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1ª edição
Flávio Marcus da Silva
1ª impressão
(2013)
Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98.
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em
qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa
autorização do autor.
PEIXES FORA
D’ÁGUA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
_____________________________________________
Silva, Flávio Marcus da
PEIXES FORA D’ÁGUA. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG:
Editora VirtualBooks, 2013.14x20 cm.
1. Literatura brasileira. Contos. Brasil. Título.
CDD- B869
____________________________________________
Livro editado pela
VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA.
Rua Porciúncula,118 - São Francisco
Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected]
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VirtualB ooks
© Copyright 2013, Flávio Marcus da Silva.
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CONTEÚDO
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Deu a louca em Ramon
A praça estava calma naquela manhã ensolarada de sábado.
Sentado sozinho num banco perto da lagoa, Ramon ouvia o
canto dos pássaros nas jabuticabeiras carregadas e o
balançar suave das folhas de uma enorme mangueira, cuja
sombra acolhedora era um convite irresistível à preguiça, a
ficar ali de boa, sem fazer nada. Em seu colo, aberto na
primeira página, um livro de contos de Terezinha Pereira que
ele já tinha lido, mas que pretendia reler naquela manhã. Só
que não teve jeito.
Deu a louca em Ramon
Somos chiques mesmo, e daí?
Papai Noel para poucos
A indignação de Dona Jaciara
Goiabas bichadas
Zona de conforto
Passeio ao Shopping
É que, de repente, Ramon ouviu um barulho vindo de trás,
um som mecânico que, de longe, parecia vir de um cortador
de grama, mas que, ao se aproximar, estava mais para motor
de broca de dentista (aquele som torturante, insuportável).
Ao sentir que a coisa já estava bem perto dele, Ramon virou
a cabeça e viu um menino de dois ou três anos, daqueles
bem rechonchudos, montado numa moto de três rodas
movida a bateria, descendo lentamente o caminho que
levava à beira do lago. Logo atrás dele vinha o pai, um
gordinho bem-apessoado, enfiado num traje esporte fino e
carregando, numa bolsa de couro, o que certamente era seu
computador portátil último modelo (devia ser um jovem
empresário ou executivo, daqueles que não perdem tempo
na vida quando o assunto é dinheiro).
Genro: uma palavra que me gela a espinha
Papai, amanhã tem circo!
É por isso que estou aqui
Entendendo Ramon
Calouros e veteranos na CEDAF-UFV
De marré deci
Um dia em Amsterdam
Petúnia Negra
Trem noturno para Lisboa
Um sopro da natureza
Viver é morrer
As férias de Ramon
Foi assim que acabou o sossego de Ramon. Ele até tentou
ignorar aquele pai sério, concentrado na tela do seu
computador, enquanto o filho gordinho (que era a sua cara)
ia de um lado para o outro, sem parar, montado na sua moto
de barulho irritante. Não conseguiu. Procurou outro banco,
mas em cada um havia uma pessoa, e Ramon só se sentava
em bancos de praça se fosse para ficar sozinho.
Ramon em choque
Peixes fora d’água
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Não havia passado nem cinco minutos quando Ramon ouviu
um outro barulho, parecido com o primeiro, mas ainda mais
irritante. Dessa vez ele não olhou para trás. Deixou que em
seu campo de visão fosse entrando lentamente um carrinho
motorizado da Barbie, pintado com todos os tons de rosa
possíveis no mundo, guiado por uma menina de no máximo
três anos, tão gordinha que parecia nem ter pescoço. Ela
vinha acompanhada da mãe, uma jovem alta e corpulenta,
certamente com vários quilos acima do que qualquer médico
recomendaria como ideal, carregando uma caixa de isopor e
uma bolsa de couro que, ao ser aberta, revelou em seu
interior (alguém adivinha?) um pequeno computador
portátil. Ela não tinha cara de empresária. Parecia mais
esposa de um, daquelas bem ociosas e depressivas, que
preenchiam seu tempo livre em casa atacando a geladeira e
fuçando redes sociais.
Ramon se sentiu incomodado com aquele barulho (a
sensação era como se dois enxames de abelhas-robôs
estivessem voando ao redor da sua cabeça), mas decidiu
ficar, para se torturar, como quando ligava a televisão de
madrugada e assistia aos programas das igrejas mundiais e
universais, para ver até onde ia aquela loucura – a
encenação, a exploração, a estupidez – e se indignar, se
revoltar inutilmente até o dia clarear.
A cena então era a seguinte: num banco, um pai obeso no
computador. No outro, uma mãe obesa no computador. E
passando na frente de Ramon, indo e voltando, duas crianças
obesas motorizadas, filhas dos pais obesos nos
computadores. Aquilo foi irritando Ramon de tal forma que
faltava pouco para ele explodir e cometer uma loucura. Por
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quê? Ora, porque Ramon é assim. Tem coisas que o irritam e
ele fica louco. Vai entender... Eu é que não entendo.
E assim ficou Ramon, sentado no banco da praça, vendo
aquele vai-e-vem insuportável, ouvindo os zumbidos
infernais, até que a mãe se levantou, abriu a caixa de isopor
e retirou dois potinhos de sorvete, fazendo Ramon se
enrijecer todo, suas mãos crisparem-se sobre o tecido da
calça e seus olhos se arregalarem, cheios de espanto. A
mulher pediu às crianças que parassem seus brinquedos e
entregou um potinho para a filha e outro para o seu
coleguinha. O pai lhe agradeceu quando ela passou perto do
seu banco; trocaram uma ou duas palavras simpáticas, por
educação, e voltaram para seus computadores.
“Sorvete...”, pensou Ramon. “Essas duas bolinhas
precisavam era de um suco natural e muito exercício: correr,
brincar de pique, de bola, de cabra cega... E esses dois
imbecis, que elas têm como pai e mãe, ficam aí parados,
vendo-as engordarem... Que horror...”.
De repente a menina começou a chorar. Seu sorvete tinha
caído no chão. A mãe voltou e lhe deu outro. O menino não
tinha terminado o seu, mas quis outro também – disse que
não gostava de chocolate. A mulher então lhe deu um de
morango. E os dois ficaram ali, chupando seus sorvetes, com
o carro e a moto ligados, embora parados.
A menina terminou seu potinho e pediu outro. O menino
também. E a mãe foi dando sorvete para eles, sem parar,
com a maior naturalidade. Ramon contou quatro potinhos
para cada um e ficou pensando se alimentação inadequada e
falta de exercícios físicos não constituiriam também um caso
para o Conselho Tutelar.
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Ramon estava no seu limite, quase perdendo a razão,
quando a mulher se levantou para levar mais um sorvete
para cada um. As crianças nem chegaram a tocar nos
potinhos. Quando deram por si, seus sorvetes estavam
dentro da lagoa, lançados por um Ramon já transfigurado
em monstro: olhos vermelhos, lábios tremendo, boca
espumando, cabelo molhado de suor... A mulher se assustou
tanto com Ramon, que ficou parada, atônita, sem saber o
que fazer, e assistiu impassível a ele retirar com delicadeza
as crianças de seus veículos motorizados, carregar a moto
num braço e o carro da Barbie no outro e, num movimento
de força hercúlea, jogá-los também dentro da lagoa. O pai
nem viu nada. Quando levantou os olhos, Ramon já estava
em cima dele, arrancando de suas mãos o computador, que
saiu voando como um bumerangue sem volta em direção à
lagoa. O mesmo aconteceu com o computador da mulher, e
também com a caixa de isopor. Tudo voando. O homem
ainda tentou tirar satisfação, esbravejou, ameaçou chamar a
polícia, mas Ramon lhe deu um empurrão que o jogou longe,
e saiu correndo dali.
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Somos chiques mesmo, e daí?
Coitado do Ramon... Que sofrimento! Um dia que prometia
paz e alegria, lazer e descontração, por nada se transformou
num inferno. Mas pelo menos foi um desabafo. O dia foi
perdido, Ramon precisou dobrar a dose do seu calmante no
meio da tarde, mas eu não sei o que poderia ter acontecido
se a panela de pressão que era Ramon não tivesse
encontrado naquele surto repentino a sua válvula de
escape... Não é bom nem pensar.
- Muito interessante... E o que esse movimento promove?
- Nossa convidada de hoje é uma das mulheres mais
badaladas da alta sociedade local: D. Jaciara de Assunção
Menezes Torres e Albuquerque.
Boa noite, D. Jaciara, é uma alegria imensa tê-la conosco.
- A alegria é toda minha, meu caro Bruno. É sempre um
prazer voltar ao seu programa.
- Acho que todos os nossos ouvintes já conhecem D. Jaciara,
sabem que ela pertence a uma das famílias mais ricas e
influentes da cidade, que muito contribui para o
desenvolvimento econômico de toda a região. Porém, D.
Jaciara tem uma novidade para nos contar...
- Pois é. A novidade é que eu e um grupo de amigas
acabamos de fundar um movimento na cidade chamado
“Somos chiques mesmo, e daí?”.
- Bem, há muito tempo me incomoda o fato de haver em
nossa cidade um preconceito muito grande contra ricos e
pessoas de classe. Por exemplo, tem um jornalista aqui que
não perde uma única oportunidade para achincalhar os
representantes da alta sociedade local: não cita nomes, é
claro (porque ele não é louco), mas está sempre tentando
mostrar que não existe diferença entre as pessoas.
- E existe?
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- Claro que sim! Eu, por exemplo, viajo para a Europa cinco
vezes ao ano. Só bebo vinho alemão Mit prädikat ou francês
com Appellation d'origine contrôlée. Não preciso trabalhar
para viver: sou dona de quase a metade dos imóveis
comerciais da cidade, que me rendem alugueis
astronômicos, fora os lucros das empresas que eu e meus
irmãos herdamos de papai e das fazendas de gado Nelore
que possuímos no norte de Minas. Isso sem contar o fato de
termos mais deputados e prefeitos na nossa família do que
qualquer outra família no estado, o que, sem dúvida, facilita
muito as coisas, não é? Pois então. Como alguém pode dizer
que eu sou igual, por exemplo, à minha camareira número 4,
que mora em um barracão de aluguel, num bairro tão
distante do centro, que ela precisa pegar seis ônibus por dia
para ir e voltar do serviço?
- Entendo perfeitamente o seu ponto de vista, D. Jaciara,
mas talvez a perspectiva do jornalista em questão não seja
essa...
- Eu sei muito bem qual é a perspectiva dele. É a de alguém
que precisa trabalhar para viver; anda num carro caindo aos
pedaços porque não consegue comprar um novo; nos finais
de semana só tem dinheiro para levar os filhos na pracinha
da igreja e enchê-los de churrasquinho enfumaçado com
guaraná... Eu conheço esse tipo de gente. Essas pessoas têm
é inveja dos ricos, dos que têm classe, por isso inventam
essas histórias de que somos todos iguais, de que “privada
de ouro não fede menos”. Claro que fede menos! Lá em
casa, por exemplo, tem um aparelho que eu trouxe do Japão
que elimina todo o fedor das fezes antes mesmo dele sair da
privada! Não dá tempo nem do cheiro chegar aos narizes de
quem está defecando. Tudo acontece como num passe de
mágica! E enquanto eu defeco, tenho diante de mim uma TV
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exibindo documentários franceses de altíssimo nível:
Thalassa, Envoyé Spécial, Quartier Général, etc. Pobre tem
isso? O nosso jornalista tem isso?
- Imagino que não, D. Jaciara. Mas, o que exatamente
promove o movimento “Somos chiques mesmo, e daí?”?
- O nosso movimento promove a conscientização das
pessoas para o fato de que ser chique não é para todos, mas
para uma minoria rica, e que é preciso aceitar isso sem
conflitos, sem inveja, sem rogar praga e torcer para que todo
tipo de desgraça aconteça com representantes da nossa
classe. É incrível como pobre cafona adora ver rico chique
sofrer, só pra dizer: “Tá vendo! Tem dinheiro, mas não é
feliz”. Coitado. Infeliz é ele: mora mal, ganha mal, come mal
e dificilmente vai melhorar de vida. Somos chiques mesmo, E
DAÍ? Não fomos nós que inventamos o capitalismo! Que
culpa temos nós de que, para existir, o capitalismo precise de
milhares de trabalhadores pobres dispostos a vender o seu
trabalho por uma mixaria e, assim, fazer os ricos ficarem
cada vez mais ricos? Não temos culpa disso!
- Muito bem, D. Jaciara...
- E não temos culpa também dos pobres só aparecerem nas
páginas policiais, enquanto nós, que temos dinheiro para
pagar a publicação de nossas fotos e de matérias sobre
nossas vidas chiques, aparecemos nas melhores colunas
sociais da região, sempre arrancando suspiros invejosos de
todos que gostariam de ser como nós.
- Entendo...
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- E eu lá tenho culpa do meu filho ser brilhante, de estar
fazendo doutorado numa das melhores universidades
federais do país e viajar o mundo todo apresentando seus
artigos em conferências internacionais? Por que eu não
posso contar isso para todo mundo? É verdade!
- Claro, D. Jaciara, não precisa ficar nervosa.
- Não estou nervosa, meu caro Bruno. Apenas quis enfatizar
a importância do nosso movimento, que representa uma
minoria em nossa cidade (e no Brasil como um todo): uma
minoria que também tem seus direitos, assim como os gays,
os índios, os sem-teto, os sem-terra, os cotistas
universitários, etc.
- D. Jaciara, infelizmente nosso tempo acabou. Foi um prazer
conversar com a senhora.
- O prazer foi todo meu. E quem quiser mais informações
sobre o nosso movimento, encontre-nos no Facebook. É só
digitar: “Somos chiques mesmo, e daí?”. Muito obrigada!
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Papai Noel para poucos
Querido Papai Noel,
Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e
ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da
minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá
setecentos reais por mês para eu gastar com o que eu quiser,
mas eu economizo duzentos todos os meses (porque eu
quero juntar três mil reais para levar para a Disney no ano
que vem e comprar um monte de coisas legais para mim).
Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas
fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os dias
eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa
sala com uma bolsa, porque ele é pobre e negro, coitado.
Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias,
como urubu, filhote de cruz-credo e favelado; e ainda
chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e
traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não
conversava com o menino porque não pegava bem (a galera
ia ficar me zoando e ia acabar me isolando do grupo); só a
professora e a diretora falavam com ele. Mas eu nunca bati
nele, nem o chamei de nomes feios.
De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o
interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um
pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos
pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles.
Quando não sobra nada, eu pego uns dois ou três pães (que
ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer
e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão) e jogo
para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava
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com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o
piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o
coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na
hora e empurrou o menino para fora, chamando-o de pivete
imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.
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celular, o senhor sabe... não dá para ficar com o mesmo por
muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre
aparece um mais avançado, com design mais moderno e
mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso,
para ninguém ficar zoando a gente.
Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me
contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor.
Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da
ASCIPAM é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um
espírito superior, que só visita as residências de pessoas
superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí
que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que
são inferiores, só ganham de Natal brinquedos ruins,
enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e
caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres
são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade
ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no
nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas
mágicas visitar as nossas casas.
Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que
tiver no mundo), porque quinze colegas meus já têm os seus
e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão,
porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um
celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não
posso ficar para trás.
Aproveito esta carta também para agradecer o helicóptero
de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular
que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai
Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando,
mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado,
então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de
manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! O
computador já não me serve mais, porque de uma hora para
outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar
outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu
colega, chegou com um muito mais caro do que o meu,
então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma
marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o
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Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu queria
confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com
a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá
no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão
naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho
importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e
uma hora ele disse que este ano o Papai Noel DELE vai
chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um
aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se
deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me
contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do
senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se
equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai
Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de
jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o
senhor?
Um forte abraço, blá blá blá...
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A indignação de Dona Jaciara
- No programa de hoje vamos conversar novamente com a
líder do movimento “Somos chiques mesmo, e daí?”, D.
Jaciara de Assunção Menezes Torres e Albuquerque.
Convidei-a atendendo a um pedido do seu primo, o senador
Aníbal Menezes Torres, que me ligou hoje pela manhã. A
entrevistada desta noite seria D. Ana do Zé Preto,
responsável pelo restaurante da criança do Bairro da
Consolação, mas diante do pedido do nosso querido
senador, eu tive que cancelar.
Boa noite, D. Jaciara. É uma honra tê-la novamente conosco
para mais um bate-papo.
- Boa noite, Bruno. Eu sabia que você não ia negar um
pedido do seu padrinho, que sempre te acolheu muito bem
em Brasília, não é mesmo? Mas antes de tratar do assunto
que me trouxe aqui hoje, eu gostaria de agradecer
publicamente ao meu grande amigo, o médico Dr. Américo
Torres (que é também meu primo em segundo grau e
membro do movimento “Somos chiques”), pelo atendimento
de primeira dado a mamãe no hospital ontem à noite.
Normalmente, quando o problema nos parece grave,
utilizamos um dos helicópteros da família e levamos mamãe
até a capital. Mas ontem, como tudo indicava se tratar
apenas de uma simples micose na virilha, eu liguei
imediatamente para o Américo, que estava em seu horário
de plantão no SUS. Na mesma hora ele se levantou da mesa
onde jogava baralho com outros médicos, na fazenda do seu
irmão, e veio correndo para o hospital. E me permita aqui
um desabafo, meu caro Bruno: quando chegou lá, Dr.
Américo foi atacado por dez pobres que aguardavam na fila
do SUS, só porque ele não estava no hospital para atendê-los
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quando eles queriam, e também porque passou mamãe na
frente. Veja bem: o SUS paga uma miséria para os médicos,
que são obrigados a atender qualquer pessoa que chegar
(um absurdo!). Mamãe, riquíssima, membro do “Somos
chiques” e de clubes de altíssimo nível na cidade, irmã de
deputados e senadores, não vai ser atendida primeiro?
Foi um horror! Queriam matar o coitado do Américo: as
crianças pobres começaram a chorar e a gritar, as mães
arrancaram seus chinelos e tamancos sujos de terra
vermelha e foram pra cima dele, enquanto os homens
tiveram que ser contidos pelos enfermeiros para não
cometerem uma loucura. A sorte foi que eu consegui falar
com o capitão Nascimento (irmão da esposa de um sobrinho
de papai), que interrompeu uma partida de truco com
traficantes na periferia só para colocar fim ao motim no
hospital. Tudo acabou bem: os amotinados foram recolhidos
ao camburão e levados à delegacia. Que noite!
- Impressionante! Que absurdo... Mas, D. Jaciara, qual é o
assunto que a senhora gostaria de discutir conosco esta
noite?
- Pois bem. Estou aqui com uma crônica intitulada “Coluna
Social Suburbana”, de autoria de um rapaz chamado Paulo
Giardullo, que teve a ousadia de sugerir a possibilidade de se
publicar colunas sociais de pobres. O exemplo que ele usa
para ilustrar a sua coluna fictícia é de arrepiar os cabelos:
uma festa na casa do “Seu João do Forno”, para comemorar
a sua aposentadoria, depois de décadas trabalhando em
uma siderúrgica.
Vou comentar algumas passagens do texto. Ouçam isto: “Os
Pratos: foi servida uma deliciosa feijoada, com miúdos de
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porco e feijão preto legítimo, sendo contratada, com
exclusividade, a Dona Janaíra, cozinheira do famoso ‘Bar do
Sô Quim’, e sua equipe”.
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sua priminha, a Aninha, que ganha alguns trocados para
tomar conta dele, enquanto sua mãe trabalha de
doméstica”.
Ora, desde quando uma feijoada de pobre possui a
sofisticação e o requinte necessários para ser servida como
prato em uma festa digna de coluna social?
Tem cabimento uma coisa dessas? Dá para acreditar nisso?
Uma mulher do meu nível, que tem na sua suíte uma
banheira esculpida numa peça maciça de quartzo amazônico
avaliada em dois milhões de reais, na sala de estar um pianobar com paredes revestidas em couro de iguana de
Galápagos, e nas unhas um esmalte feito de lascas de ouro,
mantido em um recipiente de cristal com tampa cravejada
de brilhantes, não pode se calar diante de uma sucessão de
absurdos como essa!
Só para citar alguns exemplos do que significa requinte e
sofisticação, meus caros ouvintes, apresento-lhes algumas
iguarias servidas durante uma festa que eu dei semana
passada no meu palacete, em comemoração à medalha
“Abolição da República”, recebida das mãos do próprio
presidente pelo meu irmão Otávio, que é Promotor de
Justiça aqui na cidade. Ouçam com atenção: Plateau de fruits
de mer (para quem não entende o francês, eu traduzo:
peixes, crustáceos e outros frutos do mar, de frescor
absoluto, servidos em uma tábua de madeira nobre dourada
com fios de ouro comestíveis), pizza contendo no recheio
quatro tipos de caviar e lagosta, frozen yogurt de melão,
chocolate feito com leite de camelo de Dubai, sorvete de
caviar e de fígado de ganso, vodca polonesa envelhecida 25
anos... (Só para vocês terem uma ideia, as bebidas chegaram
de carro-forte blindado).
Agora ouçam mais este trecho da crônica do tal Giardullo
(Quando eu li esta passagem na reunião de sábado do
“Somos chiques”, minha amiga Lúcia passou mal e teve que
ser conduzida de helicóptero à capital): “A Decoração e o
Figurino: a casa foi lindamente decorada pelo cabeleireiro do
bairro, o Jesuíno, com motivos lembrando o aço, e, no centro
da sala, uma maquete da Siderúrgica onde Seu João
trabalhou, feita pelo neto dele, o Zezinho, que esteve o
tempo todo acompanhado pela sua Babi Sister, na verdade
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E tem mais! Ouçam isto: “A filha mais nova do Seu João, a
Adelaide, estava simplesmente magnífica em um modelito
saia e blusa jeans, adquirido na Boutique da Silvinha, que fica
ali na esquina. A mulher dele, Dona Efigênia, apareceu
subitamente no salão, digo, quintal, com um vestido legítimo
do ateliê da Dona Tereza, a ‘Te Costureira’. Era um ‘tomaraque-caia’ lilás, com babados dourados, realmente um luxo!”
Estou simplesmente HOR-RO-RI-SA-DA com isso! E gostaria
de deixar registrada aqui, meu caro Bruno e queridos
ouvintes, a minha INDIGNAÇÃO diante da ousadia desse
Paulo Giardullo, que não tem a mínima noção do que é ser
chique nesse nosso país.
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Na estrada deserta o carro cortava a noite em alta
velocidade. ‘Não acredito que você fez isso’. “O quê?”.
‘Deixar aquela mulher na estrada, sem prestar socorro’.
“Mas ela estava morta”. ‘Você não sabe se ela estava morta’.
“Como não sei? Sou médico, sei muito bem quando estou
diante de um cadáver ou não”. ‘Mas os lábios dela tremiam,
os dedos se mexiam’. “Isso é normal. Ela tinha acabado de
morrer. Ontem mesmo eu vi uma reportagem no Discovery
Channel sobre o Baiacu, aquele peixe que os japoneses
adoram. Numa cena o peixinho estava morto numa bandeja,
limpinho, as vísceras já postas numa tigela à parte, e ele
ainda mexeu a boca três vezes. Com o corpo humano é a
mesma coisa”. ‘Mas você tinha que prestar socorro’. “Não
tinha nada. Quem disse isso? Nossos legisladores? Ora, não
me faça rir. Prestar socorro a quem? A um corpo?”. ‘Você é
responsável pela morte daquela mulher. Tem que pagar pelo
que fez’. “Foi um acidente. E acidentes acontecem. O que
você quer? Que eu me entregue à polícia? Que eu diga Olha
seu policial, eu bebi três taças de vinho com os amigos num
sítio aqui perto e ao voltar pra casa, sozinho, atropelei uma
mulher que andava de bicicleta no acostamento, e ela
morreu. É isso que você quer? Pra quê?”. ‘Justiça’. “Que
justiça? A dos juizes? Dos deputados?”. ‘Você cometeu um
crime’. “Não me diga... Eu conheço o Código Penal. Por isso
mesmo eu sei que, se eu me entregar, nenhuma justiça será
feita. Vou pagar uma fortuna a um bom advogado
mercenário, que vai livrar a minha cara em menos de duas
semanas. E eu ainda tenho amigos juizes que não pouparão
esforços para me ajudar. Só vou ter que aguentar os
jornalistas me chamando de canalha em rede nacional, o que
me desagrada um pouco. Por isso prefiro facilitar as coisas e
deixar tudo como está: ninguém me viu, ninguém anotou a
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minha placa...”. ‘Eu vi’. “Mas você não conta. Daqui a pouco
eu te convenço e nos acertamos. A propósito, é a primeira
vez que você me dá trabalho desse jeito. Sempre que você
me questiona sobre minhas atitudes e ideias eu te neutralizo
em menos de um minuto. E agora isso... Você se lembra
quando eu pedi àquele coitado pra dar um jeito nos pés de
pequi e de ipê amarelo da minha fazenda, dizendo que eu
me responsabilizaria por tudo caso a polícia o pegasse?”‘E a
polícia o pegou e você jogou a culpa toda nele?’ “Pois é...
você entendeu em um minuto que o que eu quis dizer para o
coitado foi outra coisa, que foi ele que interpretou errado,
achando que era pra cortar as árvores e não era... Foi uma
confusão danada”. ‘Então era pra cortar’. “Claro que era.
Mas pense comigo... Onde já se viu um médico respeitado
como eu, pai de três filhos médicos, de uma família
tradicional, ter que prestar contas à polícia e pagar multas
por causa de meia dúzia de pés de pequi e dois de ipê?”.
‘Mas o coitado foi preso e teve que pagar multas’. “Ele
cortou porque quis. Eu não o obriguei”. ‘Mas o enganou’.
“Isso não importa”. ‘Importa sim’. “Para quem? Para Deus?”.
‘Talvez’. “Eu não acredito em Deus”. ‘Eu sei que não. E tenho
nojo de você quando te vejo na igreja, ajoelhado, fingindo
rezar, na sua ânsia por respeitabilidade, lustrando essa sua
máscara de bom cidadão. Mas saiba que teus olhos te
traem...’. “Não me venha com lições de moral. A vida é um
jogo, e só ganha quem sabe jogar. Eu sei jogar. E nesse caso
do atropelamento, eu agi corretamente, não tente me
convencer do contrário. Ter que enfrentar a polícia,
contratar advogado, para no final não acontecer nada? Pra
quê? Agi corretamente porque me poupei desse atraso de
vida”. ‘Você não pode garantir que não ia acontecer nada’.
“Claro que posso. É o que acontece com a maioria dos
políticos que roubam e dos médicos que matam e mutilam
por descuido e negligência: absolutamente NADA”. ‘Mas
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cada um tem a sua consciência’. “Olha, vou te dizer uma
coisa: conheço um político que já deve ter roubado tanto
dinheiro da Saúde Pública, que daria pra construir uns vinte
hospitais do câncer no país só com o que ele desviou,
salvando a vida de muitas crianças que, por falta de
estrutura e tratamento, acabaram morrendo. E eu te
pergunto: não seria esse político responsável pela morte de
todas essas crianças?”‘Sim, em tese’. “Pois quero que você o
conheça: um coroa bonachão, com uma família que sabe
aproveitar bem o que ele rouba: todo mundo montado na
grana: filhos, filhas, noras, genros e agregados (parentes e
amigos que parasitam o núcleo familiar como sanguessugas,
encontrando ali tudo de que necessitam para viver bem:
empregos, moradia, comida, festas e vários sacos pra puxar).
E como ele é feliz! Nenhum problema com a consciência, eu
posso te garantir. Se ele tiver uma, com certeza está presa
numa câmara escura com uma enorme rolha na boca.
Diferente de você, minha querida, que vê e fala o que quer e
quando quer... Ó minha doce consciência... Como é que eu
te aturo? Eu que sou tão perspicaz...”. ‘E a família daquela
mulher?’. “A família dela vai sofrer de qualquer jeito, não
importa se eu me entregar ou não à polícia. Aliás, penso que
ela sofrerá mais se souber que eu me entreguei e não sofri
nenhuma punição”. ‘Então é isso’. “Isso o quê?”. ‘Você não
vai se entregar’. “Claro que não, que coisa! Mas quero que
você fique tranquila, ok? Não suporto consciências pesadas,
histéricas, que atormentam a nossa vida com suas lamúrias
sem fim: - Você não podia ter feito isso, não podia ter feito
aquilo; - Ela é sua irmã, você não podia tê-la enganado pra
ficar com o dinheiro só pra você; - Além de sócio, ele era seu
amigo, confiava em você, mas você o enganou assim mesmo
e deixou a família dele na miséria; - Você humilhou aquela
mulher... ela não merecia isso; - O seu filho tinha que ter
conseguido aquela vaga sem o auxílio da sua rede de
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amizades... Não aguento esse tipo de coisa”. ‘Eu sei’. “Vocês,
consciências pesadas, não têm a menor chance neste nosso
país de consciências leves. Vocês são como aquelas goiabas
suculentas que se deixam perfurar pelas moscas, e depois
carregam suas larvas, que se alimentam de vocês até
transformarem suas polpas em uma massa podre e
imprestável. As moscas são os pensamentos grandiosos que
fazem o mundo girar, o dinheiro circular, os grandes
impérios surgirem; são as ideias que alimentam o poder, o
sucesso e o lucro, que destroem as consciências apegadas a
valores retrógrados, atrasados, que só dificultam a vida
daqueles que querem vencer, fazendo-os sofrer sem
motivo”. ‘Somos então como goiabas bichadas’. “Isso
mesmo: goiabas bichadas”.
