo e é pre- do da antropologia, que nos diz que ciso acertar tudo: as equipas de caloi- existem rituais iniciáticos que preten- ros e respectivos chefes e sub-chefes, dem reforçar o sentimento de perten- os convívios, as surpresas, as farras. ça a uma comunidade, mas para Ri- Nada pode ser deixado ao acaso. Os cardo Moreira isto não é válido no ca- doutores e doutos-veteranos têm de so das praxes: “A integração deve ser saber dar o exemplo: “Meninas quan- um processo espontâneo, natural e de do trajarem nada de ganchinhos, nem crescimento e não algo imposto, for- anelinhos, nem meiinhas da cor da pe- çado e quase sempre violento. Exis- le. E quem trajar pela 1ª vez convém tem outras formas de fazer amigos na perguntar como é”. Os novatos têm de universidade, de obter apontamentos perceber o seu lugar: “Já sabem, os e de ir a festas. Os amigos não se fa- caloiros não podem andar de elevador, zem de mãos atadas!”, remata. falar ao telemóvel, comer e beber sem Rui Godinho está no 3º ano de Comuni- autorização. Mas por amor de Deus, se cação Cultural da Universidade Católica alguém pedir para comer é para dei- de Lisboa e define-se como sendo “anti- xar”, adverte Cláudia. estupidez”. Foi praxado no seu primei- No meio de tudo isto há duas expressões ro ano “por solidariedade” para com os que se repetem: “tem de haver bom-sen- outros caloiros, mas nunca foi obrigado so” e “só não vale arrancar olhos”. • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 22 MEDIA CHAMA-SE LUÍS FILIPE BORGES E TEM 28 ANOS. É CONHECIDO COMO O RAPAZ DA BOINA, QUE APARECE NA TELEVISÃO. É A CARA DA REVOLTA DOS PASTÉIS DE NATA. ESTÁ ORGULHOSO POR APRESENTAR UM PROGRAMA INOVADOR E ARROJADO NUM CANAL EM ABERTO. O RAPAZ QUE GOSTA DE ESCREVER, GOSTA DE CRITICAR. DE PREFERÊNCIA ATRAVÉS DO HUMOR. • LUÍS FILIPE BORGES Um revoltado com boina MARTA MESQUITA O apresentador da Revolta dos Pastéis de Eu escrevia uma coluna de humor, em que cri- Segredo da Alheira. Eu então falei com eles e te português. É um programa de entretenimento Nata nasceu em Angra do Heroísmo mas ticava aspectos da sociedade, n’ A Capital. Um propus algumas alterações, nomeadamente o que pretende também ter substância. Os convida- com 18 anos veio para Lisboa tirar Direito. Aca- dia o Bruno Santos, que é o subdirector de pro- nome. Eles aceitaram as minhas sugestões e dos que escolhemos não vão lá para se promove- ba a licenciatura e conhece o Luís Osório. Co- gramas da 2:, ligou-me a dizer que havia um convidaram-me para fazer um teste de came- rem; vão lá para falarem de um tema, que é sempre meça a colaborar em programas como o Za- programa e que pensaram em mim para cola- ras. E pelos vistos gostaram e eu fiquei. sobre Portugal e sobre o povo português. Mas ten- pping e o Serviço Público. Percebe que quer borar. Eu achei aquilo muito estranho, pensei Qual é o conceito deste programa? tamos abordar estes assuntos, que são sérios e im- ganhar a vida a escrever. Entra para as Produ- que era algum amigo meu a gozar. Mas para É um talkshow, do género do Tonight Show, onde portantes, de forma mais descontraída. ções Fictícias e mais tarde começa a escrever meu espanto havia há um anfitrião e con- A imagem do Luís já está muito ligada ao pro- crónicas de humor na A Capital. Agora, o ho- mesmo vidados. A Revolta tem grama. Apresenta a Revolta com alguma ou- mem da boina volta ao ecrã com a segunda série grama. O conceito deste programa irreverente na 2: era exactamente o Como é que surgiu a ideia de criar A Revolta dos mesmo do da Revol- Pastéis de Nata? ta mas o nome era O um pro- “A Revolta dos Pastéis de Nata é feita por pessoas que não têm medo de arriscar” originalidade, sadia e com piadas que para algumas pesso- nomeadamente nos ske- as roçam o mau gosto. Acha que este tipo de tchs, com a particulari- apresentação podia ser feito por uma mulher? dade de ser totalmen- Iria ser bem aceite? 30% de 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 MEDIA UMA COLUNA NA COLINA A boina: acessório de moda ou marca pessoal? L uís Filipe Borges é sempre comprou foi uma boina. “Eu vim visto com uma boina pre- parar a uma faculdade comple- te mas isso dava-lhe gozo. Com ta, virada para trás. Já desde tamente cinzenta, onde via pes- o tempo, a boina tornou-se o os tempos de humor na colu- soas de dezoito anos a usarem seu amuleto, a sua única su- por Oscar Mascarenhas Delírios dos que nunca viram lírios vam daquela postura desafian- na d’ A Capital que o apresenta- gravata. Tinha de me distinguir perstição. Quando o convida- dor aparece com ela. Mas a his- daquela massa homogénea e ram para apresentar a Revolta tória da boina é bem mais an- decidi que ia usar sempre uma tiga. Quando veio estudar para boina”. Era olhado de lado, diz Lisboa, o primeiro objecto que que os professores não gosta- do como o tipo da boina. 23 J osé Gomes Ferreira, nas suas memórias, sagem de um capitalismo tornado mundial.» conta que, em jovem, ganhou um prémio li- E agora, sabichões do pensamento único? Marx de- terário com uma poesia em que tecia loas ao lí- sactualizado e ultrapassado? Leiam Attali: «O sé- pediram-lhe para usar a boina. rio-do-monte. Quarenta anos depois, passeando culo que ele atravessou parece-se espantosamen- Achou piada e agora é conheci- com um amigo pelo campo, este parou e apon- te com o nosso. Como hoje, o mundo era dominado tou para uns torrões secos ao lado do caminho: demograficamente pela Ásia e economicamente pe- «Olha aí a tua musa inspiradora!» José Gomes lo mundo anglo-saxão. Como hoje, a democracia e o Ferreira apurou a vista e só viu terra seca, pe- mercado tentavam conquistar o planeta. Como hoje, grama é chato ninguém o vê. dras, tojo e plantas bravias algo amareladas. as tecnologias revolucionavam a produção de ener- género apresentado por uma mulher. E era im- Mas ao tentarem discutir temas de forma des- «Olha! É o lírio-do-monte!», insistiu o amigo. gia e de bens, as comunicações, as artes, as ideolo- portante para quebrar alguns tabus, como, por contraída e com piadas pelo meio não caem por Era a primeira vez que José Gomes Ferreira via o gias, e anunciavam uma formidável redução da pe- exemplo, que os homens apresentam o entre- vezes no humor brejeiro? lírio-do-monte sobre que poetizara, o lírio-amare- nosidade do trabalho. Como hoje, as desigualda- Era super engraçado ver um programa deste tenimento e que as mulheres apresentam pro- Às vezes arriscamos muito nas piadas ou nos lo-dos-montes, a patriótica flor Iris lusitanica! Ho- des eram consideráveis entre os mais poderosos e gramas mais sérios e de saias. Elas deviam es- sketchs. Mas aí também está um dos encantos mem de enorme cultura, talento e carácter, não os mais miseráveis. Como hoje, os grupos de pres- tar mais presentes no espaço da apresentação do programa, o improviso e a vontade destas teve rebuço em dar-se ao pelourinho do comentá- são, por vezes violentos, para não dizer desespera- mas não têm essa oportunidade. pessoas de fazer coisas novas. Claro que a bre- rio escarninho ao recordar o episódio. Desde que dos, opunham-se à mundialização dos mercados, ao jeirice deve ser limitada e li esta memória de José Gomes Ferreira, que an- crescimento da democracia e à secularização. Co- o nosso objectivo é fazer do com vontade de escrever que delírio é a prosá- mo hoje, as gentes tinham esperança numa outra vi- um humor o mais gene- pia dos que nunca viram lírios. Já está! da, mais fraterna, que libertaria os homens da mi- ralista possível. Não pode- Delírios, porém, são o que mais há aí na praça da séria, da alienação e do sofrimento. Como hoje, um mos fazer humor segmen- escrita – e só muito tarde, porventura tarde demais sem-número de escritores e de políticos disputa- tado para nenhuma idade acontece o abanão da realidade. Eis um exemplo: a vam a honra de ter encontrado a via para conduzir os homens, a bem ou pela força. Como hoje, homens e O que é que significa ter um programa irreverente como a Revolta a ser emitido num canal em aberto como a 2:? “A Revolta não é só um programa de entretenimento” Para mim é das coisas melhores que o programa tem. A ideia deste pro- ou grupo social. Acho que não somos brejeiros; generalidade – para não dizer a unanimidade – da grama parte da direcção do canal, o que signi- estamos no limbo. crítica literária encar- fica que já existem pessoas sem medo de ar- A primeira série ultrapassou as vossas expecta- tada anunciou nas su- riscar, porque era muito mais seguro ter um tivas. O que é que podemos esperar da segunda as altaneiras colunas programa com este formato num canal do cabo. série, que começa agora em Outubro? que José Saramago Mas acho que foi uma aposta ganha, porque é o Vai haver algumas novidades. É nossa intenção tinha defendido o vo- “Acharam que Tocqueville era uma boa arma de arremesso contra a esquerda, pegaram no calhamaço e atiraram-no.” programa mais visto na 2: . termos participações de pessoas conhecidas nos to em branco, no seu Porque é que há tantas pessoas que criticam o nossos sketches. Pessoas que gostam do pro- romance Ensaio So- programa? grama e que participam à borla. E estamos tam- bre a Lucidez. Não podendo já atacar eficazmen- mulheres de coragem, em particular jornalistas como Marx, morriam pela liberdade de falar, de escrever, de pensar. Como hoje, o capitalismo reina- va soberanamente, fazendo peso por todo o lado so- Nenhum programa pode agradar a todas as bém a ver se é possível ter uma crónica de pesso- te o escritor – sempre é o nosso único Nobel literá- bre o custo do trabalho, modelando a organização do pessoas. E acho que, gostando ou não da Re- as famosas sobre os vários temas desta segunda rio... – a táctica foi verrumar a sua condição de co- mundo segundo as nações europeias.» Contra Marx, os «satsixram», que são os marxis- volta, ninguém lhe fica indiferente. Este pro- série. Vamos ter oitenta minutos de emissão, munista assumido, logo antidemocrático aos olhos grama fala de coisas por vezes desagradáveis, portanto mais tempo de antena. Os primeiros do pensamento único. Eu, que tive sempre grande tas que viraram a casaca por conveniência servi- de problemas que existem, toca na ferida, e is- três programas vão abordar a educação em Por- dificuldade de entrar na escrita de Saramago, con- çal, brandem Alexis de Tocqueville e a sua Da De- so incomoda muitas pessoas. E eu gosto des- tugal, as cunhas e a televisão. Mas a Revolta vai segui, desta vez, ler o livro. E sabem uma coisa? mocracia na América, escrito entre 1830 e 1840. tas reacções extremas de adoração ou de ódio; continuar a ser irreverente e a ser feita por pes- Não há nada no romance que deixe perceber que Mas estou convencido que só um deles (tres)leu é sinal que estamos a fazer qualquer coisa de soas que não têm medo de arriscar. • o autor defende ou propõe o voto em branco! Pelo o livro e passou-lhes a palavra. É que se tivessem diferente, de ousado. A Revolta não se limita a contrário: depois de a população da cidade ter vo- lido o livro – como eu o deveria ter feito há décadas ser um programa de entretenimento. Preten- tado quase unanimemente em branco, aconteceu e não apenas agora – deslocariam a utopia comu- de também com os sketches e com as piadas ser um programa de critica social. As reacções à Revolta são iguais àquelas que temos com as pessoas que conhecemos. Eu não gosto de pes- Um nome português U ma das peculiaridades deste progra- um cerco e uma ditadura! Façam, amigos, o juízo nista da Rússia de 1917 para a América de 1600 a adequado sobre a nossa (?) crítica literária. 