O Romanceiro Tradicional
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O Romanceiro Tradicional
94 O Romanceiro Tradicional Popular: Origem e Permanência no Nordeste do Brasil zxz Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista Doutora em Semiótica e Linguüistica Geral pela USP. Professora do DLCV do CCHLA da UPFB. O Romanceiro compreende um conjunto de romances populares que compõe a tradição oral de um povo, ou de uma região. n Julho/Dezembro de 2002 Q uando falamos em romances, não estamos nos referindo às narrativas em prosa que conhecemos comumente, mas às narrativas poético-musicais, caracterizadas, sobretudo, pelo conteúdo épico ou épico-lírico, pela forma dialogada ou dramatizada, pela linguagem popular e pela riCONCEITOS queza de variações, no conteúdo e na forma, advinda de sua natureza oral. Constitui “um domínio bem específico da poesia oral tradicional” (Pinto Correia, 1984: 17). Apresentam extensão variável, mas não muito longos, exatamente por se tratar de peças que exploram a memória do usuário. Em geral, são compos- tos em versos de uma só rima (monorrímicos) de dezesseis/quatorze sílabas, divididos em dois hemistíquios de oito/sete. Menèndez Pidal alude à musicalidade e à função recreativa dos romances, quando os define como: “ poemas épico-líricos breves que se cantan al son de un instrumento, sea en danzas corales, sea en reuniones tenidas para recreo simplesmente o para el trabajo in común.” (1985: 9) A música que os acompanha não possui variações melódicas. São as chamadas monótonas pelos musicistas. Por outro lado, uma mesma melodia pode servir a diferentes ro- tido vago, designando composiciones varias redactadas en lengua comun, no en el latin de los clérigos, (1953, tomo I:3). A origem do romance oral é controvertida. Alguns remontam-no aos antigos cantares de gesta, produzidos no norte da França em langue d’oil. É esta a opinião de Milá e Fontenals que consideram os romances “herdeiros diretos e legítimos dos A origem do romance oral é controvertida. Alguns remontam-no aos antigos cantares de gesta, produzidos no norte da França em langue d’oil. antigos cantares de gesta.” (Apud Michaëlis Carolina. 1980: 25). Os últimos constituem as primeiras manifestações literárias escritas em língua românica, cujo exemplo valioso é La Chanson de Rolland, “epopéia anônima que marcou o triunfo definitivo da langue d’oil,” (ALENCAR, M. 1983: 66) servindo de inspiração a outras composições, como o texto renascentista Orlando Furioso, escrito por Ariosto. Em francês antigo, trazemos um trecho da epopéia franca: “Ei Durendal, cum es bele esentisme! En l’oriet punt asez i ad reliques, La dente seint Perre e del sanc seint Basile E des chevels mun seignor seint Denise” (Ó Durendal, como tu és bela e santa. O punho de tua espada é cheio de relíquias: um dente de São Pedro, o sangue de São CONCEITOS 95 Julho/Dezembro de 2002 “La palabra romance en su sentido primario significou lengua vulgar, a diferencia de latin, acepción que perdura hasta hoy; pero además tuvo desde la Edad Media en el campo literario un sen- Ilustração digital n mances ou diferentes peças da oralidade. O acompanhamento musical dos textos é um costume antigo, proveniente do fato de ter sido composto, em suas origens, para os textos serem recitados ao som dos instrumentos musicais, como a lira e a flauta. Com o passar do tempo, o uso dos instrumentos musicais foi abolido, mas a musicalização permaneceu na memória do povo, tendo sido, muitas vezes, a responsável pela sua conservação no decorrer dos séculos. Tanto é verdade que o simples solfejar da música aguça a memória do informante, levando-o, na maioria dos casos, a lembrar o texto por inteiro. O registro do canto pelo pesquisador torna-se, portanto, uma conservação da oralidade na preservação escrita do texto, permitindo ao leitor refazê-lo na íntegra. Quanto à narratividade, Menéndez Pidal observou a existência de duas formas de apresentação do romance, nomeando-as romances cuento y romances diálogo e considerando que as formas dialogadas “no exponen una serie de sucesos complicada y completa, sino quo si limitan a desarrollar una escena, una situación, un momento” (1553: 63) Os estudiosos reputam sua criação aos séculos X, XI e XII. A designação romance proveio do fato de ter sido escrito, inicialmente, em romanço, língua falada no vasto território do império romano e que foi estágio intermediário entre o latim vulgar e as línguas neolatinas. Da designação dada à língua, passou-se, depois, às composições literárias nessa língua. A respeito do assunto, é ainda Menéndez quem opina: Basílio e