cadernos de educação escolar indígena

Transcrição

cadernos de educação escolar indígena
CADERNOS
DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Uma publicação do Projeto de Formação de Professores Indígenas
3º Grau Indígena
Editor
Prof. Dr. Elias Januário
Comissão Editorial
- Prof. Ms. Antônio Francisco Malheiros
- Profª. Ms. Carmen Lúcia da Silva
- Prof. Dr. Elias Januário
- Prof. Félix Rondon Adugoenau
- Prof. Dr. José de Alencar Simoni
- Prof. Lucas ´Ruri´õ
- Prof. Dr. Marcus Antonio Rezende Maia
- Profª. Drª. Roseli de Alvarenga Corrêa
Cadernos de Educação Escolar Indígena
3º Grau Indígena - v. 2, n. 1, 2003
Barra do Bugres - MT
As informações contidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus
respectivos autores.
PROJETO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
3º GRAU INDÍGENA
CADERNOS
DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Barra do Bugres - MT
2003
Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira
Bibliotecária/CRB 1100
Revisão: Elias Januário
Revisão final: Karla Bento de Carvalho
Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri Silva
Grafismos: Bakairi
Capa: Fotos: Elias Januário
Arte: Fernando Selleri Silva
Dados internacionais de catalogação
Biblioteca “Curt Nimuendajú”
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU INDÍGENA. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 2, n. 1, 2003 Semestral
ISSN 1677-0277
1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Departamento de Documentação / FUNAI.
CDU 572.95 (81) : 37
UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso
Campus Universitário de Barra do Bugres
Projeto 3º Grau Indígena
Caixa Postal nº 92
78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil
Telefone: (65) 361-1964
www.unemat.br/indigena / [email protected]
SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso
Superintendência de Desenvolvimento e Formação de
Professores na Educação
Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo
78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil
Telefone: (65) 613-1021
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
Departamento de Educação
DEDOC - Departamento de Documentação
SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar
70390-025 - Brasília/DF - Brasil
Telefone: (61) 313-3730/226-5128
[email protected]
Este segundo número do Cadernos de Educação
Escolar Indígena é dedicado à memória da Profª. Drª.
Zoraide Primerano Arguello, docente e idealizadora da
proposta de ensino de Computação no Projeto 3º Grau
Indígena. Ela acreditou na formação de professores indígenas em nível Superior com coragem, dedicação e respeito
aos povos indígenas. Usava o computador como uma
importante ferramenta no processo de ensino e aprendizagem. Foi companheira e professora, cativando grandes
amizades entre os acadêmicos indígenas e a equipe de
docentes e técnicos do 3º Grau Indígena.
É para você, Zoraide, que dedicamos este trabalho.
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................. 9
Minha formação, meu povo: um só objetivo .................................. 11
Estevão Bororo Taukane
As artes da palavra ........................................................................ 19
Bruna Franchetto
A questão da identidade no 3º Grau Indígena: a
experiência dos Kaingáng .............................................................. 52
Márcia Nascimento
Formação de professores indígenas em serviço: a Etapa de
Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa - Intermediária ........ 56
Elias Januário
Educação escolar indígena: um caminho para a autonomia ......... 67
Félix Rodon Adugoenau
Etnocentrismo e a experiência da diversidade cultural ................. 71
Chang Whan
Oficina do período: uma proposta para o ensino produtivo de
Português no 3º Grau Indígena ..................................................... 77
Marcus Antonio Rezende Maia
O melhor motivo para ser professor é gostar de aprender ............ 86
Lucas ‘Ruri’õ
Reações químicas: as essências da vida ..................................... 88
José de Alencar Simoni, Déborah de Alencar Simoni e
Matthieu Tubino
Literatura e educação indígena ..................................................... 99
Cláudia Neiva de Matos
Uma etnografia do Iakuigady: o jeito de viver Bakairi .................. 109
Magno Amaldo da Silva
Educação e cultura: uma reflexão sobre o sistema escolar
na região de Vaupés ...................................................................... 122
Stephen Hugh-Jones
Do discurso e das ações: a educação intercultural como
política pública ................................................................................ 144
Luís Donisete Benzi Grupioni
A escola na terra Xacriabá ............................................................ 162
Kleber Gesteira e Matos
Interculturalidade e educação escolar indígena: um breve
histórico ........................................................................................... 173
Celia Leticia Gouvêa Collet
Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato
Grosso - CEI/MT: um espaço de exercício da cidadania .............. 189
Francisca Novantino P. de Ângelo e Elias Janúario
APRESENTAÇÃO
A experiência do primeiro volume do Cadernos
de Educação Escolar Indígena abriu mais um espaço, no contexto da formação de professores indígenas, para divulgação das pesquisas, reflexões e trabalhos relacionados à
educação escolar indígena.
Dando seqüência a esse processo, o Projeto 3º
Grau Indígena lança o segundo volume do Cadernos de
Educação Escolar Indígena, num momento especial, em que
completamos um ano de início das aulas, vendo consolidadas as principais metas de criação e implementação da
formação de professores indígenas em nível superior no
estado de Mato Grosso.
É importante ressaltar que essa conquista foi, e
continua sendo, resultado de um árduo trabalho coletivo
das instituições parceiras com o movimento dos professores indígenas, possibilitando assim colocar em funcionamento três cursos de licenciatura específicos para a formação de professores indígenas. Esses cursos têm como
princípios a busca pela afirmação das identidades étnicas, dos processo próprios de ensino-aprendizagem e da
luta por uma educação de qualidade que atenda aos
anseios dos povos indígenas.
No decorrer de um ano de trabalho, crescemos,
superamos obstáculos, trocamos experiências, revimos posições, aprendemos e ensinamos. Ganhamos novos parceiros, perdemos grandes amigos. Assim tem sido o 3º
Grau Indígena, um espaço de diálogo, de construção coletiva do conhecimento, de percepção de outras lógicas,
de esperança quanto a um futuro melhor, de reconhecimento das diferenças e de valorização do outro.
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Estamos confiantes na semente que lançamos ao solo, que
germinou e tem servido de referência para novas propostas em outros estados brasileiros. Isso nos deixa orgulhosos e confiantes na
força do movimento dos professores indígenas pela educação escolar em todo o país. Que os próximos quatro anos que ainda temos
pela frente continuem sendo uma caminhada vitoriosa, rumo à consolidação dos direitos dos povos indígenas e do exercício de sua cidadania.
Os textos reunidos neste segundo volume podem ser agrupados em dois blocos. Os que se referem às experiências do Projeto
3º Grau Indígena e os que se colocam no espaço da reflexão acerca
da educação escolar indígena em outros contextos, proporcionando
no conjunto, uma relação de debate e complementariedade.
O primeiro bloco aborda questões relacionadas à experiência no âmbito do ensino superior para professores indígenas, no qual
temos artigos que contam a trajetória do projeto, de alguns acadêmicos e o funcionamento das etapas do curso. Falam ainda das experiências desenvolvidas nas aulas de língua portuguesa, literatura, química, lingüística, matemática e artes.
O segundo conjunto de artigos registra ações reflexivas relativas à educação escolar indígena em diferentes contextos, contribuindo com novas reflexões, abordagens e estudos sobre a temática
indígena, fundamentais para o fortalecimento dos projetos de formação de professores indígenas em todos os níveis de ensino.
A leitura do conjunto de textos desta publicação oferece subsídios e orientações para o entendimento de aspectos relevantes da
formação específica e diferenciada de professores indígenas, considerando os princípios da pluralidade cultural.
Prof. Dr. Elias Januário
Coordenador do 3º Grau Indígena
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MINHA FORMAÇÃO, MEU POVO: UM SÓ
OBJETIVO
Estevão Bororo Taukane*
Minha atuação na área de educação é recente,
ocorreu por acaso. Nunca tinha pensado em ser professor, mas tinha planos para trabalhar junto à minha etnia.
Passei a maior parte do tempo estudando na cidade, onde adquiri conhecimentos sobre o mundo dos
não-índios. Sempre achava que deveria ter o compromisso de retornar à minha aldeia e poder repassar as coisas
boas que aprendi.
Em certos momentos da minha vida, passei por
várias transformações, principalmente no que diz respeito à minha formação escolar. Foi difícil para mim entender que teria que deixar minha mãe e meus irmãos na
aldeia para estudar na cidade. Isso tudo aconteceu muito
cedo, tinha apenas oito anos de idade. Na verdade só consegui concluir a primeira série em uma escola da FUNAI,
que ficava na aldeia dos índios Bakairi, onde minha mãe
trabalhava como Agente de Saúde. Em razão de seu serviço, não conseguia dar seqüência nos estudos, pois não
tínhamos parada fixa em uma aldeia.
O que mais me incentivava a estudar, era a confiança que minha mãe depositava em mim. Assim, passei a
encarar como um desafio o fato de ter que estudar na cidade.
* Acadêmico do 3º Grau Indígena, professor Bororo na aldeia Coroado,
município de Santo Antônio do Leverger - MT.
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Em Cuiabá, para onde fui levado pelo chefe de posto da
FUNAI, passei a morar na casa dos parentes de meu pai. Nisso já
estava matriculado em uma escola do bairro onde morava.
Durante os dois anos que estudei em Cuiabá, sempre fiz questão de visitar minha mãe nas férias, para poder matar a saudade.
Concluindo a segunda e terceira série, achei que deveria
mudar, pois estava muito triste, não queria mais ficar na cidade.
Pedi à minha avó, mãe de meu pai, para que eu fosse morar em sua
aldeia, na área indígena Bakairi, pois ela era dessa etnia.
Com a minha partida para a aldeia Pakuera, onde morava
minha avó, senti que mais uma vez estava atravessando um momento de mudança na minha vida.
Pela segunda vez fui estudar em uma escola na aldeia, desta
vez cursando a quarta série. Não estranhei muito, porque já havia
tido essa experiência.
Aproveitei o máximo para adquirir conhecimentos sobre o
povo de meu pai, mas nunca deixando de lado minhas fortes raízes
Bororo.
Terminando o primário, desejava estudar em uma escola
agrícola, queria seguir um novo caminho .
No ano seguinte (1992) a FUNAI tinha conseguido uma vaga
para que eu fosse estudar no colégio agrícola, no sistema de internato. Passei a vivenciar uma nova situação. Desta vez teria que encarar
outro tipo de realidade, só que agora sozinho, sem o auxílio de parentes por perto.
Durante os quatro anos estudando no internato, aprendi a
ser mais independente e a buscar alternativas para resolver os problemas. Ainda hoje prezo por essa experiência e procuro me inspirar nessas lembranças, para poder ser forte nos momentos difíceis.
O tempo que estudei na cidade serviu para refletir sobre questões
do índio quando está integrado a uma sociedade que não é a sua.
Infelizmente existem muitos preconceitos a respeito de nosso povo,
talvez pela falta de informação sobre o assunto. Às vezes, como ín-
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MINHA FORMAÇÃO, MEU POVO: UM SÓ OBJETIVO
dio, era visto como um selvagem, atrasado e incapaz de lutar por
seus direitos, ou como um coitadinho, uma vítima das armações que
saía sempre perdendo. Ficava muitas vezes chateado com essa situação, mas refletia sobre o que minha mãe sempre dizia, quando afirmava que no mundo dos brancos teríamos que encarar situações constrangedoras se quiséssemos vencer na vida.
Conheci também muitas pessoas que se interessavam pela
nossa causa. Preocupava-me muito em poder divulgar o valor da
nossa cultura e passar a imagem de um índio lutador, com idéias
voltadas para a preservação cultural.
Terminando o ciclo estudantil, já estava pronto para poder
dar início a meu projeto de vida. Ajudar o povo Bororo era a idéia.