1850! Exacto: duzentos e cinquenta anos de verda- O mesmo se lê, todos os dias, sobre Marx: que es- deiro comunitarismo, de poder popular e completa igualdade de cidadania! Quando, em França, Lu- ma começa no nome. Quando se pen- tá morto e enterrado – e aos escribas do pensa- sou no programa e no seu formato, os produ- mento único, especialmente os que foram mar- ís XIV dizia que ele era o Estado e em Inglaterra se tores sabiam que o nome tinha de se referir a xistas quando o marxismo estava a dar e são hoje proibia de ajudar os pobres, para que morressem posições, vão na corrente. E a Revolta não quer alguma coisa bem portuguesa. Para quem fi- antimarxistas porque o antimarxismo os faz rece- mais depressa, os povos das treze colónias que in- ir na corrente. Mas as reacções que tenho do ca intrigado, tentando perceber de quem é a ber (e bastante!), só lhes falta calcar o chão com tegravam a Nova Inglaterra votavam na praça pú- público não são más. Em cada 10 pessoas que revolta ou quem são os pastéis de nata, aqui os tacões, não vá ele ressuscitar. Pois olhem: caiu- blica, aprovavam leis de protecção dos pobres e de me cumprimentam por causa do programa, 9 tem a explicação. O pastel de nata é um pro- me nas mãos um livro de Jacques Attali, saído em obrigatoriedade da construção de escolas primá- são simpáticas. duto tipicamente português. Para um progra- Maio, Marx ou l’Esprit du Monde. Jacques Attali não rias em todas as comunidades! E qual é a mais-valia do programa para além do ma irreverente, o nome tinha de ser sugestivo é nem nunca foi marxista e chegou a presidente do Eles leram Tocqueville? Não. Acharam que To- humor arriscado? e estranho ao mesmo tempo, e, claro está, mi- BERD, Banco Europeu para a Reconstrução e De- cqueville era uma boa arma de arremesso con- soas que nunca são criticadas e que se dão bem com toda a gente. Essas pessoas não tomam Os convidados são sempre uma mais-valia. nimamente divertido. Luís Filipe Borges afir- senvolvimento. Mas deu-se ao trabalho de ler Marx tra a esquerda, pegaram no calhamaço e ati- Tentamos diversificar no perfil de convidados ma que A Revolta dos Pastéis de Nata é bem e estudar-lhe a biografia. Eis um pedaço do seu tes- raram-no. Se o tivessem lido, bem teriam de de forma a chegarmos a um número vasto e di- mais atractivo do que O Segredo da Alheira, temunho: «Ao ler a sua obra de perto, descobre-se, engolir esta: «Na América, são os pobres que ferenciado de público. Temos pessoas a assis- primeiro nome sugerido para o programa. “Eu no entanto, que ele viu, muito antes de toda a gen- fazem as leis, daí que os ricos as olhem com tir ao programa com idades entre os quinze e por vezes fico a imaginar os pastéis de nata, te, em que é que o capitalismo constituía uma liber- desconfiança.» Não leram Tocqueville e deviam os quarenta e poucos anos. A Revolta não é um que são uma coisa fofinha, a revoltarem-se e a tação das alienações anteriores. Descobre-se tam- tê-lo lido: para pensarem como se roubou aos programa do género Prós e Contras. É, sim, um explodirem. É um nome engraçado”, afirma o bém que ele nunca o pensou em agonia e que nun- Americanos a democracia popular que tiveram programa de discussão que pretende chegar às apresentador. “Como o programa pretende fa- ca acreditou possível o socialismo num só país, mas durante dois séculos e meio. E Marx ajudá-los- pessoas de forma divertida. E a mais-valia do zer uma crítica social, a leitura de que os por- que, pelo contrário, fez a apologia das trocas livres ia de bom grado a percebê-lo. Porque isso não programa é essa: temas importantes conse- tugueses são uns molengões, uns pastéis de e da mundialização, e que previu que a revolução se explica com a lira delirante dos que nunca vi- guem ser debatidos de forma mais soft, o que nata, também é possível”, acrescenta. não chegaria, se chegasse, senão como a ultrapas- ram os lírios – e falam deles sem pudor. • não se torna maçador. Porque quando um pro- 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 24 DESPORTO • A CLAQUE VISTA PELOS SEUS MEMBROS Violência e faixas DILPESH V. LAXMIDAS O DO QUE ABDICAM OS MEMBROS DAS CLAQUES PARA ACOMPANHAR O CLUBE. ATÉ ONDE VAI O VERDADEIRO ULTRA. OS CONFLITOS EM QUE ENTRA PARA DEFENDER O GRUPO, O que leva uma pessoa que trabalha fictício também, tem 24 anos e é téc- se até Leiria para assistir a um jogo nica de Turismo. Ambos pertencem à de futebol, às 21h15? É o caso de Ra- direcção do DUXXI e apoiam o clube. miro Martins, de 23 anos, membro da Como diz Sofia, “o Sporting vai cá es- Direcção do Colectivo Ultras 95, uma tar independentemente dos jogadores das claques que acompanham o F. C. que cá estejam” e o “Directivo apoia o Porto. Prova incondicional do apoio futebol”, completa Ricardo. “A hierar- ao clube é o tempo que passa a traba- quia da Direcção só existe no papel, lhar para a claque: a organizar acti- na realidade, trabalhamos todos para vidades e coreografias, a distribuir bi- o mesmo.” Os cargos e estatutos são lhetes. Repar- te funções com CLUBE, A SI PRÓPRIO. POR QUE LUTAM. CAPAZES DO MELHOR E DO PIOR, AS CLAQUES mais dez pessoas, numa Direc- DE FUTEBOL ENCHEM OS ESTÁDIOS PORTUGUESES ção que procura levar o maior DILPESH LAXMIDAS empregado de escritório; Sofia, nome até às 16h00 no Porto a deslocar- número possível de adeptos aos jogos. O clube mantém com a claque uma rela- “Com o Euro 2004 a chegar, parecia que a polícia andava a treinar em nós”, queixamse as claques, acusando um endurecimento da acção policial. ção de respeito e reconhecimento, que apenas para representação externa, junto do clube. Escolhe- ram os dois ser activos na claque porque acham que não se deve (e não se consegue) assistir a um jogo de fute- bol impávido e quieto “É-me impos- esta foi conquistando ao longo de dez sível, coço-me toda, fico com os bra- anos de existência. Para apoiar o clube ços cheios de babas”, diz Sofia. “Tens (e não os jogadores, pois acham que de estar sempre a puxar, se não puxas com o surgimento do futebol moder- por eles, eles não ganham”, continua, no desapareceu o tradicional “amor à dizendo que a integração numa claque camisola”) vale tudo mas porquê es- é tal que a dada altura “parece que já tar num grupo, numa claque? “Sem as não há nada lá fora”. claques, qualquer estádio irá parecer Já Miguel, um ex-membro dos No Na- um verdadeiro cemitério, toda a ani- me Boys (NN), claque do S.L. Benfica, mação e alegria desaparecerão”. Pa- que se está a filiar nos Diabos Ver- lavras de um verdadeiro Ultra que ama melhos (DV), acha que as claques e o clube, que o apoia sempre, quer em os jogos vistos ao vivo valem a pena casa, quer fora. por todo o espectáculo e visibilidade Como explica um membro mais velho que proporcionam. Aliás, a notorieda- do Directivo Ultra XXI (DUXXI), a cla- de das claques é tanta que até já se que mais recente do Sporting, o ser Ultra é “inexplicável, é ir aos extremos positivos e negativos, pelo amor ao clu- “O dinheiro para reparar os estragos dos conflitos acabam sempre por sair do bolso das claques devido aos novos protocolos com os clubes.” be (…). Não se é Ultra, vai-se sendo, é começam a ver figuras famosas da preciso muita experiência, muito tem- sociedade portuguesa a juntarem-se po a acompanhar a equipa e o clube pe- às claques. “Não vão mesmo para o lo mundo”. Todas as semanas, geral- meio, mas andam por lá à volta”, con- mente à sexta-feira, a Direcção e al- ta Miguel, “porque guns membros do DUXXI reúnem-se gostam do ambiente”. A hierarquia de e acertam pormenores da organização ambas as claques, mas mais nos DV, das idas aos jogos, da elaboração de só se vê na altura da distribuição dos faixas, da preparação das coreografias. bilhetes: os sócios mais antigos têm As reuniões são na sede disponibilizada prioridade. Miguel Ribeiro é um estu- pelo Sporting à claque, junto do estádio dante de Informática, de 27 anos e mo- Alvalade XXI. Calmamente fala-se na ra ao pé do estádio da Luz. A sua ca- sala da Direcção, enquanto lá fora, no sa revela um adepto de futebol, mas resto da sede, os outros membros jo- o seu quarto mostra um Diabo Ver- gam Playstation, ouvem música, discu- melho. O cachecol na parede “Portu- tem futebol. Não é preciso estar muito gal por pátria, Benfica como bandeira” atento para se perceber o que os une: o é um dos treze que tem, e o wallpaper verde do Sporting. do computador também tem o símbolo Ricardo, nome fictício, tem 26 anos e é dos Diabos. Miguel acha que estamos 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 DESPORTO 25 DILPESH LAXMIDAS a assistir a uma fase de pacificação e apontado uma faca a um amigo seu, o segurança no estádio) quem controla. jogos com toda a violência que há, de acalmia do ambiente das claques e en- caso do very light, a dissolução do nú- Também pela proximidade entre o clu- pronto e com um sorriso irónico, per- formado “Ainda tenho uma costela tre as próprias claques do Benfica. As cleo NN do Cartaxo (depois de o Pre- be e as claques (pelos protocolos assi- guntam: “Qual violência?” Mas depois, partida, desse jogo”. coisas já estiveram muito piores. Tudo sidente ter fugido com o dinheiro) são nados) se pode explicar a acalmia. As já com um ar mais sério dizem que não Será por conflitos políticos e ideoló- começou quando membros alegada- motivos para Miguel ter decidido tro- multas que os clubes pagam por de- são nenhuns “anjinhos”, e que se são gicos? “Não, na ‘curva’ não há po- mente dos NN incendiaram a sede dos car os NN pelos DV. “Agora procuro