Provocações irónicas aos humores do Onésimo

Transcrição

Provocações irónicas aos humores do Onésimo
s
eixo
review
artes & letras
Provocações irónicas
aos humores do Onésimo
|entrevista de José Francisco Costa|
+
ficção - poesia-crónica-recensões-ensaios-pintura-fotografia
7
número
seixo
review
www.seixoreview.com
Editor
EDUARDO BETTENCOURT PINTO
Conselho Editorial
AIDA BAPTISTA
IVO MACHADO
JORGE ARRIMAR
LUÍSA RIBEIRO
MANUELA MARUJO
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
URBANO BETTENCOURT
ZELIMIR BRALA
a
qui está o número 7 da Seixo review. Muito tempo já se
passou. Entretanto a vida correu, os afazeres acumularam-se
e muita coisa mudou. No entanto, este é um projecto que
nos ilumina por dentro, apesar de todas as dificuldades inerentes a uma publicação sem apoios e que sobrevive com
a boa vontade dos colaboradores e o interesse do público
interessado nas Artes e na Literatura.
Preterimos o formato inicial, em HTML, em favor do
PDF. As vantagens são enormes. Deste modo, a revista pode
ser distribuída livremente por todos os meios electrónicos
ao nosso dispor, de leitor para leitor através da Internet,
por disquete, ou noutras formas de arquivo digital. Pode ser
impressa na sua totalidade em formato A4, a cores, com o
layout original. Facilita, por outro lado, o seu arquivo nas
bibliotecas das universidades e públicas, e ao seu manuseamento em papel. Nem é preciso sair-se de casa. Basta ter
papel e ligação à Internet, computador e impressora. Em
qualquer lado do Mundo, isto é.
Claro, não podemos assegurar uma periodicidade regular atendendo a vários factores. Uma delas é que o editor
faz tudo sozinho. Além de trabalhar escreve, tira fotografias,
viaja, conserta a casa no Verão e perde-se no jardim.
Dedicamos este número aos queridos amigos, poetas e
escritores, caídos pela voracidade do Tempo e das circunstâncias: Emanuel Félix, Pedro da Silveira, Luísa Villalta,
José António Gonçalves e Fernando de Lima. Que um jardim de rosas esteja com eles.
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seixo review | outono/fall 2005
ÍNDICE – CONTENTS
ARTES PLÁSTICAS
Maria Miranda Lawrence | 5, 6/English
Neves e Sousa | 20, 40, 69
FOTOGRAFIA
Joel Pacheco | 23, 79
POESIA
José António Gonçalves | 7
Jorge Arrimar | 8
Avelina da Silveira | 9
João S. Martins | 10
José Félix | 11
Rui Balsemão da Silva | 14
Marcello Ricardo Almeida | 15
Luísa Ribeiro | 16
António Cardoso Pinto | 17
Üzeyir Lokman Çayci | 18/English
CRÓNICA
Lustosa da Costa | 21
Urda Alice Klueger | 24
ENTREVISTA
Onésimo Teotónio Almeida | 26
Tomaz Borba Vieira | 32
PESSOALMENTE
Onésimo Teotónio Almeida | 35
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seixo review | outono/fall 2005
FICÇÃO
Teolinda Gersão | 41/ English
J. Michael Yates | 46, 48/English
Carla Cook | 50
Daniel de Sá | 56
Fernando de Lima | 58
Paulo da Costa | 61
Umberta Araújo |64
Laudalina Rodrigues | 67
RECENSÕES
José Carlos Venâncio | 70
Ilda Januário | 73/English
Lélia Nunes | 75
Luiz Fagundes Duarte | 81
DEPOIMENTO
Joel Pacheco | 79
ENSAIOS
Urbano Bettencourt | 73
Zelimir Brala | 87
Jorge Arrimar | 91
Fernanda Viveiros | 97/English
Lilian Almeida | 101
COLABORADORES/CONTRIBUTORS | 108
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seixo review | outono/fall 2005
maria MIRANDA LAWRENCE
Spirit of a Dancer
Watercolour painting
“This painting was created after a photo session with dancer Angie Duy. The
image evokes retrospective thoughts,
gentle light, freedom, summer evening
breeze, an uplifting expression...”
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seixo review | outono/fall 2005
maria MIRANDA LAWRENCE
Portuguese-Canadian artist Maria Miranda Lawrence draws inspiration from music, dance, the arts and
literature. Her specialty is portraiture and figurative
illustration in a classical style. Many of her subjects
include friends and professionals who pose in costume, she photographs and works into her compositions.•
www.mirandalawrence.com
Magdolena -Waiting with a Parasol
Pastel painting
“A friend posed for this impressionistic style
painting, reflecting a nostalgic mood”.
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seixo review | outono/fall 2005
pierre-auguste
RENOIR
josé ANTÓNIO GONÇALVES
P
ululam pela casa umas jovens brancas
como jarros, derramando a sua nudez
pelo jardim, no meio de lírios e de rosas.
Riem-se muito, fazem jogos, deitam-se
ao sol, por entre o verde. Uma de cada vez
banha-se na tela de Renoir, onde se espelham
os seus corpos de azulejaria fina, quase anil.
O pintor nem olha directamente para elas;
tem-nas na cabeça, povoando a mente,
conduzindo-as para as suas velhas mãos
«doentes e belíssimas», diria Odilon Redon.
Distraído, com um pincel grosso e sujo de azul,
preso ao pulso e voando com os seus movimentos,
retoca nos intervalos o fundo de uma paisagem
e colore a haste de um cravo, num vaso de flores.
No castelo dos nevoeiros, a artrite reumatóide
avassalou o génio e torna-o ciclista de assento;
a doença explode em vermelho, em amarelos,
em fogo, em laranja, em vulcões de impossíveis
ilusões ópticas. Recorda Degas, Monet, Cézanne,
sentando-se frente às paredes nuas, das mulheres
e das raparigas posando, de lhes ajeitar os cabelos
e amaciar os corpos, selvagens, puros, berberes.
(inédito. 09.03.05)
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seixo review | outono/fall 2005
PAI
jorge ARRIMAR
Pai, ainda hoje quando deixo cair
as pálpebras sobre o perfil aguçado
do tempo sinto uma sede imensa
de ti, sede da tua sede que refrescavas
com cerveja de milho novo
nos dias quentes do planalto.
Casa do autor na Chibia (Sul de Angola).
Nesta fotografia, recente,
são evidentes as marcas do tempo
e as cicatrizes da guerra.
8
Pai, quantos vultos passam por nós
nas tardes curtas
em que o sol se despede mais cedo?
Quantos ficam ao pé de nós, agachados
junto à fogueira, silenciosos
com tanto para dizer?
Pai, diz-me quantos destes vultos
que ainda nos cercam
me guardaram a pequenez
e a traquinice do triciclo com o freio nos dentes
pelas ribanceiras abaixo,
ou os desastres inventados no
mais alto das goiabeiras?
Qual de entre eles me resguardou
da sombra trágica do falcão
a dançar nos céus, de asas agitadas
seixo review | outono/fall 2005
sobre a minha cabeça de menino?
Sabes, pai?, só hoje sei que foste tu
quem impediu que essa sombra
continuasse a pairar sobre mim…
Lembras-te quando me convidavas
para ir à caça contigo e eu fingia
um sorriso, enquanto atrás das costas
os meus dedos se cruzavam em figas
para que errasses a mira?
Eu queria-te mais quando erravas o alvo
e o antílope fazia transbordar em mim
a alegria da vida. Lembras-te
quando a tua coragem me amedrontava?
As hienas chorando na noite não te atemorizavam
e tu avançavas sempre como uma tocha
na escuridão dos nossos medos
infantis, sem que nunca víssemos em ti
um sinal de receio. Nem homens, nem fantasmas,
nem a bruma te amedrontavam
com os terrores que eu sentia. Lembras-te?
A distância que cresceu entre nós
só teve a ver com a tua força
e a minha fragilidade.
Mas eu tardei em perceber isso
e hoje sei quem me legou
a firmeza que ainda há em mim.
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seixo review | outono/fall 2005
HOSPITAL
avelina da SILVEIRA
U
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seixo review | outono/fall 2005
m suspiro,
Um assobio,
E a luz filtrada pela janela do meu quarto de hospital.
Há um brilho de ternura entre os pedaços partidos
Da condição humana.
Reparo nos gestos de carinho,
Ouço as gargalhadas de barriga, os arengues entre amigos
E os ruídos estalados de metal.
Ouço também os soluços, os gemidos de dor,
Desesperança do corpo ao comprido da solidão.
A luz derramada na colcha branca da minha cama
Lembra-me que a ternura é a verdade resgatante
Mais fundamental,
Trago os gestos de carinho no coração
E junto os meus lábios
Aos suspiros e assobios, ecos do corredor.
Um dia de palavras
joão S. MARTINS
E chegou a palavra e depois o dia,
o dia da palavra última,
a doce, acre, a inesperada,
no dia antecipado como se
de repente fosse dia e, aquele dia,
o dia último a dizer palavras,
fenecidos sons, sem ais,
silêncio!... perderam-se
as palavras do último dia
sem lembrar a voz dos dias
sem palavras a esquecer:
as palavras do dia primeiro;
e à última palavra o dia
não respondeu, porque
as palavras, por fim,
sairam sem dizer palavra.
21.06.03
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seixo review | outono/fall 2005
o eco das coisas
imutáveis
josé FÉLIX
há uma voz que vem do telhado.
brinca na flor dos dedos
límpida como a chuva da manhã.
o eco das coisas imutáveis é
um relógio preciso
na pele envelhecida.
mesmo que a cal dos ossos
reclame a terra de uma casa fria
não há nunca o último minuto
a reclamar a prece dita
na parede do templo de uma casa
construída prestes da partida.
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velhas madeiras são o altar do sacrifício
seixo review | outono/fall 2005
na invenção do animal degolado
como se desse por cumprida
a morte resgatada dos corpos
daqueles em que a única invenção
foi viver com as sombras
dos que lhe deram os sinais do rosto
e a semelhança da voz
que a idade enriquece no caminho.
uma casa, a substância das janelas
presa no parapeito da distância
o olhar peninsular como se fosse
uma vingança feita na ressurreição
dos rostos da família desistida.
a casa, o templo vivo mesmo morto.
in “a casa submersa”
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seixo review | outono/fall 2005
Tédio
rui BALSEMÃO da SILVA
Olho de dentro e lá fora
tudo me parece idêntico ao dia de ontem
(há nos meus olhos uma renúncia crónica)
Saio e não sei por que saio nem para onde vou
(felizes vós que sabeis por que saís e para onde ides)
Mas eu que me deito ainda a mastigar
a côdea da dor que me ficou de véspera
e acordo logo a ingerir o dia
a consumir-me e a bocejar de tédio
eu que vos observo com a verdade cruel com que me vejo
quando passais por mim com esse ar decente
de gente que sois e senhores do que tendes
e fazendo de conta que não me vedes
que varejo solitário pelas ruas desertas
e me encubro nos cantos lúgubres da noite
a contorcer-me de piedade e a vomitar de farto
enquanto vós dormis o vosso sono tranquilos
eu que volto com a febre de um canto a azedar-me na boca
e a ralar-me com a sensação de que nunca chego
e quando chego é sempre depois
de muito antes me ver exausto
e à hora em que já vós saís de novo e sabeis para onde ides
eu que normalmente saio contrariado porque não fico
e fico sempre a lastimar porque não saio
não sei por que raio ainda fico
nem por que diabo saio ainda.
Maio 2, 2005
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seixo review | outono/fall 2005
É
Um feio apê
financiado pelo BNH
marcello RICARDO ALMEIDA
tédio? É torpor? À meia-noite
escutam-se ruídos na casa ao lado.
Depois, silêncio tétrico, absurdo.
Um homem triste, na varanda, fuma
seu último cigarro. Sua mulher só,
desesperada, lamenta na cama nua.
Ele – um farrapo humano desiludido;
ela – uma tristeza fria desiludida.
Ambos com filhos pequenos e ainda
muitas dúvidas; talvez desempregados.
Sonham a história da família; sonham
com um passado agora apodrecido; só
lembranças em fotografias perdidas
em algum móvel da casa apertada.
Ela levanta-se à meia-noite infeliz,
tira a poeira dos móveis todos,
peça por peça, minuciosamente,
com o cuidado de uma mulher doente.
Ele desce as escadas, passa, sente
o desespero abraçando a sua moradia.
Tenta gritar. Sufoca o grito de novo
com a fumaça de outro cigarro. E vai
pelas ruas desertas de cachorros,
olhando palmeiras, sombras. Nada mais.
Uma família nuclear e pós-industrial
não sobrevive ao estresse, álcool,
tabaco, sem dinheiro e sem emprego.
Ele reclama do amor dos filhos;
ela reclama de seu amor por ela.
Ambos se perdem no apartamento
e se distanciam os seus pensamentos:
fogem através da janela acortinada.
Na parede, uns quadros sem valor;
no chão, tapetes manchados de ciúme.
Uma vida deveras marcada a ferro e fogo
pela marca indelével das máscaras do medo.
Essa família só de aparências vive;
com cartões de crédito para quitar
as prestações do carro vencidas
e um feio apê financiado pelo BNH.¶
Do livro Uma teoria do paradoxo, Blumenau, 1999.
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seixo review | outono/fall 2005
SEQUÊNCIA
luísa RIBEIRO
Se tu me fosses entregue
nu e adormecido num chão de suores quentes
eu obrigaria o silêncio a poisar na tua pele escura
e junto aos lábios carnais os teus lábios são vinhas
recolheria o sopro respiração ofegante
de animal e dobrada sobre o teu corpo
entregaria aos teus sonhos a seiva
que me inunda de dentro
Se tu fosses vinho
e me fosses dado na taça das mãos
derramar-te-ia nos seios far-te-ia
correr no terreno muscular até entrares
no monte negro e te perderes no desfiladeiro
onde plantas línguas de vento
e ser-me-ia dado o mundo
para te viajar
Se tu fosses um menino acabado de nascer
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e de mim fosses parido
lamberia os restos do meu ventre na tua primeira pele
o meu colo aquecer-te-ia nu
e logo o meu seio se derramaria na tua boca
o meu sangue correria das pernas louco
seixo review | outono/fall 2005
louco por te levar outra vez à gruta mãe
E se fosses um gato
um bicho louco nas minhas rochas
dar-te-ia a secura da pele
onde anotarias pássaros selvagens
novelos de terra e eu
cobra na tua sombra gritaria
à lua correria
e atiraria contigo
às sobras florestais do meu corpo
até ser um sulco na fúria das tuas garras
Mas se fosses o que és
e me fosses dado eu queimaria papiros
far-te-ia um ninho e não sei que poemas
alegres cantaria aos teus ouvidos
Ou se fosses o último
homem do meu tempo uma tempestade de estrelas
anónimas um rio sinuoso do paraíso
um rei moreno eu abriria
o coração à faca comeria baratas
abateria a família a tiro e subiria
à pata os degraus para o inferno
arfando no fogo
mastigando humilhações e vertendo
um animal saciado
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seixo review | outono/fall 2005
por vezes
há silêncios que atravessam
por vezes
antónio CARDOSO PINTO
nosso estar silencioso
como um ninho dentro de outro ninho
nos ramos de duas árvores irmãs
por vezes
há sons que afagam esse nosso estar silencioso
como se a vida por um instante se concentrasse
no canto dos pássaros ali nascidos de um só ovo
por vezes
é esse canto que nos trás de volta
a primeira lágrima
o primeiro sorriso
o primeiro gesto
por vezes
é importante regressar a esse jardim
para segurarmos o fio que desfaz o labirinto
e solta a liberdade do nosso próprio caminho
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seixo review | outono/fall 2005
They Have Taken Their
First Steps in My Heart
The pain first took hold of my wrists
In the heart within my heart
My sweet children
Took their first steps.
Rain drips on the windows
There is that which comes
From far away
With hands in handcuffs
I do not know the day or year of humanity...
Stars shine
Thanks to drops falling from trees
The moon springs tight a trap on my pessimism
For a night…
The pain first took hold of my wrists
In the heart within my heart
My sweet children
Took their first steps.
French free verse translated into English
by Joneve McCormick, 10.08.2005
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seixo review | outono/fall 2005
üzeyir LOKMAN ÇAYCI
neves e SOUSA
Reputado pintor angolano, Albano
Silvino Gama de Carvalho das
Neves e Sousa nasceu em Matosinhos, Portugal em 1921. Faleceu
em Salvador, Baía, em 11 de Maio
de 1995. Premiado em Angola e no
estrangeiro, está representado em diversos museus portugueses e estrangeiros. Escreveu também poesia. Os
desenhos aqui reproduzidos foram
retirados de um calendário publicado pela Lito-Tipo, tendo os mesmos
sido extraídos do livro ANGOLA
A BRANCO E PRETO, Edição
LELLO, Angola, 1972, de Albano
Neves e Sousa. A sua reprodução na
Seixo review é uma homenagem
simbólica ao artista.
Muanhete
Mificuena cuamatui-Cuamato
“Muficuena”é a moça que está
fazendo os ritos da puberdade
“ëfico”.”Cuamatui” quer dizer do
Cuamato. “Ovacumatui” siginifica
“aqueles que ouvem bem”. Nesta
frase as moças usam uma peruca de
fibras vegetais e por cima um toucado
feito com uma pele de gato bravo.
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seixo review | outono/fall 2005
Idílio ou doutrinação?
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lustosa da COSTA
CHEGA-ME ÀS MÃOS mais um excelente livro
de poemas de Márcio Catunda, “A sintaxe do tempo.”
Portugal é, principalmente, Eça
Surpreende-me, porém, a mudança de tom do vate
como se ele se houvesse decidido, agora, denunciar todas as injustiças e crueldades do mundo contemporâO jornalista Paulo José de Araujo Cunha, colega
neo em sua obra poética.
e amigo, me pede dicas sobre Lisboa que, aparenteLogo, telefono para Juarez Leitão a fim de lhe falar mente, pretende visitar. Devo dizer-lhe que Portugal,
de minha descoberta. Quero saber se este tom panfle- para mim, é Eça de Queiroz. Folheando seus livros foi
tário – por sinal na direção que me agrada –, não pode que me debrucei sobre a capital antiga, seus boêmios,
afetar a longevidade de sua prosa. O homem de Novo seus falsos intelectuais, seus jornalistas inescrupulosos,
Oriente garante o contrário: o discurso de denúncia, suas “sumidades” que não deixavam rastro, suas mudesde que se revista de alta qualidade poética, é o mais lheres ávidas de emoções, sobre pequenas cidades por
duradouro. Foi surpresa para mim, educado em visão ele retratadas e romanceadas, como a Leiria do padre
conservadora da literatura para quem a obra imortal de Amaro e da Santa Joaneira e Oliveira, de sede da resiPablo Neruda não seria o “Nixoncidio”, suas apóstrofes dência da Gonçalo Ramires. Claro, podia citar obra
contra generais, a serviço da opressão, e, sim, a poesia mais recente, “O ano da morte de Ricardo Reis”, de
apaixonada de “Vinte poemas de amor e uma canção José Saramago, e a visão do heterônimo de Fernando
desesperada.” Juarez Leitão insiste no contrário, mos- Pessoa chegando a Lisboa, vindo do estado novo para
trando a superioridade de estrofes não assaz divulgadas o fervor da ditadura salazarista para se hospedar no
e difundidas, de Castro Alves contra a prática da es- Hotel Bragança, com quem fiz algumas caminhadas.
cravidão e tantas outras injustiças sociais de sua época.
Insisto perante ele, diante de mim mesmo: Qual a poesia maior, mais duradoura, imortal? A de Jorge Luís
Borges, do alto de sua torre de marfim ou a de Pablo
Neruda, proferida nos comícios, no meio de operários
suarentos e irredentos? É a dúvida que me assedia neste feriado. E que me faz bater à porta de Frota Neto e
Edmilson Caminha, pedindo suas luzes.
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seixo review | outono/fall 2005
Procurando personagens
Pois é, gosto de andar nas suas avenidas e ruas, pensando que por aqui passeou sua elegância Carlos Eduardo Maia, acolá se embriagou João da Ega sonhando
sonhos de grandeza, mais adiante o chatíssimo Con-
selheiro Acácio estragou encontro de Juliana
com Primo Basílio. Neste prédio em cima do
Café Nicolas morou Eça de Queiroz e recebeu ovação respeitosa das massas que iam ao
enterro de um figurão. Na rua Ivens, vejo o
clube onde o autor de “Os Maias”, no passado,
matava a fome. Onde seria a casa da Gouvarinho que o embaixador Dario de Castro Alves
já quis me mostrar? O Ramalhete, a residência solarenga dos Maias”?
Com amigos
escritores, Lisboa.
O autor em frente à Biblioteca Lustosa
da Costa, Sobral, Brasil.
Bom, Portugal é também uma sequência
infinita de bons restaurantes. Come-se bem
em Portugal e come-se muito. Bom porque
é o paladar que fala à nossa tradição, à nossa
cultura. Em grandes quantidades, porque as
porções não vêm à mesa dos restaurantes no
centro do prato, como em França e, sim, abarrotando travessas.
Em Lisboa e arredores não canso de fazer
os mesmos passeios. Estou querendo jantar na
Cervejaria Trindade, sitio que tanto me fascina, voltar ao “Farta-brutos” que Jorge Amado
freqüentava, casa do apreço de José Saramago,
e matar saudades do “Pap’Açorda”. Falta-me
imaginação para outras promenades. Quando me hospedo no Tivoli Hotel, a primeira
caminhada é na Avenida da Liberdade, tomando um chazinho no caminho, subindo
ao Chiado, à Livraria Bertrand. Volto e passo
pelas Portas de Santo Antão e, naquela rua de
restaurantes, são tantos os apelos gustativos
que logo a fome me chega.
Às vezes tomo o comboio e vou a Queluz ver o palácio onde nasceu e morreu dom
Pedro IV. E se possível almoçar em seu restaurante Cozinha Velha. De lá vou até Sintra.
Desço às vezes dali rumo ao Estoril onde vou
perder uns poucos dólares no casino.
Noutro dia, pego o trem, de novo, e vou a
Estoril e a Cascais onde almoço à sombra de
um plátano no restaurante Batel, sitio a que
tenho ido na boa companhia de Fred Lustosa.
Pois é, não tiro os olhos do prato e da mesa
quando podia escrever páginas imortais sobre
a pátria-mãe, bastando copiar, com certa arte,
os folhetos de propaganda turística.
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seixo review | outono/fall 2005
Igreja de Santo António -Florianópolis
joel PACHECO
Açores
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seixo review | outono/fall 2005
Camping I – Junho
urda ALICE KLUEGER
Q
Quando emerjo da minha pequenina barraca, oito ou nove da manhã, depois de ter dormido acolhedoramente junto ao seu peito ausente, estou cheia de bem-estar e pronta para
mais um livro a ser lido ou estudado, que tal já fiz antes de dormir, provavelmente até lá pelo
meio da noite. Então emerjo da barraquinha azul que tem quase nada, um colchão, uma
coberta e um travesseiro de penas, herança de família, um lençol cor-de-rosa, uma sacola
com coisas pessoais e uma pasta com livros e cadernos e saio para um mundo ainda envolto
pela névoa. A grama verde está toda molhada pela névoa espessa; meu carro, ali pertinho,
também está todo perolado da água condensada daquela cerração. Então saio para ela e fico
encantada com o silêncio dela, e dentro dela posso ver o rio com compridos cardumes de
compridos peixes que parecem que nunca sentem frio, e então me dou conta que o barulhinho que ouvia dentro do sono é o barulhinho da água do rio bastante largo para que a
gente não se atreva a atravessá-lo a pé, e que se encachoeira um pouco adiante, onde acaba
o remanso que é o domínio dos cardumes dos peixes compridos.
24
Atenta, percebo outros pequeninos ruídos que parecem silêncios: são pequenos pios,
leves arrulhos, gorjeios quase imperceptíveis, e se prestar bem atenção, até distingo de quais
árvores ou arbustos tais barulhinhos provêm sem quebrar, de forma nenhuma, o grande
silêncio da névoa espessa. Pela grama molhada costuma saltitar silenciosamente um queroquero que penso que não está acasalado, pois nunca o vi a defender barulhentamente ninhos
e filhotes. Os insetos que cometeram suicídio durante a noite jogando-se sobre a lâmpada
que fica acesa já foram devidamente devorados pelas formigas pretas que vejo ao redor dos
meus tênis brancos enquanto estudo, e as formigas pretas faz tempo que foram-se embora
para algum ninho tão escondido e silencioso que nunca o vi. Tudo está limpo e organizado
nas manhãs de névoa, e escovo os dentes observando a perfeição da mesma e da natureza,
atenta aos arrulhos e cicios silenciosos, e depois como meu iogurte passeando pela grama
que molha minhas meias. Sei que lá longe, na cidade, está bem mais quente, mas ali naquela
umidade do silêncio e da névoa, são necessárias meias de lã e um casaco peludo. Sei que
antes do meio dia o sol vai perfurar aquele mundo branco e que vai transpassar as folhas dos
palmitos novos que ficam perto da churrasqueira aonde estudo, deixando aberta à minha
visão a clorofila de cristal daquelas folhas com tanta clareza como se cada folha tivesse sido
aberta por um fino e impiedoso bisturi que não permite a intimidade da cor interna – mas
por enquanto as folhas dos palmitos novos também ainda estão mergulhadas na névoa, e
todo aquele mundo silencioso, branco e adstringente é um mundo pejado de você, tão cheio
seixo review | outono/fall 2005
da sua doçura quanto o meu coração costuma estar. E eu o sinto silenciosamente em cada
arrulho silencioso, em cada cicio, em cada piu quase inaudível, na cerração e na clorofila que
virá, e principalmente dentro do meu coração. Então, sem fazer barulho para não quebrar
aquela harmonia, começo a tirar da minha pasta o livro que terei que ler naquela manhã, já
me envolvendo psicologicamente com ele, quando lá do rio vem o primeiro ruído:
- Blump! – e foi um dos peixes compridos que pulou fora da água e quebrou o silêncio, e
quebrou a ilusão de que se estava no Mundo das Fadas, e devolveu ao cenário à sua realidade
terrestre. Então me certifico de duas coisas: que está mesmo na hora de estudar, e que, mais
que na névoa e na beleza da natureza, você está tão vivo e tão forte dentro de mim!
Blumenau, 11 de Junho de 2005 (Véspera do dia dos Namorados)
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onésimo TEOTÓNIO ALMEIDA
Provocações irónicas aos
humores do Onésimo
Entrevista: josé FRANCISCO COSTA
A
qui o têm, de seu nome completo – Onésimo Teotónio Pereira de Almeida. Sei a sua graça, nanja por me ter valido de assentos de baptismo, mas porque, há mais de quatro décadas, com este ilustre súbdito
me encontro em inúmeros pontos dos eixos cruzados deste reino.
Por tal razão, e esta prenhe de muitos outros motivos, resolvi correr
o risco de registar este diálogo cibernético que o Eduardo promoveu.
Daqui que o que se segue deverá ser considerado, não como o produto de uma entrevista de arrolamento de dados pessoais, mas um
registo (mais um, entre centenas – no que diz respeito ao Onésimo)
do que muitas vezes se nos acumula entre a vista e o coração. Se o
latim não me trai, e a etimologia me permite, preferi, provocando-o,
dar o tom à voz deste falador inveterado de todos os media, conversador exímio em crónicas feitas livros, pensador por conta própria
em ensaios de variadas estirpes, ficcionista a sério quando lhe sobra
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seixo review | outono/fall 2005
mais que fazer. E, a provocar, para que, ironicamente,
não saia daqui conversa entre amigos, começo assim:
Quando me conheci menino
Urdindo as manhãs com fios de sol,
Abraçava o mar, colhia estrelas
Risos molhados de maré-vazia.
Era pico-de-pedra-solto, bravo
Nas margens suplicando outro rio maior
Tejo futuro, sonho torrente,
Águas que me levaram longe, muito longe
Ora me cresci, voando.
Nas ondas brancas do pensar
Escrevo da scientia rerum, orgia
Sebentas mais que perfeitas magia
Invocando tempora, moresque, estórias do
Menino que sou. Serei.
Oitenta e mais anos viverei…
Sei que não vais gostar, mas desdobra-me o acróstico (da minha
humílima lavra, quando entraste
na era dos “entas”, e que, desconcertado, aceitaste). Fala-nos de ti,
antes da escrita, com ela, e para
além, ou nas margens, dela.
Meu caro Zé e velho amigo: Li-te
com gosto e acho que se for escrever
qualquer coisa vou estragar a beleza
da tua prosa. Já falei tanto de mim
em tanta entrevista que vou acabar pior que a música da
Relva: a repetir o mesmo mais forte. Um dia atirei-me
a uma resposta autobiobibliográfica a uma pergunta do
Eduíno de Jesus e desdobrei-me em esclarecimentos. Chamei-lhe algo como “explicação de como andei a perder
o meu tempo”. Pus lá o essencial de uma confissão sobre
o que suponho terão sido as grandes clivagens na minha
vida e as marcas que mais a afectaram. Dois momentos
fulcrais foram o da transição do seminário para o mundo
laico. Depois, o da travessia do Atlântico – a vinda para
os Estados Unidos. Aqui, divido a experiência em dois
níveis: a aprendizagem no cadinho imenso da imigração
(a L(USA)lândia, mas não só) e o meu tirocínio filosófico na Brown. Nesse retrato autobibliográfico espalhei-me
a encaixar exemplos das temáticas sobre que tenho escrito para ilustrar o auto-retrato. O texto saiu demasiado
longo (impossível de resumir) e tem-no ainda o Eduíno
que, infinitamente mais perfeccionista do que eu, ficou
de desdobrar a minha longuíssima resposta em perguntas
de modo a facilitar a leitura. Mas nunca mais o fez. Ficou
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seixo review | outono/fall 2005
assim algo como. … uma (longa) resposta à espera de
seis perguntas (passe a fácil paródia de Pirandello). Dirás
tu que, ao contrário, no caso presente ficaram foi muitas
perguntas à espera de uma resposta.
A tua escrita é, na sua forma e conteúdo temático, eclética. Mas há um fio condutor, charneira modelar do
que pensas. Ajuda os teus leitores (e estudantes que
queiram monografar-te) a definir-te, em termos estéticos e filosóficos.
Imagino que “eclético” aqui queira significar “multiplicado em géneros” e, presumo também, propões que fale
da unidade da minha escrita. Certamente porque detectas
nela algo nesse sentido. Creio que tens razão. Desdobrando-me no ensaio, crónica, conto, teatro, prosema e (espero ainda) o romance, uso qualquer desses géneros como
meio de abordar as mesmas problemáticas revisitando-as
de perspectivas diferentes mas sempre informadas por
preocupações idênticas.
Se o “eclético” quer referir
“pensamento eclético”, pode
igualmente aplicar-se. Ecléticos
somos todos, na medida em
que nunca repetimos de modo
exclusivo nenhum figurino
(ninguém é igual a ninguém)
e, por outro lado, somos diferentemente marcados no nosso
percurso por influências diversas. No nosso ensino filosófico
tradicional havia modelos. Havia filósofos estabelecidos;
qualquer mortal simplesmente se filiava na doutrina de
um deles e seria arrogante alguém pensar em escolher um
caminho próprio. Mas a verdade é que foi exactamente
isso o que cada filósofo fez: pensou por si. Obviamente
que será veleidade imaginar que podemos todos escolher
caminhos originais. Não é isso que quero dizer. Mas cada
um segue o seu caminho, que é sempre o resultado de
uma gama variadíssima de factores. No meu caso, marcou-me uma educação cristã de que me ficou sobretudo
a preocupação ética. Mas ela não é pertença exclusiva do
cristianismo. Desde Confúcio que se busca a “regra de
ouro” para a conduta humana e, dentro das grandes tradições, as variantes, sendo múltiplas, não se afastam umas
das outras, pelo menos a nível teórico.
Acrescentarei que fui marcado pela filosofia e por um
crescente interesse pelo projecto do iluminismo, que ainda hoje considero válido e o grande modelo a defender.
Reconheço que no século XIX ele foi endeusado, enquanto
hoje temos consciência plena das suas limitações. Todavia
isso não significa que o rejeitemos em bloco, mas apenas
que nos apercebemos de que os valores da modernidade
se imbricam uns nos outros e por isso necessariamente
se relativizam. Não podemos defendê-los como absolutos porque são, no fundo, contraditórios. Por exemplo,
o princípio da liberdade individual e o de justiça para
todos. Mas abandonar o projecto iluminista seria um erro
crasso, creio eu.
Ainda sobre o fio condutor das minhas preocupações
mencionarei uma tendência, que me é natural, de preferir Aristóteles a Platão. Sou essencialmente um indutivo
e, como tal, sigo a tradição aristotélica ao valorizar a experiência enquanto fonte de conhecimento. Daqui salto
para a grande tradição empírica da época moderna. Disso
decorre a minha convicção de que a experiência de cada
qual é que marca fundamentalmente a sua visão do mundo. O que não significa que eu reduza tudo ao empírico e
ao verificável. A literatura, por exemplo, é um bom campo para cobrir outros domínios que escapam ao discurso
empírico e racional mas são parte não menos importante
da vida.
Tudo isto é muito superficial e por isso serei ainda mais
superficial resumindo assim: andamos todos mais ou menos às cegas a tactear o terreno que a vida nos depara.
Tudo o que escrevo está marcado pelas passadas que fui
dando ao tactear o mundo, norteado por alguns dos princípios que, por qualquer razão, me tocaram mais fundo.
A mais elaborada das tuas peças de teatro tem como
título a junção de dois hemistíquios da “Sepultura
Romântica” de Antero. A tua intenção é a de revisitar
alguma coisa comum a duas gerações “70”, a açoriana
e a continental? Aproximação de tempos e idades diferentes e preocupações semelhantes? Porquê “No seio
desse amargo mar?”
A minha intenção principal nessa peça foi pensar a questão da identidade açoriana no contexto de Portugal, visto
ser nos Açores que tenho as minhas raízes. Trouxe uma
plêiade de açorianos à conversa por ter aprendido com
eles (com uns mais do que outros, naturalmente), por
gostar do seu convívio e me sentir em casa no meio deles graças a partilharmos um passado açoriano. Todos eles
tactearam, como eu, esse lugar de pouca terra e muito
mar. Sim, no fundo, Antero e Nemésio, as figuras principais dessa peça, mas também os outros, tiveram variadas
preocupações em comum (minhas e tuas também), se
bem que cada qual tivesse seguido o seu caminho.
Mas esse era apenas um dos objectivos. Pretendia igualmente chamar a atenção dos açorianos para a riqueza cultural do nosso passado, de modo a nos conhecermos um
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seixo review | outono/fall 2005
pouco melhor. E fazer o mesmo aos continentais, que em
geral desconhecem a dimensão e alcance da cultura açoriana, de modo a que se apercebessem um pouco mais
desse espólio.
Foi propositadamente que escolheste o determinante
“amargo” em detrimento do outro, que Antero utiliza
para o mar – “infecundo”?
Sim, foi de propósito. “Infecundo” era o contrário da
ideia que eu queria transmitir. Tem sido fecundíssimo o
mar da cultura açoriana. Amarga tem sido a história, cheia
de dissabores de toda a ordem, desde esquecimentos centenares até terramotos, vulcões e vendavais, para não falar
de abusos dos poderes políticos, económicos e mesmo
religiosos. Mas havia outra ideia: as conversas entre essas
grandes figuras açorianas acontecem no Outro Mundo,
na Casa dos Açores da Atlântida, no fundo do mar, aonde
se vão encontrar periodicamente. No seio desse amargo
mar, portanto, ocorrem diálogos entre os nossos ilustres
antepassados, diálogos fecundos na medida em que nos
podem iluminar o presente.