Não sabia como, mas estava convicto. Esse era o meu projeto de vida.
Nunca me desviei da minha intenção para poder atuar em causa
própria. Se fosse assim, não teriam importância todas as experiências obtidas nesses longos anos.
Fiquei um ano parado, sem saber o que iria fazer. Estava
muito preocupado. As oportunidades não apareciam. Infelizmente
o ano de 2000 não foi favorável para os meus planos, me contentei
em acompanhar de fora a política dos Bororo. Por outro lado, pensando bem, tirei proveito dessa situação, porque comecei a ter uma
visão do que iria enfrentar futuramente.
No ano seguinte continuava preocupado, as chances não
apareciam. Na aldeia já começavam a comentar sobre a minha pessoa, em reuniões da comunidade. Encarava isso como um bom sinal.
A grande chance realmente veio de uma maneira inesperada. Na aldeia Coroado, um pequeno povoado de remanescentes da
aldeia Córrego Grande, estava tendo um problema sério, e era justamente na área de educação, pois não havia professor para lecionar
naquela localidade. O único que tinha não pôde ficar devido a problemas de saúde, foi preciso ir embora.
O chefe de posto da Terra Indígena Tereza Cristina come-
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
çou a comentar comigo sobre esse assunto, chegou a sugerir,
enfatizando a minha formação escolar, que eu pensasse sobre a situação da aldeia Coroado.
Aquilo me deixou muito animado, comecei a pensar sobre o
assunto. Com a oportunidade lançada, os planos estavam fluindo
para a realidade. Na aldeia Córrego Grande, onde eu morava, apareceu um senhor dizendo que queria conversar comigo, era o próprio cacique e pajé da aldeia Coroado.
Ele conversou sobre as dificuldades de sua aldeia, percebi
que era muito criticado pela comunidade da aldeia Central, porque
as crianças de sua localidade não estavam em sala de aula. Nas palavras daquele ancião, pude refletir sobre o passado. Senti que estava
sendo designado para a função. Aceitei o convite daquela comunidade (Coroado) e me comprometi a ajudar a aldeia.
Passei, naquele momento, a ser professor e a fazer parte da
família Coroado. Recebi muito apoio, principalmente da parte da
FUNAI, que ajudou com materiais escolares.
A situação na aldeia Coroado era realmente preocupante,
não havia condições para trabalhar, as crianças estudavam em um
local inapropriado para quem deveria ter uma sala de aula digna.
Sem falar das dificuldades que eu tinha para poder começar a desenvolver um trabalho escolar, pois as crianças estavam há muito
tempo sem estudar. Justamente neste momento de dificuldade veio
um comentário a respeito da Universidade Indígena em Barra do
Bugres. Na formatura do Projeto Tucum, eu já tinha preenchido um
formulário para tentar uma vaga nessa universidade.
No mês de março fomos convocados para a realização do
primeiro vestibular em nível de 3º Grau. Antes de fazer esse vestibular, fiquei receoso comigo mesmo, comecei a questionar a minha
capacidade. Tudo isso porque nunca tinha atuado na educação indígena. Era a minha primeira vez.
Pensei muito nas pessoas que incentivaram a me inscrever
nesse vestibular. Essas pessoas a todo momento confiaram na minha
capacidade.
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MINHA FORMAÇÃO, MEU POVO: UM SÓ OBJETIVO
Fiz o vestibular e realmente as questões foram voltadas para
a educação indígena. Usei todo o meu conhecimento a respeito e
naturalmente respondi às perguntas. Era só esperar o resultado, que
viria alguns dias depois. E, quando veio, vi que finalmente fui aprovado para ingressar na Universidade, não deu para conter a alegria.
A satisfação em poder fazer um curso em nível Superior era grande.
Comuniquei a minha comunidade, disse a eles que os representaria
,a partir daquele momento, fora da aldeia. Falei a todos sobre a importância do povo Bororo estar representado no 3º Grau Indígena, e
que a formação dos professores no projeto serviria futuramente para
benefício da comunidade.
Percebi que estava passando novamente por outra transformação. O ingresso na Universidade me daria a chance de poder me
especializar na educação indígena e valorizar a identidade de meu
povo. Em 30 de junho de 2001, fui conduzido para a cidade de Barra
do Bugres, para me juntar ao restante do grupo Bororo e às outras
etnias. Chegando em Barra do Bugres, fiquei admirado com tantas
pessoas que estavam na porta da Universidade. Eram muitas etnias,
vi que ali poderia fazer muitas amizades e rever alguns velhos conhecidos. O exemplo claro foi a presença de alguns Bakairi que estudaram no colégio interno comigo.
A diversidade de povos engrandecia o projeto. Acredito que
todos que estavam ali traziam consigo uma responsabilidade firmada com o seu povo.
O convívio durante dias com muitas pessoas me ajudou a
entender as diferenças e assim poder respeitá-las. Na sala de aula,
nosso grupo (Bororo) ficou junto com outros parentes, como os
Rikbaktsa e Suyá, do estado de Mato Grosso. E com alguns de outros estados, como os Kaingáng, Baniwa e Baré.
Procuro aprender muito com os “parentes” no período do
curso. Trocas de informações sobre a cultura é o que gosto de fazer.
Com isso vamos adquirindo um saber, que faz parte do contexto de
educação indígena. Conhecendo vamos aprendendo a respeitar o
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
jeito de ser do outro. Isso nos dá uma ampla visão do objetivo do
Projeto, que é a luta dos povos por uma educação cidadã.
O convívio entre as etnias fez com que eu tivesse a impressão de estar em uma grande família. Os índios da região do Nordeste do Brasil me deixaram admirado. Não pela sua aparência, mas
pela força que tiveram em resistir aos 500 anos de colonização. E que
agora estavam se juntando a nós, para formar uma força única. Para
lutar pela educação indígena.
Com os acadêmicos procuro sempre manter a amizade. O
bom relacionamento é o fator principal para nos ajudar em momentos de dificuldades ao executar algum trabalho do curso. No começo, parecia que alguns acadêmicos estavam tímidos, talvez pelo fato
de não conhecerem as pessoas que estavam ali. Mas com o tempo
passaram a demonstrar interesse pelos conhecimentos dos outros.
Em algumas ocasiões, o convívio durante trinta dias influenciou para
que alguns hábitos mudassem na minha vida particular.
Durante as etapas do curso, tive conhecimento de que os
índios Umutina têm alguns pontos em comum com os Bororo na
pronúncia de algumas palavras. Para nós, Bororo, o termo usado
para designar povo é “Boe”, enquanto os Umutina também seguiam
o mesmo sistema. Com pouquíssima diferença. Adquirir saberes
como este soma ainda mais para nossa formação.
O cotidiano em si é uma confraternização. Seja na hora do
café da manhã, do almoço e até no final da noite, quando muitas
vezes nos encontramos para estudar. O refeitório é a praça central,
onde muitos se encontram quando não estão na universidade. É um
ponto obrigatório para o intercâmbio dos acadêmicos.
O dia de aula do curso é realmente puxado, devido ao compromisso que temos com o horário. As horas de descanso são aproveitadas da maneira de cada acadêmico. Alguns preferem descansar, enquanto outros preferem fazer as atividades da Universidade,
ou descontrair na quadra de esportes e na mesa de sinuca. No campus,
o dia é bem aproveitado, pois os acadêmicos estão a maior parte
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MINHA FORMAÇÃO, MEU POVO: UM SÓ OBJETIVO
ocupados com estudos e pesquisas, só parando na hora do intervalo.
As áreas de conhecimento do curso nos possibilitam entender alguns conceitos que estão presentes em nosso meio. E assim
ajudam a formar concepções educacionais de acordo com os
parâmetros culturais.
Uma das áreas com a qual mais me identifico é a de Ciências
Sociais, pelo fato de envolver questões sobre diversas sociedades,
dando uma ampla visão sobre as transformações ocorridas nesses
longos anos e, conseqüentemente, possibilitando entender as ações
do homem com seu contexto sócio-cultural.
As Ciências Sociais têm dado a oportunidade para que haja
debate sobre diversas questões. Passamos, assim, a enxergar as diferenças não com base em nossa própria cultura, mas em algo maior.
Das minhas participações nas etapas ocorridas, os resultados foram sentidos na minha vida como professor, bem como na
maneira de ver as coisas por outra perspectiva.
Fico pensando, às vezes, o que seria do meu trabalho na escola como professor se não tivesse a referência e método para atuar
em sala de aula. Referência esta que os trabalhos do 3º Grau Indígena estão me proporcionando.
Como não tenho muito tempo de experiência no ramo de
educação escolar indígena, estou aproveitando ao máximo esta oportunidade. Quantos professores indígenas gostariam de fazer parte
deste Projeto? Quantos não-índios gostariam de ter essa oportunidade?
O que estamos recebendo neste curso é um atendimento bem
planejado. Os investimentos em todas as etapas do curso são
significantes. É a partir disso que devemos nos conscientizar e firmar um compromisso com nossas comunidades. Pois é este o objetivo do Projeto. Ele está nos preparando para que tenhamos uma formação digna e apropriada para atendermos nossa educação na aldeia. Sermos planejadores de nosso próprio sistema educacional,
banindo de uma vez aqueles velhos sistemas programados para aten-
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
der a uma realidade que não era nossa.
No 3º Grau Indígena parece que cada etnia está defendendo
a sua educação diferenciada. Mas, se formos ver de uma forma mais
ampla, todos nós estamos defendendo uma só bandeira. A bandeira
da nação indígena do Brasil, nação que está cada vez mais forte e
mais reconhecida.
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AS ARTES DA PALAVRA
Bruna Franchetto*
Apresentação
O texto aqui publicado reproduz, com algumas
correções, a apostila elaborada para a III Etapa Presencial
do 3o Grau Indígena, realizada em julho de 2002, no campus
da UNEMAT em Barra do Bugres (MT)1. Trata-se da apostila que apresenta os conteúdos transmitidos e discutidos
no curso “As artes da palavra”, área de Línguas, Artes e
Literaturas. Nas primeiras duas etapas da área mencionada (julho 2001 e janeiro 2002) foi dada uma introdução
à lingüística, enfocando a fonética e a fonologia, considerando em pé de igualdade fenômenos e características das
várias línguas nativas faladas pelos alunos do 3o Grau
Indígena e do português (ver artigo publicado). Decidimos, antes de retomar o estudo propriamente lingüístico
e adentrar na morfologia e na sintaxe, temas dos futuros
cursos, dedicar um tempo marcado às artes da palavra,
às artes das tradições orais indígenas, ligando-as às artes
da cultura material e à literatura, gênero, este, das tradições da arte da palavra escrita. Nosso desejo é continuar
a possibilitar aos alunos uma apropriação dos conhecimentos produzidos tanto pelas culturas e sociedades in* Drª. em Lingüística, Museu Nacional - Processo FUJB-UFRJ n. 6.729-6,
docente na Etapa de Línguas, Artes e Literaturas III.
1
O último parágrafo foi acrescentado e não está na apostila. Considerei
pertinente fazer uma conclusão e deixar registrados problemas que foram debatidos em sala de aula.
19
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
dígenas como pela chamada “ciência” ocidental e dos brancos, procurando pensar sobre suas diferenças e semelhanças.