sacatos nos estádios acabam sempre provocados também respondem “se- lítica; aqui cores é só verde. Podes DV. Iniciou-se um ciclo de agressões cenas mais calmas, não tanta agres- por sair do bolso das claques. Rami- ja a um, seja a cem”. Como em Coim- ser branco, preto, amarelo, de direi- entre claques do mesmo clube. sividade”. E também diz que “está tu- ro, do Colectivo 95, também diz que bra, no jogo con- A violência e o conflito resultam da do muito melhor” tanto pela entrada há violência “não se pode negar”, mas tra a Académica, união, do espírito de grupo presente e de mulheres nas claques, como pe- ressalva que “em Portugal é sempre quando alguns do choque de egos entre dois grandes la colaboração de sócios mais velhos em pequena escala e surge esponta- Diabos Verme- grupos. A calma actual aparece depois do Benfica que também gostam de es- neamente no calor do jogo. Reflecte o lhos de Coimbra de vários incidentes, alguns muito gra- tar junto das claques e que ajudam a quotidiano das pessoas. Diariamente não ves (esfaqueamentos, roubos, o caso acalmar”. E a polícia, não ajuda? “Não, se lida com violência: pode acontecer dos fizeram uma do very light, “esperas” a claques), que a polícia é um bocado bruta, entra lo- no dia a dia ou no futebol.” ocorreram nos anos 90.Hoje, os inter- go a matar e não para acalmar. Obri- Nas imediações do Estádio Municipal sidente dos Su- venientes desses acontecimentos são ga-nos a fugir todos para trás, aleijan- Magalhães Pessoa, em Leiria, o res- per. mais velhos, “com 30 e tal anos, que- do-nos nóps uns aos outros ou a re- taurante–café “O Estádio” está com- Quando o resto da claque soube da a tua ideologia política. Somos pes- pletamente cheio de adeptos do FC agressão, saíram do estádio e foram soas normais, como as outras”, diz rem trazer os filhos e a família ao futebol, e para isso fazemse valer do peso que têm na claque para aclamar Não há cores políticas na “curva”. Os conflitos não acontecem só entre clubes diferentes. Podem surgir por questões íntimas ou até de dinheiro. identifica- “espera” ao pre- violência”, diz Paulo, com um ar con- Diariamente as pessoas lidam com violência: pode acontecer no dia a dia ou no futebol. Em Portugal, é tudo em pequena escala. ta, de esquerda; da frente ou de trás, não o manifestes claque”, é na afir- ma Sofia. “Nas claques não há politica, o que não impede que lá fora, tenhas Porto. Um olhar mais atento mostra até à bancada da claque adversária Miguel, dos DV. “A única política que são “Ultras” no apoio ao clube, são para os apanhar. Então e não há se- que sempre nos há-de interessar é Super Dragões, a deliciarem-se com o guranças, porteiros, pessoas a con- o nosso Porto”, conta Ramiro. A ce- sofrimento inicial do Sporting para ven- trolar as entradas no estádio? “Eu em dência polémica e insuficiente de bi- cer o Gil Vicente. De vez em quando, a Coimbra entrei de mãos nos bolsos, e lhetes para os adeptos do adversário, azáfama e o som dos talheres a bater só mostrei uma vez o bilhete. Para ir os conflitos entre Direcções e Presi- os ânimos”, explica Miguel.Dentro dos voltarmo-nos e originar uma grande são interrompidos por cânticos de in- até à outra bancada, só um steward dentes, conflitos pessoais entre diri- NN também há conflitos que surgem cena de pancadaria”, acusa Miguel. centivo “Aqui e em qualquer estádio, FC [responsável pela segurança no está- gentes de claques (por causa de na- porque daquela claque fazem parte Acusações semelhantes tem o DUX- Porto sempre contigo”.Mais do que a dio, geralmente contratado pelo clu- moradas, antigas e actuais), o pre- várias pessoas que vêm dos bairros XI. Houve um endurecimento da acção cidade do Porto, apoiam o clube, tal co- be que organiza o jogo] me meteu a ço excessivo de um ingresso – tudo mais problemáticos do país (margem policial. Com a proximidade do Euro mo diz Paulo Matos, um bracarense de mão ao ombro. Mandei-lhe uma co- contribui para um acumular de tensões descarregadas nos jogos, seja Sul, Chelas, Olivais) e por isso muitos 2004, “parecia que andavam a treinar 21 anos, trabalhador emigrante na Su- tovelada e parti-lhe o nariz. Mas aí dos confrontos não têm ligação directa em nós”, queixa-se Sofia. Agora, com íça, mas que quando cá está não perde a culpa é deles, porque não vêm pa- pela organização de espectáculos vi- com a claque; são problemas que vêm o quase desaparecimento da figura do oportunidade de ir acompanhar o seu ra acalmar, vêm logo a matar. Se eles suais e coreográficos, cheios de co- de fora e ali se manifestam. Estes con- polícia nos estádios, as pessoas acal- Porto, com o seu grupo de amigos do falassem connosco, até pode ser que res e movimento, seja num conflito flitos, a pressão dos colegas da Uni- maram. São sempre os stewards (fun- Núcleo de Amares dos Super. Quando sossegássemos; mas não, agem vio- violento de claques entre si ou con- versidade (que são Diabos), um NN ter cionários privados responsáveis pela se lhes pergunta se vale a pena ir aos lentamente e nós respondemos com tra a polícia. • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 26 LETRAS • POETAS BIPOLARES partir a louça e depois apanhar os cacos”. vezes na força de um papel e nas letras que nele se Gritos de dor, gritos de alegria Existem dois tipos de doenças bipolar, a do tipo I em compõem a voz e o “grito de alerta” para o outro. que a pessoa sofre crises de mania ou crises mistas Na relação com os outros viu também a doen- (sintomas de depressão e mania misturados) e na ça fazer-lhe frente, os cigarros ajudam a ter pre- maioria das vezes também tem fases depressivas e sente um tempo em que a família se mostrava re- NUM MUNDO ONDE AS EMOÇÕES PARECEM ESTAR CONTIDAS TAMBÉM HÁ QUEM AS SINTA A TRANSBORDAR. HÁ POETAS QUE SENTEM NO a do tipo II em que o doente normalmente tem crises voltada pelos gastos exagerados: “a gastar sem profundas de depressão e ligeiras fases de mania. poder é vender sem querer”.Hoje a sua estabili- Delfim sofre mais de crises de mania, a dita doen- dade anda presa ao Lítio: “se não tomar ao fim de ça bipolar do tipo I: “raramente estou em fase de- quinze dias estou a voar que pareço um gavião e pressiva, a tipologia da minha bipolar não se pro- depois vou lá para cima para o espaço e entro nu- porciona a isso, nem a minha personalidade é de ma fase maníaca e eufórica”. E as crises não se meter a cabeça debaixo da areia” A poesia é es- repetem enquanto seguir à risca a medicação. crita durante o período que designa de “colorido e Para além de sentir na pele a doença, Delfim Oli- cool”. Nesses dias escreve a um ritmo constante e veira é também presidente da Associação de Apoio hiperactivo, o que numa fase estável se torna im- aos Doentes Bipolares e Depressivos (ADEB), a possível dada a gestão das CORPO A EUFORIA E A TRISTEZA NUM REPENTE. SÃO OS CRIADORES DO tarefas a que a vida obriga. Quando GRITO QUE VEM DA ALMA EM PALAVRAS ESCRITAS. questionado pe- la razão pela qual escreve, utiliza o plural para dar tom a esses motivos, diz que as ANDREIA GONÇALVES E pessoas quando escrevem maior “Fui hóspede do vinte e um Duas estadias sem marcação Não sinto estigma nenhum Nem saudades da estação.” associa- ção no nosso país na área da saúde mental e a única a prestar apoio aos doentes unipolares (depres- screvem por gosto, uma vontade que lhes mesmo espaço e a mesma realidade. E a esse e estão neste estado, de an- sivos) e bipolares, vem ainda dos rabiscos dos poemas de outro via-o incapacitado. O tempo era ocupado gústia, fazem-no porque sentem uma certa so- assim como aos seus familiares. criança. Escrevem por prazer, porque vêem bro- pela arte. A pintura a carvão e as poesias, que lhe lidão mesmo acompanhados. E é nessa solidão, A Associação juntou em 1991 doentes, familiares, tar da alma uma “coisa” bonita. Escrevem para surgiam e que eram registadas no papel para que em que se está com o outro, que esse alguém es- médicos e técnicos de saúde mental com o objec- dizer ao outro que têm momentos de dor e mo- não se perdessem, aceleravam as horas. creve para pôr no papel aquilo que sente e aqui- tivo de ajudar e apoiar as pessoas tanto psíquica mentos de alegria. Que sofrem. Que amam. Que Delfim Oliveira desde sempre gostou de escrever. lo que as pessoas que o envolvem não estão dis- como fisicamente. Delfim Oliveira faz questão em vivem a vida em dois pólos. Partilhando o corpo Para além de director de um jornal profissional, que poníveis para saber ouvir e saber ajudar: “É qua- manifestar a razão de ser deste organismo: “o pri- ora com a felicidade extrema, ora com a tristeza se chamava “O Marinheiro”, escreveu ainda para o se como deixar uma carta escrita.”. meiro objectivo é informar as pessoas, é educar as crua. São doentes, sofrem da bipolar e são bafe- “Diário Popular” e para o “Diário de Lisboa”. Eram ar- Uma carta, a carta onde se registam as ideias que se pessoas para a saúde e é também habilitá-las pa- jados com a arte das palavras. O que deixam es- tigos mais ligados à segurança social e ao trabalho escrevem a uma velocidade estonteante, onde se fa- ra a sua vida diária de modo a que tenham alguma crito nas folhas de papel é o mesmo que lhes cor- e direitos sociais. No campo político, como sindical, la de um momento que surge sem avisar, mas que autonomia ou que tenham a autonomia suficiente re nas veias cheias, o sentimento exacerbado a também escrevia artigos, crónicas e comunicados. aos poucos se vai tornando sabido. Quando a angús- para desenvolverem a sua actividade profissional, latejar. Os poetas inconstantes… Apesar de a escrita nunca ter sido a sua activi- tia impera e as ideias fatalistas podem ser por ela familiar, social, e afectiva”. Sem tratamento a doença pode levar a perdas importantes na saúde e a Delfim Oliveira tem 59 anos e aos 43 foi-lhe diag- dade principal, que foi sempre na área da gestão trazidas. O desejo da morte. O abuso de álcool. O nosticada a doença. Antes disso já tinha passa- e contabilidade, diz possuir um poder de síntese abuso de drogas. Para combater a inconstância, pa- perdas da autonomia e da personalidade. do por uma fase de euforia em 1986 quando era que lhe permite escrever em função do espaço, ra não mais pensar nela. E quem sofre tem muitas A Associação tem ao dispor dos doentes um qua- director dos Serviços Administrativos e de Conta- dizendo em pouco o que muitas pessoas só con- bilidade da Marinha do Comércio e das Pescas e seguiriam dizer em muito. E depois há também o simultaneamente desenvolvia uma grande activi- gosto pelo