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Zona de conforto
O casal viajava sempre pela mesma companhia aérea. O
marido era entendido de aviação e sabia que aquelas
aeronaves eram todas controladas por computador, o que
garantia aos passageiros um enorme conforto durante o voo,
mesmo em situações complicadas como tempestades e
turbulências. O computador calculava e previa tudo,
mantendo o avião estável a viagem inteira.
“Tudo aqui é perfeito”, o homem dizia à esposa, enquanto
bebia um café bem forte e olhava o gracioso rebolar da
aeromoça que se afastava em direção à cabine. A esposa
concordou com indiferença e continuou lendo a tese de um
jovem historiador pernambucano, cuja defesa aconteceria
em Recife no dia seguinte.
A mulher tinha quarenta e dois anos e já era uma das mais
respeitadas historiadoras do Brasil, com vários livros
publicados, todos traduzidos para o inglês, francês e
espanhol. Não era a primeira vez que ela ia a Recife para
fazer parte de uma banca de doutorado, o que explicava o
seu desânimo – ainda mais tendo que ler uma tese de quase
cinco quilos que, para ela, não valia nem a tinta usada na sua
impressão.
Mas pelo menos o avião seguia o seu curso tranquilamente,
sem nenhum desconforto para os passageiros, que
aproveitavam o excelente serviço de bordo como se
estivessem instalados numa poltrona macia de um hotel
cinco estrelas à beira mar – sem filhos.
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audaciosa que ele havia feito à diretoria da empresa onde
trabalhava, e que naquele momento devia estar sendo
analisada. Para ele era preciso arriscar, mudar radicalmente
o rumo das coisas: investir em criatividade, inovar, pois do
contrário eles ficariam para trás, seriam engolidos pelos
gigantes ou fechariam as portas. Do jeito que estava, tudo
parecia ótimo – pelo menos para os medíocres, que eram a
maioria: tudo muito estável e confortável, “como neste
avião...”, pensou.
De repente um alarme soou na cabine. O avião estava em
rota de colisão com outra aeronave (descuido de um
controlador de vôo, com certeza).
O piloto tentou uma manobra arriscada para evitar a
tragédia – uma guinada brusca para a direita –, mas o
computador de bordo não permitiu a ação, certamente
porque seria desconfortável para os passageiros, entretidos
com seus cafés, revistas, filmes e teses.
Por que o computador ignorava o risco de colisão?
Não sei. Coisas de computador...
A mulher grifava com tinta vermelha um parágrafo da tese,
roendo as unhas de ódio e desespero, e o marido observava
pela janela as nuvens que se estendiam como um enorme
manto branco abaixo deles, quando tudo se apagou.
No dia seguinte, em Recife, ao receber a notícia da morte da
renomada historiadora, o jovem doutorando respirou fundo
e pensou: “Que alívio! Ela ia acabar comigo...”.
Depois do café, o marido trocou de lugar com a esposa e foi
para a janela, onde começou a refletir sobre a proposta
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Passeio ao Shopping
No sábado, depois do feriado, Ramon resolveu levar a família
ao Shopping. O tempo estava ótimo, quente, apesar de ainda
ser inverno. Saíram por volta de dez da manhã, com a
esperança de uma viagem rápida e tranquila. Com o feriado
na sexta-feira, todo mundo que tinha que viajar já tinha
viajado (e, realmente, quase não havia veículos na estrada).
Assim, em menos de uma hora, chegaram ao seu destino.
Onze da manhã, corredores vazios, praça de alimentação só
com um ou outro gato pingado. “Que maravilha”, pensou
Ramon, quase sem acreditar que passaria o dia com a família
no Shopping sem ter que enfrentar filas.
Mas foi só uma ilusão passageira. Do nada, como num passe
de mágica, uma multidão apareceu. E uma hora depois,
quando Ramon resolveu almoçar, já havia uma fila de quase
duzentos metros de comprimento saindo do restaurante
japonês, seu preferido. A esposa dava comida ao filho de três
anos, que teimava em não comer sozinho, enquanto a filha
de sete saboreava em silêncio seu bife com batatas fritas.
Enquanto isso, Ramon esperava na fila, apoiando-se ora num
pé ora noutro. “Se eu soubesse, teria trazido um livro”,
pensou. Meia hora depois, ainda na fila, olhou distraído para
a sua mesa. Viu a esposa azul de fome e os meninos
chupando a segunda casquinha do McDonald’s. “Calma,
Ramon”, disse para si mesmo, desviando o olhar para o
buffet de saladas, que parecia um pouco mais próximo.
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o sorvete do filho desabar em cima da mesa, sujando a bolsa
da mãe e um livro que ela tinha comprado. Ramon respirou
fundo e disse: “Não se preocupe, filho, o papai vai limpar”.
Juntou um monte de guardanapos, limpou a bagunça e,
antes de colocar o segundo sushi na boca, olhou para a filha
que, rindo sem graça, disse: “Não quero mais sorvete,
papai”. Ramon respirou fundo mais uma vez (ainda com
esperança de salvar aquela tarde no Shopping com a família
de um desastre) e disse: “Não se preocupe, filha, o papai vai
comer o resto para não desperdiçar”. Pensou em dizer: “Isso
é culpa da sua mãe, que mesmo sabendo que vocês não
conseguem comer duas casquinhas, compra duas assim
mesmo, só porque vocês insistem. Como se o meu dinheiro
fosse capim...”. Mas não disse. Engoliu de uma vez o resto do
sorvete e continuou seu almoço.
Meia hora depois a esposa voltou para a mesa trazendo seu
prato com churrasco, arroz, feijão tropeiro e maionese, que
ela terminou em menos de dez minutos, porque as crianças
estavam impacientes para sair dali, brigavam por qualquer
coisa, derrubando copos e talheres na mesa e no chão.
Levantaram-se e foram ao parquinho, onde enfrentaram
novas filas e gastaram sessenta reais só com o menino,
porque a filha não quis brincar em nada, dizendo que aquilo
era coisa de bebê. “Ainda bem”, pensou Ramon.
Em seguida foram à C&A, para a esposa comprar algumas
roupas para ela e a filha.
Finalmente Ramon se serviu e voltou à mesa. Aliviada, a
esposa se levantou e pegou uma outra fila, tão grande
quanto a que o marido tinha acabado de enfrentar. E foi a
conta dele se acomodar na cadeira e começar a comer para
Mulher comprando roupas é o terror. Elas não param nunca
de experimentar. O provador devia se chamar Buraco Negro:
elas entram e somem; você chama, elas não respondem; é
como se estivessem em outra dimensão, onde o tempo se
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conta em prejuízo dos maridos que ficam do lado de fora:
quinze minutos para elas são duas horas para eles. Ramon
esperou, esperou e esperou mais um pouco. Devia ter saído,
dado uma volta com o filho, mas seu celular estava
descarregado e ele ficou com medo de perder a mulher e a
filha dentro do Shopping (que, naquele momento, já estava
apinhado de gente).
De lá foram às Lojas Americanas, lugar que Ramon
costumava achar menos desagradável, por causa dos
corredores repletos de brinquedos e chocolates, onde ele
viajava no tempo, lembrando-se com alegria de quando
brincava sem se preocupar com nada e comia chocolates
sem culpa. Mas naquele dia foi diferente, pois assim que
entraram, viram-se diante de uma nova multidão em fila,
dando voltas e mais voltas nos corredores da loja como se
aquilo fosse o primeiro dia de venda de ingressos para um
show do Rolling Stones. “Você já pode ir para a fila com os
meninos enquanto eu pego as coisas”, disse a esposa para o
marido. E ele foi. E a fila não andava, os filhos reclamavam,
choravam, querendo ir embora; e quando finalmente
entraram no “Corredor das Tentações” – onde o consumidor
tem ao alcance das mãos qualquer produto supérfluo que
ele possa querer comprar para aliviar o ódio e a angústia
daquele tempo perdido em pé na fila –, os filhos começaram
a pedir tudo que viam: salgadinhos, bolachas recheadas,
chicletes, chocolates, balas, bombons, etc., e o pai, nervoso
(já sem a menor esperança de salvar aquela tarde com a
família no Shopping de um desastre), dizia: “Não. Nem
pensar. Eu já disse que não! Calem a boca! Lá em casa eu
acerto vocês...”.
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viu. Olhou para aquilo e disse, com os dentes serrados,
tentando disfarçar o ódio: “Você me fez ficar aqui...” (e
olhou o relógio) “quarenta e cinco minutos para comprar
ISTO?!”. A mulher o encarou, calma, e disse, sem levantar a
voz: “Menos, Ramon, menos... Não precisa fazer escândalo
em público”.
Vinte minutos depois foram lanchar no Burger King. Na fila,
Ramon pediu à esposa que escolhesse os lanches e
decorasse o pedido, para não haver confusão no caixa. Ela
escolheu, decorou números e nomes, mas mesmo assim
houve confusão: “Qual brinquedinho você quer, filha? O
bonequinho que pula ou a japonesinha com máscara?”;
“Qual a diferença do Combo um para o Combo dois?”; “Pode
trocar o refrigerante pelo suco?”; “Você vai querer quatro ou
oito nuggets no lugar do hambúrguer?”; “Moço, não
consegui ver a diferença entre o lanche 17 e o 23”. Ramon
nem quis escolher nada, estava sem fome; ficou só olhando
os meninos, que resolveram montar os brinquedinhos na
mesa, enquanto comiam. Foi uma confusão de peças
coloridas de plástico misturadas com batatas e nuggets. O
brinquedo era uma porcaria, uma coisa para montar e jogar
fora, tipo Kinder Ovo (“mais fácil seria pegar uma nota de
vinte reais e rasgar de uma vez”, pensou Ramon).
Quatro e meia da tarde. Hora de ir embora. Na saída do
estacionamento, Ramon ficou espantado com a quantidade
de carros que entravam no Shopping. Era como se
estivessem anunciando em rede nacional que o mundo ia
acabar em duas horas e que ali era o único lugar onde a vida
seria possível depois da catástrofe.
De repente a esposa voltou trazendo um condicionador e
duas barras de chocolate. O marido não acreditou no que
Dirigindo-se aliviado para a avenida que daria acesso à
rodovia, Ramon imaginou a praça de alimentação do
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Shopping lotada, as pessoas comendo seus tira-gostos,
sanduíches, batatas recheadas e sorvetes, bebendo
refrigerante, fazendo barulho ao mastigar e engolir, as
barrigas se empanturrando, formando gazes. Associou a
cena à imagem de um enorme rebanho de vacas, bois e
bezerros pastando. Mas balançou a cabeça negativamente,
sorrindo: “Nada a ver... Pobres animais...”.
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Genro: uma palavra que me gela a espinha
Você, que tem uma filha de quinze ou dezesseis anos, se
pudesse escolher para ela um namorado, como ele seria?
Se fosse dirigida a mim essa pergunta, sem pensar muito, eu
responderia: “Ele não seria”. Só que, infelizmente (ou
felizmente), não tem jeito: ela vai acabar namorando. Mas
com quem? Sempre quando eu penso nisso, sou tomado por
um preconceito arrebatador. Tento vencê-lo, mas é como se
eu nadasse contra uma corrente poderosa demais.
E assim eu me vejo analisando possíveis pretendentes,
julgando-os pela aparência (coisa horrível) e tirando dessas
análises superficiais as conclusões mais absurdas e
irracionais.
Ontem mesmo eu cruzei com um rapaz na rua: cabeludo,
cheio de tatuagens pelo corpo, com um piercing enorme
atravessando o lábio inferior, barbudo (a barba crescia no
pescoço e emendava com os pêlos do peito, que pulavam
para fora da camisa rasgada: era de embrulhar o estômago).
Com essa imagem na cabeça eu me vi no futuro, abrindo a
porta da sala, a minha filha entrando com esse mesmo
sujeito e dizendo: “Pai, esse aqui é o Jack Boy, meu
namorado”. O que eu faço numa situação dessas?
Cumprimento o ser? Como? Pego na mão dele? Digo:
“Entra”? Entrar? Eu vou deixar que ele entre na minha casa,
na minha vida e, o pior: na vida da minha filhinha?
Imediatamente um filme começa a passar na minha cabeça:
minha mulher grávida dela, eu sentindo seus chutinhos, o dia
do nascimento, a emoção ao pegá-la no colo pela primeira
vez, o primeiro banho, as primeiras brincadeiras, o primeiro
aninho, o primeiro livrinho e as historinhas que eu contava
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para ela, os beijinhos, os bilhetinhos, o carinho, o amor que
só quem tem um filho sabe como é; e eu vou entregar esse
meu tesouro para o JACK BOY? Vou entregar a minha VIDA
para um cara que no dia de conhecer os sogros nem se deu
ao trabalho de lavar os pés encardidos e passar um
bicarbonato com limão debaixo dos braços para tirar o
cheiro azedo da fermentação suvacal? Vou entregar o que eu
tenho de mais precioso para um sujeito que tem hálito de
gambá e fica o tempo todo balançando a cabeça e falando
“Sóóó, legal...”?
Puro preconceito. Claro. Ou será que é impossível um rapaz
desses fazer minha filha feliz? Talvez ele a faça mais feliz do
que um filhinho de papai todo certinho, estudante de Direito
ou de Medicina na Federal. (Abrindo um parêntese aqui:
parece que muitos pais realmente gostariam que suas filhas
namorassem um estudante da Federal, de preferência do
curso de Medicina, que dá mais status. Os futuros médicos
sabem disso e adoram se exibir por aí, com as camisas do
curso e adesivos “Medicina UF...” colados nos seus carros –
geralmente ganhados de presente de seus papais e mamães
–, imitando aqueles pavões machos que abrem seus belos
leques de penas, plumas e cores para atrair as fêmeas mais
interessantes).
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riquíssimos, cuja união se deu da forma mais tradicional e
“correta”, mas que não vivem em paz, estão sempre
preocupados com o dinheiro, com a imagem de
respeitabilidade e prosperidade que devem transmitir à
sociedade, etc. E ao mesmo tempo existem casais que não
ligam para nada disso e que, embora passem uma imagem
de desleixo e sujeira, vivem muito bem, amam muito e
curtem a vida, com liberdade e respeito.
É claro que existem muitos casais “respeitáveis” que vivem
bem, e muitos casais “desleixados” que não vivem bem. Isso
é muito relativo. Por isso, a melhor coisa a fazer é deixar o
preconceito de lado e educar os filhos para a felicidade e o
amor verdadeiros. E rezar.
Mas voltando à questão da felicidade, não precisamos
procurar muito para encontrar famílias constituídas da forma
“como deve ser” (casamento na igreja, casa própria, situação
financeira razoável, encontros de casais mensais, etc.) onde
a mulher apenas finge ser feliz: finge viver. Assim como não
é difícil encontrar casais alternativos, onde o marido (meio
doidão) é poeta, compositor, escritor (e, por isso, pobre),
mas onde, mesmo assim, há harmonia, liberdade, alegria e
felicidade verdadeiras. Existem casais respeitáveis,
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Papai, amanhã tem circo!
