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................................... ................................... 1ª edição Flávio Marcus da Silva 1ª impressão (2013) Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. PEIXES FORA D’ÁGUA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) _____________________________________________ Silva, Flávio Marcus da PEIXES FORA D’ÁGUA. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm. 1. Literatura brasileira. Contos. Brasil. Título. CDD- B869 ____________________________________________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br VirtualB ooks © Copyright 2013, Flávio Marcus da Silva. 1 2 ................................... CONTEÚDO ................................... Deu a louca em Ramon A praça estava calma naquela manhã ensolarada de sábado. Sentado sozinho num banco perto da lagoa, Ramon ouvia o canto dos pássaros nas jabuticabeiras carregadas e o balançar suave das folhas de uma enorme mangueira, cuja sombra acolhedora era um convite irresistível à preguiça, a ficar ali de boa, sem fazer nada. Em seu colo, aberto na primeira página, um livro de contos de Terezinha Pereira que ele já tinha lido, mas que pretendia reler naquela manhã. Só que não teve jeito. Deu a louca em Ramon Somos chiques mesmo, e daí? Papai Noel para poucos A indignação de Dona Jaciara Goiabas bichadas Zona de conforto Passeio ao Shopping É que, de repente, Ramon ouviu um barulho vindo de trás, um som mecânico que, de longe, parecia vir de um cortador de grama, mas que, ao se aproximar, estava mais para motor de broca de dentista (aquele som torturante, insuportável). Ao sentir que a coisa já estava bem perto dele, Ramon virou a cabeça e viu um menino de dois ou três anos, daqueles bem rechonchudos, montado numa moto de três rodas movida a bateria, descendo lentamente o caminho que levava à beira do lago. Logo atrás dele vinha o pai, um gordinho bem-apessoado, enfiado num traje esporte fino e carregando, numa bolsa de couro, o que certamente era seu computador portátil último modelo (devia ser um jovem empresário ou executivo, daqueles que não perdem tempo na vida quando o assunto é dinheiro). Genro: uma palavra que me gela a espinha Papai, amanhã tem circo! É por isso que estou aqui Entendendo Ramon Calouros e veteranos na CEDAF-UFV De marré deci Um dia em Amsterdam Petúnia Negra Trem noturno para Lisboa Um sopro da natureza Viver é morrer As férias de Ramon Foi assim que acabou o sossego de Ramon. Ele até tentou ignorar aquele pai sério, concentrado na tela do seu computador, enquanto o filho gordinho (que era a sua cara) ia de um lado para o outro, sem parar, montado na sua moto de barulho irritante. Não conseguiu. Procurou outro banco, mas em cada um havia uma pessoa, e Ramon só se sentava em bancos de praça se fosse para ficar sozinho. Ramon em choque Peixes fora d’água 3 4 ................................... Não havia passado nem cinco minutos quando Ramon ouviu um outro barulho, parecido com o primeiro, mas ainda mais irritante. Dessa vez ele não olhou para trás. Deixou que em seu campo de visão fosse entrando lentamente um carrinho motorizado da Barbie, pintado com todos os tons de rosa possíveis no mundo, guiado por uma menina de no máximo três anos, tão gordinha que parecia nem ter pescoço. Ela vinha acompanhada da mãe, uma jovem alta e corpulenta, certamente com vários quilos acima do que qualquer médico recomendaria como ideal, carregando uma caixa de isopor e uma bolsa de couro que, ao ser aberta, revelou em seu interior (alguém adivinha?) um pequeno computador portátil. Ela não tinha cara de empresária. Parecia mais esposa de um, daquelas bem ociosas e depressivas, que preenchiam seu tempo livre em casa atacando a geladeira e fuçando redes sociais. Ramon se sentiu incomodado com aquele barulho (a sensação era como se dois enxames de abelhas-robôs estivessem voando ao redor da sua cabeça), mas decidiu ficar, para se torturar, como quando ligava a televisão de madrugada e assistia aos programas das igrejas mundiais e universais, para ver até onde ia aquela loucura – a encenação, a exploração, a estupidez – e se indignar, se revoltar inutilmente até o dia clarear. A cena então era a seguinte: num banco, um pai obeso no computador. No outro, uma mãe obesa no computador. E passando na frente de Ramon, indo e voltando, duas crianças obesas motorizadas, filhas dos pais obesos nos computadores. Aquilo foi irritando Ramon de tal forma que faltava pouco para ele explodir e cometer uma loucura. Por 5 ................................... quê? Ora, porque Ramon é assim. Tem coisas que o irritam e ele fica louco. Vai entender... Eu é que não entendo. E assim ficou Ramon, sentado no banco da praça, vendo aquele vai-e-vem insuportável, ouvindo os zumbidos infernais, até que a mãe se levantou, abriu a caixa de isopor e retirou dois potinhos de sorvete, fazendo Ramon se enrijecer todo, suas mãos crisparem-se sobre o tecido da calça e seus olhos se arregalarem, cheios de espanto. A mulher pediu às crianças que parassem seus brinquedos e entregou um potinho para a filha e outro para o seu coleguinha. O pai lhe agradeceu quando ela passou perto do seu banco; trocaram uma ou duas palavras simpáticas, por educação, e voltaram para seus computadores. “Sorvete...”, pensou Ramon. “Essas duas bolinhas precisavam era de um suco natural e muito exercício: correr, brincar de pique, de bola, de cabra cega... E esses dois imbecis, que elas têm como pai e mãe, ficam aí parados, vendo-as engordarem... Que horror...”. De repente a menina começou a chorar. Seu sorvete tinha caído no chão. A mãe voltou e lhe deu outro. O menino não tinha terminado o seu, mas quis outro também – disse que não gostava de chocolate. A mulher então lhe deu um de morango. E os dois ficaram ali, chupando seus sorvetes, com o carro e a moto ligados, embora parados. A menina terminou seu potinho e pediu outro. O menino também. E a mãe foi dando sorvete para eles, sem parar, com a maior naturalidade. Ramon contou quatro potinhos para cada um e ficou pensando se alimentação inadequada e falta de exercícios físicos não constituiriam também um caso para o Conselho Tutelar. 6 ................................... Ramon estava no seu limite, quase perdendo a razão, quando a mulher se levantou para levar mais um sorvete para cada um. As crianças nem chegaram a tocar nos potinhos. Quando deram por si, seus sorvetes estavam dentro da lagoa, lançados por um Ramon já transfigurado em monstro: olhos vermelhos, lábios tremendo, boca espumando, cabelo molhado de suor... A mulher se assustou tanto com Ramon, que ficou parada, atônita, sem saber o que fazer, e assistiu impassível a ele retirar com delicadeza as crianças de seus veículos motorizados, carregar a moto num braço e o carro da Barbie no outro e, num movimento de força hercúlea, jogá-los também dentro da lagoa. O pai nem viu nada. Quando levantou os olhos, Ramon já estava em cima dele, arrancando de suas mãos o computador, que saiu voando como um bumerangue sem volta em direção à lagoa. O mesmo aconteceu com o computador da mulher, e também com a caixa de isopor. Tudo voando. O homem ainda tentou tirar satisfação, esbravejou, ameaçou chamar a polícia, mas Ramon lhe deu um empurrão que o jogou longe, e saiu correndo dali. ................................... Somos chiques mesmo, e daí? Coitado do Ramon... Que sofrimento! Um dia que prometia paz e alegria, lazer e descontração, por nada se transformou num inferno. Mas pelo menos foi um desabafo. O dia foi perdido, Ramon precisou dobrar a dose do seu calmante no meio da tarde, mas eu não sei o que poderia ter acontecido se a panela de pressão que era Ramon não tivesse encontrado naquele surto repentino a sua válvula de escape... Não é bom nem pensar. - Muito interessante... E o que esse movimento promove? - Nossa convidada de hoje é uma das mulheres mais badaladas da alta sociedade local: D. Jaciara de Assunção Menezes Torres e Albuquerque. Boa noite, D. Jaciara, é uma alegria imensa tê-la conosco. - A alegria é toda minha, meu caro Bruno. É sempre um prazer voltar ao seu programa. - Acho que todos os nossos ouvintes já conhecem D. Jaciara, sabem que ela pertence a uma das famílias mais ricas e influentes da cidade, que muito contribui para o desenvolvimento econômico de toda a região. Porém, D. Jaciara tem uma novidade para nos contar... - Pois é. A novidade é que eu e um grupo de amigas acabamos de fundar um movimento na cidade chamado “Somos chiques mesmo, e daí?”. - Bem, há muito tempo me incomoda o fato de haver em nossa cidade um preconceito muito grande contra ricos e pessoas de classe. Por exemplo, tem um jornalista aqui que não perde uma única oportunidade para achincalhar os representantes da alta sociedade local: não cita nomes, é claro (porque ele não é louco), mas está sempre tentando mostrar que não existe diferença entre as pessoas. - E existe? 7 8 ................................... - Claro que sim! Eu, por exemplo, viajo para a Europa cinco vezes ao ano. Só bebo vinho alemão Mit prädikat ou francês com Appellation d'origine contrôlée. Não preciso trabalhar para viver: sou dona de quase a metade dos imóveis comerciais da cidade, que me rendem alugueis astronômicos, fora os lucros das empresas que eu e meus irmãos herdamos de papai e das fazendas de gado Nelore que possuímos no norte de Minas. Isso sem contar o fato de termos mais deputados e prefeitos na nossa família do que qualquer outra família no estado, o que, sem dúvida, facilita muito as coisas, não é? Pois então. Como alguém pode dizer que eu sou igual, por exemplo, à minha camareira número 4, que mora em um barracão de aluguel, num bairro tão distante do centro, que ela precisa pegar seis ônibus por dia para ir e voltar do serviço? - Entendo perfeitamente o seu ponto de vista, D. Jaciara, mas talvez a perspectiva do jornalista em questão não seja essa... - Eu sei muito bem qual é a perspectiva dele. É a de alguém que precisa trabalhar para viver; anda num carro caindo aos pedaços porque não consegue comprar um novo; nos finais de semana só tem dinheiro para levar os filhos na pracinha da igreja e enchê-los de churrasquinho enfumaçado com guaraná... Eu conheço esse tipo de gente. Essas pessoas têm é inveja dos ricos, dos que têm classe, por isso inventam essas histórias de que somos todos iguais, de que “privada de ouro não fede menos”. Claro que fede menos! Lá em casa, por exemplo, tem um aparelho que eu trouxe do Japão que elimina todo o fedor das fezes antes mesmo dele sair da privada! Não dá tempo nem do cheiro chegar aos narizes de quem está defecando. Tudo acontece como num passe de mágica! E enquanto eu defeco, tenho diante de mim uma TV 9 ................................... exibindo documentários franceses de altíssimo nível: Thalassa, Envoyé Spécial, Quartier Général, etc. Pobre tem isso? O nosso jornalista tem isso? - Imagino que não, D. Jaciara. Mas, o que exatamente promove o movimento “Somos chiques mesmo, e daí?”? - O nosso movimento promove a conscientização das pessoas para o fato de que ser chique não é para todos, mas para uma minoria rica, e que é preciso aceitar isso sem conflitos, sem inveja, sem rogar praga e torcer para que todo tipo de desgraça aconteça com representantes da nossa classe. É incrível como pobre cafona adora ver rico chique sofrer, só pra dizer: “Tá vendo! Tem dinheiro, mas não é feliz”. Coitado. Infeliz é ele: mora mal, ganha mal, come mal e dificilmente vai melhorar de vida. Somos chiques mesmo, E DAÍ? Não fomos nós que inventamos o capitalismo! Que culpa temos nós de que, para existir, o capitalismo precise de milhares de trabalhadores pobres dispostos a vender o seu trabalho por uma mixaria e, assim, fazer os ricos ficarem cada vez mais ricos? Não temos culpa disso! - Muito bem, D. Jaciara... - E não temos culpa também dos pobres só aparecerem nas páginas policiais, enquanto nós, que temos dinheiro para pagar a publicação de nossas fotos e de matérias sobre nossas vidas chiques, aparecemos nas melhores colunas sociais da região, sempre arrancando suspiros invejosos de todos que gostariam de ser como nós. - Entendo... 10 ................................... - E eu lá tenho culpa do meu filho ser brilhante, de estar fazendo doutorado numa das melhores universidades federais do país e viajar o mundo todo apresentando seus artigos em conferências internacionais? Por que eu não posso contar isso para todo mundo? É verdade! - Claro, D. Jaciara, não precisa ficar nervosa. - Não estou nervosa, meu caro Bruno. Apenas quis enfatizar a importância do nosso movimento, que representa uma minoria em nossa cidade (e no Brasil como um todo): uma minoria que também tem seus direitos, assim como os gays, os índios, os sem-teto, os sem-terra, os cotistas universitários, etc. - D. Jaciara, infelizmente nosso tempo acabou. Foi um prazer conversar com a senhora. - O prazer foi todo meu. E quem quiser mais informações sobre o nosso movimento, encontre-nos no Facebook. É só digitar: “Somos chiques mesmo, e daí?”. Muito obrigada! ................................... Papai Noel para poucos Querido Papai Noel, Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá setecentos reais por mês para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo duzentos todos os meses (porque eu quero juntar três mil reais para levar para a Disney no ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim). Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma bolsa, porque ele é pobre e negro, coitado. Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz-credo e favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino porque não pegava bem (a galera ia ficar me zoando e ia acabar me isolando do grupo); só a professora e a diretora falavam com ele. Mas eu nunca bati nele, nem o chamei de nomes feios. De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles. Quando não sobra nada, eu pego uns dois ou três pães (que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão) e jogo para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava 11 12 ................................... com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino para fora, chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai. ................................... celular, o senhor sabe... não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para ninguém ficar zoando a gente. Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor. Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da ASCIPAM é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores, só ganham de Natal brinquedos ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas mágicas visitar as nossas casas. Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que tiver no mundo), porque quinze colegas meus já têm os seus e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não posso ficar para trás. Aproveito esta carta também para agradecer o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! O computador já não me serve mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou com um muito mais caro do que o meu, então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o 13 Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu queria confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e uma hora ele disse que este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o senhor? Um forte abraço, blá blá blá... 14 ................................... A indignação de Dona Jaciara - No programa de hoje vamos conversar novamente com a líder do movimento “Somos chiques mesmo, e daí?”, D. Jaciara de Assunção Menezes Torres e Albuquerque. Convidei-a atendendo a um pedido do seu primo, o senador Aníbal Menezes Torres, que me ligou hoje pela manhã. A entrevistada desta noite seria D. Ana do Zé Preto, responsável pelo restaurante da criança do Bairro da Consolação, mas diante do pedido do nosso querido senador, eu tive que cancelar. Boa noite, D. Jaciara. É uma honra tê-la novamente conosco para mais um bate-papo. - Boa noite, Bruno. Eu sabia que você não ia negar um pedido do seu padrinho, que sempre te acolheu muito bem em Brasília, não é mesmo? Mas antes de tratar do assunto que me trouxe aqui hoje, eu gostaria de agradecer publicamente ao meu grande amigo, o médico Dr. Américo Torres (que é também meu primo em segundo grau e membro do movimento “Somos chiques”), pelo atendimento de primeira dado a mamãe no hospital ontem à noite. Normalmente, quando o problema nos parece grave, utilizamos um dos helicópteros da família e levamos mamãe até a capital. Mas ontem, como tudo indicava se tratar apenas de uma simples micose na virilha, eu liguei imediatamente para o Américo, que estava em seu horário de plantão no SUS. Na mesma hora ele se levantou da mesa onde jogava baralho com outros médicos, na fazenda do seu irmão, e veio correndo para o hospital. E me permita aqui um desabafo, meu caro Bruno: quando chegou lá, Dr. Américo foi atacado por dez pobres que aguardavam na fila do SUS, só porque ele não estava no hospital para atendê-los 15 ................................... quando eles queriam, e também porque passou mamãe na frente. Veja bem: o SUS paga uma miséria para os médicos, que são obrigados a atender qualquer pessoa que chegar (um absurdo!). Mamãe, riquíssima, membro do “Somos chiques” e de clubes de altíssimo nível na cidade, irmã de deputados e senadores, não vai ser atendida primeiro? Foi um horror! Queriam matar o coitado do Américo: as crianças pobres começaram a chorar e a gritar, as mães arrancaram seus chinelos e tamancos sujos de terra vermelha e foram pra cima dele, enquanto os homens tiveram que ser contidos pelos enfermeiros para não cometerem uma loucura. A sorte foi que eu consegui falar com o capitão Nascimento (irmão da esposa de um sobrinho de papai), que interrompeu uma partida de truco com traficantes na periferia só para colocar fim ao motim no hospital. Tudo acabou bem: os amotinados foram recolhidos ao camburão e levados à delegacia. Que noite! - Impressionante! Que absurdo... Mas, D. Jaciara, qual é o assunto que a senhora gostaria de discutir conosco esta noite? - Pois bem. Estou aqui com uma crônica intitulada “Coluna Social Suburbana”, de autoria de um rapaz chamado Paulo Giardullo, que teve a ousadia de sugerir a possibilidade de se publicar colunas sociais de pobres. O exemplo que ele usa para ilustrar a sua coluna fictícia é de arrepiar os cabelos: uma festa na casa do “Seu João do Forno”, para comemorar a sua aposentadoria, depois de décadas trabalhando em uma siderúrgica. Vou comentar algumas passagens do texto. Ouçam isto: “Os Pratos: foi servida uma deliciosa feijoada, com miúdos de 16 ................................... porco e feijão preto legítimo, sendo contratada, com exclusividade, a Dona Janaíra, cozinheira do famoso ‘Bar do Sô Quim’, e sua equipe”. ................................... sua priminha, a Aninha, que ganha alguns trocados para tomar conta dele, enquanto sua mãe trabalha de doméstica”. Ora, desde quando uma feijoada de pobre possui a sofisticação e o requinte necessários para ser servida como prato em uma festa digna de coluna social? Tem cabimento uma coisa dessas? Dá para acreditar nisso? Uma mulher do meu nível, que tem na sua suíte uma banheira esculpida numa peça maciça de quartzo amazônico avaliada em dois milhões de reais, na sala de estar um pianobar com paredes revestidas em couro de iguana de Galápagos, e nas unhas um esmalte feito de lascas de ouro, mantido em um recipiente de cristal com tampa cravejada de brilhantes, não pode se calar diante de uma sucessão de absurdos como essa! Só para citar alguns exemplos do que significa requinte e sofisticação, meus caros ouvintes, apresento-lhes algumas iguarias servidas durante uma festa que eu dei semana passada no meu palacete, em comemoração à medalha “Abolição da República”, recebida das mãos do próprio presidente pelo meu irmão Otávio, que é Promotor de Justiça aqui na cidade. Ouçam com atenção: Plateau de fruits de mer (para quem não entende o francês, eu traduzo: peixes, crustáceos e outros frutos do mar, de frescor absoluto, servidos em uma tábua de madeira nobre dourada com fios de ouro comestíveis), pizza contendo no recheio quatro tipos de caviar e lagosta, frozen yogurt de melão, chocolate feito com leite de camelo de Dubai, sorvete de caviar e de fígado de ganso, vodca polonesa envelhecida 25 anos... (Só para vocês terem uma ideia, as bebidas chegaram de carro-forte blindado). Agora ouçam mais este trecho da crônica do tal Giardullo (Quando eu li esta passagem na reunião de sábado do “Somos chiques”, minha amiga Lúcia passou mal e teve que ser conduzida de helicóptero à capital): “A Decoração e o Figurino: a casa foi lindamente decorada pelo cabeleireiro do bairro, o Jesuíno, com motivos lembrando o aço, e, no centro da sala, uma maquete da Siderúrgica onde Seu João trabalhou, feita pelo neto dele, o Zezinho, que esteve o tempo todo acompanhado pela sua Babi Sister, na verdade 17 E tem mais! Ouçam isto: “A filha mais nova do Seu João, a Adelaide, estava simplesmente magnífica em um modelito saia e blusa jeans, adquirido na Boutique da Silvinha, que fica ali na esquina. A mulher dele, Dona Efigênia, apareceu subitamente no salão, digo, quintal, com um vestido legítimo do ateliê da Dona Tereza, a ‘Te Costureira’. Era um ‘tomaraque-caia’ lilás, com babados dourados, realmente um luxo!” Estou simplesmente HOR-RO-RI-SA-DA com isso! E gostaria de deixar registrada aqui, meu caro Bruno e queridos ouvintes, a minha INDIGNAÇÃO diante da ousadia desse Paulo Giardullo, que não tem a mínima noção do que é ser chique nesse nosso país. 18 ................................... Na estrada deserta o carro cortava a noite em alta velocidade. ‘Não acredito que você fez isso’. “O quê?”. ‘Deixar aquela mulher na estrada, sem prestar socorro’. “Mas ela estava morta”. ‘Você não sabe se ela estava morta’. “Como não sei? Sou médico, sei muito bem quando estou diante de um cadáver ou não”. ‘Mas os lábios dela tremiam, os dedos se mexiam’. “Isso é normal. Ela tinha acabado de morrer. Ontem mesmo eu vi uma reportagem no Discovery Channel sobre o Baiacu, aquele peixe que os japoneses adoram. Numa cena o peixinho estava morto numa bandeja, limpinho, as vísceras já postas numa tigela à parte, e ele ainda mexeu a boca três vezes. Com o corpo humano é a mesma coisa”. ‘Mas você tinha que prestar socorro’. “Não tinha nada. Quem disse isso? Nossos legisladores? Ora, não me faça rir. Prestar socorro a quem? A um corpo?”. ‘Você é responsável pela morte daquela mulher. Tem que pagar pelo que fez’. “Foi um acidente. E acidentes acontecem. O que você quer? Que eu me entregue à polícia? Que eu diga Olha seu policial, eu bebi três taças de vinho com os amigos num sítio aqui perto e ao voltar pra casa, sozinho, atropelei uma mulher que andava de bicicleta no acostamento, e ela morreu. É isso que você quer? Pra quê?”. ‘Justiça’. “Que justiça? A dos juizes? Dos deputados?”. ‘Você cometeu um crime’. “Não me diga... Eu conheço o Código Penal. Por isso mesmo eu sei que, se eu me entregar, nenhuma justiça será feita. Vou pagar uma fortuna a um bom advogado mercenário, que vai livrar a minha cara em menos de duas semanas. E eu ainda tenho amigos juizes que não pouparão esforços para me ajudar. Só vou ter que aguentar os jornalistas me chamando de canalha em rede nacional, o que me desagrada um pouco. Por isso prefiro facilitar as coisas e deixar tudo como está: ninguém me viu, ninguém anotou a ................................... minha placa...”. ‘Eu vi’. “Mas você não conta. Daqui a pouco eu te convenço e nos acertamos. A propósito, é a primeira vez que você me dá trabalho desse jeito. Sempre que você me questiona sobre minhas atitudes e ideias eu te neutralizo em menos de um minuto. E agora isso... Você se lembra quando eu pedi àquele coitado pra dar um jeito nos pés de pequi e de ipê amarelo da minha fazenda, dizendo que eu me responsabilizaria por tudo caso a polícia o pegasse?”‘E a polícia o pegou e você jogou a culpa toda nele?’ “Pois é... você entendeu em um minuto que o que eu quis dizer para o coitado foi outra coisa, que foi ele que interpretou errado, achando que era pra cortar as árvores e não era... Foi uma confusão danada”. ‘Então era pra cortar’. “Claro que era. Mas pense comigo... Onde já se viu um médico respeitado como eu, pai de três filhos médicos, de uma família tradicional, ter que prestar contas à polícia e pagar multas por causa de meia dúzia de pés de pequi e dois de ipê?”. ‘Mas o coitado foi preso e teve que pagar multas’. “Ele cortou porque quis. Eu não o obriguei”. ‘Mas o enganou’. “Isso não importa”. ‘Importa sim’. “Para quem? Para Deus?”. ‘Talvez’. “Eu não acredito em Deus”. ‘Eu sei que não. E tenho nojo de você quando te vejo na igreja, ajoelhado, fingindo rezar, na sua ânsia por respeitabilidade, lustrando essa sua máscara de bom cidadão. Mas saiba que teus olhos te traem...’. “Não me venha com lições de moral. A vida é um jogo, e só ganha quem sabe jogar. Eu sei jogar. E nesse caso do atropelamento, eu agi corretamente, não tente me convencer do contrário. Ter que enfrentar a polícia, contratar advogado, para no final não acontecer nada? Pra quê? Agi corretamente porque me poupei desse atraso de vida”. ‘Você não pode garantir que não ia acontecer nada’. “Claro que posso. É o que acontece com a maioria dos políticos que roubam e dos médicos que matam e mutilam por descuido e negligência: absolutamente NADA”. ‘Mas 19 20 Goiabas bichadas ................................... cada um tem a sua consciência’. “Olha, vou te dizer uma coisa: conheço um político que já deve ter roubado tanto dinheiro da Saúde Pública, que daria pra construir uns vinte hospitais do câncer no país só com o que ele desviou, salvando a vida de muitas crianças que, por falta de estrutura e tratamento, acabaram morrendo. E eu te pergunto: não seria esse político responsável pela morte de todas essas crianças?”‘Sim, em tese’. “Pois quero que você o conheça: um coroa bonachão, com uma família que sabe aproveitar bem o que ele rouba: todo mundo montado na grana: filhos, filhas, noras, genros e agregados (parentes e amigos que parasitam o núcleo familiar como sanguessugas, encontrando ali tudo de que necessitam para viver bem: empregos, moradia, comida, festas e vários sacos pra puxar). E como ele é feliz! Nenhum problema com a consciência, eu posso te garantir. Se ele tiver uma, com certeza está presa numa câmara escura com uma enorme rolha na boca. Diferente de você, minha querida, que vê e fala o que quer e quando quer... Ó minha doce consciência... Como é que eu te aturo? Eu que sou tão perspicaz...”. ‘E a família daquela mulher?’. “A família dela vai sofrer de qualquer jeito, não importa se eu me entregar ou não à polícia. Aliás, penso que ela sofrerá mais se souber que eu me entreguei e não sofri nenhuma punição”. ‘Então é isso’. “Isso o quê?”. ‘Você não vai se entregar’. “Claro que não, que coisa! Mas quero que você fique tranquila, ok? Não suporto consciências pesadas, histéricas, que atormentam a nossa vida com suas lamúrias sem fim: - Você não podia ter feito isso, não podia ter feito aquilo; - Ela é sua irmã, você não podia tê-la enganado pra ficar com o dinheiro só pra você; - Além de sócio, ele era seu amigo, confiava em você, mas você o enganou assim mesmo e deixou a família dele na miséria; - Você humilhou aquela mulher... ela não merecia isso; - O seu filho tinha que ter conseguido aquela vaga sem o auxílio da sua rede de ................................... amizades... Não aguento esse tipo de coisa”. ‘Eu sei’. “Vocês, consciências pesadas, não têm a menor chance neste nosso país de consciências leves. Vocês são como aquelas goiabas suculentas que se deixam perfurar pelas moscas, e depois carregam suas larvas, que se alimentam de vocês até transformarem suas polpas em uma massa podre e imprestável. As moscas são os pensamentos grandiosos que fazem o mundo girar, o dinheiro circular, os grandes impérios surgirem; são as ideias que alimentam o poder, o sucesso e o lucro, que destroem as consciências apegadas a valores retrógrados, atrasados, que só dificultam a vida daqueles que querem vencer, fazendo-os sofrer sem motivo”. ‘Somos então como goiabas bichadas’. “Isso mesmo: goiabas bichadas”. 