lirismo que tantas vezes é despontado dade política e sindical. Foi um período de gran- pelo seu estado, pela inconstância que a doença de agitação que veio espoletar a doença. Isso pa- traz. “Escrevo quando estou mais efusivo”. ra além do factor hereditário. Pensa-se que o seu A doença bipolar é uma doença psiquiátrica carac- pai também fosse doente bipolar. terizada por variações acentuadas de humor, com Durante cerca de dois medormir. Depois por intermédio de um hipnótico muito ligeiro, conseguiu alcançar a quietude suficiente para o sono. E passaram- crises repetidas “Vivo no fio da navalha Porque sofro da bipolar Não faço dela mortalha Porque não a deixo incubar.” se alguns anos sem saber quer de depressão, quer de euforia, a conhecida mania. É uma perturbação dos afectos, de variações de humor e o que estava para vir. tem por isso grandes repercussões na percepção Em 1989 foi internado no pavilhão 21 do Hospital Jú- da realidade, nas sensações, nas emoções, nas lio de Matos e “desabou o tecto do mundo”. Foi sub- ideias e no comportamento de quem dela sofre. metido ao tratamento através de electrochoques De um lado, o estado eufórico e expansivo, on- porque o seu estado estava já muito degradado e os de as ideias muitas vezes se confundem e são antipsicóticos não respondiam. “Estava sujeito a fi- exageradas. Tudo é belo. Tudo é possível. Tudo car amarrado no hospício, sem recuperação”. Du- é um excesso. Depois há também o outro lado. A rante a passagem pelo hospital psiquiátrico diz não depressão. A vontade que se perde. A tristeza. O ter tido logo a percepção do que lhe estava a aconte- desespero. A culpa. O medo. E estes dois esta- cer, os medicamentos não deixavam. Só a partir da dos vivem de mãos dadas no doente bipolar. terceira semana é que se começou a aperceber do Pela caneta dá forma aos sentimentos. Delfim que o rodeava e a sua preocupação era com a família, Oliveira escreve quando está apaixonado, escre- especialmente com os filhos, na altura menores. ve quando está numa fase eufórica e escreve a Os dias passavam-se e o desconhecido trazia-lhe um ritmo alucinante o que tantas vezes se pode o sofrimento. Vinte e um dias sem saber qual a tornar num risco demasiado grande: “se for na patologia de que sofria, são agora memórias vi- onda em quinze dias está lá em cima no espaço vas reacendidas quando se fala no assunto. A ali- sideral e depois para descer cá para baixo é que mentação rudimentar, os farrapos velhos e a no- dói. Angústias. Amargura. A pessoa faz auto ava- ção do que estava a acontecer chegando-lhe pe- liações de certos e determinados actos não muito lo reflexo do outro, do que partilhava consigo o agradáveis e é doloroso. É aquilo que se chama: CATARINA MEALHA ses e meio não conseguia 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 LETRAS dro de reabilitação psicossocial que compreen- pode fazer 50% das coisas de que planeou e de isso também há aqueles dias em que simplesmen- de desde o SOS telefónico até ao chamado Fórum que gastou mais dinheiro do que devia. te as palavras não se rendem ao papel. Sócio-Ocupacional que pretende ser uma respos- Cristina fala da incompreensão que ainda sub- Quando Cristina está em depressão chega a não ta às necessidades ocupacionais das pessoas com siste a respeito das doenças do foro psicológico conseguir escrever e as fases de mania roubam- a doença. Nestes fóruns é dado apoio às pessoas e emocional. Fala da tendência de algumas pes- lhe a concentração. A escrita costuma vir nas fa- que tenham alguma vocação para as artes e isto soas para minimizar o sofrimento dos outros, só ses estáveis, quando o seu estado lhe permi- quer na área da pintura, da escrita, da música ou por não ser o deles, só por não o sentirem na pe- te fazer uma retrospectiva e arrumar as ideias, das artes dramáticas. Na sede em Lisboa os qua- le e da marginalização das pessoa a partir do mo- vertendo nas folhas brancas o que se passou na- dros suspensos nas paredes dão conta das capaci- mento em que se sabe que têm algum problema queles dias em que não conseguia escrever ou dades artísticas que ali se escondem ou que se re- psiquiátrico ou psicológico, como se tudo o que falando do que a perturba no dia-a-dia. velam. A criatividade anda muitas vezes de mãos surgisse depois, como se tudo o que fizessem ou A escrita de um poema pode também ser uma dadas com a sensibilidade. dissessem resultasse de uma condição que lhes mensagem para um amigo ou uma amiga e po- Para além de uma publicação trimestral de no- é imposta nessa altura, a de louco. O desconhe- de ser um desabafo, o dizer através do lirismo o me Bipolar, a ADEB conseguiu ver publicada, no cido torna-se assim simplificado num rótulo que que não se consegue dizer pela voz, vendo o pró- ano passado, uma antologia composta por poe- cabe a todos os que não se incluem naqueles prio reflexo vincado nos olhos do outro. ”Não po- mas inéditos escritos por doentes unipolares e moldes que julgam ser os correctos, os tais. demos guardar tudo para nós, ninguém pode e bipolares de modo a dar a conhecer o seu uni- Já lá vão os dias em que não se sentia compre- muito menos um doente bipolar que tem tantas verso criativo, emocional e existencial. A recolha endida por quem partilhava com ela a vida. “Nem carências afectivas.” E na escrita dá-se forma e selecção dos escritos, que eram muitos, ficou a toda a gente tem o alcance de compreender es- aos sentimentos, a todos os que são importan- cargo de Delfim Oliveira. O resultado foi o livro Pétalas Caídas da Padrões Culturais Editora, escrito pelas mãos de treze nomes “Ao fazerem uma coisa bonita estão a sublimar as preocupações naquele prazer que é criar alguma coisa.” que na capa constam. te tipo de doença e mui- tes de dar a conhecer e partilhar. E o afecto tor- tas vezes a discussão na-se assim uma questão de leitura, de comoção 27 SUGESTÕES DA COLINA nem tem nada a ver pelas palavras. Cristina entende a escrita como Carnaval Negro com o problema mas uma terapia: “ao fazerem uma coisa bonita estão AUTOR: URBANO TAVARES sim com um problema a sublimar as preocupações naquele prazer que RODRIGUES normal da vida de um é criar alguma coisa”. Uma terapia que quan- EDITORA: ASA. casal, muitos casamen- do aliada à partilha com os amigos pode conce- Carnaval Negro é Delfim Oliveira é um dos autores. tos com bipolares têm dado errado. O meu deu.”. der o alívio e o esquecimento dos dias de martí- uma antologia que Cristina Diniz é uma das outras vozes que nele se Hoje as coisas são diferentes. rio. São os amigos que lhe elogiam os escritos integra alguns dos escrevem. Tem 38 anos e vive em Vila Franca de A Organização Mundial de Saúde estima que no nos- e até há um que diz que Cristina escreve fábu- melhores contos do Xira e Lisboa, onde já trabalhou, é só “para ir e vir”. so país cerca de 1,5% a 2% da população adulta so- las. Ela prefere dizer que são textos fantasiosos prestigiado escritor português, Urbano Na agitação da capital tudo lhe parece diferente: fra de doença bipolar, mas estes valores podem ficar mas que não faz de propósito, saem-lhe assim. Tavares Rodrigues. Os temas presentes “ninguém responde ás pessoas porque andam des- aquém pela dificuldade de um diagnóstico correcto, Escreve também prosa mas a essas chama de na obra são os que revelaram ao lon- confiadas, pensam que vão ser assaltadas”. E o rit- que muitas vezes só chega depois de muitos anos. poesia branca e não por pretensão mas sim pela go dos anos a beleza da escrita deste mo acelerado da vida rouba a demora ao tempo e Esta doença é imprevisível, não tem um momen- fantasia das letras que se combinam. autor. O amor, a morte e a corrosão do faz com que ”nem se pare para pensar”. Cristina to para aparecer, na maioria dos casos surge du- O olhar que deita ao mundo também lhe provoca tempo a par de outras tantas questões é uma mulher que se preocupa com o que a rodeia, rante ou depois da adolescência. De início as cri- um formigueiro interno que se alivia na escrita. são retratados num livro onde habita a não se acomoda ao rumo que a sociedade tende ses podem ser desencadeadas por factores emo- Nesse dia trazia dentro da mala um poema escri- riqueza da linguagem de uma das gran- a tomar: “se nós não nos sensibilizarmos para as cionais, tais como perdas ou rupturas amorosas, to no ano passado quando via no televisor as ima- des figuras das letras do nosso país. coisas, que mundo é que estamos a criar?”. ou pelo stress, mas à medida que a doença evolui gens que lhe chegavam a casa dos fogos e das vidas de quem não conhecia e que só dessa ma- O caminho da educação e a desumanização da so- e se não houver um tratamento adequado, as cri- ciedade são dois assuntos que muito a fazem pensar. ses podem despertar com maior frequência e por neira as sabia presentes. E vinha-lhe à ideia a Talvez por ser mãe de dois filhos de dez e doze anos motivos que de outra forma não o justificavam. exposição do sofrimento nos televisores em to- e por ter receio que o mundo que aí vem, e que irá ser Cristina segue uma medicação para evitar no- das as casas. E porque começava a ficar pertur- o deles, não seja o melhor. vas crises, um estabilizador de humor ligeiro à bada derramou no papel um desabafo de quem Sociedade Recreativa AUTOR: LUÍS AFONSO Soube que tinha a bipolar do tipo II (crises pro- base de valproato, e os anti depressivos quan- sente a dor alheia na própria dor. De “coração fundas de depressão e ligeiras fases de mania) do tem uma crise mais forte de depressão. Se aberto” Cristina recebe a poesia e sente nela um EDITORA: DOM QUIXOTE. há cerca de dez anos atrás. O diagnóstico foi-lhe tomar a medicação com uma frequência sau- prazer que não pode ser medido. Sociedade dado na ADEB, depois de ter visto por acaso um dável, isto é, sempre, as recaídas não surgem. São os próprios especialistas a dizer que os doen- tiva reúne os dese- filme na televisão sobre a vida de uma mulher Leva uma vida mui- tes bipolares são dotados nhos do cartoonis- que fora presidente da associação americana, to agitada não pe- Depression and Bipolar Support Alliance, que la doença, mas por serviu de moldes para a ADEB. As crises daque- ser mulher e por as- la mulher que via na tela pareciam-se demasia- sim ser a vida de uma do com as suas e por assim ser anotou o núme- mulher nos dias de ro de telefone da associação. hoje. O trabalho co- Com isto se explicava a irritabilidade que surgia mo funcionária públi- de um momento para o outro e o descontrolo: ca, a família, a casa e “não tinha