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um alívio Ramon sentiu: o cheiro do ribeirão tinha ficado do
lado de fora.
Antes mesmo de ler o que estava escrito no pedaço de papel
que o filho lhe mostrava, Ramon sabia do que se tratava.
Aquele textinho impresso em papel barato era um dos
maiores terrores dos pais que aceitam se sacrificar pelos
filhos só até certo ponto, que pensam que há diversões
infantis educativas que a moral da paternidade deveria
deixar como opcionais, desobrigando-os de se sentirem
culpados ao dizerem NÃO aos seus rebentos. Ramon sabia
que aquele papel era uma dessas coisas, fato confirmado
pelo filho de três anos que, balançando o ingresso e pulando
de alegria, disse: “Papai, amanhã tem circo! A gente vai, não
é? Nem tem que pagar!”.
“Pronto. Então vamos ao circo... Mais essa agora...”, pensou
Ramon mal-humorado, sentindo um frio na espinha,
daqueles que gelam até a alma.
Não, ele não tinha nada contra circos, muito pelo contrário,
era até fã da arte circense; mas tinha verdadeiro horror
daquele tipo de circo em particular, que chegava à sua
cidade todos os anos e levantava lona sempre no mesmo
terreno baldio: uma várzea cortada por um dos ribeirões
mais poluídos do mundo, com seu cheiro de esgoto e carniça
quase palpável no ar.
E foi para lá que a família de Ramon se dirigiu naquela bela
tarde de sábado, levando os dois ingressos grátis que os
filhos tinham ganhado na escola.
Ao comprar os dois ingressos de adulto (exigência para
acompanhar as duas crianças) e entrar no circo, pelo menos
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Procurando um lugar para se sentarem de forma que
pudessem ter uma boa visão do picadeiro, Ramon e a esposa
concluíram que qualquer cadeira que eles escolhessem, na
frente, atrás ou nos lados, teria no mínimo dois postes de
sustentação atravessando o palco e atrapalhando o
espectador. Por isso a família se sentou onde parecia ser
menor a chance dos palhaços pegarem Ramon para ajudante
(como da última vez), obrigando-o a se levantar e a interagir
com eles como um verdadeiro imbecil.
Sentaram-se e logo ouviram o animado apresentador
anunciar: “Em um minuto começará o espetáculo!”. Ramon,
aproveitando a passagem de um vendedor de algodão doce,
perguntou-lhe: “Por favor, senhor, o espetáculo tem
previsão de durar quanto tempo?”. “Mais ou menos uma
hora e quinze minutos”, respondeu o homem, que mais
tarde seria visto dando saltos mortais no trapézio e
vendendo pele de porco frita para a platéia.
“Calma, Ramon”, disse para si mesmo o pai já desesperado,
“não sofra agora o que você deverá sofrer no momento
certo. Lembre-se do que dizia a sua avó: ‘Cada sofrimento no
seu tempo’”.
Para resumir, vou dividir a agonia de Ramon em três etapas –
três momentos de maior intensidade –, pois, se não for
assim, delongaremos demais a narrativa com os pequenos
horrores de cada minuto da apresentação, o que certamente
será cansativo para você, leitor (se é que já não se cansou).
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Um minuto antes do início da primeira etapa de seu calvário,
Ramon tinha já se acostumado com a ideia reconfortante de
que alguma coisa tinha acontecido com os palhaços para eles
não terem dado ainda o ar de sua graça (ou da falta dela) –
uma disenteria, uma ressaca brava ou coisa parecida –
quando, de repente, caminhando já o espetáculo para o final
de sua primeira parte, irrompeu no picadeiro a trupe com
suas palhaçadas de dar dó, que Ramon aguentou firme, sem
reclamar, como quem suporta estoicamente uma tortura à
base de fogo e agulhas.
...................................
seu corpo por entre as nádegas, fazendo-a se equilibrar com
dificuldade nos saltos e a caminhar como um robô
desengonçado.
Mas como aquilo não acabava nunca, Ramon resolveu ir
comprar pipoca para os filhos fora da tenda, no que parecia
ser uma espécie de hall de entrada, local onde o dono do
circo certamente fazia valer a pena manter de pé o seu
empreendimento (graças às barracas vendendo batata frita,
pipoca, maçã do amor, algodão doce, chocolates e
refrigerantes com lucro de 500% ou mais). Comprou três
pipocas e voltou lentamente para a sua cadeira, torcendo
para que os palhaços já tivessem ido embora. Com alívio, viu
que não havia mais nada no picadeiro.
Finalmente veio o intervalo e Ramon pôde respirar um
pouco, indiferente ao vai-e-vem dos ambulantes vendendo
comida superfaturada, balões e bolinhas pisca-pisca por
entre as fileiras de pais desesperados e filhos gritando
“compra, papai, compra”.
Mas logo veio a segunda etapa do seu sofrimento: ter que
assistir à apresentação do homem do monociclo e de sua
companheira, ele enfiado numa roupa de lycra cor-de-rosa
que, para desespero de Ramon, marcava escandalosamente
a sua genitália, e ela... Meu Deus... Ramon não tinha nada
contra gordinhas, até gostava mais delas do que das magras,
mas aquela mulher tinha perdido completamente o senso do
ridículo. Vendo-a no palco ao lado de seu companheiro,
Ramon a imaginava nos bastidores, antes da apresentação,
revirando o baú de maiôs até encontrar o menor de todos:
uma peça cor-de-rosa brilhante que realçava seus belos
pneuzinhos e se adentrava, penetrava, atolava com força em
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Com vergonha de enfiar a cara entre as pernas ou de fingir
um desmaio, Ramon teve que assistir à apresentação até o
final. Se eu estivesse lá, sabendo dos seus cinco graus de
miopia, eu teria sugerido a ele que simplesmente retirasse os
óculos, mas o coitado, de tão perturbado, nem atinou para
isso.
Na segunda e última parte do espetáculo, pelo menos um
alívio para Ramon: o fim da música de intervalo (uma
coletânea de sertanejos e bate-estacas de arrebentar os
tímpanos de qualquer um). Mas sua paz durou pouco, pois lá
estavam eles de volta: os palhaços. Vendo-os de novo
cambaleando para o centro do circo, Ramon sentiu uma
tonteira; o picadeiro começou a girar; ele não via nada, só
ouvia a confusão de gemidos, gritos e gargalhadas emitidos
pela trupe, frases como “seu idiota, você errou”, “seu burro,
me dá isso aqui”, “se eu morrer você me paga”, “ai, se eu te
pego, ai, ai”, “delícia, delícia, assim você me mata”, e por aí
afora.
E assim terminou a terceira etapa do seu sofrimento,
marcada por tonteiras, taquicardia, enjôo e zumbido no
ouvido. Nem viu direito os trapezistas e seus saltos mortais –
que de mortais mesmo só tinham o tédio e a náusea que
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...................................
davam nos espectadores –, mantendo o olhar fixo na rede de
proteção, um trançado de fios grossos que mais parecia uma
daquelas armadilhas de corda para pegar leão nos filmes
antigos de Tarzã, de tão remendada e desfiada que estava.
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É por isso que estou aqui
Fim do espetáculo. Já do lado de fora, Ramon respirou fundo
o cheiro de esgoto e de carniça do ribeirão como se fosse
perfume francês, feliz por ter vencido mais uma prova em
sua vida; e mais feliz ainda ficou quando percebeu que os
filhos não tinham gostado, o que certamente lhe daria uma
boa justificativa para não repetir a dose no ano seguinte.
A família estava reunida para o almoço. Minhas duas irmãs
conversavam com seus maridos na varanda, ouvindo ao
fundo um concerto de Mozart. Tomavam cerveja preta e
comiam rodelas de salaminho com limão, enquanto meu pai
cuidava do jardim e minha mãe coordenava os trabalhos na
cozinha.
Foi num domingo nublado e frio, no sítio do meu pai, que
tudo explodiu.
Rui é casado com Alice, minha irmã mais nova. É professor
de Química e tem 35 anos. Damásio, marido da Lúcia, a mais
velha, é senador da República: 48 anos, extremamente
arrogante e violento, mas com um atrativo que, para a
minha irmã, faz valer a pena até os pescoções que ela ganha
dele de vez em quando, bem como as amantes que ele
carrega para todo lado: um patrimônio de mais de 100
milhões de dólares – o que contrasta cruelmente com a
situação do meu outro cunhado, o professor, que há dez
anos paga, a duras penas, o financiamento de uma casa na
Caixa Econômica Federal, equilibrando o orçamento familiar
sem a ajuda de ninguém, pois a Alice, como eu, é depressiva,
tem síndrome do pânico e não trabalha (nem em casa).
Alice e Rui têm uma filha de sete anos, a Carolina, uma
criança linda, mas triste, sem entusiasmo para a vida. É tão
melancólica a pobrezinha, que quando eu lhe dou um
chocolate ou um presente qualquer, ela sorri como se os
músculos da sua face obedecessem a um estímulo
meramente mecânico: como se um homem invisível lhe
puxasse os lábios com duas ou três cordinhas e depois
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...................................
movimentasse, com outras oito ou nove, seus bracinhos
frágeis na encenação de um abraço.
Já a Ludmila, de oito anos, filha do senador, é de dar medo:
má até não poder mais (se é que eu posso dizer isso de uma
criança de oito anos). Uma vez, no sítio, ela pegou os três
canários que o meu pai mais gostava (eles viviam soltos, indo
à gaiola só para se alimentarem) e colocou-os vivos no
congelador, deixando-os lá a noite inteira. De manhã, ela
retirou os pobrezinhos (convertidos em pedra), embrulhouos num papel de presente e entregou ao meu pai, que quase
teve um colapso. (Mas logo apareceu minha mãe, que
controlou a situação e abafou o caso). É uma menina
mentirosa, mas não como a maioria das crianças. Suas
mentiras são caluniosas, minuciosamente arquitetadas,
cheias de detalhes, e encenadas com perfeição: uma
excelente atriz, não há a menor dúvida.
Desde muito pequenas, as duas primas estão quase sempre
juntas. Alice faz questão que a filha frequente a casa do
senador e participe da vida de Ludmila. Esta, por sua vez, já
deixou claro para todos nós, várias vezes (quase sempre aos
gritos, na hora do almoço, com toda a família reunida), que
ela odeia a Carolina. O senador e sua esposa, incapazes de
perceber a crueldade por trás daqueles olhos infantis,
paparicavam a menina, dizendo: “O que é isso, filhinha... Não
diga uma coisa dessas. Ela é sua prima”. Ao que a filhinha
respondia: “Ela não é minha prima, não pode ser. Ela é feia,
magrela e burra, não sabe brincar com as coisas que eu
gosto, do jeito que eu gosto. Ela não tem nenhum brinquedo
legal, não sabe jogar os meus jogos, e as roupas dela são
feias. Eu odeio, odeio, ODEIO essa menina”. A Carolina ouvia
tudo, sem dizer nada. E seus pais, mergulhados num silêncio
constrangedor, demonstravam indiferença, como se aquilo
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...................................
fosse algo normal. E eu, dopado com meus remédios para
depressão e ansiedade, ficava lá, bebendo meu vinho,
também sem dizer nada.
Mas hoje, pensando nisso, eu vejo que aquela situação me
preocupava, pois no dia seguinte a uma dessas cenas, eu
comecei a prestar mais atenção nas minhas sobrinhas,
interessado em descobrir se o que eu supunha ser uma
espécie de tortura psicológica sofrida pela Carolina tinha
alguma coisa a ver com o seu estado patológico de tristeza e
melancolia.
Na entrada da escola, por volta de treze horas, o motorista
do senador parava o carro suavemente, bem em frente ao
portão, e do banco de trás saltava Ludmila, quase sempre
emburrada, seguida pela prima, que ia de carona com eles
todos os dias. A bruxinha batia a porta do carro com força na
cara da prima, sem esperá-la descer, como se não tivesse
ninguém lá. Essa cena eu assisti por três vezes consecutivas,
e conversando com o porteiro da escola, descobri que isso
acontecia todos os dias.
As duas estudam na mesma sala, mas Ludmila finge que nem
conhece a prima, isolando-a das outras crianças. Quem me
contou isso foi uma mãe, que uma vez levantou o problema
em uma reunião de pais, sem citar nomes, e foi severamente
contestada pela professora.
Passei também a observá-las durante os finais de semana, no
sítio, quando, por falta de opção, Ludmila aceitava brincar
com a prima pobre, e ouvi algumas frases ditas quase ao pé
do ouvido que me incomodaram profundamente, como:
“Você parece uma porca”; “Quem faz o seu cabelo? Que
coisa horrorosa!”; “Você fede”; “Eu não quero que você vá à
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minha festa de aniversário”; “Você é muito burra, sabia?”;
“O seu pai e a sua mãe são pobres e vagabundos. Quem
disse isso foi o meu pai, que é senador e ganha muito
dinheiro”; “Você só tem esse vestido?”; “Eu tenho muito
mais brinquedos do que você”; “Rapidinho você vai ter que ir
para uma escola de crianças pobres, sujas e fedorentas, que
nem você”; “Quando a gente crescer, eu vou deixar você
trabalhar de empregada na minha casa, e é você que vai
limpar toda a sujeira que os meus cachorros fizerem”.
Tudo isso me perturbou muito, mas como eu vivia dopado,
não consegui pensar numa estratégia de ação para salvar a
Carolina das garras daquele monstrinho.
Foi só naquele domingo, no sítio, depois de cinco dias sem
tomar os meus remédios, que tudo explodiu.
As duas primas brincavam embaixo de um enorme pé de
pequi, afastadas um pouco da casa, e eu fui até lá para
investigar. Carolina estava de quatro. Seu corpo tremia,
como se levasse choques elétricos, e de seus olhos escorriam
lágrimas em profusão, de medo e angústia. Ludmila segurava
uma vara bem fina e comprida, como um chicote, que ela
passava suavemente nas pernas e nádegas da prima,
gesticulando e falando alto. Cheguei mais perto, tomando o
cuidado para que elas não me vissem, e ouvi Ludmila dizer:
“Você não foi uma boa escrava e vai receber agora o seu
castigo”.
...................................
como uma louca, com os olhos pregados em mim,
aterrorizada: “Não, não, não...”; e eu gritava de volta, com os
dentes serrados (minha boca espumava): “Você não pode
fazer isso com a sua prima, não pode, não pode...”.
Quando eu terminei a surra, Carolina já tinha se levantado e
corrido até a casa.
Imediatamente apareceu a família toda, cercada por um
bando de puxa-sacos (que tinham ido bajular o senador,
como de costume), dentre os quais um promotor e um
capitão da polícia aposentado.
É por isso que estou aqui, nesta prisão, cumprindo o terceiro
mês da minha pena por tortura e desacato à autoridade (na
verdade, quebrei o nariz do promotor e cuspi na cara do
capitão).
Voltei a tomar meus remédios.
