PDF – clique aqui - Revista Parênteses

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#04 | maio 2014
distribuição on-line gratuita
Dimitri
br
Guilherme
Damasceno
Pierre
Masato
Raimundo
Neto
Rodrigo
Garcia Lopes
Lyn Hejinian
em tradução de
Adelaide
Ivánova
5
26
12
31
Virna
Teixeira
47
Leo
Ventura
17
42
52
Maíra
Ferreira
21
Editorial 3
Créditos e contato 58
As fotos da capa
e ao longo da
edição são de
Edu Suppion
n
Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer (...)
- Vinicius de Moraes, A carta que não foi mandada
ão é Paris, não é 73, mas é outono.
Dizer que a Internet é mais quente, mais
Estamos no nosso bar mais uma vez e es-
acolhedora do que fazem parecer tantos
crevemos para dizer.
discursos raivosos que andam pipocando
Dizer que o número quatro da Parên-
ultimamente. Existe amor por aqui.
teses chega outonal, em tons de pôr do sol.
Escrevemos com palavras empresta-
Dizer que ainda vamos (e por mui-
das e agradecemos às onze vozes talento-
to tempo queremos seguir) aprendendo
sas que dizem tanto por nós.
a editar uma revista, descobrindo o que
E pedimos licença ao grande Poetinha
pode caber entre parênteses. Cabe poesia
para daqui, outono de 2014, mandar nos-
e prosa, cabe fotografia, e agora cabe tam-
sa carta.
bém tradução. A revista segue crescendo,
os parênteses vão se alargando.
os editores
Dimitri
br
Io
quero ir pra Júpiter, ela disse
Júpiter é feito de ar, lhe disseram
afundaria em Júpiter, ela disse
como num colchão de plumas
5
1. há quem tenha o hábito de dormir
2. algumas das pessoas que têm muitos travesseiros são mais felizes
2.1 outras não
3. tem bicho que dorme em pé
3.1 tem bicho que dorme deitado
4. quatro escrito parece quarto
4.1 4 numeral parece A
4.1.1 depende da fonte
5. o teto fica mais longe quando se está deitado na cama
5.1 um pouco menos se se está sentado
5.1.1 e ainda mais perto caso se fique de pé sobre ela
5.1.1.1 mesmo que seja um futon
6. dormir é bom
notas ao pé
da cama
(8 fatos sobre a vida noturna)
7. ficar acordado é bom
6+7 com você é melhor
8. ninguém percebe a insônia quando acontece de dia
6
agora eu sou uma estrela
bom dia
amigo se escrevo bom dia às 7h18 do fuso carioca, horário de verão se
você lerá às 10h às 15h às 23h ou nunca ou em outro fuso estamos ainda ao mesmo tempo porque a hora em que falei com você foi a hora em que o som da minha voz chegou
a você e quem é que vai dizer que esse delay é mais ou menos natural que o tempo que
leva o som pra transpôr a distância da minha boca pro seu ouvido 2, 3, 5, 10, 200 metros
- quanto precisa pra deixar de ser natural? se eu falo hoje e você está em outro planeta
você pode só ouvir daqui a anos ou séculos e ainda é uma fala e tudo o que dissemos no
rádio está vagando pelo universo, o som das vozes das músicas, cada vez mais longe, e
quando ouvirem vão achar que acabamos de falar, assim como as luzes que vemos no
céu vêm muitas vezes de estrelas que já morreram, mas se vemos agora, estão vivas, ou
não? se você ouve minha voz depois que eu morri, 1 minuto, 10 anos, quanto tempo até
que não seja natural? e este texto, esta fala publicada, hoje em dia a simultaneidade é
assíncrona (sic, sci-fi) hoje em dia o tempo é o de cada um e de cada interação, depois
de quanto tempo passa a ser natural? por que o tempo do corpo humano seria uma
referência mais válida que outra qualquer? de quem é a voz que se escuta? de quando?
1 segundo, 2 segundos, o futuro chega a toda hora.
7
3’44’’
0:00 a fase de testes
0:02 a partir daí para frente
0:05 o grande destaque foi o que disse
0:08 atkinson
0:09 pelos dados
0:12 serviços de emergência
0:15 ônibus
0:17 existe sim uma certa forma acrescentou - não é assim
0:25 a hp lexmark
0:27 a margarida maria de fátima bernardes
0:31 momento em que houve a explosão
0:33 gosto muito do que faço
0:35 risos os detidos de que os dados não são utilizados
0:41 mas preste atenção nas pessoas que usam o sus neste estudo foram presos
0:49 o show faz parte temos pela rua e porto do dragão
0:53 posteriormente o gol
0:55 os jogos do brasil
0:57 liberdade de imprensa é um milagre
1:00 um angolano em miami - vamos fugir
1:04 um rio de janeiro x aurora saulo
1:10 o
1:16 se estas não são raros
8
1:20 ficarão no ar polar não não não não fogo
1:50 me lembro mais longe
1:52 elimine um minuto
1:53 buzo minha mulher
1:57 minha mulher e minha família
2:00 um momento muito bom nunca dormir
2:02 1º de maio e novembro
2:05 o novo e moderno
2:07 membro da comunidade ao lado de miranda
2:10 domingo diante do ypiranga e grêmio metropolitano maringá e treinamento com
2:15 o elenco enfim tudo mais longo prazo pedro fica mais baixos das taxas de
2:21 juros e dos spreads cobrados por cada um dos quesitos dezembro mais de cinco
2:26 horas de sequestro
2:49 não nego
3:18 7
3:24 cel
3:26 jesus
3:29 7 - victor d
3:33 murray
3:35 gisele - desde que ela tinha que escrever sobre a questão
3:40 33
3:44 e
9
s/n
toda comunicação é ruído
eitof acomufnigal ehjdp´ruidfo
gjtyipoe dnciomjgis^pgfo esy aoituidp
queisdo cusaytbbe65$aio ow9 dusyepruído
Dimitri br faz música sólida, videocanção
e quadrinhos, e recentemente assinou um
atestado de poeta (com firma reconhecida).
Lançou discos, publicou textos e no momento
conduz uma pesquisa para saber se as pessoas leem as minibios da Parênteses. Se você
leu até aqui, dê um sorrisinho cúmplice e em
seguida visite o diahum.com.
10
Guilherme
Damasceno
Prefácio
um bom livro
se julga
pela capa
até ele te dar
um tapa
um bom livro
se julga
e não se divulga
pela capa
um bom livro
escapa
lavra
um bom livro
12
Fotografia #1
milhares
de conchas
aos pares
orixás
areando axé
nos ares
areia no pé
palmares
estrelas
(do mar)
o som de um cargueiro
chegando na orelha
o ar
veleiro
fincado no chão
imens(ol)idão
13
arte plena
sob(re) o pano
não tem plano
nem é plana
só quem planta
sabe a pena
e cai no pranto
pronto
que a tristeza dissolva
em tinta e pena
não há problema
que um poema
não resolva
14
tão só
sem par
ao mar
você
meu cais
sem mais
Guilherme
Damasceno
nasceu em Uberlândia
em 1991. Publica no blog
www.poemirim.org.