Já te ouvi afirmar que “o mar” mexe pouco com a ficção, sobretudo a poética açoriana. Mas, não se trata de
maré-seca inspiracional dos nossos poetas, pois não?
Sim, repito essa afirmação com alguma frequência. Mas
não é minha. Li-a na adolescência, nos escritos do grande
etnólogo terceirense Luís Ribeiro. Referia-se à ausência do
mar na poesia popular açoriana atribuindo-a ao facto de
o mar ser nos Açores algo distante que afecta (conscientemente) a vida de apenas uma pequena camada, os 3% da
população que se dedica à pesca. Claro que nos escritores,
sobretudo os modernos, ele está presente. Está em Nemésio, em Dias de Melo (este mais do que ninguém, por a
sua escrita ser obsessivamente virada para o Pico onde a
terra obriga a gente a voltar-se para o mar). Não creio que
esteja muito em Roberto de Mesquita. Está quase de passagem em João de Melo e quase ausente em Cristóvão de
Aguiar porque no Pico da Pedra, o universo da sua ficção,
não há mar perto. Não está na ficção do Álamo Oliveira
nem do Vasco Pereira da Costa. Aparece muito pouco no
diário de Fernando Aires. Surge em Nunes da Rosa pelas
mesmas razões apontadas no caso de Dias de Melo. Está
num conto famoso de Manuel Ferreira (“O barco e o sonho”), mas pouco mais. Mas está nos teus contos (livro
Mar e Tudo) porque a tua vida nas Capelas foi sempre muito
próxima do mar. Sobretudo na poesia dos anos 60, o mar
é visto como responsável pela prisão em que os Açores se
tornam, ideia contra a qual se insurge o Victor Rui Dores
porque, feliz no seu Faial adoptivo, acha agora que o mar
é, para os Açores, uma bênção. E até é verdade.
“Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de
carne e de pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.”
Como sentes e procuras ficcionar a insularidade, assim
dita por Nemésio?
Sobre o fascínio do mar mas também sobre a sua presença dele quase apenas paisagística na minha vida escrevi
um prosema. Lá, digo o fundamental sobre o que sinto e
penso do assunto: o mar define as ilhas; fomos marcados
pela vida rodeada por ele; o mar é fonte de isolamento,
mas é também cenário fundamental na nossa paisagem.
Paradoxalmente, sem ele perto parece que nos achamos
mais isolados.
Todavia, creio que a consciência da importância vital do
mar na vida açoriana surge mais fortemente em quem o
atravessou para ir viver noutro lado. Fora dos Açores, sentimos a falta dele; mas depois, ao voltar, sentimos, mais
do que os que de lá não saíram, a presença poderosa e
isolante que ele exerce.
Iniciaste uma cadeira de Literatura Açoriana na Brown.
Até que ponto é que o conceito nemesiano de insularidade influenciou a convicção onesimiana da real existência de uma literatura topicamente açórica?
Já contei como surgiu a ideia. Não teve a ver com Nemésio, mas com a necessidade que os professores dos programas bilingues (que então proliferavam na L(USA)lândia
dos finais dos anos 70) tinham de conhecer textos sobre
o mundo de onde provinham os seus alunos imigrantes,
maioritariamente açorianos. Nos sistemas escolares dos
Estados Unidos os alunos começam por ler sobre o seu
mundo imediato, e o mundo imediato das crianças chegadas dos Açores existia narrado apenas pelos escritores
das suas ilhas. Comecei então a reunir textos e a falar deles aos professores que iriam utilizá-los nas aulas de português. Alguns começaram a pedir um aprofundamento
maior da escrita dos autores açorianos e assim ocorreu a
oportunidade de eu criar essa cadeira.
O futuro da Literatura Açoriana terá sempre a ver com
a e/imigração?
Se a imigração continuar, ou se um/a escritor/a decidir
revisitar essa temática. Que por sinal está à espera de muito mais ficção. Tu, por exemplo, quando te abalanças a
um romance sobre o tema?
Os teus Onze Prosemas (salvo um ou dois desvios) são a tua
aproximação poética da rota insular que muita da tua
ficção - contos, teatro e muita crónica – segue desde o
início?
Os Açores não estão lá propositadamente, como não estão
de propósito em nada do que escrevo. Estão naturalmente
porque fazem parte fundamental do meu universo. Não
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seixo review | outono/fall 2005
estruturei previamente esse livro. Fui escrevendo prosemas e, quando me pediram um livro deles, juntei os que
tinha. Se estão banhados de Açores é porque eu estou
mergulhado neles, mesmo aqui a esta distância.
Concordas comigo, se eu te gritar do alto do pico mais
alto, que o nosso maior poema do mar é a ilha?
Se entendo a tua pirueta verbal, direi que resumes melhor
do que eu consegui a ideia de que os Açores estão no mar
mas os açorianos estão em terra.
“O mundo da L(USA)lândia é tão diferente do americano como o é do português”. A que distância qualitativa estamos desta tua afirmação, escrita em 1975?
Acho que penso ainda o mesmo. Mas quase trinta anos
passaram sobre essa afirmação. Por um lado, a comunidade foi-se entretanto americanizando mais. Mas a dura
realidade é que ela vai desaparecendo. Todos os dias morrem imigrantes e nascem luso-americanos que já são de
cá, americanos hifenizados, se quisermos, mas americanos sobretudo. De resto a designação até pode aplicar-se
a imigrantes de longa data. Não é impunemente que se
vive mais de metade de uma vida numa terra estrangeira.
Nalguns casos, a frequência com que se vai a Portugal
pode atenuar consideravelmente a aculturação. Noutros,
mesmo sem ser preciso ir muitas vezes, a proximidade
cultural com Portugal mantém-se. Olha para o Eduardo
Bettencourt Pinto, por exemplo. Tão longe ali para Vancouver e sempre tão perto de Portugal, dos Açores, e mesmo da sua Angola natal.
Continua-se à procura do “mònim dum corisco”? Ou,
um corisco me abrase se não já não demos finalmente
a volta, e iniciámos o ciclo de apuramento, comum aos
outros grupos étnicos?
Os grupos humanos não são, no fundo, muito diferentes. O nosso percurso aqui nos EUA é semelhante ao de
outros grupos étnicos. O italiano é provavelmente o que
de nós mais se aproxima. Mas a grande imigração deles
precedeu a nossa entre trinta e quarenta anos. Estamos aos
poucos a seguir-lhes os passos. O ciclo é inevitável. Quanto ao mònim: que a nossa comunidade tenha deixado de o
buscar, não creio. Seria uma contradição porque nos EUA
essa demanda é quase universal. Todavia parece-me que a
grande novidade não está aqui. Novo é o alastramento da
mesma mentalidade em Portugal, que de repente virou
consumista, ávido de dinheiro, tão materialista como os
americanos, os grandes aviltados da nossa revolução de
Abril.
Diz mais um pouco: será que ainda é necessário ser-se a
personagem adriânica (dos teus contos), para “vingar”
nesta terra?
Não, não é. Mas ajuda muito, especialmente quando se
entende “vingar” como o entendia o Adriano a que te
referes. Ou então se entendermos “adriânico” como portador de grande entusiasmo pela vida.
Ninguém, que te conhece e lê, tomaria como ápodos
(epitáfios, muito menos!...) as alíneas que se seguem.
Qual delas te serve menos? Justifica a tua resposta (!)
a) Cronista-mor da nossa errância.
b) Filósofo de contextos vivenciais de duas margens.
c) Escriba do cá-e-lá de um destino português.
d) Professor de filosofia. Escritor.
A d) por ser demasiado pomposa. Fez sempre parte da
minha maneira de ser ilhoa, para mais educado na mais
rígida tradição católica, não armar em seja o que for. Fiquei marcado por isso. O humor que nasceu comigo temme ajudado a não me levar muito a sério. Faço tudo como
se fosse importante levar a cabo o que me proponho, mas
sei que esse tudo é efémero e, ao fim e ao cabo, frágil e
de curto alcance. Se o digo assim em tom tão sisudo, deve
ser por eu estar sempre a contar quantas perguntas faltam,
porque gostar de escrever nunca foi o meu forte.
À margem:
Quase todas as provocações têm a ver com o que o Onésimo pensa,
diz e escreve (A ordem só é arbitrária para “diz” e “escreve”). Para
mais perguntas – até melhor formuladas que as minhas – aqui se
recordam os principais títulos das suas publicações em livro:
George Monteiro:The Discreet Charm of a Portuguese-American Scholar (Co-organização)
Dois Vultos Portugueses nos Alvores da Modernidade Científica (Co-autoria)
National Identity - a Revisitation of the Portuguese Debate (ensaio)
José Rodrigues Miguéis – Uma Vida em Papéis Repartida (Co-organização)
José Rodrigues Miguéis - Lisboa em Manhattan (Uma edição bilingue nos EUA, e a edição portuguesa revista e aumentada com
nova Introdução e Posfácio)
José Rodrigues Miguéis - 1901-1980, Catálogo da Exposição Comemorativa do Centenário de Nascimento (Co-organização)
João Teixeira de Medeiros, Do Tempo e de Mim (Selecção, Organização e Introdução)
José Rodrigues Miguéis, Aforismos e Desaforismos de Aparício (Organização, Introdução e Notas)
The Abbé Corrêa in America, 1812-1820 - The Contributions of the Diplomat and Natural Philosopher to the Foundations of Our National Life
(Organização)
João Teixeira de Medeiros, Ilha em Terra (Selecção, Organização e Introdução)
Da Literatura Açoriana – Subsídios para um Balanço (Edição e autoria)
The Sea Within. A Selection of Azorean Poetry (Selecção, Introdução e Notas)
O Peso do Hífen (ensaios, no prelo)
Livro-me do Desassossego (dia-crónicas, no prelo)
Rio Atlântico (crónicas)
Açores, Açorianos, Açorianidade – Um Espaço Cultural (ensaios)
L(USA)lândia – A Décima Ilha (crónicas e ensaios)
Mensagem–Uma Tentativa de Reinterpretação (ensaio)
A Questão da Literatura Açoriana (Organização e autoria)
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seixo review | outono/fall 2005
Da Vida Quotidiana na L(USA)lândia (crónicas)
Onze Prosemas (e um final merencório)
No Seio Desse Amargo Mar (teatro)
(Sapa)teia Americana (contos)
Ah! Mònim dum corisco! (teatro)
Viagens Na Minha Era (dia-crónicas)
Que Nome é Esse, ó Nézimo? – e Outros Advérbios de Dúvida (crónicas)
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Aceitamos encomendas para o estrangeiro
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seixo review | outono/fall 2005
Tomaz BORBA VIEIRA
– um retrato de alma inteira
Entrevista: daniel de SÁ
Este é um diálogo entre Tomaz Borba Vieira e Daniel de Sá, que foi publicado no jornal “Correio
do Norte”, que se publica nas Capelas, S. Miguel,
Açores. Dado o seu interesse, aqui o reproduzimos,
agradecendo ao nosso Amigo Carlos Sousa, director daquele quinzenário, a sua cedência para este
fim.
Imagina que nada sabia de ti. Como responderias à
pergunta: “Com quem tenho a honra?”
Identifico-me pelo nome que meus Pais me deram,
desde que me lembro de existir.
Mas, felizmente, sei algumas coisas mais. Por exemplo, como te definirias nesta: um artista que é pintor,
ou um pintor que é artista?
Artista … é muito vago! Há artistas das mais diversas
áreas e actividades. Uns são artistas porque vivem, profissionalmente, de uma determinada arte; outros porque
têm alma … de artista. Outros, ainda, porque não concebem a sobrevivência sem a prática de determinada actividade que aborde questões estéticas, o que pode ser feito,
com a devida dignidade, aos mais diversos níveis.
Ser pintor é ter uma peculiar postura perante o Universo, a Humanidade, a sociedade e a própria vida. Não
é o maior dos privilégios. Esse é apenas ser-se humano.
Pintor é quem pinta ideias que decorrem da respectiva
vivência. Ideias que nascem em função de cores e formas.
Há um primeiro pensamento associado a essas cores e
32
seixo review | outono/fall 2005
formas, seguindo-se a execução oficinal, durante a qual
tudo o que estava anteriormente previsto se transforma
numa nova lógica própria de cada obra. Não basta pintar
para ser pintor. Há subtilezas que fazem a diferença. É
um processo de identidade que Correggio definiu quando exclamou, ao contemplar pela primeira vez a Santa
Cecília de Rafael: “também eu sou pintor!” (anch`io son`
pittore!).
Para qualquer arte é preciso esse dom natural a que
chamamos talento. Mas as outras talvez dependam
mais da aprendizagem do que a Pintura. Será que nesta, de facto, aprender é pouco mais do que aperfeiçoarse?
O sábio que é o Mestre José Batata, artista-oleiro de
profissão, disse-me um dia que “o liceu não faz poetas”.
Todas as artes dependem igualmente mais da “poética”
(sem nos restringirmos ao conceito aristotélico) do que
da aprendizagem técnica. O mérito de saber obter uma
cor, de saber colocar a nota certa numa pauta, ou de aplicar a vírgula no momento em que ela vai dar emoção à
frase, só faz sentido quando deA intensidade da “interrogação”
corre em função de um processo
seria exactamente a mesma. A satiscriativo. A aprendizagem adefação paira como desejo.
quada é uma “ferramenta” que só
E essa aventura do Centro Culnão é necessária aos génios, que
tural da Caloura? …
são uma espécie que, infelizmenÉ uma aventura que vale a pena
te, não abunda. A ausência de
por ser partilhada por um bom grupo
aperfeiçoamento é a morte, em
de Amigos.
qualquer arte, como em tudo o
Não vamos fazer a pergunta que,
mais.
segundo Saint-Exupéry, provoca o
Pareces manter intacta a
“ah!” De quem ouve o preço de uma
capacidade de te maravilhares
casa. Preferimos outra: quantas
quando alguém elogia uma obra
obras, e de que áreas artísticas, estão
tua. É como se fosse sempre a
lá expostas?
primeira vez?
Estão neste momento expostas
Exactamente.
112 obras de pintura, desenho, colaE que mais te agrada: o elogem, gravura, fotografia e escultura,
gio a uma exposição ou a um dos
representando pouco mais de meia
teus livros?
centena de autores.
A satisfação é igual, assim
A visita pode fazer-se quando?
como a perplexidade, e ainda soPara além do horário estabelecido,
bra algum receio.
que é de 2ª a Sábado, 10:30/12.30 e
“A FORMA (de Herodíade)
E O MODO (de Salmoé)”
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criador, como dono do destino
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das tuas personagens e das tuas
És um homem de grande equilíbrio emocional. Ao
paisagens: no estúdio ou no escritório?
Isso não ocorre durante a concentração no trabalho, contrário, Van Gogh, por exemplo, não o era. Crês que
em qualquer dos casos. Só um grande distanciamento ele teria sido o artista extraordinário que foi se não fosdas obras, distanciamento no tempo, é que, por vezes, se aquela loucura lúcida que o caracterizava?
Se o equilíbrio emocional é recompensa para quem
permite o funcionamento de uma consciência crítica
dessas questões.
não tiver determinados tormentos, que o aproveitemos
Escreves quando de algum modo te faltam as co- todos os que não somos génios. Quanto a Van Gogh, não
res e as formas, e pintas quando te faltam palavras? Ou consigo imaginar a pele dele noutra alma qualquer. Ele
nem uma coisa nem outra?
não tem a dimensão comum dos mortais.
Nada pode ser feito por substituição, para não se corNormalmente artistas como ele, Picasso, Monrer o risco de registar estigmas de frustração. Existe uma drian, Chagall, Pollock ou Rothko não formam escola.
hora, talvez um minuto, que é o tempo exclusivo de cada Faria algum sentido tentar seguir-lhes as pinceladas,
acto e apenas ele cabe nesse tempo. O amadurecimento isso acrescentaria algum valor à Arte?
de ideias provoca o momento de executar a obra, assim
Os génios, (na Arte ou na Ciência), não fazem escola,
como o fim da gestação dá lugar ao parto. Para além anunciam e moldam transformações na Humanidade.
disso, há ideias que só podem ser pintadas, como outras
Somos influenciados por eles num contexto muito
que só podem ser musicadas e outras que são do foro mais profundo do que “seguir-lhes as pinceladas”. Monda palavra, oral ou escrita. Quando ouvimos a partitura drian teve muitos continuadores, principalmente na
de Mussorgsky, “quadros de uma exposição”, estamos a Holanda, onde se poderia falar de uma escola de “monouvir música, para todos os devidos efeitos, jamais a ver drianescos”, mas o caso é que nenhum dos continuadores
pintura!
conseguiu acrescentar alguma coisa à obra que Mondrian
A intensidade de satisfação por teres pintado um não só inventou como esgotou. Tive a sorte de poder vebom quadro é semelhante à de perceberes que escre- rificar isso mesmo, numa enorme exposição dessas obras
veste um bom capítulo ou um bom conto?
“mondrianescas” realizada pelo governo holandês, há al-
33
seixo review | outono/fall 2005
guns anos, no Museu de Arte Moderna de Paris.
Rothko, por sua vez, disse que se alguém fosse verdadeiramente influenciado pelo seu trabalho, jamais pintaria como ele. Alguns copiaram-no. Os resultados são
obras desnecessárias, porque o sentimento dele era único.
Uma vez mais, nada há a acrescentar. Jamais podemos
imitar o que verdadeiramente admiramos e respeitamos.
Os criadores oferecem-nos conhecimento. É por aí
que apetece segui-los.
E, se alguém desejasse copiar-te, desaconselharlhe-ias a intenção?
Mandava-o copiar um quadro de Nuno Gonçalves
ou de Velázquez. Com qualquer desses autores ninguém
deixa de ter muito que aprender, inclusivamente aprender a conhecer a distância a que se encontra de qualquer
um deles. Ou olhar obras de Rothko, para aprender a
ver.
Na Arte, a imitação é, de certo modo, um plágio?
Entre a imitação plagiadora, com intenções fraudulentas, e a “re-criação” de um tema ou composição, vai uma grande distância. Picasso
“re-criou” quadros de Velázquez e tinha a
lucidez de explicar que “imitava” todos os
pintores, só não se imitava a si próprio. O
artista não se repete e não pode fazer nada
a partir do “nada”. Temos uma história,
tanto antiga como recente e não podemos
deixar de evoluir em função do conhecimento e da informação disponível.
Mesmo para os leigos na matéria,
como eu, não precisas de assinar os teus
quadros. Isto é, sem dúvida, uma prova
da talento. E motivo de satisfação, não
será?
Só não preciso de os assinar para os
amigos e “parentes” mais próximos no domínio destas lides, o que não basta como prova de talento. Tomara que bastasse, caso o talento fosse algo de
essencial à vida. Não sei se alguém já sentiu o talento,
dentro de si próprio, como um formigueiro (na melhor
das hipóteses) ou, como uma dor de cabeça, (na pior das
circunstâncias). A verdade é que as obras são feitas independentemente disso. Resta a esperança de um dia ter a
sorte de alguém não me reconhecer numa obra por, dessa
vez, eu ter conseguido melhor resultado do que das vezes
anteriores. Seria verdadeiro motivo de satisfação!
Considerações finais, algumas?
Também dá satisfação poder responder a perguntas
criteriosamente ordenadas e dirigidas, com subtileza, ao
34
seixo review | outono/fall 2005
âmago de questões que integram o processo artístico.
Corro o risco de não atender à exigência do entrevistador, caso para tal não tenha bastado a franqueza. Espero que as respostas correspondam mais ao generalizado
sentir da maioria dos pintores do que a um apoderamento das questões em termos confessionais. Desejaria
mais contribuir para o que pode ser útil, em termos de
disseminação da actividade artística na sociedade, como
actividade normal, do que explorar detalhes exclusivos
da escala pessoal, desinteressantes para outrem, porque,
tal como lá da antiguidade nos adverte Hipócrates, “ars
longa vita brevis” (a arte é longa a vida é breve).
“MEDOS”(tríptico)
Acrílico sobre tela. 2001
50 x 70 cm.
Por vir a propósito e ter sido mencionado na entrevista, Seixo
Review pediu a Onésimo Teotónio Almeida a narrativa autobiobibliográfica que escreveu a pedido de Eduíno de Jesus e até
agora ainda inédita. Ela é reproduzida aqui parcialmente.
Nota autobiobibliográfica
para eu perceber melhor
em que ando a perder
o meu tempo
onésimo TEOTÓNIO ALMEIDA
35
A
A minha escrita divide-se entre o ensaísmo e a ficção, com a crónica como género
intermédio. O meu treino filosófico na tradição analítica marcou a minha preocupação com
o rigor conceptual e crítico na escrita ensaística, mas
na crónica misturo o meu gosto analítico com o criativo. Quase toda a minha escrita está marcada por
duas experiências fundamentais na minha vida: a
passagem pelo seminário e a emigação para os Estados
Unidos da América. Diria mesmo que a maior parte da minha escrita reflecte preocupações de base com o problema das
mundividências, no seu aspecto mais geral, e com a problemática dos valores e da ideologia (tecnicamente, a axiologia
nas suas vertentes epistemológica e ética). A transição entre
universos culturais profundamente diversos despoletou primeiro um interesse forte pela problemática das ideologias de
que resultou uma tese de doutoramento (The Concept of Ide-
seixo review | outono/fall 2005
ology - A Critical Analysis, que nunca
cheguei a publicar porque ao terminá-la estava já convencido da importância superior da problemática das
mundividências, de que a questão da
ideologia é apenas um aspecto. Apenas alguns capítulos da tese foram
publicados em revistas. Um ensaioresumo foi publicado na Revista de
Comunicação e Linguagens (“Ideologia - Revisitação de um conceito”, nº
21-22, 1995, pp.35-52). Logo após
terminar a tese comecei a leccionar
(e ainda hoje lecciono) uma cadeira
interdisciplinar sobre “A Formação
das Mundividências”, onde fui aprofundando essa problemática, numa
abordagem que começa na área de
Filosofia das Ciências Sociais e termina na análise das consequências
éticas do relativismo cultural e ética,
em busca de possíveis saídas. (Um
desenvolvimento mais alongado deste resumo fi-lo em “Da inevitabilidade da ética e do imperativo dialógico entre alternativas”, também na
Revista de Comunicação e Linguagens
(nº15-16, 1992, pp. 51-60).
A EXPERIÊNCIA da emigração para os Estados Unidos colocoume pessoalmente defronte da questão de Portugal e dos Açores. Por ter
de, nas mais diversas circunstâncias,
explicar a cultura portuguesa e açoriana a americanos, sobretudo a educadores americanos que lidavam com
crianças emigrantes portuguesas, na
sua maioria açorianas, vi-me forçado a procurar compreender a cultura
portuguesa e a açoriana e fui fazendo isso através do aprofundamento
das reflexões clássicas sobre a cultura
portuguesa, mas também através da
experiência e compreensão da cultura e da mundividência anglo-americana. À distância, pareceu-me que a
grande questão da cultura portuguesa dos últimos duzentos anos é a da
decadência, isto é, do atraso relativa-
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mente às culturas do centro e norte
da Europa. Daí resultaram cadeiras e
seminários em que revisitei essa problemática, genericamente designada
por “da identidade nacional”. O plano inicial de um livro desdobrou-se
em vários de que apenas publiquei
ainda Mensagem – Uma Tentativa de
Reinterpretação. Os outros livros têm
saído em forma de ensaios em revistas e livros colectivos nacionais e estrangeiros. Por exemplo: a questão da
filosofia portuguesa (“Filosofia portuguesa - Alguns equívocos”, Cultura
- História e Filosofia, vol. IV, 1985,
teórica da identidade (ex. “A questão da identidade nacional na escrita portuguesa contemporânea, Hispania, vol. 74, 1991, pp.492-500; ou
“Em busca de clarificação do conceito de identidade cultural “, in Actas do
Congresso, I Centenário da Autonomia
dos Açores, Vol. II, Ponta Delgada,
1995, pp.65-89). A questão açoriana, como um caso especial no espaço
cultural português deu origem à cadeira de Literatura Açoriana e a uma
série de reflexões que foram surgindo
sobretudo nos volumes A Questão da
Literatura Açoriana (Angra, 1983);
pp. 219-255; a questão dos descobrimentos e da ciência (“Sobre o papel
de Portugal na revolução científica
do século XVII”, in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal
(sécs. XVI-XIX), Lisboa: Academia
das Ciências, vol. II, 1987, pp.11731222; e “Sant’Anna Dionísio e A Não
Participação da Inteligência Ibérica na
Criação da Ciência”, Idem, Séc. XX,
1992, pp. 1707-1731); o debate sobre a decadência na geração de 70
(por exemplo, “Antero et les Causes
du Déclin des Peuples Ibériques - Esquisse d’une analyse critique”, in
M. Lourdes Belchior (org,), Antero
de Quental et l’Europe. Paris, 1993,
pp.121-135; ou “Antero e as Causas
- entre Marx e Weber, Congresso Anteriano Internacional, Ponta Delgada,
1993, pp.33-43); e a problemática
Da Literatura Açoriana - Subsídios
para um Balanço (Angra, 1986) e
Açores, Açorianos, Açorianidade (Ponta Delgada, 1989). Porque essas realidades dos conflitos culturais se manifestam no quotidiano da minha experiência da emigração, tenho falado
delas nas crónicas e ensaios que quer
para o público das comunidades portuguesas dos Estados Unidos e Canadá quer para o dos Açores e Portugal Continental venho escrevendo ao
longo dos anos e que foram reunidas
nos volumes Da Vida Quotidiana na
L (USA) lândia (Coimbra, 1975) e L
(USA) lândia - a Décima Ilha (Angra,
1987). As outras duas colectâneas de
crónicas - Que Nome É Esse, ó Nézimo? - e Outros Advérbios de Dúvida
(Lisboa, 1994), Rio Atlântico (Lisboa, 1997) e Viagens na Minha Era
(Lisboa, 2001) não têm a ver com a
experiência das comunidades lusoamericanas, mas sim com as experiências pessoais de um português entre dois mundos separados pelo (cada
vez mais) rio Atlântico.
Porque inserido num mundo de
língua inglesa, tenho de me dirigir,
em fala, ou por escrito, a um público
que conhece pouco ou nada da cultura
portuguesa. Daí ter surgido a necessidade de abordar a mesma temática
portuguesa, não já numa perspectiva
de revisitação crítica, mas numa de
explicação, informação e divulgação.
Desses escritos são exemplo “Portugal and its concern with national
identity, in Ann L. MacKenzie, org.,
Portugal: Its Culture, Influence and
Civilization, Liverpool, 1994, pp.
155-163; ou “On the contemporary
Portuguese essay”, in H. Haufman
and Anna Kobukla, orgs., After the
Revolution. Twenty Years of Portuguese Literature, 1974-1994, Lewisburg,
1997, pp. 127-142; e, na área que
tenho privilegiado por achar fecunda e de interesse o seu conhecimento maior na historiografia da ciência
anglo-americana, a presença de Portugal nos primórdios da ciência moderna (que tenho aprofundado numa
cadeira intitulada “On the Dwan of
Modernity”). Tenho publicado ensaios como “Portugal and the Dawn
of Modern Science”, in George W.
Winius, (org.) Portugal - The Pathfinder). Publiquei por exemplo ensaios
sobre esta temática numa revista de
Praga e num volume de actas de um
congresso em Oxford. Outros estão a
sair como “On ‘the revolution of experience’ in 16th century Portugal”,
bem como a versão inglesa de alguns
dos ensaios portugueses nesta área.
Em português, e ainda sobre essa
temática, publiquei por exemplo na
Oceanos um ensaio sobre Pedro Nunes e a relação entre teóricos e práti-
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cos e tenho outro, mais global,
na Revista da
Universidade de
Évora. Há poucos anos publiquei um na Cultura – Revista de
História e Teoria
das Ideias um ensaio abordando
a obra de Francisco Sanches
duma perspectiva do impacto dos
descobrimentos. Um outro também
global sobre a mesma temática saiu
no Boletim da Academia Internacional
de Cultura Portuguesa e foi a minha
comunicação de entrada como membro. Estes e outros serão reunidos
brevemente no livro Da Vanguarda à
Retaguarda – a questão da ciência em
Portugal. Deve assim ficar explicado
porque aceitei por exemplo escrever
a Introdução à tradução portuguesa
do livro The Scientific Revolution, de
Steven Shapin.
VÁRIOS ENSAIOS EM INGLÊS que têm a ver com a cultura
portuguesa. Alguns focam a questão da identidade. Um deles é “National Identity – a revisitation of the
Portuguese Debate”, conferência que
fiz na Irlanda em várias universidades e
que foi publicada por aquela universidade. Outros escritos em inglês não têm especificamente a ver com a cultura portuguesa, mas são reflexões teóricas sobre a
problemática dos valores, como por
exemplo “On Distinguishing cultural
identity from national character”, in
Memory, History and Critique – European Identity and the Millenium
(Utrecht, 1977). Esses e outros andam todos à volta das questões teóricas da cadeira sobre valores “On the
Shaping of World Views”. É daí que
dimana o ensaio Modernidade, PósModernidade e Outras Nublosidades,
Fotografia: bigfoto.com
tema de uma conferência que fiz na
Universidade Nova e promovida pelo
Departamento de Teoria e História
das Ideias (a sair num pequeno volume na Gradiva). Daí por exemplo a
introdução que escrevi para a edição
portuguesa de A Inteligência Emocional, de Daniel Goleman (Lisboa,
1996).
Essas preocupações de fundo que
enformam toda a minha escrita ensaística, são o substrato em que assenta
toda a minha escrita criativa, desde
as mencionadas colectâneas de crónicas até ao conto – (Sapa) teia Americana (Lisboa, 1983) – e o teatro – Ah!
Mònim dum Corisco! (1ª edição, Providence, Rhode Island, 1978; 2.ª edição, Ponta Delgada, 1991) e No Seio
Desse Amargo Mar (Lisboa, 1992). Os
primeiros dois, sobre a problemática
da emigração portuguesa nos Estados Unidos, e o último sobre a questão da identidade açoriana e identidade nacional. Afinal a escrita criativa não muda de temas. Abordo-os
apenas de forma diferente.
Impossível viver circundado de
uma comunidade de diáspora alheia
aos problemas que a afectam. Não
posso recusar solicitações de participação. Sobre as comunidades emigrantes nos Estados Unidos tenho
publicado dezenas de ensaios. Um
deles, “Azorean Dreams”, é a introdução ao volume Portuguese Spinner,
da Spinner Publications, de New Bedford, Massachusetts (1998), completamente dedicado à presença portuguesa na Nova Inglaterra. Espero
reunir em dois volumes estes ensaios
em inglês.
Se há hibridade, ou osmose entre toda essa escrita, existem espaços ainda mais híbridos onde há um
pouco de tudo, como no caso do meu
interesse pelo escritor José Rodrigues Miguéis, uma extensão do meu
interesse pela literatura luso-americana. Veja-se José Rodrigues Miguéis
– Lisbon in Manhattan (org.), Providence, R. I., 1985 (versão portuguesa publicada pela Estampa em 2001),
e o volume das actas de um segundo
colóquio sobre Miguéis e coordenado com Manuela Rêgo, José Rodrigues Miguéis – Uma Vida em Papéis
Repartida (Lisboa, 2001); organização e introdução de Aforismos e Desaforismos de Aparício, de José Rodrigues Miguéis (Lisboa, 1996). Idem
no que diz respeito à descoberta que
fiz de um grande poeta português
nascido nos EUA, João Teixeira de
Medeiros: a selecção, organização e
introdução de Do Tempo e de Mim
(1.ª edição, Providence, RI, 1982;
2ª edição aumentada, Ponta Delgada, 1988; 3ª edição, Lisboa 2002) e
Ilha em Terra, do mesmo autor (Providence, RI 1992). O facto de viver
entre dois mundos levou-me a ressuscitar um estudo desconhecido nos
meios portuguess e mesmo americanos: The Abbé Corrêa in America –
1812-1820 – The Contributions of the
Diplomat and Natural Philosopher to
the Foundations of Our National Life
(Providence, RI, 1993), e preparei a
sua edição em volume, acrescentada
da colaboração de dois historiadores.
Noutro caso, importava divulgar a
poesia açoriana em inglês. Organizei
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The Sea Within. A Selection of Azorean
Poetry, com traduções do meu colega e amigo George Monteiro (Providence, RI, 1983).
Há variados temas “avulsos” sobre
que escrevo por razões a que não posso nem devo esquivar-me: para um
ensaio sobre Saramago destinado a
uma série de conferências sobre prémios Nobel na Flórida optei por escrever sobre a mundividência de Saramago. Para um volume sobre Vergílio Ferreira, de quem fui amigo, escolhi “O ensaio de Vergílio Ferreira”
como tema. Ambos os ensaios sairam em volumes colectivos. De outra
vez, sobre Jorge de Sena, o tema foi
também o ensaio: “O ensaio teórico
a la Jorge de Sena” (publicado na Colóquio-Letras, em 1992. Para um colóquio sobre Estudos Anglo-Americanos escolhi debruçar-me sobre o
livro América, de Jean Baudrillard.
Para outro em Paris sobre o multiculturalismo escrevi sobre a língua
(“Ce que la langue n’est pas”), publicado no volume Lusophonie et Multiculturalisme (2003). A questão da língua é fundamental no problema das
ideologias e mundividências. Sobre
ele tenho-me debruçado várias vezes.
Uma das primeiras foi em “Sobre o
sentido de “A Minha pária é a língua
portuguesa” (Pessoa/B.Soares)”, publicado na Colóquio-Letras em 1987.
Tenciono reunir todos esses e muitos
outro ensaios em volumes que revelarão melhor a unidade de toda essa
escrita.
O HUMOR, QUE PERCORRE A ESCRITA CRIATIVA, das
crónicas ao teatro, é também tema de
reflexão ensaística por ele constituir
um caso fecundo de compreensão da
problemática dos valores, dos paradigmas mentais e das mundividências (ver, por exemplo, “Da Filosofia
do humor ao humor em Filosofia”,
Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 160,
1985; ou a introdução a Está a Brincar, Senhor Feynman, de Richard P.
Feynman (Lisboa, 1988). Um outro
exemlo poderá ser o ensaio sobre “O
humor (ou a ausência de) no Camilo
polémico”, integrado num volume de
homenagem a Óscar Lopes: O Sentido Que a Vida Faz, 1997.
Mais de uma centena de ensaios
sobre as temáticas acima enunciadas,
quase todos lidos primeiro em congressos e colóquios nacionais e internacionais, estão em livros colectivos
e em revistas como Colóquio-Letras,
Hispania, Europe, The Modern Language Journal, Revista Brasileira de
Filosofia, Ideologies & Literature, Revista de Comunicação e Linguagens,
Atlântida, Arquipélago, Luso-Brazilian Review, Bulletin d’Études Portugaises et Brésiliennes, Gávea-Brown,
The Journal of Ethnic Studies, Choice,
Cultura – História e Filosofia, Nova
Renascença, Revista de Cultura Açoriana, Revista da Faculdade de Letras,
Bulletin of Hispanic Studies, IberoAmericana Pragensia, Spinner, Correntes d’Escritas, Tranvia, Brown Faculty Bulletin, Semear, Mealibra, Periférica, Indiana Jounal of Hispanic Studies. Dezenas de comunicações em
congressos e colóquios permanecem
ainda inéditas.