E tenho lido muito Dostoievski.
Não aguentei. Corri até lá, arranquei a vara das mãos
daquele projeto de feitor de senzala e, tomado de uma fúria
incontrolável, segurei a menina pelo braço, abaixei suas
calças e sapequei-lhe a bunda com cinco varadas bem dadas,
marcando-a com vergões enormes e profundos. Ela gritava
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Entendendo Ramon
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restaurantes com parquinhos e praças públicas nos finais de
semana, nem pensar!
Ramon às vezes tem crises agudas de melancolia. Não chega
ao ponto de querer morrer (como alguns de seus colegas
depressivos), mas, se pudesse, alugava um quarto no centro
de uma metrópole qualquer e se fechava lá dentro, sozinho,
até melhorar. Mas como não pode fugir aos compromissos
que uma vida de pai de família lhe impõe, ele procura evitar,
durante as crises, o menor contato visual que seja com cenas
e imagens do cotidiano que, ele já comprovou, deixam-no
ainda mais triste (às vezes aterrorizado, como se mirasse o
abismo). Por exemplo: homens e mulheres de meia idade
fazendo caminhada na avenida, com o passo acelerado,
usando boné, camiseta, bermuda e tênis. Como explicar o
que sente Ramon diante de uma cena dessas? Complicado...
O fato é que para ele isso é absolutamente deprimente;
assim como ver alguém correndo como um louco na esteira
da academia, suando a cântaros; e adolescentes portando
celulares, enviando mensagens cheias de erros de português
para amiguinhos e namoradinhos. (Nesse caso, a angústia de
Ramon beira as raias da loucura, faltando pouco para ele
arrancar o celular das mãos do indivíduo e lançá-lo com toda
a força contra a parede).
Outra coisa proibida: Facebook. Porque não tem nada mais
patético e deprimente para Ramon do que a necessidade
obsessiva que algumas pessoas têm de se exibir na rede:
fotos e mais fotos de viagens, festas, prêmios, carros, motos,
sítios, e as frases que, no fundo, só querem dizer “como sou
feliz”, “como sou um sucesso”, “como sou rico”, “como
gostam de mim”. Ramon diz que o que ele sente não é
inveja, pois raramente deseja o que os outros têm, e quando
deseja, não vê o que eles têm como mal empregado. O que
ele sente, na verdade, é um tormento do espírito, uma
angústia que cresce dentro dele como um tumor
descontrolado diante de tudo que é fútil e efêmero. Como
explicar? Não sei... Eu queria entender melhor o Ramon,
para ajudá-lo mais, já que sou seu único amigo. Mas não
consigo... Ele é muito complicado.
E não é só isso. Ramon também não suporta o excesso de
zelo e preocupação de mães e pais de primeira viagem com
seus filhinhos queridos: aquela coisa pegajosa, antipática,
exagerada: as crianças se achando as donas do mundo
(coitadas!) e os pais fingindo viver (coitados...). Ramon se
apieda dessas pessoas, mas junto com a pena vem uma
angústia tão grande, tão atroz e insuportável que, quando
ele entra em crise, não vai a nenhum lugar que considera de
risco, com medo de encontrá-las. Festas de família,
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Calouros e veteranos na CEDAF-UFV
Central de Ensino e Desenvolvimento Agrário de Florestal –
Universidade Federal de Viçosa (CEDAF-UFV), fevereiro de
1990
Em frente ao alojamento, um grupo de veteranos cortava os
cabelos de alguns calouros recém-chegados que, tremendo
de medo, aceitavam pacificamente a inexorável ação das
tesouras. No chão, os tufos de pêlos formavam pequenos
montes negros e dourados que o vento, com seu sopro
preguiçoso e úmido, ia espalhando aos poucos pela areia
branca do pátio central.
Esses calouros logo seriam batizados. Eram adolescentes
ainda, com 14, 15 ou 16 anos. No batizado, receberiam um
apelido, dado por seu padrinho, um veterano do 2º ou 3º
ano que, embora não passasse de um fedelho trazendo
ainda vivas na pele as marcas da puberdade, tratava o seu
afilhado como se fosse propriedade sua, castigando-o por
qualquer motivo – como, por exemplo, não conseguir pegar
o sabonete com a bunda na hora do banho –, mas também,
sejamos justos, protegendo-o de alguns veteranos mais
maldosos, quando julgava necessário.
Os apelidos dados pelos padrinhos tinham como objetivo
ridicularizar e humilhar o calouro, que durante a semana de
trotes era obrigado a trazer no pescoço uma placa de
papelão com a sua identificação: apelido e padrinho. Na
verdade, no batizado, o calouro recebia um NOME. Com uma
arrogância que hoje me faz pensar nos antigos donos de
escravos do Brasil Imperial, os veteranos determinavam
taxativamente que, a partir daquele dia, o apelido do calouro
passaria a ser “o nome feio que o seu pai e a sua mãe te
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deram”, diziam. O nome “verdadeiro”, nos três anos que ele
moraria no alojamento e frequentaria as aulas no prédio
principal, seria aquele dado pelo seu padrinho veterano na
ocasião do batizado.
Assim, durante toda a semana, circulava pela CEDAF uma
horda imensa de calouros amedrontados e sujos, com suas
placas de identificação trazendo nomes como Cóia, Garrote,
Jiló, Kabaço, Kaganeira, Kuqueluche, Mulambo, Ku d’água,
Nematóide, Roitoba, Paracú, Naftalina, Tribufú, Kuaresma,
Dopado, Jegão, Mirraxa, Nucú, Piranhoso, Rolinha, Sgoto,
Supositório, Xitara, Xupão, Biskate, Furreka, Buneka,
Kunotoko, Kuteko, Menorréia, Xupeta e Korrimão, só para
citar alguns.
No interior do alojamento, alguns calouros esfregavam os
corredores com escovas de dente, repetindo em voz alta,
sem parar, sob a fiscalização severa dos veteranos, a famosa
ladainha: “Um ladrilhozinho bonitinho mais um ladrilhozinho
bonitinho são dois ladrilhozinhos bonitinhos; dois
ladrilhozinhos bonitinhos mais um ladrilhozinho bonitinho
são três ladrilhozinhos bonitinhos...”. Outros calouros
mediam a extensão de um corredor com palitos de fósforo;
outros, no banheiro, eram obrigados a tomar banho frio e a
gastar um sabonete inteiro, sem desligar o chuveiro;
enquanto isso, no mesmo banheiro, vários calouros,
completamente nus, eram enfiados num único boxe, onde
tinham que tomar banho juntos – e coitado de quem
deixasse o sabonete cair no chão: tinha que pegar, sem que
ninguém arredasse o pé dali!
Nos quartos, as “brincadeiras” rolavam dia e noite. Uma das
mais tradicionais era amarrar os testículos do calouro com
um barbante apertado que, na outra ponta, era atado a um
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ferro de passar roupas, daqueles antigos, pesados. O calouro
era colocado em cima de uma mesa, tinha os olhos vendados
e era obrigado a segurar o ferro, enquanto os veteranos
gritavam “Solta o ferro, calouro, solta o ferro...”, até que,
para desespero do calouro, alguém batia em suas mãos e o
ferro caía – felizmente, sem arrancar-lhe as bolas, pois em
meio à confusão, conforme o combinado, alguém, com
muito cuidado, havia cortado o barbante.
Outra “brincadeira” maligna, que foi largamente utilizada
pelos veteranos na semana de trotes de 1991, era a
“Máscara de Gás”. Na verdade, “Máscara de gás” era como
os veteranos chamavam o tênis com o chulé mais fedido e
ardido do alojamento, uma coisa nojenta, realmente terrível.
Estávamos em plena Guerra do Golfo e os bombardeios
aconteciam quase todos os dias, lá longe, no Oriente Médio.
Então, por que não trazer um pouco daquele clima de guerra
para os quartos da CEDAF? Foi o que aconteceu. Quando um
“avião inimigo” se aproximava, os veteranos gritavam para o
calouro: “Alerta Vermelho, calouro, Alerta Vermelho!
Coloque a máscara de gás!”: e ele era obrigado a encaixar o
tênis no nariz e na boca, de forma que o ar não entrasse, e
respirar fundo, várias vezes, até o Alerta Vermelho passar.
Alguns chegavam a passar mal, vomitavam, e eram levados à
Enfermaria.
No refeitório, durante toda a semana, os calouros só comiam
arroz e feijão, pois carne, doce de leite e outras iguarias
fresquinhas, produzidas na própria escola, iam direto dos
seus bandejões para os dos veteranos – simples assim:
“Calouro, passa pra cá esse doce”; “Calouro, esse frango aí é
meu, põe aqui”. E eles punham, é claro. Ai de quem não
pusesse. E ai também de quem não fosse buscar suco para os
veteranos ou de quem se recusasse a servir-lhes mais
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polenta ou salada e, às vezes, até a dar-lhes comida na boca,
picar sua carne, palitar seus dentes e sentir seus arrotos.
Voltando do refeitório, a caminho do alojamento, os
calouros eram frequentemente bombardeados com sacos ou
bexigas de água gelada, que estouravam em seus pés ou,
como era muito comum, em suas cabeças desavisadas. Estas,
mesmo aturdidas, assim que recebiam o primeiro golpe,
ordenavam às pernas bambas de medo que corressem o
mais rápido que pudessem. Das janelas do alojamento os
veteranos gritavam: “Calouro burro, volta aqui,
desgraçado!”.
Nessa semana de trotes, calouro não “batia o barro”, como
se dizia. As fezes se acumulavam e endureciam no intestino,
pois eram poucos aqueles que se arriscavam nos pequenos
boxes sanitários semi-abertos, em frente aos chuveiros. O
calouro que não aguentava, quase sempre era surpreendido
por um veterano que, ao entrar no banheiro, normalmente
gritava: “Quem tá aí?”. ‘Eu’. “Eu quem, desgraça? É
calouro?”. Nesse ponto do diálogo, a musculatura anal do
calouro já tinha trancado tudo lá embaixo. Não saía mais
nada. “Quem é o seu padrinho?” ‘Fulano’, “Mas cê tá podre,
heim calouro! Puta que o pariu... Sai daí agora... Se você não
sair daí A-GO-RA, eu vou arrebentar essa porta e fazer você
comer essa merda que cê tá fazendo aí dentro”. A conversa
era mais ou menos assim.
À noite, os veteranos, organizados numa espécie de grêmio,
verificavam se faltava algum calouro nos quartos. Isso se
justificava porque, em decorrência dos trotes, muitos
calouros fugiam para os matos circunvizinhos, para poderem
dormir em paz, escondidos, já que as “brincadeiras” dos
veteranos não paravam nem de madrugada.
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Para as buscas nos matos, os veteranos organizavam
verdadeiras matilhas de calouros que, amarrados com cordas
e coleiras, e de quatro, tinham que farejar como cães os
fugitivos da sua espécie, até encontrá-los.
No dia seguinte, por volta de 5:30 da manhã, grupos de
veteranos invadiam os quartos dos calouros, convocando-os
para a ginástica matinal: uma enorme sequência de flexões,
polichinelos e abdominais, que só os calouros faziam.
Depois do café, quando todos se dirigiam ao prédio principal
para as aulas, os calouros normalmente acompanhavam seus
padrinhos, como escravos, abanando-os com as mãos, ou
impedindo, com um pedaço de papelão ou de madeira, que
o sol queimasse seus rostos. Às vezes um veterano se munia
de dois calouros, que o carregavam e o depositavam, como
um rei, na sua carteira. Era muito comum ouvirmos os
veteranos negociarem uns com os outros: “Me empresta
esse calouro aí”; “Vamos trocar de calouro hoje? Tô
precisando de um mais forte, para limpar o meu quarto e
carregar os armários”. Era como voltar ao período da
escravidão, o calouro convertido em objeto, bem móvel do
senhor, podendo ser vendido, alugado, emprestado.
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Em dezembro de 92, em clima de muita festa, recebemos
das mãos de Patrus Ananias, nosso paraninfo, o diploma de
Técnicos em Agropecuária – com muito orgulho e satisfação,
pois o curso não era nada fácil: tínhamos aulas de manhã e à
tarde, e provas teóricas e práticas de arrancar os cabelos.
Foram anos incríveis que, mesmo com todas as humilhações
sofridas na semana de trotes, ajudaram a fortalecer em mim
valores que, hoje, eu quero transmitir aos meus filhos:
humildade, generosidade, amizade e solidariedade.
Dedico este texto aos meus amigos e companheiros de
quarto na CEDAF-UFV, entre 1990 e 1992, Júlio César Vieira
Leitão Gomes, Bráulio Abreu Campos e Ricardo Resende
Barbosa.
Eu poderia ficar aqui horas e horas escrevendo sobre as
experiências que eu vivi na CEDAF em fevereiro de 1990, e
acredito que um livro poderia ser escrito sobre o que
aconteceu nos anos seguintes. Ali, eu e mais três
companheiros de Pará de Minas moramos por quase três
anos, nos quartos 21 e 14 do alojamento (de fevereiro de
1990 a dezembro de 1992).
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De marré deci
Em seu extraordinário romance “Lições de abismo” (1950),
Gustavo Corção leva seu personagem principal a um café,
onde, atrás do balcão, “um rapaz e três moças multiplicavam
os mesmos gestos rápidos, distribuindo louça, servindo café,
recolhendo as fichas, e retirando para um enorme caldeirão
de água fervendo as xícaras usadas”. Uma das moças atrai a
atenção do personagem, um professor de meia idade que
acaba de descobrir que tem um câncer incurável, e mostralhe, com seu corpo franzino (“o peito vazio, a cinturinha
quebrada, e os braços chupados”), que ela não viverá muito
tempo. “Não posso dizer se sua doença é tuberculose ou
câncer. Faltam-me as estatísticas, as observações repetidas.
Mas sei que é de morte. Vejo-a murchar”, conta-nos o
angustiado professor em sua narrativa.
Observando a jovem, sua reflexão logo se volta para o
“humilhante ofício” daquela flor desenganada. “Ofício de
quê? Que nome terá esse ofício de ficar oito horas em pé a
distribuir xícaras com gestos de autômato? Creio que não
tem nome”.
Recorda-se da época em que todos os ofícios tinham nome,
e as meninas cantadeiras cantavam nas noites de verão:
Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré, marré, marré,
Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré, deci...
Quero uma de vossas filhas,
De marré, marré, marré,
Quero uma de vossas filhas,
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De marré, deci...
Que ofício darás a ela?
De marré, marré, marré
Dou ofício de costureira,
De marré, deci...
“Como poderíamos pôr em canto de roda a longa
especificação deste ofício sem nome: moça que distribui as
xícaras no café em pé, de marré, marré, marré? Mas se não
tem nome a profissão, tem nome, nítido e rígido, a
classificação. Seu instituto tem nome, se seu ofício não tem.
Ela é comerciária, de marré, deci”.