Há uma outra forte motivação no fato de querer falar de
artes da palavra ou artes das tradições orais. Nosso intuito foi de
iniciar uma reflexão crítica sobre o valor dessas artes, seus significados, a sua desvalorização uma vez que se tornam pequenos textos
infantilizados e pobres nas mãos de muitos brancos que acham que
estão produzindo “literatura indígena”. O desrespeito à língua original e a ignorância do saber poético dos artistas indígenas levam à
deformação e redução de narrativas, cantos, discursos, quase sempre traduzidos a partir de um entendimento precário da língua indígena e da poesia neles contida. O resultado é carregado de conseqüências nefastas, uma das quais é a de contrabandear um produto de
qualidade inferior como preservação cultural. De qualquer maneira, não é sem medo que falo, neste texto, de transcrição, escrita e
tradução. Espero que os alunos do 3o Grau Indígena tenham entendido meus medos e minhas advertências quanto a essas operações
de transformação das execuções originais onde a palavra é arte.
Foi mantido o estilo da apostila; em negrito aparecem termos novos que procuramos entender nas aulas. A distinção entre
‘história’ e ‘estória’, presente na apostila, foi eliminada. Utilizo, aqui,
somente o termo ‘história’, aceitando a crítica feita pelos alunos quanto às conotações negativas do termo ‘estória’ quando usado para referir-se a narrativas das tradições orais indígenas (‘estória’ como nãoverdadeira, gênero inferior, etc.). Para a etapa intermediária pedi
que os alunos realizassem uma etnografia da narrativa oral em suas
comunidades. Veremos o que eles irão nos trazer. Verei, curiosa e
temerosa, o que os alunos alto-xinguanos dirão e escreverão, já que
eles mesmos tomarão a si a responsabilidade de falar sobre o mundo
das narrativas de seus povos, e sobre as mudanças e o destino dessas tradições uma vez que a escrita e a escola irrompem no tempo/
espaço das aldeias.
20
AS ARTES DA PALAVRA
Por último, devo dizer que o que aqui está escrito é o resultado de um longo esforço de pesquisa; espero que todos entendam a
necessidade de conjugar pesquisa e formação, definitivamente. Boa
parte do que eu aprendi sobre as artes da palavra, especificamente
Kuikuro, está em minha tese de doutorado (Franchetto 1986) e em
textos publicados (Franchetto 1989, 1993, 1997, 2000a, 2000b, 2001) e
inéditos.
I. Narrativas: arte de contar
Vamos falar um pouco de um gênero de tradição oral, e,
muitas vezes, de arte oral, de arte da palavra, que se chama narrativa. Vamos falar de como se narram, se contam, estórias, uma atividade presente em todas as culturas humanas. Vocês vão ler o texto
que se segue, onde a professora Bruna Franchetto descreve o que ela
aprendeu com o povo Kuikuro do Alto Xingu (MT). O texto é um
exemplo que pode fazer vocês pensarem e sentirem vontade de dizer e pesquisar como é a arte de contar em outras culturas, em outras
sociedades.
Akinhá: a arte de contar na cultura do povo Kuikuro (Alto Xingu)2
Na língua Kuikuro (família Karib), tem a palavra akinhá, escrita assim na ortografia, na transcrição fonética seria aki»¯a. Na palavra akinhá, tem nela outra palavra (uma raiz), aki, que podemos
traduzir para o português como significando “palavra”. Usa-se o
Na ortografia usada para escrever a língua Kuikuro, assim como a língua falada
pelos Kalapalo, Nahukwá e Matipu, todos povos do Alto Xingu, algumas letras
correspondem a certos símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (IPA). Assim a
letra ü corresponde ao som da vogal alta anterior não-arredondada, no IPA [ˆ]. A letra
g corresponde ao som da consoante fricativa velar vozeada, no IPA [F]. A letra j é
igual ao símbolo do IPA para a consoante oclusiva palatal vozeada. As duas letras
juntas (dígrafo) ng correspondem ao som da consoante nasal velar [N]. O dígrafo nh
corresponde ao símbolo IPA da consoante nasal palatal [¯]. A letra ts é para a consoante africada alveolar [ts].
2
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
termo akinhá para referir-se a qualquer narrativa, ou estória, seja ela
simplesmente uma notícia trazida de fora, seja ela uma narrativa,
uma estória, tradicional, antiga, bem elaborada, bem construída.
Akinhá é um gênero de discurso Kuikuro. Dizem os Kuikuro que
“tudo tem estória”, tudo o que existe é explicado por uma ou mais
akinhá. Por isso elas são muito importantes para falar e ensinar, para
explicar; nas akinhá tem quase tudo da cultura e das tradições do
povo. Contar akinhá é uma atividade que acontece sempre. Muita
coisa está mudando, hoje. Parece que, na visão e no comporamento
das gerações mais jovens, nascidas e crescidas no mundo dos bens e
dos kagaiha, enfraquecem a importância da transmissão das akinhá
tradicionais e a figura do akinhá óto.
Contando, o narrador, a pessoa que narra ou conta, constrói
uma sequência de cenas, de acontecimentos, que é um tipo de discurso oral. Quem escuta este discurso assim construído sabe que
está escutando uma narrativa, uma akinhá. Contar é como “mostrar”,
como vemos na frase (exemplo) abaixo:
atütüi atsange ihake akinhá
(escrita ortográfica)
atütü-i
atsange iha-ke
akinhá (segmentação morfológica)
bonito-CÓPULA mesmo mostrar-IMPERATIVO estória (tradução
interlinear)
“conte bonito uma estória!”
(tradução livre)
Com uma estória se “fazem” palavras, no sentido de fabricar, criar:
kukakihake akinhaki
kuk-aki-ha-ke
akinha-ki
1pessoa:INCLUSIVA-palavra-fazer-IMPERATIVO estória-INST
“conte uma estória!”.
Podemos distinguir três tipos de narrativas na cultura
Kuikuro. O primeiro é chamado akinhá ekugu. São as “estórias de
22
AS ARTES DA PALAVRA
verdade”, que são as narrativas tradicionais que contam fatos das
Origens ou Começos (raiz opo-), de “muito tempo atrás” (tsuhügü,
tsuhügüi wãke), dos “antigos” (ngiholo), dos “espíritos” (itseke). As
akinhá ekugu são diferentes das estórias “não verdadeiras”, ou simplesmente akinhá, relatos de acontecimentos que o narrador testemunhou e que estão ainda nas lembranças de sua vida.
Temos informações provenientes de outros povos altoxinguanos. Ellen Basso3 (1985) diz que, para os Kalapalo, povo de
língua Karib quase igual à língua Kuikuro, existe o gênero akitsu,
“fala narrativa”. Akitsu inclui “narrativas mitológicas” e “narrativas
recentes”. Os Yawalapiti (Aruák; Viveiros de Castro, 1977: 111 e segs),
distinguiriam “dois tipos de narrativas”: awnatí, “mito”, e inutayá,
“história ou estórias” (de inutayataa pá, “contar”). Os personagens
das awnatí são os awapúka (os que brotaram, surgiram, os primeiros);
os personagens das inutayá são os sikunhalaw (os velhos, antigos) ou
tsawakalaw (os de ontem). Thomas Gregor (1977: 76) traduz os termos Mehináku (Aruák) aunakí e metaiyá (=inutayá) como respectivamente “mito” e “notícia”. Para os Kuikuro, toda vez que se conta, se
faz uma akinhá. As akinhá ekugu aconteceram tsuhügü, tempo fora,
além do tempo; seus personagens, os ngiholo, são só os ancestrais
fundadores, mas também os heróis antigos, que enfrentaram outros
povos inimigos e os brancos. São chefes antigos, protagonistas de
muitas akinhá que contam a chegada dos brancos; esses antigos são
chamados também de kukihugu, “nossas (inclusivo) costas” ou “nossos antigos”.
Os akinhá ekugu dos Começos contam as aventuras de seres
que existiam antes da criação da humanidade. A akinhá da criação
da humanidade é uma narrativa muito longa; ela conta a fabricação
das mulheres de pau por Kwantüngü, o casamento das sobreviventes com Nitsuegü, o Jaguar, até o nascimento de Tauginhü e
Ellen Basso, antropóloga norte-americana, escreveu muito sobre as narrativas do
povo Kalapalo, conhecendo bem a sua língua. Vejam, nas referências bibliográficas,
no final deste artigo, os trabalhos mais importantes (Basso 1985; 1987, 1995).
3
23
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Aulukuma, os gêmeos Sol e Lua. Tem akinhá que contam dos acontecimentos antes da criação da humanidade até chegar ao nascimento
de Kwantüngü, avô de Sol e Lua, e seus irmãos. E cada um desses
irmãos de Kwantüngü é personagem de outras estórias. As akinhá
não acabam mais, cada uma entra em outras.
Como dissemos, não se pode contar uma akinhá, uma estória
que está na lembrança da vida de uma pessoa como se fosse uma
akinhá ekugu, uma “estória de verdade”. É porque a lembrança do
tempo da vida, a lembrança dos olhos, o que não é antigo, pode
sempre ser mudada pela augene, a “mentira”. Isto acontece porque
as lembranças vivas mudam, mesmo que a pessoa não queira; ou a
pessoa pode modificar sua estória como ela quiser. A memória antiga, transmitida de uma geração a outra, está fora da augene, da “mentira”. É esta memória antiga, que não é de uma pessoa só, mas de um
povo inteiro (memória coletiva), que fica nas akinhá ekugu, nas “estória de verdade”.
Depois, akinhá tem as suas palavras, termos e expressões
“antigos” como “antigos” são os eventos, as “festas”, os costumes
narrados; as narrativas ekugu são como um livro aberto da tradição
do povo, mesmo quando ela só vive na memória e na sabedoria dos
mais velhos. O narrador sabe construir uma estória como se construísse um caminho, mas não um caminho reto. É “um ir e vir, ir adiante, voltar, pegar esse ponto, deixá-lo, falar outro, pegar de novo”.
Há outra característica que distingue as akinhá ekugu. São
elas tamitsinhü, “compridas”, longas. O bom narrador é aquele que
sabe desenvolver as partes da akinhá, lembrar de todas elas na
sequência correta, embelezá-las através de todos os recursos que ele
conhece.
Tamitsila (comprido-NEG), “curtas”, são as akinhá de um
outro tipo, chamadas de hesinhü, “feias”. Elas são contadas para rir,
para se divertir. Fala de relações proibidas, ridicularizam parentes
por afinidade (sogros, sobretudo sogras, e genros), contam dos amantes, de sexo (sobretudo das mulheres). Nas akinhá hesinhügü, por
24
AS ARTES DA PALAVRA
exemplo, as pessoas não obedecem ao ihüsu, ao comportamento de
“vergonha e respeito” que deve existir entre sogras e genros. Os encontros entre ajó, “amantes”, são outro tema comum; neles o engraçado está na mentira, nas intrigas, na punição. Numa dessas estórias, um passarinho chamado ájahi faz uma viagem procurando a resposta a uma pergunta: como é a vagina da mulher por dentro? Visita
as aldeias do mosquito, da água, do pênis, do tronco caído no meio
do caminho. Não consegue a resposta. A resposta está em sua própria garganta vermelha, “igual” a uma vagina aberta.
Um gênero ou tipo de narrativa correspondente às “estórias
feias” Kuikuro existe também entre os Yawalapiti (Aruák, Alto
Xingu), sendo, assim, provavelmente, comum a toda a área altoxinguana. Para os Yawalapiti, as “estórias feias” são kihári, “saborosas” ou “picantes”, enquanto as “estórias de verdade” - mitos - são
katúpa, “triste” (Viveiros de Castro, 1977: 120). Parece que triste significa aqui a melancolia que acompanha toda akinhá ekugu na lembraça
de um passado bonito, heróico, grandioso. “Triste” é também sério,
como “feio” é também ridículo. Às vezes, as akinhá hesinhügü começam dizendo que a narrativa será “muito triste”, “muito parecida”
com uma akinhá ekugu. É uma brincadeira, uma ironia, para anunciar uma estória que não é nem triste nem ekugu.