15
Leo
Ventura
XIV
XXII
Poesia é o silêncio que transborda.
No seu rosto ergui minha solidão.
Eu escrevo pra enxugar você
E morei até ser expulso de mim.
de mim.
Foi daí que entendi:
amar é pertencer para fora.
XX
; me reparto
que o dia me permite
e a vida me exige
mais pedaços do que
sou.
XXI
Sou feito desses traços entre as coisas
dessas coisas na metade
dessas tardes sem depois.
A dobra é minha casa
e a esquina me agrada
(pela curva, pelas putas
pelo encontro de nós dois).
Pertenço aos olhares desfocados aos bocados me desfaço
em pedaços de borrão.
Sou feito essas traças entre os livros:
desenhando o seu caminho
sobre as letras e o vazio
sobre a própria indecisão.
18
XXIV
Poesia não se escreve.
Poesia acontece
quando a vida não encaixa
na certeza do segundo.
Nasceu em Recife, em 1977.
Mudou-se para Natal ainda
criança. Colecionou várias
desistências, até se encontrar nos estudos de música
e história. Para então perder-se de novo na poesia.
Começou a escrever para
preencher os espaços vazios, primeiro do dia, depois
de si. Pequeno Catálogo de
Impertinências é o seu primeiro livro.
19
Maíra
Ferreira
2113
um dia eu sei farão
estátuas peroladas de nós dois
assim artistas tão claramente escuros
no centro ardido das multidões estreitas
e seremos mais eficazes que todas as placas
e mais abertos que todas as avenidas
porém entre os corpos muitos
somente nos amarão os
pombos que nunca
descobriram bem
onde se
depositar
entre um voo
e outro.
21
Ao teu soco
arremesso meu estômago
ao teu soco
por pouco
não perco
a viagem
é num apelo
que o silêncio cheio
se dilui
e enfarpa
nossas bocas moles
de amor.
arremesso meu estômago
sabendo
que dele
não me volta nada
lançada
às tuas mãos alertas
cirúrgicas
véspera de rasgos
e asfixias
Vocação para
hiroshima
quando me perguntarem vou dizer
da tua vocação para hiroshima e nagasaki
da tua mão de josef stalin
disfarçada em inocentes dentes
franceses onde o espaço entre um
e outro convida a um lento sono
sem socos.
vou também invocar tua tirania
de quem se arruma e não sai
de quem não levanta nem cai
mas corta as unhas com a atenção
de mil abelhas produzindo mel
quando me perguntarem vou ser
completamente aberta
horrivelmente honesta
e por isso aviso
nenhuma verdade vai sair
de mim
arremesso meu estômago
às tuas garras de corvo
de nervo oco
mas o soco só vem
quando já desisti
de esperar
22
Left handed
situation
vamos ser canhotos meu
todas as caras peças dos leilões
bem explodir as tapeçarias
escrever livros inteiros apenas
os inventários e as taças
com o lado esquerdo do corpo
as delicadas taças de cristal
e mergulhar no mar para nadar
beber apenas em copos
apenas com um braço
de requeijão velho com resto
e apenas com uma perna
de rótulo por fora
respirar com apenas uma narina
0% de gordura trans
sem ter tempo para observar
tão emocionalmente diabéticos
as voltas que damos
digerir é retornar
ou a ilha que construímos
como num ciclo ou um cachorro
ao nosso redor
perseguindo o próprio rabo
sem ter tempo inclusive para ser
sem saber discernir
a ilha e habitar qualquer coisa
onde termina e onde começa
além
aquilo que quer perseguir
de um trajeto
vamos ser canhotos e derrubar
23
Estilingue
se for me atirar longe
daqui
ao menos não me pegue
e eu não vou chorar
pelas pernas
nem pedir
prefiro os cabelos
nada
me pegue pelos cabelos
se fui pega
se for me atirar
eu pago
longe
e estico eu mesma
me pegue pelos
o elástico com a cabeça
pelos
erguida dos
quando for me atirar
guilhotinados
a dois quilômetros
não vai doer
daqui
não vai doer
ou pela pele
não vai
sim pela
pele na hora de me
atirar a três mares
Maíra Ferreira nasceu em 1990, no Rio de
Janeiro, onde mora desde então. Atualmente,
cursa Letras na UFRJ e prepara a publicação de seu primeiro livro. Já colaborou com
diversas revistas literárias, como Portal
Cronópios, Mallarmagens, Plástico Bolha,
Polichinello, etc. Vez ou outra, posta em
mairanaomoramaisaqui.blogspot.com.
24
Pierre
Masato
Jobiniana
Para Sandra
eu que nunca subi o Morro de Vila Isabel,
não fui ao Zicartola,
nunca peguei Wave em Ipanema
bebo meu cachorro engarrafado,
vertendo lágrimas nessa página,
cheia de saudade
26
narcolepsias
I
um bocejo sempre puxa um cortejo
II
o sono é a antessala do sonho
ojos viejos y
cuchillos
O velho atirador de facas
do gran circo de la infâmia
ajeitou seus óculos sobre o nariz
quando escolheu a menina de verde,
para substituir sua atriz
A menina usava um vestido com alças
que foram despedaçadas pelos punhais
descobrindo seus seios rosados,
desnorteando os velhinhos do asilo
o macaco deu seu salto,
sentados na primeira fila, lado a lado
o leão bocejou na jaula,
o elefante jogando água pro alto,
o trapezista pendurou sua toalha,
o palhaço? verteu duas lágrimas
O gran circo de la infâmia
esta na velha esquina agora
: o cheiro de pipocas no ar,
meninos correndo em direção
dos balões cheios de hélio
O velho atirador de facas
sonha com a menina do vestido verde
- o esmeril ilumina a tenda sozinho sob o firmamento
amola seu velho cutelo
28
os riscos
no disco
pode fechar a porta
aqui não há nenhuma
canção dissonante
é possível voltar
sobre os mesmos passos
de onde você veio
todos os toca-discos
estão sem suas
cápsulas magnéticas
se você quiser ouvir
aquelas velhas canções
- dos long plays perdidos vai ser preciso arranhar
os sulcos com os dedos,
até suas unhas sangrarem
Pierre Masato nasceu em
1970, vive em São Paulo.
Participou
da
coletânea
de contos Brother Cactus
(2006), das coletâneas de
poesia Peso Pena (2007) e É
que os Hussardos Chegam
Hoje (2014). Algumas letras
e poemas de sua autoria foram musicados por Fabio
Brum, Mario Bortolotto e
Marcelo Watanabe.
29
Raimundo
Neto
A velha dos gatos
Ela sabia que o mundo estava acabando. Porque ela olhava ao redor e só enxergava uma massa espessa e cinza cobrindo os olhos. O cinza que descia do céu, sorrateiro e leve, e trazia as conclusões precipitadas sobre salvação e misericórdia.