De novo o meu envolvimento americano e a necessidade de divulgar a cultura portuguesa no mar
imenso da língua inglesa levou-me
à criação da editora Gávea-Brown,
destinada à edição de estudos sobre
cultura portuguesa e traduções de literatura portuguesa, com 28 volumes
já publicados. Na mesma editora codirijo ainda a revista Gávea-Brown,
destinada exclusivamente ao registo
da experiência portuguesa na América do Norte (ficção e estudos). É nesta corrente de (pre)ocupações que se
enquadram ensaios como “Two Decades of Portuguese-American Li-
terature: an overview”, 2001), “The Portuguese-American communities
and politics – a look at the cultural roots of a distant relationship”, 1999;
“The Tenth Island and the narrowing of bridges over the Atlantic River”
(2003), que foi a conferência que a pedido do Governo Regional dos Açores fiz para a celebração do Dia da Região Açores que em 2002 teve lugar
em Fall River, Massachusetts. Uma colectânea portuguesa destes e outros
ensaios luso-americanos terá o título de O Peso do Hífen – Ensaios LusoAmericanos.
Por não poder deixar de estar ligado aos Açores e por desde 1978 leccionar, embora esporadicamente, uma cadeira sobre literatura açoriana,
naturalmente que não poderia deixar o tema, depois de ter publicado vários livros de ensaios sobre os Açores na década de 80. Recentemente publiquei um estudo sobre Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio para
um livro didático escolar (secundário avançado e universitário): “Stormy
Isles: An Azorean Tale, by Vitorino Nemésio” (Joyce Moss, ed., Spanish
and Portuguese Literature in Context, 2002). Não havia que estivesse disposto a fazê-lo e era importante aproveitar a oportunidade de divulgar as
coisas açorianas no meio escolar americano.
Um exemplo paradigmático de um trabalho que surge por estar relacionado com várias facetas dos meus interesses é um ensaio sobre os irmãos Côrte-Real. Vivo numa comunidade portuguesa onde sobrevive
mito da descoberta portuguesa da América anterior a Colombo. Procuro
estar atento aos livros de e sobre a nossa presença nos EUA. Interesso-me
pelos descobrimentos pelas razões atrás apontadas. O autor desse mito foi
professor na Brown. Mais ainda, escreveu sobre a Pedra de Dighton (o suposto documento-prova da descoberta portuguesa) por ser uma demonstração da influência do paradigma mental no processo do conhecimento.
Tudo isso me pôs na peugada de dados sobre o assunto que fui coligindo
ao longo de anos. Um colóquio para que me convidaram foi a ocasião de
escrevê-lo. Porque se tratava de um assunto sobre que ninguém tinha escrito, achei que deveria fazê-lo.
Em resumo: todos estes temas dimanam da investigação e leccionação
de quatro cadeiras que eu próprio delineei: 1) A Questão da Identidade
Nacional Portuguesa, 2) Sobre a Aurora da Modernidade (que é um subtema especializado do anterior); 3) A Cultura Açoriana através da sua Literatura (outra instância especializada da Cultura Portuguesa) e 4) Sobre a
Formação das Mundividências, a cadeira teórica que enforma as demais.
Providence, RI 15 de Maio de 1998.
(actualizado em 11 de Junho de 2003)
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Neves e Sousa
Cabeça de Dembo com a tradicional boina de ráfia.
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Encounter on the S-Bahn
teolinda GERSÃO
W
When I went to study in Berlin, I realized that it was not my city: the
rules there were different, sometimes downright odd. For example, my
landlady told me that the duvet on my bed should be folded and stored
away in the cupboard in the corridor with one particular side facing
up, but she gave me no plausible reason why this should be so. And if
I asked her husband how to get somewhere, he always seemed worried
that his Instructions might not prove exhaustive and that I might have
to ask further information from a passer-by.
“No need to ask anyone else,” he would say. I concluded that stopping
someone and asking something was clearly considered inappropriate or
embarrassing. Besides, initially, apart from my landlady and her husband, with whom I did not particularly want to talk, strangers were the
one chance I had to exchange a few words with another creature of my
own species, even if it was only to ask how to find a particular street.
The ability to talk to strangers or to talk at all was not characteristic
of the population at large. I sometimes wondered if they had equal difficulty talking to friends and acquaintances (a vast chasm lay between
these two categories – friends and mere acquaintances). It was not,
therefore, usual for people to address each other. One day, I happened
to remark to a fellow student: “It’s cold, isn’t it?”, and he immediately
invited me to meet his wife because he thought we would have so much
in common. His wife, he told me, was from Thailand.
The Germans, then, were not great conversationalists. They did not
sit out on café terraces chatting, as we did in southern Europe; and the
city – once the cinemas and theatres closed – was more or less deserted
because people did not stay up into the small hours as we did in the
South. Later, of course, I met Germans who were different. I discovered
people who, as individuals, were fascinating, but the society as a whole
seemed to me quite desolate and life there incredibly dull. Despite the
universities, theatres and concerts, Berlin was definitely not my place.
Foreigners were seen as intruders, and society, having no desire to include us, treated us with utter indifference. Then again, what I was being
excluded from didn’t seem worth having anyway.
At first, before I had met a reasonable number of other foreigners
and, later, little by little, a small but compensatory number of Germans
who became my friends (sometimes, as it turned out, for decades), the
creature I felt closest to was a camel kneeling in the snow, which I used
to glimpse through the bars of the Zoo when I walked down the street
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and which, like me, was out of its normal habitat. Like the camel, I had my reasons for
complaint, the snow, for example, the grey days and the sub-zero temperatures.
The houses, on the other hand, were warm and cosy. Even today, I associate the term
‘gemütlich’ (which, to a German, probably sounds as antiquated and irritating as ‘saudade’
does to me) with open fires, lots of overlapping rugs, book-lined rooms, Bach and mulled
wine.
This is all beside the point though. I was talking about my first few weeks in the city and
how hard I found it to live there. For example, on one of my first nights in Berlin, I came
back from a concert and realized that I had forgotten my key. I had to ring the doorbell and
wake my landlady because, as I discovered, everyone went to bed early. My forgetfulness,
for which I immediately apologized, was clearly seen as an unforgivable Third World gaffe,
and I felt that I had brought shame on my own country: it was a distinguishing feature of
the Germans, and of all advanced societies, to fulfil their obligations to the letter and never
to forget anything.
The following week, the landlord told me that if I used the S-Bahn, I should always sit
either in a carriage with other passengers, or else in the first carriage, near the driver. I asked
him why, but instead of answering my question, he gave me a piece of general information:
West Berliners were boycotting the S-Bahn even though it was cheap, because it was being
exploited by East Berlin. The conversation ended there. I assumed that I was supposed to
boycott the S-Bahn too, but I wasn’t interested in boycotting the eastern part of the city. In
fact, I found East Berlin rather intriguing because, at the time, Communism was banned
in my country. I often went over to ‘the other side’, to see what this prohibited thing was
like, and to do so I used the metro or, preferably, the S-Bahn, a kind of overground metro
furnished with uncomfortable wooden benches.
Actually, I didn’t find ‘the other side’ in the least bit thrilling. There was a general air of
oppression and poverty, with policemen everywhere, telling you not to take photographs of
this or that, of this building or that building. The modern architecture was incredibly ugly
and badly built, and the people looked grey and silent and occasionally begged cigarettes,
ballpoint pens or other such banal things, which, apparently, they did not have. Then, of
course, there was the wall. People lived, in a way, with the wall on their backs, and its weight
was the weight of the world. There were stories about trying to get across the wall. I heard
some of these later, but no one on the East side talked about them, as if they were afraid to.
That was the over-riding feeling – fear and insecurity. Anyone might be an informer. I was
familiar with that feeling in my own country, on which, at the time, I had turned my back. I
reached the conclusion that all dictatorships were the same, and my interest in East Berlin
came to be more and more restricted to the museums and to the Brecht plays put on by the
Berliner Ensemble.
However, I couldn’t ignore certain other aspects, even if I wanted to. Split in two like
that, it wasn’t a normal city. It was hard to breathe, on one side in particular. In fact, I found
it hard to breathe on either side. West Berlin did not seem to me a good example of a society or a way of life. It certainly wasn’t what I wanted for myself and my fellow citizens. At
the time, however, I didn’t worry myself about such large issues. I found the small matter
of living, or surviving, from day to day, quite hard enough, because I was distracted and did
not observe all the rules. For example, I would fold the duvet with the wrong side up and
when I went out one night, I again forgot my key.
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This time, I had gone to the theatre with Jean-Pierre, a Frenchman born in Port-auseixo review | outono/fall 2005
Prince, who was studying archaeology. When we got to the Zoo station, we went our separate ways and continued on the metro in different directions. In Berlin the young men we
went out with often didn’t see us home because the metro closed so early they wouldn’t have
been able to get home themselves. Not that I minded going home alone, Berlin seemed safe
to me, and, besides, I assumed it was all part of women’s emancipation, being able to take
care of oneself, instead of being a burden.
However, when I realized that I didn’t have my key with me, I was sorry Jean-Pierre
wasn’t there. I didn’t want to get my landlady out of bed again, but I couldn’t afford a hotel.
Nor could I spend the night in the metro station, because it was already closed. He might
have been able to lend me money for a hotel, or let me stay in his room for the night, I
wouldn’t even have minded sleeping on the floor – anything to avoid waking up my landlady. That humiliation was the last thing I wanted. But I didn’t know where Jean-Pierre
lived and I didn’t have his phone number. I was all alone.
Then, I remembered the S-Bahn. It ran all night, between the two sides of the city. I
could spend the night on the S-Bahn.
I got into the first carriage that stopped in front of me. It was fairly full, with people going home, like me probably, from theatres and concerts. I found a seat next to the window,
made myself as comfortable as I could and went to sleep.
I was woken suddenly by the sound of a voice saying something. A man had sat down
on the bench opposite. He was presumably the person who had spoken.
“What are you doing here?” he asked loudly,
as if I were deaf.
He must be mad, I thought, looking around
and realizing that the carriage had meanwhile
emptied of passengers. I had as much right to
be there as him; after all, I’d paid for my ticket.
I didn’t have to explain myself to anyone. I said
nothing, deciding to ignore him. But that was
impossible. He was looking at me with an inquisitorial air, waiting for me to answer, as if he
were master of that particular space and kept a personal watch over it.
At that hour of the night and on an empty train, it seemed to me wisest not to provoke
a madman. He interpreted my silence as provocation, but the only answer that occurred to
me was the real one.
“I forgot my key and didn’t want to wake up the owners of the house where I live,” I said
at last, and was immediately furious with myself. The truth sounded absurd, improbable.
Especially when put like that, to a stranger.
“Where do you come from?” he asked abruptly. He had obviously noticed my foreign
accent.
“Portugal,” I said, equally brusquely. And to cut things short and to avoid other questions, I added: “It’s not the same thing as Spain. It’s next door.”
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He looked doubtful, which did not surprise me. No one in Germany seemed to believe
that Portugal existed. Or as they sometimes said, it wasn’t a “concept” they had grasped. This
was equivalent to saying that it wasn’t on the map, at least not on their mental and cultural
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map. This, they felt, was due not to ignorance on their part, but to insignificance on ours.
“Portugal?” he repeated aggressively. He either didn’t believe that the country existed or
didn’t believe me. “And what are you doing in Germany?”
The interrogation continued, and I foolishly allowed myself to be interrogated. The man
was humiliating me, as if I didn’t have the right to go out at night or to use the S-Bahn, as
if I had no place in society, didn’t have a passport and there were no laws to protect me. I
was under no obligation to answer, but I did.
“I’m a student,” I said, feeling more and more irritated both with him and with myself.
What did he want? To rob me? He could have stolen my purse while I was asleep. Did
he intend to rape me or kill me?
An alarm bell rang in my head and I was suddenly aware of the danger I was in. I was
entirely at his mercy. At the mercy of a madman. He could attack me at any moment, and
no one would come to my aid. There was no point getting out at the next station because he
would follow me, and, at that hour, empty stations were no safer than empty trains.
“I’ve got a scholarship to study in Berlin,” I added haughtily, so that he would know
that if he dared do anything to harm me, a German institution would be there to take up
my cause and sue him on my behalf. A fat lot of good that would do me if I was dead, I
thought.
He said nothing, just looked at me. Silence seemed worse to me than words. Talking
might act as a defence. As long as I kept talking and telling him stories, I could postpone
the next moment, when anything might happen.
“Don’t you want to know what I’m studying?” I asked, and it seemed to me that, despite
my fear, there was an involuntary touch of irony in my voice, because “what are you studying?” was one of the obligatory stereotypical questions to ask in any conversation.
But he wasn’t interested in the question at all. He was outside any German stereotype
or norm, which made him even less predictable.
“You forgot your key,” he repeated, as if weighing the words he had heard me say and
returning to an earlier point in the conversation.
“That’s right,” I answered, because I felt it was vital to keep talking. “I forgot my key.”
He was looking at me, his face expressionless. He must have been in his late thirties,
possibly forty. Perhaps less. He was wearing glasses and his reddish hair was starting to
grow thin. He had on a brown anorak.
“It’s the second time I’ve forgotten my key,” I went on. “I’m just filling in time until it
gets light.”
And because he continued to sit stock still and because his expressionless eyes frightened me, I added, as if telling another story in order to gain time:
“My landlady was furious when it happened before. I don’t want to wake her up again.”
The man looked out of the window at the station where the train had stopped. He fired
off another question, incisively, as if hurling a stone:
“How long have you been in Berlin?”
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At this point, two noisy drunks got in, and the man left. The drunks sat down on a bench
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nearby. Their singing and laughter got louder and louder, and they kept shooting glances in
my direction. I felt uneasy and got out at the next stop. I didn’t want to have to deal with
anyone else that night.
I had not the faintest idea where I was. There wasn’t a soul in the street, not even any
cars, and it was the kind of icy cold that promised snow. I wasn’t wearing a watch and
couldn’t guess what time it was. At any rate, it was still night and still dark despite the few
street lamps. Sometimes I thought I could hear footsteps following me and I looked quickly
round. After all, the man from the S-Bahn had only got off one stop before me. I saw no
one. I covered my head and most of my face with my scarf and kept walking. I left just a slit
for my eyes, less because of the cold than out of fear.
I walked for a long time, feeling desperately tired. Tiredness increases fear, I thought. I
was probably exaggerating. The world wasn’t that dangerous. Berlin must be safer than it
seemed to me just then.
I was walking with no idea where I was going, choosing a direction at random, simply
because I could not stand still. It was too cold and, if I did stop walking, my fear only intensified. Finally the sky began to grow brighter and a few people and cars appeared in the
street. On the next corner, two men were unloading newspapers. I asked them where the
nearest metro station was.
“Turn right and keep straight on,” one of them said.
Now things would be easier, I thought. My aim was to get to the station. I must have
walked for half an hour or more, my feet ached and I was frozen; a white cloud emerged
from my mouth as the air grew even colder.
When I reached the station, it was still closed. I sat on the steps and waited until two
officials came and opened the gates. I went down the steps one at a time, holding on to the
rail, placing both feet on each step, for fear of slipping and falling because my feet were by
now numb with cold.
It was pleasant down below, thanks to the warm metro air. I sat down on a bench and
waited for the first train. I got on as soon as it arrived and the doors opened before me. I was
safe, soon I would be home. I felt too weary, however, to savour that idea or any other.
Two weeks later, in the middle of the Kurfürstendamm, I stopped, as usual, by a news
kiosk and, suddenly, I saw the photo of someone I recognized.
I bought the newspaper and read the article right there and then. The police had finally
caught the sex attacker who had strangled three young prostitutes on the S-Bahn and
whom they had been hunting for several months.
I read it again and again, unable to take my eyes off the photograph. It was him, the man
who had interrogated me that night. There was no doubt about it, it was him: the same face,
the same glasses, the thinning hair, the anorak. In the photograph, he was staring straight
ahead, as if he were looking at me.
Translated from the Portuguese by Margaret Jull Costa
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Deer Lake Riff
j. MICHAEL YATES
D
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awn as I return to consciousness and
enter a dream: I am surrounded by almost white-out fog; there is no sound.
Out of the mist materializes the tallest blue Heron
I have ever seen, just feet away and to my right.
He fixes me with his all-seeing, all knowing eye.
I sit motionless and blinking in my lawn chair on
the float at the east end of Deer Lake. The vibes
of the heron: “I am not going to fly off into the
fog and, if you mess with me, I will call down the
wrath of all herondom on you.” I stay put, take a sip
of thermos coffee, and check the fishing rod. No
quick movements. The heron settles in for a long
stare down. Having just pulled a graveyard shift in
the West Wing of Oakalla prison, I drop my chin
to my chest again and doze.
For quarter of a century, I have been circling,
crossing, and fishing Deer Lake. Through my life
there have been many such small lakes. They are archetypes, spiritual centres and riffle of eternity. God is a circle whose centre is everywhere
and whose circumference is nowhere. This hermetic metaphor describes the pater noster
ponds which outlet into one another down the alpine steeps of my lifespan from Crown
Hill Lake in Lakewood, Colorado when I was eight to Deer Lake more than half a century
later.
What I know of the transcendent, I learned here, in the tame wild which hangs like an
earring from the lobe of urbanity. In the wild wild as well, but especially here in these oases
of wild grape trees and canes of raspberry, blackberry, and salmonberry.
To the four of us (Hongyun and our two boys, Myron and Kavan), the seasons state and
restate themselves through the fields, snags, birds, and beavers of Deer Lake.
God is the conductor and spring is his way of saying “Let’s play this chorus one more
seixo review | outono/fall 2005
time.” Skunk cabbage is the first confirmation of the “cruelest month,” when all life must
stir from their torpor and resurrect, resuscitate, and rebirth themselves. The skunk cabbage
roars into blinding yellow and skunky musk, and the velvet false hellebore not far behind.
The lotus-family water lilies commandeer the skirts of the water. Rainbow trout and
monster carp slow-mo through the shadows of the pads.
Above on logs along the north shore, turtles and ducks jostle for position in the warmth
of the sun which has returned to Burnaby towed by redwing blackbirds, towhees, and metal-feathered swallows.
On moonlit spring nights after midnight, Yun and I hold hands and flashlights and
sneak up on the beavers and bullfrogs. One night we heard the beavers tail the water seven
times. That was a record for us.
One of the most amazing attributes of Deer Lake Park is the silence which is suddenly
there. Every approach is from a relatively busy, noisy street. A couple of hundred yards in
and the silence come to escort you. It is broken only by the springtime rasp of a cock pheasant, sometimes the shrills of raptors (harrier hawk, red tailed hawk, peregrine falcon), and,
rarely, blue herons mating in the west shore trees — at night the stentorian bullfrogs.
Deer Lake is one of the few places left not so over-regulated that a kid can’t fish. I think
that a human being with a fishing line is about as primal as metaphors get. Beneath the
surface of the water is the great I Don’t Know (The Cloud of Unknowing, unadulterated
enigma). Life began in the water, it is said. Therefore absolute — or at least great — truth is
to be found there in the shape of a fish, as big as Jonah’s whale (or Leviathan) or as small as
schools of minnows sweeping like bright living mineral a few feet at a time. One casts the
line out over the water hoping to lure something — sometimes anything is enough — to
follow what is offered. When one opens a Deer Lake trout to clean it, all knowledge from
the Garden of Eden until right now — this instant — is there.
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China Dust
j. MICHAEL YATES
Dust. Surprisingly, we were made of almost all water.
Except for the dust. Beauty was water, brain was water,
but something was always dust clinging to the shine
of a piano top and cataracting the windows.
– Carpontius Thorne
I
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’m thinking about the bright red dust of Jiang Xi, the beauty of the red clay against
the green of the grass and ornate ceramic drains along the Lushan highway as the
white quartz vein of the Great Wall comes into resolution on the far, loden-green,
high hills.
The Great Wall*is our destination this last day before flying home and we have joined
a tour. We’ve already stopped at an astonishing jade-carving studio and gallery and visited
the tomb of the third of thirteen Ming emperors.
The bus pushes north and north and I squint through the distance framed by the windshield. Just then — although there are no signs in any alphabet — I catch sight peripherally of a vast area under construction which is unChinese in colour (neopolitan green) and
architectural line.
“Was that some Olympics construction
we just passed?”
“You might say,” our guide says over her
shoulder. “They’re building a Disney World.”
With my eyes fixed on the nearing majesty of the Wall, this news refuses to fit into
my mind — just now –: the ancient and the
incomplete in clear view of each other, their
dusts confluent in the clear October air.
The dust — as in “dust to dust” — is indestructible. There are numberless ruined
civilizations, but no ruined dust. The dust of
antiquity merges with the dust of the future — and, in this case, the colossally incongruous.
A molecule of all parts of human history is here.
I keep rolling over in my mind my findings at The Forbidden City: side by side are
Phoenix and Dragon. The Phoenix gives life, cycle after cycle. The Dragon protects and
punishes much like Shiva (a reducer of things to dust and a maker of things from dust). The
Dragon offers good fortune; the Phoenix, hope. Real and mythic presences roll together in
the dust.
We can arrange dust but never rid ourselves of it.
And the instrument of arrangement is a broom. A very special broom in this case (city
street cleaners all over China carry these): I found them up every mountain (like the fabled
seixo review | outono/fall 2005
Lushan), and in every remote village. This is a broom which has long lived near rickshaws
and the gunmetal coloured lines of water buffalo.
Made of carefully sized twigs bound around one end of a handle, this broom would
have been ridden by the witches of MacBeth, those “weird sisters.” I muse that they were
brought – never mind the silks and spices — by Marco Polo to thirteenth century Europe
(I remember them well as a gymnasium student in Wiesbaden, Germany: Every chimney
sweep carried one — good fortune to touch a chimney sweep and give him ten Pfennig for
the privilege). Such a broom was commanded by Goethe’s “Sorcerer’s Apprentice.” Harry
Potter rode one playing quiddich. Their origin vanishes into the dimnesses of folkloric prehistory — perhaps Cro-Magnons used them to turf ash and dust from their caves.
We are ascending, ascending the stairs and watchtowers of the wall and I begin to notice some of the steps are worn through a good two inches, the stone returned to granular
dust.
To climb here is to pay homage, make pilgrimage, to worship in a way, to be there, where
even the Great Wall is changing to dust — like the Blarney Stone of Ireland and the feet
of the stone Virgin in the Vatican (reduced to dust by kisses).
Far down below and distant, but still visible, lies muscular Beijing, dancing like a dragon
beneath the particulate sent into the air by numberless vehicles and smoke-stacks.M a o ’ s
words on an obelisk below: “If you don’t climb the wall, you are not a hero,” and we have
our laminated hero card with picture.
By this view from the top of a great possibility, we are renewed and somewhat redeemed — cleansed by the dust of it all.
China’s phoenix insists yet another incarnation. In “The Great Wall of China,” Kafka
writes: “Human nature, essentially changeable, unstable as the dust, can endure no restraint;
if it binds itself, it soon begins to tear at its bonds, until it rends everything asunder, the wall,
the bonds, and its very self.”
From here at the heights, we can see that the dust of the dynasties joins the indelible
imprints of Sun Yat-Sen, Zhou En Lai, and Mao Ze Dong, and the pepsi signs bearing
the cheering smile of Yao Ming. The dust of pagodas and temples flies with the dust of the
future (Disney World dust, Olympics dust); Canadian dust from our shoes and dying skin
cells now mixes with the dust of wall builders and Genghis Khan; everywhere the interconnectedness of all things restates itself with the clarity of a Bach fugue.
This is the unwobbling pivot of the four cardinal directions.
Every moment is Easter here and the wall is the grandest dragon of all.
*(wan-li chung cheng: ten-thousand-li wall – 1 li =1/3 mile)
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A INVENÇÃO
da MANHÃ
carla COOK
C
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Como explicar-vos o que levou Clara até este momento presente, o momento em que olha a sua mão
apoiada verticalmente no vidro da janela – os dedos espalhados na transparência dessa prisão que é nada, mirando o pulsar adivinhado das veiazinhas azuis que riscam caminhos, e sem sentir o sangue que goteja devagar
da pequena ferida aberta que verte no parapeito?
Esta mão é a direita, e está sossegada e aberta; em
frente do rosto de Clara, precisa do vidro para se apoiar
na vida. A esquerda cai-lhe junto do tronco magro, pende-lhe desajeitada, procura nervosamente agarrar nem
ela sabe o quê, mas é com desespero que se abre e fecha
continuamente e massacra os dedos, e roda a aliança de
ouro branco. Se aqui entrassem agora, poderiam surpreender-se com a força desta mão, porque é notável que
está muito magoada; dir-se-ia que Clara descarregou nela a sua dor.
Mas afinal quem é esta mulher e porque é ela tão especial? Não é qualquer ser humano
que merece ver contada a sua história. A vida tem tanto de mesquinho como de maravilhoso
e bem banal é tentar dar conta dos dias de cada um, transformando-os plasticamente em
cinema de massas ou – o que é talvez pior! … – literatura filosófico-ética, como se de um
pronto-a-usar se tratasse. Oh, detesto os eternos conselhos de vida, mascarados em romances poéticos ou altamente ideológicos! Se alguém tem tempo para governar com conhecimento a vida alheia para além da sua, será decerto um sábio como nunca se viu, e creio não
conhecer nenhum … Desiludam-se, pois.
Pretendo apenas contar o que levou Clara até ao momento de tranquilidade aparente, ao
agora estático e ensimesmado, após o turbilhão da loucura abissal, o nada, afinal, em que se
converteu para ela “o mesquinho e o maravilhoso”.
E, no entanto, quando esta manhã se levantou, nada fazia prever esta queda. Tantos dias
à beira da falésia, raspando com o pé as pedrinhas e fazendo cair algumas para as ouvir
tombar, mas nunca caindo ela mesma … Porquê neste dia, tão comum?
Não sei ao certo a idade de Clara. Não vos posso dizer que parece uma mulher feita.
seixo review | outono/fall 2005
Tem jeitos de menina, mas tem um olhar profundo que contradiz o corpo. E aí reside uma
parte do seu mistério. Não pude dizer, quando a conheci, se tinha vivido muito ou muito
pouco, porque nela se juntavam uma transbordante fragilidade inocente e uma força estóica
e antiga. Pareceu-me um ser arrepiante de elementaridade, impossível de definir à partida,
mas não pude desprender-me dela … Acredito que o mesmo se passou com muitas pessoas,
sem distinção de sexo ou idade. Mas ela parecia não se dar conta da empatia atractiva que
fazia fluir e flutuava no nosso mundo, dando muito pouca atenção a tudo isso e menos ainda
a si própria.
***
N
o dia em que a minha mãe morreu, era também o dia do meu aniversário. Por uma
estranha coincidência, a mãe dela – minha avó Ana – morrera também nesse dia
em que o Inverno se despede, pelo que, de todas as maneiras, está assinalado na minha família como um dia aziago, de acontecimentos dolorosos
e transformadores. Nenhuma destas pouca-sortes trouxe
surpresa aos demais – as mortes de minha mãe e minha
avó eram já esperadas pelos filhos, testemunhas de um
mal que, pouco a pouco, lhes foi penosamente inscrevendo o eterno; o meu nascimento sobreveio a minha mãe
(contou-me ela) com um grande alívio de lágrimas, por
me ter num mundo de tanta incerteza e solidão.
Eu nasci sufocada por esse cordão que nos liga às
nossas mães. A parteira, em aflição, soprava-me a vida
em grandes golfadas de ar, com as mãos em concha na
minha boca já roxa, e dava-me palmadas sucessivas, para
que o órgão vital desse de si. Este mesmo cenário, nessa mesma data, se repetiu 25 anos
depois, quando a enfermeira aflita tentou reviver minha mãe – a sua boca, já roxa, inerte não
fosse pelo ar da enfermeira; o seu peito, sem acordo, sacudido pelas firmes mãos médicas.
Mas toda a diferença residiu em que minha mãe insistira com a parteira para me fazer viver,
suplicando-lhe que me agarrasse à Vida … e eu deixei de friccionar as mãos de minha mãe,
e murmurei à enfermeira que a deixasse partir.
Ah, “morrer será uma enorme aventura!” Diz Peter Pan, no livro que eu tanto gostava
de ler em pequenina … Ele diz esta frase quando sabe que não tem outra hipótese senão a
morte. Na verdade, está cheio de medo da maré que sobe, impiedosamente, para o apanhar
na caverna onde está preso … E alegremente saúda a vida quando a salvação lhe aparece na
forma dessa leal e esvoaçante Fada Sininho, cujo amor era tão grande que deu a vida pelo
eterno Pã, um dia.
É curioso como todos, sem excepção, maldizemos a vida e, todavia, nos agarramos a
ela como náufragos aos destroços de um barco. Mesmo os que escolhem morrer, parecem
hesitar; no último minuto, muitos optam de novo pela Vida, essa miraculosa coisa, que a
nenhuma outra se compara.
Minha mãe manteve-se viva até o corpo, por completo, lhe falhar. Ou talvez, esperasse,
apenas, aquele dia concreto, tão grotesco no nosso calendário, em que a árvore se veste e
os nossos corações se despem. O facto é que as coincidências da data me fizeram acreditar
que tudo isto se entrelaçava, como os pequenos raminhos das roseiras com as silvas, anéis
naturais.
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***
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Nunca percebi muito bem porque casou ela comigo, e, sobretudo, porque casou tão
nova … Não era uma mulher ansiosa pelo casamento, pela vida caseira, nem sequer por
segurança. Sou um homem prático, essencialmente prático, e firme. Decidido. Apanhei-a
como se apanham as flores. Mas Clara pareceu-me sempre pouco arrebatada …
Sei bem que a vida entediada das ilhas, o mormaço brumoso dos Invernos, a teia rodada
dos dias sem fim que asfixiava … tudo isto fazia desejar aventura, uma fuga de espaço, talvez até de tempo, e não nego que eu personificava bem tudo
isto. Eu fui, talvez, a mudança, onde nem o vento faltava de
feição. E ela desejava, mais que tudo, navegar para longe.
Não tivemos filhos, mas Clara dedicou-se-me muito, com
um amor invulgar. Não sei se lhe poderei chamar paixão …
Não sei como denominá-lo, enfim. Era um amor de afecto,
rodeado de cuidados, cheio de esperanças e enlevos … No
enigma que esta mulher se converteu para mim não saberei
dizer se ela não teria amado assim outro que decidisse amar
com igual devoção. Era um ser de temperamento generoso,
e dava-se como quem reparte pão ou mata a sede a um caminhante. Não sabia amar de menos e, no entanto, sentia
sempre que lhe faltava dar ainda algo mais. Talvez porque
nesta dádiva não recebia em igual porção, por impossibilidade total da outra parte. Não há aqui lugar para a censura! Por
mim penso não haver homem capaz de responder a essa pergunta imprecisa e inquietante que pairava constantemente
em Clara. Ela não formulava exigências, o que agudizava o
grito mudo que parecia sair-lhe dos poros em certos momentos de sombra.
***
O clima fechado da nossa terra no Inverno encapotava-nos como um gabão; no Verão,
abria-nos para o mundo, convidava a sestas impudicas nas praias, a espreitar os barcos dos
“aventureiros”, a largar velame e bolinar em corridas de botes, a ficar até altas horas nos
caminhos, cheirando o rum e a bagacina. Minha irmã Clara tinha, igualmente, um amor
pouco comum pela ilha. Parecia extrair dela uma vitalidade essencial, compassava-se pelos
seus ritmos como um animal nativo ou uma planta endémica. Tinha, de igual modo, uma
ligação invulgar e amante com o mar, de adoração e entrega. Se a vissem de noite junto à
costa, cantando baixinho canções de viúvas, com as cagarras ensurdecedoras na areia, e o
mar bramindo como um louco feroz; ou de dia, solarenga e cheia de risos, por entre as ondas
gulosas, envolventes, em carícias, ou boiando abstracta de si, com os ouvidos tapados pelo
aquático mundo.
Penso agora que a solidão dela se compensava neste mundo natural, ela que tinha tão
pouco de seu. Quando a nossa mãe morreu, desabou-se-lhe o mundo infantil, de bolas de
sabão e jogos de pedrinhas. Mas, estranhamente, não chorou, não se lamentou da injustiça
divina … Fechou-se de novo em si, como num buraco negro. Negro? Digo, sem fundo. Minha irmã era alegre, tinha um riso claro. Mas não se sabia o que ela pensava, o que ela sentia,
porque ela não contava muito de si. O mesmo se diz de mim, afinal … Talvez o mesmo se
diga de nós todos.
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***
Uma semana depois do enterro, cumprindo a nossa tradição, fomos à tua campa, querida
mãe, recolher as flores. Sem cânticos, sem preces, sem discípulo de Deus, o velho cemitério
é um repouso de ossadas sob um céu de cinza. Nem nele vagueiam fantasmas; tudo é vazio
e silêncio. As flores que há uma semana atrás te cobriam viçosas, montanha de cor fresca
sobre ti, são agora um viveiro pútrido, onde as moscas vicejam, curiosas.
Limpámos a campa. Há muito para tirar, porque quando um ser querido de todos morre, as flores sucedem-se como os chuveiros de Abril. Estamos envoltos em lama, em flores
secas, em terra humificada, em pedaços remexidos de plantas e galhos. Agarro-os aos sacões
e chego aos últimos. E estaco, horrorizada das minhas mãos. Pasmo, com o grito entalado
na garganta.
– O que é? – pergunta meu irmão.
Abano a cabeça, numa expressão de “nada”. As minhas mãos estão repletas de bichos:
larvas, bichos-de-conta, minhocas, bichas-cadela, todos lutando por penetrar no solo fresco, lutando por chegar a ti, lutando por escavarem mais cedo túneis nas tuas pernas, por
furarem as tuas órbitas, por comerem os teus lábios … e eu, embelezando-lhes a mesa com
flores.
Agoniada, vou vomitar atrás da fonte do cemitério. Lavo a cara e entro no carro. Meu
marido diz:
– Por hoje, já está.
Digo que sim e ambos fingimos que está tudo bem no mundo.
***
A
mão semi-fechada, os dedos em movimentos sem sentido, da electricidade estática
cerebral, o cheiro inconfundível da morfina, a boca aberta, seca e peguenta, os murmúrios dolorosos, quase já não voz humana, os olhos mucosos, pranteados de cansaço.
É assim que me lembro dela. Lembro-me de ela agarrar os cabelos da minha mulher,
puxou-a com a força que lhe restava, e de lhe dizer qualquer coisa ao ouvido e a Clara olhou
para mim e disse: “Sai”. Não estou habituado a receber ordens de mulheres. Muito menos
da minha. A Clara é invulgar, e impenetrável, mas é dócil. Fiquei escravo do espanto. Por
isso, saí.
Não sei, nunca soube o que aconteceu. Mais tarde, a Clara saiu a chorar. Suplicava coisas
sem sentido, de olhos fixos ao céu, de onde não vinha nenhuma voz. Disse ao irmão que
não era capaz (“não fui capaz, não fui capaz”) e depois disso emudeceu, dorida, custava-lhe
respirar e ali ficou, sofrendo. Mas mais sofria a mãe, inerte no cobertor, os membros rígidos,
um véu a turvar-lhe a vista, mas consciente de tudo, os dedos que puxavam a filha para si.
O fim é ficarmos sós.
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***
Sim, Clara dava muito pouca atenção a si própria. Não atendia a quase nada quando
a conheci, como comecei por dizer. Não parecia procurar nada de especial no Universo e,
no entanto, era muito claro para mim que indagava tudo constantemente, mesmo sem o
formular. Fiquei preso do seu desprendimento aparente, da sua necessidade de um anjo da
guarda e da sua vocação, ao mesmo tempo, para ser o anjo da guarda. A maneira como tornava as palavras abstractas em coisas concretas, corpos que se podiam tocar, foi algo novo
para mim. Eu próprio não procuro nada. Os ciganos não procuram nada. Sabemos que não
há nada para encontrar.
seixo review | outono/fall 2005
Pareceu-me que, tal como eu, ela dava a vida inteira todos os dias, sem o saber, e sem
pressa. Devagar e com sabor.