Quem conta? Quando e por quê? Para quem?
O conhecimento das muitas akinhá, do anetü itaginhu (“conversa de chefe”, discursos cerimoniais), das kehegé (“rezas”) ou dos
égi (“cantos”), são saberes específicos, adquiridos por determinadas
pessoas e a elas atribuídos. Tem, assim, os akinhá oto, “donos de estórias”, os kehegé oto, “donos de rezas”, iginhu oto, “donos de cantos”.
Cada canto tem seus oto. Uma mesma pessoa pode ser oto de diferentes saberes e um mesmo gênero pode ter vários oto. O oto tem
prestígio social, dentro de sua aldeia e no Alto Xingu como um todo.
O akinhá oto “tem” (ngipi) as estória que ele sabe e sabe contar bem.
Qualquer pessoa pode contar, mas os Kuikuro preferem ouvir contar dos sábios akinhá oto. Para aprender kehegé (rezas) e égi (cantos)
25
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
precisa pagar (ihipügü, “pagamento”). E para ter o serviço de um
kehegé oto (dono de rezas) ou de um cantador, também precisa pagar.
Como alguém pode se tornar oto de um saber que é um tipo
de fala? O aprendiz precisa querer aprender. No caso do akinhá oto,
seu conhecimento lhe foi transmitido por algum parente consangüíneo com o qual conviveu - pais, tios, avós. Importante é a relação
entre tio materno e filho do irmão (ijogu; hãtuü); o tio passa longas
horas à noite narrando, e o jovem é o ouvinte principal, aprendendo.
Tem mulheres akinhá oto, sobretudo velhas, mas é mais difícil encontrar mulheres conhecidas como akinhá oto.
As akinhá aprendidas na infância e na juventude serão
enriquecidas com detalhes e versões, e outras se acrescentarão a elas
ao longo da vida, ouvidas de outros narradores, de estrangeiros de
passagem, nas ocasiões as mais variadas. Quanto mais velho o
narrador, mais completos e admirados serão seu repertório e mais
bonita será sua fala, seu estilo.
Há sempre alguém que é o ouvinte principal e que deve
responder ao akinhá oto, ao narrador. Além disso, tem o público ouvinte presente – crianças, adultos, homens e mulheres. Para contar,
então, tem que ter três participantes: o narrador ou executor, o ouvinte que responde (interlocutor), e o público que escuta. Sem
respondedor não tem narrativa. Assim é em muitas culturas de tradição oral, como, por exemplo, na sociedade dos Maya Yucatec, no
México. Os Maya Yucatec dizem que estória é um tipo de conversação - “conversação antiga”. Na sociedade Kuikuro, o velho narrador
se dirige a outro velho ou a outro homem adulto. Ao tio materno
responde o sobrinho, que está aprendendo a akinhá. Tem bons narradores como bons respondedores.
O respondedor geralmente fala um “ehe” que parece funcionar como uma pontuação oral, separando frases, enunciados, que
são unidades do discurso narrativo (vamos falar de novo disso mais
adiante). O respondedor pode perguntar; às vezes ele pede esclarecimentos e informações sobre localidades, personagens, relações de
26
AS ARTES DA PALAVRA
parentesco, seqüências de eventos. O narrador responde com afirmações (lahitsai, alatsükí), negações (ko, ahütü), explicações rápidas,
ou repetindo.
Na narrativa tem, então, um narrador que é o participante
principal; mas a sua fala não é um monólogo, mas parece um diálogo, um diálogo entre narrador e respondedor4.
Por fim, quando e porque se conta uma akinhá? Ouvem-se
akinhá no kwakutu (casa dos homens, no meio da aldeia), num grupo
de homens reunido para trabalhos como a fabricação de artesanato
ou de enfeites cerimoniais. Ouvem-se akinhá à noite, nas casas. As
ocasiões são variadas: a visita de um akinhá oto de outra aldeia, explicações de festas ou de “rezas”, o prazer de estar juntos nas horas
de descanso.
Todo texto de narrativa oral é uma mensagem transmitida
dentro de uma sociedade, de uma cultura, dentro de um contexto,
por meio de uma língua determinada e os ouvintes entendem porque sabem a língua e os significados da cultura. O estilo é o jeito do
narrador contar. O estilo é a ligação entre cultura, língua, estória e
narrador. O narrador sabe usar a sua língua para fazer arte com as
palavras; é o estilo oral, que tem também sons não lingüísticos, como
os que imitam barulhos e animais (onomatopéias), e gestos e olhares. O estilo distingue o uso normal da língua, na comunicação do
dia-a-dia (informal), do uso artístico, bonito, estético (formal). O estilo narrativo é quase um estilo poético, meio prosa meio poesia.
Vamos ver, daqui há pouco, porque estou dizendo que narrar é um
pouco poesia. Antes, quero falar de versões e de tradução.
Versões
Para cada narrativa oral existem várias versões. Cada
narrador conta a mesma estória um pouco diferente de outros narraMonólogo é quando uma pessoa fala tudo sozinha, sem conversar com outras pessoas. Diálogo é quando duas pessoas conversam; um fala para outro e vice-versa.
4
27
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
dores. O mesmo narrador conta a mesma estória cada vez um pouco
diferente. O narrador pode mudar um pouco a estória, os seus detalhes, dependendo dos seus ouvintes, ou dependendo de quando,
onde e porque está contando aquela estória (contextos e situações
diferentes). Temos, assim, versões um pouco diferentes da mesma
estória. A estória mesmo, o que ela conta, não muda, só o jeito de
contar. Assim temos versões de uma mesma estória; é assim que as
estórias passam de uma geração a outra geração. Assim é nas sociedades do Alto Xingu, assim é em todas as sociedades. Cada akinhá
oto Kuikuro lembra o que ele aprendeu e embeleza o que ele aprendeu.
Dá para entender a curiosidade e os comentários que acompanham a escuta de gravações feitas com diferentes akinhá oto, diferentes narradores. Às vezes, o akinhá oto fica com raiva porque seu
estilo, sua tradição, até sua criação, são expostas a um público que
ele não conhece, aqueles que podem escutar a gravação e podem
fazer “fofoca” ou ridicularizar. O akinhá oto às vezes tem medo de
que outros, índios ou brancos podem roubar a gravação, aprender
as estórias e andar por aí contando, ou até escrevendo suas estórias.
Mas os akinhá oto gostam de ouvir com atenção as execuções de outros narradores e gostam de aprender novas estórias. Eles gostam de
discutir as versões contadas pelos outros akinhá oto, comparando as
diferentes versões.
Precisamos lembrar que todas as vezes que gravamos, transcrevemos e escrevemos uma estória, estamos escolhendo uma versão, contada por um determinado narrador, num momento específico.
Transcrever, escrever
Transcrever e escrever uma história é, então, como fixar uma
versão de um determinado narrador.
O que é transcrever? É colocar por escrito um texto oral gra-
28
AS ARTES DA PALAVRA
vado, palavra por palavra, frase por frase, quase igual ao que, e a
como foi falado. Uma boa transcrição anota também as pausas, as
onomatopéias, tudo o que foi falado. Assim temos a transcrição da
narrativa original falada. Ela serve para não esquecer aquela versão
da estória, e para estudar como é uma narrativa, qual é a arte do
narrador. Serve também para estudar a língua. Serve para mostrar
direitinho como é a arte de narrar de um narrador, de um povo.
Escrever uma estória é um pouco diferente. Podemos ouvir
uma narrativa contada oralmente e depois escrevê-la. Nisso, acabamos por resumir a narrativa, tirar algumas coisas, acrescentar outras. Escrever assim uma narrativa acaba quase sempre numa versão escrita em prosa. Ou seja, se a narrativa contada oralmente é um
tipo de poesia, o que faz dela um tipo de poesia, de arte, pode se
perder na versão só escrita. Só resta, assim, a estória, os seus ossos, e
se perde o estilo, a arte de um narrador, de um povo, que são como
o sangue e a carne da estória. Tem jeitos para escrever uma narrativa, assim como qualquer arte verbal, sem perder muito da arte oral
original. Vamos ver isso na Parte II. Aqui só quero observar que
transcrever e escrever um texto que foi falado é uma espécie de tradução.
Tradução
O trabalho da tradução, quando é necessário, não é nada
simples ou fácil. Estamos falando, agora, da tradução de uma língua
para outra.
Podemos ter uma tradução interlinear, quando abaixo da
linha de um texto trascrito ou escrito se coloca a tradução de cada
palavra ou até de cada morfema (os morfemas são os pedacinhos
que formam uma palavra). Este trabalho de tradução se chama também glosar, colocar glosas para cada palavra ou morfema. Uma glosa é muitas vezes uma abreviação, porque não tem espaço para colocar a glosa inteira. Fazendo a tradução interlinear, ou seja, colocan-
29
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
do as glosas, o leitor pode ter uma idéia do significado de cada palavra e de como é a organização de uma frase.
A tradução pode ser também livre. O significado de uma
frase, de um pedaço do texto oral é dado diretamente na outra língua. A tradução livre pode ser mais ou menos fiel, próxima ao texto
original. Uma tradução muito perto do original pode ser difícil de
ler e entender por aqueles que não conhecem a língua original. Uma
tradução completamente livre pode perder completamente o estilo
do texto original. Podemos ter soluções de tradução a meio caminho, que fiquem fáceis de se ler, e bonitas quase como o original.
Para isso, precisamos descobrir o estilo da fala original, da
arte verbal, quando esta existe. Precisamos então descobrir quais são
as unidades do texto oral. Vocês devem estar aprendendo quais são
as unidades do texto escrito com o Prof. Marcus Maia e com a Profª.
Claudia Matos. E, descobrindo estas unidades, podemos descobrir a
poesia da narrativa, assim como a poesia de qualquer texto de arte
da palavra.
Vamos ver alguns exemplos de transcrição, tradução
interlinear e tradução livre de umas partes de uma akinhá Kuikuro, a
que conta da chegada dos brancos, dos primeiros encontros com os
brancos, há muito, muito tempo atrás. Esta akinhá foi gravada em
1981, depois transcrita e traduzida por mim com a ajuda dos professores Kuikuro. Aqui estão só uns trechos (pedaços) do começo da
akinhá:
transcrição usando a ortografia
as palavras são divididas nos seus
pedacinhos (segmentação em morfemas)
Tugi-LOC ficar-PONT-dizer-PONT tradução interlinear ou
glosagem
Tugite inhügükilü
Tugi-te inhügü-ki-lü
30
AS ARTES DA PALAVRA
ehu akütsilükilü hõhõ
ehu akütsi-lü-ki-lü hõhõ
canoa descascar-PONT-dizer-PONT ENF
uagi akütsilükilü hõhõ
uagi akütsi-lü-ki-lü hõhõ
jatobá descascar-PONT-dizer-PONT ENF
ekise ehugu, ekise heke akütsilü
ekise ehu-gu, ekise heke akütsi-lü
ele canoa-POS, ele AG descascar-PONT
tunga heke leha atelüko leha
tunga heke leha ate-lü-ko leha
água-AG CMPL cercar -PONT-PL CMPL
kaküngi leha ehu atalohutelükilü
kaküngi leha ehu atalohute-lü-ki-lü
muitos CMPL canoa enfileirar-PONT-dizer-PONT
kaküngi ekugu
muitos
aiha
pronto
ahitsilükilü leha ihekeni
ahitsi-lü-ki-lü leha i-heke-ni
queimar-PONT-dizer-PONT CMPL 3-AG-PL
ige ahitsilü (repetido mais três vezes)
ige ahitsi-lü
DEIT
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
inhügükilü leha
i-nhügü-ki-lü leha
3/ficar-PONT-dizer-PONT CMPL
uagi üngkagijükilü leha ihekeni
uagi üngkagi-jü-ki-lü leha i-heke-ni
jatobá modelar-PONT-dizer-PONT CMPL 3-AG-PL
aiha
pronto
...................
ehu ampalü leha ihekeni
ehu ampa-lü leha i-heke-ni
canoa vestir-PONT CMPL 3-AG-PL
~e, Agaha otomo kaenga
sim, A. pessoal perto
nduhe kwegüiha inhanguko hata
nduhe kwegü-i-ha inh-angu-ko hata
nduhe hiper-COP-ENF 3-dançar-PL TEMP
nduhe kwegüikilü hata
nduhe kwegü-i-ki-lü hata
hiper-COP-dizer-PONT TEMP
Tradução livre
......................................