Quantas xícaras ela serve por dia? “Calculemos: três ou
quatro por minuto, vezes sessenta, vezes sete ou oito;
digamos sete. Dá mil cento e oitenta; digamos mil. Ela serve
mil fregueses por dia!”.
Abuso aqui do fascinante texto de Gustavo Corção para
expressar a minha angústia diante do destino de uma grande
parcela da população mundial: daqueles homens e mulheres
que passam a maior parte do seu tempo de vida trabalhando
em algo de que não gostam, esperando, ansiosos, a
passagem das horas, até o final do expediente, dando graças
a Deus pela chegada da sexta-feira (e amaldiçoando a
segunda-feira tenebrosa), contando os dias para a chegada
do feriado prolongado, do Carnaval, da Semana Santa, das
férias, trabalhando sem motivação, por necessidade, porque
não há outra saída, não pode ser de outro jeito, a vida é
assim... Pessoas anestesiadas, submissas a uma realidade
que domina, com seu tédio mortal, suas almas indefesas,
que não sabem o que fazer a não ser se resignarem,
esperando, talvez, uma recompensa futura: uma boa
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...................................
aposentadoria aos 65 anos de idade, com um pouco de
saúde para curtir os últimos anos de existência, a vida eterna
no Céu... Quem sabe?
Quantos no mundo não se sentem como a moça das xícaras
do romance de Corção, quando um freguês lhe grita: “Esta
xícara está suja! Veja!”. Ela não olha para a xícara. Não olha
para o freguês. “Porque se olhar, enlouquece. É a sua defesa.
A sua única defesa. Ela não pode prestar atenção ao que faz.
Se prestar, enlouquece. Não é possível ter solicitude igual mil
vezes por dia; não é possível ter interesse nesse jogo. Por
isso ela faz como se atendesse fantasmas. Sombras. Ela olha
através; põe os olhos no infinito, deixando às mãos
sonâmbulas o cuidado de distribuir louça, colher fichas e
retirar as xícaras usadas”.
Mas há também executivos, empresários, professores
universitários, engenheiros, advogados, médicos e muitos
outros profissionais de marré deci. Não é preciso ser pobre
para viver uma existência de marré, marré, marré. Inúmeras
pessoas consideradas bem sucedidas vivem suas vidas
afastadas daquilo que realmente querem, porque precisam
ser “realistas”, “seguras”, “prudentes”, “responsáveis”,
“honradas”, “respeitadas”. Fazem “o que deve ser feito”, “o
que é preciso”, sacrificando um tempo que não volta nunca
mais em projetos de vida vazios daquilo que, para elas,
representaria o verdadeiro prazer de viver. Muitos
profissionais acumulam fortunas, passando pela vida como
meros espectadores. Velhos e ricos, depois de anos de
trabalho, muitos tentam resgatar suas verdadeiras paixões,
seus sonhos de juventude não concretizados, mas já é tarde,
pois o tempo perdido não volta mais.
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Carlos Drummond de Andrade já dizia, em seu poema “A
casa do tempo perdido”:
“Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve minha
ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.”
A moça das xícaras não terá tempo de viver, conta-nos o
narrador do romance de Corção: “Não viveu, e já morre. Não
sabe, como eu, que vai morrer. Não poderá arrumar a sua
morte. Morrerá uma morte qualquer, de comerciária, de
marré deci. Vejo um hospital. Um leito qualquer, número
tanto. Uma vaga arranjada por favor. Ela agoniza – e as
xícaras, os cafés, as fichas, os clientes iracundos, os clientes
joviais, os clientes em geral de que se defendeu pondo os
olhos vagos no infinito, voltarão todos, virão, de dentro dela,
em ondas, acumulados, milhares, milhões, virão encher de
alarido vulgar, de vozes e de louças, seus últimos instantes
de menina que não teve licença de viver. Ela morrerá vendo
xícaras, xícaras, xícaras. Os aventais passarão. Toucas.
Clientes esquisitos debruçam-se sobre o seu corpo, como se
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...................................
ela tivesse virado xícara, e viessem beber nela mesma, nas
suas entranhas, o último café”.
...................................
Um dia em Amsterdam
Do aeroporto mesmo ela postou:
“Já estou em Amsterdam”.
Só isso.
Não mencionou o detalhe:
“sem minha bagagem, que pegou o avião errado e está agora
em Luanda, na África”.
Depois de enfrentar uma fila enorme
no guichê da companhia aérea
e fazer tudo que era preciso
(e mais alguma coisa)
para reaver suas malas,
pegou um táxi
até o hotel,
onde o gerente,
depois de muito procurar,
não encontrou sua reserva.
Com seu inglês medíocre,
demorou mais de uma hora para
descobrir
que seu hotel não era aquele,
mas um outro,
com nome quase igual,
que ficava
do outro lado
da cidade.
Entrou em outro táxi
(calculando a fortuna que pagaria pela corrida),
morta de fome
e com os nervos à flor da pele
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...................................
– nem viu direito a beleza dos
canais e pontes,
a maravilha das construções antigas –,
mas tirou uma foto e postou:
“Amsterdam é linda!”,
e clicou no mapa:
“em Amsterdam”.
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Pediu uma porção de arenque com limão
e uma fatia de torta de maçã,
que comeu chorando de ódio,
sem nem sentir o gosto direito;
mas antes tirou uma foto dos pratos e postou:
“Lanchezinho básico em Amsterdam, antes de alugar uma
bicicleta e passear pela cidade. Privilégio para poucos”.
Meia hora depois
(e com 100 euros a menos na carteira),
atravessou a porta do hotel,
que ficava ao lado
do famoso Museu Van Gogh,
que ela pretendia visitar.
Tomou um banho fervendo,
pois não sabia regular a temperatura,
vestiu a mesma roupa suada da viagem (porque não tinha
outra)
e ligou para a companhia aérea,
que lhe informou:
“Sua bagagem não está em Luanda, mas a caminho de Dubai,
em um voo da KLM. Quando ela voltar para Amsterdam,
entraremos em contato”.
Angustiada, desligou e postou:
“Hotel maravilhoso! De banho tomado, indo ao Museu Van
Gogh”.
Ao atravessar a rua, porém,
foi atropelada por uma bicicleta,
conduzida por uma alemã obesa,
que se esparramou toda no chão
gritando palavrões em pelo menos três línguas diferentes.
“Museu fechado para reformas”, dizia o aviso em holandês,
inglês e alemão.
Mesmo assim, pediu a um turista espanhol que tirasse uma
foto dela e postou:
“Na porta do Museu Van Gogh, em Amsterdam. Fantástico!”.
Faminta, foi procurar algo para comer.
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Na hora não sentiu nada,
mas depois de 15 minutos,
seu joelho esquerdo virou
uma enorme batata quente,
inchado, vermelho,
uma coisa horrorosa.
Desabou num banco,
ao lado de uma bicicleta para alugar,
e pediu a um turista francês que tirasse uma foto dela
com a mão pousada na bicicleta.
Firmou a mão, que tremia, fingiu um sorriso e depois postou:
“Passeando feliz pelas ruas de Amsterdam”.
Mal acabou de postar, sentiu uma fisgada no ventre,
e depois algo líquido borbulhando dentro dela,
descendo,
e a fisgada de novo...
“Não pode ser”, pensou.
Mas era.
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Não deu nem para trancar a saída e procurar um banheiro.
A diarréia escorreu pelas suas pernas em abundância (uma
verdadeira cachoeira),
exalando ao redor, intensamente
(como uma dama da noite toda florida),
um cheiro azedo
e insuportável
de arenque, maçã e canela.
...................................
Na cama do hospital,
com um tubo de soro ligado na veia,
focalizou seu rosto na tela do iPad
(de forma que não aparecesse nada ao redor),
fingiu um sorriso e postou:
“Depois de um dia maravilhoso em Amsterdam, estou agora
indo dormir, no Best Western Apollo Museumhotel. Boa
noite!”
Era aí que entrava a Paz Eterna, com seus planos
assistenciais feitos sob medida para vários tipos de bolsos.
Só de caixões a empresa tinha mais de duzentos modelos,
dos mais simples (feitos com chapas de madeirite, sem
acabamento interno) aos mais sofisticados (verdadeiros
sarcófagos faraônicos). Era um entra e sai o dia inteiro na
empresa. Pelo menos trinta defuntos eram empacotados
todos os dias por Petúnia, que também investia em outros
ramos de negócio, para aumentar o número de clientes da
funerária – tinha inaugurado recentemente uma
concessionária de motos e uma distribuidora de bebidas e
cigarros, e pensava também na possibilidade de um
investimento pesado no ramo de lanches rápidos, onde
produziria, a preços populares, verdadeiras bombas de
açúcar e gordura saturada.
Petúnia Negra
Petúnia herdara de seu pai a Paz Eterna, a única funerária da
cidade. Negócio milionário, já que, infelizmente, morrer não
é daquelas coisas que a gente pode decidir não fazer para
economizar dinheiro, como ir a restaurantes, viajar para o
estrangeiro ou comprar um carro. Morre-se e pronto. Dona
Morte não quer nem saber. Faz o serviço e vai embora.
Balanço do dia:
Bagagem extraviada,
assalto no táxi,
diarréia,
joelho bichado
e 389 curtidas no Facebook.
Além disso, para fortalecer ainda mais as finanças da Paz
Eterna, Petúnia trabalhava em conluio com alguns médicos
inescrupulosos (que controlavam o hospital local) visando
aumentar o número de defuntos na cidade. Com a sua
grande influência política e as amizades que mantinha com
pessoas poderosas na região, Petúnia acobertava a máfia dos
médicos, que desviava recursos da Saúde e transformava o
hospital num verdadeiro playground para os seus
divertimentos sádicos. E sempre que um pobre coitado se
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...................................
encontrava prestes a dar o último suspiro num dos vários
corredores da Santa Casa, um dos mafiosos ligava para a
equipe de Petúnia, que imediatamente enviava um
representante da Paz Eterna para o local.
Petúnia acompanhava com muito entusiasmo as estatísticas
de acidentes de motos com vítimas fatais, de mortes
relacionadas ao uso de álcool e cigarro (infartos fulminantes,
câncer de pulmão, garganta e laringe), etc. Cada aumento
significativo nos números locais era comemorado com uma
festa de arromba para os funcionários de todas as suas
empresas, que se reuniam no enorme salão de recepções da
Paz Eterna.
Uma noite, porém, Petúnia teve um sonho que mudou
completamente a sua vida. Nele ela vagava nua por um
lamaçal fedorento, com fortes dores em todo o corpo. O céu
era cinza escuro. O vento de um frio cortante. O ar fedia a
carne podre e fezes.
Logo à sua frente ela viu um grupo de seres monstruosos,
avançando lentamente pela lama, aos gritos, alguns
chorando desesperados, com as mãos erguidas, em súplica.
Ao se aproximar mais, Petúnia notou que eram seres
humanos, e levou um susto ao ver que um deles era seu
falecido pai. Ela gritou “pai”, mas ele não respondeu. Parecia
um animal. Tinha perdido todos os dentes e seus olhos eram
como os de um cão raivoso, vermelhos e cheios de ódio.
De repente, do
caminhando como
bambu pendurada
monstruosos que
nada, apareceu um porco gigante,
um homem, com uma enorme cesta de
numa de suas patas dianteiras. Os seres
avançavam pelo lamaçal pararam e
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...................................
começaram a urrar como animais desesperados, apontando
para a cesta. O porco então foi tirando de dentro dela
pedaços de carne humana (mãos, pés, pernas, cabeças,
vísceras), que jogava para os animais, alimentando-os.
Petúnia quase desmaiou ao ver seu pai abocanhar um pé
apodrecido, arrancando com suas gengivas acinzentadas
pequenas lascas de carne, que se soltavam facilmente dos
ossos, como suã cozida além do ponto (o barulho que ele
fazia com a boca era repugnante).
De repente, o porco grunhiu para Petúnia. Ela o olhou
diretamente nos olhos e percebeu que ele sorria – um
sorriso irônico e zombeteiro. O bicho grunhiu de novo,
chamando-a, e com a rapidez de um raio jogou-lhe um
pedaço de carne estragada: uma massa compacta, redonda e
escura. Era uma cabeça de homem, com os cabelos pretos
cortados bem curtos, sujos de lama, que caiu aos pés de
Petúnia com a face virada para cima, os olhos esbugalhados,
a boca de dentes encardidos rindo para ela. Era um rapaz
que ela conhecia, filho de uma de suas faxineiras, que tinha
morrido como um animal no corredor do hospital havia
alguns meses, sem atendimento, sem remédio, sem nada.
Petúnia acordou suando frio e, desesperada, saiu correndo
em direção a uma igreja. Atravessou cambaleante toda a
extensão do templo e ajoelhou-se em frente ao altar para
pedir perdão a Deus, coisa que ela nunca tinha feito na vida.
Saiu aliviada, aproximando-se de um banco na praça, onde
uma garotinha (que devia ter no máximo cinco ou seis anos)
brincava com uma boneca, sozinha. Petúnia sentou-se ao seu
lado. Era uma menina linda, de olhos azuis, pele clara e
cabelo preto brilhante.
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Sentindo-se perdoada por Deus e disposta a mudar o rumo
de sua vida, Petúnia chegou até a pensar na possibilidade de
ter um filho... Carinhosamente passou a mão na cabeça da
menina e perguntou: “Como é seu nome, querida?”. Como
resposta, a menina olhou firme nos olhos de Petúnia e
grunhiu: “oinc, oinc”. Era Dona Morte disfarçada.
Na mesma hora Petúnia teve um infarto, e, no dia seguinte,
como qualquer um, entrou para a estatística de mortes por
problemas cardiovasculares.
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Trem noturno para Lisboa
Em uma matéria muito interessante, publicada na revista
“Vida Simples” em junho de 2009, a escritora Liane Alves
afirmava que uma forma muito comum de auto-sabotagem é
quando “aceitamos fazer um trabalho por dinheiro sem
questionarmos se é exatamente isso que queremos fazer na
vida”. Segundo ela, o conflito que pode surgir a partir dessa
opção “é particularmente agudo no campo da criatividade”.
Ela dá o exemplo de uma redatora de publicidade que,
embora ganhasse uma fortuna numa agência de São Paulo,
estava infeliz: “Sofria a cada manhã que tinha de trabalhar, a
cada texto que tinha de escrever”, e com o tempo a sua
produtividade caiu, seu cérebro travou, e ela acabou sendo
demitida. “Hoje, feliz e solta na vida”, continuava a autora da
matéria, “ela ensaia os rumos de seu primeiro livro” – e o
cérebro dela, refeito da crise, “colabora intensamente para
isso”.
Não é linda essa história? Resumindo: Você ganha uma
fortuna fazendo o que não gosta e, de repente, por falta de
criatividade e produtividade, é demitido. Problema? Não!
Você vai escrever um livro e ser feliz.