paciência para ouvir os meninos e eu ainda o apoio a duas “Só quem embala no peito Dores amargas e secretas É que em noites de luar Pode entender os poetas.” - Florbela Espanca, 8-01-1916 pela sensibilidade. Cris- ta Luís Afonso, publicados na “Pública”, tina Diniz pensa que tal- revista do jornal “Público”, entre 2001 e vez possa ter sido essa a 2005. O livro mostra-nos os retratos não razão que a levou à doen- só do nosso país como também do resto ça: “há-de haver uma al- do mundo, através do apurado humor sa- tura no caminho em que tírico deste desenhador nacional. Com ra- aquilo degenera para pa- ízes alentejanas, Luís Afonso é também o tológico criador de Bartoon e de Barba e Cabelo. porque quem sente muito intensamen- gosto imenso dos meus filhos”. A sua bipolar traz- associações. Para além da ADEB, da qual faz parte te as coisas normalmente acaba por ter uma pertur- lhe mais depressões do que fases de mania. Mas dos corpos regentes, é também sócia de uma asso- bação emocional”. quando a disponibilidade mental para os filhos ciação de apoio aos doentes com Alzheimer, porque Para eles, a escrita, a pintura, ou qualquer outra ex- não parece ser a suficiente encontra umas pala- na sua família existe um historial desta doença e pressão artística pode ser uma ajuda muito impor- vras para os sossegar. Desculpando o cansaço e porque “é uma associação com muito valor” e por- tante. A arte pode também auxiliar os médicos a me- Diário Remendado os nervos, os filhos já percebem o que quer dizer, que Cristina se preocupa com as coisas da vida. lhor apoiar os doentes, a compreendê-los. AUTOR: LUIZ PACHECO E se o seu dia pudesse ser medido em 48 horas, Aristóteles asseverava que muitos dos que se des- EDITORA: DOM QUIXOTE. “têm de dar um ‘descontosinho’ à mãe”. Recrea- Há também o outro lado da doença, no seu caso “com energia a condizer”, escreveria um livro di- tacavam nos domínios da filosofia, da poesia e das Diário Remendado é a fase de hipomania, que é a mania ainda ligeira. ferente, de prosa. Até lá a escrita continua dentro artes tinham tendência para a melancolia, pa- o título da mais re- Nesse período, que costuma ser curto, a energia de si e isto desde os tempos de escola, quando os ra esse estado que concede simultaneamente a cente obra publicada parece ser sobre-humana, a fala, muito rápida e professores lhe achavam graça ao que rabiscava dor e o prazer. O prazer de escrever, de pintar ou do polémico escritor, Luiz Pacheco. Um os planos multiplicam-se. Acha-se capaz de fa- e isso incentivava-a a prosseguir nas lides das le- simplesmente de imaginar e pensar advém mui- diário que não foi escrito para ser pu- zer tudo ao mesmo tempo. “Ás vezes saem umas tras. Aos doze anos escrevia aquilo que chama ho- tas vezes dessa circunstância. Lord Byron, Edgar blicado e que vive dos dias de um autor parvoíces que toda a gente acha graça”. Há quem je de “poesias de criança”. Aos quinze participou Allan Poe, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Ernest He- sobejamente conhecido pelo seu humor pense que isso já faz parte do seu feitio mas ela nos Jogos Florais da Escola Secundária de Vila mingway, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro mordaz e pela sua esmerada ironia. O sabe que não, que daí a uma semana lhe espe- Franca e foi premiada. A poesia surge-lhe na vida e Florbela Espanca, são nomes de grandes escri- tempo desta obra remete-nos ao ano ra a depressão. E da hipomania, quando diz estar espontaneamente nas fases em que a vontade de tores que marcaram a história das letras e simul- de 1971 e leva-nos até 1975. “com o diabo no corpo”, passa em dois tempos pa- escrever lhe chega à superfície e exige fazer-se ou- taneamente pensa-se que sofriam desse mal que ra a desilusão. Quando se apercebe de que não vir mas a “inspiração não é por encomenda” e por vem da inconstância. Os poetas bipolares… • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 28 CULTURA • PERFORMANCE vivem”, explica. E por isso quando Ro- Vou a tua casa ram e entretanto eu fui ficando com portava-se como se já ali tivesse esta- um autocolante preso à testa. Às ve- do, como se partilhasse das memórias zes dá jeito. Às vezes não”. daquela casa. isto não é teatro ao domicílio UMA CASA EM TORRES VEDRAS, LISBOA OU LONDRES. UM BAR DE ALTERNE, UMA IGREJA, UM MUSEU, UMA ESTÁTUA. O ESPECTÁCULO CHAMA-SE VOU A TUA CASA. O ACTOR ROGÉRIO NUNO COSTA JÁ FOI A CASA DOS ESPECTADORES, JÁ SE ENCONTROU para o domicílio. Poucos compreende- gério tocava à porta do espectador com- Diogo Correia, espectador do “lado b”, diz “Todas as casas são iguais, o que muda é que o NoCaminho é como “estar num es- a maneira como olhamos para ela”, diz pectáculo teatral muito próximo da nossa Selma, uma das espectadoras do “lado vida, estar com as pessoas realmente; as a”. E todos os espectáculos do Rogério conclusões que se tiram daí são impor- “nas casas”, como costuma dizer, foram tantes, é algo laboratorial, muito viven- diferentes, ainda que houvesse uma ba- cial”. E confessa que ficou amigo de Ro- se comum. Antes de chegar envia uma gério apesar de nunca mais terem falado mensagem: “estou atrasado”. Um as- um com o outro. “Depois da performan- sistente chega primeiro e explica as re- ce parece-me que não consigo deixar de gras: pode fazer-se tudo aquilo que nor- sentir um carinho especial por ele; para malmente não se faz num espectáculo além de mais foi muito pessoal”. de teatro. Faça de conta que está em ca- Neste “lado b”, terminado há alguns sa: pode atender o telemóvel, pode ir à meses, Rogério sentiu-se mais “des- COM ELES NUM ESPAÇO PÚBLICO E AGORA VAI FICAR À ESPERA, NA SUA PRÓPRIA casa de banho. O Rogério chega com um protegido”. Sobretudo porque não es- saco às costas, começa a tirar coisas lá tava dentro de uma casa, mas tam- CASA, QUE O ESPECTADOR TOQUE À CAMPAINHA E DIGA “É PARA TI”. UMA TRILOGIA de dentro. Ausculta as paredes, os tape- bém porque a performance era só para tes. Cola post-its. Fecha-se numa divi- uma pessoa, numa lógica de “equilíbrio são da casa, colando fios e papel nas de forças”. “Eu agora vou estar nas ru- ombreiras da porta. Mostra um caderno. as agressivas, não nas casas. Eu ago- TEATRAL PERTO DO FIM. OU DO PRINCÍPIO. Folheia VERA MOUTINHO É fotogra- fias de casas on- uma rua movimentada de Lisboa, na terceira (lado c) irá recebê-lo na sua “Em inglês a coisa mudou substancial- num fim de tarde de Fevereiro. À própria casa, em Lisboa. A performan- mente. Não é a minha língua materna, um porta do nº14 da Rua Castilho, ao pé da ce começa desde o momento em que não posso através dela comunicar da do e diz em 34 alguém liga e marca o encontro. mesma maneira como o faço em Lis- estátua, o Diogo espera pelo seu espec- boa. Nos momentos em que me falta- de viveu. Na mão mapa-mun- línguas a palavra táculo, que está atrasado. Lembra-se de “Pensei em questionar a própria ideia “amo-te”. Dan- que escolheu aquele local porque uma de ir a casa de alguém”, escreve Rogé- ram as palavras, socorri-me de outras ça com a dona vez ficou lá muito tempo à espera com rio no blog que serve de caderno de bol- coisas”. As “coisas” neste espectácu- da casa e ofere- “Todas as casas são iguais, o que muda é a maneira como olhamos para ela.” - Selma, espectadora do lado A. ra vou estar nas ruas agressivas, não nas casas. Eu agora... (ad aeternum). A ver se me convenço”, escreve no blog. Seguiramse cafés, museus, pessoas que mal conhecia, porque gos- so das suas ideias e experiências. Entre lo do Rogério são as pessoas, os seus ce-lhe um objecto seu, embrulhado. Co- igrejas, um bar de alterne, jardins. Es- ta de prédios de escritórios, porque a Agosto de 2003 e Março de 2004, Rogé- objectos, as suas casas. Coisas diferen- la um último papel na parede com a pa- pectáculos que duraram horas, espec- estátua é muito feia e porque fica per- rio percorreu com o seu “lado a” casas tes, únicas em cada um. “Trabalhei com lavra “amo-te” e sai. Envia pouco tempo táculos que duraram minutos. Como to da Cinemateca. Quando o “espectácu- em Torres Vedras, Lisboa e até Londres: a relação das pessoas com a casa onde depois uma mensagem a despedir-se. um em que o espaço era o Teatro Nacional e a peça Serviço de Amores en- lo” chegou, apresentaram-se. “Rogério, O espectáculo foi algumas vezes refe- Diogo”. Na mão, um leitor de cds, uma rido como teatro ao domicílio, sendo tão em cartaz. “Esta escolha está no planta e pedras de vaso. A performance mesmo comparado à proposta do ac- meu top10”, diz Rogério. “Um espectá- começava e à volta a vida continuava. tor brasileiro Raul de Orofino, conhe- culo dentro do espectáculo”. Mas. ape- O espectáculo chama-se NoCaminho e cido por fazer peças de teatro em lo- sar disso, o actor explica que o encon- faz parte da trilogia Vou a tua casa que cais pouco habituais e pela sua má- tro correu mal porque percebeu que a o actor Rogério Nuno Costa apresenta xima: “O Teatro é como pizza. Você escolha daquele local foi uma espécie desde 2003 e que o próprio define como pede. Eu levo. Onde quiser”. “As du- de resposta a uma discussão pessoal uma “trilogia teatral em forma de ma- as propostas foram identificadas co- sobre teatro. O espectador já conhecia pa-percurso: o ponto “a” é a tua casa, o mo teatro ao domicílio, mas para a o Rogério, portanto. Rogério entrou na ponto “c” é a minha, o ponto “b” é aque- proposta do Raul era indiferente a coi- sala e poucos minutos depois saiu. le sítio impossível onde por ti sou apa- sa passar-se numa casa, num hotel ou Percebe-se que a linha que separa a ilu- nhado no meio”. Uma “aventura artísti- num avião”, explica Tiago Bartolomeu são da verdade é aqui muito frágil. Para ca” em que a óbvia questão dos limites Costa. “E mais: tinha de ser feita para Tiago Bartolomeu Costa, Rogério quer do teatro é acessória porque o que lhe um mínimo de 20 interessa são “as pessoas, as casas e o pessoas. Era al- facto de ir ter com elas”. E adverte: isto guém que che- não é teatro ao domicílio. gava a uma ca- Para Tiago Bartolomeu Costa, produtor sa e se instala- e investigador de História da produção va, fazendo ali do teatro, “a proposta do Rogério obri- o seu teatro. No ga o espectador a pensar-se”. Além Vou a tua casa disso, “insere-se numa linha de utiliza- isso não aconte- ção de espaços não-convencionais, que ce. Aquilo é feito é uma das linhas fortes de um conjun- para o especta- to de novas propostas que começaram dor. No momen- Um assistente chega primeiro e explica as regras: pode fazer-se tudo aquilo que normalmente não se faz