(diz-se) ficaram em Tugi
(diz-se) ficaram mesmo tirando a casca (dos troncos de jatobá)
(diz-se) que ficaram mesmo tirando a casca dos troncos de jatobá
As canoas deles, eles tiraram a casca (dos troncos de jatobá)
A água os cercou
32
AS ARTES DA PALAVRA
Muitas canoas, enfim, (diz-se) que ficaram enfileiradas
Muitas
Pronto
(diz-se) eles tocaram fogo, enfim, (para fazer as canoas)
Nesta tocaram fogo....
(diz-se) que lá ficaram, enfim
(diz-se) eles modelaram (os troncos de jatobá), enfim
Pronto
.....................
eles entraram nas canoas, enfim
sim, perto do pessoal de Araha
foi no tempo em que ele dançava na festa nduhe
(diz-se) foi no tempo em que ele dançava na festa nduhe
......................
Vocês podem encontrar uma tradução em prosa, mais livre
ainda, e resumida desta mesma narrativa no texto “O aparecimento
dos caraíba”, publicado no livro “Aconteceu” e que anexamos a esta
apostila, junto com outros textos que falam do encontro com os brancos. Procurem! E comparem as traduções!
II. Artes da Palavra e Poética
Na narrativa
Porque podemos dizer que narrar na sociedade Kuikuro é
uma espécie de fazer poesia, é uma poética, ou seja uma arte verbal.
Será que é possível transcrever, escrever e traduzir respeitando um
pouco esta arte? Será que é assim em outras sociedades também?
Akinhá tem um ritmo, o ritmo da sua fala, diferente do falar,
da conversa do dia-a-dia. Descobrimos que toda akinhá tem suas partes, seus pedaços, suas unidades, que a organizam como um corpo.
Essas unidades são separadas, marcadas, usando vários recursos: a
33
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
entonação, as pausas, palavras especiais5.
Antes de falar de poética, podemos ver que a narrativa contada, a akinhá, é um texto mesmo; tem título, tem abertura, tem fechamento. A akinhá como um todo é a primeira unidade.
Título, abertura e fechamento
As akinhá podem ter um título. Vamos pegar de novo a estória que conta os primeiros encontros com os brancos, no final da
aula passada. O título dela seria kagaiha apakipügü, ou seja “o aparecimento dos caraíba (brancos)”. A raiz verbal apaki- significa “aparecer”, aparecer pela primeira vez. Outra akinhá, por exemplo, tem dois
títulos: um deles é itão kwegü etinkipügü”, a metamorfose (transformação) das hiper-mulheres”; o outro é Jamugikumalu opogipügü, “a
origem, (o começo) de Jamugikumalu”. A raiz verbal opogi- significa
ter origem, originar-se, começar pela primeira vez uma coisa da cultura. Esta akinhá conta como as mulheres se separaram dos homens,
se transformaram em itseke, hiper-mulheres, mulheres-monstro,
mataram seus filhos homens, ficaram só com as filhas mulheres e
foram no fim do mundo fazer uma aldeia só de mulheres, onde elas
fazem tudo o que as mulheres não podem fazer na vida real. Esta
akinhá conta também como começou (a origem) da festa
Jamugikumalu, uma festa que lembra a akinhá com danças e cantos
das mulheres.
Não fui eu que descobri sozinha a existência de unidades narrativas, como verso
(linha), parágrafo, cena. Não fui eu que descobri sozinha o jeito de organizar na escrita, no papel, uma narrativa, com seus versos ou linhas. Outros já tinham feito isso
trabalhando sobre as tradições verbais de outros povos. Lembro aqui, entre outros
autores, Dell Hymes (1977), Dennis Tedlock (1983), Joel Sherzer (1990) , Laura Graham
(1986). Ellen Basso (1985, 1987, 1995) fez a mesma coisa com as narrativas Kalapalo.
Não conheço, contudo, ninguém mais no Brasil que tenha feito isso, ou seja que tenha
prestado atenção à poética das narrativas indígenas. Para a transcrição e tradução de
narrativas, discursos e cantos, são os antropólogos que se esforçaram mais do que os
lingüístas e os educadores a respeitar os originais que escutaram, na hora de colocar
no papel as letras de cantos ou de discursos. Vejam, mais adiante, alguns exemplos.
5
34
AS ARTES DA PALAVRA
Toda akinhá tem uma abertura, as primeiras frases. Quem
escuta é logo jogado na estória, no primeiro movimento da estória,
no primeiro acontecimento da estória. Por exemplo a narrativa das
hiper-mulheres, que acabamos de mencionar, começa com esta abertura, em uma de suas versões:
tumuguko ipolü ihekeni, Magija heke
tu-mugu-ko ipo-lü
i-heke-ni, Magija heke
REFL-filho-PL
furar-PONT 3-ERG-PL Magija ERG
ipolüha leha ihekeni leha
ipo-lü-ha leha i-heke-ni leha
furar-PONT-ENF já 3-ERG-PL já
Eles furaram a orelha de seu próprios filhos, foi Magija
eles furaram a orelha
É assim mesmo, a estória começa com o acontecimento da
festa de furo da orelha (tiponhü) dos meninos na aldeia de Magijá.
Toda akinhá tem umas palavras finais, que fecham o texto.
Elas são: áiha, “acabou” e upügü higei “este é o último”.
O bom respondedor, o bom ouvinte deveria dizer, então,
uitsojigü, que não tem significado direto, mas é como uma fórmula.
Ela serve para fechar de vez e espantar a preguiça, sair do meio sonho em que o narrador levou o ouvinte contando.
Cada cultura tem seu jeito, seu estilo de contar, maneiras
diferentes de começar e de fechar uma narrativa. Descobrir essas
maneiras é o trabalho do pesquisador, de quem estuda a língua e a
cultura de um povo.
35
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
As unidades da narrativa
Cena
No meu estudo das narrativas Kuikuro, descobri que cada
uma delas se organiza em pedaços, em unidades. Cada unidade
maior inclui unidades menores dentro dela. Assim, a unidade primeira, o texto da narrativa inteiro, inclui unidades que podemos
chamar de cenas. O narrador diz quando uma cena acaba e depois
começa outra. O narrador usa a palavra áiha, “acabou” ou “está pronto”, para dizer que uma cena acabou e que vai começar outra. É como
se escrevendo nós colocássemos um ponto e depois um espaço maior para separar as linhas. Cada cena leva o ouvinte para outro episódio da estória.
Depois de fazer a transcrição e a tradução no papel, ou no
computador, eu passo a limpo, no papel ou no computador. O jeito
de transcrever bonito a akinhá é arrumando as unidades que descobri na estória contada pelo narrador para dar a idéia delas no papel,
para quem irá ler. Então, resolvi separar bem claramente uma cena
de outra e no começo de cada uma coloquei um número romano: I,
II, III, IV e assim em diante.
Parágrafo
Dentro de cada cena, podemos descobrir outras unidades,
que podemos, talvez, chamar de parágrafo. Para separar essa unidade parágrafo, o narrador usa outros recursos – palavras, frases - que
significam muitas vezes movimento, no tempo e no espaço. Assim,
ele leva o ouvinte na viagem por lugares diferentes, um dia depois
do outro, um tempo depois do outro. O akinhá oto usa palavras como:
36
AS ARTES DA PALAVRA
Tempo
Espaço
lepe(ne) (leha) (geale)
depois (já) (também)
telü / atange
ir / movimento para
isinügü / etimpelü
vir /chegarr
(PONT)
engiho / ami / ingila
em seguida / outro dia / cedo
(lepe) kogetsi / kohotsi / koko
(depois) amanhã / de noitinha /
de noite
ahegitilü / ahugutilü
acordar de manhazinha /
ir dormir à noite
No exemplo abaixo, o narrador, falando lepe, está mostrando que passou de uma cena para outra. Este é também um pedaço
(trecho) da estória de Jamugikumalu:
lepe uanügü leha ihekeni
lepe ua-nügü
leha i-heke-ni
depois passar-PONT
já
3-ERG-PL
tsuhügüi itsako hagute
tsuhügü-i
itsa-ko
muito/tempo-COPficar-PL
Depois passaram além o tempo da espera
ficaram muito tempo na pescaria
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hagu-te
pescaria-LOC
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Passando a transcrição a limpo, resolvi marcar os parágrafos deixando um espaço maior entre um parágrafo e outro. Marco,
também, cada parágrafo com uma letra do alfabeto.
Na narrativa tem muitos diálogos diretos citados. O
narrador conta as conversas, os diálogos entre os personagens, como
se estes estivessem eles mesmos conversando, dialogando. Muitas
vezes, estes diálogos são um parágrafo. Vou dar um exemplo de
novo da akinhá Jamugikumalu:
kogetsi
leha telü
kogetsi
leha te-lü
o dia seguinte
já
ir-PONT
“ama, utelü akatsige”
«ama, u-te-lü
akatsige»
mãe l-ir-PONT mesmo
“~e”
sim
“apajuko ingilüinha”
“apaju-ko ingi-lü-inha”
pai-PL
ver-PONT-FIN
O dia seguinte ele foi
“Mãe, eu estou mesmo indo”
“Sim”
“Para ver os meus pais”
Usei também aspas para a fala de cada personagem que está
conversando.
38
AS ARTES DA PALAVRA
Linha
Chamei de “linha” a unidade menor, que fica dentro do
parágrafo. Muitas vezes, a linha é uma frase mesmo. Chamei de linha porque na escrita esta unidade é realmente uma linha do texto
da akinhá escrita. Acho que pode reconhecer a linha na fala, porque o
narrador faz um ritmo. Ele faz pausas, mesmo pequenas, que separam uma linha de outra. Ele também usa a entonação; percebemos
que o perfil entonacional desce no final da linha. Cada linha pode
ser, também, numerada – 1,2,3,4, e assim em diante.
Vocês devem ter observado que as linhas não ficam todas
uma debaixo de outra. Às vezes, elas ficam mais para direita. Porque? Foi o jeito que encontrei para mostrar que o narrador muda sua
voz. Às vezes, ele fala mais alto, às vezes mais baixo. As linhas não
são todas faladas com o mesmo tom de voz. Assim, o narrador dá
maior ênfase (importância) a algumas frases, com um tom mais alto,
uma voz mais forte. Ou ele fala mais baixo, com voz mais fraca, para
fazer comentários ou para animar as conversas dos personagens. De
novo, percebemos o ritmo da fala do narrador. As linhas que ficam
mais à direira são aquelas que o narrador fala mais baixo.
Um aspecto muito importante, para o qual quero chamar a
atenção, é a repetição. O narrador repete muitas vezes. Na escrita da
tradução livre, estas repetições são eliminadas. As pessoas acham
que as repetições são inúteis, até chatas. O problema é que, se olharmos com maior atenção as repetições, é nelas que descobrimos o
princípio da poética.