21 22 ................................... Zona de conforto O casal viajava sempre pela mesma companhia aérea. O marido era entendido de aviação e sabia que aquelas aeronaves eram todas controladas por computador, o que garantia aos passageiros um enorme conforto durante o voo, mesmo em situações complicadas como tempestades e turbulências. O computador calculava e previa tudo, mantendo o avião estável a viagem inteira. “Tudo aqui é perfeito”, o homem dizia à esposa, enquanto bebia um café bem forte e olhava o gracioso rebolar da aeromoça que se afastava em direção à cabine. A esposa concordou com indiferença e continuou lendo a tese de um jovem historiador pernambucano, cuja defesa aconteceria em Recife no dia seguinte. A mulher tinha quarenta e dois anos e já era uma das mais respeitadas historiadoras do Brasil, com vários livros publicados, todos traduzidos para o inglês, francês e espanhol. Não era a primeira vez que ela ia a Recife para fazer parte de uma banca de doutorado, o que explicava o seu desânimo – ainda mais tendo que ler uma tese de quase cinco quilos que, para ela, não valia nem a tinta usada na sua impressão. Mas pelo menos o avião seguia o seu curso tranquilamente, sem nenhum desconforto para os passageiros, que aproveitavam o excelente serviço de bordo como se estivessem instalados numa poltrona macia de um hotel cinco estrelas à beira mar – sem filhos. ................................... audaciosa que ele havia feito à diretoria da empresa onde trabalhava, e que naquele momento devia estar sendo analisada. Para ele era preciso arriscar, mudar radicalmente o rumo das coisas: investir em criatividade, inovar, pois do contrário eles ficariam para trás, seriam engolidos pelos gigantes ou fechariam as portas. Do jeito que estava, tudo parecia ótimo – pelo menos para os medíocres, que eram a maioria: tudo muito estável e confortável, “como neste avião...”, pensou. De repente um alarme soou na cabine. O avião estava em rota de colisão com outra aeronave (descuido de um controlador de vôo, com certeza). O piloto tentou uma manobra arriscada para evitar a tragédia – uma guinada brusca para a direita –, mas o computador de bordo não permitiu a ação, certamente porque seria desconfortável para os passageiros, entretidos com seus cafés, revistas, filmes e teses. Por que o computador ignorava o risco de colisão? Não sei. Coisas de computador... A mulher grifava com tinta vermelha um parágrafo da tese, roendo as unhas de ódio e desespero, e o marido observava pela janela as nuvens que se estendiam como um enorme manto branco abaixo deles, quando tudo se apagou. No dia seguinte, em Recife, ao receber a notícia da morte da renomada historiadora, o jovem doutorando respirou fundo e pensou: “Que alívio! Ela ia acabar comigo...”. Depois do café, o marido trocou de lugar com a esposa e foi para a janela, onde começou a refletir sobre a proposta 23 24 ................................... Passeio ao Shopping No sábado, depois do feriado, Ramon resolveu levar a família ao Shopping. O tempo estava ótimo, quente, apesar de ainda ser inverno. Saíram por volta de dez da manhã, com a esperança de uma viagem rápida e tranquila. Com o feriado na sexta-feira, todo mundo que tinha que viajar já tinha viajado (e, realmente, quase não havia veículos na estrada). Assim, em menos de uma hora, chegaram ao seu destino. Onze da manhã, corredores vazios, praça de alimentação só com um ou outro gato pingado. “Que maravilha”, pensou Ramon, quase sem acreditar que passaria o dia com a família no Shopping sem ter que enfrentar filas. Mas foi só uma ilusão passageira. Do nada, como num passe de mágica, uma multidão apareceu. E uma hora depois, quando Ramon resolveu almoçar, já havia uma fila de quase duzentos metros de comprimento saindo do restaurante japonês, seu preferido. A esposa dava comida ao filho de três anos, que teimava em não comer sozinho, enquanto a filha de sete saboreava em silêncio seu bife com batatas fritas. Enquanto isso, Ramon esperava na fila, apoiando-se ora num pé ora noutro. “Se eu soubesse, teria trazido um livro”, pensou. Meia hora depois, ainda na fila, olhou distraído para a sua mesa. Viu a esposa azul de fome e os meninos chupando a segunda casquinha do McDonald’s. “Calma, Ramon”, disse para si mesmo, desviando o olhar para o buffet de saladas, que parecia um pouco mais próximo. ................................... o sorvete do filho desabar em cima da mesa, sujando a bolsa da mãe e um livro que ela tinha comprado. Ramon respirou fundo e disse: “Não se preocupe, filho, o papai vai limpar”. Juntou um monte de guardanapos, limpou a bagunça e, antes de colocar o segundo sushi na boca, olhou para a filha que, rindo sem graça, disse: “Não quero mais sorvete, papai”. Ramon respirou fundo mais uma vez (ainda com esperança de salvar aquela tarde no Shopping com a família de um desastre) e disse: “Não se preocupe, filha, o papai vai comer o resto para não desperdiçar”. Pensou em dizer: “Isso é culpa da sua mãe, que mesmo sabendo que vocês não conseguem comer duas casquinhas, compra duas assim mesmo, só porque vocês insistem. Como se o meu dinheiro fosse capim...”. Mas não disse. Engoliu de uma vez o resto do sorvete e continuou seu almoço. Meia hora depois a esposa voltou para a mesa trazendo seu prato com churrasco, arroz, feijão tropeiro e maionese, que ela terminou em menos de dez minutos, porque as crianças estavam impacientes para sair dali, brigavam por qualquer coisa, derrubando copos e talheres na mesa e no chão. Levantaram-se e foram ao parquinho, onde enfrentaram novas filas e gastaram sessenta reais só com o menino, porque a filha não quis brincar em nada, dizendo que aquilo era coisa de bebê. “Ainda bem”, pensou Ramon. Em seguida foram à C&A, para a esposa comprar algumas roupas para ela e a filha. Finalmente Ramon se serviu e voltou à mesa. Aliviada, a esposa se levantou e pegou uma outra fila, tão grande quanto a que o marido tinha acabado de enfrentar. E foi a conta dele se acomodar na cadeira e começar a comer para Mulher comprando roupas é o terror. Elas não param nunca de experimentar. O provador devia se chamar Buraco Negro: elas entram e somem; você chama, elas não respondem; é como se estivessem em outra dimensão, onde o tempo se 25 26 ................................... conta em prejuízo dos maridos que ficam do lado de fora: quinze minutos para elas são duas horas para eles. Ramon esperou, esperou e esperou mais um pouco. Devia ter saído, dado uma volta com o filho, mas seu celular estava descarregado e ele ficou com medo de perder a mulher e a filha dentro do Shopping (que, naquele momento, já estava apinhado de gente). De lá foram às Lojas Americanas, lugar que Ramon costumava achar menos desagradável, por causa dos corredores repletos de brinquedos e chocolates, onde ele viajava no tempo, lembrando-se com alegria de quando brincava sem se preocupar com nada e comia chocolates sem culpa. Mas naquele dia foi diferente, pois assim que entraram, viram-se diante de uma nova multidão em fila, dando voltas e mais voltas nos corredores da loja como se aquilo fosse o primeiro dia de venda de ingressos para um show do Rolling Stones. “Você já pode ir para a fila com os meninos enquanto eu pego as coisas”, disse a esposa para o marido. E ele foi. E a fila não andava, os filhos reclamavam, choravam, querendo ir embora; e quando finalmente entraram no “Corredor das Tentações” – onde o consumidor tem ao alcance das mãos qualquer produto supérfluo que ele possa querer comprar para aliviar o ódio e a angústia daquele tempo perdido em pé na fila –, os filhos começaram a pedir tudo que viam: salgadinhos, bolachas recheadas, chicletes, chocolates, balas, bombons, etc., e o pai, nervoso (já sem a menor esperança de salvar aquela tarde com a família no Shopping de um desastre), dizia: “Não. Nem pensar. Eu já disse que não! Calem a boca! Lá em casa eu acerto vocês...”. ................................... viu. Olhou para aquilo e disse, com os dentes serrados, tentando disfarçar o ódio: “Você me fez ficar aqui...” (e olhou o relógio) “quarenta e cinco minutos para comprar ISTO?!”. A mulher o encarou, calma, e disse, sem levantar a voz: “Menos, Ramon, menos... Não precisa fazer escândalo em público”. Vinte minutos depois foram lanchar no Burger King. Na fila, Ramon pediu à esposa que escolhesse os lanches e decorasse o pedido, para não haver confusão no caixa. Ela escolheu, decorou números e nomes, mas mesmo assim houve confusão: “Qual brinquedinho você quer, filha? O bonequinho que pula ou a japonesinha com máscara?”; “Qual a diferença do Combo um para o Combo dois?”; “Pode trocar o refrigerante pelo suco?”; “Você vai querer quatro ou oito nuggets no lugar do hambúrguer?”; “Moço, não consegui ver a diferença entre o lanche 17 e o 23”. Ramon nem quis escolher nada, estava sem fome; ficou só olhando os meninos, que resolveram montar os brinquedinhos na mesa, enquanto comiam. Foi uma confusão de peças coloridas de plástico misturadas com batatas e nuggets. O brinquedo era uma porcaria, uma coisa para montar e jogar fora, tipo Kinder Ovo (“mais fácil seria pegar uma nota de vinte reais e rasgar de uma vez”, pensou Ramon). Quatro e meia da tarde. Hora de ir embora. Na saída do estacionamento, Ramon ficou espantado com a quantidade de carros que entravam no Shopping. Era como se estivessem anunciando em rede nacional que o mundo ia acabar em duas horas e que ali era o único lugar onde a vida seria possível depois da catástrofe. De repente a esposa voltou trazendo um condicionador e duas barras de chocolate. O marido não acreditou no que Dirigindo-se aliviado para a avenida que daria acesso à rodovia, Ramon imaginou a praça de alimentação do 27 28 ................................... Shopping lotada, as pessoas comendo seus tira-gostos, sanduíches, batatas recheadas e sorvetes, bebendo refrigerante, fazendo barulho ao mastigar e engolir, as barrigas se empanturrando, formando gazes. Associou a cena à imagem de um enorme rebanho de vacas, bois e bezerros pastando. Mas balançou a cabeça negativamente, sorrindo: “Nada a ver... Pobres animais...”. ................................... Genro: uma palavra que me gela a espinha Você, que tem uma filha de quinze ou dezesseis anos, se pudesse escolher para ela um namorado, como ele seria? Se fosse dirigida a mim essa pergunta, sem pensar muito, eu responderia: “Ele não seria”. Só que, infelizmente (ou felizmente), não tem jeito: ela vai acabar namorando. Mas com quem? Sempre quando eu penso nisso, sou tomado por um preconceito arrebatador. Tento vencê-lo, mas é como se eu nadasse contra uma corrente poderosa demais. E assim eu me vejo analisando possíveis pretendentes, julgando-os pela aparência (coisa horrível) e tirando dessas análises superficiais as conclusões mais absurdas e irracionais. Ontem mesmo eu cruzei com um rapaz na rua: cabeludo, cheio de tatuagens pelo corpo, com um piercing enorme atravessando o lábio inferior, barbudo (a barba crescia no pescoço e emendava com os pêlos do peito, que pulavam para fora da camisa rasgada: era de embrulhar o estômago). Com essa imagem na cabeça eu me vi no futuro, abrindo a porta da sala, a minha filha entrando com esse mesmo sujeito e dizendo: “Pai, esse aqui é o Jack Boy, meu namorado”. O que eu faço numa situação dessas? Cumprimento o ser? Como? Pego na mão dele? Digo: “Entra”? Entrar? Eu vou deixar que ele entre na minha casa, na minha vida e, o pior: na vida da minha filhinha? Imediatamente um filme começa a passar na minha cabeça: minha mulher grávida dela, eu sentindo seus chutinhos, o dia do nascimento, a emoção ao pegá-la no colo pela primeira vez, o primeiro banho, as primeiras brincadeiras, o primeiro aninho, o primeiro livrinho e as historinhas que eu contava 29 30 ................................... para ela, os beijinhos, os bilhetinhos, o carinho, o amor que só quem tem um filho sabe como é; e eu vou entregar esse meu tesouro para o JACK BOY? Vou entregar a minha VIDA para um cara que no dia de conhecer os sogros nem se deu ao trabalho de lavar os pés encardidos e passar um bicarbonato com limão debaixo dos braços para tirar o cheiro azedo da fermentação suvacal? Vou entregar o que eu tenho de mais precioso para um sujeito que tem hálito de gambá e fica o tempo todo balançando a cabeça e falando “Sóóó, legal...”? Puro preconceito. Claro. Ou será que é impossível um rapaz desses fazer minha filha feliz? Talvez ele a faça mais feliz do que um filhinho de papai todo certinho, estudante de Direito ou de Medicina na Federal. (Abrindo um parêntese aqui: parece que muitos pais realmente gostariam que suas filhas namorassem um estudante da Federal, de preferência do curso de Medicina, que dá mais status. Os futuros médicos sabem disso e adoram se exibir por aí, com as camisas do curso e adesivos “Medicina UF...” colados nos seus carros – geralmente ganhados de presente de seus papais e mamães –, imitando aqueles pavões machos que abrem seus belos leques de penas, plumas e cores para atrair as fêmeas mais interessantes). ................................... riquíssimos, cuja união se deu da forma mais tradicional e “correta”, mas que não vivem em paz, estão sempre preocupados com o dinheiro, com a imagem de respeitabilidade e prosperidade que devem transmitir à sociedade, etc. E ao mesmo tempo existem casais que não ligam para nada disso e que, embora passem uma imagem de desleixo e sujeira, vivem muito bem, amam muito e curtem a vida, com liberdade e respeito. É claro que existem muitos casais “respeitáveis” que vivem bem, e muitos casais “desleixados” que não vivem bem. Isso é muito relativo. Por isso, a melhor coisa a fazer é deixar o preconceito de lado e educar os filhos para a felicidade e o amor verdadeiros. E rezar. Mas voltando à questão da felicidade, não precisamos procurar muito para encontrar famílias constituídas da forma “como deve ser” (casamento na igreja, casa própria, situação financeira razoável, encontros de casais mensais, etc.) onde a mulher apenas finge ser feliz: finge viver. Assim como não é difícil encontrar casais alternativos, onde o marido (meio doidão) é poeta, compositor, escritor (e, por isso, pobre), mas onde, mesmo assim, há harmonia, liberdade, alegria e felicidade verdadeiras. Existem casais respeitáveis, 31 32 ................................... Papai, amanhã tem circo! ................................... um alívio Ramon sentiu: o cheiro do ribeirão tinha ficado do lado de fora. Antes mesmo de ler o que estava escrito no pedaço de papel que o filho lhe mostrava, Ramon sabia do que se tratava. Aquele textinho impresso em papel barato era um dos maiores terrores dos pais que aceitam se sacrificar pelos filhos só até certo ponto, que pensam que há diversões infantis educativas que a moral da paternidade deveria deixar como opcionais, desobrigando-os de se sentirem culpados ao dizerem NÃO aos seus rebentos. Ramon sabia que aquele papel era uma dessas coisas, fato confirmado pelo filho de três anos que, balançando o ingresso e pulando de alegria, disse: “Papai, amanhã tem circo! A gente vai, não é? Nem tem que pagar!”