Uma voz na TV dizia que as noites não seriam mais as mesmas. A rua que abrigava
velhos como ela foi dominada por homens de rua. Pele tatuada de sujeira e decepção,
a cabeça lisa, famílias disseminadas por uma doença rápida, inominada, cretina. Ou
ela leu isso em algum romance apocalíptico, ou ela escreveu quando se achava uma
boa contista, ou seus filhos contaram a ela a história de algum país distante que eles
conheceram quando viajaram pelo mundo. O Brasil havia mudado. Os filhos haviam
mudado. A cor do mundo havia mudado. Era tudo cinza agora, e cheirava a gato morto.
Não sabe explicar como os filhos partiram. Um dia, todos estavam lá, e noutro dia,
não sabe se subsequente, a casa já estava cheia de gatos. Os gatos chegaram organizados em um bando lento e sorrateiro. Nem todos pediram licença.
O tempo guardado nas palavras raquíticas, finas, esfareladas se as frases se esten31
diam em afirmações precisas sobre a par-
fome, o gato marrom era sempre o que
rigem ao pretendido, então espera essas
te sobrenatural da vida, algum resquício
se escondia na planta dos pés dela, o gato
tais coisas se anunciarem. O que ocupa
de destino imprevisível que se soltava da
preto subia no colo só para sentir a for-
a cabeça são imagens de tudo aquilo que
língua e se perdia nos cantos da casa. Ela
ça capenga dela ao arremessá-lo contra
ela já conheceu; não sabe se ainda estão
nunca quis saber o porquê de viver sozi-
os outros gatos. Ela sabia de cor todos os
ao redor, tem a impressão de que agora
nha, com todos aqueles gatos.
gatos. O branco, que brigava com todos
são apenas fantasmas, as coisas que exis-
Na casa, pouco móveis, muitos obstá-
os outros, o vermelho que era assustado
tem são outras coisas, do tipo faltante,
culos. Oitenta e seis anos que buscavam
e patético porque não comia sardinha.
cheias de muitos vazios, ainda absolutas,
desviar-se de dezenas de gatos e restos de
Mas o gato loiro era o bicho que liderava
mas agora fantasmas. A falta é um fan-
comida. Ouvia as vozes da rua, as pessoas
o grupo inteiro. Prontificava-se à frente
tasma ou uma presença? Arruma o cor-
que moravam nas esquinas e protegidas
de todos nos momentos em que a velha
po na cama sem resistir à falta de tudo
em barracas de lona, abrigados em casas
distribuía comida, sempre a mesma, sar-
que sempre teve, a posição confortável
de lixo, que protestavam quando era dia,
dinha, arroz, feijão e tomate. O gato loi-
dos capazes de aguardar pacientemente
com faixas pintadas com suas vozes re-
ro era loiro, o sol era loiro, e macio, sabia
durantes anos pela configuração original
clamadas, evocando uma justiça fajuta, e
disso quando ia até a varanda da cozinha,
da vida anterior.
gemiam de fome ao chegar da noite e do
que dava para o quintal, morada de mato
Ela se questionava se agora todo mun-
frio. Eles clamam por justiça como quem
rasteiro e nada mais, e sentia o sol dentro
do começaria a viver sobre uma cadeira
conjura o demônio, ela pensava. E ria, ou
dos olhos, queimando a corrente de san-
de rodas como ela; depois que a fome co-
chorava, porque agora rir ou chorar pa-
gue morno que corria o percurso da ce-
meçou a mastigar a cozinha de todos no
recia o mesmo fluir de necessidades.
gueira quase completa. Ela sentia a ener-
país (e as empresas descobriram o signi-
Os gatos armavam-se em um grupo
gia peluda dos gatos, o loiro, o vermelho,
ficado fiel por trás da expressão queda
homogêneo ao redor dela, esperando a
o roxo, o marrom, o persa, o preto, todos
das ações, e o governo se mostrou inca-
fala espessa de cigarro e velhice desme-
os outros.
paz de controlar o inchaço truculento da
dida dizer-lhes o que fazer. Ela gostaria
Não sabe mais dar nome a nada. Os
inflação, políticos, todos eles, abandona-
mesmo de poder ordenar-lhe cuidados
objetos e tudo mais perderam forma e
ram o patriotismo conveniente que os
domésticos. Eles eram quietos, mas pos-
efeito, tudo adquiriu um termo absolu-
tornava humanos e necessários), as pes-
suíam uma autonomia desacreditada,
to, impróprio, para o que é apenas coisa.
soas começaram a procurar nas lixeiras
fingida até. Sabia de cor todos eles: o gato
Sabe o nome daquilo que observa sem
nos cantos das casas escuras de janelas
persa miava histericamente ao sentir
enxergar, mas não sabe se os olhos se di-
apagadas, uma, pelo menos uma ou duas
32
refeições que calassem a boca daquelas malditas crianças esfo-
vez, e ouvia as batidas pesadas que nunca conseguiam avançar
meadas. Ela tinha os gatos, que numa espécie de ordem mística
contra a porta de chumbo instalada há dois anos.
trazida pelo calor felpudo no aconchego animal a protegia do
caos urbano instalado do lado de fora.
Olhava dentro da geladeira, como se as latas de sardinha, feijão, os potes de arroz congelado trouxessem em suas embala-
Sirenes acaloradas zuniam pelo bairro inteiro, dispersando
gens cobertas de gotas de água e capas de gelo a resposta para as
aglomerações que insinuavam revoluções recém-instaladas,
questões que pudessem salvá-lo do fim do mundo, um oráculo
motins famintos de gente de pobreza recém adquirida. Que es-
tremendo de frio a 8º C. A outra luz, branca e cremosa, despren-
tivessem famintas, as pessoas adultas e as crianças, os policiais,
dia-se da geladeira, refletia nos olhos quase cegos da velha, e des-
agora blindados com um revestimento de aço escuro e brilhan-
cascava a cegueira antiga com delicadeza, as pontas dos dedos
te, respeitavam, mas não concordavam com o barulho que se
de uma criança, como se por trás do escuro dentro dela existis-
emancipava e tomava conta do bairro inteiro, exibindo-se em
se outra resposta, a verdadeira resposta que abarcaria uma re-
faixas imundas, rasgadas, verbos redondos em letras desenha-
denção efetiva e resgataria para o mundo alguma misericórdia
das de incitação malcriada contra uma gestão nacional que já
divina. E elas ficavam ali, a velha e a geladeira, examinando-se,
havia partido há meses. O país, a sede, os governantes, os restan-
entre minúcias e roncos mudos, com seus sistemas de degelo e
tes, lideravam apenas uma porção domesticada e civilizada da
circulação, cada uma obedecendo à natureza das coisas prestes
população, longe dali, longe da sujeira, das propagandas sobre
a renderem-se ao colapso, vivas, até a luz sumir completamente.
eletrônicos que prometiam mundos e fundos, dos shampoos
Viver era estar sempre preparada para continuar trancada
que prometiam mundos e fundos, das clínicas de estéticas que
em casa recebendo encomendas de comida e revistas velhas
prometiam outra beleza, dos bancos que prometiam mundos e
sobre o ano de dois mil e vinte pelas portas dos fundos todas
fundos.