Paralelismo
Na versão em prosa escrita de uma narrativa que foi contada oralmente, perde-se essa poética, e todas as estórias ficam iguais.
Perde-se a arte do contador. Essas repetições são chamadas de
paralelismos, porque cada repetição fica em paralelo com a frase
repetida. A repetição paralelística é uma versificação. Versificar, botar
em versos é fazer poesia, uma arte feita com as palavras. A akinhá
39
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Kuikuro é uma espécie de poesia, porque nela tem muitas repetições
em paralelo.
A organização das linhas escritas permite visualizar (ver) a
poética do estilo narrativo. Colocando as linhas uma debaixo da
outra, é possível ver mesmo os versos e a beleza (estética) da repetição paralelística. Antes, preciso dizer que repetição não quer dizer
que se repete sempre a mesma coisa, igual. Normalmente, toda vez
que o narrador repete, muda alguma coisa. Muda uma palavra por
outra que tem mais ou menos o mesmo significado (sinônimo). Muda
a ordem das palavras. Muda porque acrescenta alguma coisa, ou
porque tira alguma coisa. Tem várias maneiras de mudar um
pouquinho para fazer versos em paralelo. Vamos averiguar com
exemplos, para entender melhor. De novo estou usando a transcrição da akinhá Jamugikumalu:
transcrição ortográfica
transcrição fonológica com
separação dos morfemas
tradução interlinear ou
metamorfosear-CONT-PL DEIT-COP
glosagem
etinkitako leha egei leha
etiNki-ta-ko leha eFe-i leha
etinkitako leha, heu kwegüi,
etiNki-ta-ko leha, heu kweFˆ-i,
porco hiper-COP
etinkilüko leha
etiNki-lˆ-ko leha
metamorfosear-PONT-PL ASP
inte leha ipuguko leha itsaeni,
inte leha i-puFu-ko leha i-tsae-ni,
aqui ASP 3-pelo-PL 3-sobre-PL
40
AS ARTES DA PALAVRA
inte leha isigüko ihatigagü leha
inte leha is-iFˆ-ko ihati-FaFˆ leha
3-dente-PL sair-CONT ASP
[mbü]
[mbˆ]
tsekegüi leha inhünkgo leha
tsekeFˆ-i leha i-¯ˆN-ko leha
grande-COP ASP ser-PONT-PL
tradução livre
eles se metamorfoseavam, lá longe, enfim
eles se metamorfoseavam em queixadas
eles se metamorfosearam
aqui, enfim seus pelos sobre eles
aqui, enfim, seus dentes saíram
eles se tornaram enormes, enfim
Vocês podem ver o que foi repetido, como foi repetido. Cada
linha é como um verso. Vocês podem ver como ficou o todo. Não
parece mesmo uma poesia? E o que vocês acham da tradução livre?
Ela respeitou a poesia da fala original do narrador? Como ficaria na
versão em prosa? A minha ficou assim:
Eles se metamorfosearam em queixadas. Os pelos e os dentes nasceram neles e ficaram enormes.
Percebem a diferença entre poesia e prosa neste exemplo?
Vamos dar outro exemplo:
tumugukope
hekeha
t-umuFu-ko-pe
heke-ha
REFL-filhos-PL-ex
ERG-ENF
41
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
toto kusügüpe agilü leha ihekeni
toto kusˆFˆ-pe
aFi-lˆ leha i-heke-ni
[tum]
homem pequeno-ex jogar-PONT
ASP 3-ERG-PL
nkgügi nkgügi letüha inhünkgo
nkˆFi nkˆFi letˆha i-¯ˆN-ko
EV
3ficar-PONT-PL
tühünehügükoi
tˆ-hˆne-hˆFˆ -ko-i
REFL-crescer- PERF-PL-COP
itão gele, itão kusügü gele ekisei
itão
Fele, itão kusˆFˆ
Fele ekise-i
mulher ainda, mulher pequeno ainda aquele-COP
nhigelükoi gele
¯-iFe-lˆ-ko-i
Fele
INTR-levar-PL-COP
ainda
tühünehügükoi
tˆ-hˆne-hˆFˆ -ko-i
totope leha hüle ekisei
toto-pe
leha hˆle ekise-i
homem-ex já
mas aquele-COP
nhagilükoi
¯-aFi-lˆ-ko-i
INTR-jogar-PONT-PL-COP
lepe ekisei, nkgügi nkgügi leha inhünkgo leha
lepe ekise-i, NkˆFi NkˆFi leha i-¯ˆN-ko leha
depois aquele-COP ASP3-ficar-PL ASP
42
AS ARTES DA PALAVRA
tumugukope leha
t-umuFu-ko-pe leha
REFL-filhos-PL-ex ASP
Eis seus filhos,
elas jogaram os pequenos homens
eles se tornaram nkgügi nkgügi , é verdade
sendo as outras as que deveriam fazer crescer sua gente
eram mulheres, eram ainda pequenas mulheres
eram as que elas tinham levado ainda
sendo elas as que deveriam fazer crescer sua gente
mas os outros que tinham sido homens
foram os que elas tinham jogado
depois, eram eles que se tornaram, enfim, NkˆFi
NkˆFi
aqueles que tinham sido seus filhos
Vamos ver de novo como se deu a repetição no pedaço (trecho) acima? Vamos descobrir os paralelismos? Agora, comparemos
de novo a tradução livre que respeita a poética com a tradução em
prosa, depois de tirar os versos, as repetições:
Elas jogaram os filhos pequenos que se tornaram os peixinhos nkgügi
nkgügi. As mulheres elas levaram para fazer crescer sua gente.
Qual a diferença entre as duas traduções? O que é, então,
esta poética que descobrimos nas akinhá Kuikuro? Vamos descobrir
como se conta em outras sociedades? Cada uma tem seu estilo, seu
jeito e, quem sabe, sua poética oral, verbal. Vamos falar só um
pouquinho de outros tipos de fala, outros gêneros de discurso, que,
em muitas sociedades, são poéticas, bem mais clara do que a que
vimos na narrativa.
43
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Outros gêneros de discurso formal e poético
O discurso público, no meio da aldeia, na casa dos homens,
numa praça, a oratória de gente importante pode ser poética, com
repetição (versos) e ritmo. Agora vocês vão ver um pedaço de um
discurso de oratória Xavante, assim como foi transcrito por Laura
Graham (1986). Será que os professores Xavante conseguem ler e
traduzir? Será que eles acham que é um discurso poético?
te mari
te mari
ma ino höiwi
ma ino höiwi
mato uprosi te
te mari ma ino höiwi mato uprosi te
‘√’
/rowEna
/rowEna
/rowEna tama
tama hösu ba mono ne za hã
tama i/a hã
i/a
wa/rori hã
i/a wa/rori hã
tete riba upse ba mono pari
/rowEna tama hösu ba mono ne za hã
‘√’
mari te poto uprosi wamha
mari te poto uprosi wamha
tama waihu/u aba
to nEme
to nEme
anE mato
anE mato
amE te töibo
amE te töibo ma
44
AS ARTES DA PALAVRA
sorö ha
sorö ha
tiwi ma hö õ
tiwi ma hö õ
‘√’
O chefe Kuikuro sabe itaginhundagü (“conversar”) no meio
da aldeia para resolver problemas da comunidade. Ele sabe “falar
bonito”, sabe usar a língua para fazer também um tipo de poesia,
onde ele diz coisas que ele precisa dizer para todos como representante de todos.
Para aprender e falar outros gêneros (tipos) de arte verbal
precisa memorizar um texto oral palavra por palavra, frase por frase. Assim é para a “conversa de chefe” (anetü itaginhu) dos Kuikuro
e para as “rezas”(kehegé) Kuikuro. Vocês lembram da kehegé, da “reza”
que o Prof. Sepé Kuikuro mostrou na Jornada de janeiro passado?
Olhem aqui só um pedaço da “conversa de chefe” em
Kuikuro. O chefe “conversa” na abertura das grandes festas que reúnem as aldeias alto-xinguanas, como no Kwaryp:
transcrição ortográfica:
taloki geleha ngingoku atsakugatai geleha igei wãke
itsuginhitomi geleha ngingoku atsakugatai geleha igei wãke
kukotomoko atai hüle wãke
angolote hüle wãke
ngingoku kuginhitomi atai hüle gele wãke
isagagengoila geleha ngingoku atsakugatai geleha ige wãke
tradução:
por nada os mensageiros ainda correm agora como sempre
para recepcioná-los ainda os mensageiros devem estar para correr agora como
sempre
45
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
no tempo dos nossos todavia como sempre
todavia verdadeiro como sempre
para recepcionar os mensageiros todavia ainda como sempre
(para) alguém não igual a ele os mensageiros devem estar para correr agora
como sempre
Que outros exemplos podemos dar de discurso que é arte
da palavra, poética?
A poesia oral é totalmente clara nos cantos que têm palavras. Vou deixar com vocês só alguns exemplos. Outros exemplos é
para vocês procurarem.
O canto da castanheira dos Araweté
(em Eduardo Viveiros de Castro, “Araweté, os deuses canibais”,)
É um canto dos pajé Araweté, povo tupi-guarani do vale do
rio Xingu (Para); esse tipo de canto se chama Maï marakã, “canto/
música do morto”.
Bloco I
1. Mari mõ pa ne ia’i cho rarawõni ye?
2. Mari mõ pa Maï ia’i oho rarawõni-wõni ˆka ye Modida-ro?
3. Mari mõ na há Maï yiyehã-we ia’i ˆwã narawõni-wõni ye?
4. Ka Maï reka ia’i ˆwã narawõni-wõni neka ye, Arariña-no
5. Ka Maï reka ia’i oho rarawõni-wõni
1. Por que você empluma a grande castanheira?
2. Por que os deuses estão emplumando a grande castanheira, Modida-ro?
3. Por que os deuses solteiros emplumam a face da castanheira?
4. Eis aqui os deuses, a emplumar a face da castanheira, Arariña-no
5. Eis aqui os deuses emplumando a grande castanheira
46
AS ARTES DA PALAVRA
Cantos sonhados dos Parakanã
(em Carlos Fausto, “Inimigos Fiéis”)
Cantos dos Parakanã, povo tupi-guarani do vale do rio Xingu
(Pará). Foi um pajé que ouviu o canto em sonho, cantado por Amyna
(Topoa), o deus da chuva:
Eawyripé ke enaro-narongoho eha
E naro-narongoho eha
E naro-narongoho eha
Paranomokoa eremono-monon-owé
Paranomokoa eremono-monon-owé
Em tua casa, vai trovejar-vejar
Vai trovejar-vejar
Vai trovejar-vejar
O longo rio tu fizeste transbordar-bordar
O longo rio tu fizeste transbordar-bordar
Este outro canto foi dado no sonho pelo pássaro pavãozinhodo-Pará a outro pajé Parakanã:
Ywy’atomawohoa pa, i’i pa neopé
Jakare’iohoa neopé
Jawajiohoa neopé
Tamamne karahiwa hiropeté
Ijy’aroka
A terra endureceu? Ele disse para ti
Pavãozinho para ti
Martim-pescador para ti
Para com o canto prosseguir
Coração transplantar
47
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Cantos dos Kuikuro (Alto Xingu, MT)
Canto tolo:
egete Agitologúte
uótonu ehünéke
Makaigí kengüa
uótonu ehünéke
Lá, em AFitolóFu
sentirei saudade de ti
lá, na terra dos Bakairí
sentirei saudade de ti
Canto kagutu:
kukingike(ni) Majugika(ni)
tisingike(ni) Majugika(ni)
uhisü heke ukilü
uhisü heke ukilü egei
egene geleha kukignike(ni)
Majugika heke ukilü
olhe-me, Majugika
olhe para nós, Majugika
falei para o meu primo
falei lá para o meu primo
olhe-me de lá mesmo
falei para Majugika
Canto kwambü:
ugénipa itsomi
eijatohongo itão
tapogi kutegatomi
ukagapiliale
deixem-me ficar
com duas esposas
estamos indo otimamente
brigando
Os cantos tolo, kagutu e kwambü são cantados nas festas. Os
dois primeiros são as mulheres que cantam. Quando cantam kagutu,
as mulheres cantam as músicas das flautas kagutu que elas não podem ver. Na festa kwambü, mulheres e homens cantam mensagens,
recados, comentários sobre os brancos, sobre ciúme, inveja, namoros, sogros e cunhados, primos e outros temas importantes para a
vida na aldeia.