. “Pronto. Então vamos ao circo... Mais essa agora...”, pensou Ramon mal-humorado, sentindo um frio na espinha, daqueles que gelam até a alma. Não, ele não tinha nada contra circos, muito pelo contrário, era até fã da arte circense; mas tinha verdadeiro horror daquele tipo de circo em particular, que chegava à sua cidade todos os anos e levantava lona sempre no mesmo terreno baldio: uma várzea cortada por um dos ribeirões mais poluídos do mundo, com seu cheiro de esgoto e carniça quase palpável no ar. E foi para lá que a família de Ramon se dirigiu naquela bela tarde de sábado, levando os dois ingressos grátis que os filhos tinham ganhado na escola. Ao comprar os dois ingressos de adulto (exigência para acompanhar as duas crianças) e entrar no circo, pelo menos 33 Procurando um lugar para se sentarem de forma que pudessem ter uma boa visão do picadeiro, Ramon e a esposa concluíram que qualquer cadeira que eles escolhessem, na frente, atrás ou nos lados, teria no mínimo dois postes de sustentação atravessando o palco e atrapalhando o espectador. Por isso a família se sentou onde parecia ser menor a chance dos palhaços pegarem Ramon para ajudante (como da última vez), obrigando-o a se levantar e a interagir com eles como um verdadeiro imbecil. Sentaram-se e logo ouviram o animado apresentador anunciar: “Em um minuto começará o espetáculo!”. Ramon, aproveitando a passagem de um vendedor de algodão doce, perguntou-lhe: “Por favor, senhor, o espetáculo tem previsão de durar quanto tempo?”. “Mais ou menos uma hora e quinze minutos”, respondeu o homem, que mais tarde seria visto dando saltos mortais no trapézio e vendendo pele de porco frita para a platéia. “Calma, Ramon”, disse para si mesmo o pai já desesperado, “não sofra agora o que você deverá sofrer no momento certo. Lembre-se do que dizia a sua avó: ‘Cada sofrimento no seu tempo’”. Para resumir, vou dividir a agonia de Ramon em três etapas – três momentos de maior intensidade –, pois, se não for assim, delongaremos demais a narrativa com os pequenos horrores de cada minuto da apresentação, o que certamente será cansativo para você, leitor (se é que já não se cansou). 34 ................................... Um minuto antes do início da primeira etapa de seu calvário, Ramon tinha já se acostumado com a ideia reconfortante de que alguma coisa tinha acontecido com os palhaços para eles não terem dado ainda o ar de sua graça (ou da falta dela) – uma disenteria, uma ressaca brava ou coisa parecida – quando, de repente, caminhando já o espetáculo para o final de sua primeira parte, irrompeu no picadeiro a trupe com suas palhaçadas de dar dó, que Ramon aguentou firme, sem reclamar, como quem suporta estoicamente uma tortura à base de fogo e agulhas. ................................... seu corpo por entre as nádegas, fazendo-a se equilibrar com dificuldade nos saltos e a caminhar como um robô desengonçado. Mas como aquilo não acabava nunca, Ramon resolveu ir comprar pipoca para os filhos fora da tenda, no que parecia ser uma espécie de hall de entrada, local onde o dono do circo certamente fazia valer a pena manter de pé o seu empreendimento (graças às barracas vendendo batata frita, pipoca, maçã do amor, algodão doce, chocolates e refrigerantes com lucro de 500% ou mais). Comprou três pipocas e voltou lentamente para a sua cadeira, torcendo para que os palhaços já tivessem ido embora. Com alívio, viu que não havia mais nada no picadeiro. Finalmente veio o intervalo e Ramon pôde respirar um pouco, indiferente ao vai-e-vem dos ambulantes vendendo comida superfaturada, balões e bolinhas pisca-pisca por entre as fileiras de pais desesperados e filhos gritando “compra, papai, compra”. Mas logo veio a segunda etapa do seu sofrimento: ter que assistir à apresentação do homem do monociclo e de sua companheira, ele enfiado numa roupa de lycra cor-de-rosa que, para desespero de Ramon, marcava escandalosamente a sua genitália, e ela... Meu Deus... Ramon não tinha nada contra gordinhas, até gostava mais delas do que das magras, mas aquela mulher tinha perdido completamente o senso do ridículo. Vendo-a no palco ao lado de seu companheiro, Ramon a imaginava nos bastidores, antes da apresentação, revirando o baú de maiôs até encontrar o menor de todos: uma peça cor-de-rosa brilhante que realçava seus belos pneuzinhos e se adentrava, penetrava, atolava com força em 35 Com vergonha de enfiar a cara entre as pernas ou de fingir um desmaio, Ramon teve que assistir à apresentação até o final. Se eu estivesse lá, sabendo dos seus cinco graus de miopia, eu teria sugerido a ele que simplesmente retirasse os óculos, mas o coitado, de tão perturbado, nem atinou para isso. Na segunda e última parte do espetáculo, pelo menos um alívio para Ramon: o fim da música de intervalo (uma coletânea de sertanejos e bate-estacas de arrebentar os tímpanos de qualquer um). Mas sua paz durou pouco, pois lá estavam eles de volta: os palhaços. Vendo-os de novo cambaleando para o centro do circo, Ramon sentiu uma tonteira; o picadeiro começou a girar; ele não via nada, só ouvia a confusão de gemidos, gritos e gargalhadas emitidos pela trupe, frases como “seu idiota, você errou”, “seu burro, me dá isso aqui”, “se eu morrer você me paga”, “ai, se eu te pego, ai, ai”, “delícia, delícia, assim você me mata”, e por aí afora. E assim terminou a terceira etapa do seu sofrimento, marcada por tonteiras, taquicardia, enjôo e zumbido no ouvido. Nem viu direito os trapezistas e seus saltos mortais – que de mortais mesmo só tinham o tédio e a náusea que 36 ................................... davam nos espectadores –, mantendo o olhar fixo na rede de proteção, um trançado de fios grossos que mais parecia uma daquelas armadilhas de corda para pegar leão nos filmes antigos de Tarzã, de tão remendada e desfiada que estava. ................................... É por isso que estou aqui Fim do espetáculo. Já do lado de fora, Ramon respirou fundo o cheiro de esgoto e de carniça do ribeirão como se fosse perfume francês, feliz por ter vencido mais uma prova em sua vida; e mais feliz ainda ficou quando percebeu que os filhos não tinham gostado, o que certamente lhe daria uma boa justificativa para não repetir a dose no ano seguinte. A família estava reunida para o almoço. Minhas duas irmãs conversavam com seus maridos na varanda, ouvindo ao fundo um concerto de Mozart. Tomavam cerveja preta e comiam rodelas de salaminho com limão, enquanto meu pai cuidava do jardim e minha mãe coordenava os trabalhos na cozinha. Foi num domingo nublado e frio, no sítio do meu pai, que tudo explodiu. Rui é casado com Alice, minha irmã mais nova. É professor de Química e tem 35 anos. Damásio, marido da Lúcia, a mais velha, é senador da República: 48 anos, extremamente arrogante e violento, mas com um atrativo que, para a minha irmã, faz valer a pena até os pescoções que ela ganha dele de vez em quando, bem como as amantes que ele carrega para todo lado: um patrimônio de mais de 100 milhões de dólares – o que contrasta cruelmente com a situação do meu outro cunhado, o professor, que há dez anos paga, a duras penas, o financiamento de uma casa na Caixa Econômica Federal, equilibrando o orçamento familiar sem a ajuda de ninguém, pois a Alice, como eu, é depressiva, tem síndrome do pânico e não trabalha (nem em casa). Alice e Rui têm uma filha de sete anos, a Carolina, uma criança linda, mas triste, sem entusiasmo para a vida. É tão melancólica a pobrezinha, que quando eu lhe dou um chocolate ou um presente qualquer, ela sorri como se os músculos da sua face obedecessem a um estímulo meramente mecânico: como se um homem invisível lhe puxasse os lábios com duas ou três cordinhas e depois 37 38 ................................... movimentasse, com outras oito ou nove, seus bracinhos frágeis na encenação de um abraço. Já a Ludmila, de oito anos, filha do senador, é de dar medo: má até não poder mais (se é que eu posso dizer isso de uma criança de oito anos). Uma vez, no sítio, ela pegou os três canários que o meu pai mais gostava (eles viviam soltos, indo à gaiola só para se alimentarem) e colocou-os vivos no congelador, deixando-os lá a noite inteira. De manhã, ela retirou os pobrezinhos (convertidos em pedra), embrulhouos num papel de presente e entregou ao meu pai, que quase teve um colapso. (Mas logo apareceu minha mãe, que controlou a situação e abafou o caso). É uma menina mentirosa, mas não como a maioria das crianças. Suas mentiras são caluniosas, minuciosamente arquitetadas, cheias de detalhes, e encenadas com perfeição: uma excelente atriz, não há a menor dúvida. Desde muito pequenas, as duas primas estão quase sempre juntas. Alice faz questão que a filha frequente a casa do senador e participe da vida de Ludmila. Esta, por sua vez, já deixou claro para todos nós, várias vezes (quase sempre aos gritos, na hora do almoço, com toda a família reunida), que ela odeia a Carolina. O senador e sua esposa, incapazes de perceber a crueldade por trás daqueles olhos infantis, paparicavam a menina, dizendo: “O que é isso, filhinha... Não diga uma coisa dessas. Ela é sua prima”. Ao que a filhinha respondia: “Ela não é minha prima, não pode ser. Ela é feia, magrela e burra, não sabe brincar com as coisas que eu gosto, do jeito que eu gosto. Ela não tem nenhum brinquedo legal, não sabe jogar os meus jogos, e as roupas dela são feias. Eu odeio, odeio, ODEIO essa menina”. A Carolina ouvia tudo, sem dizer nada. E seus pais, mergulhados num silêncio constrangedor, demonstravam indiferença, como se aquilo 39 ................................... fosse algo normal. E eu, dopado com meus remédios para depressão e ansiedade, ficava lá, bebendo meu vinho, também sem dizer nada. Mas hoje, pensando nisso, eu vejo que aquela situação me preocupava, pois no dia seguinte a uma dessas cenas, eu comecei a prestar mais atenção nas minhas sobrinhas, interessado em descobrir se o que eu supunha ser uma espécie de tortura psicológica sofrida pela Carolina tinha alguma coisa a ver com o seu estado patológico de tristeza e melancolia. Na entrada da escola, por volta de treze horas, o motorista do senador parava o carro suavemente, bem em frente ao portão, e do banco de trás saltava Ludmila, quase sempre emburrada, seguida pela prima, que ia de carona com eles todos os dias. A bruxinha batia a porta do carro com força na cara da prima, sem esperá-la descer, como se não tivesse ninguém lá. Essa cena eu assisti por três vezes consecutivas, e conversando com o porteiro da escola, descobri que isso acontecia todos os dias. As duas estudam na mesma sala, mas Ludmila finge que nem conhece a prima, isolando-a das outras crianças. Quem me contou isso foi uma mãe, que uma vez levantou o problema em uma reunião de pais, sem citar nomes, e foi severamente contestada pela professora. Passei também a observá-las durante os finais de semana, no sítio, quando, por falta de opção, Ludmila aceitava brincar com a prima pobre, e ouvi algumas frases ditas quase ao pé do ouvido que me incomodaram profundamente, como: “Você parece uma porca”; “Quem faz o seu cabelo? Que coisa horrorosa!”; “Você fede”; “Eu não quero que você vá à 40 ................................... minha festa de aniversário”; “Você é muito burra, sabia?”; “O seu pai e a sua mãe são pobres e vagabundos. Quem disse isso foi o meu pai, que é senador e ganha muito dinheiro”; “Você só tem esse vestido?”; “Eu tenho muito mais brinquedos do que você”; “Rapidinho você vai ter que ir para uma escola de crianças pobres, sujas e fedorentas, que nem você”; “Quando a gente crescer, eu vou deixar você trabalhar de empregada na minha casa, e é você que vai limpar toda a sujeira que os meus cachorros fizerem”. Tudo isso me perturbou muito, mas como eu vivia dopado, não consegui pensar numa estratégia de ação para salvar a Carolina das garras daquele monstrinho. Foi só naquele domingo, no sítio, depois de cinco dias sem tomar os meus remédios, que tudo explodiu. As duas primas brincavam embaixo de um enorme pé de pequi, afastadas um pouco da casa, e eu fui até lá para investigar. Carolina estava de quatro. Seu corpo tremia, como se levasse choques elétricos, e de seus olhos escorriam lágrimas em profusão, de medo e angústia. Ludmila segurava uma vara bem fina e comprida, como um chicote, que ela passava suavemente nas pernas e nádegas da prima, gesticulando e falando alto. Cheguei mais perto, tomando o cuidado para que elas não me vissem, e ouvi Ludmila dizer: “Você não foi uma boa escrava e vai receber agora o seu castigo”. ................................... como uma louca, com os olhos pregados em mim, aterrorizada: “Não, não, não...”; e eu gritava de volta, com os dentes serrados (minha boca espumava): “Você não pode fazer isso com a sua prima, não pode, não pode...”