Mas e o resto? Como era a vida dessa redatora? Ela era
casada? Tinha filhos? A família dependia dela para viver? A
casa onde ela morava era própria? Ela tinha algum
financiamento para pagar? Se ela tinha filhos, onde eles
estudavam? Ela tinha uma ajudante do lar, uma babá, uma
faxineira, uma lavadeira? Tinha TV a cabo e internet banda
larga?... – e assim poderíamos multiplicar os
questionamentos até conseguirmos (talvez) produzir uma
imagem minimamente satisfatória da realidade vivida por
essa mulher.
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Só que a revista “Vida Simples” não dá nenhuma resposta a
essas perguntas. Por quê?
E tem mais: Será que o leitor da revista “Vida Simples” está
interessado em saber o que os pobres realmente gostariam
de fazer na vida? Será que ele se perguntou alguma vez se
aquele homem de trinta e poucos anos, que trabalha na
coleta do lixo, realmente gosta do que faz? Será que ele não
tem curiosidade em saber se esse homem, que dedica a
maior parte do seu tempo a deixar a cidade mais limpa,
gostaria de fazer outra coisa na vida? E aquela mulher de
quarenta anos que passa o dia inteiro retirando vísceras de
milhares de frangos, que correm a uma velocidade constante
na esteira de um abatedouro industrial? Será que ela não
gostaria de estar em casa cuidando dos filhos ou trabalhando
em outra coisa? Será que ela não sente falta de poder dançar
mais, divertir-se mais ou estudar mais? Talvez sim, talvez
não. Mas quem se importa?
Eu tenho uma teoria, que começou a se esboçar quando me
dei conta do preço da revista: R$12,00. Pode parecer pouco
para você, mas não é para a maioria dos brasileiros. Isso
porque a revista “Vida Simples” foi feita para pessoas que
podem se dar ao luxo de uma vida mais simples sem perder
o conforto e a segurança que o sistema lhes proporciona (ou,
pelo menos, sem comprometer muito o seu padrão de vida
anterior). Ela não foi feita para pobres, que já têm uma vida
simples (por necessidade, muitas vezes sem terem acesso ao
básico, ao mínimo conforto). Eu, por exemplo, que não me
considero pobre, se eu “chutasse o pau da barraca” e fosse
fazer o que eu realmente quero (que é ler e escrever), minha
família passaria necessidades. É claro que eu e minha esposa
poderíamos nos adaptar: tiraríamos nossos filhos da escola
particular, controlaríamos nossos gastos com comida e
roupas, reduziríamos o nosso lazer capitalista (restaurantes,
viagens, etc.) ao mínimo (ou a zero) e viveríamos uma vida
simples... bem simples. Mas para a sociedade eu seria um
monstro: “Olha só aquele vagabundo... A família passa por
necessidades e ele dentro de casa, de bermuda e chinelos,
escrevendo um livro que ninguém vai ler! Que absurdo!”.
E o pobre, então? Como faria? Como viveria a família de um
operário que ganha um salário mínimo por mês (que
corresponde a 60% da renda familiar) se ele resolvesse largar
o emprego e se dedicar a escrever poemas de amor? E a
família de um professor de escola pública, que sustenta a
esposa e os filhos com o seu novo piso salarial de mil e
poucos reais, se ele resolvesse abandonar a sala de aula para
pintar quadros surrealistas?
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O fato é que a maioria dessas pessoas está tão absorvida
pelo furacão capitalista que poucas realmente questionam
se o trabalho que realizam é o melhor para as suas vidas.
Elas estão anestesiadas por uma lógica que parece
inquestionável: Para o mundo se desenvolver e prosperar,
alguns poucos têm que pensar e refletir, organizar, decidir e
gerenciar tudo, enquanto a maioria tem que “colocar a mão
na massa”, “dar duro”, cumprindo sua jornada
rigorosamente, ganhando pouco, para dar de comida aos
filhos e, quem sabe, melhorar de vida no futuro. Essa é a
lógica. E hoje ela se reproduz quase naturalmente, como se
tudo isso fosse natural e sempre tivesse existido, sem a
mínima chance de ser diferente.
No início do mês eu comprei um livro em Belo Horizonte
que, de cara, me chamou a atenção pelo título: “Trem
noturno para Lisboa”, de um escritor suíço chamado Pascal
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Mercier. Ao folhear o livro, fui transportado novamente para
Lisboa, cidade onde pude morar por um tempo, enquanto
fazia meu doutorado em História.
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E você, leitor? Você pode se dar ao luxo de “tomar o trem
noturno para Lisboa”?
Eu não. Pelo menos por enquanto...
Hoje, enquanto devoro (com um prazer indescritível) esse
romance maravilhoso e inspirador, tenho a sensação de
estar de novo naquela cidade, junto com o personagem
principal, flanando pelas ruas da Baixa, do Chiado ou do
Bairro Alto, ou visitando as inúmeras livrarias e sebos da
parte velha da cidade.
Mas o que isso tem a ver com a nossa história? Eu explico: O
personagem principal do livro é um professor de línguas
clássicas de um colégio de Berna (Suíça), que um dia se
levanta durante uma aula, abandona a sala e toma um trem
para Lisboa. Ele queria, aos 57 anos, mudar de vida, fazer
outras coisas, conhecer outras pessoas, sobretudo um
escritor português chamado Amadeu de Prado, que tinha
uma visão peculiar e fascinante sobre a vida e a morte, a
solidão e o amor.
Mas esse professor, que deixou para trás sua rotina bem
organizada, seu mundo fechado em Berna, não era casado,
não tinha filhos, e possuía muito dinheiro guardado, fruto de
trinta anos de austera poupança.
A história desse professor (e do misterioso Amadeu de
Prado) é tão interessante – e o livro fez tanto sucesso na
Europa e no resto do mundo –, que “Tomar o trem noturno
para Lisboa” virou uma expressão idiomática, usada para se
referir a alguém que pretende mudar de vida, seguindo a voz
do seu coração.
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Um sopro da natureza
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com que me preocupar – doença, trabalho, sucesso,
fracasso, nada.
Depois de cinco tenebrosos anos escondido no mato,
sozinho, vendo noites e dias se arrastarem iguais na mesma
insipidez branca do que era então minha existência, uma
serpente venenosa entrou à noite em minha barraca e me
picou. Enroscada atrás do colchão, devia estar tocaiando um
rato que andava por ali em meio ao lixo acumulado de meses
– uma tralha de latas, panos e papéis emporcalhados de
comida estragada e fezes. Cravou suas finas presas em
minha mão quando me estiquei para pegar uma cueca suja
largada num canto havia dois ou três anos. Alguma coisa
dentro de mim dizia: “pegue essa cueca borrada e queime-a
lá fora de uma vez”; só que nem cheguei a pegá-la, senti a
fisgada, e a dor subindo pelo braço, queimando, latejando.
Arrastei-me até a saída, bufando como um touro que luta
pela vida sem saber que se vive ou que se morre. Mas eu
sabia... sobretudo que se morre.
A mão picada já estava preta quando me aproximei do
córrego gelado que passa por ali, a lanterna tremendo na
outra mão, iluminando o chão, a água, a mão inchada
pulsando, ardendo. “Estou morrendo”, pensei; e não
adiantava fazer nada: sem carro ou moto, estava a mais de
cem quilômetros do arraial, que ficava no meio do nada,
longe de qualquer socorro. Era o fim.
Desde que eu me internara na floresta, havia cinco anos,
nada me inquietava. Viver, para mim, era só existir,
mergulhado na natureza selvagem que me abrigava. Mas
saber-me morrendo, ali, no meio do mato, sozinho, sem a
menor esperança de socorro, levou-me de volta àquele
apartamento, àquela vida e aos sentimentos que me
torturavam naquela época – a ansiedade, a angústia, o
desespero, a vontade de riqueza e poder... Foi como assistir
a um filme em alta velocidade, que durou pouco, pois logo
veio a paz...
A morte estava lá, e vê-la de perto foi como me libertar de
novo das dores do mundo, mas sem a sensação de vazio,
sem o tédio das noites e dias brancos que eu tinha vivido
sozinho naquela floresta.
Hoje, com meu corpo enterrado e quase completamente
devorado pelos vermes, posso dizer que sei o que é uma vida
na matéria: nada mais que um sopro da natureza, uma bolha
de sabão que estoura no ar de repente, uma gotícula de
água que se evapora... Um sopro... Nada mais que um sopro.
A morte então veio sorrateira, rastejando lentamente pela
margem do córrego: tinha olhos de fogo, era mole e viscosa,
parecia uma criança recém-nascida nadando em placenta e
sangue, brilhando na escuridão, a boca se abrindo cheia de
dentes. Eu sabia o que estava por vir, e sabê-lo me fez forte,
corajoso, alegre, como se eu tivesse acabado de tomar a
terceira taça de um vinho português encorpado, sem nada
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Viver é morrer
Quem costuma ler meus contos e crônicas certamente já se
deu conta de que muitos deles abordam a morte. Não se
trata de uma obsessão mórbida ou de um prazer doentio em
perturbar a alma dos leitores, mas, pelo contrário: meu
interesse pela morte é fruto de uma necessidade que eu
tenho de refletir sobre a vida, visando tornar menos
dolorosas as angústias do existir. Escrever sobre a morte faz
com que eu me aproxime dela, numa busca que acontece
dentro de mim mesmo. Pois a morte está em mim, em cada
dor e alegria que eu sinto, embora muitas vezes eu tente
negá-la como algo exterior, contrário à vida.
Não. A morte não contraria a vida. Ela própria é vida. Viver é
morrer...
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Acredito que, se a maioria das pessoas prefere não pensar na
morte, é porque elas ainda não entenderam que pensar na
morte é também se preparar para ela.
Em seus “Ensaios”, Michel de Montaigne diz sobre a morte:
“Se fosse um inimigo que pudéssemos evitar, eu
aconselharia a adotar as armas da covardia. Mas, como isso
não é possível, como ele vos alcança fugitivo e poltrão
quanto corajoso, inútil esconder-se prudentemente sob o
ferro e o bronze”. Montaigne nos aconselha a eliminar a
estranheza deste inimigo, a nos acostumarmos com ele, para
que possamos ser livres: “A premeditação da morte é
premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer
desaprendeu de servir. Saber morrer liberta-nos de toda a
sujeição e imposição. Na vida não existe mal para aquele que
compreendeu que a privação da vida não é um mal”.
E se a morte é algo tão natural, por que não falar dela? Por
que o silêncio sobre a única certeza que temos na vida? Por
que o preconceito contra aqueles que encararam esse
mistério de frente e tiveram a ousadia de transformá-lo em
arte, como Baudelaire, Poe, Clarice e muitos outros? Não,
não estou me comparando aos grandes mestres (que
justamente por serem grandes, atravessam ilesos a
ignorância e o desprezo do leitor médio, interessado apenas
na felicidade e no sucesso vendidos a preços módicos nos
livros de auto-ajuda). Perto dos grandes, quem sou eu? Mas
mesmo na minha insignificância, não me julgo merecedor do
escárnio dos leitores só por desrespeitar a lógica estúpida do
mercado e me embrenhar de corpo e alma nesse território
de sombras, que é o de todos nós.
Mas será que essa lição de Montaigne, se levada ao extremo,
não pode nos conduzir ao crime, às drogas e ao suicídio?
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“Na vida não existe mal para aquele que compreendeu que a
privação da vida não é um mal”. Essa frase é libertadora
porque, se passamos a compreender que aquilo que
acreditávamos ser uma terrível ameaça à vida é a própria
vida, que viver é morrer e que através da morte renovamos
nossos laços com a Natureza e com Deus, por que nos
subjugarmos às imposições da sociedade, que nos obriga
muitas vezes a ser o que não somos, a fazer o que não
queremos, simplesmente para nos adequarmos a padrões de
conduta previamente (e artificialmente) estabelecidos?
Quem aprende a morrer se liberta de toda a sujeição e
imposição porque o medo maior não existe mais. Ao se ver
livre dos grilhões da morte, que escravizam a sua alma, o
homem que sabe morrer se liberta também dos medos
...................................
menores, criados, em sua maioria, pelo próprio homem. Sem
medo, o homem pode se encontrar, libertar-se das máscaras
do não-eu e viver intensamente as dores e alegrias do ser do
mundo.
Mas até que ponto isso não é uma ameaça à nossa própria
integridade e à do próximo? O que significa viver
intensamente as dores e alegrias do ser do mundo?
O meu aniversário de 27 anos eu passei em Paris, sozinho,
descansando do meu trabalho de pesquisa para o
doutorado, que eu realizava em Portugal. Foi ali, junto ao
túmulo de Jim Morrison, no Cemitério do Père Lachaise, que
eu me fiz novamente uma pergunta que há muito tempo me
inquietava: O que teria levado aquele jovem de 27 anos,
ícone de uma geração, a abraçar a morte daquela maneira?
Num dia frio de maio de 2002, caminhando por entre os
túmulos daquela bela necrópole, uma frase me
acompanhava: “Jim Morrison tinha a minha idade quando
morreu, aqui, nesta cidade, em 1971”. A causa da sua morte
ainda é um mistério, embora muitos a associem
naturalmente às drogas. Mas o que eu queria mesmo
naquele momento era entender a relação de Jim Morrison
com a morte, sobretudo nos seus últimos anos de vida, nas
suas últimas horas. Eu tinha assistido ao filme “The Doors”,
de Oliver Stone, e lembrando-me das cenas finais, supus que
a morte, para Morrison, era mais ou menos aquilo que
Montaigne descreveu em seu texto: um inimigo com quem
ele se relacionava bem, tendo já superado todos os
estranhamentos, todo o medo. Ele tinha aprendido a morrer.
Viveu a vida intensamente, queimando-a com avidez. Viveu
pouco... Mas viveu.
...................................
Foi o próprio Montaigne que uma vez escreveu: “Ninguém
morre antes da hora. O que deixais de tempo não era mais
vosso do que o tempo que se passou antes do vosso
nascimento; e tampouco vos importa. Termine a vossa vida
quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não
está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu
longo tempo e, no entanto, pouco viveu; atentai para isso
enquanto estais aqui. Terdes vivido o bastante depende da
vossa vontade, não do número de anos”.
E com isso eu volto à pergunta: O que significa viver
intensamente as dores e alegrias do ser do mundo? Para
mim, não significa viver como Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi
Hendrix, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Mas se, para eles,
viver a vida intensamente significava queimá-la com
sofreguidão e loucura, dançando com a morte todos os dias
a sua dança mortal, e entregando-se finalmente a ela – ao
seu abraço frio de dançarina que conhece bem o seu ofício –,
sem resistência, sem medo, aos 27 anos – se viver
intensamente para eles foi isso, não me importa. Quem
aprende a morrer não precisa viver como eles. Pode-se viver
intensamente de outras maneiras e por muitos anos. Mas se
forem poucos, também não importa. Como disse o sábio
Montaigne, a vida aí está inteira. O que faz a vida ser intensa
é a busca pelo prazer de viver, em harmonia com o nosso eu
verdadeiro, com a Natureza, com o próximo e com Deus,
sem medo da morte, mas respeitando-a, com humildade.