Estes cantos, discursos, trechos de narrativas, nós podemos
48
AS ARTES DA PALAVRA
ler nesta apostila, mas não podemos esquecer que foram e são falados, ditos, cantados, antes de serem escritos. Na escrita deixamos
longe o som, a música, o ritmo, a expressão dos gestos e dos rostos.
Com a escrita conquistamos coisas e perdemos outras. Eu vejo nas
aldeias muitos jovens que são tomados pela escrita, pelo português
e pelo mundo dos brancos, esquecendo o patrimônio de suas tradições. É um patrimônio, sim, e, lembrem, as tradições não ficam paradas no tempo, elas mudam, renovam-se, criam. A arte, a poética,
servem muito para isso: criar, pensar coisas novas, entender no fundo os acontecimentos de todos os mundos. Estes cantos, discursos,
trechos de narrativas, que nós podemos ler nesta apostila, são somente alguns poucos exemplos de patrimônios culturais que contêm centenas de narrativas, centenas e milhares de cantos, o saber
para “falar bonito” diante dos parentes e dos estrangeiros em sua
própria língua, usando toda a riqueza que ela oferece.
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50
AS ARTES DA PALAVRA
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51
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NO 3º GRAU
INDÍGENA: A EXPERIÊNCIA DOS KAING
ÁNG
KAINGÁ
Márcia Nascimento*
Com a criação do curso de 3º Grau Indígena, no
qual vários estados do Brasil foram contemplados, eu,
Márcia Nascimento, do povo Kaingáng, do estado do Rio
Grande do Sul, estou vivendo uma grande experiência
enquanto professora indígena.
Em março de 2001, prestei vestibular na
UNEMAT de Barra do Bugres, onde concorri com representantes de 13 estados às 20 vagas disponíveis. Lembrome que, naquele dia, ao ver toda aquela multidão de índios no campus da UNEMAT para fazer o vestibular, achei
que seria muito difícil conseguir uma vaga, mas mesmo
assim não perdi a esperança, fiz a prova da melhor maneira possível. No mesmo dia embarcava de volta para a
minha aldeia.
A coordenação do vestibular falou que o resultado sairia dentro de duas semanas, quando então avisaria
os vestibulandos aprovados. As duas semanas que se seguiram foram de muita ansiedade para mim, passaramse quinze, vinte, trinta dias, e nada; julguei logo não ter
conseguido. Fiquei triste, fui me conformando e, finalmente, depois de perder a esperança de ter a minha vaga
no vestibular do 3º Grau Indígena, fui me inscrever para
fazer o vestibular convencional na UNOESC de Chapecó
– SC, para tentar o curso de História.
* Acadêmica do 3º Grau Indígena, professora Kaingáng na aldeia Bananeiras, município de Nonoai - RS.
52
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NO 3º GRAU INDÍGENA: A EXPERIÊNCIA DOS KAINGÁNG
Passados alguns dias, liguei para a FUNAI para esclarecer
algumas dúvidas sobre o meu trabalho; só então foi que a pessoa
responsável pelo setor de educação me informou que eu havia passado no vestibular indígena. Não sei explicar o que exatamente eu
senti naquele momento, era emoção, alegria e tristeza, por saber que
teria que me distanciar da minha família por dois meses durante o
ano, nos próximos cinco anos.
Enquanto era apenas uma possibilidade de conseguir uma
vaga numa universidade distante da minha aldeia, como é a
UNEMAT em Mato Grosso, era um sonho. Mas, no momento em
que essa possibilidade tornou-se realidade, as coisas começaram a
mudar, eu mesma já comecei a achar que era muito longe, e meus
pais então nem se fala, uma vez que nunca havia passado uma noite
longe de casa. Então começamos a discutir os prós e os contras sobre
o meu curso no Mato Grosso. Sentia que meus pais estavam muito
preocupados. Não me falavam, acredito que para não me desanimar, também não faziam nada para me animar. Mas, felizmente,
existem sempre aquelas pessoas que nos aconselham para o bem.
Falando da importância desse curso para o meu povo, ajudaram a convencer o meu pai, que acabou me dando forças pra que
eu me animasse a vir. Neste meio tempo, ficamos sabendo que a
Andila, outra Kaingáng que trabalhou conosco em uma aldeia por
muito tempo, também havia passado e iria cursar este mesmo projeto. Aí, sim, meus pais ficaram animados para que eu viesse e em
poucos dias a minha vinda para eles já era uma questão definida.
E assim, no final de junho de 2001, a FUNAI providenciou
as nossas passagens e embarcamos em Chapecó, onde embarcou o
terceiro Kaingang, o Sandro, que também havia sido contemplado
no vestibular. Assim, juntos, viajamos cerca de 35 horas até chegarmos em Cuiabá. No horário em que chegamos, às 20 horas, não havia ônibus para Barra do Bugres e então ficamos até as duas horas
da manhã na rodoviária, para pegar o primeiro ônibus com destino
a Barra do Bugres. Dessa forma chegamos às 5 horas da manhã na
53
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
cidade. Da rodoviária ligamos para o coordenador do projeto, que
foi nos buscar para levar-nos à escola agrícola, onde ficaríamos hospedados nas etapas presenciais do curso.
Duzentos indígenas no local. Éramos apenas uma das 36
etnias ali representadas. Era tudo preparativo, tudo girava em torno
da abertura oficial do nosso curso. Grupos de acadêmicos se organizavam, ensaiando danças e cantos culturais, fazendo pinturas corporais; autoridades iriam estar presentes, governador do estado,
presidente da FUNAI, prefeitos, deputados etc. Foi um acontecimento
que repercutiu em nível nacional e internacional. Um grupo de 200
acadêmicos indígenas, pela primeira vez na história, entrava numa
universidade para fazer um curso especialmente criado para eles.
Por conta da nossa pele mais clara, as etnias do Mato Grosso
nos perguntavam se éramos índios mesmo e se morávamos em aldeias. Mesmo com a resposta afirmativa, continuavam com ar de
dúvida, nos olhando dos pés à cabeça. O mesmo acontecia com os
acadêmicos dos outros estados, como do Ceará, Paraíba, Bahia, Espírito Santo e Alagoas. E assim foi se criando uma certa animosidade, embora nós não quiséssemos isso; por outro lado, não podíamos
forçá-los a nos respeitar enquanto povo indígena com sua história
de contato e dominação, com mais de 200 anos, como é o caso dos
Kaingáng da região Sul. Nos aliamos aos acadêmicos que se encontravam na mesma situação e dávamos força uns aos outros. Assim as
aulas foram avançando.
A coordenação, percebendo a situação, desenvolveu um trabalho com todas as turmas no auditório da UNEMAT, para debater
o tema “Identidade indígena”. Neste debate veio à tona o problema
que estava acontecendo conosco. Os acadêmicos foram se revezando ao microfone para dizerem o que entendiam por identidade indígena, as respostas foram das mais variadas, desde a cor da pele, o
cabelo, as línguas e também as canções e danças, enfim as práticas
culturais.
Foi nesta oportunidade que nós, acadêmicos dos outros es-
54
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NO 3º GRAU INDÍGENA: A EXPERIÊNCIA DOS KAINGÁNG
tados, reagimos e também pudemos nos revezar ao microfone para
dizer o que pensávamos sobre o que é identidade indígena. Colocamos que a identidade indígena não está só na pele, nos cabelos e na
cor dos olhos, mas sim que se trata de um sentimento interno de se
reconhecer enquanto indígena e ser reconhecido como tal por seu
grupo. Foi feita uma breve retrospectiva do contato, das violências
físicas e culturais a que foram submetidos os povos do litoral, lembrando dos que habitavam essa região e foram extintos.
Foi colocado também, com muita sutileza, o que representaram os povos indígenas do litoral para os povos do interior; que na
época do suposto “descobrimento” do Brasil, servimos de proteção
para que as frentes de expansão demorassem a chegar até eles, de
maneira que os povos indígenas do Mato Grosso foram mais recentemente contactados, quando já havia uma política indigenista de
proteção aos índios em pleno vigor. É claro que essa política
indigenista não foi tão bem feitora, mas que o contato desses povos
foi menos violento, disso temos certeza, eis porque eles têm hoje a
sua cultura mais preservada que a nossa.
Embora tenha havido muitas provocações, o resultado de
todo esse debate foi positivo, pois as etnias do estado de Mato Grosso, conhecendo as nossas histórias, passaram a nos entender e respeitar como povos indígenas, com culturas, crenças e tradições próprios. É claro que as diferenças ainda continuaram, mas agora são
tratadas com muito respeito por todos os acadêmicos do 3º Grau
Indígena. Agora sabem que, diante da sociedade dominante, estamos
no mesmo barco em busca de autonomia, para que sejamos realmente protagonistas das boas transformações de nossas comunidades.
55
FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM
SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS COOPERADOS
DE ENSINO E PESQUISA - INTERMEDIÁRIA
Elias Januário*
A presente comunicação é resultado das reflexões
estabelecidas ao longo do primeiro ano do Projeto 3º Grau
Indígena, particularmente nas atividades desenvolvidas
no decorrer das Etapas de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa – as Etapas Intermediárias.
O Projeto de Formação de Professores Indígenas
em Nível Superior – 3º Grau Indígena, trata-se de uma
proposta de ensino ancorada numa educação específica e
diferenciada, voltada para a realidade das comunidades
indígenas, num constante diálogo intercultural entre os
diversos saberes. Tem como propósito formar professores indígenas em serviço para o exercício da docência nas
escolas das aldeias, respeitando a cosmovisão e os valores das diferentes etnias.
Na esteira de outros projetos de formação em serviço desenvolvidos no estado de Mato Grosso (Projeto
Inajá, Projeto Tucum, Licenciaturas Parceladas, Módulos
Temáticos, Projeto Urucum/Pedra Brilhante, entre outros), o Projeto 3º Grau Indígena também foi idealizado
nessa modalidade diferenciada de formação, onde o professor/cursista realiza o seu processo de formação
concomitante com o exercício da docência, atendendo as* Dr. em Educação, docente no Departamento de História da UNEMAT,
Coordenador do 3º Grau Indígena.
56
FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS...
sim os preceitos da legislação e a demanda existente pela qualificação e habilitação de profissionais para o trabalho nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.
Essas experiências, vivenciadas no estado, de projetos e programas de formação em serviço, em particular na Universidade do
Estado de Mato Grosso, foram fundamentais para a consolidação do
3º Grau Indígena. Possibilitaram que, ao longo de mais de dez anos
formando professores leigos para o exercício da docência, adquiríssemos uma considerável experiência na prática pedagógica, na
estruturação e na articulação política desse modelo de formação de
professores.