o os cabelos de meu senhor São Diniz.) (apud ALENCAR, M. 1983: 66) Na Espanha, a canção de gesta mais antiga documentada é El cantar de mio Cid (fim do século XII) que conta a luta de Rodrigo Diaz de Vivar, cognominado El Cid, contra o domínio mouro. É de autoria também desconhecida e se multiplicou em diferentes peças, atravessando gerações, confirmando uma tradição fluente e rica. Eis alguns versos do romance em espanhol moderno: n Julho/Dezembro de 2002 “De los ojos suyos tan fuertemente llorando, Hacia atrás vuelve la cabeza y se quedaba mirando-los. Vió puertas abiertas y sin candados, Vacias quedan las perchas ni com pieles ni con mantos, Sin halcones de cazar y sin azores mudados” (apud ALENCAR, M. 1983: 67) . Vale observar, entretanto, que as gestas em língua primitiva eram de natureza eminentemente épica, contando longas narrativas de batalhas e feitos heróicos de seus personagens. O texto citado da Chanson de Rolland serve de exemplo, uma vez que descreve a espada de Carlos Magno como algo belo e sagrado. Os romances, ao contrário, apesar de terem mantido a fidelidade formal primitiva quanto à rima e metrificação (versos longos e monorrímicos) perderam os caracteres da epopéia antiga, adquirindo tonalidades líricas. São fragmentos “desengranzados do colar épico” no dizer de Menèndez y Pelayo (apud Michaëlis Carolina, 1980: 25). Aos elementos épicos das gestas primitivas, uniram-se tendências líricas absorvidas, provavelmente, da poesia trovadoresca que se produziu em Pro- 96 CONCEITOS vence, em langue d’oc e que iria influenciar grandemente a literatura ibérica, principalmente em Portugal, cujas origens estão ligadas ao conde Dom Henrique de Borgonha. Os estudiosos a considerarem a inexistência de uma herança imediata dos cantares de gesta e a pensarem em recriações posteriores, tendo em vista a adaptação do romance ao gosto ibérico. Passaram a fazer então uma distinção entre romances épicos propriamente ditos que trazem narrações de feitos heróicos e romances épico-líricos, de assunto novelesco que se difundiu na Europa, na mesma época em que se desenvolviam os primeiros. A canção lírica usava de preferência o dístico, enquanto que a forma métrica dos romances foi extraída dos versos de oito sílabas com assonância monorrítimica, portanto, a mesma versificação das gestas medievais. Este fato levou os estudiosos e críticos dos Romanceiros mais antigos a relegarem as canções líricas, não as incluindo nas coleções de romances dos séculos XVI e XVII, vendo-as “como género literário diverso, menos noble que ele romance de asonante seguido.”(Pidal, Estudio sobre o Romancero: 367). Por outro lado, o povo, via certa de transmissão do Romanceiro, preferindo o verso longo monorrítimico, mais simples e de fácil memorização, deu às canções líricas a mesma forma dos romances. Nesse contexto, não havia necessidade de retirá-las dos Romanceiros, levando-se em consideração que foram mais largamente difundidas que os romances, sobretudo nas Américas. Os romances épicos ficaram circunscritos à área peninsular, sem contar que perderam o timbre da epopéia primitiva, passando a destacar muito mais os momentos líricos. No início, os romances épicos e novelescos foram criados para se- rem cantados por jograis nos serões e festas da corte. Somente a partir dos séculos XV e XVI foram adaptados ao gênio popular e difundidos em larga escala. O motivo se prende aos movimentos expansionistas que se alargariam a partir do século XV (a descoberta do caminho marítimo para as Índias e a projeção sobre terras de América, Ásia e África). Conseguindo o inusitado: alargar os domínios e encher os cofres com o ouro advindo das colônias, era preciso difundir e tornar conhecidos, nas novas terras, os valores dos seus reis, a bondade e a beleza de suas donzelas e a valentia de seus nobres. O romance se prestava muito bem a isso, sobretudo pelo fato de ser cantado, permitindo uma rápida memorização. Além de veicular informação sobre a vida no reino, serviu também como instrumento de catequese para os jesuítas que os faziam representar em suas comemorações. O mesmo aconteceu com os ciganos e artistas de circo que se tornaram responsáveis por sua penetração nas zonas interioranas. O nordeste do Brasil tem-se revelado muito rico quanto a seu Romanceiro. Grande centro econômico e cultural do Brasil no início da colonização (sobretudo a Bahia, cuja capital foi a primeira do Brasil e Pernambuco, a sede da aristocracia canavieira) recebeu o colonizador português que difundiu entre nós um espetacular acervo de romances orais. Inúmeros levantamentos, realizados desde a segunda