as quartas-feiras às 3:30 da madrugada. O gato loiro a ajudava
Uma luz azulada escorria por entre as brechas caídas dos
a receber o homem silencioso de suspiros domesticados (tinha
papelões que cobriam as janelas, um pequeno descuido no en-
a impressão de ouvir o som de uma pedra ao cair num fosso
caixe do material tido como resistente fazia a proteção da casa
profundo quando o agradecia e ele respondia sem dizer nada,
parecer desesperada; a luz que revestia a casa de sossego, uma
apenas com um baque trincado entre dentes). O gato loiro mia-
proteção suficiente, delicada, postiça; às vezes o que importa
va, sussurrando uma afirmativa cuidadosa, ela acordava, des-
é a sensação que carregamos nas mãos, presa aos dedos, por-
lizava para dentro da cadeira de rodas e se dirigia até a porta
que hoje em dia ninguém tem mais certeza sobre coisa alguma,
dos fundos, que dava para uma escada de vinte e seis degraus
pensava e sentia a língua do gato loiro roubar-lhe a distância do
cobertos de lixo e tentativas mal fadadas de arrombamentos.
corpo, o abandono, então ela se aproximava da realidade outra
Ela sentia todas aquelas tentativas tomarem conta do ar ao re33
dor, e não fazia ideia alguma de como
deixe os gatos os lamberem. O pai pisca-
aquele homem fazia para subir sem ser
va o olho quando os gatos começavam a
dilacerado pela fome da rua; nunca en-
estrebuchar a morte espumada e rija no
tendeu como firmou o contrato com um
chão, era o sinal da partida. É agora que
desconhecido para ter comida e revistas
ele vai me amar, e ela esperava até a mor-
velhas entregues às quartas. O cheiro do
te chegar outra vez.
homem não era familiar; o mundo ago-
Agora ela precisa dos gatos; Os gatos
ra cheirava a gato em excesso, molhados,
continham, dentro deles, e também nos
emporcalhados pelo toque suarento dos
gestos secretos que ela não conseguia en-
homens, mulheres e crianças que tenta-
xergar, mas sabia, na melodia rasgada
vam comê-los. O homem cheirava a erva
e irritante das vozes miadas, a salvação,
doce queimada.
uma proteção indefinida e capenga, mas
O pai a ensinou a aniquilar pragas:
ainda uma salvação. Talvez ela quisesse
baratas, ratos e gatos. A morte de um leva
deixar os gatos entenderem que a triste-
à morte de outro, ou a morte de um leva
za era um sinal de capitulação e a impa-
a morte do outro. Traga o veneno, ela le-
ciência a deixava preparada para a par-
vava o veneno, misture com a carne mo-
tida. Os rendidos estão arrependidos da
ída, ela misturava, coloque dentro de um
desistência, da luta derrotada e enfureci-
prato raso, ela assim o fazia, agora espe-
dos pela força aparentemente assustado-
re, e ela atenta esperava o sacrifício das
ras dos adversários; quando o inimigo é a
pragas. A morte era um beco sem saída
morte, render-se produz um efeito ridi-
até o pai, uma aproximação destemida; o
cularizado, agitado de conforto. Parecia o
pai que era relapso e abrupto, um susto
fim do amor o que nunca foi amor.
de homem, surpreendente dentro de seu
Os filhos partiram quando o bairro
corpanzil egoísta, uma atmosfera tensa
começou a responder às mudanças com
com lampejos de descuido. A densidade
discussões familiares inevitáveis, estou-
de quem não pode ser deixado para trás.
radas, gritos e ameaças perdidas, numa
A densidade de quem não resiste à super-
loucura impossível de ser evitada, ani-
fície. Não coloque os dedos na boca, nem
mais expulsos de casa, crianças gritando
34
a histeria da infância desrespeitada du-
ventude deixada para trás, que ela nunca
rante todo o dia, lixo acumulado em tam-
conseguiu resgatar, nem quando se lem-
bores coloridos. Eles arrumaram as ma-
brava dos primeiros namorados, quando
las, não inventaram as devidas desculpas,
chorava pela morte do pai, mordido por
que a maioria dos filhos elabora quando
um gato siamês, uma aberração. Os gatos
precisam sumir, e partiram. Ela sempre
lambiam-lhe a intimidade, os suplícios
soube que seria assim: o marido morto,
gemidos de uma velhice também apo-
os filhos longe, ela sozinha. Os gatos, to-
calíptica, já que as catástrofes se iniciam
dos eles, foram sua única surpresa, um
no corpo que não é mais capaz de seguir
improviso de um destino demente e tro-
adiante. Ela não sabia mais gritar, pren-
cista. Ela, que odiava gatos. Matei todos os
dia os dedos tortuosos nos apoios dos
gatos dos filhos dos meus filhos, não por
braços da cadeira de rodas, abria a boca
prazer, só para por ordem em casa, pen-
dentro da noite da casa e engolia o som
sou, e riu, riu muito. Sabia que os netos
dos miados dos gatos, e foi exatamente
seriam capazes de sobreviver ao fim dos
assim que ela aprendeu a lidar com a ur-
gatos, da mesma maneira que ela é capaz
gência das coisas que perderam seus no-
de resistir ao fim do mundo, mesmo que
mes, que possuíam agora apenas cores
ele ainda mantenha-se desmedido e in-
cegas e sons absurdos. Aprendeu a lidar
suportável.
com catástrofes íntimas como se estives-
O mundo caiu em silêncio depois de
se procurando amor em escombros, gri-
algum tempo. O silêncio acidental, ao
tando por homens que não a quiseram
acaso, cansado, no qual qualquer compe-
anos atrás, suplicando pela ajuda dos
tência cai no final de um dia de exausti-
filhos que não voltariam, familiarizada
vo. Foi quando os gatos revolucionaram o
com a fiel dedicação dos gatos que aos
prazer, e na hora do almoço, avançaram
poucos comiam seu corpo.
sobre ela, os dedos propositadamente
sujos de sardinha ao molho de tomate,
caroços de arroz grudados na baba dos
lábios, e lamberam os resquícios de ju-
E o fim do mundo veio pela língua de
um gato.
Como escrever uma
história de amor
(Primeiro: será
preciso viver e não ter medo de dis-
tâncias.)
dois (ou um de vocês três; não sei em que mundo você aprendeu
sobre amor) precisa estar em pedaços, sem sincronia, cheio de
relacionamentos passados e vincos de preocupação nas orações
para santos e outras entidades que prometem amor-eterno-dois-velhinhos-bem-unidos.