Agora, olhando para trás, penso que lhe devo ter dito algo especial que acordou nela uma
memória qualquer … E isso que, para mim, foi quase nada, para ela foi como o sangue nas
veias, como a espora do cavaleiro nobre quando fere em espuma o flanco do cavalo. Penso
que a tatuei com a imagem do meu pai perdido, que recordo sempre. O laço entre nós foi
um laço de encantamento primeiro, depois de ternura, depois de volúpia.
Clara, Clara, Clara … que decidiu cortar a linha das veias deste pulso que pende agora
inerte, este pulso que tomei tantas vezes, este pulso que acariciei devagar, estas veias que
beijei até poder sentir o bater do coração com os lábios, esta mão que sabia ser uma dançarina de seda fluída, que sabia ser de desespero ávido, esta mão que me percorreu, que sabia
os meus caminhos, esta mão que foi minha (?) e de onde sai o sangue, sem som. Sempre,
sem gritos, Clara.
***
J
ulgar um homem é fácil. Todos são juízes, como todos são marinheiros mas não saberiam governar o barco em que navego. A sensação de desespero que se apodera de um
homem que perde o controlo do seu leme não tem nome. Tudo parece absolutamente inútil,
fenece num ápice, sentes-te tomado dum pavor de comparações e metáforas tolas. E eu já
disse que sou um homem prático e que apanhei Clara como se apanha uma flor – de sacão e
sem ligar à seiva que escorria. A princípio, tudo corria bem. Clara tinha este temperamento
adaptável – desconfio que com a mesma facilidade se teria dado a outro, teria amado com
a mesma doçura, teria embarcado com a mesma vontade, teria rido com o mesmo gosto. E
isso mesmo me dói e me faz náuseas, a mim que sou um homem do mar.
Com o tempo, falava cada vez menos. Concentrava-se em esconder as lágrimas, era
orgulhosa à minha frente. Eu nunca compreendi essa tristeza que se apoderou dela com
aquele cadáver ambulante que ela lavava, vestia, a quem cortava as unhas, limpava a baba
e o ranho, e que era mais pesada do que ela três vezes. Essa mãe que mal falava, excepto
para implorar a morte, e que ela não era capaz de matar. Parecia desinteressada da vida, ou
talvez sempre tivesse sido, e eu nunca tenha reparado. Só reparei quando deixei de estar inteiramente satisfeito. Clara ria menos. Quanto a mim, fazia menos amor. Portanto, forcei-a.
Afinal, que mal tinha? A princípio, não pareceu nada de mal. Ela queixou-se, debateu-se,
mas acabou por se submeter à minha força. Sou um homem muito mais forte do que a minha mulher. Não me orgulho disto. Fi-la sangrar, magoei-a, bati-lhe para a calar, obriguei-a
a muita coisa à qual ela se recusava. Fi-lo várias vezes. Não sei em que pensava. Penso que
nesses momentos nem a via, e tanto se me dava que fosse a Clara ou outra mulher qualquer.
Certa vez, ela revoltou-se muito, tirou-me a mão da boca dela, disse o meu nome, gritou
“Acorda!” Como se soubesse que eu não estava em mim. Parei, estupefacto, parecia que me
tinham embrutecido. Passei o resto dessa noite no sofá.
Não tinha vontade de ser infiel. Tinha vontade de ter a Clara até ao fim, até à última
fibra e de qualquer maneira. Ela criou um arrepio tão distante de mim – e digo-o consciente
de que tenho essa culpa –, um asco depois do que eu fazia, um estremecimento se eu lhe
tocava dizendo “bom dia”, que me dava nojo de mim próprio. Julgo que estou doente. Quase
nem tenho a minha costumada força decisiva de ser e de estar. Mas prefiro não ter cura a
perder esta Clara. Esta Clara é a minha luz.
***
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O Iosef encontrou a minha irmã; o pulso cortado no vidro da janela. Agora, a hora em
que caem os mistérios. Ele diz-me que ele e a Clara se encontram sempre, têm uma vida
marginal juntos: “Tu sabes, tu compreendes! Tudo o que faz feliz a Clara é bom!”. Mas para
que precisa ele de justificar esta relação? Sim, tudo o que faz alguém feliz é bom. Mas a
Clara está feliz? E cortou o pulso? … Que estranho abraço dá ela à morte, no meio dessa
felicidade. E parece sempre tão nostálgica nos últimos dias, tão cheia de gritos presos na
garganta, tão imperiosamente fervente de inquietação, esgotada de se dar demais e receber
de menos.
Eu olho para o Iosef. Este cigano de voz calma, os olhos carregados de luz, uma herança
dos desertos vincada em cada gesto. Digo: “A minha irmã não é uma fonte onde se mata a
sede, na viagem. É uma pessoa.”
***
Thanatos.
Ainda não.
Espantoso, como todos, sem excepção, maldizemos a vida e, todavia, nos agarramos a
ela como náufragos aos destroços de um barco. Todo este branco por cima de mim é um
tecto inexplicavelmente banhado de luz. Há, neste quarto, uma janela. Não, vejo agora que
há duas. E sol. Sol!
Portanto, eu escolhi viver. Viver ainda. Incrivelmente resistente ao reino da sombra e à
sua imperiosa voz. Não, não quero o limbo. Escolho a vida.
O meu irmão dorme, na cadeira. Ah, sempre, desde os anos desfocados, a infância tenra
e descobridora, a adolescência perfumada ou em sobressalto, pude segurar aquela mão. É
justo, é certo que seja esta a mão que encontre agora ao renascer.
Mas porque não me puxaram os braços longos da minha mãe, que eu procurava? …
Como saber? … “Vive, ainda!”
E onde a flecha de sangue que me desperta? Onde a fada de Eros?
Eu, Clara, fonte de luz, não sou …
Eu, fonte de água, tão pouco …
– Clara! Que bom ver-te acordada! Parece milagre, um sorriso teu de manhã!
– É de manhã, mano?
– É de manhã. É uma manhã. É um dia claro.
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Vento
daniel de SÁ
C
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omo eram pobres os pobres naquele tempo! Havia os que nunca
se deitavam com fome nem dormiam com frio, e os que muitas
vezes não tinham pão para a ceia e vestiam chita e caqui mesmo
no Inverno.
Em Santana existiam três fontes: uma perto do poço da ribeira do Capitão onde as mulheres lavavam a roupa, outra no meio do povoado e uma terceira lá mais para baixo, onde a
ribeira começava a despedir-se da gente para completar a viagem até aos Cabrestantes. Nos
mapas da ilha, esta ribeira, que também foi dita Grande nos primeiros tempos, chama-se
de Santana, mas o nome que quem vive perto dela lhe dá é aquele, em honra de Gonçalo
Velho Cabral.
Íamos buscar água a qualquer das duas primeiras fontes, porque a distância era a mesma, embora para a que ficava no meio de Santana não fosse preciso saltar quatro ou cinco
muros. E era nela que havia o bebedoiro para o gado. A nossa mula era teimosa como sói
dizer-se da espécie, dava sempre dois pares de coices no ar quando a montávamos, mas
depois obedecia mansamente. E não precisava de ser conduzida até à água, porque ia beber
por sua própria conta sem demorar mais que o necessário nalgum tufo de erva inesperado e
raro. Mas, se a distância não era muita, o peso da água a chocalhar nos baldes parecia tornála longa, longa, porque as forças estavam ainda longe de ser de braços adultos e fortes.
Ricardo de Mesquita, brasileiro da ilha de Santa Catarina, imaginou o vento sul, visitante habitual de Florianópolis, a falar assim: “Acho que vou ficar mais um pouco aqui. Talvez
arme um redemoinho para encontrar, na esquina do Trajano, as meninas do colégio Coração de Jesus. Saias plissadas, rodadas, que sempre levanto ao passar. Algumas gostam. Disfarçam, mas gostam …//Os garotos que ficam encostados na outra esquina, a de Jerónimo
Coelho,//aplaudem minha passagem. Enfim, alguém gosta de mim!” Vem num livro que
reúne as crónicas premiadas no concurso Franklin Cascaes, e ofereceu-mo a Lélia Nunes,
também ela vagamente insular, porque descende de açorianos de há dois séculos e meio e
seixo review | outono/fall 2005
Santa Catarina está à distância de uma ponte do continente.
O padre Artur queria fazer de cada um de nós um santo à sua imagem e semelhança.
Certa vez pregou muito magoado contra as fotografias de bailarinas quase nuas no Carnaval
do Rio, mostradas na revista “O Cruzeiro” a páginas meias com imagens de Cristo derramando sangue por causa dos nossos pecados. E, quando havia documentários, ou mesmo
algum filme de longa metragem no Atlântida Cine, para os alunos da catequese, ele ficava
na cabina de projecção pronto a fazer censura “ad hoc”, tapando com a mão a lente logo
que aparecessem umas pernas femininas com vista acima do joelho. Mas nada podia contra
o vento...
É juntando tudo isto que fui dizendo, como conversa da tua avó Maria do Carmo, sem
fio aparente mas a fazer sentido lá mais para o final, que chego aonde queria chegar.
Mas espera … ouve, meu Amor … Este vento hoje está frio. E eu na fonte, atrás dela,
à espera de que acabe de encher a lata. Não lhe sei o nome nem lhe lembro a cara. Mas
veste roupa leve, saia talvez de chita, que usou no Verão e há-de usar no Inverno entre uma
barrela e outra. Mora mesmo ali ao lado, não tem de ir longe por água. O vento é frio mas
bonançoso. E, de repente, dá-lhe na gana um sopro mais forte. Levanta a saia dela até à
cintura. As suas mãos, em aflição, não acodem a tempo de impedir que fique à mostra, por
instantes, a nudez absoluta por debaixo da saia. Dá meia volta, envergonhada, e foge a correr
para casa, deixando a lata na fonte.
Não era uma bailarina daquelas que o padre Artur transformava em sombra. Não era
uma sambista carioca que quase se despia por vontade própria no calor tropical. Era uma
rapariguinha a quem a roupa escondia mal a sua intimidade, e quase nada protegia do frio
que vinha no vento. Se fosse pintor, faria dessa imagem fugaz um quadro sobre a pobreza.
Sinto-me triste, neste hoje de há muitos anos e neste hoje de quando escrevo. Estou tão
triste na fonte, a encher o meu balde, como ela na sua vergonha.
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um emigrante
voltou
fernando de LIMA
B
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ojudo e negro o paquete ia-se lentamente chegando
para o molhe. Já se diferenciavam os passageiros. Vestidos berrantes. Cabelos louros. Gravatas exóticas. Óculos escuros.
Foi lançado um cabo para terra. Mais outro. Empurrada por um magote de homens a
prancha colocou-se junto do portaló.
Um tripulante chinês, à popa, atirou pacotes de pastilhas elásticas. O rapazio, maltrapido, sujo, negro, rolou pelo chão num bando faminto, gritando. O chinês ria, ria segurando-se
à amurada para não cair com os pulos que dava de contente.
De bordo um sujeito com aspecto grave, com uma pequena
câmara de filmar, ia focando a cena. A polícia avançou dispersando o bando vergonhoso. Protestos de bordo. O chinês bramia de
punhos cerrados, raivoso. Noutras terras, na sua, na América, ele
fazia o mesmo; outros garotos se atiravam para o chão, como cães,
para apanharem os pacotinhos de pastilhas. Era o primeiro país
onde lhe não permitiam o seu espectáculo predilecto.
Pela prancha subiam homens fardados, pasta debaixo do braço. Cada vez se comprimia mais a multidão que estacionava na
doca. Um cordão de polícias sustinha aquela onda. Uma velhinha,
chaile negro pela cabeça, ia furando, furando sempre. Chegou à
frente de todos e o seu olhar começou a procurar avidamente
qualquer cousa a bordo. A seu lado um grupo de estudantes fazia
considerações sobre o elemento feminino que, cabeleiras esquisitas, máquinas fotográficas, binóculos, lábios tintos, se debruçava
em todo o comprimento da borda do navio.
O chinês tornou a atirar pastilhas. De bordo outros seguiram-lhe o exemplo. E choveram moedas, chocolates, frutas, até um par de sapatos. Já não era somente o rapazio a
ajuntar. Alguns braços dentre a multidão erguiam-se para apanharem também o que era
arremessado do navio americano.
Os visitantes subiram para bordo. Da terra e do barco já tinham soado algumas exclamações de saudação. Eram parentes que se reconheciam.
– Olha! aquele que está ali, ao pé daquele preto …
– Quem é?
– É o filho da tia Joana, o Mané …
– Ó Mané! … Mané! …
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– Hello! … Eh! Francisco! ‘tás bom... teu irmão manda-te dizer que vem pr’à outra
viagem...
O sol ia-se afastando vagaroso pelo céu sem nuvens. Estava-se no princípio do verão.
A velha de negro, corcovada, mão no pescoço segurando o chaile, continuava a olhar
para o navio. De súbito um grito agudo saiu-lhe da garganta. Acabava de descobrir no
segundo deck um homem ainda novo, vestido de azul eléctrico, chapéu cinzento, o braço
rodeando a cintura duma criatura magra, esguia, da qual só se podia distinguir uns enormes
óculos pretos e uns cabelos platinados compridos e escorridos.
Era o seu João. Era o seu João. Não podia ser senão o seu João.
Um dos estudantes já entabulara conversa com uma americana.
– ...no, I am going to Spain.
– Oh! I am sorry… are you Spanish?
– Yes. I am and am not. My father was an emigrant, my mother was born in the United
States and now I am going to pay a visit to my father’s country…
Desembarcou o primeiro viajante. Era um senhor alto, gabardine clara, bengala. A seguir um casal de idade avançada. Desciam amparando-se mutuamente. Um bagageiro atrás
carregava uma mala pequena.
Os recém-vindos seguiam por um carreiro aberto entre a multidão a caminho do posto alfandegário. O povo comprimia-se, fazia comentários e os seus
olhos percorriam gulosamente os chapéus, os casacos de peles, as enormes malas
à tiracolo, as gravatas extravagantes, as máquinas fotográficas ao ombro, os trajes
masculinos das mulheres.
Já não se via o sol. Só uma claridade pálida vinha ainda de oeste.
Muitos dos que desembarcavam tinham pais, irmãos, primos a recebê-los e
eram abraços efusivos, perguntas instantâneas, por este, por aquele. E lá seguiam
os emigrantes que voltavam, imponentes, bem vestidos, rodeados dos parentes
– uma chusma de chailes, cabelos brancos, pés descalços.
Tia Maria, a velhinha de negro, ainda lá estava. Aquele que lhe parecera o
seu João tinha desaparecido. Mas ela continuava ali. Pois era ele com certeza. Então ele não
lhe tinha mandado dizer que vinha?
O António da caminheta havia-lhe dito que o vapor chegava na quinta-feira às cinco
horas da tarde. E pela manhãzinha botara-se ao caminho, a pé, para a cidade. Quase em
S. Vicente começou a chuviscar e o piolhinho encharcou-a, só tendo escampado na Fajã.
Por volta do meio-dia chegou à Matriz. Olhou para o mar. O porto estava cheio de navios.
Perguntou a alguém que passava se já tinha vindo o vapor da América. Não, só chegava às
cinco horas. Ainda tinha que esperar. Foi-se sentar para o Aterro onde comeu sem mais
nada um bocado de pão de milho que trouxera.
As horas foram-se passando, lentas. Duas, três, quatro, quatro e meia. Por detrás do
molhe viam-se as pontas dos mastros correndo vagarosas. Cinco horas e eis que, enorme,
atroando os ares com o seu grito rouco, dobra a ponta da doca o paquete americano.
À entrada do porto exigiram-lhe cinquenta centavos. Jesus, como ia ser aquilo, não tinha
um vintém consigo.
– Ai, meu rico senhor, eu venho esperar o meu filho e não tenho dinheiro para entrar.
O desconhecido, sem dizer palavra, comprou dois bilhetes.
– Seja p’las almas...
Acenderam-se as lâmpadas do molhe. O navio já estava iluminado. Quase ninguém
agora assistia ao desembarque. Mas João ainda não descera. Porquê, meu Deus? Se calhar
tinha desembarcado sem ela dar por isso.
Ah! Um par descia pela prancha. Era ele. Era ele. E aquela mulher tão alta que o seu
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João ajudava a descer?
– João!...
– Ó mamã...
– Ai, querido filho!...
A mulher que acompanhava João continuava ali, olhando-os curiosa.
– Esta é a minha mulher...
– A tua mulher!... pois tu casaste-te, João?... e não me mandaste dizer?...
A americana disse qualquer cousa que a pobre mãe não entendeu.
– Bem. Vamos embora. Não vamos ficar aqui... Mamã...
O seu filho casara. E ela que o esperava há tanto tempo para que ele viesse, rico, viver
com ela, a sua mãe! Há que anos ele se fora, logo depois da morte do marido. Agora vinha
casado com aquela mulher que não falava a sua língua, que ela não conhecia. O seu João
casara na América...
Não tinha casa onde recebesse João e a mulher. Que ia ser dela, meu Deus? Ao tempo
que aguardava a vinda daquele filho que fora para a América com o produto da venda da
terrinha da ladeira e da sua mobília. E agora ele vinha casado, todo tão bem posto, casado
com uma americana.
E ela ali, miserável, suja, com fome.
– Vamos para o hotel... Mamã que venha também...
Tia Maria lá se sentou junto ao chauffeur, coração a bater de susto. Jesus, como ia ser
agora a vida dela?
Anoitecera por completo. O automóvel corria ligeiro. Subiam uma rua. Era por ali que
se tomava o caminho para a sua freguesia. Mas ele tinha falado em hotel e não em irem
para casa.
– João, pr’a onde é que a gente vai? – disse a medo a tia Maria.
– Eu... eu... vou para o hotel... – respondeu o filho, hesitante.
O automóvel parou. João abriu a portinhola e saiu. Parecia intimidado. Pagou ao chauffeur. Ficaram os três à porta do hotel. Tia Maria não sabia o que dizer. A americana dirigiu
uma pergunta ao marido em tom ríspido.
– Bem... eu...
Tia Maria começava a compreender. Estava para lhe perguntar porque não iam para
casa. Era pobre, mas haviam de se amanhar os três por hoje, e amanhã havia de se ver. Então
ele não viera da América para a sua casa, para a sua freguesia? Para que queria João ficar no
hotel? Ela tinha tanto para lhe dizer...
– Eu trouxe comigo o automóvel, amanhã vou lá cima. Mamã que espere por mim...
–...’tá bem, filho. Eu vou-me andando e tu amanhã hás-de ir para cima...
A voz de tia Maria denunciava lágrimas que lhe corriam abundantes e que o filho, no
escuro, não podia ver.
–... até amanhã, filho...
– Eu não tardo lá em cima. É só esta noite...
–...pois sim, meu querido filho...
A porta do hotel abriu-se. Lá de dentro veio uma lufada de bom cheiro a comida de
mistura com música que um rádio espalhava alto.
Um criado de branco fechou a porta.
Começava a chover. Pingos ralos que o vento açoitava.
Tia Maria ajeitou o chaile e, mais corcovada, começou a caminhar, para cima, a caminho
de casa.
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in Diário dos Açores, 4 de Outubro de 1947
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A SINA
paulo da COSTA
A
Aurélio encostou-se à parede da trincheira lamacenta, aparando ferozmente um pequeno cepo enroscado. Conteve-se,
controlando a impaciência, não desejando esculpir o entalhe errado. Os nós da mão estavam brancos e os dedos adormecidos
do trabalho assíduo, do ar gélido.
Soltou da madeira os dedos gelados e aqueceu as mãos nos
sovacos, antes de se preparar para disparar ao acaso na direcção
da noite. Esperou pela resposta obediente da sentinela inimiga.
Os tiros ecoaram na colina. Aurélio suspirou. Outra hora de
silêncio cairia agora sobre as trincheiras.
Com a língua, Aurélio selou a mortalha e acendeu o cigarro
sob a protecção da samarra. Ao devolver a cigarreira de prata
ao bolso da camisa, contemplou o buraco da bala no centro. Na estação de comboio, o seu avô Manecas enfiara-lhe
com a cigarreira na mão.
«Poupou-me a vida na primeira guerra», apontando para
a caixa, «tenho uma fé que ainda não lhe morreu a sorte».
Passados uns momentos o apito do comboio afogou
a voz do avô e o fumo forçou-o a procurar um lenço de
mão.
Na trincheira, a cigarreira animou os ânimos ao Aurélio,
mesmo tendo em conta a sentença que a bruxa lhe revelara.
POR OCASIÃO da partida de Aurélio, Deolinda conven-
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ceu-o a passar o dia na Feira.
Ele comprou azeitonas, ela tremoços. Andaram de braço dado
pelas tendas, ele a cuspir caroços, ela cascas amareladas, espreitando pelas tendas onde feirantes apregoavam, quanto mais
esganiçado melhor, louvores às mercadorias. Em breve foram
acostados por uma vendedora de coelhos que apresentava um
bicho dependurado pelas orelhas.
«Limpinho como um rabo de bebé, sem feridas, sem mazelas.
Os meus coelhos são os mais sadios da feira», assegurou a feirante, enquanto que escancarava as pernas do coelho a um dedo
de distância do rosto de Aurélio.
«Sem dúvida. Mas para onde vou não farei uso de coelhos»,
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disse Aurélio tristemente.
«Leve dois então e eu ofereço-lhe um bom preço. Não há lugar no mundo em que o conforto de uma pele de coelho não dê jeito». A feirante insistiu e deslizou a mão pelo casaco
macio do bicho.
Aurélio e Deolinda abriram caminho. A feirante ainda os seguiu alguns passos pela viela.
«Vossemecê até pasmava se soubesse que brincadeira é criar coelhos, o magro espaço que
pedem». Ela indicou em direcção às caixas apinhadas onde coelhos se encolhiam. Deolinda
e Aurélio apressaram o passo.
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DEOLINDA SUGERIU que visitassem a bruxa. Estavam comprometidos e ela desejava preparar-se para a ninhada de crianças que o futuro lhes reservava, para o tempo de
espera antes do seu regresso.
A tenda da bruxa encontrava-se aconchegada ao canto da Feira, para lá da praça do gado.
A tenda, a mais colorida, com listas verdes, vermelhas e brancas, e apesar do fedor da vizinhança, exibia a maior fila de espera em toda a Feira. Só a tenda dos matrecos, onde os
homens se aglomeravam, lhe fazia competição.
Em fila, Aurélio mexia-se de pé para pé, o coração, na tenda dos matrecos com os amigos.
Evitava os olhares de soslaio das outras mulheres em fila.
Após muitas horas sob sol escaldante, a enxotar moscas e a fugir de caudas de boi a badalar, uma mulher, de lenço na cabeça, semelhante ao pano da tenda, convidou-os a entrar. Já
dentro, foram imediatamente cegos pela escuridão.
«Bola de cristal, cartas ou sina? A bruxa perguntou, ainda antes que eles se tivessem sentado.
«Sina», disse Deolinda decididamente.
«Esquerda ou direita?»
«Qual é a diferença?» Aurélio interveio, sentindo necessidade de afirmar a sua presença.
«Evidentemente que existe uma grande diferença. A palma da mão esquerda mostra as
tendências de natureza hereditária; a direita abre a porta do futuro e naturalmente é mais
cara para ler».
Aurélio não gostou dos olhos da bruxa. Pretos e brilhantes, os olhos não lhe ofereciam
descanso.
«Bem, apressemo-nos», disse a bruxa, «temos uma grande fila de clientes que desejam conhecer o seu destino. É para ler as mãos de ambos, é?» Ela perguntou à Deolinda e acendeu
uma vela. A visita era uma questão entre mulheres e elas conversavam como se Aurélio não
existisse.
«Sim, é para ambos. Mas primeiro a dele se faz favor», pediu Deolinda.
A bruxa puxou a mão do Aurélio próximo da vela. O calor das mãos cresceu-lhe pela
espinha. Aurélio definitivamente não ia com os olhos penetrantes da bruxa.
«Ó Deus do céu! Vossemecê tem os sulcos menos vincados ao norte do Rio Douro. Mau
sinal. Ele sofre de fraqueza de decisão, não sofre?» Ela abanou a cabeça para Deolinda, que
por sua vez também abanou em concordância. «Lamento mas vou ter que cobrar a dobrar.
Já é obra ler os caminhos do futuro sem obstáculos quanto mais ter que lidar com uma mão
matreira».
A bruxa vasculhou os bolsos do avental, retirou uma luneta e colocou-a sobre o olho
esquerdo. Espreitou sobre a mão de Aurélio, espalmando-a na mesa. Lá fora, ele ouvia o
mugir aflito do gado, protestando, a caminho do açougue. Ela abanava a cabeça até que
repentinamente assobiou num tom grave.
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«Isto é desanimador. Não avisto sinal da sua linha do futuro».
Deolinda agarrou com mais fervor a outra mão de Aurélio.
«E a linha da vida», continuou a bruxa, «mostra brevidade alarmante». A cabeça do dedo
indicador seguia uma linha em arco da base do polegar.
Aurélio sentiu o corpo da Deolinda a desfalecer aos seus pés e levou-a para fora da tenda
até ao ar fresco.
«Desculpe, mas são vinte mil réis, ó patrão. Já estou habituada a teatro para evitar o preço
da verdade». A bruxa seguira-o. Ele esvaziou os bolsos de moedas e despejou-as nas mãos
da bruxa.
Aurélio abanou o chapéu na cara da Deolinda até ela acordar. De olhos abertos, ela encarou-o como se ele já fosse uma alma doutro mundo, e aos gritos, anunciou, «Não vou casar
com um fantasma!» De seguida, Deolinda desapareceu, a martelar os tamancos no chão,
atirando com o anel de comprometida para dentro do curral do gado.
PASSARA-SE ALGUM tempo desde que Aurélio acabara o cigarro. A madeira, aparada
a canivete, adquirira a forma de uma mão. Os dedos claramente definidos, unhas estreitas,
com sinal de disposição calma. Aurélio começou a entalhar o seu futuro. Imitou as linhas
mais auspicias, ilustradas no livro da Arte da Sina, que comprara na estação de comboio.
Esculpiu linhas profundas, assegurando a impossibilidade de equívocos na interpretação do
seu futuro. A ponta da navalha desenhou uma linha procedente da base da palma e seguindo um trajecto directo ascendente, sem linhas cruzadas a representar obstáculos na vida ou
mudanças súbitas. Traçou uma linha da vida suave e longa, esculpindo uma estrela no centro, como sinal afortunado. A linha do coração descrevia um arco descendente, estendendose da raiz do dedo indicador até ao mínimo, sem ramificações ou cruzes a enfraquecer o
seu percurso. Aurélio suspirou. Sentia-se em pleno controle do futuro. Mesmo os veios da
madeira pareciam imitar os sulcos da pele.
A aurora incandescente iluminava o céu. Aurélio levantou a mão esculpida e rodou-a
para uma última inspecção, garantindo que nenhum detalhe tivesse sido abandonado ao
acaso. Colocou o anel de comprometido no dedo de madeira, sonhando já com o seu auspicioso futuro. Aurélio imaginou o rosto da Deolinda, sorridente e aprovador, e ficou ansioso
por lhe exibir a obra-prima. Agora a vida de casal seria idílica.
O sol nascia, radiante e caloroso. Aurélio encheu os pulmões com a esperança de um novo
dia. De seguida, fixando os olhos na estrela de alva desvanecida, colocou a mão direita sobre
a boca da metralhadora e disparou uma trovoada de balas.4
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Abóboras nascidas
no conluio do ermo
humberta MARIA ARAÚJO
N
No regresso a Senhora não me ouviu. Entrei pelas portas dentro. Chamei-a mais de uma
vez. Não pelo nome. Pelo sexo. Na casa da Senhora as paredes azuis dos quartos da frente
tinham fendas profundas. A humidade que se fizera convidada dormia na cama e cheirava a
mofo. Continuei a entrar e a chamar. O silêncio ficou mudo. As teias vergavam suportando
o pó que o tempo acumulava. Por todos os cantos da casa fotografias de família, amarelecidas, agastadas pela saudade, com vincos de eternidade. O tapete de plástico, cansado de
suportar os passos da Senhora, denunciava as pausas que diariamente efectuava para olhar
os nacos das eras empilhadas nas paredes e nos móveis.
Pelo estreito corredor dezenas de flores de plástico proliferavam em vasos multicolores
de porcelana. Numa das camas, sentada de braços abertos, a boneca parecia chamar uma
mãe, um abraço que a libertasse do pasmo calado, de um quarto de dormir. As persianas
neste abriam. No outro tinham-se partido.
A senhora surgiu ao meu encontro caminhando pesarosamente apoiada num cabo de
vassoura. Quis varrer-lhe as dezenas de formigas que inundavam o chão da cozinha.
“Querida não me leves a vassoura, que sem ela não posso andar.”
Olhou as paredes que choravam.
jar.
“Já falei ao Presidente da Junta, mas ainda estou aqui à espera. Ele diz que vem arranQue vem arranjar. Mas até agora nada!”
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Por um arrocho de alma regressaria ali mais tarde. Uma vez mais chamei-a. Sem resposta. Aventurei-me um pouco mais. Já havia ali estado momentos antes. De passagem. Mas
voltara. Sofás e cadeirões multiplicavam-se. Sem ninguém para neles se sentar.
“Come uma frutinha.”
Declinara a oferta. Ela precisava. Eu não. Ela precisava de muito. Acima de tudo que eu
tivesse aceite a fruta. Mas só mais tarde compreendi que o devia ter feito. Voltei por causa
da fruta a das feridas nas paredes azuis. Queria que soubesse que não a abandonara. Talvez
fosse possível uma ligadura momentânea que arrochasse a tormenta.
“Já falei ao Presidente da Junta, mas ainda estou aqui à espera. Ele diz que vem arranjar.
Que vem arranjar. Mas até agora nada!”
Olhei uma vez mais atentamente para todos os cantos da casa. Teria que me aventurar
um pouco mais. Pé ante pé cheguei à cozinha e chamei por ela. O silêncio continuou vazio.
As portas da rua e do quintal escancaradas
indicavam que ali alguém tinha esquecido o
receio. As moscas entravam e saíam a seu belprazer. Zuniam anunciando a sua presença.
O calor insuportável cozinhava um odor de
pobreza. A cozinha era pesada. Repleta de
tudo que deixara de ser necessário. Adivinhei
a Senhora finalmente. Escondida no canto
do lume. Já me encontrava muito perto. Continuou sem dar pela minha presença. Toqueilhe de leve no ombro. Comia alface com as
mãos. A mesma alface que momentos antes
estorricava num banco de basalto no quintal.
“Quer uma alface?”
Provei um pedaço. Tinha cheiro e sabor a vinagre. A Senhora comia alface e arroz doce,
que bem pude adivinhar já indiciava azedura.
Assim comia a Senhora, que me deixou entrar pela casa, que não tinha portas. Tudo o
que possuía permanecia intacto, como fora deixado dez anos antes. Como no dia anterior
à morte.
“Tenho 7 machos a viver nesta terra. Duas fêmas e outro macho na América. Aqui, só
dois dos meus filhos vão fazendo caso de mim. O resto do tempo passo como uma triste,
viúva sem ninguém.”
Enxugava os olhos com o avental. Estava só. Com a sua alface cheirando a vinagre, os sofás vazios, a boneca de braços abertos. Usava óculos, estes também empoeirados. Mandoume subir as escadas até ao sótão. Quatro camas vazias. Numa delas dormia. Não sei como
arranja forças, apoiada na sua vassoura, para subir até ao leito. Não dorme junto às paredes
feridas. Porque choram também. Bastam dois olhos para toda a casa verter lágrimas.
“Estou sempre para aqui sozinha. Quando cá vier faça-me uma visita. Até já disse às
minhas netas que lhes pagava da minha reforma para virem ter comigo. Mas nem assim
elas querem. E fico práqui, como uma triste, sem ninguém. Sete machos e só dois ainda vão
fazendo caso de mim.”
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A festa da paróquia do Nordeste aproxima-se. É Verão. Já guardou uns trocos para que
uma mulher lhe faça a limpeza. Teias de aranha com as barrigas a verter são uma vergonha
em dias de festa da padroeira. Já não pode nada. Já não ouve nada. Por isso deixou de ter
receios. As portas não existem. Estão sempre escancaradas. As paredes um dia cedem, e as
figuras nas fotografias empalidecidas cedo desmaiam.
A doença tudo levou. O companheiro. O carro de praça. O tractor e as terras. Apesar da
solidão e a alface e vinagre não deixa a rua e as paredes feridas. Na América não se amanhava.
“Vem aqui ao quintal que te quero mostrar uma coisa.”
Os currais vazios. O cafuão desaparecido. As alfaias esmirradas. Mas não as abóboras.
“Atirei umas sementes para aquela estrumeira e veja o prodígio de Deus Nosso Senhor.”
O prodígio espalhara-se pelo chão cimentado do quintal da Senhora. As abóboras ainda
verdes eram tantas e tamanhas, que domavam a solidão num conluio sibílico.
“Se estivessem a moldes levava uma. Mas ainda estão muito verdes.”
A Senhora não ouve a minha resposta. Já me adianta o caminho, porque sabe que dali
só me resta a saída. Não tem esperança que atrase a minha partida. Curvada sob o peso das
pregas, que já leva o seu tempo, prossegue a via-sacra. Pára demoradamente em cada uma
das estações para restaurar os demais trechos da sua estória.
Vai calada, sem pressa. Sigo-a discreta. Com pressa.
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seixo review | outono/fall 2005
O menino
que não quis ser padre
laudalina RODRIGUES
A
frio e escuro por detrás da sacristia.
os Domingos era sempre assim: depois
do almoço, o sino batia certeiro às cinco da
tarde a chamar para a doutrina. As crianças
amontoavam-se aos magotes; ao sinal da
catequista engoliam os risos e, sobre o olhar
atento de Santa Luzia que os fitava com olhos
piscos, seguiam docilmente para o quartinho
Humberto sentava-se sempre no mesmo banco corrido ao pé de Manuel da Vinha,
colega de carteira na escola e esperava, sereno, uma vez mais pela lição sobre a vida de Jesus.
Abria o catecismo e, com um dedo cheio de cuspo, voltava as folhas olhando atento as várias
gravuras pintadas a cores suaves: Nossa Senhora a fugir num burrinho para o Egipto, o
Menino Jesus a ajudar São José com uma serra de madeira, um coro de anjos com cornetas
que subiam ao céu numa nuvem branca. Mas ficava sempre aterrorizado quando se lhe
deparava um vapor chamado Titanic, que se tinha afundado porque o comandante tinha
blasfemado contra Deus; ou quando via um homem com cara de fariseu a rasgar um papel
sobre uma fogueira porque não concordava com a ideia que só os que pudessem pagar não
precisavam de fazer abstinência. Só depois é que soube que esse papel se chamava bula e que
Lutero se desviou da Igreja Católica.
Às perguntas da catequista, Humberto respondia sempre certo, mastigando as palavras
e respirando nos pontos; que Jesus era o filho de Maria concebido sem o pecado original,
que isso era um mistério e que ele não tinha que perceber que Deus era Pai, Filho e Espírito
Santo, Uno e Trino, e que Jesus nascera para nos salvar e que se alguém cometesse pecado
mortal ia de cabeça para baixo para o Inferno, que era um lugar com lume a arder onde o
demónio, que era todo preto, empurrava os pecadores com uma forquilha bem lá para o
fundo. A este pensamento, Humberto prometia ser bom até ao resto da vida, que não diria
mais nenhuma má-língua e não ia bater na irmã Celestina que lhe atazanava o juízo todos
os dias, que não diria mais mentiras à professora, Dona Jucelina, e que jurava nunca mais
tirar moedas de serrilhas e dois e meio da caixinha de madeira que o pai escondia por detrás
do frontal do quarto para ir comprar bolachas maria à loja do Tio Pedro.