metade do século passado, vêm comprovando o fato. O primeiro a se interessar pelo assunto foi Celso de Magalhães que fez uma recolha no Maranhão, Pernambuco e Bahia, publicando-a , em 1873, como artigo no jornal O Trabalho, em Recife, sob o título A poesia popular brasileira que foi editado por Bráulio Nascimento, em 1973, Rosário Soares Albãn, publicado em 1996, além de inúmeros trabalhos inéditos, como os realizados na Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação da professora Idelette Santos e da nossa. Atuamos, em princípio, nas regiões do agreste, litoral e cariri paraibano, o que nos valeu a realização do Romanceiro na Paraíba (inédito). Depois estendemos o levantamento a Pernambuco, obtendo o material com que pensamos em realizar o romanceiro daquele estado ou então juntarmos ao material recolhido na Paraíba para formar uma única coletânea com o título geral de Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco. É precisamente com este título que vamos nos referir ao nosso trabalho, a partir de agora. A pesquisa sobre o Romanceiro no Nordeste do Brasil, embora de um valor inestimável pela riqueza de tipos de romances e variações encontradas, nem sempre obedeceu aos critérios rigorosos da pesquisa científica na área. Muitos se limitam a levantar os textos, sem dados sobre o informante e localidade pesquisada. Existe alguém, inclusive, que modifica a linguagem do informante, transformando em erudito, o que era em essência popular, como é o caso de José de Alencar em O nosso Cancioneiro. “Declaramos que temos unicamente coligido por escrito os romances do Bernal Francês, Nau Catarineta e D. Barão e que os outros, que houvemos de comparar, foram ouvidos, é verdade, mas não podemos tê-los por escrito, por causa da grande dificuldade que encontramos nas pessoas que os sabiam, as quais CONCEITOS 97 Julho/Dezembro de 2002 Não têm culpa, portanto, esses mestres do passado. A eles devemos, pelo menos, a idéia pioneira de coleta e registro. Na verdade, José de Alencar foi um dos primeiros a se interessar pelo assunto no Brasil. Como bom romântico, empolgou-se pelas coisas da terra e da gente e quis nos presentear com romances em que escutava o povo dizer. Procurou um modelo e o encontrou em Almeida Garret, em Portugal, que também corrigiu a linguagem do informante. O conteúdo era maravilhoso, lembrando os feitos gloriosos de nossa gente. Entretanto, o modo de dizer estropiado e simples carecia de rebuscamento gramatical para ser aceito por um público exigente. Não têm culpa, portanto, esses mestres do passado. A eles devemos, pelo menos, a idéia pioneira de coleta e registro. Com Sílvio Romero, Celso de Magalhães, Rodrigues de Carvalho e Pereira da Costa, no final do século dezenove e início do século vinte, começou-se a preservar a fala do povo. No entanto, sem os equipamentos de que dispomos hoje (gravação, filmagens, boas fotografias, computadores), muita coisa ainda passava desapercebida, sobretudo pelo fato de, não raro, receberem os textos provenientes de parentes ou amigos letrados que os copiavam de outrem, não nos permitindo descobrir se o informante tinha ou não instrução. Especialmente, sobre as dificuldades enfrentadas no levantamento dos romances, assim se expressa Celso de Magalhães: n através da Biblioteca Nacional. Em 1874, o cearense José de Alencar publicou o Nosso Cancioneiro no qual incluía uma versão recriada, a partir de diferentes romances do ciclo do gado. Em 1883, Sílvio Romero publicou, em Lisboa, a primeira edição dos Cantos populares do Brasil que se tornou uma obra de referência para os estudos na área, tendo levantado romances orais em Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Ceará, Bahia e Rio de Janeiro. A edição brasileira dos seus Cantos aconteceu catorze anos depois, em 1897. Em 1903, ocorreu a primeira edição do Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho, levantado principalmente na Paraíba e, em 1908, a edição do Folk-lore Pernambucano de Francisco Pereira da Costa, “o mais extenso, sólido e surpreendente documentário da cultura popular do nordeste” utilizando-se a expressão do grande etnógrafo brasileiro Luís da Câmara Cascudo cuja admiração pelo trabalho vai mais além ao assegurar que “não existe na bibliografia brasileira realização comparável” (apud COSTA, 1974). No espaço compreendido entre 1945 e 1947, Hélio Galvão dedicou-se ao estudo e levantamento de romances tradicionais no Rio Grande do Norte, realizando o trabalho Romanceiro pesquisa e estudo que seria publicado, em 1993, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Fundação Cultural Hélio