. Quando eu terminei a surra, Carolina já tinha se levantado e corrido até a casa. Imediatamente apareceu a família toda, cercada por um bando de puxa-sacos (que tinham ido bajular o senador, como de costume), dentre os quais um promotor e um capitão da polícia aposentado. É por isso que estou aqui, nesta prisão, cumprindo o terceiro mês da minha pena por tortura e desacato à autoridade (na verdade, quebrei o nariz do promotor e cuspi na cara do capitão). Voltei a tomar meus remédios. E tenho lido muito Dostoievski. Não aguentei. Corri até lá, arranquei a vara das mãos daquele projeto de feitor de senzala e, tomado de uma fúria incontrolável, segurei a menina pelo braço, abaixei suas calças e sapequei-lhe a bunda com cinco varadas bem dadas, marcando-a com vergões enormes e profundos. Ela gritava 41 42 ................................... Entendendo Ramon ................................... restaurantes com parquinhos e praças públicas nos finais de semana, nem pensar! Ramon às vezes tem crises agudas de melancolia. Não chega ao ponto de querer morrer (como alguns de seus colegas depressivos), mas, se pudesse, alugava um quarto no centro de uma metrópole qualquer e se fechava lá dentro, sozinho, até melhorar. Mas como não pode fugir aos compromissos que uma vida de pai de família lhe impõe, ele procura evitar, durante as crises, o menor contato visual que seja com cenas e imagens do cotidiano que, ele já comprovou, deixam-no ainda mais triste (às vezes aterrorizado, como se mirasse o abismo). Por exemplo: homens e mulheres de meia idade fazendo caminhada na avenida, com o passo acelerado, usando boné, camiseta, bermuda e tênis. Como explicar o que sente Ramon diante de uma cena dessas? Complicado... O fato é que para ele isso é absolutamente deprimente; assim como ver alguém correndo como um louco na esteira da academia, suando a cântaros; e adolescentes portando celulares, enviando mensagens cheias de erros de português para amiguinhos e namoradinhos. (Nesse caso, a angústia de Ramon beira as raias da loucura, faltando pouco para ele arrancar o celular das mãos do indivíduo e lançá-lo com toda a força contra a parede). Outra coisa proibida: Facebook. Porque não tem nada mais patético e deprimente para Ramon do que a necessidade obsessiva que algumas pessoas têm de se exibir na rede: fotos e mais fotos de viagens, festas, prêmios, carros, motos, sítios, e as frases que, no fundo, só querem dizer “como sou feliz”, “como sou um sucesso”, “como sou rico”, “como gostam de mim”. Ramon diz que o que ele sente não é inveja, pois raramente deseja o que os outros têm, e quando deseja, não vê o que eles têm como mal empregado. O que ele sente, na verdade, é um tormento do espírito, uma angústia que cresce dentro dele como um tumor descontrolado diante de tudo que é fútil e efêmero. Como explicar? Não sei... Eu queria entender melhor o Ramon, para ajudá-lo mais, já que sou seu único amigo. Mas não consigo... Ele é muito complicado. E não é só isso. Ramon também não suporta o excesso de zelo e preocupação de mães e pais de primeira viagem com seus filhinhos queridos: aquela coisa pegajosa, antipática, exagerada: as crianças se achando as donas do mundo (coitadas!) e os pais fingindo viver (coitados...). Ramon se apieda dessas pessoas, mas junto com a pena vem uma angústia tão grande, tão atroz e insuportável que, quando ele entra em crise, não vai a nenhum lugar que considera de risco, com medo de encontrá-las. Festas de família, 43 44 ................................... Calouros e veteranos na CEDAF-UFV Central de Ensino e Desenvolvimento Agrário de Florestal – Universidade Federal de Viçosa (CEDAF-UFV), fevereiro de 1990 Em frente ao alojamento, um grupo de veteranos cortava os cabelos de alguns calouros recém-chegados que, tremendo de medo, aceitavam pacificamente a inexorável ação das tesouras. No chão, os tufos de pêlos formavam pequenos montes negros e dourados que o vento, com seu sopro preguiçoso e úmido, ia espalhando aos poucos pela areia branca do pátio central. Esses calouros logo seriam batizados. Eram adolescentes ainda, com 14, 15 ou 16 anos. No batizado, receberiam um apelido, dado por seu padrinho, um veterano do 2º ou 3º ano que, embora não passasse de um fedelho trazendo ainda vivas na pele as marcas da puberdade, tratava o seu afilhado como se fosse propriedade sua, castigando-o por qualquer motivo – como, por exemplo, não conseguir pegar o sabonete com a bunda na hora do banho –, mas também, sejamos justos, protegendo-o de alguns veteranos mais maldosos, quando julgava necessário. Os apelidos dados pelos padrinhos tinham como objetivo ridicularizar e humilhar o calouro, que durante a semana de trotes era obrigado a trazer no pescoço uma placa de papelão com a sua identificação: apelido e padrinho. Na verdade, no batizado, o calouro recebia um NOME. Com uma arrogância que hoje me faz pensar nos antigos donos de escravos do Brasil Imperial, os veteranos determinavam taxativamente que, a partir daquele dia, o apelido do calouro passaria a ser “o nome feio que o seu pai e a sua mãe te 45 ................................... deram”, diziam. O nome “verdadeiro”, nos três anos que ele moraria no alojamento e frequentaria as aulas no prédio principal, seria aquele dado pelo seu padrinho veterano na ocasião do batizado. Assim, durante toda a semana, circulava pela CEDAF uma horda imensa de calouros amedrontados e sujos, com suas placas de identificação trazendo nomes como Cóia, Garrote, Jiló, Kabaço, Kaganeira, Kuqueluche, Mulambo, Ku d’água, Nematóide, Roitoba, Paracú, Naftalina, Tribufú, Kuaresma, Dopado, Jegão, Mirraxa, Nucú, Piranhoso, Rolinha, Sgoto, Supositório, Xitara, Xupão, Biskate, Furreka, Buneka, Kunotoko, Kuteko, Menorréia, Xupeta e Korrimão, só para citar alguns. No interior do alojamento, alguns calouros esfregavam os corredores com escovas de dente, repetindo em voz alta, sem parar, sob a fiscalização severa dos veteranos, a famosa ladainha: “Um ladrilhozinho bonitinho mais um ladrilhozinho bonitinho são dois ladrilhozinhos bonitinhos; dois ladrilhozinhos bonitinhos mais um ladrilhozinho bonitinho são três ladrilhozinhos bonitinhos...”. Outros calouros mediam a extensão de um corredor com palitos de fósforo; outros, no banheiro, eram obrigados a tomar banho frio e a gastar um sabonete inteiro, sem desligar o chuveiro; enquanto isso, no mesmo banheiro, vários calouros, completamente nus, eram enfiados num único boxe, onde tinham que tomar banho juntos – e coitado de quem deixasse o sabonete cair no chão: tinha que pegar, sem que ninguém arredasse o pé dali! Nos quartos, as “brincadeiras” rolavam dia e noite. Uma das mais tradicionais era amarrar os testículos do calouro com um barbante apertado que, na outra ponta, era atado a um 46 ................................... ferro de passar roupas, daqueles antigos, pesados. O calouro era colocado em cima de uma mesa, tinha os olhos vendados e era obrigado a segurar o ferro, enquanto os veteranos gritavam “Solta o ferro, calouro, solta o ferro...”, até que, para desespero do calouro, alguém batia em suas mãos e o ferro caía – felizmente, sem arrancar-lhe as bolas, pois em meio à confusão, conforme o combinado, alguém, com muito cuidado, havia cortado o barbante. Outra “brincadeira” maligna, que foi largamente utilizada pelos veteranos na semana de trotes de 1991, era a “Máscara de Gás”. Na verdade, “Máscara de gás” era como os veteranos chamavam o tênis com o chulé mais fedido e ardido do alojamento, uma coisa nojenta, realmente terrível. Estávamos em plena Guerra do Golfo e os bombardeios aconteciam quase todos os dias, lá longe, no Oriente Médio. Então, por que não trazer um pouco daquele clima de guerra para os quartos da CEDAF? Foi o que aconteceu. Quando um “avião inimigo” se aproximava, os veteranos gritavam para o calouro: “Alerta Vermelho, calouro, Alerta Vermelho! Coloque a máscara de gás!”: e ele era obrigado a encaixar o tênis no nariz e na boca, de forma que o ar não entrasse, e respirar fundo, várias vezes, até o Alerta Vermelho passar. Alguns chegavam a passar mal, vomitavam, e eram levados à Enfermaria. No refeitório, durante toda a semana, os calouros só comiam arroz e feijão, pois carne, doce de leite e outras iguarias fresquinhas, produzidas na própria escola, iam direto dos seus bandejões para os dos veteranos – simples assim: “Calouro, passa pra cá esse doce”; “Calouro, esse frango aí é meu, põe aqui”. E eles punham, é claro. Ai de quem não pusesse. E ai também de quem não fosse buscar suco para os veteranos ou de quem se recusasse a servir-lhes mais 47 ................................... polenta ou salada e, às vezes, até a dar-lhes comida na boca, picar sua carne, palitar seus dentes e sentir seus arrotos. Voltando do refeitório, a caminho do alojamento, os calouros eram frequentemente bombardeados com sacos ou bexigas de água gelada, que estouravam em seus pés ou, como era muito comum, em suas cabeças desavisadas. Estas, mesmo aturdidas, assim que recebiam o primeiro golpe, ordenavam às pernas bambas de medo que corressem o mais rápido que pudessem. Das janelas do alojamento os veteranos gritavam: “Calouro burro, volta aqui, desgraçado!”. Nessa semana de trotes, calouro não “batia o barro”, como se dizia. As fezes se acumulavam e endureciam no intestino, pois eram poucos aqueles que se arriscavam nos pequenos boxes sanitários semi-abertos, em frente aos chuveiros. O calouro que não aguentava, quase sempre era surpreendido por um veterano que, ao entrar no banheiro, normalmente gritava: “Quem tá aí?”. ‘Eu’. “Eu quem, desgraça? É calouro?”. Nesse ponto do diálogo, a musculatura anal do calouro já tinha trancado tudo lá embaixo. Não saía mais nada. “Quem é o seu padrinho?” ‘Fulano’, “Mas cê tá podre, heim calouro! Puta que o pariu... Sai daí agora... Se você não sair daí A-GO-RA, eu vou arrebentar essa porta e fazer você comer essa merda que cê tá fazendo aí dentro”. A conversa era mais ou menos assim. À noite, os veteranos, organizados numa espécie de grêmio, verificavam se faltava algum calouro nos quartos. Isso se justificava porque, em decorrência dos trotes, muitos calouros fugiam para os matos circunvizinhos, para poderem dormir em paz, escondidos, já que as “brincadeiras” dos veteranos não paravam nem de madrugada. 48 ................................... Para as buscas nos matos, os veteranos organizavam verdadeiras matilhas de calouros que, amarrados com cordas e coleiras, e de quatro, tinham que farejar como cães os fugitivos da sua espécie, até encontrá-los. No dia seguinte, por volta de 5:30 da manhã, grupos de veteranos invadiam os quartos dos calouros, convocando-os para a ginástica matinal: uma enorme sequência de flexões, polichinelos e abdominais, que só os calouros faziam. Depois do café, quando todos se dirigiam ao prédio principal para as aulas, os calouros normalmente acompanhavam seus padrinhos, como escravos, abanando-os com as mãos, ou impedindo, com um pedaço de papelão ou de madeira, que o sol queimasse seus rostos. Às vezes um veterano se munia de dois calouros, que o carregavam e o depositavam, como um rei, na sua carteira. Era muito comum ouvirmos os veteranos negociarem uns com os outros: “Me empresta esse calouro aí”; “Vamos trocar de calouro hoje? Tô precisando de um mais forte, para limpar o meu quarto e carregar os armários”. Era como voltar ao período da escravidão, o calouro convertido em objeto, bem móvel do senhor, podendo ser vendido, alugado, emprestado. ................................... Em dezembro de 92, em clima de muita festa, recebemos das mãos de Patrus Ananias, nosso paraninfo, o diploma de Técnicos em Agropecuária – com muito orgulho e satisfação, pois o curso não era nada fácil: tínhamos aulas de manhã e à tarde, e provas teóricas e práticas de arrancar os cabelos. Foram anos incríveis que, mesmo com todas as humilhações sofridas na semana de trotes, ajudaram a fortalecer em mim valores que, hoje, eu quero transmitir aos meus filhos: humildade, generosidade, amizade e solidariedade. Dedico este texto aos meus amigos e companheiros de quarto na CEDAF-UFV, entre 1990 e 1992, Júlio César Vieira Leitão Gomes, Bráulio Abreu Campos e Ricardo Resende Barbosa. Eu poderia ficar aqui horas e horas escrevendo sobre as experiências que eu vivi na CEDAF em fevereiro de 1990, e acredito que um livro poderia ser escrito sobre o que aconteceu nos anos seguintes. Ali, eu e mais três companheiros de Pará de Minas moramos por quase três anos, nos quartos 21 e 14 do alojamento (de fevereiro de 1990 a dezembro de 1992). 49 50 ................................... De marré deci Em seu extraordinário romance “Lições de abismo” (1950), Gustavo Corção leva seu personagem principal a um café, onde, atrás do balcão, “um rapaz e três moças multiplicavam os mesmos gestos rápidos, distribuindo louça, servindo café, recolhendo as fichas, e retirando para um enorme caldeirão de água fervendo as xícaras usadas”. Uma das moças atrai a atenção do personagem, um professor de meia idade que acaba de descobrir que tem um câncer incurável, e mostralhe, com seu corpo franzino (“o peito vazio, a cinturinha quebrada, e os braços chupados”), que ela não viverá muito tempo. “Não posso dizer se sua doença é tuberculose ou câncer. Faltam-me as estatísticas, as observações repetidas. Mas sei que é de morte. Vejo-a murchar”, conta-nos o angustiado professor em sua narrativa. Observando a jovem, sua reflexão logo se volta para o “humilhante ofício” daquela flor desenganada. “Ofício de quê? Que nome terá esse ofício de ficar oito horas em pé a distribuir xícaras com gestos de autômato? Creio que não tem nome”. Recorda-se da época em que todos os ofícios tinham nome, e as meninas cantadeiras cantavam nas noites de verão: Eu sou pobre, pobre, pobre, De marré, marré, marré, Eu sou pobre, pobre, pobre, De marré, deci... Quero uma de vossas filhas, De marré, marré, marré, Quero uma de vossas filhas, 51 ................................... De marré, deci... Que ofício darás a ela? De marré, marré, marré Dou ofício de costureira, De marré, deci... “Como poderíamos pôr em canto de roda a longa especificação deste ofício sem nome: moça que distribui as xícaras no café em pé, de marré, marré, marré? Mas se não tem nome a profissão, tem nome, nítido e rígido, a classificação. Seu instituto tem nome, se seu ofício não tem. Ela é comerciária, de marré, deci”. Quantas xícaras ela serve por dia? “Calculemos: três ou quatro por minuto, vezes sessenta, vezes sete ou oito; digamos sete. Dá mil cento e oitenta; digamos mil. Ela serve mil fregueses por dia!”