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Mas lá no fundo ficava mais aliviado à ideia de que se cometesse algum pecado de
guedelha ir-se-ia ajoelhar no confessionário, e que o senhor padre Dinis lhe daria a absolvição
mandando-o rezar, como castigo, um terço inteiro.
seixo review | outono/fall 2005
Mas, numa tarde à saída da igreja e depois de ter prometido à menina Natividade que
ia rezar todos os dias ao Anjo da Guarda antes de se deitar, encontrou José Pereira, um
seminarista seu amigo, e, juntos, foram subindo a ladeira de terra até casa de sua mãe.
Bateram à porta. Quando esta apareceu, José Pereira disse:
“Sabe, senhora Joana, ’tou a gostar bastante de estar no seminário. Aprende-se coisas
novas, diferentes, e sabe-se latim que é a língua que a gente fala nas missas. É difícil e cada
palavra tem uma certa maneira de se pronunciar. Depende se vem no princípio, no meio, ou
no fim da frase. Como rosa, que se pode dizer, rosa, rosae, rosarum e assim por diante”.
As palavras martelavam na cabeça de Humberto e
ressoavam, luminosas. Rosa, rosae, rosarum. E ele que só
conhecia rosa como nome de mulher ou flor do quintal. O
seu corpinho de rapaz estremeceu. Tanta coisa que ele não
sabia. Enfiando as mãos nos bolsos das calças começou a
contar pelos dedos; porque é que os barcos que chegavam
ao porto se aguentavam por cima de água, e o avião em
forma de galocha que passava uma vez por semana a rasgar
os céus com um risco branco se aguentava no ar, sem cair,
© eduardo bettencourt pinto
e também como é que a irmã Jorgina, que ele tinha visto
nascer escondido no quarto, não tinha morrido, afogada
sem respirar, dentro do corpo da mãe, e as galinhas de vavó velhinha ponham ovos e nasciam
pintainhos amarelos, e como é que as abelhas que zuniam nos goivos e nas ervilhas de cheiro
faziam o mel, e porque é que a burra que o levava para a quinta estava tão gorda e sempre
que ele falava nisso o avô José desviava a conversa e … Erguendo o peito franzino decidiu
que iria para o sítio onde rosa tem vários nomes e se aprende a dizer Homem.
Humberto sentou-se na soleira da porta junto a sua mãe. Com a boca seca e a garganta
apertada disse-lhe que queria ir para o seminário.
Dois meses depois, numa noite quente de Setembro, partiu num vapor muito grande,
pintado de preto e com uma chaminé amarela por onde saía, aos soluços, fumo cinzento.
Levava consigo uma caixa de madeira feita pelo pai. Da amurada foi dizendo adeus à mãe e
aos irmãos que lhe acenavam adeus do cais. Todo encolhido, engolindo lágrimas misturadas
com gotas de sal que lhe salpicavam a cara, foi esconder-se num canto e chorou. Tinha dez
anos. Esse dia ficou-lhe para sempre na alma.
Humberto chegou um dia depois, exausto, a uma casa grande na ilha Terceira. À entrada,
homens de batina preta e com caras de pedra abriram o portão. Disseram-lhe que o seu
rumo começava ali.
Foi nesse seminário que durante anos soletrou o verbo crescer mas onde foi perdendo
aos poucos a capacidade de rir.
Alguns anos mais tarde viu uma rapariga com cheiro a madrugada e a orvalho. O seu
corpo rijo de moço tremeu e, pela primeira vez, sentiu-se um homem. Nesse dia à noite
escreveu a carta mais importante da sua vida: disse para casa que o fossem buscar. O pai
compreendeu. Sua mãe fechou as janelas e vestiu a casa de luto.
No regresso, Humberto percebeu então que já sabia conjugar todos os nomes diferentes
de rosa, que tinha aprendido o sentido profundo das coisas à luz da Física, da Biologia e da
Matemática, estudara a existência do homem em Filosofia, questionara Deus, mas tinha-se
esquecido de ser menino.
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neves e SOUSA
Amboim - Moça da Gabela
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Na reedição de Ovatyilongo,
de Jorge Arrimar*
josé CARLOS VENÂNCIO
H
á vinte e seis anos, então recém-chegado à
Universidade de Mainz com o intuito de
aí prosseguir os meus estudos no Instituto
de Etnologia e Estudos Africanos, passando em revista
a bem apetrechada biblioteca do instituto, deparei com
um exemplar do livro que ora se reedita. Fiquei naturalmente surpreendido e não pude esconder um certo regozijo. Dava os primeiros passos num mundo que me era
ainda estranho e, surpreendentemente, segurava, entre
mãos, o testemunho de uma vivência literária, por mim
igualmente partilhada, que julgava desinteressante para ser, de alguma forma,
para ali convocada, em terras de Hölderlin, Goethe, Kant, Hegel e de tantos
outros, escritores, intelectuais, filósofos … que aprendêramos a venerar pelo
suposto e elevado contributo à formação da chamada cultura ocidental.
Ovatyilongo (Gente da terra), a obra em questão, era um pequeno livro
de poesia, modestamente produzido numa pequena cidade do interior da
Angola colonial, a então cidade de Sá da Bandeira. Registe-se o facto de que
nem tão-pouco o havia sido em Luanda, a capital da colónia ou Estado, como
ela, numa engenhosa operação de retórica, passou a ser referida na revisão
constitucional de 1972. Não! O livro havia sido produzido numa cidade da
província da que também era designada por província de Angola. Era um
produto cultural de uma pequena cidade que se perfilava como periférica em
função de dois centros urbanos, o de Luanda e o de Lisboa, que, à sua maneira
e dimensão, também eram periféricos. Mas estas são outras questões.
Ovatyilongo testemunhava a vivência de uma geração que José Luís Garcia,
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em artigo publicado na revista Vértice (86, 1998) desig- fundo etnográfico dos poemas antologiados exigia, por
nou por “geração universitária dos Cadernos de Poesia do outro lado, que sobre eles se debruçasse alguém que fosLubango (1971-75)”. Era esta constituída então maio- se conhecedor da cultura, da história e da literatura oral
ritariamente por estudantes dos Cursos de Letras da do povo Nhaneca (Muíla e Gambos). De referir que a
Universidade de Luanda (hoje Agostinho Neto), na sua literatura angolana era, na altura (e não deixou de o ser
maioria de origem europeia, que, conscientes da situação hoje) uma literatura marcadamente urbana, reproduzincolonial vigente, num acto que não deixava de ser tam- do experiências de vida referidas sobretudo à cidade de
bém de rebeldia, juntaram a sua à voz dos mais despro- Luanda, pelo que o tratamento de tais temáticas repretegidos, que o mesmo será dizer, à grande e silenciosa sentava uma novidade, que, aos olhos dos mais incautos
massa dos colonizados.
ou dos que entendiam a literatura numa perspectiva arJorge Arrimar era um destes activistas. A sua histó- reigadamente nacionalista, poderia ser entendida como
ria de vida importava, porém, especificidades que não uma rotura em relação aos percursos entretanto estabeencontramos na generalidade dos que compunham o lecidos. Não que Jorge Arrimar não fosse precedido por
grupo. Era de origem local, ou seja, nascera na Chibia, outros escritores e poetas. Lembremo-nos, para tanto, de
uma localidade próxima do Lubango, a cidade capital Castro Soromenho com Lendas negras (1936), Histórias
da província da Huíla. Como esta cidade, a terra natal da terra negra (1960) e Noite de angústia (1960) e sobrede Jorge Arrimar havia sido fundada por colonos ma- tudo de Ruy Duarte de Carvalho que, entretanto, já havia
deirenses, aos quais se juntaram
publicado Chão de oferta
(Luanda 1972), galardoalguns bóers, gente de Serra
ado com o Prémio Mota
Abaixo oriunda do povoamento
Veiga de Poesia, o mais
pernambucano de Moçamedes
importante galardão lite(1849-50), e ainda agricultores
rário da então colónia de
deslocados do concelho da Huíla,
Angola.
atraídos pelas margens férteis do
Se Castro Soromenho
rio Tchimpumpunhime. Arrimar
era entendido como um
é, por conseguinte, descendenescritor português, sobrete desse conjunto de pioneiros
tudo no que respeita aos
de Oitocentos, qualidade que
títulos de índole etnográhonrou, enquanto investigafica, onde a reprodução
dor de História, com o livro Os
Aguarela de Mário Leitão “Mariot”
Bettencourt. Da ilha da Madeira ao
do pensar e da mundivipara
a
capa
da
reedição
de
“Ovatyilongo”
planalto da Huíla (Funchal 1997).
dência dos africanos é, de
Quando Jorge Arrimar se aproalguma forma, marcada por
ximou do núcleo de estudantes dos Cursos de Letras um olhar exterior, o mesmo não se poderá dizer de Ruy
não era propriamente um principiante nas lides literá- Duarte de Carvalho, cuja obra posterior vem, aliás, conrias. Havia sido um dos fundadores do GRUCUHUÍLA firmar e explorar, à revelia das tendências dominantes na
(Grupo Cultural da Huíla) e dirigia o suplemento lite- literatura angolana, o que Chão de oferta prenunciava no
rário do Jornal da Huíla, onde começou por publicar os que respeita à apropriação e descrição dos espaços rurais.
seus primeiros poemas. A aproximação àquele núcleo de Títulos como Sinais misteriosos … já se vê … (1979) e
estudantes veio a permitir uma maior articulação deste Ondula, savana branca. Expressão oral africana (Lisboa
grupo às forças progressistas locais, facto que Os Cadernos 1982) vão nesse sentido.
Jorge Arrimar reproduzia a vivência secular dos desde Poesia de que fala José Luís Garcia dão nota.
É por esta altura que o livro de poemas Ovatyilongo cendentes dos colonos do planalto da Huíla, entregues,
(Gente da Terra) é publicado com um prefácio do Pe. desde a chegada, ao seu próprio destino, vendo-se, assim,
Carlos Estermann, missionário e etnólogo, internacio- forçados a conviver e a aprender com os locais. Nessa sua
nalmente reconhecido, que nós, estudantes, nos habitu- deriva, geraram uma maneira de estar e cultura próprias,
áramos a respeitar pelo recorte anti-colonial que a sua muitas vezes perpassadas pela assunção do bilinguismo,
obra, nessa dupla faceta, não deixava de patentear. A sua o que nem sempre mereceu a devida atenção por parte
escolha como prefaciador não poderia ter sido melhor. O das autoridades coloniais.
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Esta mundividência é reproduzida em Ovatyilongo,
como a seguinte quadra do poema “A mais velha da
Capunda-Cavilongo” disso dá sinal:
“Quando os carros boers faziam volta em redor
daquelas enormes fogueiras que se viam de longe
ela, Tyalufinga nDungu, contava aos meus avós
as histórias dos kimbandas do seu povo, agora meu!
P
ara além da evocação da inevitabilidade do convívio entre os dois grupos humanos em apreço,
registe-se a assunção nacionalista do autor, uma postura
que se repete, aliás, ao longo do livro, sobretudo quando
evoca outras figuras, outros saberes e memórias dos mundos tradicionais angolanos para além do dos Nhanecas.
Entre os poemas antologiados em 1975 e os actuais,
escritos trinta anos depois sobre as mesmas temáticas, sobressai uma primeira diferença que é a que, naturalmente, decorre do amadurecimento do seu autor. Poder-se-á
acrescentar uma segunda diferença, que tem a ver com
a “deriva lusófona” por ele experimentada nestes trinta
anos. Residindo actualmente em Almada, razões profissionais levaram-no aos Açores e a Macau, espaços que,
aquando da escrita de Ovatyilongo, não estariam – acredito – no horizonte do jovem poeta, mas que marcaram
indelevelmente a sua história de vida. Se tal experiência
não é directamente perceptível na reescrita do livro, o
certo é que o amadurecimento e o distanciamento em
relação ao objecto inicialmente descrito, notórios nessa
mesma reescrita, não podem deixar de ser igualmente
imputados à vivência nesses lugares. Deste ponto de vista, o percurso literário de Jorge Arrimar consubstancia,
mais pela prática do que pela intenção, um dos roteiros
possíveis da lusofonia, compatível com o roteiro doutros
escritores angolanos, como José Eduardo Agualusa e
Inácio Rebelo de Andrade.
Uma terceira diferença pode ainda ser apontada.
Refiro-me à que deriva da mudança dos tempos. Pensar
África nos anos 70 do século passado e hoje não é a mesma coisa. Muito aconteceu entretanto. A descolonização
dos últimos bastiões coloniais, o fim do apartheid, o acentuar da globalização e da mundialização das economias e
das sociedades e a assunção, sobretudo no Ocidente, do
multiculturalismo como modelo e propedêutica de vida
são algumas das mudanças acontecidas e que, mesmo sob
forma diluída, não poderiam deixar de estar presentes
no Arrimar que, após trinta anos, revê os conteúdos e
as formas que consubstanciaram o seu primeiro livro de
poesia. É um poeta mais solto, livre de peias civilizacio-
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nais, que ora dialoga mais abertamente com quem, afinal, já dialogara de igual para igual. Refiro-me sobretudo
aos Nhanecas, cuja mundividência procurou reproduzir
em 1975. “O que não deixavas ver/era a silhueta de uma
vergonha ancestral,/a antecipação do peso a transportar/nas cacundas da vida.”, di-lo na reescrita do poema
“Proposta”. Mais adiante, no mesmo poema, assumindo, de forma empenhada, aquele que será o destino de
Sapalo (a personagem é do poema de 1975), diz:
“Já oiço o chocalhar
das vagens secas que trazes nas pernas
como argolas, quando danças a despedida
do tempo infantil, da idade despreocupada.
E sobre o chão onde os teus pés desenham
o leito por onde corre o rio da vida
quero ser eu a cobrir-te os rins e as nádegas
Com a flor rubra do aloés.”
Se a reescrita se alimentou de algum distanciamento em relação ao objecto narrado, paradoxalmente, pelo
menos neste poema, Arrimar junta ao seu o destino de
Sapalo. Evidentemente que o faz simbolicamente, tendo
de permeio a referida mudança conjuntural, mas fá-lo, e
ao fazê-lo nestes precisos termos, universaliza a relação
em apreço e, consequentemente, a sua própria maneira
de estar no mundo enquanto escritor e poeta.
*Prefácio da edição comemorativa do 300 aniversário
de Ovatyilongo, no prelo.
Victor RUI DORES
launches his novel
“A Valsa do Silêncio”in Toronto
ilda JANUÁRIO
On May 22, 2005, on his 47th birthday,Victor Rui Dores, the well-known and popular author from Graciosa Island, launched his first novel, A VALSA DO SILÊNCIO
(The Waltz of Silence) in Toronto. In addition to presenting his book, he delighted
his audience with the talk entitled “The best thing in Graciosa are its people”.
A gifted communicator,Victor Dores observes island characters and their names,
practices, sayings and other features of the island’s popular culture with an
almost ethnographic zeal. It was a book launch marked by great spirits and
the joy of evoking the cradle island, which in the book is also an island
of refuge for the protagonist.
A
73
s many lined up to get their copy of the book signed, I
wondered if the book’s content would be accessible to most of
these readers. It is. Without abdicating from a certain sophistication of language, ideas and concepts, the book reads easily.
The cover is showy. Designed by Álamo de Oliveira, another
well-known Azorean author and graphic designer, the cover promises sex. And sex is delivered, starting with the first
chapter. But the book offers more. The author proposes to “rehabilitate love”, “question some concerns and perplexities of
our times: fanaticism, injustice, globalisation, etc”, and lastly,
“register and evoke trajectories of a life lived and dreamed of ”.
The life lived is modeled on the author’s, given that the stages
for the story are the island (Graciosa) and the big city (Lisbon) where the plot unfolds with a few other “islands” here
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and there: hotel rooms, a cruise
ship and a stay in Japan.
The protagonists are Augusto,
a piano teacher at the conservatory, who aspires to be a concert
pianist and a writer, and Raquel,
a high-class prostitute whom he
meets while traveling to a different city. Augusto is an attractive
man; well-read, sensitive, and a
tad addicted to tobacco, whisky
and women. There are several
women in his life, and his best
friend describes him as a hedonist, analysing in detail Augusto’s almost-genetic capacity for
romantic crushes fueled by an
insatiable libido.
After a few meetings, it becomes obvious to Augusto
and Raquel that they are extremely compatible in bed
and emotionally. But he is married with no children, and
Raquel is separated with a daughter. She is lacking in
formal culture and her occupation in no way reflects her
high intelligence. They become friends as well as occasional lovers. Their lives run on parallel tracks with meeting points along the way, while they reach towards their
aspirations. The greatest challenge Raquel has set herself
is to leave prostitution behind, for Augusto has touched
her soul. Augusto wants to leave behind the obscurity
of the piano teacher’s life, give concerts, cut a CD, and
publish a novel. He eventually succeeds in all these goals.
Then there is a new challenge that he does not confront
with the same awareness and determination: how to reconcile his erotic and professional aspirations with life as
part of a couple.
Meanwhile, in a different part of the city, Raquel
finishes her secondary studies and enrolls in bar studies, becomes a lawyer and gives herself over entirely to
her new profession. She is faithful to Augusto until she
meets and eventually marries another mature student,
also of modest origins but equally motivated to educate
himself.
The silent waltz referred to in the book’s title is one
where the most prominent instrument is the triangle, the
love triangle. The challenge the author poses himself is
to “rehabilitate love” by the love triangle. He describes,
through Raquel’s journal entries, how the sensibilities
and perceptions of man and woman differ in the way
each react to the tacit agreements within their relation-
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ship. It is these differences
that lead Augusto’s partners to leave him.
In Japan, Augusto’s
encounter with a geisha*,
couched in readings in
oriental philosophy, highlights his loneliness and
brings about his psychological maturation. Augusto matures and chooses
his life partner: “Augusto
had changed. His logic
was [no longer] cherchez
la femme**”. He has found
the love of his life, attained
the professional success
towards which he worked
so hard and will probably have children. But a reader
with some life experience will ask: what will happen to
Augusto and his life love ten years hence, when the romantic part of the relationship will have subsided and he
is still on tour? Will he be in the throngs of a middle-age
crisis or reaching retirement age? The author was astute
enough never to state the protagonist’s age …
The book suffers from some plot inconsistencies such
as the disparity between the time it takes Raquel to complete her course and the time it takes Augusto to cut his
CD and spend time in Japan as a concert pianist. The
very cyclic structure of this novel points to an ambivalent ending. Dores initiates and finishes the novel with
a couple dancing silently to an imaginary waltz in the
intimacy of a bedroom. The waltz which we would all
also like to dance, as beautifully as possible, within the
cities where we fight our challenges while taking refuge
in mythical islands created by our love bonds. And one
could say that the “happy” ending in this novel could be
judged happy only on first impression.
(*) geishas are highly trained, paid and disciplined entertainers and courtesans who cannot give themselves to
open demonstrations of jealousy.
(**) “cherchez la femme” (search for a woman). Expression originated by Alexandre Dumas to designate a
problematic situation, the resolution of which points to
the involvement of a woman; and later, of women as a
social group.
“Lugares, Sombras e Afectos”
lélia PEREIRA da SILVA NUNES
O poeta goza deste incomparável privilégio
de poder ser, a seu bel-prazer, ele próprio e outrem.
Como essas almas errantes procuram um corpo,
ele entra, quando quer, na personagem de cada
um”.
(Baudelaire, in: Petits poèmes en prose –XII,“Les
Foules”)
u
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Um domingo outonal, cinzento, cheio de nuvens carregadas sufocando a tarde que passa sem pressa, numa ”lezera” só, que até o
Vento Sul, velho companheiro, chega lânguido e num afago ao pé
do ouvido geme sedutoras fantasias e sussurra mil segredos de longínquas geografias, de terras de brumas, negras, num sopro equóreo
das espumas como cantou Cruz e Sousa em onomatopéias de sua voz
e sons peregrinos da imensidão. Chega chiando e cantando novidades da primavera insular, falando da íntima cumplicidade entre as
letras e as linhas que falam da vida, da paixão, do sofrer, do chorar,
do sorrir, de encontros, de partidas, do mar e de cenários telúricos
retratados nos textos poéticos de Urbano Bettencourt e desenhados
pela pena apaixonada de Seixas Peixoto.
Foi assim que recebi, na Ilha de Santa Catarina, Lugares, Sombras
e Afectos, de autoria do reconhecido poeta Urbano Bettencourt. Não
pegou carona e nem veio ao sabor do vento. Atravessou o espaço que
nos separa em tempo real, apesar do fuso horário, flanando nas asas
do correio eletrônico.
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Admirável resultado. Uma arte de poetar segura, um
percurso com imagens ora sedutoras, ora ternas, carregadas de metáforas que intrigam, provocam e conquistam o leitor. Mas, se para Mallarmé, deve sempre haver
enigma na poesia, Urbano Bettencourt com astúcia arma
um constante desafio e leva-nos a degustar com calma,
assimilando palavra por palavra, sílabas, sentidos, sentimentos quase numa ruminação da instigante busca na
percepção das vertentes sugeridas ou a desvendar.
Um desafio que está no próprio título: Lugares, Sombras e Afectos. Está tudo ali. Tão simples como o ato de
abrir uma janela para contemplar o mar em ruidoso colóquio amoroso com as pedras negras do Calhau. Tão
essencial como a essencialidade das três palavras que
encerram o maior significado desse círculo tríade formado por lugares de vivências plenas, de partilhas do seu
íntimo e da matemática dos afetos potencializados e exteriorizados no lapidar da palavra. Dá mostras, desde o
título plural, do seu gosto de lutar com as palavras e de
dizê-las por inteiro, num estilo que lhe é peculiar.
Seixas Peixoto, o artista da cidade do Porto que há
muito se enamorou por São Jorge e hoje namora a ilha em
quadros, como conta Onésimo T. Almeida (Onze Prosemas e um final merencório, 2004:28) e o próprio pintor,
que considera os Açores o destino que melhor acolhe sua
alma, acompanha Urbano Bettencourt neste percurso. Um a pintar poemas, outro a escrever pinturas. Da
pena de Seixas Peixoto a primeira leitura dos seus textos
em linhas e traços singelos, firmes e cheios de paixão a
emoldurar os poemas num encontro de linhas e letras.
Tangido pela sensibilidade, usa da pena para expressar,
no tom negro da rocha vulcânica, em linhas oníricas a
criação poética igualmente onírica e lírica. Cumplicidade
pura de traços, caracteres, vozes e olhares como revela o
autor da página vestibulanda: Afinal, há por detrás de tudo
isso mais de uma década de convivência e cumplicidades (...),
estes terão sido anos em que pintor e poeta puderam, em certa
medida, ler o mundo pelos olhos um do outro, e nesse jogo
cruzaram cercas e fronteiras em busca de um espaço de criação
e liberdade. Está dito. Ambos estetas por definição que
deixam descortinar a vida na plenitude da sua arte.
No texto inaugural, a apresentação embrenha-se em
trilhas d’alma, visita cenários de infância, na casa ancestral do Calhau, na freguesia da Piedade, na Ilha do Pico.
Numa imersão visceral no microcosmo, busca respostas
nas lembranças de ontem. O poeta onisciente metamorfoseia-se na figura terna do avô, António de Ávila Bettencourt, o traz do passado, dá-lhe voz e o faz portador
das respostas às suas indagações e inquietudes do pre-
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seixo review | outono/fall 2005
sente e perscruta o amanhã, em depoimento poético de
compreensão da vida e da alma humana, num olhar de
dentro desse universo endógeno. Pela mão do avô, caminha por sua memória e sentimentos, desafia fantasmas
interiores, regressa cheio de saudades e afetos a lugares e
sombras de suas ilhas.
Na tessitura da obra, o entrelaçamento de fios tecidos pelo poeta. Suspensos fios ou em trama bordados
nas lembranças tomadas pelo espírito do lugar, por mundos circundantes, pela saudade ancorada na sua história
de vida e em geografias partilhadas, como no tributo de
amor a Ilha de São Jorge; um sentimento que já expressara, anteriormente, em O Gosto das Palavras III (1999),
na crônica, em que relata a rápida visita à Ilha. Agora,
o faz de forma pungente em “Urzelina”, esta freguesia
que conheceu dias de inferno em 1808 e sentiu o aroma
cítrico dos laranjais a penetrar-lhe os poros em dias de
Maio:
São de fogo ainda os olhos
dos peixes sob estas águas rubras
em mil oitocentos e oito,
e selectas as laranjas
desse Maio, suspensas
entre ramo e o gesto de colhê-las
( Laranjas de sangue
quem as colherá?
Nanja o Roberto,
que não é de cá).
(...)
No desenho de Seixas Peixoto, a expressão desse
amor. Lê-se o poema, encontra-se o desenho. Olha-se
o desenho, descobre-se o poema e o próprio poeta. Sim,
nada de assombros. Não se trata de mera semelhança, é
o próprio Urbano sob a ótica de Seixas Peixoto, inserido
no contexto pictórico da obra.
Outra vez, o Pico ao fundo, majestoso, as laranjas em
fios pendentes, a pena do pintor onipresente, e as bagagens depositadas ao chão, cenário de “Postal de São
Jorge”, essa ilha mítica de tantas histórias fiadas à luz
do luar ou do lume, noite adentro. Sim, o jeito de estar
daquela ilha sem pressa vendo a sombra do tempo passar,
pintada com muito humor.
Em poesia o que se lê não são apenas palavras escritas, grafadas e o que elas evocam. É muito mais. Busca-se
ampliar ao máximo o significado dos vocábulos e sintagmas. Urbano Bettencourt mostra com seu talento e, também, com labor poético, a sua busca, e sugere outros, por
meio do ritmo das frases, das figuras de linguagens, das
alusões e das dissimulações que fazem pensar na ques-
tão da heteronímia, que na literatura portuguesa tem em
Fernando Pessoa uma referência.
Uma poesia que se espraia, que navega livre em mar
revolto, alto mar de profundidades rochosas ou de alva
areia e vai banhar-se em ondas salgadas de saudades em
outras terras e continente – o africano, que é um pouco
seu também. Da singular mundividência, poemas que
abraçam, que enlaçam como pontes de afetos fecundos e
remetem a distanciamentos ou a desejável aproximação,
em intimidade com as Ilhas numa viagem para dentro de
si e da terra –“da ilha e para ilha” (e para além).
Aí está o poeta frente a outras latitudes, a pensar na
pluralidade cultural, a comungar a diversidade, a viajar
por portos de suas memórias e atracar ou a percorrer lugares de vivências: a Guiné (“A persistência da memória”), as Canárias, de “La Gomera”:
Uma ilha assim, só perfil
e nome
ou lume de farol fugaz,
é um gomo de mistério
na sua casca de cinza
e noite.
(...)
É claro, e Cabo Verde “uma (con)sequência” (onde
o poeta vai encontrar também um Calhau, tão íntimo e
despojado como aquele em que nasceu nos Açores), em
laços de afinidades, de trocas substanciais, de intertextualidades e imaginários insulares históricos da Macaronésia. Momentos intensos, convivências, fortes o suficiente
para marcarem para todo o sempre a sua trajetória de
vida. É o que revela em “Um fio de água ou de música” em texto sobre uma noite passada em Mindelo, nas
suas linhas derradeiras: Já não presenciarei esse momento,
mas posso, intimamente, antecipá-lo e torná-lo meu também,
graças às breves frases musicais que agora flutuam e se consomem na manhã de domingo e me ligarão para sempre a
Cabo Verde.
Uma profunda ternura que vem da escrita, mesmo
no humor, na sátira e na sutil ironia, no jeito de olhar
o ser humano, sobre e em qualquer circunstância. Um
olhar que vai mais além e que reafirma valores preciosos da vida, do ser, do estar, de identidade, de dignidade,
de lealdade, de amizades cristalizadas como a espelhada
em “Variações (em tom menor, é claro) sobre a poesia
de Eduardo Bettencourt Pinto”. Trata-se, com certeza,
de variações em tom maior. Num crescente “allegro”, em
três tons, no compasso de vivências, marcadas pelo ponteiro do metrônomo da vida. Para completar, encontra-
77
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se guarida no próprio Eduardo Bettencourt Pinto, na
frase citada por Daniel de Sá, em recente crônica e que
me atrevo copiar: A mais profunda solidão poderá tomar
forma de ave e desaparecer na brancura da página.
Ainda em versos de ternura infinita, de intensa intimidade, deixa fluir a voz do poeta-pai no amoroso diálogo com suas filhas em imagens que falam de si com alma
desnuda. Uma poesia que cresce à sombra de lugares e
afetos.
Leia-se em “De Luz e Sombras”:
Talvez não saiba dizer-te como doíam
os meus catorze anos,
nesse tempo em que também eu procurava
o lugar onde melhor situasse
o meu corpo e o meu olhar
sobre as coisas,
ou como a vida sempre me pareceu
mais estreita que o meu desejo
e nesse conflito o mundo era apenas um jogo
de sombras lançadas contra a luz que eu buscava.
(...)
Esta é, efetivamente, uma poesia de regressos e reencontros, de pertencer a um lugar, de quimeras e de realidades de ontem, de hoje e de amanhã que chegam na
escrita e no desenho retratando momentos de plenitude
como os movimentos sublimes de “As quatro Estações”
de Vivaldi, uma após a outra, todas com suavidade, intensidade e paixão.
Na apresentação do conjunto de “Alguns poemas de
Wang Yong” suas palavras tocam por ele, numa linguagem expressiva e numa forma mais contida, econômica e
que, por isso mesmo, diz muito mais. Tal como em “Seqüência breve amatória-2 ”.
Há uma lua no lago do teu peito,
uma flor de lótus entre os dedos.
Que rio sulca os teus flancos
buscando as pedras e os frutos?
As rosas-de-junho acendem a manhã,
uma lágrima as devolve à cinza do abismo.
“Os Paraísos Superficiais”, título que dá nome a
um conjunto de três poemas, carregados de metáforas
de notável complexidade como Baudelaire utiliza em
“Les Paradis artificiels”(1858), satisfações momentâneas para fugir da mesmice existencial, independente das
conseqüências. Um canto do vate num viés de ironias, de
perspicácia com sabor ilhéu, colocado de forma jocosa,
caricata, frontal na crítica e verdadeira no ser.
Poeta consistente, original e coerente na defesa da
territorialidade da literatura açoriana (a que Vamberto
Freitas chama de uma estética da territorialidade, in: A Ilha
em Frente,1999:15-29) , numa compreensão do sentido
de pertencer a um território que tem o mar por fronteira,
que é referência da sua identidade cultural. Enfim, por
ser parte do cânone literário de dentro e fora dos Açores,
por outros mundos, sociedades e culturas.
Ao seu lado, a pena de Seixas Peixoto navega livre,
corporifica nos traços a poesia visual, numa comunhão
plástica que acrescenta e desvenda a sua alma e a do poeta que conhece tão bem. Uma sinfonia de encontros, de
cumplicidade dos olhares que transparecem na pungência dos desenhos, ali ilustrados, a dar vida às formas e
figuras que emergem da criação poética de Urbano Bettencourt. Uma dicotomia que deve continuar... Mas isto
já são “milhas contadas” como diz o dito popular e que
Dias de Melo eternizou.
Voltei ao texto, vezes sem conta, num “torna-viagem”,
e me impregnei com a sua voz, deixei a mente livre, a
emoção tomar conta e senti a ressonância das fagulhas
polissêmicas do poema/poeta por inteiro.
De “Como se o mar não fora”
(...)
Elas também por mim passaram, e as mãos
que partiam o pão
desenhavam de igual modo os Anjos do Fogo
e a sua perdição;
mas hoje redimem-se
no gesto que em mim repetem de tocar de leve a pele
dos figos, a sua flor mais secreta.
Ou ainda como em “Fragmentos encontrados numa
garrafa dada à costa” e que abre o conjunto dos textos
poéticos Lugares, Sombras e Afectos:
1. Traziam a tenda Pela tarde
a sombra crescia sobre os corpos
78
- que história morre agora
nesta página?
seixo review | outono/fall 2005
2. Assim perdia o derradeiro aceno
passara o tempo do amor e do vento
- foi isto em que porto
em que morte?
Um livro que continuou junto mesmo depois da última página, alimentando a alma e aguardando em ponto
de espera, porque Urbano Bettencourt terá sempre muito que dizer na sala de aula, como professor de Literatura
Açoriana e de outras Literaturas, e como poeta na prosa
ou no verso.
Ilha de Santa Catarina
11 de abril de 2005
dePOIMENTO
Sobre Florianópolis a 10ª Ilha dos Açores
– o encontro das origens
joel PACHECO
F
lorianópolis, a 10ª Ilha dos Açores – o encontro das origens é o título coloquial desta
obra que revela a presença das raízes açorianas na capital
catarinense. A obra busca não só resgatar e divulgar a
herança cultural açoriana em Florianópolis, mas apresentar um conteúdo diferenciado. A particularidade está
em estabelecer um comparativo fotográfico, indicando
de maneira didática e direta, através da imagem e textos enxutos, semelhanças e também diferenças culturais
entre Florianópolis e algumas das principais cidades do
Arquipélago dos Açores – região de origem, dos colonizadores do litoral catarinense que sucederam aos indígenas e vicentistas.
Este paralelo histórico-geográfico é fruto de
pesquisas do arquiteto e fotógrafo que reencontrou sua
herança cultural açoriana no Arquipélago dos Açores,
durante a participação no Curso “250 Anos Depois-Ao
Encontro das Raízes Açorianas”, onde pode usufruir de
festas populares, lugares de tradição, gastronomias típicas, práticas religiosas, arquitetura, paisagens pitorescas
e ambientes exuberantes e preservados. O reflexo desta
origem ainda é flagrante no cotidiano de Florianópolis.
A obra está estruturada com o seguinte conteúdo:
1. Situação geográfica do município de Florianópolis e do arquipélago dos Açores no mundo;
79
seixo review | outono/fall 2005
2 .
Composição cartográfica do
município de Florianópolis
e do arquipélago dos Açores
com as principais localidades e escala gráfica de
cada mapa;
3. Apresentação feita pela Direção Regional das Comunidades – Açores e Prefácio realizado pelos
dirigentes dos órgãos apoiadores;
4. Históricos do município de Florianópolis e do arquipélago dos Açores;
5. Texto sintético sobre a geografia, o clima, a flora
e a fauna do município de Florianópolis e do
arquipélago dos Açores;
6. Miolo com imagens e textos sobre arquitetura
militar, arquitetura civil, arquitetura religiosa,
paisagens típicas, embarcações, festas religiosas,
manifestações folclóricas, pessoas, etc …;
7. Bibliografia e agradecimentos.
O livro tem 64 páginas coloridas e ilustradas
com 400 fotografias em papel couchê fosco de 170grs
com acabamento de costura.
A parte superior de cada página mostra Florianópolis; a fração inferior, em azul, mostra Açores. O
assunto está sempre rebatido em cada tema abordado:
paisagem, flora, fauna, arquitetura, gente, religiosidade,
embarcações, etc … O formato fechado do livro é de 25
x 30 centímetros, com lombada quadrada e capa dura,
em papelão pinho N20 de 1953grs e revestida em papel
couchê fosco de 150grs, com aplicação de verniz UV localizado.
Esta obra foi concebida com o intuito de atender
a uma lacuna de informação histórico-cultural, existente
no seguimento escolar, que atinge desde o ensino infantil ao ensino médio. O livro já foi adquirido pela grande maioria das escolas particulares, escolas municipais e
muitas universidades da grande Florianópolis atingindo
um público estudantil estimado em 80.000 alunos distribuídos em mais de 30 instituições de ensino.1 E está
sendo também, comercializada em livrarias, museus, fundações de cultura e nos principais aeroportos do país.