Na história de amor, saiba colocar adequadamente conta-
É preciso, antes de quase tudo que você realmente pensa ser
gens regressivas: quando a espera torna você menor do que gos-
extravagantemente importante, que no seu conto de amor haja
taria, bem menos do que você suporta, ou quando seus dedos
sutilezas. Pense em sutilezas cheias de imensidão. Pense nos
não aguentam mais ser contados e recontados na quietude do
dedos silenciosos do homem que você tenta amar sem futuro
seu desespero, quando o homem que te deixou plantado disse
percorrer o mapa abandonado de suas costas à procura do lugar
“Ligarei amanhã, viu?”, e você nunca mais conseguiu ver esse
onde viverá o amor que ainda não existe. Vai existir, um dia. Só
“Viu” com bons olhos; ficou preso ao “Amanhã” como se fosse
comece a escrever.
sempre hoje.
E que exista um homem estranho, que surgiu ontem, sumirá
amanhã, e que hoje ainda não é ninguém.
Saiba detalhar momentos que duram um ano em apenas
dez segundos: o momento exato em que as partículas do perfu-
Será preciso menos de astros pornôs no seu dia a dia, ou en-
me que ele usa - gotas duras de pólen úmido caem compassadas
tão evite buscar Ricky Martin no Google. Isso só te afasta das
sobre os pedaços de terra seca do teu corpo - se desprendem de
linhas da tua história. Porto riquenhos iluminados não são so-
seu meio-dia de homem-anteontem e voam até suas previsões
nhos. Eles simplesmente não existem pra você.
de coração em frangalhos; o beijo incompleto que te deram por
Não precisa existir amor na história de amor. Amor tem raiz
mais outro dia; o abraço imaginado das suas almofadas; o espaço
no futuro e você precisa falar de um agora tão presente que se
cheio de amanhã da sua cama preenchido também com a ima-
fechar os olhos vai entender que a vida acabou de começar em
ginação aborrecida que não sabe mais o que inventar; as lágri-
5,4,3,2,1... Protagonize-se.
mas acumuladas em potes limpos de maionese que você tentou
A história de amor deverá acontecer um pequeno romance
congelar (e conseguiu), apenas para ter nas mãos a impressão
cheio de derrotas e estratégias de enfrentamento de crises (es-
de que a dor de uma vida sem amor pode ser dura, transparente,
conda-se embaixo das mesas velhas quando estiver com medo
e frágil, e esvazia-se feito água dura.
das raivas sujas dele; proteja-se, com salva-vidas, das tempes-
Invente impossibilidades no sua história de amor: devore ho-
tades que ele faz em copos d’água, e depois aposte que a respi-
mens. Ah! Você já faz isso? Então, comece a construir a casa dos
ração boca-a-boca é mais que um beijo técnico), e um de vocês
seus sonhos, com um porão, ou outros esconderijos concretos,
36
mas que podem ser inconscientes, para
Passe dias assim, angustiado. Seja outro.
nos dedos; evite pintar de azul o que tem
que você possa guardar qualquer fragili-
À noite, quando tudo for insetos e a lua
modos de vermelho-sangue. Use as ca-
dade que ninguém nunca poderá desco-
tentando ser o feminino do sol, durma
netas certas. Não fale de paixões intem-
brir: como o amor por esse homem. Veja
sozinho, descubra a fraqueza de precisar
pestivas no sua história usando canetas
esta pedrinha minúscula próxima a você.
de alguém que não sai do papel.
vermelhas. Tinta vermelha não causa o
Lá embaixo. Mais embaixo. Mais. Cave aí.
No sua história de amor de amor (de-
despertar da piedade e da compreensão
Concentre-se. Aí. Erga a casa do seu amor
pois que tornar-se apenas uma história,
que o vermelho das rosas. Ainda que seja
onde você preferir. Só não deixe de ten-
quando você preferir a realidade crua e
piegas. É isso que você espera do sua his-
tar. Plante árvores cujo futuro é cheio de
destemperada) tente concentrar-se em
tória de amor?
sombras, e que todas as plantas recebam
homens maduros, que cruzam a vida fe-
Não trate de abandono. Não escreva
calmas as rajadas de ar como asas de an-
rozmente, como um transatlântico arre-
nada como “Sempre”, “Nunca”. Fuja dis-
jos o fazem, como uma benção. Não seja
bentando a imensa vida calma do oceano.
so. Ir embora para sempre não significa
diplomático com os seus sonhos, persi-
Eles não precisam ser ricos, os homens.
“Nunca Mais Voltar”; o amor ainda fica lá,
ga-os. Seja o homem terrível e doce que
Apenas brilhantes. E espontâneos, feito
embora não saibamos bem e definitiva-
você não consegue ter. Adote impossibi-
bolhas de sabão, ou gotas de suor. Faça
mente onde. Pense bem: se o homem do
lidades: crie todas as necessidades que
com que esses homens digam “Amém”
sua história fugir na linha nº 27 e encon-
você ainda não tem, mas que imagina se-
quando você se esforça para ser um ga-
trar alguém bem mais especial que você,
rem imperiosas para manter um homem
roto normal e apaga quaisquer marcas
pense que houve algum ensinamento
que não te deseja tanto por mais vinte e
de aflição que seu coração aprendeu a
nas suas ofertas. Você ensinou aquele
quatro horas.
imprimir em seus olhos. Feche os olhos
homem a querer outro alguém com seus
Pense em trabalhos alternativos de-
quando eles ameaçarem partir, e só os
cuidados. Então isso não é abandono, é?
pois que você ultrapassar a metade da
abra (os olhos! NUNCA, JAMAIS abra os
Não tente ser o mais pessimista possível,
história de amor. Depois que você co-
homens do sua história de amor) quando
porque esse homem não precisa morrer
nheceu esse alguém - que opta por ficar
eles voltarem. E se esforce, com ou sem
pra você amar algo novo, seja outro ho-
quieto dentro de você, o silêncio histé-
milagres, para que esse homem volte.
mem, um bicho, seus sapatos, ou seu pas-
rico dos que amam calados -, narre todo
(Embora eles nunca voltem.)
sado.
o amor conhecido em sua vida e perce-
Compre canetas novas. Coloque-as
Fuja dos clichês, expresse-se, gesticu-
ba como realmente você não conhece o
para chorar em seus cadernos, mas ten-
le, faça dos seus sentimentos um calei-
amor. Sinta-se estranho agora. Enganado.
te dar leveza ao sofrimento que carrega
doscópio de gestos assombrados, como se
37
nunca tivessem sido descobertos, descul-
de amor (que é seu, a história, não o ho-
lento suspeito. Você vai continuar sendo
pando-se o tempo interior por ser algo
mem) com a eternidade presa em você.
um embuste.
ainda tão inovador. Evite o olhar de eter-
Deixei-a percorrer sua quietude, faça-a
nas desculpas, cheio de um vazio quase
gemer alegre, por ele estar sempre ali,
desprezível. Você é alguém que escreve
pertinho quase indo embora. Diga a ele
(Segundo: A fúria impiedosa que toma
mal, mas fala de amores que não existem.
que cozinha é lugar de homem, invente
conta do seu corpo, que faz sua calma so-
Há sempre o perdão, ou o inferno.