. Abuso aqui do fascinante texto de Gustavo Corção para expressar a minha angústia diante do destino de uma grande parcela da população mundial: daqueles homens e mulheres que passam a maior parte do seu tempo de vida trabalhando em algo de que não gostam, esperando, ansiosos, a passagem das horas, até o final do expediente, dando graças a Deus pela chegada da sexta-feira (e amaldiçoando a segunda-feira tenebrosa), contando os dias para a chegada do feriado prolongado, do Carnaval, da Semana Santa, das férias, trabalhando sem motivação, por necessidade, porque não há outra saída, não pode ser de outro jeito, a vida é assim... Pessoas anestesiadas, submissas a uma realidade que domina, com seu tédio mortal, suas almas indefesas, que não sabem o que fazer a não ser se resignarem, esperando, talvez, uma recompensa futura: uma boa 52 ................................... aposentadoria aos 65 anos de idade, com um pouco de saúde para curtir os últimos anos de existência, a vida eterna no Céu... Quem sabe? Quantos no mundo não se sentem como a moça das xícaras do romance de Corção, quando um freguês lhe grita: “Esta xícara está suja! Veja!”. Ela não olha para a xícara. Não olha para o freguês. “Porque se olhar, enlouquece. É a sua defesa. A sua única defesa. Ela não pode prestar atenção ao que faz. Se prestar, enlouquece. Não é possível ter solicitude igual mil vezes por dia; não é possível ter interesse nesse jogo. Por isso ela faz como se atendesse fantasmas. Sombras. Ela olha através; põe os olhos no infinito, deixando às mãos sonâmbulas o cuidado de distribuir louça, colher fichas e retirar as xícaras usadas”. Mas há também executivos, empresários, professores universitários, engenheiros, advogados, médicos e muitos outros profissionais de marré deci. Não é preciso ser pobre para viver uma existência de marré, marré, marré. Inúmeras pessoas consideradas bem sucedidas vivem suas vidas afastadas daquilo que realmente querem, porque precisam ser “realistas”, “seguras”, “prudentes”, “responsáveis”, “honradas”, “respeitadas”. Fazem “o que deve ser feito”, “o que é preciso”, sacrificando um tempo que não volta nunca mais em projetos de vida vazios daquilo que, para elas, representaria o verdadeiro prazer de viver. Muitos profissionais acumulam fortunas, passando pela vida como meros espectadores. Velhos e ricos, depois de anos de trabalho, muitos tentam resgatar suas verdadeiras paixões, seus sonhos de juventude não concretizados, mas já é tarde, pois o tempo perdido não volta mais. 53 ................................... Carlos Drummond de Andrade já dizia, em seu poema “A casa do tempo perdido”: “Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu. Bati segunda vez e mais outra e mais outra. Resposta nenhuma. A casa do tempo perdido está coberta de hera pela metade; a outra metade são cinzas. Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando pela dor de chamar e não ser escutado. Simplesmente bater. O eco devolve minha ânsia de entreabrir esses paços gelados. A noite e o dia se confundem no esperar, no bater e bater. O tempo perdido certamente não existe. É o casarão vazio e condenado.” A moça das xícaras não terá tempo de viver, conta-nos o narrador do romance de Corção: “Não viveu, e já morre. Não sabe, como eu, que vai morrer. Não poderá arrumar a sua morte. Morrerá uma morte qualquer, de comerciária, de marré deci. Vejo um hospital. Um leito qualquer, número tanto. Uma vaga arranjada por favor. Ela agoniza – e as xícaras, os cafés, as fichas, os clientes iracundos, os clientes joviais, os clientes em geral de que se defendeu pondo os olhos vagos no infinito, voltarão todos, virão, de dentro dela, em ondas, acumulados, milhares, milhões, virão encher de alarido vulgar, de vozes e de louças, seus últimos instantes de menina que não teve licença de viver. Ela morrerá vendo xícaras, xícaras, xícaras. Os aventais passarão. Toucas. Clientes esquisitos debruçam-se sobre o seu corpo, como se 54 ................................... ela tivesse virado xícara, e viessem beber nela mesma, nas suas entranhas, o último café”. ................................... Um dia em Amsterdam Do aeroporto mesmo ela postou: “Já estou em Amsterdam”. Só isso. Não mencionou o detalhe: “sem minha bagagem, que pegou o avião errado e está agora em Luanda, na África”. Depois de enfrentar uma fila enorme no guichê da companhia aérea e fazer tudo que era preciso (e mais alguma coisa) para reaver suas malas, pegou um táxi até o hotel, onde o gerente, depois de muito procurar, não encontrou sua reserva. Com seu inglês medíocre, demorou mais de uma hora para descobrir que seu hotel não era aquele, mas um outro, com nome quase igual, que ficava do outro lado da cidade. Entrou em outro táxi (calculando a fortuna que pagaria pela corrida), morta de fome e com os nervos à flor da pele 55 56 ................................... – nem viu direito a beleza dos canais e pontes, a maravilha das construções antigas –, mas tirou uma foto e postou: “Amsterdam é linda!”, e clicou no mapa: “em Amsterdam”. ................................... Pediu uma porção de arenque com limão e uma fatia de torta de maçã, que comeu chorando de ódio, sem nem sentir o gosto direito; mas antes tirou uma foto dos pratos e postou: “Lanchezinho básico em Amsterdam, antes de alugar uma bicicleta e passear pela cidade. Privilégio para poucos”. Meia hora depois (e com 100 euros a menos na carteira), atravessou a porta do hotel, que ficava ao lado do famoso Museu Van Gogh, que ela pretendia visitar. Tomou um banho fervendo, pois não sabia regular a temperatura, vestiu a mesma roupa suada da viagem (porque não tinha outra) e ligou para a companhia aérea, que lhe informou: “Sua bagagem não está em Luanda, mas a caminho de Dubai, em um voo da KLM. Quando ela voltar para Amsterdam, entraremos em contato”. Angustiada, desligou e postou: “Hotel maravilhoso! De banho tomado, indo ao Museu Van Gogh”. Ao atravessar a rua, porém, foi atropelada por uma bicicleta, conduzida por uma alemã obesa, que se esparramou toda no chão gritando palavrões em pelo menos três línguas diferentes. “Museu fechado para reformas”, dizia o aviso em holandês, inglês e alemão. Mesmo assim, pediu a um turista espanhol que tirasse uma foto dela e postou: “Na porta do Museu Van Gogh, em Amsterdam. Fantástico!”. Faminta, foi procurar algo para comer. 57 Na hora não sentiu nada, mas depois de 15 minutos, seu joelho esquerdo virou uma enorme batata quente, inchado, vermelho, uma coisa horrorosa. Desabou num banco, ao lado de uma bicicleta para alugar, e pediu a um turista francês que tirasse uma foto dela com a mão pousada na bicicleta. Firmou a mão, que tremia, fingiu um sorriso e depois postou: “Passeando feliz pelas ruas de Amsterdam”. Mal acabou de postar, sentiu uma fisgada no ventre, e depois algo líquido borbulhando dentro dela, descendo, e a fisgada de novo... “Não pode ser”, pensou. Mas era. 58 ................................... Não deu nem para trancar a saída e procurar um banheiro. A diarréia escorreu pelas suas pernas em abundância (uma verdadeira cachoeira), exalando ao redor, intensamente (como uma dama da noite toda florida), um cheiro azedo e insuportável de arenque, maçã e canela. ................................... Na cama do hospital, com um tubo de soro ligado na veia, focalizou seu rosto na tela do iPad (de forma que não aparecesse nada ao redor), fingiu um sorriso e postou: “Depois de um dia maravilhoso em Amsterdam, estou agora indo dormir, no Best Western Apollo Museumhotel. Boa noite!” Era aí que entrava a Paz Eterna, com seus planos assistenciais feitos sob medida para vários tipos de bolsos. Só de caixões a empresa tinha mais de duzentos modelos, dos mais simples (feitos com chapas de madeirite, sem acabamento interno) aos mais sofisticados (verdadeiros sarcófagos faraônicos). Era um entra e sai o dia inteiro na empresa. Pelo menos trinta defuntos eram empacotados todos os dias por Petúnia, que também investia em outros ramos de negócio, para aumentar o número de clientes da funerária – tinha inaugurado recentemente uma concessionária de motos e uma distribuidora de bebidas e cigarros, e pensava também na possibilidade de um investimento pesado no ramo de lanches rápidos, onde produziria, a preços populares, verdadeiras bombas de açúcar e gordura saturada. Petúnia Negra Petúnia herdara de seu pai a Paz Eterna, a única funerária da cidade. Negócio milionário, já que, infelizmente, morrer não é daquelas coisas que a gente pode decidir não fazer para economizar dinheiro, como ir a restaurantes, viajar para o estrangeiro ou comprar um carro. Morre-se e pronto. Dona Morte não quer nem saber. Faz o serviço e vai embora. Balanço do dia: Bagagem extraviada, assalto no táxi, diarréia, joelho bichado e 389 curtidas no Facebook. Além disso, para fortalecer ainda mais as finanças da Paz Eterna, Petúnia trabalhava em conluio com alguns médicos inescrupulosos (que controlavam o hospital local) visando aumentar o número de defuntos na cidade. Com a sua grande influência política e as amizades que mantinha com pessoas poderosas na região, Petúnia acobertava a máfia dos médicos, que desviava recursos da Saúde e transformava o hospital num verdadeiro playground para os seus divertimentos sádicos. E sempre que um pobre coitado se 59 60 ................................... encontrava prestes a dar o último suspiro num dos vários corredores da Santa Casa, um dos mafiosos ligava para a equipe de Petúnia, que imediatamente enviava um representante da Paz Eterna para o local. Petúnia acompanhava com muito entusiasmo as estatísticas de acidentes de motos com vítimas fatais, de mortes relacionadas ao uso de álcool e cigarro (infartos fulminantes, câncer de pulmão, garganta e laringe), etc. Cada aumento significativo nos números locais era comemorado com uma festa de arromba para os funcionários de todas as suas empresas, que se reuniam no enorme salão de recepções da Paz Eterna. Uma noite, porém, Petúnia teve um sonho que mudou completamente a sua vida. Nele ela vagava nua por um lamaçal fedorento, com fortes dores em todo o corpo. O céu era cinza escuro. O vento de um frio cortante. O ar fedia a carne podre e fezes. Logo à sua frente ela viu um grupo de seres monstruosos, avançando lentamente pela lama, aos gritos, alguns chorando desesperados, com as mãos erguidas, em súplica. Ao se aproximar mais, Petúnia notou que eram seres humanos, e levou um susto ao ver que um deles era seu falecido pai. Ela gritou “pai”, mas ele não respondeu. Parecia um animal. Tinha perdido todos os dentes e seus olhos eram como os de um cão raivoso, vermelhos e cheios de ódio. De repente, do caminhando como bambu pendurada monstruosos que nada, apareceu um porco gigante, um homem, com uma enorme cesta de numa de suas patas dianteiras. Os seres avançavam pelo lamaçal pararam e 61 ................................... começaram a urrar como animais desesperados, apontando para a cesta. O porco então foi tirando de dentro dela pedaços de carne humana (mãos, pés, pernas, cabeças, vísceras), que jogava para os animais, alimentando-os. Petúnia quase desmaiou ao ver seu pai abocanhar um pé apodrecido, arrancando com suas gengivas acinzentadas pequenas lascas de carne, que se soltavam facilmente dos ossos, como suã cozida além do ponto (o barulho que ele fazia com a boca era repugnante). De repente, o porco grunhiu para Petúnia. Ela o olhou diretamente nos olhos e percebeu que ele sorria – um sorriso irônico e zombeteiro. O bicho grunhiu de novo, chamando-a, e com a rapidez de um raio jogou-lhe um pedaço de carne estragada: uma massa compacta, redonda e escura. Era uma cabeça de homem, com os cabelos pretos cortados bem curtos, sujos de lama, que caiu aos pés de Petúnia com a face virada para cima, os olhos esbugalhados, a boca de dentes encardidos rindo para ela. Era um rapaz que ela conhecia, filho de uma de suas faxineiras, que tinha morrido como um animal no corredor do hospital havia alguns meses, sem atendimento, sem remédio, sem nada. Petúnia acordou suando frio e, desesperada, saiu correndo em direção a uma igreja. Atravessou cambaleante toda a extensão do templo e ajoelhou-se em frente ao altar para pedir perdão a Deus, coisa que ela nunca tinha feito na vida. Saiu aliviada, aproximando-se de um banco na praça, onde uma garotinha (que devia ter no máximo cinco ou seis anos) brincava com uma boneca, sozinha. Petúnia sentou-se ao seu lado. Era uma menina linda, de olhos azuis, pele clara e cabelo preto brilhante. 62 ................................... Sentindo-se perdoada por Deus e disposta a mudar o rumo de sua vida, Petúnia chegou até a pensar na possibilidade de ter um filho... Carinhosamente passou a mão na cabeça da menina e perguntou: “Como é seu nome, querida?”. Como resposta, a menina olhou firme nos olhos de Petúnia e grunhiu: “oinc, oinc”. Era Dona Morte disfarçada. Na mesma hora Petúnia teve um infarto, e, no dia seguinte, como qualquer um, entrou para a estatística de mortes por problemas cardiovasculares. ................................... Trem noturno para Lisboa Em uma matéria muito interessante, publicada na revista “Vida Simples” em junho de 2009, a escritora Liane Alves afirmava que uma forma muito comum de auto-sabotagem é quando “aceitamos fazer um trabalho por dinheiro sem questionarmos se é exatamente isso que queremos fazer na vida”. Segundo ela, o conflito que pode surgir a partir dessa opção “é particularmente agudo no campo da criatividade”. Ela dá o exemplo de uma redatora de publicidade que, embora ganhasse uma fortuna numa agência de São Paulo, estava infeliz: “Sofria a cada manhã que tinha de trabalhar, a cada texto que tinha de escrever”, e com o tempo a sua produtividade caiu, seu cérebro travou, e ela acabou sendo demitida. “Hoje, feliz e solta na vida”, continuava a autora da matéria, “ela ensaia os rumos de seu primeiro livro” – e o cérebro dela, refeito da crise, “colabora intensamente para isso”. Não é linda essa história? Resumindo: Você ganha uma fortuna fazendo o que não gosta e, de repente, por falta de criatividade e produtividade, é demitido. Problema? Não! Você vai escrever um livro e ser feliz. Mas e o resto? Como era a vida dessa redatora? Ela era casada? Tinha filhos? A família dependia dela para viver? A casa onde ela morava era própria? Ela tinha algum financiamento para pagar? Se ela tinha filhos, onde eles estudavam? Ela tinha uma ajudante do lar, uma babá, uma faxineira, uma lavadeira? Tinha TV a cabo e internet banda larga?... – e assim poderíamos multiplicar os questionamentos até conseguirmos (talvez) produzir uma imagem minimamente satisfatória da realidade vivida por essa mulher. 