Florianópolis a 10ª Ilha dos Açores – o encontro das origens tem sido um surpreendente sucesso de
distribuição. Acreditamos que isto se deva ao forte apelo
à identidade e à diversidade. A necessidade de aproximação das pessoas, de se reconhecerem no outro, de perceberem na paisagem e nos costumes a presença de raízes
comuns toca o coração de muitos, alegra, entusiasma,
interessa.
Aparentemente uma região pouco conhecida pelo brasileiro, os Açores são, na verdade, uma das
origens migratórias mais importantes do período colonial brasileiro, deixando referências que vão do estado
do Maranhão ao Rio Grande do Sul. Por outra parte,
Florianópolis, que ainda concentra a vitalidade histórica desta onda migratória oitocentista, também é cidade
pouco conhecida pelos portugueses das Ilhas, que hoje
tem maior facilidade de intercâmbio do que os seus antepassados tiveram.
A convite do Governo Regional dos Açores e
através da Direcção Regional das Comunidades, o livro
foi lançado em meados de Julho de 2005, no encontro
“Construir Cultura” na cidade de Ponta Delgada – Ilha
de São Miguel e no encontro de jovens 2005 – “Ser é
Influenciar” na cidade de Horta na Ilha do Faial – Açores-Portugal.
Escolas que já adquiriram a obra: Escola de Turismo
- ASSESC; 2-Centro Educacional Ensinarte 3-Centro Educacional Lucaz 4-Centro Educacional Menino
Jesus; 5-CESSUSC Colégio Cruz e Sousa; 6-Colégio
Adventista; 7-Colégio Arte Vida; 8-Colégio Autonomia; 9-Colégio Catarinense; 10-Colégio Continente;
1
80
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11-Colégio Coração de Jesus; 12-Colégio da Lagoa;
13-Colégio Dom Rafael; 14-Colégio e Faculdade Barddal; 15-Colégio Ilhéu; 16-Colégio Nossa Sra. de Fátima; 17-Colégio Santa Catarina; 18-Colégio Sarapiquá;
19-Curso e Colégio Dom Bosco; 20-Curso Elementar
São José; 21-Educandário Imaculada Conceição; 22Escola Cristã; 23- Escola da Ilha; 24-Escola Dinâmica;
25-Escola Guarapuvu; 26-Escola Jardim Anchieta; 27Escola Marco Inicial; 28-Sistema Educacional Energia;
29-Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL;
30- Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
31-Escola Vivência. 32-Colégio Antonio Peixoto 33Colégio Criativo.
|recensão
Luísa Ribeiro,
Outros Frutos
Granada: Dauro
(Edição bilingue português/espanhol)
luiz FAGUNDES DUARTE
E
tudo se passa como se de repente uma mulher chegasse ao pé de
nós e dissesse: “Sou poesia”. E
nós, lembrados do famoso grito de Natália Crreia – “Oh
subalimentados do sonho! A Poesia é para comer!” -, sem
nada mais podermos dizer, achamos que sim, e logo ali
nos sentamos, serenamente, como Eça de Queiroz disse
que fizera no dia em que conhecera Antero de Quental,
a ouvir esta poesia de carne, e sentindo cá bem dentro de
nós que gostaríamos de passar o resto da vida – ali
sentados ainda – a ouvi-la.
Tudo se passa como se Angra, e nós dentro
dela, deixasse de ser a Rua do Galo ou o Pátio
da Alfândega, ou a Rua do Pau São, ou o Alto
das Covas, ou a Praça Velha, ou a Memória – se
transformasse nas artérias por onde corre o
sangue quente de uma mulher que de repente
chega até nós e diz: “Sou poesia”.
E tudo é como se nós, sem nos precatarmos, olhássemos para tudo o que nos rodeia
e percebêssemos que afinal vivemos numa
cidade feita de sangue e carne – mas não o sangue
frio que nos remete para a morte, antes o sangue quente
que mantém viva a carne. Que se faz Poesia.
E é como se nos vasos, canteiros e quintais das nossas
casas, de repente, crescessem árvores que se desfazem em
frutos. Outros frutos, gerados no húmus, que não aqueles que nascem nas estufas que nos tiram o ar.
Mas, afinal, é tudo muito simples: a Luísa Ribeiro não
escreve poesia – descreve-se; não faz poesia – faz-se; não
nos diz que é poeta – diz-se. Como as maçãs que brotavam, cresciam, amadureciam e caíam da árvore, livre-
81
seixo review | outono/fall 2005
mente, ao ritmo das luas, no pomar que nos tempos da
fome o meu pai plantou na Serreta – para que aos filhos
não faltassem frutos que comessem.
Porque, como a Poesia, os frutos são para comer. Outros frutos sejam eles, como cada poema, cada verso, cada
frase, cada palavra, cada sílaba – cada vírgula – de um
livro da Luísa Ribeiro. Dela, como se fossem de Santa
Teresa de Ávila, de Virgínia Woolf, de Florbela Espanca,
de Natália Correia, de tantas mulheres subalimentadas
da vida que, para melhor saciarem a fome, se fizeram e
desfizeram em poesia – e se refizeram em
poemas.
Acho que nem Angra, nem os Açores,
nem Portugal descobriram ainda o pomar
em que a Luísa Ribeiro, como nas lendas
dos lobisomens, todas as noites, pelas luas
que mudam, se transforma em árvore que
dá frutos. E, como a árvore que no poema do
Génesis produzia os frutos da ciência do Bem
e do Mal –, com ela nos deparamos, vestida de
serpentes sedutoras, pronta a convencer-nos de
que há muita coisa à nossa volta que é preciso
v e r, e que nós próprios somos parte dessas coisas. Eu,
leitor, sou um fruto desta árvore, o que vale dizer que sou
um poema deste livro.
E cada um de nós, feito assim em poesia depois de,
como as borboletas da fruta, deambularmos pelo Éden
em que se transforma cada livro da Luísa Ribeiro, e este
em particular, dá de repente por si a gritar, como Natália,
que há sonhos que só podem ter corpo num poema – e
que esse poema pode ser o nosso corpo. A cada poema
da Luísa Ribeiro em que dou uma trinca – é como se
Luiz Fagundes Duarte no decurso da sessão de apresentação do livro “OUTROS FRUTOS” de Luísa Ribeiro,
no Palacete Silveira e Paulo, Angra do Heroísmo, em Abril
de 2005
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seixo review | outono/fall 2005
alguém me trincasse. E sinto-me um alimentado do sonho.
Com corpo.
Diz Nuno Júdice, no prólogo que escreveu para este livro,
que no fim do percurso se consegue “uma reconciliação do Eu consigo próprio”: Acho que
sim, porque como a Luísa o Nuno Júdice é um
grande poeta do silêncio – e, apesar do corpo
– do sangue e da carne quentes – que neste
livro se desfaz e refaz em 29 fragmentos – o
silêncio é a grande marca da poesia que nele
se encontra: uma mulher, que é poesia e pronto, percorre-se no silêncio, porque fala sem ter
respostas – descreve-se em silêncio, faz-se em
silêncio, diz-se em silêncio. Traz, como diz,
“a tragédia nos olhos fechados”: e como as
grandes trágicas, passa pelas gentes sem que
alguém, olhando-a a veja: “Passo entre portas
rasgadas no branco das paredes e ninguém me
vê passar no branco rasgado das paredes”.
E no entanto ela está lá.
E no entanto ela passa: temos estes seus frutos vertidos em espanhol, bem recebidos por
críticos espanhóis, e elogiados por portugueses que sabem da matéria. Temos uma poesia
muito humana e directa, à beira das emoções,
muito afastada da poesia asséptica, de laboratório, fria, que tem dominado o panorama
literário português.
Os textos de Luísa Ribeiro são poesia e
pronto.
São poesia no feminino, talvez.
Poesia que só lendo.
Sentindo.
Fernando de Lima:
O tempo e a escrita*
urbano BETTENCOURT
A
83
As circunstâncias editoriais que rodearam os textos de Fernando de
Lima, finalmente reunidos em livro1, trouxeram-me à memória a afirmação de Pedro da Silveira de que uma boa parte da Literatura Açoriana
continua clandestina. Referia-se ele àqueles textos e autores sepultados
no pó dos jornais açorianos, mas podemos pensar sobretudo nos que assinalam a transição do século XIX para o século XX: na verdade, o aparecimento e o posterior surto expansionista da imprensa açoriana vão a par
com a continuada presença de escritores nos jornais e nas revistas da altura, com o propósito, inspiradamente filho das Luzes e do romantismo,
de exercer a sua cidadania e ao mesmo tempo contribuir para a formação
cívica do leitor, do seu gosto estético, delimitando ainda as fronteiras possíveis do campo literário.
Bem mais complexo do que o deixa entender a breve formulação anterior, esse processo de comunicação envolve uma série
de gestos que passam pela divulgação de textos exógenos, de proveniência linguística estrangeira ou não, pelo discurso avaliativo
e crítico que ajuda a estabelecer as coordenadas de um sistema,
a enquadrar e a compreender a rede de conexões que no seu interior se estabelecem; esse processo de comunicação passa igualmente, e em idêntico grau de importância, pela criação literária
própria, que atesta a relação de proximidade de um autor com o
seu espaço e tempo imediatos e intensifica o grau da cumplicidade entre
autor e leitor. Deste modo, o jornal tornou-se o mais curto caminho para
a comunicação, e correspondia a uma necessidade de estabelecer contacto
com o público, como escrevia em 1883 o poeta Manuel Garcia Monteiro
no primeiro número do seu periódico O Açoriano: “Este jornal publica-se,
afinal, por uma razão muito simples: muitos gostam de possuir a sua casa,
como muita gente que escreve gosta de ter o seu jornal.”2 Se ressalvarmos
as diferentes circunstâncias históricas e também o diferente grau de facilidade no acesso aos meios e na concretização de projectos, bem como
a diversa natureza dos suportes da comunicação, poder-se-á dizer que aí
seixo review | outono/fall 2005
se manifestava o mesmo ímpeto que hoje leva ao fenómeno da blogalização, ou seja, a globalização do blogue
como forma de apropriação dos meios de comunicação
por parte de um grupo indiferenciado de cidadãos, com
a consequente proliferação de uma opinião/informação
situada na margem do campo informativo empresarial
e canónico.
Essa consciência do papel da imprensa como veículo
de comunicação acabará por traduzir-se, por um lado, na
força do contacto imediato entre um autor e os seus leitores e, por outro lado, na fraqueza ou na precaridade de
uma escrita que, no seu carácter fragmentário e avulso,
tenderá a tornar-se objecto fácil de esquecimento, coisa
a que só a edição em livro poderia obstar (isso acaba por
ser também comprovado actualmente, com o recurso à
edição impressa de muitos dos textos vindos inicialmente a público no universo da blogosfera). E num contexto
sócio-económico como o açoriano, em que a indústria
editorial se tem caracterizado sobretudo pelo seu carácter intermitente e irregular, por vezes fruto do voluntarismo e do empenhamento pessoal, mesmo os autores
do século XIX considerados hoje os impulsionadores da
moderna literatura açoriana se ressentiram dessa complexa situação: editados postumamente ou em condições
de difícil circulação, dispersos ainda pela imprensa açoriana e continental — eles
aguardam um trabalho de
pesquisa e recolha que lhes
devolva a plena dignidade
de escritores atentos à sua
realidade histórica e cultural e conscientes da importância da literatura como
factor de representação e
de registo da memória de
um povo, da sua experiência humana a meio do
Atlântico.
Esse trabalho resgatálos-ia da clandestinidade em que, parcialmente, ainda
permanecem e, por maioria de razão, resgataria também
aqueles outros que nem sequer chegaram a conhecer a
edição em livro; e permitir-nos-ia também compreender
os parâmetros em que uma tradição literária começou a
consolidar-se, as suas coordenadas internas, os seus procedimentos inter-sociais e intertextuais3. Esse trabalho de
resgate, de leitura sistemática e de interpretação histórica
e crítica, já não apenas do século XIX mas igualmente de
todo o século XX, contribuiria para iluminar zonas de
84
seixo review | outono/fall 2005
penumbra e estabelecer nexos entre fenómenos e períodos de tempo que por vezes surgem como que isolados;
e evitaria ainda que, para servir-me da metáfora eléctrica
de Antonio Rodríguez-Moñino4, nos fixássemos apenas
nos postes, ignorando os fios que os interligam e conexionam e lhes dão, afinal, sentido e função.
Neste contexto, a publicação de Dez contos e outros
Escritos representa também o fim da clandestinidade de
uma obra que, na sua componente literária, até nem é
quantitativamente muito volumosa, mas traduz a passagem fugaz, e mesmo assim suficientemente impressiva,
de um jovem pela ficção narrativa nos anos quarenta do
século passado.
E sendo este um acto
de justiça individual, é ainda um contributo para o
devido (re) conhecimento
desse grupo que, tomando
como ponto de referência
o Círculo Literário Antero
de Quental, viria a cruzarse nas páginas do jornal A
Ilha com gente de outros
quadrantes geográficos e
etários, entre eles Pedro
da Silveira, que aí vinha
divulgando regularmente a moderna literatura caboverdiana, Egito Gonçalves ou Carlos Wallenstein, que
já desde 1945 marcava presença no jornal; em conjunto,
e sob diferentes registos e intervenções, eles pautarão a
sua actividade por um propósito de renovação cultural e
literária: “É o grupo fundador do Círculo Literário Antero de Quental que, pelos anos 40 (mais precisamente,
46), se arvorou em mentor do movimento modernista a
introduzir na Ilha e se destinava, por definição, a acabar
com o conservantismo que estagnava as letras açorianas” – escreve Fernando Aires5, um dos fundadores do
CLAQ, juntamente com Eduíno de Jesus, Fernando de
Lima, Jacinto Soares de Albergaria e Eduardo Vasconcelos Moniz; e prossegue o autor: “em 48 junta-se-nos o
Carlos Wallenstein, o Rui-Guilherme de Morais, Mário
Barradas, Machado da Luz …”.
Do que foi esse esforço de renovação e também
das resistências verificadas, resta-nos o testemunho da
imprensa da época e sobretudo das páginas d’A Ilha: o
eco das Conferências do CLAQ e dos recitais de Carlos Wallenstein, trazendo ao conhecimento do público
micaelense a moderna poesia de língua portuguesa6, o
ensaísmo de Eduíno de Jesus, as polémicas literárias en-
tre antigos e modernos (mesmo entre alguns modernos
como Jacinto Soares de Albergaria e Pedro da Silveira),
e já por 1953 o debate (ou polémica?) motivado pelos
textos de Eduíno Borges Garcia reunidos sob o título de
“Por uma autêntica literatura açoriana”.
Modernismo e renovação articulam-se aí com uma
atenção à realidade concreta das ilhas, num propósito de
fixar a atenção naqueles que eram os rumos estéticos do
universo literário mais vasto, mas sem perder de vista o
pequeno mundo insular, ou dizendo de uma forma mais
correcta e mais justa: prestar atenção ao exterior, para
com isso melhor equacionar literariamente e culturalmente as questões internas. Num texto em que recenseava o livro A Ilha e o Mundo, de Pedro da Silveira, o
escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, por essa altura a
trabalhar no Faial, referia-se exactamente a
esse “autêntico movimento de renovação literária, no conto, na poesia, no ensaio, nascido
da boa vontade e dos esforços dum punhado
de jovens inteligentes, cultos, conscientes do
caminho a percorrer, mais ou menos ligados
por um mesmo legítimo ideal: a utilização
dos recursos culturais da própria terra”. E
depois de referir alguns desses jovens, reunidos em torno dos jornais A Ilha e Correio dos
Açores, afirmava que “eles deverão ser citados
quando se tornar necessário evocar os nomes
daqueles que projectaram (ou realizaram) a
pista de aterragem literária no chão firme
das ilhas”7. Percebe-se a ênfase posta por Manuel Lopes nesta “aterragem”, em que é possível descortinar uma
outra versão da metáfora “fincar os pés no chão” que os
claridosos utilizaram para definir o projecto de renovação literária por eles levado a cabo no interior do seu
arquipélago, metáfora cujo âmbito semântico o próprio
Manuel Lopes desenvolveu e aprofundou na entrevista
concedida a Pedro da Silveira e publicada no jornal A
Ilha a 8 e a 15 de Julho de 1950.
Toda essa dinâmica confrontar-se-ia, porém, com
o velho problema editorial, na constatação de que nenhuma literatura subsiste enquanto instituição se não
dispuser dos mecanismos necessários à difusão dos seus
produtos, nem cumpre os seus objectivos se não conseguir os canais que lhe permitam estabelecer o circuito
de comunicação entre o autor e um público alargado. É
assim que, em Julho de 1950, surge o projecto editorial
“Cadernos Açoreanos” que se propunha publicar contos,
ensaios e poemas, em fascículos bimestrais e mediante
assinatura prévia; do prospecto de apresentação posto a
85
seixo review | outono/fall 2005
circular constavam os nomes dos autores a editar, entre
eles Fernando de Lima, Borges Garcia, Armando Rocha,
Carlos Wallenstein, Eduardo Vasconcelos Moniz, Eduíno de Jesus, Jacinto Soares de Albergaria, Mário Barradas, Armindo Viegas (pseudónimo poético de Fernando
de Lima), Rui-Guilherme de Morais, Sousa Oliveira, em
suma, o grupo de Ponta Delgada (aí incluído o próprio
Pedro da Silveira, das Flores) e a que se juntavam ainda
Otília Frayão, do Faial, Fernando Veríssimo e Leonardo
Fraga, da Terceira. Aquilo que se seguiu, com denúncias
públicas num jornal patrioteiro por vocação e delator
por dever de ofício, foi apenas mais um episódio triste da “Literatura dos Açores nesses tempos calamitosos
do salazarismo”, como confessava Pedro da Silveira em
carta de 1997, acrescentando que depois disso nenhuma
tipografia dos Açores quis arriscar em tal
projecto.
Todavia, na sua edição de 3 de Julho de
1954, o jornal A Ilha anunciava para breve o
aparecimento de “Cadernos Açoreanos”, de
um grupo de açorianos vivendo no continente. E o próprio Pedro da Silveira voltaria
ao assunto, numa carta de 29 de Dezembro
de 1957 endereçada a Sousa de Oliveira.
Tal como acontece com as que eu viria a
receber dele bastantes anos mais tarde, esta
é uma carta cheia de minúcias informativas
e de propostas de “coisas” a realizar, sempre
com os olhos na realidade cultural açoriana,
neste caso concreto o muito que havia a fazer em Ponta
Delgada com o espólio de Teófilo Braga, a preparação e
catalogação da colecção de periódicos, para que “a futura Biblioteca Nacional dos Açores seja uma coisa viva e
prestável”; e rematava Pedro da Silveira: “Os Cadernos
Açorianos não morreram! Custou a ordenar o material
que, até fins de Fevereiro, estará em teu poder! Claro,
com o correr do tempo, há alterações. Mas isso ver-se-á.
O primeiro trará colaboração tua, do Eduardo [Vasconcelos Moniz] e do Manuel Barbosa, além de trabalhos de
gente do passado.”8
Entretanto, em 1951, Eduíno de Jesus e Jacinto Soares de Albergaria tinham criado em Coimbra a Colecção
Arquipélago, que integraria poesia dos respectivos fundadores e ainda de Virgílio de Oliveira, Luís Ribeira-Seca,
Armando Côrtes-Rodrigues, Madalena Férin, além de
ensaio de José de Almeida Pavão Jr. e investigação de
José Bruno Carreiro. E se, aparentemente, Fernando de
Lima se afastara da criação literária (a avaliar pela data
dos textos reunidos em Dez Contos …), ele continuaria, no entanto, a intervir nos bastidores, como o comprova a
correspondência entre Armando Côrtes-Rodrigues e Eduíno de Jesus: duas cartas deste último, em especial, datadas de 18/2/1956 e de 8/6/1956, permitem-nos descobrir o trabalho de Fernando de Lima no apoio burocrático à
própria Colecção Arquipélago, bem como a sua intervenção n’A Ilha e o seu papel na ligação entre o jornal e Eduíno
de Jesus, por essa altura já na sua “ilha” de Lorvão, arredores de Coimbra9. E três breves cartas de Manuel Lopes
para Fernando de Lima, datadas de 1954 e pertencentes ao espólio deste último, vêm reconfirmar essa intervenção
e a rede de cumplicidades que assegurava a circulação e comercialização de livros dentro do arquipélago, além de
fornecerem outros elementos pontuais sobre essa geração do CLAQ e d’A Ilha.
*Primeira parte de um ensaio publicado integralmente em SAAL-Suplemento Atlântico de Artes e Letras, n.º
27, Maio de 2005.
Fernando de Lima, Dez Contos e outros Escritos, Recolha e Introd. de Filomena Medeiros, Org. de Eduíno de Jesus, Prólogo
de Graça Leite, Concepção Gráfica de Raul Leite Melo, Capa: Fernando de Lima em desenho a carvão de Victor Câmara;
Ponta Delgada, 2004. Fernando de Lima nasceu em 1927 em Ponta Delgada, cidade onde faleceu a 28 de Dezembro de
2004.
2
Manuel Garcia Monteiro, A Trança, Nota introdutória e organização de Carlos Lobão, Horta, Câmara Municipal, 1989, p.
19.
3
Registe-se aqui o trabalho (inédito) de Reinaldo da Silva Teles, Ernesto Rebello e o Grémio Literário, realizado no âmbito
da disciplina de Metodologia de Investigação Histórica , do curso de História da Universidade dos Açores ( 2002-2003).
Reinaldo Teles procede a um enquadramento sócio-cultural do autor, analisa o contexto (maçónico) em que surge o Grémio
Literário Faialense e a respectiva revista; ocupa-se depois desta última e da intervenção de Ernesto Rebelo e dos parâmetros
estéticos e ideológicos em que se movimenta. O Grémio Literário foi, no dizer de Pedro da Silveira, a melhor revista do seu
tempo e uma das melhores que houve nas Ilhas.
4
Citado por Gregorio Torres Nebrera , “Los Postes y el Tendido”, in José María Enguita, José-Carlos Mainer (Eds.), Literaturas Regionales en España, Zaragoza, Institución «Fernando el Católico», 1994, p. 141.
5
Fernando Aires, Era uma Vez o Tempo - Diário V, Lisboa, Ed. Salamandra, 1999, p. 62.
6
Lá estão, nos recitais de 19 e 23 de Setembro de 1949, nomes como os de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Eugénio
de Andrade, Vitorino Nemésio, Violante de Cisneiros/Armando Côrtes-Rodrigues, José Régio, Miguel Torga, os cabo-verdianos Manuel Lopes e Jorge Barbosa, o brasileiro Manuel Bandeira.
7
Manuel Lopes, “A Moderna Literatura Açoriana – «A Ilha e o Mundo» de Pedro da Silveira”, in O Telégrafo, 5/5/1953.
Transcrito por Marie-Christine Hanras, Manuel Lopes – um itinerário iniciático, Praia, Instituto Caboverdiano do Livro e do
Disco, 1995. Manuel Lopes veio a falecer em Lisboa a 25 de Janeiro de 2005, aos 97 anos.
8
Carlos Melo Bento, “Uma carta inédita de Pedro da Silveira para Sousa de Oliveira”, in Açoriano Oriental, 5 de Junho de
2003.
9
Armando Côrtes-Rodrigues e Eduíno de Jesus, Correspondência, Org. e Introd. de Fernando Aires, Ponta Delgada, Museu
Carlos Machado, 2002.
1
86
seixo review | outono/fall 2005
O aquário:
metáfora de vida
de Lygia Fagundes Telles
želimir BRALA
N
Fotografia de António Pedro Ferreira
o plano do conteúdo, o eixo narrativo do romance1 é a crise de
uma jovem, que ocorre num Verão particularmente quente. A crise
culmina com o suicídio de André, após uma noite passada com Raíza, personagem principal do romance, que suspeita ser ele amante
da sua mãe.
O título do romance revela a essência da fábula, exprimindo simultaneamente a visão do mundo de Raíza, em contraponto com o
da mãe, e o lapso de tempo em que ocorre a narrativa.
O aquário, p. 140
“-Vou pedir à titia que vista uma roupa de fada e me transforme num
peixe. Deve ser boa a vida de peixe, murmurei.
-Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com nada,
há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água … Uma vida
fácil, sem dúvida. Mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro
de um palmo de água quando há um mar lá adiante.
-No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.
87
-Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse
aquário não há vida.”
O aquário é um simples aquário no início da narrativa, com dois
peixes, colocado em cima da prateleira da cozinha, mas ganha destaque ao ser transferido para cima da mesa. Ali passa a assumir funções referenciais e figurativas, a partir de um diálogo entre Raíza
seixo review | outono/fall 2005
e a sua mãe Patrícia. A filha vê o aquário como lugar
de protecção, um espaço seguro, com regras de convívio transparentes e conhecidas que inspiram segurança,
enquanto a mãe o encara como um lugar de estagnação,
espaço artificial, estático,
sem a dinâmica vital
necessária, negando-lhe
as características da vida
real.
Os
protagonistas
que participam directamente na narrativa são
membros de uma família
burguesa que passa por
problemas económicos,
de modo que a mãe, escritora, é obrigada a assegurar os meios
de subsistência, além da filha, para a sua
irmã, “tia Graciana”, e a parcialmente
cuidar da Marfa, sua sobrinha.
Os protagonistas activos não pertencentes à família são a empregada
doméstica Dionísia, representante do
mundo real na narrativa, preocupada
com tarefas do quotidiano e sem tempo
nem compreensão para os problemas
psicológicos de Raíza, que acha fúteis e
superficiais. Por outro lado André, jovem ex-seminarista,
afectivamente instável e depressivo, de uma sensibilidade
acentuada, que tenta procurar o equilíbrio nas longas horas que passa com Patrícia, cujo conteúdo permanece não
definido por inteiro, tanto ao leitor quanto a Raíza.
A técnica narrativa que a autora utiliza é caracterizada pela psicologização, baseada no relacionamento da
heroína com o mundo externo e as pessoas à sua volta,
em primeiro lugar com a mãe.
É saliente o ressentimento de Raíza contra a mãe, que
acusa de não ter prestado devido apoio ao defunto pai,
farmacêutico fracassado e alcoólatra, por ter vendido a
grande casa familiar e por dedicar a sua atenção a André,
nas visitas cujo conteúdo acha não partilhar com ela.
A mãe, p. 88
“Fiquei sorrindo e pensando em minha mãe. Tão deusa,
tão inacessível, as vinte mil léguas submarinas longe daquela
vulgaridade que se pintava diante de mim.”
O relacionamento de Raíza com a mãe é simultaneamente definido por uma forte competição, em parte
consciencializada, em que a mãe é idealizada como mu-
88
seixo review | outono/fall 2005
lher, bonita, sempre cuidadosamente vestida e maquiada,
como intelectual com capacidade analítica e elaborada
visão do mundo, e como artista reconhecida, escritora
cujos romances são aceites pelo público, como testemunham os amigos e conhecidos da sua filha.
A sua insegurança sente-se igualmente na competição com a prima Marfa, que Raíza considera mais bela
que ela própria, mais livre, mais relaxada, mais eficiente
no trabalho, com maiores sucessos entre os homens, e
que tem apenas um defeito, o de ter olhos ligeiramente
estrábicos, maliciosamente mencionado,
nos seus monólogos
interiores, várias vezes
ao longo do romance,
à guisa de vingança.
A vida, p. 140
“A alusão não podia
ser mais evidente. Estou
me despedindo do meu
aquário, mamãe, estou
me preparando para o
mar, não percebe? Mas
nem você percebe isso?”
Ela própria é perseguida pelos seus
complexos, sente-se fracassada como pianista, não realizada como mulher, insegura na vida, hesitando e errando
entre o amor, a religião e a arte.
O foco narrativo está continuamente dirigido a situações mentais e estados mentais. O enredo é desenvolvido
em escassa acção, parcimoniosamente doseada entre longos monólogos, preponderantemente interiores. Os monólogos exteriores alternam com os diálogos, sendo essa
mistura a solução encontrada pela autora para desvendar
lentamente os movimentos de consciência das personagens, dominantemente de Raíza.
É uma prosa que pretende, nos compridos monólogos
interiores, exprimir o fluxo do pensamento, expressão do
fluxo da consciência, tal como concebido no pragmatismo filosófico e psicológico de William James ou expresso na prosa de James Joyce.
Por outro lado, o facto de se tratar de um intelectual
que procura pensar o seu lugar no mundo, e o seu modo
de enfrentar o mundo, o que cria o sentimento de angústia existencial e a náusea, provocada pela introspecção
ficcional, revela uma acentuada influência que o romance
recebeu do existencialismo.
Classificação de Bosi
Romances de
Tensão mínima histórias populistas de Jorge Amado;
romances ou crónicas de classe média de Érico Veríssimo e
Marques Rebelo
Romances de
Tensão crítica obras maduras de José Lins de Rego (Usina, Fogo morto) e todo Graciliano Ramos
Romances de
Tensão interiorizada romances psicológicos em suas vá-
rias modalidades (memorialismo, intimismo, auto-análise)
de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos
Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins …
Romances de
Tensão transfigurada experiências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ultrapassando os limites do género romance e aproximando-se da poesia e da tragédia
Como situar o romance dentro do panorama do romance brasileiro moderno? Conforme o esquema de
Bosi, uma reformulação da sistematização oferecida por
Lucien Goldmann (e, por sua vez, inspirada nas formulações de György Lukács e de René Girard), que procura
explicar o romance moderno na sua relação com o contexto social, esse romance de Lygia Fagundes Telles, pertenceria aos romances psicológicos, romances de tensão
interiorizada, em que a heroína subjectiva o conflito, não
enfrentando a antinomia eu/mundo pela acção.2
Referências eruditas
Watteau, Mauriac, Bergson, Rilke, Spinoza, Atlas, Minerva, Orfeu, Beethoven, Mozart, Bach …
Une larme, le cafard …
Vinte mil léguas submarinas …
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Ainda no plano da expressão, o romance, escrito
na primeira pessoa do singular, de frequentes períodos
complexos, mas bem construídos, se bem que compridos,
testemunha em numerosos lugares que se trata de um
romance psicológico, que necessita de pouca dinâmica
para a expressão de estados e situações mentais.
Mais uma prova de que se trata da prosa erudita, são
as abundantes referências, em que não há lugar para fenómenos de cultura popular.
São salientes nomeadamente as referências que reve-
lam uma forte influência da cultura francesa, representada não só pelas figuras das artes e ciências (Antoine
Watteau, pintor, François Mauriac, escritor, Henri Bergson, filósofo …), como também pelas interferências lexicais francesas (“os amigos falam em cafard”, “une larme
de leite no café” …) ou revelações de leituras de literatura
francesa (“vinte mil léguas submarinas”, em evocação da
leitura do romance de Jules Verne). Notam-se também
as referências provenientes da mitologia da Antiguidade
(Atlas, Minerva, Orfeu …).
Todas as referências musicais dizem respeito à música
erudita, desde a escolha do instrumento para Raíza, pianista potencial, até aos trechos de concertos para cravo e
violoncelo, ouvidos pelos protagonistas, e são igualmente
testemunho da atmosfera social em que o romance é envolvido.
É interessante examinar a percepção do espaço e do
tempo, e a sua organização no romance. A começar pelo
aquário, todos os espaços são fechados e bem delimitados, isolados do mundo, em que o calor forte daquele
Verão sufoca os protagonistas. Cada saída fora do espaço
fechado cria a ânsia e está ligado com stresses, sejam eles
ligeiros, como uma chuva repentina, ou graves, como a
constatação da morte de André. Todos os espaços são
igualmente individualizados e ligados com os protagonistas: a mãe tem o seu escritório, a tia Graciana o seu
quarto, Raíza o seu, André o seu. A empregada Dionísia
domina a cozinha, e esse espaço é ao mesmo tempo o único local de interacção sócio-familiar a que todas as personagens têm acesso e em que se passa a maioria dos encontros entre elas.
A perspectiva temporal da narrativa é preponderantemente linear, com algumas analepses externas, excursões
ocasionais ao tempo ocorrido antes do início do enredo, e mais frequentes analepses internas, voltas ao passado ocorrido depois do início da narrativa. É interessante observar que não se nota nenhuma prolepse ao longo da narrativa.
A interligação do espaço e do tempo é manifesta através da identificação das pessoas com os espaços, em que
cada lugar tem o seu espaço histórico. Os restos e o passado ficam no sótão, o quarto da Tia Graciana é mais velho,
o da mãe é do tempo médio, o de Raíza e de Marfa e sincrónico. Todas as referências temporais são relativas e não é
possível identificar a idade dos protagonistas: Tia Graciana é apenas a mais velha da família, Patrícia está numa idade
madura mas indefinida, Raíza e Marfa são apenas jovens.
O ritmo relativamente lento do romance está condicionado, por um lado, pela técnica narrativa que recorre aos
longos monólogos interiores ou exteriores, e compridos diálogos, e, por outro, pela atmosfera sufocante que o romance se propõe criar, o que raramente permite períodos curtos ou alta dinâmica do discurso, mas expõe à vista a
atmosfera saturada dentro da família de uma determinada camada social brasileira.
As obras de Lygia Fagundes Telles
1954
1958
1963
1964
1965
1972
1972
1973
1977
1978
1980
1981
1984
1987
1989
1991
1992
1993
1995
1996
1996
1997
1999
Ciranda de Pedra romance
Histórias do Desencontro contos
Verão no Aquário romance
Histórias Escolhidas contos
O Jardim Selvagem contos
Antes do Baile Verde contos
Seleta antologia
As Meninas romance
Seminário dos Ratos contos
Filhos Pródigos contos
A Disciplina do Amor fragmentos
Mistérios contos
Os Melhores Contos de Lygia Fagundes Telles antologia
Venha Ver o Pôr-do-Sol e outros contos antologia
As Horas Nuas romance
A Estrutura da Bolha de Sabão contos
As Cerejas (com Duilio Gomes, adaptação)
Capitu (com Paulo Emílio Salles Gomes, adaptação)
A Noite Escura e Mais Eu contos
Oito Contos de Amor antologia
A Confissão de Leontina e Fragmentos antologia
Oito contos de amor antologia
Pomba enamorada antologia
Telles, Lygia Fagundes. Verão no Aquário. 8. ª edição, Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1984.
Bosi, Alfredo. História Concisa de Literatura Brasileira. 33. ª edição, Cultrix, São Paulo 1994
1
2
Este texto foi escrito em Brasília, em 1999, na ocasião de um encontro literário dos escritores portugueses e brasileiros.
90
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Literatura Angolana
Algumas Achegas para a sua Interpretação
jorge ARRIMAR
A
literatura angolana do período colonial é
intencionalmente política, destacando-se
algumas características de ordem ideológica, como o messianismo e a busca e defesa
duma utopia, pelas quais passa a reivindicação da angolanidade através da adopção de uma linguagem que cumpre o contexto do realismo africano, que
é o que “a literatura angolana tem de mais original”.1
A partir do plano da linguagem escrita é produzido,
igualmente, o “português angolano” 2, afinal um registo
que é produto de uma intenção consciente dos intelectuais angolanos, os quais, através da mistura plurilinguística, pretendem fazer passar mensagens com conotações
políticas. Este “português angolano” construiu-se com
base na interferência de elementos de línguas bantas na
escrita de língua portuguesa, processo surgido de forma
mais consistente durante a última centúria da época colonial.
Tornou-se evidente que a introdução vocabular de
elementos dispersos ou de frases em línguas bantas num
discurso maioritariamente de língua portuguesa, se assumia como um movimento de insurreição e, simultaneamente, como um movimento de autodeterminação
duma linguagem que possibilitava aos escritores afirmarem a sua criação literária como literatura angolana.