Galvão. Modernamente, convém citar: O Folclore em Sergipe: Romanceiro, de Jackson da Silva Lima, trabalho que recebeu o prêmio Sílvio Romero do Instituto Nacional do Folclore em 1977; Romanceiro Alagoano, de José Aloísio Vilela, publicado em 1983, em Maceió; O Romanceiro de Alcaçus, de Deífilo Gurgel, publicado em Natal/RN, em 1993; O Romanceiro ibérico na Bahia, de autoria conjunta de Doralice F. Xavier Alcoforado e Maria do somente podiam repeti-los cantando e, quando paravam, não lhes era possível continuar sem recomeçar.” (1879: 564-565) Pensamos que estes fatos respondem pelo pequeno número de romances registrados nas primeiras coletâneas. Mesmo depois da publicação de o Folk-lore Pernambucano, não chegavam a cem, conforme afirmação de Câmara Cascudo (1984: 209). Da década de setenta para cá, aproxima-se de mil o número de romances levantados no nordeste. Vale lembrar ainda nos estudos pioneiros a indiscriminação da matéria coletada, fazendo amontoar numa só coletânea romances, cantigas, desafios de cantadores e outros. Um exemplo concreto disso temos no Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho. Já Pereira da Costa, embora tivesse feito uma coleta ampla, que juntou numa única coletânea, conseguiu distinguir cada coisa por capítulos, intitulando-os pelo conteúdo: 1 - Superstições populares; 2 - A poesia popular; 3 - Romanceiro; 4 - Cancioneiro; 5 - Pastoris; 6 - Parlendas e brinquedos infantis; 7 - Miscelâneas; 8 - Quadras populares. Sílvio Romero teve a mesma preocupação de Pereira da Costa. Seus Cantos Populares do Brasil são em dois volumes: um dedicado ao Romanceiro e outro, ao Cancioneiro. são de um grande número de textos em língua galega, conservados por imigrantes galegos que ali se estabeleceram desde o século XIX. Além disso, muitos romances aparecem prosificados, tendo perdido uma das características mais importantes do romanceiro que é sua natureza poético-musical. O Romanceiro de Alcaçus segue o modelo de Jackson, enquanto que o de Hélio Galvão não apresenta uma firmeza quanto aos dados de informante, comunidade e data, ora os trazendo, ora os omitindo. A bibliografia e a data vão aparecer também no Romanceiro alagoano, embora sem dados do informante (só em casos esporádicos aparece a indicação do nome). As características mais importantes dessa coletânea são a inclusão apenas do romance de origem ibérica e o registro dos romances em verso longo, seguindo o modelo dos antigos e indicado para o tipo de poesia narrativa, quase sempre em linguagem dialógica e em versos monorrímicos. O Romanceiro Ibérico na Bahia e o Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco seguiram a proposta de Vilela, enquanto que os demais preferiram o registro em quadras de seis e sete sílabas, não diferenciando, portanto, os romances de outras narrativas tradicionais (da cantiga, por exemplo). Mesmo depois da publicação de o Folk-lore Pernambucano, não chegavam a cem, conforme afirmação de Câmara Cascudo (1984: 209). Da década de setenta para cá, aproxima-se de mil o número de romances levantados no nordeste. Julho/Dezembro de 2002 n O trabalho de Jackson da Silva Lima, publicado em 1977, foi um marco nas pesquisas sobre o Romanceiro no Brasil, pela quantidade de tipos (e suas variantes) levantados, pela seriedade da pesquisa realizada, pela organização da coletânea e pelos comentários sobre a origem e referência bibliográfica de cada romance obtido. Até aqui eram indicados o Estado (Celso e Rodrigues) e/ou comunidade pesquisada (Sílvio e Pereira). Nada existia sobre o informante. Jackson lança a idéia da indicação do informante (alguns até com documentação fotográfica), do local de origem do mesmo e do local e data onde foi feita a gravação, além dos registros musicais, atendendo ao desejo de Sílvio Romero que exortava o pesquisador a recolher as “solfas dos romances”, impossibilitado que foi de o fazer ele próprio. Faltaram em Jackson, todavia, maiores dados sobre o informante, como, por exemplo, a idade e o grau de escolaridade que vão aparecer completos no Romanceiro Ibérico na Bahia e no Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco, inclusive com a indicação da forma de coleta do texto, se através de canto, da recitação apenas ou da escrita e a indicação bibliográfica de cada romance. A coletânea baiana apresenta um fato inusitado nas pesquisas do romanceiro no Brasil que é a inclu- 98 CONCEITOS bibliografia ALCOFORADO, Doralice Xavier e ALBÁN, Maria del Rosário Suárez. Romanceiro Ibérico na Bahia. Salvador: Livraria Universitária, 1996. ALENCAR, Meton de. 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