Mulheres

Transcrição

Mulheres
REPORTAGEM
No reino das
mulheres-girafa
Desde que começou a planejar essa
viagem à Ásia, a repórter Valéria Zoppello
esperava pelo dia em que visitaria a tribo
das “mulheres-girafa”, integrantes da
comunidade karen-padaung. O sonho
quase impossível estava prestes a se
tornar realidade: iria finalmente
conhecê-las e fotografá-las no lugar
onde vivem, no norte da Tailândia
TEXTO E FOTOS: VALÉRIA ZOPPELLO,
DE CHIANG DAV, TAILÂNDIA
68
s
DEZEMBRO 2010
NOVEMBRO 2010
s
69
reportagem
L
Logo na entrada da aldeia de Chiang Dav,
vejo crianças correndo e sorrindo. Aprendi, em minhas viagens, que o comportamento
das crianças constitui um excelente termômetro
para medir o clima psicológico das comunidades
a serem visitadas. As crianças são espontâneas e
permeáveis, e seus olhinhos, verdadeiras janelas
da alma, revelam logo se estão felizes ou não.
De imediato percebi que as crianças karens são
alegres e bem cuidadas.
A etnia karen, da qual os padaungs fazem parte, possui uma tradição cultural muito remota e
antiga. O fato de seus membros se protegerem
mutuamente constitui a base da sua organização
social. Suas tradições, desenvolvidas ao longo de
muitos séculos, são cheias de detalhes particulares. Toda a comunidade trabalha para que tais
detalhes não sejam esquecidos. Uma primeira
característica que chama a atenção de quem os
visita é a beleza das mulheres karens.
James, um francês integrante da equipe da
Expedição Indochina, da qual também eu fazia
parte, logo se agacha e começa a se divertir com
a meninada, fazendo-os rir. Aquele seria mais
um desses dias mágicos que às vezes acontecem
70
s
JANEIRO 2011
GAIT LUM VEL EROS EXERCIPSUSTO ELIT ACCUMMY NISL DIPSUSCIDUNT NIS EA
FEUM QUISL DELIT ALIS NONULLUPTAT. UT DOLORTIO DO ERATIE TE EU FEUMSAN
DRERATINCIL ENT NIM NISISCILISI ET PRAESSIT UTET, VOLUPTATIERUD EUMSAN
durante as viagens. A luz estava perfeita para fotografar, as cores, vibrantes, as mulheres, lindas.
– Gostaria de passar um mês aqui com elas! –
digo para a Ísis, outra companheira de viagem.
– Não fala isso pro James ou ele já vai querer
alugar uma cabana – caímos na risada.
James é assim mesmo... Sonhador. Sua identidade é francesa, mas sua alma é asiática.
Na entrada da aldeia, aos lados de uma rua de
terra batida, alguns pequenos bangalôs exibem
artesanatos maravilhosos: echarpes coloridas,
anéis, bolsas... Uma infinidade de cores. Entrávamos no reino dos “Orelhas Longas”, como
também são conhecidos os karen-padaungs.
Eles constituem um dos povos mais antigos
do sudeste asiático. Já habitavam essas montanhas bem antes de a região ser subdividida em
muitas nações. Para eles, a orelha é uma das
partes mais sagradas do corpo humano. Por
isso, tornou-se um importante ponto de adorno.
JANEIRO 2011
s
71
reportagem
GAIT LUM VEL EROS EXERCIPSUSTO ELIT ACCUMMY NISL DIPSUSCIDUNT NIS EA
FEUM QUISL DELIT ALIS NONULLUPTAT. UT DOLORTIO DO ERATIE TE EU FEUMSAN
DRERATINCIL ENT NIM NISISCILISI ET PRAESSIT UTET, VOLUPTATIERUD EUMSAN
Na mulher, a orelha adornada exprime a beleza;
no homem, exprime a força. Na comunidade
que estávamos visitando, essa tradição, hoje, é
mantida apenas pelas mulheres casadas.
Na chegada, uma primeira surpresa; os poucos
homens que vimos por ali estavam todos com os
olhos colados na única tevê do lugar, vendo uma
luta de muay thai... Esse esporte está para a Tailândia assim como o futebol está para o Brasil.
Boa parte dos karens migrou da região do Triângulo Dourado, em Mianmar (a antiga Birmânia), para se estabelecer no norte da Tailândia. A
etnia é, na verdade, uma confederação de várias
tribos intimamente relacionadas. Cada uma das
suas aldeias possui dialetos próprios, bem como
distintos padrões de beleza e de costumes.
Alguns passos mais e dou de frente com a
cena tão esperada, e que até então só vira em
documentários: o grupo das “mulheres-girafa”,
ou karen baan thaton.
A expressão “mulher-girafa” (“long neck”,
em inglês) deriva de um curioso costume das
mulheres dessa tribo: elas usam grandes anéis
de latão ao redor do pescoço. Isso os faz parecer
muito mais compridos do que o normal. Fico
72
s
JANEIRO 2011
atônita diante das emoções que sinto: elas são
lindas, e tão coloridas, mas os anéis no pescoço
me causam estranheza e desconforto.
Diante de sua barraca de artesanatos, uma
senhora permanece sentada a sorrir para nós.
Tem o pescoço literalmente coberto por uma
sucessão de anéis de metal. Logo à sua frente
está um objeto igual, em exposição.