Mesmo quando as influências da língua portuguesa e dos
“africanismos” já nela impressos, vinham de outro país,
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como o Brasil. É curioso ouvir Óscar Ribas dizer que foi
aqui que tomou consciência de que o português podia
ter outras normas, caracterizar-se por uma maior flexibilidade, sentir as “Belezas de uma região, de uma terra,
de um povo…”3; ou o caso de Uanhenga Xitu, que diz
que quando vai até aos musseques, local onde escreve o
seu próprio livro, utiliza a “mesma linguagem que est[á]
utilizando aqui [na entrevista]. Quando a lavadeira […]
diz: «Você me dá aquilo…», eu tenho que escrever mesmo isso, não encontro outra forma.”4. Ou ainda o que nos
dizem Arnaldo Santos e Jorge Macedo, tendo o primeiro
referido a consciência da transgressão assumida quanto
ao aspecto linguístico, a transgressão em relação à norma,
que foi algumas vezes sentida, “mas sobretudo ao nível da
construção”. Para Macedo, quanto menos consciente se
tornava essa transgressão, mais natural depois se forjava
o estilo.
Arnaldo Santos acredita que é fundamental que um
escritor, ao retratar um ambiente ou a psicologia de uma
personagem, o faça de forma a que o leitor sinta esse
mesmo ambiente, essa música, essa situação em que a
personagem se encontra mergulhada. “Em algumas circunstâncias, dizer «ir na», ou «ir a» dá-lhe uma música,
dá-lhe um ritmo completamente diferente que faz com
que nos identifiquemos mais com uma forma de narrar
do que com outra.”5
JORGE MACEDO considera até que um escritor
“tem espíritos da língua”, pois, pela própria dinâmica da
língua, o escritor não pode ter só uma linha de linguagem,
porque ele próprio é portador da sua cultura e encontrase numa sociedade que, para além de ser multiétnica e
multilingue, se complexifica ainda mais em estratos, em
grupos sociais e profissionais, com as características que
lhes são próprias. “É por isso que, em cada passo, a minha
linguagem parece vernácula segundo a norma da língua
portuguesa [para dali a pouco já não o ser], porque o
meu estado de língua já não é aquele, porque, pronto,
sinto-me emocionado em relação às personagens e, às
vezes, quero retratá-las no máximo…”. Macedo, motivado pelas sonoridades que a apetência musical que possui
lhe confere, assume que escreve “num estilo polifónico,
respeitando a linguagem de cada um.”6
Muito distante destes é o discurso de Manuel dos
Santos Lima, que nos confessa sem rebuço o aborrecimento que sempre sente quando se pretende ligar o
africano a uma linguagem petit-nègre, situação injusta e forçada, pois tal não correspondia inteiramente à
verdade. “Primeiro, amarrava o africano eternamente
a uma situação de inferioridade no plano linguístico,
e, depois, porque eu conheci entre as tais famílias burguesas pessoas que se exprimiam num português absolutamente impecável”. Lima considerava que já havia trazido para a literatura a “gente do povo que não
se exprimia num português correcto”. Para o escritor,
esse processo já havia chegado ao fim, “não era preciso continuar, até porque sempre [tivera] a sensação de
que dava à literatura angolana um carácter regionalista
de que ela ainda não conseguiu libertar-se: continua a
ser uma literatura do quintal, que tem dificuldade em se
universalizar.”7
Nos países Lusófonos de África, com exclusão de
Cabo Verde, assistimos na fase da sua formação a um
processo que se aproxima das literaturas africanas francófonas e anglófonas, pois os escritores e poetas desses
países foram confrontados desde o início “com um dualismo cultural e linguístico que os impulsionou – mesmo
contando com a experiência modernista da ‘geração de
50’ – a reivindicarem uma utopia, um espaço de entendimento entre eles, entre as elites urbanas e as populações
das sociedades periféricas”8. Tal atitude acabou por leválos a fazer o percurso das outras elites africanas, na medida em que se aproveitaram do poder político, primeiro
para o contestar (na época colonial) e depois para o defender “contra o abuso de entendimento desejado”.9.
A literatura angolana, segundo o estudioso José Carlos Venâncio, tem-se destacado daquelas cujo processo
92
seixo review | outono/fall 2005
de formação foi semelhante ao seu, “pela originalidade
e pela repetição de formas, qualidades que, pelo menos,
até 1987 disputara apenas com a cabo-verdiana”. Defende que a primazia de Angola se encontra no facto de
aí ter preexistido ao acto reivindicativo da escrita uma
sociedade culturalmente crioula, a exprimir-se num português com interferências”10, tendo como centro Luanda. Aqui se encontraria a “mundividência, os hábitos e o
português dos habitantes da periferia desta cidade, dos
musseques, que serviu de paradigma à reivindicação dos
homens de 50. Tal relação positiva entre autores/sujeitos
de enunciação e espaço citadino repetiu-se praticamente
em toda a produção literária do período anterior à independência, que teve Luanda como palco”.
Mas essa relação modifica-se com o aparecimento da
O autor com Maria João Chipalavela (n. Lubango) autora de livros infantis, como “A Gotinha Rebolinha” e “ A Escola e a Dona
Lata”, ed. da UEA. Foto tirada a 7 de Agosto de 2004, na residência de Evaristo Macedo, no Lubango, durante um almoço oferecido
aos participantes do I Encontro de Escritores Angolanos.
produção literária do pós-independência, e o Luandense, potencial leitor desses textos e também interlocutor
de autores como Manuel Rui (nomeadamente em Quem
me Dera ser Onda), Pepetela (nomeadamente em Jaime
Bunda, Agente Secreto), Agualusa (nomeadamente em O
Vendedor de Passados), passa também a objecto de crítica,
independentemente dos estratos sociais a que pertence
serem mais ou menos privilegiados. Todos se sujeitam
agora ao crivo dessa crítica, quer o citadino, em si, quer
os diferentes tipos sociais que cabem em tal categoria.
Na nova literatura angolana já não podia haver uma relação tão comprometida entre os escritores e o seu objecto, entre o artista e o seu modelo, para aplicar aqui uma
imagem mais plástica. Tudo passa a ser passível de ser
criticado, “é o luandense como categoria residual que é
objecto de crítica.”11
A grande mudança de atitude encontra-se aqui,
quando o objecto de interpretação e de criação literária
muda de sentido e de protagonistas. Também é aqui que
se encontram os elementos de ruptura com o que vem
de trás. Não é por acaso que quase todos os escritores
angolanos que transitaram da época colonial para a actual, sentiram dificuldades em se adaptarem literariamente
às novas realidades, sobretudo porque alguns deles passaram a ser elementos representativos do poder, mesmo
quando só simbolicamente. As novas gerações de escritores, muitos deles nascidos já no pós-independência,
não entendiam a permanência de um discurso (poético
ou narrativo) que já nada
tinha a ver com o que os
rodeava. Não é por acaso
que a primeira antologia de
jovens poetas angolanos12,
publicada em Luanda, em
1998, abra com uma epígrafe de Fernando Pessoa
“Todo o começo é involuntário / Deus é o agente.
/ O herói a si assiste, vário
/ e inconsciente. […] Tudo
é incerto e derradeiro. /
Tudo é disperso nada é inteiro.” (Mensagem) Dezanove
global desert syndrome © ebp 2005
jovens deixavam impressa a
sua voz no “caminho doloroso
das Coisas” porque iam assistindo naquela sociedade “híbrida e cheia de (in)decisões [cujas] operações em curso
na ordem material implicam a prossecução da revolução
cultural[…]” (em Prefácio por Lopito Feijoó).
HÁ, DE FACTO, a procura de uma nova estética e
de novos temas. Não será por acaso que um dos escritores mais emblemáticos do “tempo antigo”, Luandino
Vieira, diga que, comparando o trabalho literário produzido antes da independência com o que é produzido
hoje, se constate que este “cada vez mais se aproxima da
norma e, nessa aproximação da norma, vai-se definindo
uma linguagem que é muito diferente da norma, mas que
não é agressivamente diferente como era a do tempo colonial […]. Ainda afirma o autor que hoje “nenhum escritor tem essa preocupação: se escrevem dessa maneira
é por capital adquirido, por um lado. Por outro lado, isso
já é pacífico”.13
93
seixo review | outono/fall 2005
Podemos pensar nas potencialidades desse “português angolano”, ainda em pleno processo de desenvolvimento como um elemento supra-étnico que, no futuro,
talvez chegue a ter uma maior eficácia do que o português europeu, na construção de uma identidade nacional
angolana14. Segundo Mónica Hilário que apresenta este
conceito de “português angolano”, o desenvolvimento do
português de Angola encontra-se marcado pela confluência entre as línguas bantas e o português europeu, mas
“o resultado da confluência vai depender muito ainda da
interacção das diferentes fidelidades que a língua portuguesa ou as línguas bantas representam. Estas fidelidades
dizem respeito à identidade do grupo étnico a que corresponde uma determinada língua nativa, e à identidade
nacional a que corresponde o português-padrão. E reflectem-se numa maior ou menor influência das línguas
bantas ou do português no português-angolano.”15
Os diferentes níveis de interferência entre o português
e as línguas tradicionais angolanas, marcam (e continuarão a marcar) o desenvolvimento da língua portuguesa
de Angola, acrescido do facto de não existir uma norma
angolana desta língua que conduza, naturalmente, a um
“português angolano” não falado homogeneamente em
Angola, e a constatação de que se encontram neste país
“variações do português-angolano consoante as zonas e de
acordo com as línguas que ali são mais faladas.”16
A par da corrente de estudiosos, à qual pertence José
Carlos Venâncio, que dão um peso especial ao crioulismo como matriz do “português angolano” e da literatura angolana de língua portuguesa, corre outra corrente,
dita endógena (por oposição à anterior) que é defendida,
sobretudo por Vítor Kajibanga e por Luís Kandjimbo.
Quanto a nós, a grande diferença entre estas duas correntes está mais no ponto de partida do que nos princípios
que enunciam, isto é, se observarmos de perto as suas
posições, vemos que os endogenistas partem do ser angolano, negro e africano, indígena, como a matriz a partir
da qual se plasmaram as outras variantes. O crioulismo
seria apenas uma excrescência, um ponto e um momento
na História do país.
Segundo Kandjimbo, o crioulismo como “paradigma
da crioulidade, o cânone é uma emanação da visão reducionista que condiciona o conceito de literatura angolana
à difusão da cultura e língua portuguesa. A literatura oral
angolana e o acervo de textos escritos em línguas nacionais não ocupam qualquer lugar.” (op. cit, p.5) A partir
desta constatação, este ensaísta e escritor, defende que os
estudiosos e académicos angolanos (ou os que à “coisa”
angolana se dedicam) não se podem coibir de, “com a
devida selectividade, excluir do cânone literário angolano aquelas obras que reflictam a ausência dos Angolanos
e a negação da sua autonomia no plano ontológico. Tais
obras são, por exemplo, Nga Mutúri, de Alfredo Tróni, a
obra do poeta português Tomás Vieira da Cruz, a trilogia
de Castro Soromenho, Yaka de Pepetela”17.
Ora, como sabemos, estes três autores e as obras
referidas têm feito parte de todos (ou quase todos) os
manuais de literatura angolana. O facto de Kandjimbo
advogar a retirada dos autores e obras referidas implicará,
logo à partida, uma hierarquização dos segmentos que,
como defende, compõem a sua forma de encarar a literatura angolana? A literatura angolana de língua portuguesa terá o mesmo peso dos outros dois segmentos, que
são a Literatura endófona e a Literatura Oral? Haverá
uma comissão para avaliar a angolanidade das obras que
deverão figurar na Literatura Angolana oficializada?
Kandjimbo reitera a importância que as literaturas orais e as línguas nacionais têm para a formação do
cânone literário nas instituições académicas angolanas,
daí que entenda justificar-se que, além de uma literatura angolana escrita em língua portuguesa, se deva fazer
referência a um outro segmento, a literatura oral angolana. Assim, o conceito de literatura angolana deverá
englobar “os três segmentos, nomeadamente a literatura
oral angolana, literatura escrita em línguas endófonas e
literatura angolana escrita em língua portuguesa”. Para
Kandjimbo, a literatura angolana é o “conjunto de textos
que compreende os textos orais, as versões escritas dos
textos orais em línguas nacionais, os textos escritos em
língua portuguesa, produzidos por autores com recurso
às técnicas da ficção narrativa, de outros modos de escrita, desde que se verifique neles determinada intenção estética, crítica ou histórico-literária, veiculando elementos
culturais angolanos”.18
O CÂNONE LITERÁRIO perseguido por este autor tem de ser a expressão de um pluralismo consagrado
pelo modo como se constrói o conceito de literatura angolana explanado. “Do meu ponto de vista”, diz ele, “o
cânone literário a adoptar num país como Angola deverá
pautar-se por um rigoroso respeito ao pluralismo cultural, na medida em que a literatura angolana integra o
património de um país que é multiétnico, e plurilingue,
apesar de neste último caso existir uma base linguística
maioritariamente comum.”19
Posto isto, podemos perspectivar dois modelos de Literatura angolana:
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seixo review | outono/fall 2005
1. Literatura Angolana ( I )– Literatura de expressão
angolana que tanto utiliza a língua portuguesa escrita
como veículo, como qualquer texto escrito em qualquer
das línguas africanas de Angola. A Literatura Angolana
deixaria de ser designada como Literatura Angolana de
Língua Portuguesa, tendo em conta que o português é já
uma língua nacional como outra qualquer falada e tida
por língua mãe (mother language) ou língua de casa (home
language) de milhares de angolanos. Neste caso, a literatura angolana englobaria os seguintes segmentos:
a) Qualquer texto literário em línguas nacionais (incl.
o português angolano mais ou menos afastado do português europeu);
b) A “literatura angolana em viagem” ou “literatura
angolana diaspórica”, escrita por angolanos residentes
em qualquer parte do mundo, desde que se verifique nos
textos uma intenção estética, crítica ou histórico-literária, que veicule elementos culturais angolanos, mesmo
quando aconteça estar vertida numa língua estrangeira,
como é o caso do livro Patriotas, de Sousa Jamba (escr.
em inglês).
A literatura oral faria parte da recolha efectuada pelos
etnógrafos, sendo mais do âmbito folclórico, como, aliás,
acontece em muitos outros países.
2. Literatura Angolana ( II ) – Literatura de carácter endógeno, assumida como multilingue, caracterizada
por três segmentos: literatura oral, literatura escrita em
línguas africanas e literatura angolana escrita em língua
portuguesa.20
A “literatura angolana em viagem”
A formação de movimentos diaspóricos, mais ou menos amplos, tem sido uma das consequências dos grandes
movimentos inter-continentais, induzidos pela expansão
imperial que teve lugar no último milénio, e pelas descolonizações verificadas no decorrer dos últimos cinquenta
anos. É, pois, neste contexto que emerge uma temática
literária específica, ligada à condição diaspórica – o exílio,
a alienação social e cultural, a preocupação com a chamada “identidade” (ou, em contrapartida, com a hibridação)
– que se integra naquilo “que nós percebemos como um
aspecto da angústia existencial do ser moderno”.21
No caso da Literatura Angolana – e também das ou-
tras literaturas afro-lusófonas – foi em grande parte o
exílio e/ou a prisão que levou a que a consciência africana de toda uma geração se começasse a expressar de
uma forma mais irredutível. São exemplos disso os bem
conhecidos casos de Agostinho Neto, António Jacinto e Luandino Vieira, entre outros. Só que, o processo
político e histórico ao qual estes pertenciam e que, inevitavelmente, os conduziu ao final do exílio/prisão e ao
regresso definitivo a Angola, “produziu outra ruptura no
seio da população colonial, ruptura que, à sua vez iria
produzir outros exílios. […] Alguns partiram com a esperança de regressar, mas acabaram por ficar nos países
anfitriões, passando a um exílio permanente. Muitos se
consideravam angolanos, angolanos no exílio, angolanos
em viagem”.22
Temos assim que, no contexto da Literatura Angolana,
existe hoje uma variante que se designa por “literatura
angolana em viagem” ou “literatura angolana diaspórica”,
escrita por angolanos residentes em qualquer parte do
mundo, cujos textos apresentam uma intenção estética,
crítica ou histórico-literária, que veiculam elementos
culturais angolanos, mesmo quando se encontrem escritos numa língua estrangeira, como é o caso de Sousa
Jamba, já atrás referido. Segundo David Brookshaw, inscrevem-se na “literatura angolana em viagem”, o escritor José Eduardo Agualusa e o autor destas linhas23, aos
quais agregamos Mário António de Oliveira, Manuel
dos Santos Lima, Alberto Oliveira Pinto, Eduardo Bettencourt Pinto, Fernando Fonseca Santos, Sousa Jamba,
Carlos Frota, Inácio Rebelo de Andrade, Graça Arrimar,
entre outros.24
José Carlos Venâncio – Literatura e Poder na África Lusófona. Lisboa: ICLP, 1992, p. 32.
Mónica Rodrigues F. Hilário – A Língua Portuguesa como Instrumento Veiculador de Identidade Nacional em Angola. Porto: UP,
[s.d.], p. 7-8.
3
Óscar Ribas, em Michel Laban – Angola : Encontro com Escritores. Porto: Fund. Engº António de Almeida, 1991, I vol., p.
31-32.
4
Uanhenga Xitu, em Michel Laban – Angola : Encontro com Escritores. Porto: Fund. Engº António de Almeida, 1991, I vol.,
p. 130)
5
Arnaldo Santos, em opus cit., II vol., p. 506
6
Jorge Macedo, em opus cit., I vol., p. 752, 756
7
Manuel dos Santos Lima, em opus cit., p. 446
8
José Carlos Venâncio – opus cit., p. 59.
9
José Carlos Venâncio – opus cit., p. 60.
10
José Carlos Venâncio - ibidem.
11
José Carlos Venâncio – opus cit..
12
Lopito Feijoó, organizador – Antologia de Jovens Poetas Angolanos : No Caminho Doloroso das Coisas. Luanda: UEA, 1998
13
Luandino Vieira, em opus cit., I vol., p. 419-420
14
Durante o I Encontro de Escritores Angolanos, que se realizou no Lubango, de 6 a 8 de Agosto de 2004, foi debatida a situação da língua portuguesa no contexto angolano, tendo a maior parte dos presentes a opinião de que a mesma ganhara o estatuto
de língua nacional, pois não só era um elemento de unidade como era o primeiro idioma de milhares de angolanos.
15
Mónica Rodrigues F. Hilário – A Língua Portuguesa como Instrumento Veiculador de Identidade Nacional em Angola. Porto: UP,
[s.d.], p. 8
16
Mónica Rodrigues F. Hilário – opus cit., p. 8
17
Luís Kandjimbo – A Literatura Angolana, a Formação de um Cânone Literário Mínimo de Língua Portuguesa e as Estratégias da
sua Difusão e Ensino, em www.ebonet.net/kandjimbo/pdf
18
Luís Kandjimbo – Apologia de Kalitangi. Ensaio e Crítica. Luanda: INALD, 1997
19
Luís Kandjimbo – A Literatura Angolana, a Formação de um Cânone Literário […], em ibid.
20
Conceito de literatura apresentado por Luís Kandjimbo.
21
David Brookshaw – A Angolanidade em Viagem […]. Coimbra: Universidade de Coimbra, Comunicação ao I Congr. Intern. de
Literat. Africanas de Língua Portuguesa, 8 - 11 Out. 2003. (No prelo)
1
2
95
seixo review | outono/fall 2005
Idem, ibidem.
Cf. David Brookshaw – Voices from Lusophone Borderlands: The angolan identities of António Agostinho Neto, Jorge Arrimar and
José Eduardo Agualusa. Bristol: UB, 2002.
24
Agualusa (n. Huambo), autor de Estação das Chuvas, Nação Crioula, O Ano em que Zumbi Tomou o Rio, O Vendedor de Passados,
etc.; Jorge Arrimar (n. Chibia-Huíla): Ovatyilongo, Poemas (de parcer. c. Bettencourt Pinto), 20 Poemas de Savana, Murilaonde,
Viagem à Memória das Ilhas, O Planalto dos Pássaros, etc.; Mário António (n. Maquela do Zombo): Chingufo, 100 Poemas, 50
Anos 50 Poemas; Santos Lima (n. Bié): As Lágrimas e o Vento, A Pele do Diabo, Os Anões e os Mendigos, etc.; Oliveira Pinto (n.
Luanda): Mazanga, etc.; Bettencourt Pinto (n. Gabela): Poemas, Emoções, Tango nos Pátios do Sul, A Casa das Rugas, etc.; Fonseca
Santos (n. Benguela): Os Caminhos da Terra, A Lenda dos Homens do Vento, etc.; Sousa Jamba (n. Dondi): Patriotas, etc.; Frota
(n. Moçamedes): O Chão e as Raízes, Dos Rios e Suas Margens, etc.; Rebelo de Andrade (n. Huambo): Saudades do Huambo, Revisitações no Exílio (Contos Angolanos), Quando o Huambo era Nova Lisboa, etc.; Graça Arrimar (n. Chibia-Huíla): Nos Braços do
Vento, Viagens de Sal e de Mel, etc.
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Trust and Translation
fernanda VIVEIROS
I
love the Portuguese language: the mellifluous, honey sound of it, how it dances
on the page with its accent symbols capping and skirting the letters like musical
notes, how it lingers on some vowels while ignoring others, its mournful consonants, its thieving from the Hebrew, Greek and Arabic tongues, and most of
all, its peculiar retention of Latin grammar forms already lost in other Romance
languages. Portuguese, nicknamed última flor do Lácio (Latin’s last blossom), is
not a language that lends itself easily to English translation, but lacking fluency in my mother tongue I rely on English translations to bring the world of
Portuguese literature to me. Over the years I have found bliss with the eloquent
and elegant translations of the men and women who have introduced me to the
articulate diversity of some of Portugal’s most celebrated writers, many of whom
are virtually unknown to North Americans.
Unfortunately, translations can be flawed, something I learned only after
comparing a collection of poems in Portuguese to its highly regarded English
translation. Creative acts of infidelity occur all the time in translations-after all,
duplicating the figurative idiom of one language to another is nearly impossiblebut what I always hope to find with each new book is an understanding on the
part of the translator to translate the works of the author as honestly as possible.
As a reader, I need to trust the translator’s skills implicitly if I am to submerse
myself fully into the author’s world.
There is a misguided notion that the only real trust is one in which people
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are completely honest with each other, but in the art of
translation as in love, literal fidelity to words rather than
meanings can sap the passion out of any relationship.
The bond between author and reader has some aspect of
the romantic about it, but throw in a translator and we
have a love triangle — with one person holding all the
cards. How are we to know whether the translator has
indeed been loyal to the author’s work — if not in word,
then at least in meaning? Issues of trust and fidelity play
a large role in whether the relationship with the translator, if not the author, continues. It is not enough to
translate the story sentence by sentence — the intention
of the narrative, its meaning, must remain undisturbed
by any lexical liberties taken by the translator when rendering a foreign language into English. It was Horace
who said Nec verbum verbo curabis reddere fidus interpres.
As a true translator you will take care not to translate
word for word.
I
n addition, language is inextricably connected to
cultural identity, geography, history, and even religion, so a weak translation results in a distinct loss in
conveying the “cultural psyche” of the author. At one
time I believed that the only translators capable of translating Portuguese writers were of necessity those of Portuguese extraction — that only they could understand
and convey the subtleties of their cultural self-identity.
But then I learned that the late Giovanni Pontiero, the
man who first introduced Portuguese novelist José Saramago to the English-speaking world, was of ScottishItalian heritage. Somehow Pontiero was able to capture
the evocative melancholy and nostalgic yearnings known
as saudade in Portuguese and recreate it using English
words. I have come to trust the translations of Susan
Jill Levine, Jonathan Griffin, Gregory Rabassa, William
Weaver and Margaret Jull Costa, but it is Pontiero to
whom I turn when I’m in the mood for Portuguese soul
food.
First love, perhaps, is what accounts for my loyalty
to Giovanni Pontiero as the translator of Saramago. I
first came across this Nobel prize-winning author twenty years ago on a sidewalk in Lisbon; street vendors sell
books and periodicals displayed on sheets of newspaper,
and it is not unusual to have an entire block of side-byside “bookstores.” A title near my foot caught my eye:
Levantado do Chão (Risen from the Ground). The book,
a multi-generational family saga of landless peasants,
won the City of Lisbon Book Prize but I didn’t know
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that then, nor was I
familiar with the author. Upon my return
to the convent, and
with the book settled
comfortably in my lap,
I was a little vexed at
its condition, having
skimmed only the first
few pages when paying the vendor. Prior
readers had annotated
a number of lines with
incredulous notes (for
example, “the man is a
JOSÉ SARAMAGO
communist!”), and coffee stains were so dark
and deep that entire paragraphs were lost to the blood
of the bean. Despite these annoyances I found myself
captivated by the cunning, all-absorbing voice of this
magician. It was as though Saramago were there in the
room, sitting back comfortably on the chesterfield across
from me, one hand holding a glass of wine, the other
stroking one of his many dogs, and his words filling the
air in a labyrinthine stream of unconsciousness that is
his hallmark.
On my return to Canada, I scoured bookstores in an
attempt to find more of Saramago’s work, but he had not
yet reached my country and wouldn’t for quite some time.
A dozen years later, a friend teaching at the University
of the Açores sent me three Saramago books along with
their twins in English translation by Giovanni Pontiero.
It was the beginning of a wonderful relationship with
a man who was able to capture Saramago’s essence and
imbue the English language with a Latin richness unmatched by any other translator. In my opinion, the best
translations involve a form of lexical choreography — a
substitution of slightly different lyrics without disturbing the melody, or meaning, of the song and where the
translator’s voice is only a hum-in-the-ear and not an
entirely new or different tune and Pontiero was a master
at this sleight-of-voice, capturing the Portuguese hum in
all its dark complexity. And best of all, Pontiero’s talents
did not end with translating Saramago. He opened the
doors to a library of Portuguese literature and through
him I discovered the novels of Clarice Lispector, Lya
Luft, Daniel Moyano, and Manuel Bandeira.
Alas, Giovanni Pontiero is no longer with us, but
Margaret Jull Costa has picked up where he left off,
translating Saramago’s writing most admirably in The
Cave, All the Names and The Double. Fortunately Costa
too understands the music in language, and rather than
provide accurate yet jarring discordant notes in the translation, she substitutes words according to both sound
and nuance. It is in translation where having a good ear
dovetails with instinct. As most writers are aware, vowels
and consonants, words and sentences, have a complex
universe of music all their own (something Christian
Bök explored in Eunoia with his impish riffs on the personality of the five English vowels).
I
n speaking of her work, Costa has
said, “Translation is always a balancing act between faithfulness to letter
and faithfulness to spirit. You have to
understand what the author means not
only at the level of denotation, but also
of connotation. You have to be aware of
the sound of words and their register,
as well as the rhythm and sound of the
sentence in the translated version, so
that the finished product is as cogent,
fluent and convincing in the new language as it is in the original.” Is it any
wonder that so many readers trust her
as Pontiero’s successor? I, too, trust her
judgment in translation, having compared her English translations of several Portuguese novels to the authors’
original texts. Although I miss Pontiero,
there is a pleasure in rediscovering a much-loved author
through the heart and mind of another translator, and so
far, Costa has not let me down.
I was intrigued to learn that linguists, by experimenting with electrodes on the vocal cords, have been able
to demonstrate that English has tenser vowels than,
for example, Portuguese. If the body itself speaks each
language differently, then slipping from one language
to another is more than a mere translation of words.
Translation in effect becomes an intimate absorption
of the author’s psyche into that of the translator. In his
novel The Translator, John Crowley explores the transformative beauty and power of words in his story of a
troubled college student drawn to her professor, a Russian poet with tragic memories. The student learns to
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use poetry to heal her wounds, and together they begin
to translate the professor’s Russian poems into English.
In contemplating her translation of the poet’s work, the
young woman comes to believe in the restorative power
of words and the connection between love and language:
“She thought, long after, that she had not then ever explored a lover’s body, learned its folds and articulations,
muscle under skin, bone under muscle, but that this was
really most like that: this slow probing and working in
his language, taking it in or taking hold of it; his words,
his life, in her heart, in her mouth too.”
The trust between author and translator is perhaps
just as important as that between reader and translator
because a weak translation can affect
an author’s success in English-speaking and other overseas markets. Imagine how writers must feel to have the
results of their detailed pruning transplanted into a foreign field, their words
grafted into new shapes, consumed by
strangers unable to taste the difference between yams and sweet potatoes. Or worse, passed over at the corner market and later thrown into the
compost bin. Obviously trust was not
an issue with Saramago, who married
his Portuguese-into-Spanish translator, Pilar del Rio, and saw his awardnominated Spanish translations sell
like bacalhau. Saramago himself has
stressed the important cross-cultural
role of translators. “Writers create national literature,” he said, “but it is translators who create
international literature.”
Foreign translation works both ways, of course, and
I have recently strayed into Portuguese translations of
classic British literature. I am biased, but the writings of
Thomas Hardy and D. H. Lawrence seem improved in
Portuguese. Tess is more melancholy, the central character enveloped in a darker tone of loneliness when rendered in languid Latin vowels, and the sensual intensity
of Lady Chatterly’s Lover is heightened in the Romance
language with its use of masculine and feminine word
endings. English, although an extremely flexible and admirably crisp language, is devoid of gender. And I am in
agreement with the Czech novelist and translator Josef
Škvorecký in considering this neutering a tragic loss:
“What an erotic impoverishment it must be not to have
feminine endings.”
I was disappointed when a friend of mine, upon
reading several of my favourite European novels in
translation, proclaimed them to be “baroque, linguistically overwrought village myths featuring isolationistic
themes, pessimistic characters and creepy dogs” — not
his cup of tea at all. Unsurprisingly, I have become reluctant to recommend foreign literature to everyone. Better,
I think, for them to discover a new author serendipitously as I did with Saramago so many years ago, on a
side trip down a busy avenue on my way to somewhere
else … and yet, before I leave, let me share this excerpt
from The History of the Siege of Lisbon in the hopes that
you too will be intrigued by a foreign stranger, even if
only in English translation:
I must take a look at the weather. He rose to his feet,
wrapped himself in his thick dressing-gown which, in win-
100
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ter time, he always spreads over the bedcover, and went to
open the window. The mist had disappeared, incredible that
it should have concealed all those scintillations, lights all
the way down the slope, more on the other side, yellow and
white, projected on to the water like flickering flames. It is
colder. Raimundo Silva thought to himself, in the manner
of Fernando Pessoa, If I smoked, I should now light a cigarette, watching the river, thinking how vague and uncertain
everything is, but, not smoking, I should simply think that
everything is truly uncertain and vague, without a cigarette,
even though the cigarette, were I to smoke it, would in itself
express the uncertainty and vagueness of things, like smoke
itself, were I to smoke. The proof-reader lingers at the window, no one will call out, Come inside or you’ll catch cold,
and he tries to imagine someone gently calling, but pauses for
another minute in order to think, vague and uncertain, and
finally, as if someone had called out once more, Come inside,
I beg of you, he obeys, closes the window and goes back to bed,
lying on his right side and waiting. For sleep.
A casa de descanso
do nobre português casado do século XVII
ou
Relendo D. Francisco Manuel de Melo
INTRODUÇÃO.
lilian PESTRE DE ALMEIDA
O século XVII, em Portugal, é o século de Vieira, todos o sabemos, mas é também o século de muito boa prosa feita por escritores
que não são forçosamente padres nem monges, mas aristocratas cultos
e cosmopolitas. Eles reflectem não só sobre o Estado português mas sobre a situação da país no momento em que Portugal sai do período da
união das duas coroas sob uma nova dinastia, a de Bragança. Este tipo
de autor relaciona-se de certa forma com algo que existe em Espanha
e sobretudo em França, a figura do aristocrata que, não sendo escritor
profissional, escreve e muito bem. De forma subtil e lúdica, irónica e
discreta.
O
101
1.
A escolha de D. Francisco Manuel de Melo1.
valor literário e os significados culturais da Carta de Guia de Casados2 (de 1651) fazem-nos ter em conta alguns aspectos da vida,
complexa e variada, de um grande escritor. Menéndez Pelayo define D. Francisco Manuel de Melo como “el hombre de más ingenio que produjo
la Península Ibérica en el siglo XVII, a excepción de Quevedo”.
D. Francisco é meio espanhol pelo lado materno, o que lhe dá perfeito domínio do castelhano assim como relações fundamentais na sua carreira diplomáseixo review | outono/fall 2005
tica, militar e literária.
Por um lado, as campanhas militares levam-no a
outros países e contextos culturais, especialmente os de
Espanha (Madrid e Barcelona), mas também para fora
da península ibérica, a Londres, Paris ou Flandres. O desempenho de missões diplomáticas permitem-lhe afirmar as suas capacidades de compreensão e de negociação
no interior da cultura do Outro, acentuam e alargam a
sua experiência da diversidade. Não lhe faltam sequer as
experiências da aventura (naufrágio, por exemplo3), da
prisão (em todo o espaço português: em África, na Índia e no Brasil) e sobretudo a experiência da queda e
da reflexão solitária. Sob muitos aspectos, D, Francisco
Manuel de Melo parece ainda um português dos Quinhentos pela sua extraordinária abertura ao mundo sem
qualquer traço de provincianismo. E pela sua experiência
de vida: viajou e guerreou, leu e viveu. E ainda como um
homem dos Quinhentos, escreve indiferentemente em
português e em espanhol.
Assim, um claro cosmopolitismo, não apenas de leituras, mas fortemente intelectual e de vivências concretas, marcam as histórias e os contos que D. Francisco
multiplica na sua Carta. Esta possui um subtítulo revelador: “Para que pelo caminho da prudência se acerte com
a casa de descanso”.
Três elementos ligam-me pessoalmente à casa de
descanso de D. Francisco: por um lado, a própria temática da casa, como lugar de abrigo e retiro ideal4 e, em
seguida, por algo que voltou a ser extremamente actual
na poética contemporânea em língua portuguesa, a reescritura literária da oralidade. A poética da reescritura é
praticada, no Brasil, por poetas como Manuel Bandeira
ou romancistas como Guimarães Rosa e Autran Dourado para só citar alguns nomes. O tema da casa interessa-me enfim de muito perto porque participo de uma
equipa que se ocupa da análise de espaços de quintas e
palácios rurais dos séculos XVII e XVIII5. Lisboa está
cercada de quintas nobres. Muitas delas ainda à espera
da análise simbólica do seu espaço. Para tal cabe tentar
responder à questão só aparentemente ingénua: para que
serve uma casa de campo para um nobre português do
século XVII ou na virada para o século XVIII? D. Francisco dá-nos várias respostas e ajuda-nos a perceber uma
certa vivência bem lusitana.
1.1 A reescritura da oralidade e de contos.
102
Tejo y torno a tejer la misma fábula
Repito un repetido endecasílabo,
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Dijo lo que los otros me dijeron.
Borges, Eclesiastés, 1, 9, La Cifra
Tecer e voltar a tecer a mesma trama implica em
rescrever. Mas como rescrever o que circula oralmente de
forma mais ou menos anónima? Como fazer literatura
com o que é de domínio público? A reescritura que nos
interessa aqui é aquela,-diria um mineiro das Minas Gerais6 (Guimarães e Autran o são)-, de contos e “causos”.