63 64 ................................... ................................... Só que a revista “Vida Simples” não dá nenhuma resposta a essas perguntas. Por quê? E tem mais: Será que o leitor da revista “Vida Simples” está interessado em saber o que os pobres realmente gostariam de fazer na vida? Será que ele se perguntou alguma vez se aquele homem de trinta e poucos anos, que trabalha na coleta do lixo, realmente gosta do que faz? Será que ele não tem curiosidade em saber se esse homem, que dedica a maior parte do seu tempo a deixar a cidade mais limpa, gostaria de fazer outra coisa na vida? E aquela mulher de quarenta anos que passa o dia inteiro retirando vísceras de milhares de frangos, que correm a uma velocidade constante na esteira de um abatedouro industrial? Será que ela não gostaria de estar em casa cuidando dos filhos ou trabalhando em outra coisa? Será que ela não sente falta de poder dançar mais, divertir-se mais ou estudar mais? Talvez sim, talvez não. Mas quem se importa? Eu tenho uma teoria, que começou a se esboçar quando me dei conta do preço da revista: R$12,00. Pode parecer pouco para você, mas não é para a maioria dos brasileiros. Isso porque a revista “Vida Simples” foi feita para pessoas que podem se dar ao luxo de uma vida mais simples sem perder o conforto e a segurança que o sistema lhes proporciona (ou, pelo menos, sem comprometer muito o seu padrão de vida anterior). Ela não foi feita para pobres, que já têm uma vida simples (por necessidade, muitas vezes sem terem acesso ao básico, ao mínimo conforto). Eu, por exemplo, que não me considero pobre, se eu “chutasse o pau da barraca” e fosse fazer o que eu realmente quero (que é ler e escrever), minha família passaria necessidades. É claro que eu e minha esposa poderíamos nos adaptar: tiraríamos nossos filhos da escola particular, controlaríamos nossos gastos com comida e roupas, reduziríamos o nosso lazer capitalista (restaurantes, viagens, etc.) ao mínimo (ou a zero) e viveríamos uma vida simples... bem simples. Mas para a sociedade eu seria um monstro: “Olha só aquele vagabundo... A família passa por necessidades e ele dentro de casa, de bermuda e chinelos, escrevendo um livro que ninguém vai ler! Que absurdo!”. E o pobre, então? Como faria? Como viveria a família de um operário que ganha um salário mínimo por mês (que corresponde a 60% da renda familiar) se ele resolvesse largar o emprego e se dedicar a escrever poemas de amor? E a família de um professor de escola pública, que sustenta a esposa e os filhos com o seu novo piso salarial de mil e poucos reais, se ele resolvesse abandonar a sala de aula para pintar quadros surrealistas? 65 O fato é que a maioria dessas pessoas está tão absorvida pelo furacão capitalista que poucas realmente questionam se o trabalho que realizam é o melhor para as suas vidas. Elas estão anestesiadas por uma lógica que parece inquestionável: Para o mundo se desenvolver e prosperar, alguns poucos têm que pensar e refletir, organizar, decidir e gerenciar tudo, enquanto a maioria tem que “colocar a mão na massa”, “dar duro”, cumprindo sua jornada rigorosamente, ganhando pouco, para dar de comida aos filhos e, quem sabe, melhorar de vida no futuro. Essa é a lógica. E hoje ela se reproduz quase naturalmente, como se tudo isso fosse natural e sempre tivesse existido, sem a mínima chance de ser diferente. No início do mês eu comprei um livro em Belo Horizonte que, de cara, me chamou a atenção pelo título: “Trem noturno para Lisboa”, de um escritor suíço chamado Pascal 66 ................................... Mercier. Ao folhear o livro, fui transportado novamente para Lisboa, cidade onde pude morar por um tempo, enquanto fazia meu doutorado em História. ................................... E você, leitor? Você pode se dar ao luxo de “tomar o trem noturno para Lisboa”? Eu não. Pelo menos por enquanto... Hoje, enquanto devoro (com um prazer indescritível) esse romance maravilhoso e inspirador, tenho a sensação de estar de novo naquela cidade, junto com o personagem principal, flanando pelas ruas da Baixa, do Chiado ou do Bairro Alto, ou visitando as inúmeras livrarias e sebos da parte velha da cidade. Mas o que isso tem a ver com a nossa história? Eu explico: O personagem principal do livro é um professor de línguas clássicas de um colégio de Berna (Suíça), que um dia se levanta durante uma aula, abandona a sala e toma um trem para Lisboa. Ele queria, aos 57 anos, mudar de vida, fazer outras coisas, conhecer outras pessoas, sobretudo um escritor português chamado Amadeu de Prado, que tinha uma visão peculiar e fascinante sobre a vida e a morte, a solidão e o amor. Mas esse professor, que deixou para trás sua rotina bem organizada, seu mundo fechado em Berna, não era casado, não tinha filhos, e possuía muito dinheiro guardado, fruto de trinta anos de austera poupança. A história desse professor (e do misterioso Amadeu de Prado) é tão interessante – e o livro fez tanto sucesso na Europa e no resto do mundo –, que “Tomar o trem noturno para Lisboa” virou uma expressão idiomática, usada para se referir a alguém que pretende mudar de vida, seguindo a voz do seu coração. 67 68 ................................... Um sopro da natureza ................................... com que me preocupar – doença, trabalho, sucesso, fracasso, nada. Depois de cinco tenebrosos anos escondido no mato, sozinho, vendo noites e dias se arrastarem iguais na mesma insipidez branca do que era então minha existência, uma serpente venenosa entrou à noite em minha barraca e me picou. Enroscada atrás do colchão, devia estar tocaiando um rato que andava por ali em meio ao lixo acumulado de meses – uma tralha de latas, panos e papéis emporcalhados de comida estragada e fezes. Cravou suas finas presas em minha mão quando me estiquei para pegar uma cueca suja largada num canto havia dois ou três anos. Alguma coisa dentro de mim dizia: “pegue essa cueca borrada e queime-a lá fora de uma vez”; só que nem cheguei a pegá-la, senti a fisgada, e a dor subindo pelo braço, queimando, latejando. Arrastei-me até a saída, bufando como um touro que luta pela vida sem saber que se vive ou que se morre. Mas eu sabia... sobretudo que se morre. A mão picada já estava preta quando me aproximei do córrego gelado que passa por ali, a lanterna tremendo na outra mão, iluminando o chão, a água, a mão inchada pulsando, ardendo. “Estou morrendo”, pensei; e não adiantava fazer nada: sem carro ou moto, estava a mais de cem quilômetros do arraial, que ficava no meio do nada, longe de qualquer socorro. Era o fim. Desde que eu me internara na floresta, havia cinco anos, nada me inquietava. Viver, para mim, era só existir, mergulhado na natureza selvagem que me abrigava. Mas saber-me morrendo, ali, no meio do mato, sozinho, sem a menor esperança de socorro, levou-me de volta àquele apartamento, àquela vida e aos sentimentos que me torturavam naquela época – a ansiedade, a angústia, o desespero, a vontade de riqueza e poder... Foi como assistir a um filme em alta velocidade, que durou pouco, pois logo veio a paz... A morte estava lá, e vê-la de perto foi como me libertar de novo das dores do mundo, mas sem a sensação de vazio, sem o tédio das noites e dias brancos que eu tinha vivido sozinho naquela floresta. Hoje, com meu corpo enterrado e quase completamente devorado pelos vermes, posso dizer que sei o que é uma vida na matéria: nada mais que um sopro da natureza, uma bolha de sabão que estoura no ar de repente, uma gotícula de água que se evapora... Um sopro... Nada mais que um sopro. A morte então veio sorrateira, rastejando lentamente pela margem do córrego: tinha olhos de fogo, era mole e viscosa, parecia uma criança recém-nascida nadando em placenta e sangue, brilhando na escuridão, a boca se abrindo cheia de dentes. Eu sabia o que estava por vir, e sabê-lo me fez forte, corajoso, alegre, como se eu tivesse acabado de tomar a terceira taça de um vinho português encorpado, sem nada 69 70 ................................... Viver é morrer Quem costuma ler meus contos e crônicas certamente já se deu conta de que muitos deles abordam a morte. Não se trata de uma obsessão mórbida ou de um prazer doentio em perturbar a alma dos leitores, mas, pelo contrário: meu interesse pela morte é fruto de uma necessidade que eu tenho de refletir sobre a vida, visando tornar menos dolorosas as angústias do existir. Escrever sobre a morte faz com que eu me aproxime dela, numa busca que acontece dentro de mim mesmo. Pois a morte está em mim, em cada dor e alegria que eu sinto, embora muitas vezes eu tente negá-la como algo exterior, contrário à vida. Não. A morte não contraria a vida. Ela própria é vida. Viver é morrer... ................................... Acredito que, se a maioria das pessoas prefere não pensar na morte, é porque elas ainda não entenderam que pensar na morte é também se preparar para ela. Em seus “Ensaios”, Michel de Montaigne diz sobre a morte: “Se fosse um inimigo que pudéssemos evitar, eu aconselharia a adotar as armas da covardia. Mas, como isso não é possível, como ele vos alcança fugitivo e poltrão quanto corajoso, inútil esconder-se prudentemente sob o ferro e o bronze”. Montaigne nos aconselha a eliminar a estranheza deste inimigo, a nos acostumarmos com ele, para que possamos ser livres: “A premeditação da morte é premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e imposição. Na vida não existe mal para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal”. E se a morte é algo tão natural, por que não falar dela? Por que o silêncio sobre a única certeza que temos na vida? Por que o preconceito contra aqueles que encararam esse mistério de frente e tiveram a ousadia de transformá-lo em arte, como Baudelaire, Poe, Clarice e muitos outros? Não, não estou me comparando aos grandes mestres (que justamente por serem grandes, atravessam ilesos a ignorância e o desprezo do leitor médio, interessado apenas na felicidade e no sucesso vendidos a preços módicos nos livros de auto-ajuda). Perto dos grandes, quem sou eu? Mas mesmo na minha insignificância, não me julgo merecedor do escárnio dos leitores só por desrespeitar a lógica estúpida do mercado e me embrenhar de corpo e alma nesse território de sombras, que é o de todos nós. Mas será que essa lição de Montaigne, se levada ao extremo, não pode nos conduzir ao crime, às drogas e ao suicídio? 71 72 “Na vida não existe mal para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal”. Essa frase é libertadora porque, se passamos a compreender que aquilo que acreditávamos ser uma terrível ameaça à vida é a própria vida, que viver é morrer e que através da morte renovamos nossos laços com a Natureza e com Deus, por que nos subjugarmos às imposições da sociedade, que nos obriga muitas vezes a ser o que não somos, a fazer o que não queremos, simplesmente para nos adequarmos a padrões de conduta previamente (e artificialmente) estabelecidos? Quem aprende a morrer se liberta de toda a sujeição e imposição porque o medo maior não existe mais. Ao se ver livre dos grilhões da morte, que escravizam a sua alma, o homem que sabe morrer se liberta também dos medos ................................... menores, criados, em sua maioria, pelo próprio homem. Sem medo, o homem pode se encontrar, libertar-se das máscaras do não-eu e viver intensamente as dores e alegrias do ser do mundo. Mas até que ponto isso não é uma ameaça à nossa própria integridade e à do próximo? O que significa viver intensamente as dores e alegrias do ser do mundo? O meu aniversário de 27 anos eu passei em Paris, sozinho, descansando do meu trabalho de pesquisa para o doutorado, que eu realizava em Portugal. Foi ali, junto ao túmulo de Jim Morrison, no Cemitério do Père Lachaise, que eu me fiz novamente uma pergunta que há muito tempo me inquietava: O que teria levado aquele jovem de 27 anos, ícone de uma geração, a abraçar a morte daquela maneira? Num dia frio de maio de 2002, caminhando por entre os túmulos daquela bela necrópole, uma frase me acompanhava: “Jim Morrison tinha a minha idade quando morreu, aqui, nesta cidade, em 1971”. A causa da sua morte ainda é um mistério, embora muitos a associem naturalmente às drogas. Mas o que eu queria mesmo naquele momento era entender a relação de Jim Morrison com a morte, sobretudo nos seus últimos anos de vida, nas suas últimas horas. Eu tinha assistido ao filme “The Doors”, de Oliver Stone, e lembrando-me das cenas finais, supus que a morte, para Morrison, era mais ou menos aquilo que Montaigne descreveu em seu texto: um inimigo com quem ele se relacionava bem, tendo já superado todos os estranhamentos, todo o medo. Ele tinha aprendido a morrer. Viveu a vida intensamente, queimando-a com avidez. Viveu pouco... Mas viveu. ................................... Foi o próprio Montaigne que uma vez escreveu: “Ninguém morre antes da hora. O que deixais de tempo não era mais vosso do que o tempo que se passou antes do vosso nascimento; e tampouco vos importa. Termine a vossa vida quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu longo tempo e, no entanto, pouco viveu; atentai para isso enquanto estais aqui. Terdes vivido o bastante depende da vossa vontade, não do número de anos”. E com isso eu volto à pergunta: O que significa viver intensamente as dores e alegrias do ser do mundo? Para mim, não significa viver como Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Mas se, para eles, viver a vida intensamente significava queimá-la com sofreguidão e loucura, dançando com a morte todos os dias a sua dança mortal, e entregando-se finalmente a ela – ao seu abraço frio de dançarina que conhece bem o seu ofício –, sem resistência, sem medo, aos 27 anos – se viver intensamente para eles foi isso, não me importa. Quem aprende a morrer não precisa viver como eles. Pode-se viver intensamente de outras maneiras e por muitos anos. Mas se forem poucos, também não importa. Como disse o sábio Montaigne, a vida aí está inteira. O que faz a vida ser intensa é a busca pelo prazer de viver, em harmonia com o nosso eu verdadeiro, com a Natureza, com o próximo e com Deus, sem medo da morte, mas respeitando-a, com humildade. Para mim, viver intensamente é