num espectáculo de teatro. Faça de conta que está em casa: pode atender o telemóvel, pode ir à casa de banho. “fazer do espectáculo um momento da vida, sendo que é sempre um espectáculo. Nós acreditamos que ele faz aquilo só para nós, como quando achamos que só nos dizem “amo-te” a nós. É por is- to”. Em algumas tade da década de 90, e que convocam casas os espec- outras disciplinas e questionam o lu- tadores criaram gar e responsabilidade do espectador uma espécie de na construção de um objecto”. A pro- plateia improvisada. Preparavam-se parede nós nos emocionamos, porque tecção que o estar numa plateia sugere para receber uma peça de teatro. No aquelas letras têm a forma e o som da é abolida no Vou a tua casa. Na primei- caderno de bolso electrónico, Rogério mais bela voz a dizer ‘é só para ti’”. A di- ra parte (lado a), o actor foi a casa do espectador; na segunda (lado b) encontrou-se com ele num espaço público e VERA MOUTINHO a aparecer sobretudo na segunda me- so que quando o Rogério escre- ve “amo-te” nas folhas presas na desabafa: “ disse aos jornalistas todos mensão biográfica do espectáculo ajuda que não era teatro ao domicílio. Quan- a percebê-lo. Rogério não é de Lisboa. As do muito seria teatro no domicílio, ou raízes estão em Amares, Braga. Quando 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 29 CULTURA JOSÉ LUIS NEVES REVELAÇÃO por Marta Pais Lopes • PEDRO PAIVA “O documentário é uma oportunidade de escolha” P edro sempre gostou de cinema. sos de Espera foi o resultado final dos. “Não é preciso uma indústria, no Em Famalicão, onde nasceu e de um curso intensivo de 3 meses sentido megalómano do termo, mas é cresceu, não havia cineclubes. A ci- promovido pela Fundação Calouste preciso uma máquina bem oleada.” nemateca de Pedro Paiva sempre foi Gulbenkian. O Curso de Realização Pedro nunca teve a barba tão gran- a televisão, o que não o impediu de de Documentários foi orientado pe- de. O corte da barba foi negligenciado devido ao novo projecto que tem escolher o seu caminho. Desde pe- la equipa dos Ateliers Varan, de Pa- queno que sempre gostou de coi- ris. O percurso de aprendizagem de em mãos. É um documentário, do sas que implicassem a relação com Pedro ultrapassa a área cinemato- qual ele próprio é personagem, cujo os outros. Em criança, Pedro queria gráfica. Já fez workshops e cursos tema está ainda bem escondido. ser arqueólogo. No entanto, entrou de representação, fotografia, dese- Pedro conta apenas que começa em para a Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa para fazer o cur- “Não tenho computador, não tenho câmara, não tenho câmara fotográfica.” etc.”, revela o actor. Mas o mais impor- Portugal, segue em Inglaterra, volta pressão corpo- para Portugal e acaba noutro conti- ral. Com o que nente. “Falei com dois amigos e dis- aprendeu, além se ‘tenho esta ideia para fazer este de filme e sinto-me impulsionado para documentá- rio, faz instala- fazer isto’. Eles responderam ‘então ções, videos pa- o que é que estás aqui a fazer?’” Pa- seguindo os ramos de montagem e ra teatro, já fez dois making of e vide- ra ele, fazer um documentário é uma so de cinema, chegou à capital, teve de viver numa no- nho, dança, ex- va casa, com novas pessoas. E a ideia pa- tante é que agora o espectador é o actor. “ realização. Mas não foi pelo cinema os para o extinto Ballet Gulbenkian. ra esta proposta nasceu exactamente da Vão ser intervenientes directos nas per- que enveredou na prática. Pedro não tem câmara de filmar. “Queres estabelecer um diálogo, busca, que nunca esquece quem vê. queres contaminar as pessoas com vontade de questionar a cidade, as suas formances em minha casa”, explica Ro- Pedro acha que o documentário de- “Não tenho computador, não tenho câ- relações, os seus espaços. Questionar o gério. “Serão quase totalmente produzi- fine o seu carácter. “O documentá- mara, não tenho câmara fotográfica. um discurso, mas não é um discur- “estar em casa de alguém”. A ideia evo- das, pensadas, ensaiadas e executadas rio tem muito a ver comigo porque diz Mas tenho óptimos amigos.” É com so finalizante.” Afinal de contas, “um luiu depois para a trilogia “de modo a dar pelo público, com a ajuda do criador, que respeito à relação com as pessoas e material emprestado que parte para documentário é um ponto de vista, um ar performável ao resto do percurso”, sou eu”. À disposição do espectador estão não propriamente à relação com o ac- as suas criações. O dinheiro que ga- não é a realidade. Não é ‘tomem lá explica Rogério. “O Vou a tua casatem a textos, fotografias, vídeos, objectos, mú- tor.” É esta relação com os outros que, nha é algum, mas “na maior parte das a verdade’, é ‘isto também existe’. É ver com uma reacção epidérmica à cida- sicas, que poderá utilizar para construir o segundo Pedro, dá toques de ficção a vezes não é justo.” Cá os apoios não uma oportunidade de escolha e aí é de”, conclui Tiago Bartolomeu Costa. seu espectáculo. “Se a pessoa quiser fi- um tipo de obra que, em princípio, li- são muitos, principalmente de priva- que começa a liberdade.” • Rogério trabalha como actor desde 1996, car em minha casa a dormir para saber da com factos. A mover tudo isto está num tempo em que ainda estudava Co- como são os barulhos da minha casa à um ponto de vista, pois “nunca se con- municação Social. Formação oficial co- noite, pode ficar”, remata Rogério. segue abranger a realidade, ou o que mo actor nunca teve, mas considera que Rogério diz muitas vezes que nas su- quer que isso seja, de uma vez só”. a recebeu trabalhando com pessoas co- as viagens de comboio para Braga “faz Além disso, uma equipa de filmagens, mo Lúcia Sigalho, da companhia Sensur- parte” da vida da pessoa que viaja ao mesmo reduzida a dois elementos, round. Dança, cenografia, interpretação, seu lado. Infiltra-se no seu espírito, como acontece muitas vezes no docu- no seu sono, nos mentário, não pode ser ignorada pelas seus livros. Tal personagens reais. “O facto de se es- foram campos que explorou. A insatisfação com o seu trabalho somente como intérprete empur- rou-o para uma “caminho mais solitário”: o das per- “Se a pessoa quiser ficar em minha casa a dormir para saber como são os barulhos da minha casa à noite, pode ficar” - Rogério. formances que faz como invadiu a tar lá a filmar vai criar uma situação. A casa das pesso- pessoa vai saber que estás lá.” as depois de pe- Pedro não acredita em coincidências. dir licença para Por isso não hesitou quando conhe- entrar. Tal como ceu Sérgio, no Estabelecimento Pri- se expôs com al- sional de Lisboa. “A primeira pessoa guém num qual- que me veio perguntar quem eu era quer espaço pú- foi o Sérgio. Há aquelas coisas que não são coincidências. Não existem... sozinho, como este Vou a tua casa. E que blico. O objectivo parece ser sempre é uma trilogia, não esqueçamos. Aquilo o mesmo: pertencer ao mundo de al- Percebi que era com o Sérgio que a que o autor chama as “sessões expe- guém, fazendo do teatro um momento queria falar.” Compassos de Espera rimentais” do “lado c” decorreram entre da vida, que não a interrompe. “Uma é o nome do documentário realizado Maio e Agosto, altura em que tiveram iní- coisa que me fez sempre confusão foi por Pedro Paiva, no qual se segue a vi- cio as “sessões oficiais”, que têm rema- trabalhar como actor e não ficar ami- da de Sérgio, ao sair da prisão em pre- te anunciado para o final do ano. Tudo é go das pessoas”, confessa. cária. “Quando fui para a prisão, o que pensado, preparado. Tudo tem a aparên- Nas escadas do nº14 ainda estão o Ro- eu queria era pegar na pessoa e fazer cia de ser espontâneo, verdadeiro, real. gério e o Diogo. Não falam, escrevem. só os dois lados: ele está na prisão e Deste “lado c” fazem parte, tal como no “Realmente, aqui está muito frio. A esta sai de volta para a vida quotidiana. Lá “lado a”, os chamados “observadores” (co- hora as pessoas começam a sair dos dentro, percebi que era mais difícil sair mo Tiago Bartolomeu Costa), que estão escritórios e vão para casa”, escreve o e ter de voltar.” Foi este documentário presentes nos espectáculos em casa do Diogo. Rogério levanta-se num ímpeto, que deu a Pedro uma Menção Honro- Rogério, “contaminado o projecto com as escreve uma última frase num papel e sa na categoria Onda Curta do Festival perspectivas de cada um e os interesses deixa-o caído na árvore mais próxima. Indie de Lisboa 2005. disciplinares que têm orientado as su- Desaparece. Diogo levanta-se, lê o pa- Pedro gosta de aprender. Compas- as acções como críticos/investigadores/ pel: “I will love you, unconditionally”. • VERA MOUTINHO 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 30 CULTURA 3 C VERA MOUTINHO ila começou a cantar em casas me deixaria matar!’ Foi a cantar a Lágrima que de fado aos 25 anos, como clien- Cila viveu um dos momentos mais marcantes te, no início. Está no Clube de Fa- no Clube de Fado. O público contava com go- do há dois anos. Cila nunca sabe o vernantes angolanos. Quase a chegar ao fim da que vai cantar. “Chego lá e é aqui- música, Cila parou de cantar. O guitarrista sus- lo que o meu coração pede. Não se prepara na- surou-lhe ‘uma lágrima, uma lágrima tua’, ao da.” A sua voz rouca, que se nota à primeira ser que ela, com esforço, respondeu ‘eu não me de fadista, transmite emoção. “É uma mistura esqueci da letra, eu não consigo é cantar’. “As de sentimentos tão grande! Por vezes até ve- lágrimas caíam-me. Saí da sala e os senhores nho de lá cansadíssima, a emoção é tamanha!” vieram dar-me os parabéns; também eles es- ‘Se eu soubesse que morrendo/ Tu me havias tavam a chorar de emoção. E os meus CD esgo- de chorar/ Por uma lágrima tua/ Que alegria... taram nessa noite.” • A VERA MOUTINHO HISTÓRIAS DO FADO EPISÓDIOS DA VIDA DE TRÊS DOS FADISTAS DO CLUBE DE FADO, JUNTO À SÉ DE LISBOA MARTA PAIS LOPES A lcindo esteve sem cantar pro- se aguentam tanto tempo.” No Clube de Fa- fissionalmente apenas 20 dias do, a sua experiência concedeu-lhe lugar na sua carreira de 50 anos co- cativo. Alcindo recorda aquela que foi “tal- mo fadista. A sua voz casti- vez a pior noite” da sua vida. Estava a cantar ça começou a ser ouvida na na Parreirinha quando soube da morte do Emissora Nacional e foram inúmeras as ca- pai. Mas continuou a cantar, provavelmente sas de fado por onde já passou. Começou na com mais alma que nunca. É este episódio lcindo está sentado na sua cadeira junto à en- Márcia Condessa. Desse tempo, guarda re- que conta se lhe perguntam o que é o fado. trada. Olha de soslaio por entre as rugas e ex- cordações: “Eu cheguei a entrar para a Már- “O fado talvez seja uma maneira de a gen- clama “Maria Calas-te!”