doenças não muito graves que exigem
lidão gritar alucinada não é amor, é a dor
Não espere para sentir-se sozinho
cuidados redobrados com alimentação, e
da falta, o recato infernal da ausência, o
quando ele ousar ir embora. Experimen-
que você comerá outra fruta que não seja
nada impalpável que você aperta contra
te a solidão quando ele estiver começan-
maçã. Incite-o a plantar uma macieira no
si teimosamente sentindo que está em
do a sentir-se diferente, tentando trans-
centro da vida de vocês. E deixe que essa
boa companhia.)
formar seu abraço num toque superior
ideia floresça, a da eternidade, de uma
Se o homem, que já não consegue vi-
digno de adoração. E se ele começar a tor-
árvore crescendo no meio da cozinha, e
ver fora das linhas do sua história de
nar-se eterno, guarde-o em você, mas não
vocês contornando obstáculos verdadei-
amor, aceitar a sua indisposição como
se esqueça de sentir-se sempre sozinho.
ramente naturais para tentar a felicida-
um clamor, e sua autocomiseração tor-
de em chamas.
nar-se insaciável, acolha-o até que todo
Evite monólogos. Ou diálogos inten-
Embora você seja verdade, o amor é
apenas uma invenção.
sos. Não fique indo contra o sentido da
Explique ao homem inventado que
o desejo e força de buscar por seus mo-
escada-rolante, sozinho. Evite conversas
você precisa emagrecer. E diga “Não”
mentos de despedida tornem-se finos e
intensas, choros existencialistas, angús-
quando ele ousar fritar suas preocupa-
incolores. Invente para ele outro amor,
tias-placebo na história de amor. Como
ções. Não o acostume a desenvolver o po-
invente o fim do amor, faça de conta que
se você fosse alguém que não consegue
der de acabar com a sua vida quando bem
é tudo fantasia, mas seja honesto ao pe-
viver sem ninguém. Se você for ninguém,
entender. Esse homem não precisa atuar
dir socorro.
pense que pode ser melhor assim: nin-
como um salvador, embora ele possa te
Envelheça o querer, mas não se despe-
guém é algo que ainda não existe ou nem
salvar de nunca ter certeza a respeito da
ça. O mistério não tem idade. Faça-o esca-
foi descoberto; você ainda tem tempo
hora certa de querer mais.
par na direção dos sonhos sombrios que
você tinha na infância e que se tornaram
para descobrir tudo que também ainda
E nunca diga “Eu Te Amo” na história
não existe neste universo impensado que
de amor. Não estamos falando de amor.
é seu presente-ausente.
É apenas uma estória, alguém que não
Tente, esforce-se para esquecer o
existe, um escritor que não existe, um ta-
nome dele pelo menos uma vez durante
Olhe para o homem do tal história
realidade.
38
a semana; encha seus olhos de um nada tão significativo capaz
você sente e não conseguirá separar-se); no espelho embaçado
de impressioná-lo, fazendo-o acreditar que não existirá outro
do banheiro deixe declarações de compromisso, promovendo
lugar/outro amor/outro homem que o faça sentir-se tão incom-
vertigens nesse homem que acabou de acordar e pode ter es-
pleto e necessário.
quecido de querer você em algum sonho ou tentou te deixar na
Dê a impressão demoníaca de que tem sempre algo impor-
amargura dos pesadelos fatigados de sempre.
tante a dizer (use as nuvens carregadas que você aprendeu a
Abandonem-se diariamente, cheios de inverno e acolhimen-
domesticar, sinais de fumaça quando eus olhos começam a fu-
to, como quem embarca num ônibus que volteia inúmeras ve-
megar, os símbolos que seu inconsciente cismou em espalhar
zes uma quadra, com destino calculado e volta ao mesmo ponto,
pelo seu rosto), e cale-se. Esqueça o que ia dizer. Deixe vazar a
cheio de passageiros diferentes. Procurem-se com a descoberta
possibilidade de comunicação. Aproxime-se quando não im-
de que os sentimentos presentes não cabem mais dentro de ape-
portar mais nada, escreva nele, com a língua, com seus gestos
nas um mundo. (Então precisarão inventar dois.) Escreva isso,
toscos, tudo o que já deveria ter dito desde a primeira vez que
mas busque rabiscos que tornem essa mentira algo provável.
você o inventou em sua vida.
Não afie os dentes cáusticos da sua raiva quando ele afirmar
Lembre-se: vocês são plurais; querem ser singular. Ou singu-
vezes sem fim que não pensa em desistir dos pequenos começos
lares? Escolha. Conjugue os verbos com precisão, sem esquecer
diários do cotidiano que vocês repetirão. Mas se, com o código
de que se trata de ficção. Isto aqui não é a sua vida.
morse dos cílios nervosos, ele explicar que nunca te deixará, pois
Não conte todos os seus planos e angústias de uma vez. Guar-
você tem uma existência singular, transforme-se no mal que te
de sempre mais um drama poderoso para o dia que virá. Talvez
perturbou em todos os tempos de ruína e medíocre isolamento,
você não conheça tão bem o homem da sua história de amor e,
aperte-o contra o peito novamente, como se fosse apenas a vida
quem sabe, ele é da espécie difícil que desiste quando tudo está
começando, mostre o desejar nervoso do seu coração e como ele
bem. Cause assombro com sua simplicidade.
só aprendeu a não rastejar em todo esse tempo, como um bicho
Feche os olhos, mas não o coração. Permita que esse homem
que superou a evolução dos que sofrem, daqueles que desfigu-
te inunde de tudo o que ele não conseguiu ser antes da histó-
ram a própria realidade para usar o passado como a única alter-
ria entre vocês: o heroísmo amedrontado e cheio de solidão, o
nativa presente. E criou asas.
mundo de lágrimas não choradas na sua falta, em todos os anos
que ele viveu sem você; acredite nas incertezas dele, elas são
O amor já existe em você antes mesmo de conseguir nomeá-lo. O que não existe é um lugar para esse amor.
fruto de qualquer amor que começou ontem. Escreva tudo isso
Invente, invente, invente, invente, invente, invente, inven-
nas paredes do corpo, espalhe tatuagens-lembrete (se ele tiver
te, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente,
tatuagens, ame-as; elas serão amanhã a impressão daquilo que
invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, in39
vente, invente, invente, invente, invente,
invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente,
invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente,
invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente, invente,
invente.
Entende como cansa?
E enquanto você não tentar escrever,
sentir, imaginar que os homens das histórias de amor não são vulneráveis à distância, você não entenderá como se deve
começar qualquer história com final feliz. Ou você entrega algo seguro nas mãos
dele, algo parecido com qualquer coisa
que possibilite o início e o fim-a-qualquer-momento, ou continuará com(o)
uma grande mentira.
(Por último)
Não existe amor nas histórias de amor.
Raimundo Neto escreve (porque é impossível fugir da palavra), mas ainda não é escritor. Foi mencionado pela revista
Apenas o fim.
Bula e pelo jornal Opção como um nome que poderia estar
E pronto.
na Geração Zero Zero. Tem contos publicados na revista
Malagueta e no site da revista Bravo!. Venceu os concursos literários Contos de Teresina e Melhores blogs do Brasil.