Para mim, viver intensamente é isso.
E não é fácil...
Termino esta crônica citando Padre António Vieira:
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“Esta nossa chamada vida, não é mais do que um círculo que
fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de
ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais
pequeno, outros mínimo: De utero translatus ad tumulum:
Mas ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo; como
é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida
somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o
mesmo ponto, quanto mais se aparta dele, tanto mais se
chega para ele: e quem, quanto mais se aparta, mais se
chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse
mesmo e não outro é o nosso fim, e porque caminhamos
circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece
que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele:
o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz
a vida, esse mesmo a desfaz; e como esta roda que anda e
desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos
pó”.
...................................
As férias de Ramon
As férias aliviam pouco o espírito atormentado de Ramon.
Sua mente obsessiva, preocupada demais com coisas por
fazer (que, mesmo sem a obrigação cotidiana do trabalho,
enchem sua agenda de domingo a domingo), não lhe dá
trégua. É nas férias, por exemplo, que ele vai ao dentista,
submetendo-se por livre e espontânea vontade ao que há de
mais refinado em tortura física disponível no mercado:
“Carla, pega para mim a lixa profilática”, diz o dentista,
dirigindo-se à sua assistente, e Ramon antecipa em seu
corpo a horrível sensação de ter uma lixa de pedreiro entre
os dentes, arranhando, raspando, indo e voltando cem,
duzentas vezes, até extrair o último vestígio de tártaro. “Se
doer você me avisa”, diz o dentista, iniciando um outro
procedimento; mas o pior não é a dor, é a espera da dor, a
expectativa, que é terrível. “Acho que vou ter que te
anestesiar”, e Ramon não sabe o que é pior: as agulhadas da
anestesia, que parecem perfurar o núcleo do nervo – o
centro mesmo da dor –, ou a dor normal que decorre de um
procedimento realizado sem anestesia. E ainda tem o alto
valor do investimento, que normalmente Ramon paga feliz,
não só por ter consciência da importância de uma boa saúde
bucal, mas também porque só paga no final, minutos antes
de ir embora, para só voltar no ano seguinte.
Ele sai satisfeito do dentista, pronto para sua visita anual ao
médico e, como consequência, sua bateria anual de exames.
Urina e sangue, tudo bem. Mas fezes...
O homem ocidental normalmente não gosta de manusear
fezes (nisso Ramon se iguala à maioria), e manusear suas
próprias fezes, mesmo com palitinho e plástico, é, para
Ramon, não só nojento, mas aviltante: é a confirmação
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palpável, com cheiro, temperatura e consistência, de que ele
e toda a humanidade não valem realmente nada: “do pó ao
pó”, como dizia o Padre Vieira. Mas ele faz o que precisa ser
feito, como qualquer um; depois enfrenta a fila para
entregar os potinhos devidamente lacrados e embrulhados
no laboratório, onde seus conteúdos serão analisados por
profissionais que Ramon respeita ainda mais que dentistas e
médicos: aqueles que manuseiam dezenas, centenas de
amostras de fezes, todos os dias, remexendo resíduos de
vários formatos, consistências, cores e cheiros, procurando
ovos de lombriga (ou a própria lombriga), sangue oculto e
não sei mais o quê.
Depois é aguardar, sofrendo, o resultado dos exames. O
sofrimento é em decorrência da preocupação obsessiva que
Ramon tem com a sua saúde (ou a falta dela), o que
chamamos de hipocondria. Ramon bate o olho no resultado
de um exame e acha que sabe tudo: dá o diagnóstico e o
prognóstico, às vezes imagina até os detalhes do tratamento.
Mesmo sem o resultado oficial ele já tem um resultado
pronto na cabeça. E sofre. Como sofre! Em 99% das vezes
não é nada, e quando é alguma coisa, é bobagem. Mas
Ramon continua sofrendo mesmo assim. Ele não aprende.
As férias de Ramon coincidem sempre com as férias dos
filhos, o que por um lado é bom, pois ele pode ficar mais
tempo com as crianças, brincar, ler e passear com elas. Mas
por outro lado, chega uma hora que cansa, e Ramon precisa
de um tempo só para ele, em silêncio, mergulhado numa paz
de Buda, para poder lidar melhor com seus demônios
internos, que são muitos e terríveis.
...................................
atormentá-lo, sobretudo nas férias. Ela sabe quando ele
entra de férias, ela pressente a alegria que a perspectiva de
um tempo livre lhe dá, e ataca, sem dó nem piedade. Ano
passado, foi uma infiltração na porcaria de um telhado de
policarbonato, que custou a Ramon vários telefonemas à
empresa enrolada que colocou o telhado (e que detesta
pegar pequenos serviços). Esse ano, três novas infiltrações,
dessa vez na sala: três goteiras insistentes, que continuavam
pingando mesmo quando não estava chovendo.
Ramon tentou primeiro conversar com a casa, pedir a ela
misericórdia, propor um acordo de cavalheiros, mas foi em
vão. O problema era na laje, não no telhado de
policarbonato, por isso não havia empresa para chamar.
Chamar quem, então? Um pedreiro? Um bombeiro? Ramon
resolveu primeiro subir no telhado para ver o que era.
Descobriu uma telha solta e, sorrindo, disse para a casa: “Te
peguei”. Ele mesmo colocou a telha no lugar e voltou feliz e
vitorioso para o seio de sua família. Mas não era a telha, pois
as goteiras continuaram. Ele então subiu na laje, por uma
portinha na área de serviço, e descobriu uma enorme poça
de água bem em cima do local das goteiras, só que, por mais
que ele investigasse o lugar, não soube como ela tinha se
formado.
E ainda tem a casa monstro. Isso mesmo. A casa de Ramon
tem vida própria e é um monstro programado para
Três dias se passaram, com as goteiras enchendo baldes e
mais baldes de água na sala, e Ramon subindo e descendo
pela portinha do telhado sem solucionar aquele mistério. Foi
só no quarto dia que ele descobriu que o problema era numa
parte de metal do telhado, uma coisa que ele nem sabia que
existia e que, no dia seguinte, conversando com um amigo,
descobriu se chamar “calha”. É que Ramon estava
procurando o problema no meio exato da poça, e a goteira
que vinha da calha danificada estava no canto, e só pingava
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quando chovia. Enfim, Ramon teve que chamar um
especialista em calhas, que lhe cobrou os dois olhos da cara
para resolver o problema.
E, para terminar, não podemos nos esquecer que na casa
monstro tem também a geladeira monstro (sempre em
conluio com a casa, só estragando no dia seguinte à compra
mensal de carne), o portão eletrônico monstro, a televisão
monstro, o alarme monstro, a internet CTBC monstro... Pois
é.
Falta uma semana para terminarem as férias de Ramon. Hoje
eu me encontrei com ele na rua. Está um desastre, coitado.
Os exames deram todos normais, mas ele está preocupado
com a possibilidade de vir a se tornar diabético, pois sua
glicose deu 88, muito próximo de 99, que é o máximo
permitido. Eu disse a ele para ficar calmo e não se preocupar
com isso. “Vai ler um livro, Ramon, ver um filme, tira essa
semana só para você, esquece o mundo”. Eu ia dizer a ele
para aumentar a dose do rivotril, mas não disse. É melhor
não.
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Ramon em choque
Ramon tem o péssimo hábito de só se comparar com
pessoas que ele considera normais, o que o faz se sentir uma
verdadeira aberração da natureza. Às vezes ele me liga no
meio da noite (cochichando ao telefone para não acordar a
mulher e os filhos), desesperado, com a mesma ladainha de
sempre: “Eu sou um desajustado, um descontrolado, um
doido de pedra. Não sirvo para viver em sociedade, não
consigo me enquadrar de jeito nenhum. As pessoas me
odeiam, têm medo de mim... Olha, não dá mais...
Simplesmente não dá mais. Acabou”. E eu respondo:
“Acabou nada, Ramon. A vida é assim mesmo. Não existe
ninguém normal. Você não é louco. Nós gostamos de você
do jeito que você é. Coloca essa sua cabeça no lugar e vai
dormir”. Ele chora, soluça, gagueja, tenta me manter na
linha dizendo que vai se matar com um tiro no céu da boca –
e eu fico ouvindo aquilo, cheio de compaixão, imaginando
ele agachado no canto da sala, tremendo, como se um
assassino sanguinário estivesse vasculhando a casa à sua
procura para torturá-lo e depois matá-lo. (Infelizmente esse
assassino existe. É o próprio Ramon, caçando a si mesmo na
escuridão – uma escuridão que é só sua).
No dia seguinte a uma dessas crises, resolvi gravar um DVD
para ele. Deu muito trabalho, mas em menos de um mês
ficou pronto: uma coletânea dos casos mais bizarros
apresentados em alguns programas que passam na TV por
assinatura, que eu costumava assistir quando perdia o sono,
e que, para mim, ajudariam Ramon a se sentir menos
desajustado: Acumuladores, Desordem mental, Louca
compulsão, Minha estranha obsessão, Enigmas da Medicina,
Troca de esposas, entre outros. Entreguei para ele o DVD e
disse: “Veja isto, Ramon. Aqui você vai encontrar pessoas
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muito mais estranhas e desajustadas do que você” (e dei a
ele alguns exemplos: o do rapaz que se sentia perseguido por
monstros horríveis dia e noite, o da mulher que só conseguia
comer batata frita, o do homem que tinha a casa toda
tomada por objetos inúteis e muita sujeira, o do velho que
tinha um tumor de cinco quilos pendurado no rosto, o da
mulher viciada em comer sabão em pó, e o do garoto que
mais parecia um lobisomem). “Só que, como você vai ver”,
continuei, “essas pessoas seguem vivendo suas vidas,
buscam ajuda, contam com o carinho da família e dos
amigos... Diferente de você, Ramon, que só sabe reclamar e
se punir, tornando a sua vida e a das pessoas que gostam de
você um verdadeiro inferno”. Ele aceitou o presente de
cabeça baixa, meio desconfiado, e foi embora.
...................................
No dia seguinte fui à clínica psiquiátrica. Não pude ver
Ramon, que ainda estava em estado de choque, mas fui
informado pelo seu médico que alguma coisa deve ter
provocado uma reação em cadeia no seu cérebro debilitado,
aumentando em níveis altíssimos seu transtorno obsessivo
compulsivo, sua ansiedade e depressão, tudo ao mesmo
tempo, levando ao choque e à paralisia. “Que coisa...”,
disse eu, tremendo todo por dentro, e pensei: “Conto ou não
conto?”.
Viajei a serviço da empresa e, quando voltei, duas semanas
depois, fiquei sabendo que Ramon se encontrava internado
numa clínica psiquiátrica. Liguei para a sua esposa e ela me
contou que, na semana anterior, ele estava assistindo a um
DVD na sala, quando ela passou e o achou estranho, meio
distante. Ela lhe perguntou se estava tudo bem e ele disse
que sim. Mais tarde, quando ela passou de novo, ele se
encontrava em estado de choque, paralisado, os olhos
arregalados, a boca aberta babando horrores na gola da
camisa. Parecia uma estátua de cera: pálido, frio. Ela o
sacudiu com força, desesperada, gritou, molhou seu rosto
com água gelada, mas nada disso o acordava. Chamou os
bombeiros, que tiveram que carregá-lo como se carrega um
boneco de madeira ou um robô. Seu coração batia
lentamente, ele respirava, mas era como se fosse um objeto
inanimado, “uma coisa muito esquisita”, ela disse.
“Meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensei comigo mesmo, ao
desligar o telefone. “Só pode ter sido...”.
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Peixes fora d’água
Dos dezessete vereadores eleitos, sete são “do bar”: Toninho
do bar, Carlão do bar, Renato do bar, Karina do bar, Elias do
bar, Geraldo do bar e Zé Preto do bar. Quatro são filhos de
pessoas muito conhecidas na cidade, prestativas até não
poder mais: João Gordo filho do Tuca do Ferro Velho,
Maurício filho da Ção da Casa de Oração (esposa do Euclides
do bar), Andréia filha do Juca da Farmácia e Renato filho da
Lu do Pronto Atendimento. Quatro são doutores, embora
nenhum tenha doutorado: Dr. Leandro, Dr. Osvaldo, Dr.
Sebastião e Dr. Safado, este último muito respeitado na
cidade por se safar de qualquer embrulhada em que se
meta, recorrendo, quase sempre – quando o dinheiro não
resolve o problema no ato –, a dois parentes que tem no
Poder Judiciário, e, em alguns casos, a amigos ligados ao alto
escalão do Governo. Dos quatro doutores, dois são médicos
e prestam serviço gratuito à comunidade pobre, segundo
eles porque são bons, caridosos e gostam de ajudar o
próximo (é certo que com alguns erros de percurso, como
trompas ligadas no intestino, amputações desnecessárias,
joelhos bichados para o resto da vida e uma e outra morte
por imperícia ou abuso de álcool – nada, porém, que não
seja facilmente disfarçado como “fatalidade” ou “descuido
do paciente” –, coisas que acontecem). Os dois outros
doutores são advogados, ambos de famílias tradicionais na
cidade, treinados desde a infância na arte milenar de puxar o
saco de quem tem poder, sobretudo juizes. Um deles é
amigo de um capitão da polícia, por isso especializou-se em
liberar veículos irregulares e motoristas sem habilitação em
troca de apoio e votos. O outro vem liderando desde o seu
mandato anterior uma pequena máfia que frauda licitações
da prefeitura: coisa pouca, no máximo um ou dois milhões
por ano, para ninguém desconfiar. Os outros dois vereadores
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são Maçaneta e Corrimão, duas ex-garotas de programa que
hoje formam uma famosa dupla sertaneja, disputada a tapas
por todos os bares da cidade, redutos privilegiados de
eleitores.
E olha que maravilha! O novo prédio da câmara já está quase
pronto! Uma construção enorme, com vagas na garagem
para dezessete vans de uso exclusivo dos vereadores, para
levar e buscar eleitores na capital. A presidência da casa quer
inaugurar a nova sede com a aprovação de alguns projetos
inovadores, que já estão sendo discutidos e aplaudidos por
todos. Um deles propõe transformar a obra do Teatro
Municipal em um enorme bar popular, com grande
variedade de tira-gostos e shows semanais de duplas
sertanejas locais. Um outro quer aumentar a carga tributária
para negócios que, na visão dos vereadores, não são de
utilidade pública, como a única livraria da cidade, o cinema e
a escola de desenho e pintura mantida a duras penas por
uma artista local. Por outro lado, o projeto propõe reduzir os
impostos para empreendimentos que os vereadores
consideram muito úteis à população, como a venda de sons
possantes para carros, concessionárias de motos, lojas de
artigos para churrasco, bares e duplas sertanejas.
Enquanto isso, peixes fora d’água, fracos demais para lutar,
morrem ou fogem desesperados.
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