. Ignorando o comentário, cia Condessa às 9 horas da noite e a sair de te deitar cá para fora tudo aquilo que sen- Teresa continua a cantarolar com frescura. Subin- lá no outro dia às 10 ou 11 horas da manhã. te, coisas boas e coisas más. O fado é assim, do as escadas que ela desce, encontra-se uma sa- Hoje já não se usa isso. As pessoas já não sempre foi assim, desde o início.” la com mesas, onde está Cila absorta num livro de poemas, cantando o que lê num mumúrio. Os fadistas do Clube de Fado parecem ter sido escolhidos a dedo: a experiência de Alcindo Carvalho, de 72 anos, contrasta com a espontaneidade dos 25 anos de Teresa Lopes Alves. A mediar, está a calma madura de Cila Guimarães, com 42 anos. “Mana, posso tirar os collants?”, pergunta Teresa. Cila responde: “Olha, eu deixo-te porque também já tirei os meus. Eu disse-te que nunca se cantava sem T eresa está no Clube de Fado apenas ele ‘mas não tem nada a ver com a pessoa desde Março, mas parece ter nasci- que eu vi cantar!’” Para Teresa, o fado não é do ali. Tem uma voz forte e limpa. Diz mais do que contar histórias. O fadista é o in- cada palavra com a clareza de quem VERA MOUTINHO térprete dessas histórias. não tem medo. “Consigo ser quem “Tenho de passar uma mensagem e não a realmente sou ali dentro e não tenho qualquer consigo passar se estiver com o estado de espécie de entraves, de bloqueios”. espírito que não seja o dessa mesma men- collants, mas eu hoje já tirei. Não aguentei!”. Apesar Lembra um episódio com muito significado: sagem. Se eu estiver a contar que tive um do céu escuro e da lua já no seu lugar, está muito ca- “Já estava no fim da noite, com um ar comple- desgosto de amor, não posso fugir à serie- lor. Paredes de pedra grossa cobrem quase todo o tamente trapalhão. Um senhor veio ter comi- dade a que isso obriga.” O mesmo senhor da espaço, mas não o arrefecem. Tudo aqui é quente. go e perguntou ‘quem foi aquela menina que sua história perguntou-lhe ‘sofreu assim As vozes que cantam ao fundo, a comida fumegante, cantou primeiro?’. Eu respondi ‘fui eu’. Diz tanto na sua vida?’ • os copos cheios, o fumo do tabaco – a noite. • • LINA VALENTE A minha cruz IRINA MELO Tenho na vida uma cruz Vou levando o meu calvário Por isso peço a Jesus rio de que está toda arranjada, endi- Seja qual for o meu norte Para me prolongar a vida reita os ombros descaídos, rasga um Já que eu tenho esta cruz Não quero que a minha cruz na na Esquina de Alfama. Não há tempo a sorriso e, apontando para os brincos Não me venha pior sorte Fique no mundo perdida perder, até porque já perdeu demasiado. e o colar de bijuteria multicolor que a porta de uma das casas de fados Com um marido que lhe batia e a proibia enfeitam, confidencia envaidecida “Foi “Não gosto do fado da desgraçadinha”, Desfia a sua história enquanto desce pe- silhueta fica mais bonita. Ao comentá- Mas uma cruz bem pesada las enviesadas vielas do bairro. A actua- Eu digo ao fado e juro ção na Baiuca já acabou, mas esperam- Que não tenho culpa de nada À Do lado de fora, um homem de camiso- onde costuma cantar, tenta ven- de cantar – mesmo em casa - e com mui- o meu marido que mos deu no Natal”. atira à pergunta do que gosta de cantar. la do Benfica cavada e boné na cabeça der rifas ao guitarrista que ainda há tos dos filhos, dos vinte que pariu, que se- Logo que a avista, o dono da Es- Prefere os fados alegres, para desgra- espera. É o segundo marido de Lina Va- pouco a acompanhava no Povo que la- guiram pelo ‘lado errado da noite’. quina de Alfama apressa-se a cor- ça bastou-lhe a vida. A angústia des- lente, o “santo” que a ajudou a recons- rer para um espaço improvisado na ses anos rendeu-lhe alguns versos: truir a vida, depois da morte do primei- vas no rio. O homem tira o euro do bolso, mas recusa a rifa que lhe dá direito A culpa é do destino ao sorteio de uns copos empoeirados Da sorte de uma mulher que a fadista lá tem em casa. “Faço isto para ganhar mais algum”, conta Li- exígua sala, grita que quer silêncio “Fiz este poema numa altura em que ti- ro - que nem por um instante lamenta. “porque se vai cantar o fado” e anun- nha um filho a deitar sangue pela boca, Hoje, quando acaba a ronda pelas ca- A quem o poder divino cia o seu nome. Lina agarra o xaile outro preso por causa da droga, um a sas de fado de Alfama, vai de carro até ao Dá força para vencer preto brilhante, que trazia enrosca- morrer e um pequenino. Um dia estava Bairro da Ajuda, onde mora, um luxo que do numa mão, sacode-o e coloca-o tão desesperada e comecei a escrever, só há bem pouco tempo conheceu: “As na Valente, que aos sessenta e seis anos calcorreia, todos os dias, algu- No emaranhado dos clarões que se sobre as costas. Atira a cabeça pa- a escrever, a escrever…. E quando dei minhas filhas não queriam que eu ficasse mas das mais conhecidas casas de Al- soltam dos candeeiros das ruas e das ra trás e cerra os olhos. Já se ouvem por mim tinha um poema lindo. Chama- com ele. Mas, depois de tudo o que ele me fama. Por amor, apenas. casas dos moradores, a sua pequena os acordes… se A Minha Cruz; já o tenho cantado.” ajudou, ia dar-lhe com os pés, menina?” • 8ª COLINA • OUTUBRO 2005 AGENDA CULTURAL 31 • MÚSICA • CINEMA dos Realizadores do Festival de Cannes. Esta foi a 3ª edi- Coldplay ção do prémio, criado pelo Ministério da Juventude Fran- 23 DE NOVEMBRO • 21:00 • PAVILHÃO ATLÂNTI- DE: MARCO MARTINS • COM: NUNO LOPES, BEATRIZ cês, onde o júri se fez constituir por jovens europeus ciné- CO • Os Coldplay regressam a Portugal já no pró- BATARDA • PORTUGAL 2005, 102’. • ESTREIA: 6 DE OU- filos (18-25 anos). A “Alice” foram atribuídos os maiores ximo mês de Novembro para um concerto integra- TUBRO • CINEMAS: MONUMENTAL, FONTE NOVA, KING, elogios por parte da imprensa internacional. A edição on- do na digressão que promove “x&y” (2005), último ALVALÁXIA • Marco Martins estreia-se este ano como re- line da revista Screen International – a mais importante álbum de originais editado pelo grupo. O registo alizador de longas-metragens, com o filme “Alice”. O re- publicação profissional de cinema a nível europeu, fala do cheio de alma de Chris Martin e as canções que alizador estagiou na produção de filmes de Wim Wen- desempenho “impressionante do actor Nuno Lopes (...), a conquistaram o mundo com a sua simplicidade ders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier, e foi ainda encarnação viva do pior pesadelo de qualquer pai”. • SI- garantem um espectáculo excelente. assistente de João Canijo. Mas Marco Martins há vários NOPSE: Passaram 193 dias desde que Alice foi vista pe- anos que soma passos no âmbito da realização. 1997 foi la última vez. Todos os dias, Mário, seu pai, sai de casa e o ano que marcou o início da sua carreira de realizador, repete o mesmo percurso que fez até ao infantário, no dia são. Uma história de amor de um pai por uma filha, que 24 DE NOVEMBRO • 21:00 • AULA MAGNA • Gra- nomeadamente de spots publicitários, sendo actualmen- em que Alice desapareceu. A obsessão de a encontrar le- se sente profundamente isolado, embora vivendo na ci- vado entre Nova Iorque e Lisboa, “Cinema” (2004) te considerado um dos produtores de renome do merca- va-o a instalar uma série de câmaras de vídeo pela cida- dade. Um rosto igual a outro rosto, uma rua igual a ou- é o 4º álbum de Rodrigo Leão, que contou com a do publicitário português. Com “Alice” recebeu o pré- de, que registam o movimento das ruas. tra rua, um dia igual a outro dia. Mas Mário acredita que a participação especial de Beth Gibbons (vocalista mio “Regards Jeunes”, para Melhor Filme da Quinzena “Alice” é sobretudo um filme sobre a ausência e a obses- sua filha vai aparecer. • dos Portishead) e Sónia Tavares (vocalista dos The Alice Rodrigo Leão Gift), entre outros. A 24 de Novembro, Lisboa recebe Rodrigo Leão para um concerto memorável. Edukadores rialistas e a revolução. Trata-se de uma dinheiro em detrimento da própria vida, DE: HANS WEINGARTNER. • COM: JAN crítica que combina a comédia, a políti- é a questão que sustenta a maior parte Black Eyed Peas (DANIEL BRÜHL) E PETER (STIPE ER- ca e o amor. Jan, Peter e Jule vivem a dos movimentos sociais. O filme, consi- 8 DE DEZEMBRO • 20:00 • PAVILHÃO ATLÂN- CEG), JULE (JULIA JENTSCH). • ALE- sua juventude rebelde. Unidos pela pai- derado um dos dez melhores em Can- TICO • “Monkey business” é o novo álbum que os MANHA/ AÚSTRIA, 2004 • “Edukado- xão de mudar o mundo passam os dias a nes 2004, constitui um especial momen- Black Eyed Peas vêm apresentar a Portugal, ál- res” é um filme cuja estreia já aconteceu avisar os vizinhos ricos, com mensagens, to de reflexão e retrata ainda os últimos bum que conta com a colaboração de prestigiados em Portugal e que aborda tudo o que não de que os seus dias de riqueza estão con- dez anos da vida do realizador, outrora artistas como Jack Johnson, Justin Timberlake, escapa aos nossos dias: jovens rebel- tados. É este um retrato geracional, on- também ele um jovem ocupa, revoltado e Sting e James Brown. Um espectáculo único, onde des, sociedades individualistas e mate- de “edukar” os mais ricos, amantes do cheio de vontade de mudar o sistema. • tudo é festa, tudo é funk, tudo é música. • EXPOSIÇÕES WORLD PRESS PHOTO 2005 • Centro de Exposi- edição, foi a imagem do fotógrafo indiano Arko Dat- de 24 nacionalidades. DOCLISBOA 2005 • Culturgest maneiras de pensar. Organizado pela AporDoc, As- ses, nomeadamente a Rússia. O DOCLISBOA 2005 ções do CCB • 30 de Setembro a 23 de Outubro • ta, da Agência Reuters, que arrecadou o maior ga- • 15 a 23 de Outubro • Das 11h às 23h. • Preços: 2 Eu- sociação pelo Documentário, o Festival Internacio- irá ainda promover debates sobre a situação actu- 3ª a Domingo (10h às 19h) • Preço: 3,50 Euros • Ano lardão, com uma fotografia tirada aquando do mare- ros • O Festival de Cinema com a maior afluência de nal de Cinema Documental de Lisboa 2005 preten- al do cinema documental em Portugal. Os meios, os após ano, a World Press Photo convida fotojornalis- moto que atingiu o sudeste asiático no final de 2004. público em Portugal volta este ano a Lisboa. O DO- de incentivar uma reflexão mais aprofundada sobre agentes e os resultados serão os temas mais fala- tas de todo o mundo a participar neste concurso, a Em 2005, participaram 4266 fotógrafos de 123 paí- CLISBOA 2005 é um festival exclusivamente dedica- temas actuais, como o Nacionalismo, a Identidade e dos. Com o apoio