Prepara-se para lançar seu primeiro livro. Seus textos podem ser lidos no blog agentesempretenta.blogspot.com.
40
Rodrigo
Garcia
Lopes
Os cães detetives
Os cães detetives
em seus capotes negros
nunca desistem —
farejam dunas, em dupla,
pegam a praia de surpresa
siris telepatas
os cães detetives
mordem a neblina da maresia
investigam
42
gaivotas suicidas
ocultos pela restinga
pesqueiros sinistros
ou disfarçados de humanos
matas que meditam
o mar e seu mantra
os cães detetives se colocam
o estrondo das ondas
na pele de sua presa
sempre outras
e não desistem dos siris
acham seus álibis
elucidam minhas
nos lábios das ondas
pegadas na areia
única evidência
ondas terroristas
a praia e seu colar de pérolas
surfistas suspeitos
o mar é testemunha
outros cães
por toda a tarde
também se divertem
em busca de pistas
com o vento sul
orelhas
os cães detetives espreitam
entre as patas
o bege sílex das dunas
olhos cerrados de espera
a queda kamikaze, vertical
quando do dia retraçam as pegadas
dos mergulhões
os cães negros detectam
e nunca se deixam enganar
a verdade, peixe podre,
são cães detetives caiçaras
se levantam e seguem
soltam pistas que as ondas ocultam
até que a tarde se entregue.
quando explodem
cães sem dono, detetives,
dão seu batente na praia
e sabem ser sacanas também
latindo seus enigmas
pressionando vítimas
43
Romance policial
A lanterna da lua banhava o morto.
No rosto do detetive, nenhum sopro
A não ser o ar pesado do mangue, o corpo
Caído, espesso sangue, e o pouco
“Do que não se pode falar, deve se calar”,
Dito pelo policial com cara de mau
Ela disse, bem no momento dele virar
Que agora segurava um castiçal
E ser beijado por seus lábios fatais.
Interrogando a loira de olhos negros
A lua aumentava seus cristais.
Que trabalhava para um restaurante grego
Seguiu-se um minuto de silêncio
Da grana e dos bilhetes estranhos no porta-luvas,
E os grilos pontuavam um indício. Ela disse:
Do estranho esgar de sorriso, do sangue em sua luva.
“As pistas estão em toda parte, em seu diário,
E antes que a canção no rádio acabe
No dia dezesseis em vermelho no calendário”.
Ele diz: “Para salvá-la, só um milagre”.
Enquanto o detetive revistava a lua
Nas mãos, a carta rasgada ao meio, garrafa de uísque
A loira derramou uma poção branca na sua
Pela metade. Mas ainda é cedo para que ele se arrisque.
Garrafinha de uísque. “Nessa profissão, é preciso jeito
Nada ficou claro nos depoimentos, de como essa sereia
Para resolver este quase crime perfeito”.
Foi encontrada pela estrada à lua cheia:
Ela não dizia nada, ou quase nada, só o olhava
Sabendo que a verdade estava em cada palavra.
A esta altura, tudo parecia bem nítido
E agora ele a forçava a beber o líquido.
As assonâncias
assassinas
Nada a declarar. Os segredos que nos mimem.
Matamos cada segundo, nenhum indício nos redime.
Os sons todos, isso, somos nós o próprio filme.
A página branca é nossa cena do crime.
Se as pistas são o alpiste do detetive
para nós basta apenas o corpo de uma
ausência, segredo que não mais vive. E,
se existe, é pluma de fumaça, penumbra.
Ninguém nos avisou que ele morrera.
Rodrigo Garcia Lopes é es-
O Sentido, quimera, deixou dívidas,
critor, compositor, jorna-
suspeitas, algumas lacunas, vívidas dúvidas.
lista e tradutor (Whitman,
Rimbaud, Ginsberg, Plath,
Suas últimas palavras foram: Quem dera
Apollinaire,
Viver como quem inaugura uma era.
tre outros). É autor dos li-
Riding,
en-
vros de poemas Solarium,
Visibilia, Polivox, Nômada
e Estúdio Realidade. Edita,
com
Marcos
Losnak
e
Ademir Assunção, a revista Coyote. Em 2013 lançou
seu segundo CD, Canções
do
Estúdio
Realidade.
Este ano a Record lança
seu primeiro romance, o
policial O Trovador. Site
www.rgarcialopes.wix.com/
site
45
tradução de
Virna Teixeira
Lyn
Hejinian
Quanto a nós
que “adoramos ser
surpreendidos”
Você derrama
o acúçar ao levantar a colher. Meu pai
tinha enchido uma velha jarra de boticário com o que ele chamava de “vidro de mar”, pedaços de garrafas velhas arredon-
As for us who “love
to be astonished”
You spill
the sugar when you lift the spoon. My
father had filled an old apothecary jar with what he
called “sea glass,” bits of old bottles rounded and tex-
dadas e texturizadas pelo mar, tão abundante em praias. Não
tured by the sea, so abundant on beaches. There is
há solidão. Enterra-se em veracidade. É como se a pessoa brin-
no solitude. It buries itself in veracity. It is as if one
casse na água derramada pelas próprias lágrimas. Minha mãe
splashed in the water lost by one’s tears. My mother
subiu na lata de lixo com o propósito de bater a escória acumulada, mas a lata se desequilibrou, e ao cair ela quebrou o braço.
had climbed into the garbage can in order to stamp
down the accumulated trash, but the can was knocked
off balance, and when she fell she broke her arm.
47
Ela podia apenas dar de ombros. A família tinha pouco dinheiro mas bastante comida. No circo apenas os elefantes eram
maiores do que qualquer coisa que eu
podia imaginar. O ovo de Colombo, paisagem e gramática. Ela queria um onde
o parquinho fosse de terra, com grama,
sombreado por uma árvore, onde se penduraria um pneu de borracha como um
balanço, e quando ela descobriu ela en-
She could only give a little shrug. The family had
viou para mim. Estas criaturas são com-
little money but plenty of food. At the circus only
postas e nada do que elas fazem deveria
the elephants were greater than anything I could
nos surpreender. Eu não ligo, ou não liga-
have imagined. The egg of Columbus, landscape
ria, onde poderia se multiplicar o verbo
“importar”. O piloto do teco-teco esqueceu de notificar o aeroporto da sua apro-
and grammar. She wanted one where the playground was dirt, with grass, shaded by a tree, from
which would hang a rubber tire as a swing, and
when she found it she sent me. These creatures are
ximação, de forma que quando as luzes
compound and nothing they do should surprise
do avião foram avistadas, as sirenes anti-
us. I don’t mind, or I won’t mind, where the verb
-aéreas dispararam, e toda a cidade escureceu naquela costa. Ele estava tomando
“to care” might multiply. The pilot of the little airplane had forgotten to notify the airport of his approach, so that when the lights of the plane in the
um copo d’água e a luz foi diminuindo.
night were first spotted, the air raid sirens went
Minha mãe ficou na janela assistindo as
off, and the entire city on that coast went dark. He
únicas luzes que eram visíveis, circulan-
was taking a drink of water and the light was grow-
do sobre a cidade escurecida em busca
do aeroporto escondido. Infelizmente, o
tempo parece mais normativo que o lugar.
ing dim. My mother stood at the window watching
the only lights that were visible, circling over the
darkened city in search of the hidden airport. Unhappily, time seems more normative than place.