– Como é pesado! – exclamo, segurando os
anéis. – Devem pesar uns cinco quilos!
Além de usar anéis no pescoço, braços e
pernas, essas mulheres muitas vezes enfeitam
suas orelhas com vários brincos e adornos de
marfim.
Os anéis no pescoço são sinal de beleza e status. Eles começam a ser colocados nas meninas
por volta dos 5-6 anos de idade. A cada ano que
passa, outros anéis são adicionados. Uma mulher adulta usa 37 anéis de bronze em volta do
pescoço e esse é considerado o número ideal.
JANEIRO 2011
s
73
reportagem
Enquanto fotografava, ouvi um guia dando explicações
interessantes. Ele dizia que, em Mianmar, membros da tribo eram constantemente atacadas por tigres. As mulheres
acreditavam que se usassem aqueles anéis no pescoço os
tigres não as matariam. O guia disse também que se uma
mulher tirasse esse adorno e “fosse para a cidade”, ao voltar
não seria mais aceita na comunidade, “por trazer com ela os
maus espíritos”. Os anéis dos braços podem ser colocados
do pulso até os cotovelos e os das pernas, do tornozelo até
os joelhos. Esses anéis são revestidos de tecido.
Passamos uma tarde encantada em companhia dessas
belas meninas com seus rostinhos pintados, e das mulheres Karen adultas que produziam estonteantes echarpes
em seus teares manuais. O
Anéis: sinal de beleza e de riqueza
Muitos conhecem os karens radicados no norte da Tailândia
como o povo das mulheres-girafa . Mas as mulheres que
usam esses anéis de latão ao redor do pescoço pertencem na
verdade a um subgrupo dos karens conhecido como padaung.
Outros subgrupos da mesma etnia não praticam esse costume.
Outro mito é o de que esses anéis alongam o pescoço de quem
os usa. Mas qualquer ortopedista diria, com razão, que tal
alongamento levaria à paralisia dos movimentos da pessoa, ou
até à sua morte. Na verdade, a aparência de um pescoço mais
longo que o normal é uma pura ilusão visual. Pouco a pouco, o
peso dos anéis empurra para baixo os ossos do colarinho, bem
como as costelas superiores, até o ponto em que os ossos do
colarinho parecem fazer parte do pescoço!
Há várias versões sobre as razões pelas quais os karenpadaungs praticam esse costume bizarro. Sua própria
mitologia explica que o fazem para impedir que os tigres,
74
s
JANEIRO 2011
outrora abundantes na região, os mordam. Outros dizem que
isso deixa as mulheres pouco atraentes, tornando-as pouco
interessantes para os mercadores de escravas. A explicação
mais corrente, no entanto, é o contrário de tudo isso: os
pescoços extralongos são considerados um sinal de grande
beleza e riqueza, e com eles uma mulher consegue um marido
melhor. Parece, no entanto, que o adultério é punido com a
remoção dos anéis. Nesse caso, como os músculos do pescoço
ficaram severamente enfraquecidos depois de passar anos sem
suportar o peso da cabeça, a mulher não mais conseguirá ficar
em pé, sendo obrigada a passar o resto da sua vida deitada.
De qualquer forma, segundo informam pesquisadores que
estudaram os karens, o adultério e o divórcio entre os membros
desse grupo são extremamente raros.
Seja qual for a origem do costume, uma das principais
razões que o fazem perdurar até os dias de hoje, sobretudo na
Tailândia, é o turismo. Embora tenham migrado para a Tailândia
nas últimas décadas, vindos da vizinha Mianmar, os padaungs
rapidamente se tornaram uma grande atração para os turistas
estrangeiros amantes das longas caminhadas em montanhas.
Alguns jornalistas interpretam isso como uma exploração dos
padaungs, definindo uma visita às comunidades padaungs
como sendo “um passeio a um zoológico humano”. A tal
ponto que alguns operadores tailandeses agora recusam levar
turistas a essas aldeias, enquanto, por seu lado, alguns turistas
boicotam as operadoras que o fazem.
Talvez por causa de o costume de usar aros de latão ao
redor do pescoço seja uma coisa tão chamativa, atenção muito
menor tem sido dada a outros aspectos da cultura karen.
Entre eles, o fato de que enormes brincos desempenham um
papel dominante na ornamentação. Embora visualmente não
tão sensacionais quanto os pescoços alongados, os assim
chamados “karens de orelhas longas” continuam a alterar seus
corpos de modo significativo. Da mesma forma que para as
mulheres que colocam aros no pescoço, as que usam grandes
brincos começaram a fazê-lo ainda meninas, usando adornos
pequenos que aumentam de tamanho com o passar dos anos.
Os karens são também ótimos músicos, particularmente
guitarristas, e verdadeiros mestres na arte de domesticar e
treinar elefantes.
A sociedade karen é matrilinear – é a mãe quem define a
linhagem da família. O incesto é severamente desencorajado,
e o casamento é considerado um dos momentos mais
importantes da vida de uma mulher. A tal ponto que, se
uma mulher morre antes de se casar, ela é enterrada (ou
cremada) usando roupas de mulher casada. Isso, diz-se,
reduz as chances de que espíritos malévolos a impeçam de
entrar no reino dos espíritos desencarnados. Embora muitos
historiadores afirmem que eles sejam originários de Mianmar,
outros apontam detalhes das tradições orais dos karens que
parecem indicar para eles uma origem chinesa.
JANEIRO 2011
s
75