financeiro do ICAM/MC e da Câma- mais importante competição internacional de foto- ses, num total de mais de 69 mil imagens, tendo sido do ao documentário e este ano abre as portas a no- as Fronteiras. Pretende também dar a conhecer ao ra Municipal de Lisboa, o Festival irá decorrer entre grafia de imprensa. No ano em que completa a 48ª atribuídos prémios em 10 categorias, a 63 fotógrafos vos géneros e novas tendências, privilegiando novas público português a cinematografia de outros paí- os dias 15 e 23 de Outubro, na Culturgest. • • ENTREVISTA • LUÍS AFONSO • TEATRO “Se não criticasse a sociedade não fazia cartoons” RITA AFONSO EM DEZEMBRO, OS CARTOONS DE LU- para a actualidade, utilizando alguma dá gozo é a ideia. Os cartoons podem no ano passado, mas ainda não vi co- ÍS AFONSO CHEGAM AO TEATRO-BAR ironia e, se possível, o humor. não ser uma forma de criticar a so- mo ficou depois das alterações que DO TEATRO DA TRINDADE. O CRIA- Quando é que começou a desenhar? ciedade. Mas, para mim, se não criti- lhe fizeram. Gostei, e quando assis- Greta Garbo DOR DE BARTOON VÊ ASSIM AS SU- Comecei a fazer desenhos em miú- casse a sociedade não fazia cartoons. ti, quase nem me lembrei que havia lá AS TIRAS DIÁRIAS DE BD (DO JORNAL do, sempre para servir as histórias O que tem a dizer sobre a peça que textos meus, o que é bom sinal. TEATRO DA TRINDADE • DE 18 DE SETEMBRO A 30 DE OUTUBRO • DE 4ª PÚBLICO ) GANHAREM VIDA NOS PAL- que inventava... Mas nunca desenhei estará em cena no Teatro-Bar do Te- Existe alguma situação em especial A SÁBADO – 22H; DOMINGO – 17H • M/12 ANOS. • PREÇO: 8 EUROS. • TEX- COS, PELA MÃO DE CARLOS CURTO. que gostasse de caricaturar? TO: ELISA LISBOA • INTERPRETAÇÃO: ELISA LISBOA, MARIA BARRACOSA. SINOPSE: No final da vida, escondida no mais absoluto anonimato, a L uís Afonso é um alentejano licen- pelo desenho, o meu interesse esteve atro da Trindade, “Bartoon”, inspira- sempre nas próprias histórias. da nas suas tiras de BD? Gostava de um dia ter de inventar um Onde é que vai buscar a inspiração? É um trabalho de recriação no qual cartoon desses que não criticam na- ciado em Geografia que trabalhou Para o trabalho do dia-a-dia, baseio- não tive intervenção. E acho bem que da, inócuos, com meninas ou animais tre a Experiência e o Sonho. nesta área até 1995, data a partir da qual me em toda a informação disponível, seja assim, a peça não tem de ser (ou com meninos e animais), falan- passa a dedicar-se exclusivamente aos ou seja, tudo o que “faz a agenda”. exactamente como o “Bartoon”, de- do de futilidades. Era sinal de que o Bartoon cartoons. Passou por diferentes jornais Às vezes também me inspiro em coi- ve ser aquilo que o encenador cria mundo estava melhor e já não havia momentaneamente as incertezas e revistas, como A Bola, Grande Repor- sas que observo por aí. a partir dos textos originais. Sou da assunto. Nesta encarnação não pen- velha Garbo encontra-se face a face com a sua Juventude... um duelo en- DA e angústias que a actual socieda- tagem e Público nos quais permanece. Considera que o cartoon é a sua melhor opinião de que deve haver liberdade so ser possível fazê-lo, mas numa TRINDADE • 1 A 17 DEZEMBRO de inevitavelmente provoca. É nes- Considerado um dos cartoonistas mais forma de expressão? criativa. Assisti à primeira antestreia, das próximas, quem sabe? • • 5ª, 6ª E SÁBADOS ÀS 23H00. • te local/universo que questionam e marcantes da imprensa portuguesa, Exprimo-me melhor através do carto- TEXTO: CARLOS CURTO • INTER- reflectem sobre a(s) vida(s), com Luís Afonso foi galardoado com o Pré- on porque já estou há muitos anos nes- PRETAÇÃO: PÊPE RAPAZOTE, PE- sarcasmo, humor e sentido crítico, mio Nacional de Cartoon em 1993 e com ta área e as coisas saem-me mais ra- DRO ALPIARÇA, VERA FONTES muitas vezes notável e raras vezes o Prémio Nacional de Humor de Im- pidamente do que se utilizasse outra E VICENTE MORAIS. • 70 MIN. • recriminatório. TEATRO-BAR DO TEATRO prensa em 1999 e 2000. A iniciativa de forma de expressão. Mas não sou um PREÇO: 8 EUROS. • “Bartoon” tem levar o bar mais conhecido dos por- tipo “vidrado” no desenho, poderia até origem nas tiras de Luís Afonso pa- tugueses ao teatro é inédita. Em en- passar bem sem desenhar se alguém o ra o jornal Público. Este espectácu- trevista à 8ª Colina, Luís Afonso satis- fizesse por mim (assim tipo uns duen- lo procura representar um univer- fez a nossa curiosidade. des a quem eu dissesse: “tu, dese- so onde as pessoas se encontram O que é o Bartoon? nha aí um tipo sentado”, “agora pintas para enganar a solidão, esquecer O Bartoon é uma “tira” diária virada umas calças às bolinhas”...). O que me MIGUEL MADEIRA Proprietário e Editor: Escola Superior de Comunicação Social • Fundadora: Anabela de Sousa Lopes • Projecto: Telmo Gonçalves • Director: Paulo Moura • Política: João Godinho e Liliana Batista • Sociedade: Sílvia Dias e Tânia Reis Alves • Ensino: Irina Melo • Mundo: Pedro Gonçalves • Cultura: São Sousa e Vera Moutinho • Agenda Cultural: Liliana Batista e Rita Afonso • Letras: Ana Brasil e Andreia Gonçalves• Desporto: Dilpesh V. Laxmidas e André Ferreira• Media: Marta Mesquita • Humor: Marta Pais Lopes e Ana Rita Henriques • Colunista: Oscar Mascarenhas • Fotografia: José Manuel Ribeiro, Nazaret Nascimento e Vera Moutinho • Cartoonista: Edgar Silvestre • Paginação: Jadir D. Martins, João Abreu e Sara Matos • Revisão: Jorge Trindade • Impressão: Lisgráfica. Rua Consiglieri Pedroso, nº90, Barcarena • Tiragem: 5000 • Periodicidade: Trimestral • Redacção: Campus de Benfica do Instituto Politécnico de Lisboa • NIF: 503535141 • Tel: 217119000 • [email protected] HUMOR A COLUNA TORTA pelas Damas de Humor por Edgar Silvestre EMA! N PARECE QUE EM NOVEMBRO EMA CHEGA A PORTUGAL. OS MA- existem alguns labregos a atiçar Outra loiça o meu último artigo de opinião fui crucificado por ter sido tão cruel com o “portuga”, mas que posso eu fazer se ainda CHOS MAIS CRIATIVOS REFREIEM OS ÂNIMOS, NÃO É UMA AC- SHERYL CROW já confirmou a sua presença. Foi ela, aliás, quem sugeriu o no- o meu bom senso. Na semana passada fui ver a bola na tasca lá do bairro, mostraram os re- TRIZ PORNO. SÃO OS MTV EUROPE MUSIC AWARDS, QUE VÃO PA- vo dispositivo de segurança: os convidados RAR LISBOA. AVANÇAM-SE OS NOMES PARA OS POSSÍVEIS HOSTS vão ser identificados por uma pulseira Lives- com o dono do café que o resul- trong, objecto obrigatório a qualquer celebri- tado que estava na televisão es- dade ou adolescente que se preze. No entan- mo já tinha empatado. O senhor A.K.A. APRESENTADORES QUE FAZEM UMAS MACACADAS E LÊEM O PIOR QUE PODEM O TELEPONTO: SÍLVIA ALBERTO, FERNANDO ROCHA E A MANUELA MOURA GUEDES (SÓ PORQUE LÊ MAL O TELEPONTO). E SE ELES NÃO PUDEREM HAVERÁ SEMPRE UM DE levantou e começou a reclamar tava enganado, porque o Maríti- to, a segurança nacional não se deixará ludri- do café ficou atarantado, é ver- biar e vai estar atenta ao portuga penetra que mas quem emitia a grelha de tente passar com a pulseira amarela que lhe saiu nos cereais ao pequeno-almoço. SERVIÇO: JOSÉ FIGUEIRAS. • sultados e houve um tipo que se dade que a televisão era dele, resultados era a Sportv. Por falar em bola, o novo treinador do Benfica, Ronald Koeman. É a cara chapada do Marco Paulo com o cabelo do Herman José. MEIO EURITO (no estrangeiro chama-lhe 50 Cent) trará Os D’ZRT não foram nomeados para ne- consigo toda a comitiva habitual, que tivémos o prazer de co- nhuma categoria. Apesar da rotação diária nhecer em antecipação no 1º de Outubro. Já que falamos nisso, do video na MTV, roupas da moda e fãs tres- alguém é capaz de explicar para quê trazer 5 convidados pa- loucadas que vão desde o 3 aos 32 anos de ra o concerto no Pavilhão Atlântico? Mas o rapaz não consegue idade, a boysband portuguesa não conquis- fazer nada sozinho? Para gritar a última palavra de cada ver- tou a malta da MTV. Em declarações à Lusa, so bastava mais um! Nesta semana ligaram-me às 5 da manhã, eu atendi, do outro lado estava um amigo meu que teve o descaramento de me perguntar se eu estava acordado. Eu respondi, não, não, normalmente eu tenho o hábito de me levantar às 4 e meia para dar cabeçadas pelas paredes da casa para dar tempo de às 5 e um o Angélico, aparentemente o mais bonito e quarto cortar os pulsos, era ób- dread, afirmou: “Para mim tanto me faz”. gunta mais parva que se pode vio que estava a dormir, é a perfazer a uma pessoa. Mas o telefonema tinha razão de ser, tinham-lhe roubado o carro. Cho- DIÁRIO DE UMA MOSCA por Miguel Ferreira cados? Nem por isso, tendo em conta que ele mora numa co- 1 DE OUTUBRO 2005. “De todos os humanos, quem à merda” sem ser para ofender outra pessoa, es- uma falsa moralidade já que se conspurcam todos os lónia de Cabo Verde chama- eu desprezo menos é o pessoal do teatro. Quando uti- tá quase a colocar-se no lugar de uma mosca e isso dias. Hipócritas. Estou a voar sem destino. Mas! Es- da Queluz, mas fiquem choca- lizam a expressão “vai à merda”, que em príncipio deixa-me feliz e na merda. • 20 DE OUTUBRO 2005: tou a ver uma luz!! Que brilhante! É linda!!! Chama por dos agora, porque quando so- tem um significado negativo e pejorativo, é para de- “Mais um dia triste. O nosso holocausto. Milhões de mim! A visão que me permite olhar para todos os la- mos assaltados por pessoas de sejar sorte ao actor. Quem é que gosta de ir à mer- moscas gazeadas todos os dias. Todos os dias a fu- dos está centrada só na minha luz preciosa! É só mi- nível até custa dar entrada da da e encara isso como algo de muito positivo e essen- gir dos humanos. Estou a voar, sem esperança num nha! Amo-a! Vou voar para ela! Ela vai proteger-me queixa na polícia. Eu fui com o cial? Os humanos não são certamente. Claro que so- mundo melhor onde a merda e o lixo abundem sem o dos humanos! Vou ser livre e feliz! Estou quase a tocá- meu amigo à esquadra e o bó- mos nós as moscas. Por isso, quando alguém diz “vai dedo higiénico dos humanos, que afinal, não passa de la! Que neon roxo tão lindo!......... • fia (que tresandava a vinho) perguntou: Então diga lá o que lhe roubaram. Meu amigo: O auto- ESPÍRITO ACADÉMICO por Edgar Silvestre rádio, senhor inspector. Bófia: Mais alguma coisa? Amigo: Só um saco de plástico para levar o rádio, tiraram o CD que estava lá dentro, deixaram os meus CD´s originais sossegados e foram-se embora. Bófia: Algum sinal de violência na viatura? Amigo: Por acaso não, antes de se irem embora fecharam as portas do carro e não sujaram nada. De facto, quando se lida com pessoas educadas é outra loiça. •