48
Respirar ou segurar a respiração era a mesma coisa, dirigindo atra-
Whether breathing or holding the breath, it was the
vés do túnel de um sol para o seguinte sob uma colina quente e cas-
same thing, driving through the tunnel from one sun
tanha. Ela ensolarou o bebê por sessenta segundos, deixando ele nu
exceto por um chapéu de algodão azul. Para fechar as janelas da vis-
to the next under a hot brown hill. She sunned the
baby for sixty seconds, leaving him naked except for a
blue cotton sunbonnet. At night, to close off the win-
ta da rua à noite, minha avó puxava as persianas, nunca afrouxando
dows from view of the street, my grandmother pulled
as cortinas, uma gaze engomada dura demais para pendurar direito
down the window shades, never loosening the curtains,
para baixo. Sentei no peitoril cantando sunny lunny teena, ding-dang-
a gauze starched too stiff to hang properly down. I sat
-dong. Lá fora há um mágico envelhecendo que precisa de uma ban-
on the windowsill singing sunny lunny teena, dingdang-dong. Out there is an aging magician who needs
deja de gelo a fim de transformar sua respiração arrepiante em va-
a tray of ice in order to turn his bristling breath into
por. Ele quebrou o silêncio do rádio. Por que alguém acha astrologia
steam. He broke the radio silence. Why would anyone
interessante quando é possível aprender astronomia. O que se vê de
find astrology interesting when it is possible to learn
um Plymouth. É o vento batendo nas portas. Tudo isso é quase incomunicável para meus amigos. Velocidade e verissimilhança de gar-
about astronomy. What one passes in the Plymouth.
It is the wind slamming the doors. All that is nearly incommunicable to my friends. Velocity and throat verisi-
ganta. Estávamos vendo um padrão ou meramente um surgimento de
militude. Were we seeing a pattern or merely an appear-
pequenos veleiros brancos na baía, flutuando em tal distância da coli-
ance of small white sailboats on the bay, floating at such
na que pareciam não estar fazendo nenhum progresso. E finalmente
a distance from the hill that they appeared to be making
para um país que não falava outra língua. Seguir o progresso de ideias,
ou aquela linha particular de raciocínio, tão cheia de surpresas e cor-
no progress. And for once to a country that did not speak
another language. To follow the progress of ideas, or
that particular line of reasoning, so full of surprises and
relações inesperadas, era de alguma forma como sair de férias. Ain-
unexpected correlations, was somehow to take a vaca-
da assim, você tem que se perguntar para onde tinham ido, porque se
tion. Still, you had to wonder where they had gone, since
pode falar em ressurgência. Um quarto azul é sempre escuro. Tudo na
you could speak of reappearance. A blue room is always
calçada atirava em direção ao céu. Não era específico para nenhum
ano, mas muito precoce. Um ourives alemão cobriu um pouco de metal com tecido no século XIV e deu à humanidade seu primeiro botão.
dark. Everything on the boardwalk was shooting toward
the sky. It was not specific to any year, but very early.
A German goldsmith covered a bit of metal with cloth
in the 14th century and gave mankind its first button.
49
Era difícil enxergar isto como política, porque toca como o tra-
It was hard to know this as politics, because it plays like
balho de uma pessoa, mas nada é isolado na história—certos
the work of one person, but nothing is isolated in his-
humanos são situações. São seus dedos na margem. Seus procedimentos aleatórios fazem monumentos ao destino. Há algo
tory--certain humans are situations. Are your fingers
in the margin. Their random procedures make monuments to fate. There is something still surprising when
que ainda surpreende quando emerge o verde. A raposa azul
the green emerges. The blue fox has ducked its head.
desviou a cabeça. A rima de inoperância com consonância.
The front rhyme of harmless with harmony. Where is
Onde derrete minha doçura. Você não pode esperar “na moita.”
my honey running. You cannot linger “on the lamb.” You
Você não pode determinar a natureza do progresso até juntar
todos os relativos.
cannot determine the nature of progress until you assemble all of the relatives.
Virna Teixeira nasceu em Fortaleza em 1971. É
Lyn Hejinian nasceu em San Francisco em 1941.
neurologista e vive em São Paulo. Publicou três
Poeta, ensaísta e tradutora, publicou vários livros
livros de poemas: Visita e Distância pela 7 Letras,
de poesia, tendo também colaborado em muitos
e Trânsitos pela Lumme Editor. Tem três livros
projetos artísticos e literários. Seu trabalho foi tra-
de tradução de poesia escocesa publicados: Na
duzido para diversas línguas. Viajou e deu pales-
Estação Central (UnB, 2006), do poeta escocês
tras na Rússia e na Europa e teve um livro de tra-
Edwin Morgan; a antologia Ovelha Negra
duções do poeta russo Arkadii Dragomoshchenk
(Lumme, 2007), e Cartas de Ontem, de Richard
publicado pela Sun and Moon Press. Foi uma das
Price (Lumme, 2009). Organizou e participou de
fundadoras do Language poetry movement nos
diversos festivais de poesia no Brasil e exterior.
anos 70. Sua poesia é marcada por um lirismo in-
Edita plaquetes artesanais pela Arqueria
comum e um envolvimento descritivo com o dia a
(www.arqueriaeditorial.net).
dia. Atualmente é professora na Universidade da
Califórnia, em Berkeley.
50
Adelaide
Ivánova
Adelaide Ivánova é escritora e fotógrafa.
Nascida no Recife em 1982. Estou Jornalismo no
Recife e desde 2011 estuda no Ostkreuzschule für
Fotografie, em Berlim.
Tanto em texto quanto em fotografia, Adelaide
trabalha principalmente com questões relacionadas ao corpo e à identidade. Teve exposições em galerias e museus do Brasil, Argentina,
Estados Unidos, Alemanha e França. Sua série
fotográfica autotomy (...) foi finalista do New
York Photo Awards.
Tem dois livros publicados: autotomy (...), pela
Pingado-Prés (2014) e polaroides – e negativos
das mesmas imagens, pela Cesárea Editora
(2014).
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Stephanie Borges
Fotos
Edu Suppion
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
palmaesilva.com.br
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Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados.
Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos.
Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco!
revistaparenteses.com.br
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Lista de autores já publicados
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Rüsche, Bruno Palma e Silva, Deborah Prates,
Edu Suppion, Fabiano Calixto, Grazi Shimizu,
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Collin, Maíra Matthes, Marília Garcia, Mirella
Carnicelli , Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Sergio Mello, Stephanie Borges, Vanessa Rodrigues,
Victor Heringer, Virna Teixeira
Fotógrafos
Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila
Lordelo., Rodrigo Sommer, Thany Sanches
61

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