isso. E não é fácil... Termino esta crônica citando Padre António Vieira: 73 74 ................................... “Esta nossa chamada vida, não é mais do que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero translatus ad tumulum: Mas ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo; como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele, tanto mais se chega para ele: e quem, quanto mais se aparta, mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo e não outro é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele: o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz; e como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó”. ................................... As férias de Ramon As férias aliviam pouco o espírito atormentado de Ramon. Sua mente obsessiva, preocupada demais com coisas por fazer (que, mesmo sem a obrigação cotidiana do trabalho, enchem sua agenda de domingo a domingo), não lhe dá trégua. É nas férias, por exemplo, que ele vai ao dentista, submetendo-se por livre e espontânea vontade ao que há de mais refinado em tortura física disponível no mercado: “Carla, pega para mim a lixa profilática”, diz o dentista, dirigindo-se à sua assistente, e Ramon antecipa em seu corpo a horrível sensação de ter uma lixa de pedreiro entre os dentes, arranhando, raspando, indo e voltando cem, duzentas vezes, até extrair o último vestígio de tártaro. “Se doer você me avisa”, diz o dentista, iniciando um outro procedimento; mas o pior não é a dor, é a espera da dor, a expectativa, que é terrível. “Acho que vou ter que te anestesiar”, e Ramon não sabe o que é pior: as agulhadas da anestesia, que parecem perfurar o núcleo do nervo – o centro mesmo da dor –, ou a dor normal que decorre de um procedimento realizado sem anestesia. E ainda tem o alto valor do investimento, que normalmente Ramon paga feliz, não só por ter consciência da importância de uma boa saúde bucal, mas também porque só paga no final, minutos antes de ir embora, para só voltar no ano seguinte. Ele sai satisfeito do dentista, pronto para sua visita anual ao médico e, como consequência, sua bateria anual de exames. Urina e sangue, tudo bem. Mas fezes... O homem ocidental normalmente não gosta de manusear fezes (nisso Ramon se iguala à maioria), e manusear suas próprias fezes, mesmo com palitinho e plástico, é, para Ramon, não só nojento, mas aviltante: é a confirmação 75 76 ................................... palpável, com cheiro, temperatura e consistência, de que ele e toda a humanidade não valem realmente nada: “do pó ao pó”, como dizia o Padre Vieira. Mas ele faz o que precisa ser feito, como qualquer um; depois enfrenta a fila para entregar os potinhos devidamente lacrados e embrulhados no laboratório, onde seus conteúdos serão analisados por profissionais que Ramon respeita ainda mais que dentistas e médicos: aqueles que manuseiam dezenas, centenas de amostras de fezes, todos os dias, remexendo resíduos de vários formatos, consistências, cores e cheiros, procurando ovos de lombriga (ou a própria lombriga), sangue oculto e não sei mais o quê. Depois é aguardar, sofrendo, o resultado dos exames. O sofrimento é em decorrência da preocupação obsessiva que Ramon tem com a sua saúde (ou a falta dela), o que chamamos de hipocondria. Ramon bate o olho no resultado de um exame e acha que sabe tudo: dá o diagnóstico e o prognóstico, às vezes imagina até os detalhes do tratamento. Mesmo sem o resultado oficial ele já tem um resultado pronto na cabeça. E sofre. Como sofre! Em 99% das vezes não é nada, e quando é alguma coisa, é bobagem. Mas Ramon continua sofrendo mesmo assim. Ele não aprende. As férias de Ramon coincidem sempre com as férias dos filhos, o que por um lado é bom, pois ele pode ficar mais tempo com as crianças, brincar, ler e passear com elas. Mas por outro lado, chega uma hora que cansa, e Ramon precisa de um tempo só para ele, em silêncio, mergulhado numa paz de Buda, para poder lidar melhor com seus demônios internos, que são muitos e terríveis. ................................... atormentá-lo, sobretudo nas férias. Ela sabe quando ele entra de férias, ela pressente a alegria que a perspectiva de um tempo livre lhe dá, e ataca, sem dó nem piedade. Ano passado, foi uma infiltração na porcaria de um telhado de policarbonato, que custou a Ramon vários telefonemas à empresa enrolada que colocou o telhado (e que detesta pegar pequenos serviços). Esse ano, três novas infiltrações, dessa vez na sala: três goteiras insistentes, que continuavam pingando mesmo quando não estava chovendo. Ramon tentou primeiro conversar com a casa, pedir a ela misericórdia, propor um acordo de cavalheiros, mas foi em vão. O problema era na laje, não no telhado de policarbonato, por isso não havia empresa para chamar. Chamar quem, então? Um pedreiro? Um bombeiro? Ramon resolveu primeiro subir no telhado para ver o que era. Descobriu uma telha solta e, sorrindo, disse para a casa: “Te peguei”. Ele mesmo colocou a telha no lugar e voltou feliz e vitorioso para o seio de sua família. Mas não era a telha, pois as goteiras continuaram. Ele então subiu na laje, por uma portinha na área de serviço, e descobriu uma enorme poça de água bem em cima do local das goteiras, só que, por mais que ele investigasse o lugar, não soube como ela tinha se formado. E ainda tem a casa monstro. Isso mesmo. A casa de Ramon tem vida própria e é um monstro programado para Três dias se passaram, com as goteiras enchendo baldes e mais baldes de água na sala, e Ramon subindo e descendo pela portinha do telhado sem solucionar aquele mistério. Foi só no quarto dia que ele descobriu que o problema era numa parte de metal do telhado, uma coisa que ele nem sabia que existia e que, no dia seguinte, conversando com um amigo, descobriu se chamar “calha”. É que Ramon estava procurando o problema no meio exato da poça, e a goteira que vinha da calha danificada estava no canto, e só pingava 77 78 ................................... quando chovia. Enfim, Ramon teve que chamar um especialista em calhas, que lhe cobrou os dois olhos da cara para resolver o problema. E, para terminar, não podemos nos esquecer que na casa monstro tem também a geladeira monstro (sempre em conluio com a casa, só estragando no dia seguinte à compra mensal de carne), o portão eletrônico monstro, a televisão monstro, o alarme monstro, a internet CTBC monstro... Pois é. Falta uma semana para terminarem as férias de Ramon. Hoje eu me encontrei com ele na rua. Está um desastre, coitado. Os exames deram todos normais, mas ele está preocupado com a possibilidade de vir a se tornar diabético, pois sua glicose deu 88, muito próximo de 99, que é o máximo permitido. Eu disse a ele para ficar calmo e não se preocupar com isso. “Vai ler um livro, Ramon, ver um filme, tira essa semana só para você, esquece o mundo”. Eu ia dizer a ele para aumentar a dose do rivotril, mas não disse. É melhor não. ................................... Ramon em choque Ramon tem o péssimo hábito de só se comparar com pessoas que ele considera normais, o que o faz se sentir uma verdadeira aberração da natureza. Às vezes ele me liga no meio da noite (cochichando ao telefone para não acordar a mulher e os filhos), desesperado, com a mesma ladainha de sempre: “Eu sou um desajustado, um descontrolado, um doido de pedra. Não sirvo para viver em sociedade, não consigo me enquadrar de jeito nenhum. As pessoas me odeiam, têm medo de mim... Olha, não dá mais... Simplesmente não dá mais. Acabou”. E eu respondo: “Acabou nada, Ramon. A vida é assim mesmo. Não existe ninguém normal. Você não é louco. Nós gostamos de você do jeito que você é. Coloca essa sua cabeça no lugar e vai dormir”. Ele chora, soluça, gagueja, tenta me manter na linha dizendo que vai se matar com um tiro no céu da boca – e eu fico ouvindo aquilo, cheio de compaixão, imaginando ele agachado no canto da sala, tremendo, como se um assassino sanguinário estivesse vasculhando a casa à sua procura para torturá-lo e depois matá-lo. (Infelizmente esse assassino existe. É o próprio Ramon, caçando a si mesmo na escuridão – uma escuridão que é só sua). No dia seguinte a uma dessas crises, resolvi gravar um DVD para ele. Deu muito trabalho, mas em menos de um mês ficou pronto: uma coletânea dos casos mais bizarros apresentados em alguns programas que passam na TV por assinatura, que eu costumava assistir quando perdia o sono, e que, para mim, ajudariam Ramon a se sentir menos desajustado: Acumuladores, Desordem mental, Louca compulsão, Minha estranha obsessão, Enigmas da Medicina, Troca de esposas, entre outros. Entreguei para ele o DVD e disse: “Veja isto, Ramon. Aqui você vai encontrar pessoas 79 80 ................................... muito mais estranhas e desajustadas do que você” (e dei a ele alguns exemplos: o do rapaz que se sentia perseguido por monstros horríveis dia e noite, o da mulher que só conseguia comer batata frita, o do homem que tinha a casa toda tomada por objetos inúteis e muita sujeira, o do velho que tinha um tumor de cinco quilos pendurado no rosto, o da mulher viciada em comer sabão em pó, e o do garoto que mais parecia um lobisomem). “Só que, como você vai ver”, continuei, “essas pessoas seguem vivendo suas vidas, buscam ajuda, contam com o carinho da família e dos amigos... Diferente de você, Ramon, que só sabe reclamar e se punir, tornando a sua vida e a das pessoas que gostam de você um verdadeiro inferno”. Ele aceitou o presente de cabeça baixa, meio desconfiado, e foi embora. ................................... No dia seguinte fui à clínica psiquiátrica. Não pude ver Ramon, que ainda estava em estado de choque, mas fui informado pelo seu médico que alguma coisa deve ter provocado uma reação em cadeia no seu cérebro debilitado, aumentando em níveis altíssimos seu transtorno obsessivo compulsivo, sua ansiedade e depressão, tudo ao mesmo tempo, levando ao choque e à paralisia. “Que coisa...”, disse eu, tremendo todo por dentro, e pensei: “Conto ou não conto?”. Viajei a serviço da empresa e, quando voltei, duas semanas depois, fiquei sabendo que Ramon se encontrava internado numa clínica psiquiátrica. Liguei para a sua esposa e ela me contou que, na semana anterior, ele estava assistindo a um DVD na sala, quando ela passou e o achou estranho, meio distante. Ela lhe perguntou se estava tudo bem e ele disse que sim. Mais tarde, quando ela passou de novo, ele se encontrava em estado de choque, paralisado, os olhos arregalados, a boca aberta babando horrores na gola da camisa. Parecia uma estátua de cera: pálido, frio. Ela o sacudiu com força, desesperada, gritou, molhou seu rosto com água gelada, mas nada disso o acordava. Chamou os bombeiros, que tiveram que carregá-lo como se carrega um boneco de madeira ou um robô. Seu coração batia lentamente, ele respirava, mas era como se fosse um objeto inanimado, “uma coisa muito esquisita”, ela disse. “Meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensei comigo mesmo, ao desligar o telefone. “Só pode ter sido...”. 81 82 ................................... Peixes fora d’água Dos dezessete vereadores eleitos, sete são “do bar”: Toninho do bar, Carlão do bar, Renato do bar, Karina do bar, Elias do bar, Geraldo do bar e Zé Preto do bar. Quatro são filhos de pessoas muito conhecidas na cidade, prestativas até não poder mais: João Gordo filho do Tuca do Ferro Velho, Maurício filho da Ção da Casa de Oração (esposa do Euclides do bar), Andréia filha do Juca da Farmácia e Renato filho da Lu do Pronto Atendimento. Quatro são doutores, embora nenhum tenha doutorado: Dr. Leandro, Dr. Osvaldo, Dr. Sebastião e Dr. Safado, este último muito respeitado na cidade por se safar de qualquer embrulhada em que se meta, recorrendo, quase sempre – quando o dinheiro não resolve o problema no ato –, a dois parentes que tem no Poder Judiciário, e, em alguns casos, a amigos ligados ao alto escalão do Governo. Dos quatro doutores, dois são médicos e prestam serviço gratuito à comunidade pobre, segundo eles porque são bons, caridosos e gostam de ajudar o próximo (é certo que com alguns erros de percurso, como trompas ligadas no intestino, amputações desnecessárias, joelhos bichados para o resto da vida e uma e outra morte por imperícia ou abuso de álcool – nada, porém, que não seja facilmente disfarçado como “fatalidade” ou “descuido do paciente” –, coisas que acontecem). Os dois outros doutores são advogados, ambos de famílias tradicionais na cidade, treinados desde a infância na arte milenar de puxar o saco de quem tem poder, sobretudo juizes. Um deles é amigo de um capitão da polícia, por isso especializou-se em liberar veículos irregulares e motoristas sem habilitação em troca de apoio e votos. O outro vem liderando desde o seu mandato anterior uma pequena máfia que frauda licitações da prefeitura: coisa pouca, no máximo um ou dois milhões por ano, para ninguém desconfiar. Os outros dois vereadores 83 ................................... são Maçaneta e Corrimão, duas ex-garotas de programa que hoje formam uma famosa dupla sertaneja, disputada a tapas por todos os bares da cidade, redutos privilegiados de eleitores. E olha que maravilha! O novo prédio da câmara já está quase pronto! Uma construção enorme, com vagas na garagem para dezessete vans de uso exclusivo dos vereadores, para levar e buscar eleitores na capital. A presidência da casa quer inaugurar a nova sede com a aprovação de alguns projetos inovadores, que já estão sendo discutidos e aplaudidos por todos. Um deles propõe transformar a obra do Teatro Municipal em um enorme bar popular, com grande variedade de tira-gostos e shows semanais de duplas sertanejas locais. Um outro quer aumentar a carga tributária para negócios que, na visão dos vereadores, não são de utilidade pública, como a única livraria da cidade, o cinema e a escola de desenho e pintura mantida a duras penas por uma artista local. Por outro lado, o projeto propõe reduzir os impostos para empreendimentos que os vereadores consideram muito úteis à população, como a venda de sons possantes para carros, concessionárias de motos, lojas de artigos para churrasco, bares e duplas sertanejas. Enquanto isso, peixes fora d’água, fracos demais para lutar, morrem ou fogem desesperados. * 84