Só vejo, em literatura brasileira de hoje, uma narrativa
comparável à reescritura feita por D. Francisco, a de Autran Dourado, em particular no seu delicioso Novelário
de Donga Novais7. O enredo da sua narrativa é aparentemente muito simples: Donga Novais, incansável contador de histórias e dono de uma memória prodigiosa,
gosta de brincar com as palavras. Para compensar uma
insónia de muitos anos, tece e retece as aventuras dos habitantes de Duas Pontes. Como nunca dorme e não sai
da janela, de lá controla e comenta vida de todos a partir
de ditos, provérbios, sentenças e rifões que se cruzam e
se contradizem sem cessar no seu discurso serpente. O
leitor rapidamente se apercebe que as aventuras de Lelena e Lalau são muito parecidas, embora menos trágicas,
de uma certa Helena e seu marido Menelau. Quando o
contador desaparece, porque enfim morre, a paródia carnavalizante interrompe-se: a segunda parte do romance
é o inventário de uma canastrinha que contém as obras
com que aprendeu o velho Donga a tecer e a comentar as
suas histórias. E dentro da canastrinha, figura D. Francisco Manuel de Melo.
Ora o que faz D. Francisco senão jogar com um saber proverbial? O habilíssimo uso de ditos, provérbios,
sentenças e rifões na sua Carta apaga qualquer ranço de
doutrinação. Pelo prazer, adianto alguns exemplos.
Não cuido certo que os egípcios, com toda a sua
agudeza, inventaram mais excelente geroglífico do
que o desenvolve o nosso provérbio português: o marido barca, a mulher arca. Ouvi-o dias há a uma velha
e o escutei como de boca de um sábio. Traga o marido, guarde a mulher. (Carta, p. 68)
O contexto da enunciação está bem claro: “uma velha”, “dias atrás”, o jogo de palavras. Ao marido, o movimento, o negócio; à mulher, a imobilidade, o entesouramento. O jogo fónico (barca/arca), a capacidade de
síntese, a lógica do concreto na dupla metáfora, o encadeamento das imagens no eixo paradigmático (o da
substituição), o desaparecimento dos corpos humanos e
a sua substituição por objectos (barca, arca) provocam
um impulso de resposta no leitor transformando a leitura numa actividade essencialmente lúdica. De um lado o
marinheiro/mercador (barca na água incerta), do outro,
o contador (na dupla acepção da palavra: o que amealha
e o móvel). Essa actividade de jogar com as palavras é a
mesma que permeia todo o texto de Autran Dourado
que brinca de recitar ou inventar provérbios. O mais delicioso e verdadeiro: “um rifão mais esconde do que responde, na entrelinha é que pia a galinha”. Há claramente
um campo a ser explorado.
Na Carta, ainda na mesma página da mulher-arca,
aparece outro tipo de mulher através de outro jogo verbal:
“a mulher ciosa tende a ociosa” (Carta, p. 68). D. Francisco aflora aqui o problema do ciúme que mais adiante
explicita, realçando a sua base imaginativa, como o faziam outros autores da época. Ciúmes nascem de “uma
maldita imaginação”. O melhor exemplo seria o da novela El celoso extremeño, de Cervantes: “de su natural
condición era el más celoso hombre del mundo, aun sin
estar casado, pues con sólo la imaginación de serlo le comenzaban a ofender los celos” (Novelas ejemplares, II,
102). Mas a ciosa casada-ou seja “la celosa” nos termos
de Cervantes-ainda por cima tende a ser ociosa e não
tem tempo de cuidar da casa. D. Francisco descobre-lhe
um outro defeito.
Os exemplos de provérbios aparecem em cascata:
“a minha filha Tareja quanto vê tanto deseja” (p. 70), “do
homem a praça, da mulher a casa” (p. 85), “mulher e perfumes, tudo são fumos” (p. 87).
Outras vezes, o que aparece é uma pequena narrativa encaixada. Sobre o perigo das mulheres letradas, há
um pequeno conto muito saboroso:
Confessava-se uma mulher letrada a um frade velho e rabugento e como começasse a dizer em latim
a confissão, perguntou-lhe o confessor: sabeis latim?
Disse-lhe Padre, criei-me em mosteiro. Tornou-lhe a
perguntar: Que estado tendes? Respondeu-lhe: Casada. A que tornou: Onde está vosso marido? Na Índia, meu padre (disse ela). Então com agudeza repetiu o velho: Tende mão, filha, sabeis latim, criastes-vos em mosteiro, tendes marido na Índia? Ora
ide-vos embora e vinde cá outro dia que vós é força
que tragais muito que dizer e eu estou hoje muito depressa. (Carta, p. 96)
A rapidez do traço, a brevidade, o ritmo, a desconfiança atribuída ao padre rabugento e não ao narrador
103
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(mas o padre tem “agudeza”) enfim a ironia fazem desse
pequeno encaixe uma aguda comédia de costumes com o
seu jogo cruzado de preconceitos.
Mas se a desconfiança é de regra diante da mulher
letrada, a suspeita do narrador é ainda maior em relação
aos frades. Outra pequena história, também um diálogo,
o comprova:
Vejo que já me estão perguntando como se haverão em o trato dos frades? Responderei com a reposta
de bom cortesão, ou aconselharei o seu conselho. Dizia este, sendo assi perguntado: Olhai, eu sou amicíssimo dos frades; se não são bons, não lhes quero dar ocasião
em minha casa para que sejam piores; se são bons, não
lhes quero dar ocasião em minha casa para que o não sejam, de sorte que sempre os amo e sempre os escuso. Outro
mais escrupuloso, dizia que em quatro partes lhes pareciam bem os religiosos: altar, púlpito, confessionário,
e, perguntando-lhe qual fosse o quarto lugar, respondeu: Pintados. (Carta, p. 102)
Enfim um outro jogo que D. Francisco propõe ao
leitor é começar o provérbio e não concluí-lo. Cabe ao
leitor completar. Sobre os filhos e a sua educação:
Ora, pois falamos em filhos, acabemos o que há
que dizer acerca deles.
Desejá-los é tão justo como merecê-los, mas não
obrigue este desejo a fazer demasias. Nos moços deve
de haver uma boa confiança. E já que nos servimos
de ditados, não vem aqui mala para escusar mais leitura aquilo que se diz: A Deus rogando, etc. Escuso-me
de acabar o adágio porque de todos é sabido. (Carta,
p. 112)
O leitor deverá ser capaz de encontrar o final: A
Deus rogando e com o maço dando.
D. Francisco incorpora assim um vasto repertório de
ditos, provérbios, historietas, sentenças, rifões. Os nossos
exemplos serviram até agora para dar uma ideia do tom
do texto, do seu sabor à oralidade, não constituem propriamente uma análise. Esta deveria obedecer a um certo
número de critérios que apenas enumeramos para evitar
ingenuidades como estabelecer um simples rol. Em lugar de proceder à listagem mais ou menos exaustiva de
ocorrências-tentativa sempre falsa e pobre-seria necessário privilegiar a análise do discurso. Ou seja, explorar o
contexto em que as ocorrências aparecem. A incorporação de provérbios e outros elementos afins na Carta dá-
se segundo três linhas: a) a recitação fiel; b) a alteração da
matriz de base e c) a criação de formas elípticas que assumem a função de provérbios (inéditos). Todas esses jogos
reaparecem na narrativa de Autran Dourado. Melhor: no
discurso de Donga Novais. A diferença, nasce do abrir da
canastrinha, que fornece um material metalinguístico.
1.2 As funções de uma casa de campo.
Mas passemos ao nosso segundo ponto. Para que
serve uma casa de campo no século XVII? O testemunho, muitas vezes irónico, da Carta de Guia de Casados
sugere-nos algumas respostas.
A Carta de D. Francisco Manuel de Melo apresenta-se como um conjunto de conselhos e avisos para que,
“pelo caminho da prudência”, os casados acertem “com
a casa de descanso”. É sobretudo uma brilhante, irónica e subtil construção literária sobre as diversas dimensões da vida privada, familiar e, em alguns aspectos, social do nobre português casado seiscentista, ao mesmo
tempo, “prudente e discreto”. A Carta encerra-se com a
indicação de local e data: Torre Velha, em 5 de Março
de 1650. Ela é praticamente contemporânea do Palácio
Fronteira, dos Marqueses de Fronteira8.
Que nos diz D. Francisco sobre as funções de uma
quinta de recreio? A quinta, além de espaço de produção, serve para a distracção, é claro, mas
também para refúgio
durante os meses de
calor, para restabelecer as finanças, ou
dito de outra forma,
para poupar fazenda, para criar filhos
antes da sua apresentação à Corte e ainda para o necessário resguardo das
mulheres. Não é atoa que se vive na Península Ibérica.
A nostalgia da corte de antigamente perpassa no
texto de D. Francisco Manuel de Melo:
Trouxe-nos Deus agora (com todo o mais bem
que veio a este reino) um novo paço e corte; e porque da do tempo passado nos não lembramos os que
vivemos agora, mal poderemos governar estas acções
por aquelas antigas. A corte portuguesa era bem frequentada, bem galante e bem luzida, mas de grande
recolhimento. As idas ao paço são devidas, justas e
boas; às vezes devem ser contadas. Nascimento de in-
104
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fantes, bodas, festas de entre ano, achaques de príncipes, sua saúde, novas notáveis e pouco mais que isto.
O ir só não é elegante. Seja a companhia sempre boa,
mas não de pessoa maior (salvo a primeira vez), cuja
autoridade some o agasalho que cada um deseja achar
na graça dos Reis, em suas casas e em as de qualquer
hóspede (Carta, p. 90)
Como deve governar o discreto a sua casa? O governo pode ser visto do alto (e aí relaciona-se com a arte
da política e a filosofia) ou nos seus pequenos detalhes
quotidianos (e então é uma questão de pão e pano). A
dupla visão, uma panorâmica, sobranceira e a outra, em
contra picado como diria um amante de cinema, surge
numa página da Carta de Guia. A visão de perto é a que
nos interessa:
Entre os conselhos tocantes às virtudes do ânimo,
que variamente tenho apontado a V.
M., convém
fazer-lhe
presente de
alguns avisos concernentes ao
bom governo de sua casa, cousa que por outro nome mais elegante chamam os filósofos de virtude económica, segunda
parte da ciência civil que também é segunda parte da filosofia moral. Isto, enfim, não é outra cousa que a indústria e a prudência com que o cidadão, o fidalgo, o grande, e também o pequeno, governam sua família, que no
príncipe é arte política ou matéria de estado, chamemlhe os filósofos como lhe chamarem. (… … … …]
Toda a governança da casa eu reduzo a dous pontos: pão e pano, ou prato e trato, regra que muitos dias
há que sabe a prudência. Pelo pão, ou prato, podemos
entender todos os bens e cómodos portas a dentro.
Pelo pano, ou trato, entenderemos todos os bens e
cómodos das portas afora. (Carta, p. 124)
Veja-se como funciona a lógica do concreto: o termo é de Lévi-Strauss. Nada de grandes palavras nem
abstracções. O quotidiano na sua simplória concretude:
pão/prato, pano/trato. Ou seja: o comer que sustenta a
vida e o vestir que é o parecer. Dentro e fora da casa, lu-
gar central, onde se faz a mediação entre o privado e o
público, o que se deve a si próprio e o que se deve aos
outros.
A casa é ainda o lugar de actividades tão díspares
como o teatro e matar o porco9. Consulte-se uma vez
mais o discreto D. Francisco, disposto a alegrar a sua casa
e os que nela habitam:
Gabo muito, senhor meu, um conservar nas casas certos costumes nossos familiares e antigos que as
fartam, alegram e agasalham, corroborando de novo
o amor que se tem ao senhor da casa. Teve V. M. Um
parente, grandíssimo mestre destas políticas e o mais
amado amo de seus criados que eu vi jamais, por estas
e outras utilíssimas humanidades que guardava com
eles.
Digo eu que o casado, por alegrar sua mulher e
família, mesmo de seu movimento, mande (se as houvesse) fazer em sua casa duas ou três comédias cada
ano. Seja ele próprio o que com elas convide; tem-se
aquilo em muito, dizem logo dele que é um anjo e, na
verdade, é mostra de bondade folgar de que folguem
os outros com as cousas decentes. Não como nosso
rei D. Pedro, que chamaram Cru e Cruel, que mandava de noite acordar o povo que dormia porque ele
não podia dormir.
Ame outras tantas romarias e folgas, que cheguem até aos menores. Mostre-se-lhes assi leve e
cuidadoso de seu regalo. Reparta com prudência dos
mimos que lhe vierem, já da renda, já do presente.
Há casas donde se perderam cem queijos do Alentejo antes que dar um a um criado. Aquilo de matar
porcos pelo tempo é lance caseiríssimo e bem aceito,
que faz os homens bem quistos até da vizinhança. E
para dar algum gosto a esta baixeza (que não quis que
me esquecesse), direi o que aqui dizia um malvado
cortesão: que assim como cada homem, por bom governo de sua casa, devia matar cada ano pelo menos
dous porcos, assi por bom, governo da república devia
matar cada ano pelo menos dous vilãos ruins. Por tão
bom costume tinha este aquele agasalho, o que bem
favorece o nosso rifão quando diz: O dia de S. Tomé,
quem porco não tiver, matar pode a mulher. (Carta,
p. 128)
Por outro lado, o fidalgo no século XVII não vive
propriamente na quinta, ele vai à quinta. Sobretudo
quando a quinta, bastante próxima da corte, permite ir
e vir a cada dia. Passar muito tempo na quinta é correr o
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risco de virar boi:
O ir às quintas louvo, o morar nelas não gabo; não
porque me pareça indecente, ma porque o tenho por
desacomodadíssimo, vindo a ser estas quintas uma
quinta essência da ciganaria. Estraga as casas, desbarata os móveis, destroça os criados; nada se forra,
antes se gasta mais, e os homens nem gozam a quietação do campo, nem a autoridade da corte. Entendo
por estas quintas aquelas das quais se pode ir cada dia
a Lisboa, donde, com comodidade ou sem ela, nenhum dos vizinhos deixa de vir cada dia: pelo que
disse, com a graça que costuma, um nosso discreto
que o coche de fulano ia três vezes cada ano a Jerusalém, lançando as contas certas às léguas que andava o
coche e seu dono, indo e vindo de outra tal paragem.
Os grandes cortesãos fazem a vivenda do campo
aborrecível, que ela de seu não é, antes alegre e conveniente. Sendo um convidado de certo fidalgo para
estar com outros em uma sua quinta dous dias, ai segundo, sem se despedir dos companheiros, tomou o
caminho da cidade: gritavam-lhe os mais que se detivesse e, como o fizesse assi e lhe perguntassem adonde ia, respondeu: Amigos, vou-me porque se estou
mais de vinte e quatro horas no campo, cuido que me
torno boi. (Carta, p. 129)
Se o fidalgo vai sempre à Corte, a quinta serve sobretudo para criar filhos enquanto meninos. Segundo D.
Francisco, os filhos deveriam viver na quinta até os 8 ou
10 anos, para então serem apresentados à Corte:
Julgo por importante acção não viver de contínuo
na corte e me parece que há tempos próprios de se
retirar (o casado com sua família) a viver no seu lugar,
comenda ou herdade, enfim, aquela parte que mais
cómoda for para a vida. Se hei-de apontar regra a este
tal retiro, dissera que tendo o casado mais de dous filhos era o próprio tempo e que os anos de ausência
da corte podiam bem ser aqueles em quanto os tais
filhos crecem e não perdem por não ser conhecidos
até então, como se disséssemos até idade de oito e
dez anos. Depois é bom tornar à corte e introduzi-los
nela, para que o rei os conheça e eles se criem sem espanto dos paços, que sem dúvida o causam aos que os
não viram desde a mocidade, como se diz das águas
do Nilo, cujo estrondo é medonho ao forasteiro e do
natural não é ouvido. (Carta, p. 129)
Mas a quinta serve ainda para poupar fazenda e ajudar a salvação:
Estas ausências trazem grandes e muitos proveitos à vida, à saúde, à fazenda, à salvação.. À vida, porque no campo se vive mais; à saúde, porque seus exercícios a conservam: à fazenda, porque se gasta menos;
à salvação, porque faltam as ocasiões que a arriscam,
anda o ânimo mais livre para cuidar em Deus e em si
mesmo. (Carta, p. 130)
O fecho surpreendente e conciso da Carta de Guia
de Casados faz entrar a quinta no programa ideal de
vida:
Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato honesto. Servir quedo. Criados bons. Um que os mande.
Paga certa. Escravos poucos. Coche a ponto. Cavalo
gordo. Prata muita. Ouro o menos. Jóias que se não
peçam. Dinheiro o que se possa. Alfaias todas. Armações muitas. Pinturas as melhores. Livros alguns. Armas que não faltem. Casas próprias. Quinta pequena. Missa em casa. Esmola sempre. Poucos vizinhos.
Filhos sem mimo. Ordem em tudo. Mulher honrada.
Marido cristão. É boa vida e noa morte.
Torre Velha, em 5 de março de 1650. (Carta, 144)
2. À guisa de conclusão (muito provisória)
Nossa intenção aqui foi conversar sobre a Carta de
D. Francisco Manuel de Melo e tão somente apontar
dois dos seus fios primordiais: por um lado a sua literariedade, por outro o espelho de uma certa vivência claramente lusitana.
A qualidade da prosa de D. Francisco-sua densidade e sua incrível leveza, sua ambiguidade e sua ironia-tornam o seu texto de certa forma pouco acessível a
jovens, decididos a procurar (e a encontrar) testemunhos
da sua apregoada misoginia. Faz-se a censura da obra
de um grande escritor por ouvir dizer. Falta-nos, ainda
hoje, um estudo de conjunto sobre a obra de D. Francisco, suas relações com o contexto hispânico e europeu.
A sua Carta é uma obra das mais modernas da prosa
seiscentista portuguesa e a contraprova disso é o encontro, na caixinha secreta de Donga Novais, depois da sua
morte, de um exemplar da Feira dos Anexins. O escritor
brasileiro revela uma das leituras da sua narrativa carnavalizada. Como verdadeiro discreto redivivo, Autran
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Dourado aponta as suas fontes na reescritura literária da
oralidade: D. Francisco surge ao lado do seu muito amado Quevedo. Menéndez Pelayo sabia do que estava a
falar quando os elegeu como os homens de mais ingénio
da sua época.
Lisboa, julho de 2004
Desenhos:
Rodrigo Alves Rodrigues Dias
O texto é o resumo de uma conferência feita em Julho de 2004, no Congresso de Língua e Literatura Portuguesa
organizado pelo prof. Leodegário de Azeredo Filho, no Rio de Janeiro.
D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) nasce em Lisboa. Começou muito novo a frequentar a corte, cursou
Humanidades no Colégio de Santo Antão e dedicou-se ao estudo da Matemática, pois pensava seguir a carreira das
armas. Militou na marinha e, depois de um naufrágio no golfo de Biscaia, estabeleceu-se na corte de Madrid. Em 1639
comandou um regimento em Flandres e lutou contra os Holandeses. Em 1641, encontrando-se em Londres, aderiu à causa
da independência em Portugal, regressando ao reino onde, depois de receber a comenda da Ordem de Cristo, é acusado e
preso por conivência no assassinato de Francisco Cardoso. Publica, em particular: Carta de Guia de Casados (Lisboa, 1651),
Epanáforas de Vária História Portuguesa (Lisboa, 1660), Obras Morales (Roma, 1664), Cartas Familiares (Roma, 1664),
Obras Métricas (França, 1665), Auto do Fidalgo Aprendiz (Lisboa, 1676), Apólogos Dialogais (Lisboa, 1721).
2
Carta de Guia de Casados. Edição de Maria Lurdes Correia Fernandes. Campo das Letras, 2003. Todas as citações
referem-se a esta edição, indicada apenas por Carta.
3
Veja-se o seu texto Epanáforas que acaba de ter, em parte, a sua primeira tradução para o francês: Le naufrage des
Portugais sur les côtes de Saint-Jean-de-Luz et d’Arcachon (1627). Collection Magellan. Paris, Chandeigne, 2004.
4
O tema está a merecer uma análise aprofundada de tipo bachelardiano sobre as gerações que viveram o período da
união das duas coroas.
5
No momento, trabalho, juntamente com o arquitecto paisagista Rodrigo Alves Rodrigues Dias, sobre a Quinta da
Damaia, que é provavelmente, nos seus primórdios, uma quinta de um Mascarenhas, o conde de Conculim, como a muito
conhecida quinta de Fronteira, aliás. Duas fotos antigas, de Fronteira e da Damaia, mostram um certo ar de parentesco
entre as duas. Cerca de setenta anos as separam: do jardim elevado da Damaia, vê-se Fronteira: estão num mesmo eixo. O
texto da Carta ajuda a perceber as funções de uma casa. A Quinta Grande da Damaia foi adquirida pela Câmara Municipal
de Amadora e está em processo de estudo para futura restauração. O arquitecto Rodrigo Alves Rodrigues Dias, um dos
responsáveis pelo projecto, assina alguns desenhos que tentam reconstituir a Quinta da Damaia no início do século XVIII.
Agradecemos a autorização de publicá-las.
6
Em Minas, há pelo menos dois tipos de mineiros, o das Minas (Drummond) e o das Gerais (Rosa).
7
Difel, 1976.
8
A sua finalidade adaptar-se-ia sem dúvida também a uma quinta construída no início dos Setecentos, como é o caso da
Damaia.
9
Aliás o matar o porco figura na faixa de azulejos Este do Palácio Fronteira juntamente, por exemplo, como o encontro
galante de namorados nos jardins ou a partida das naus nos painéis de azulejos dos Meses do ano.
1
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COLABORADORES | CONTRIBUTORS
ANTÓNIO CARDOSO PINTO nasceu em Angola em 1945. Estudou em Tomar. Ingressou na Emissora Oficial de Angola, em
Luanda, em Fevereiro de 1965. Foi responsável pela abertura dos Emissores Regionais de Cabinda (1970/72) e de Dalatando
(1972/75). Trabalhou na RDP – Antena 1 desde 1976 até 2003. Foi responsável por vários programas, entre eles À Esquina do
Mundo. Publicou 2 livros de poemas: A Lua dos Astronautas não é a Minha Lua e Reflexos. Vive em Portugal.
CARLA COOK nasceu nos Açores, em 1977. É Licenciada em Estudos Portugueses e Ingleses e Mestre em Cultura e Literatura
Portuguesas. Durante 5 anos, leccionou na Universidade dos Açores. Actualmente, lecciona na Brock University no
Canadá.
DANIEL DE SÁ nasceu na Maia, S. Miguel, Açores em 1944. Professor. Publicou vários livros de ficção e poesia. Vive em
Portugal.
FERNANDA VIVEIROs works in book publishing in Vancouver, Canada, and serves as a Regional Director with the Federation
of BC Writers.
HUMBERTA ARAÚJO was born in Vanderhoof B. C, Canada in 1961. She completed a BA at Queen’s University (International
Politics). She returned to Azores, S. Miguel with her parents when she was 7 years old where she worked as a journalist at
all major michaelense newspapers, RDP-Antena 1 and RTP-Azores. Humberta published two books for children – one
Portuguese and one bilingual. She also published poetry and short stories in Azorean cultural magazines and newspapers.
She returned to Canada in July of 1994. She lives in Toronto, Canada.
ILDA JANUARIO completed her studies in Cultural Anthropology at McGill University (B. A.) and University of Montreal
(Msc.) Currently, Ilda is a Senior Research Officer working part-time (40%) at the Centre for the Study of Education and
Work (CSEW) as the coordinator of a SSHRC project, Research Network on Work & Lifelong Learning (WALL). She
writes for Portuguese-Canadian newspapers and has edited and helped launch several books from Portuguese-Canadian
authors. She lives in Toronto, Canada.
J. MICHAEL YATES was born in the Ozark Mountains of Missouri and did graduate degrees at the Universities of Missouri
and Michigan. He is a widely published author of poetry, fiction, drama, translations, and philosophical essays. His work
has been translated into most of the western languages and several of the eastern ones and his drama for radio, television,
and stage have been produced both nationally and internationally. His last rank as a university professor was Distinguished
Professor. He lives in Vancouver, Canada.
JOEL PACHECO nasceu em Florianópolis – Santa Catarina – Brasil, é arquitecto, fotógrafo e programador visual; pesquisador
de tema como paisagem, etnografia e cultura popular. É autor do livro Florianópolis a 10ª Ilha dos Açores-o encontro das
origens. Vive no Brasil.
JORGE ARRIMAR nasceu em S. Pedro da Chibia, Angola. Na década de 70 foi um dos fundadores do Grupo Cultural da Huíla –
GRUCUHUÍLA, e dirigiu um suplemento literário no Jornal da Huíla, no qual publicou os seus primeiros trabalhos. Iniciou
os seus estudos superiores na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda, tendo concluído em Portugal a Licenciatura
em História e a pós-graduação em Ciências Documentais. É membro da União dos Escritores Angolanos. Viveu nos Açores
e em Macau. Escreveu vários livros de poesia e ficção. Vive em Portugal.
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES, (1954-05) natural de S. Martinho, Funchal, pertenceu aos órgãos directivos da Associação
Portuguesa de Escritores (APE) e foi presidente da Associação de Escritores da Madeira (AEM), da qual foi co-fundador
(1989). Escreveu vários livros de poesia. Viveu no Funchal, Madeira.
JOSÉ CARLOS VENÂNCIO é Professor Catedrático da Universidade da Beira Interior, Professor Visitante da Universidade de
Macau (Instituto de Estudos Portugueses) e, no ano lectivo de 1998-99, Professor Visitante da Universidade de Coimbra
(Dept. De Antropologia). Publicou vários trabalhos sobre a África de língua portuguesa e sobre o Brasil. Vive em Portugal.
JOSÉ FÉLIX nasceu em Luanda, Angola, em 1946. É licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sócias e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa. É responsável pela página literária Encontro de Escritas, na Internet. Escreveu 2 livros de
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poesia e organizou várias antologias. Vive em Portugal.
JOSÉ FRANCISCO COSTA nasceu nas Capelas, S. Miguel, Açores. Tem o Doutoramento em Literatura Portuguesa Contemporânea,
da Universidade de Amherst; o Mestrado em Estudos Portugueses e Educação Bilingue, da Universidade da Brown.
Bacharelou-se em História na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Publicou já dois livros de contos:
Crónica do 25 e Mar e Tudo; um de poesia, E da carne se fez verbo: o ensaio-tese “Correspondência de Jorgec de Sena. Vive
nos Estados Unidos.
LAUDALINA RODRIGUES nasceu em S. Miguel, Açores. Licenciatura em Estudos Anglo- Americanos pela Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa (1977). Exerceu actividade de docente e de coordenadora pedagógica em várias instituições
escolares nos Açores. Formadora de Língua Portuguesa para professores das Escolas de Português de Toronto em 2004.
Actriz de teatro em peças apresentadas nos Açores. Vive em Toronto, Canadá.
LÉLIA PEREIRA NUNES nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Socióloga, licenciada nem Ciências Sociais na PUCRGS
e mestrado em Administração Pública na UFSC. Professora Adjunto de Sociologia na UFSC, hoje aposentada. Foi
Superintendente da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes de 1997 a 2004, Secretária-Geral do Conselho
Estadual de Cultura (1999-2002) É Presidente da Fundação Cultural Aníbal Nunes Pires. Vive no Brasil.
LILIAN PESTRE tem dupla nacionalidade (brasileira e francesa), Doutor em Letras pela Université de Paris-Sorbonne (em
Littérature française), Pós-Doutoramento em Lille III e Paris III-Sorbonne Nouvelle (em estudos comparados Littérature
et arts plastiques), Doutor em Letras e Livre docência pela Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ, em Língua
e Literatura francesa), professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF, Estado do Rio de Janeiro, até 1992),
investigador do Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil (CNPq-nível 1A), de 1979 até agosto de 1996; representante
eleita junto ao Comité Régional de l’Amérique Latine et de la Caraïbe de l¹AUPELF (CRALC-AUPELF, de 1982 à 1986);
chevalier des Palmes Académiques (Ministère de L’Education Nationale de la République Française, em 19.11.82) Tem
como publicações: dois livros, traduções de obras literárias e científicas, participação em vários obras colectivas assim como
artigos, em português e em francês, em revistas especializadas com comité de redacção (Brasil, França, Canadá, Itália, México,
Portugal, Alemanha). Vive em Portugal.
LUÍSA RIBEIRO nasceu em Angra do Heroísmo (Açores), em 1960. Obteve em 1985 a 1ª Distinção em Poesia do Concurso
Literário para a Juventude, da Direcção Regional dos Assuntos Culturais dos Açores, com o livro de poemas Fogo Branco.
Está traduzida em castelhano na revista literária Alhucema, onde também é responsável pela recolha de poesia portuguesa, e
em Inglês (On a Leaf of Blue: Bilingual Anthology of Azorean Contemporary Poetry, Berkeley. Em 2005 publica um livro de
poemas, Outros Frutos, em Granada: editora Dauro (Edição bilingue, português/espanhol). Vive em Portugal.
LUIZ FAGUNDES DUARTE é licenciado em Filologia Românica (1981), mestre em Linguística Portuguesa Histórica (1986) e
doutor em Linguística Portuguesa/Crítica Textual (1990); é professor associado, com Agregação, da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Parlamentar. Publicou o livro de ficção Histórias d’Assombração. Vive
em Portugal.
LUSTOSA DA COSTA é jornalista político desde Agosto de 1954 no “Correio da Semana”, de Sobral, no nordeste brasileiro,
Lustosa da Costa é um milionário de amigos. Ama o uísque no Ceará, o vinho na Europa e em Brasília, as mulheres em toda
a parte. Levaria livros de Jorge Luis Borges e Oscar Wilde se o mandassem, muito contrariado, para uma ilha deserta. Escreve
artigos políticos e crónicas. Escreveu o romance Vida, paixão e morte de Etelvino Soares, elogiado por Claude-Lévi Strauss,
Alice Raillard, António Torres, editado no Brasil e em Portugal, e um livro de contos Foi na seca do 1919, ambos tendo Sobral
como cenário. Escreveu ainda livros de crónicas, como Rache o Procópio que recebeu o prémio Ideal Clube de Literatura,
Sobral do meu tempo, elogiado por Jorge Amado e é membro da Academia Brasiliense de Letras. É jornalista e sobralense
em tempo integral. Ambos por esforço próprio. Vive no Brasil.
MARCELLO RICARDO ALMEIDA nasceu em 1961, em Santana do Ipanema, AL, Brasil. É advogado, contista, dramaturgo. Foi
várias vezes premiado pelo método “Teatro-Feijão-Com-Arroz” junto com seu irmão Morche. É autor da peça DEBAIXO
DA PONTE, representada em várias cidades brasileiras. Em Florianópolis coordenou em 2003 e 2004 o I e II Festival
Nacional de Poesia. Preside a Federação das Academias de Letras do Estado de Santa Catarina. É autor de 44 livros e 120
peças teatrais. Vive no Brasil.
ONÉSIMO T. ALMEIDA nasceu em Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, em 1946. É doutorado em Filosofia pela Brown University
em Providence, Rhode Island, EUA onde começou a leccionar em 1975. Foi durante doze anos director do Departamento
de Estudos Portugueses e Brasileiros. Publicou vários livros nos géneros do ensaio, crónica, poesia e ficção. Em breve sairá
Livro-me do Desassossego (dia-crónicas, 2006). Mantém colaboração regular na LER e ocasional no Jornal de Letras, além de
outra dispersa por livros colectivos, jornais e revistas. Vive nos Estados Unidos.
PAULO DA COSTA nasceu em Luanda, Angola e viveu a sua juventude em Vale de Cambra, Portugal. O seu primeiro livro de
contos, The Scent of a Lie foi publicado em 2002 pela editora canadiana Ekstasis Editions, tendo sido galardoado com o
Caribbean & Canada Commonwealth Writers Prize 2003 - First Book e o 2002 W.O. Mitchell City of Calgary Book Prize.
Está representado em diversas publicações espalhadas por cinco continentes. Alguns desses trabalhos foram traduzidos para
Italiano, Esloveno, Espanhol, Servo e Português. Venceu o prémio Cannongate 2001 para o conto (Festival Internacional
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do Livro de Edimburgo – Escócia). Recebeu o 1° Prémio ProVerbo - 2003 nos géneros de poesia e ficção. Notas-de-rodapé
- poemas - é o seu mais recente livro. Vive em Vitória, Canadá.
RUI BALSEMÃO DA SILVA nasceu em Luanda, Angola, em 1934. Contabilista. Radicou-se no Canadá em 1975. Ganhou vários
primeiros lugares com poemas seus no Festival da Canção CIRV, realizado em Toronto. Publicou um livro de poemas, Meu
Grito Meu Canto. Vive em Brampton, Canadá.
TEOLINDA GERSÃO was born in Coimbra. She studied Germanics, English and Romance Languages at the Universities of
Coimbra, Tuebingen and Berlin. She was a lecturer in Portuguese at the Technical University of Berlin, a member of the
teaching staff of the Lisbon Arts Faculty and later professor at the New University of Lisbon, where she taught German
Literature and Comparative Literature until 1995. Since then, she has devoted herself entirely to writing. Her work has
received some of the most important awards for novels and short stories in Portugal and has been translated in several
languages. Resident writer at Berkeley University in February and March 2004. She lives in Portugal.
TOMAZ BORBA VIEIRA nasceu em Ponta Delgada, em 1938. Estudou Pintura Na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,
na Academia de Belas Artes de Florença e Educação Artística na Universidade de Boston. Exposições em Portugal e no
estrangeiro. Premiado em Portugal e Angola. Escritor, publicou as novelas Herdar Estrelas, e Degrau de Pedra . Vive em
Portugal.
URBANO BETTENCOURT nasceu no Calhau (Piedade), ilha do Pico, em 1949. Licenciado em Filologia Românica. Desde 1990,
tem leccionado na Universidade dos Açores as disciplinas de Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão
Portuguesa e Literatura Açoriana, entre outras. Dedica particular atenção às literaturas insulares, tendo já proferido
conferências a propósito em Cabo Verde, Madeira, Canárias e Açores. Colaboração dispersa pela imprensa, rádio e televisão.
Dirigiu, juntamente com o poeta J. H. Santos Barros, A Memória da Água-Viva (revista de cultura açoriana) em Lisboa, no
final dos anos 70. Escreveu vários livros de poesia e ensaio. Poemas seus foram traduzidos para inglês, eslovaco, húngaro e
francês. Vive em Portugal.
URDA ALICE KLUEGER nasceu em Blumenau/SC – Brasil, em 1952. Licenciada em História na FURB – Blumenau – SC;
Bacharel em História na FURB – Blumenau - SC; Especialista em História pela FURB – Blumenau/SC. Autora de vários
livros de ficção e narrativa de viagem. É membro da Academia Catarinense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico de
Santa Catarina, ANPUH – Associação Nacional de História e Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil. Vive no
Brasil.
ÜZEYIR LOKMAN ÇAYCI is a poet, writer and a versatile artist. He was born in 1949 in Bor, one of the beautiful cities of Turkey
where he attended primary and high school. He graduated as an Architect-Designer of Industry from The Fine Arts
Academy of State in Istanbul. His most important works are Aksamlarin Duragi and Kar; he writes poetry, fiction and
articles. His poetry is translated into French by Yakup YURT. The received the Reward of Eagerness given by The Radio
NPS of Holland in 1999 and The Reward of Palmares by The Organization of Les Amis de Thalie in France. Presently he
works at The Center of Adult Education (AFPA). He lives in France.
ŽELIMIR BRALA é embaixador da República da Croácia em Lisboa. Licenciatura em linguística geral e língua e literatura
francesas pela Universidade de Zagreb; mestrado em filologia românica, área de filologia portuguesa, Universidade de
Zagreb; Doutoramento em filologia portuguesa, sobre Fernão Lopes, em curso na Universidade de Zagreb. Linguista,
tradutor literário, ensaísta, crítico, publicou vários artigos em revistas nacionais e lusófonas. Várias palestras públicas sobre
assuntos lusófonos e eslavísticos nas universidades em vários países. Vive em Portugal.
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