A abertura para a inserção nos cursos dos saberes étnicos e
dos processos pedagógicos próprios de ensino e aprendizagem tem
garantido, na prática, o exercício do diálogo intercultural, possibilitando a ressignificação de conteúdos e metodologias, afastando-se
assim da visão universalista e monocultural imprimida às minorias
étnicas no processo educacional civilizatório amplamente
implementado na história da educação escolar indígena brasileira
(Governo do Estado de MT, 2001).
A partir dessa proposta intercultural na prática educativa1 é
que o Projeto desenvolve estratégias que garantem as discussões dos
conhecimentos de caráter geral e específico de cada área de estudo,
propiciando o reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo em
que estabelece uma relação crítica com os conhecimentos universais
por meio da problematização dos conteúdos e da valorização do professor indígena como sujeito nessa relação.
O projeto não tem a pretensão de ensinar todos os conhecimentos existentes da sociedade não-índia, nem seria possível isso,
mas procura, a partir de opções curriculares, instrumentalizar o proA interculturalidade é entendida nesse contexto como uma troca, um diálogo entre
conhecimentos e saberes de diferentes culturas. No entanto, isso não se processa apenas de forma harmoniosa, pacífica, em plena comunhão, mas também em processos
marcados pelo conflito, pela contradição e pela tensão, enfim, pelas relações de
alteridades comuns entre o encontro de coletivos culturalmentes diferenciados.
1
57
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
fessor índio, de modo que ele possa buscar os conhecimentos que
considera importantes para ele e para seu povo, num processo de
formação continuada que extrapola os espaços institucionais de formação.
Sendo assim, entre os objetivos encontra-se a proposição de
conduzir os professores indígenas a conhecerem os códigos simbólicos das diferentes sociedades (indígena e não-indígena), colocando
à disposição os instrumentos fundamentais que precisam para ser
cidadãos, para terem autonomia, para decidir, analisar, planejar e
pensar os projetos de futuro de seus povos, conhecendo as diferentes relações socioculturais em que estão inseridos. Desse modo, a
proposta de educação é pensada e formulada junto com os professores indígenas, considerando o seu saber e do seu povo como um
patrimônio, fazendo com que a ação educativa esteja em consonância com a concepção educativa do grupo, contribuindo dessa forma
para a revitalização e manutenção das práticas culturais de cada povo.
O Projeto 3º Grau Indígena encontra-se estruturado em duas
etapas: uma de Formação Geral, com duração de quatro anos, e uma
de Formação Específica, com duração de um ano. A Etapa de Formação Geral tem como eixo norteador a interdisciplinariedade entre
as diferentes áreas de conhecimentos, a partir de temáticas que possibilitam a criação de um espaço aberto, dinâmico, flexível, criativo,
dialógico, investigativo e problematizador, onde os conteúdos das
diferentes áreas e os saberes das diversas sociedades dialogam, buscando superar a fragmentação das Ciências nos nichos da Química,
História, Biologia, Matemática, Línguas etc. Essa postura acaba rompendo com o modelo criado pela sociedade ocidental, na medida
em que são estabelecidas pontes entre as diferentes áreas,
oportunizando aos cursistas a compreensão dos elementos construtivos da educação escolar indígena e os conhecimentos necessários
para a prática docente no Ensino Fundamental e Médio. A Etapa de
Formação Específica será desenvolvida no último ano do curso e
terá como enfoque principal o desenvolvimento de uma pesquisa
58
FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS...
teórica e/ou de campo (estudo monográfico), numa das três áreas
de terminalidade do projeto (Idem, 2001).
A exemplo de outros projetos de formação de professores
desenvolvidos em Mato Grosso, os Cursos de Licenciatura do 3º Grau
Indígena seguem um calendário específico, composto por duas modalidades letivas. A primeira, de caráter presencial e trabalho intensivo, com carga horária mínima de 190 horas-aula, ocorre semestralmente, coincidindo com o período de férias e recessos escolares dos
professores indígenas (janeiro/fevereiro e julho/agosto). A segunda, de atividades cooperadas de ensino e pesquisa, ocorre nos períodos intermediários entre uma etapa intensiva e outra (março a junho e setembro a dezembro), garantindo aos cursistas conciliarem
suas atividades docentes nas escolas das aldeias com as atividades
do curso de formação (leituras, preparo de resumos, seminários, pesquisas e relatórios). Com isso a práxis docente e o processo de formação ocorrem simultaneamente, num contínuo exercício de comunicação dialógica. Sendo assim, um semestre do Projeto corresponde à
realização de uma Etapa Presencial e uma Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Idem, 2001).
É sobre a Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa – A Etapa Intermediária, que vou dar ênfase nesta comunicação,
tomando como referência o que foi proposto pelo projeto, cotejando
com as observações coletadas no trabalho já realizado de visita às
aldeias, desenvolvido durante duas etapas intermediárias.
Ao término de cada Etapa Intensiva, os acadêmicos levam
consigo um roteiro contendo as atividades das três áreas de conhecimento do Projeto, que devem ser desenvolvidas na Etapa Intermediária, ou seja, no período em que estarão na aldeia.
As atividades contidas no roteiro são atividades compatíveis, seqüenciais e complementares do conteúdo que foi trabalhado
na Etapa Presencial, colocada de maneira clara e acessível, procurando com isso conduzir o cursista a dar continuidade a seus estudos mesmo à distância do campus universitário. As ações da Etapa
59
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Intermediária são pensadas e discutidas na Etapa de Planejamento e
Formação, que antecede o início de cada semestre. Ou seja, o planejamento das etapas é feito em conjunto, garantindo com isso a coerência durante todo o semestre e principalmente a solicitação de atividades de ensino e pesquisa executáveis nas condições que se tem
numa escola ou comunidade indígena.
O roteiro é entregue previamente aos acadêmicos, com as
devidas explicações e recomendações dos docentes e assessores. A
realização da matrícula no semestre subseqüente fica condicionada
à entrega de todos os trabalhos que foram indicados para serem feitos no período em que estão nas aldeias. Esta medida está amparada
pelo Regimento Interno do Projeto e visa a garantir o cumprimento
da carga horária disposta para o semestre letivo.
Apesar de as atividades da Etapa Intermediária serem uma
continuidade da Etapa Presencial, várias de suas ações conduzem à
descoberta de algo, de um novo passo rumo à reflexão e à produção
do conhecimento. Com isso, o conhecimento indígena é amplamente solicitado nas atividades, valorizando o saber local e a diversidade étnico-cultural de cada acadêmico.
Para Carlos Arguello, um dos consultores do Projeto, a etapa intermediária revitaliza “... para a escola os conhecimentos ancestrais
indígenas, valorizar os detentores dos diferentes saberes, diminuir a separação escola-comunidade, permitir a docentes e professores indígenas um conhecimento melhor da realidade das aldeias e das escolas, estabelecer o diálogo direto com a comunidade” (2002: 95).
Essa etapa serve como referência para a elaboração da Etapa
Intensiva seguinte, na medida em que promove a
interdisciplinariedade, trazendo à tona sugestões, temas, questões,
problemas e dificuldades relacionados à escola da aldeia e ao professor indígena, que balizam e redimensionam as competências
cirriculares a serem implementadas no semestre seguinte.
Algumas das atividades solicitadas conduzem o professor
indígena à investigação de diferentes assuntos relacionados com o
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS...
seu povo, promovendo com isso o envolvimento do acadêmico com
a comunidade em que vive. Esse tem sido um dos pontos altos do
trabalho desenvolvido nessa etapa, particularmente nas pesquisas
que necessitam da consulta aos moradores mais velhos da aldeia,
porque acaba envolvendo a comunidade com o projeto e com a formação do professor.
Podemos citar alguns exemplos, como a atividade de Química que estudava o tempo das reações de determinadas substâncias, na qual os acadêmicos tinham que trazer a receita de uma comida e de um remédio. Isso fez com que vários cursistas fossem até os
pajés, os anciãos e as senhoras para ajudarem na atividade. Do mesmo modo ocorreu com a pesquisa sobre os marcadores do tempo
utilizados nas comunidades indígenas, solicitada pela área de Física. Vários professores indígenas tiveram que buscar ajuda dos velhos para realizar essa atividade. Seguindo essa proposta, outras atividades foram solicitadas, como a origem dos números, as medidas
das casas e da aldeia (Matemática), a origem do ser humano e os
elementos constitutivos do espaço da roça (Biologia), o processo de
contato com os não-índios, a história da educação escolar indígena
na aldeia (Ciências Sociais), as narrativas sobre o sol, a lua e as estrelas (Línguas). Enfim, prestigia-se o conhecimento indígena na Etapa
Intermediária ao pedir pequenas pesquisas com assuntos referentes
ao espaço e às práticas socioculturais dos povos indígenas.
Quando o professor/cursista procura os demais membros
da comunidade para obter informações/dados para a realização de
suas atividades, propicia o envolvimento da comunidade indígena
com o projeto e com o seu processo de formação. Estreita com isso o
diálogo e o relacionamento, oportunizando o aprendizado de outros
saberes que eventualmente desconhece. Para as lideranças e os
anciãos, quando os jovens professores procuram os seus saberes e
conhecimentos, isto representa motivo de orgulho e satisfação, pela
valorização das práticas socioculturais do grupo étnico.
Outras atividades são mais direcionadas para o ambiente
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
escolar, para o envolvimento do professor/cursista com a sala de
aula, fazendo com que a sua formação também esteja relacionada
com a sua prática pedagógica. Para isso, solicita-se a elaboração e
execução de planos de aulas sobre Artes, Língua Portuguesa, Ciências, experiências de Química feitas com os alunos, desenhos
temáticos com textos, entre outras.
Existem também aquelas atividades que são individuais,
direcionadas para que o acadêmico faça sozinho, como leituras, elaboração de resumos, exercícios da apostila e relatórios.
As atividades que acontecem no decorrer da Etapa Intermediária propiciam a integração entre ensino e pesquisa, oportunizando
ao professor indígena romper com as fronteiras pedagógicas, afastando-se do lugar comum da sala de aula e colocando em prática a
educação específica e diferenciada. Esse procedimento estimula os
professores na construção do conhecimento escolar e na diversificação de aprendizagens.
A realização de trabalhos coletivos e de grupos de estudos
tem sido um dos grandes desafios da Etapa Intermediária. A maior
parte dos professores indígenas não tem o costume de realizar trabalhos em grupo, de se reunir para estudar, para discutir, pensar
junto as questões da educação escolar. Contribui para isso a própria
geografia das áreas indígenas, onde as distâncias entre as aldeias
são enormes. Mas mesmo os professores indígenas de uma mesma
aldeia ainda têm resistência ao trabalho em grupo. Também é preciso levar em consideração as questões culturais (clãs, diversidade interna, rituais, trabalho na roça, questões políticas etc.) que acabam
sendo uma barreira para o estudo continuado e o trabalho em grupo.
Alguns acadêmicos estão começando a articularem, sistematizarem estudos em grupos onde um ajuda o outro, como por exemplo os acadêmicos Umutina, Rikbaktsa e Nambikwara. A realização
de grupos de estudo, a meu ver, é de grande importância no processo de formação do professor indígena, uma vez que as equipes pe-
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS...
dagógicas, em decorrência de uma série de questões, como as grandes distâncias, a falta de recursos financeiros e humanos, não podem estar com freqüência nas aldeias. A realização dos grupos de
estudo possibilita, além do estudo continuado, a ajuda mútua e a
troca de experiência entre os cursistas, um dos requisitos essenciais
para colocar em prática o exercício da autonomia dos povos indígenas.
O projeto está trabalhando no sentido de fazer o professor
índio buscar a informação, ir à procura de livros, aprender a utilizar
a biblioteca, tentar solucionar os problemas relacionados à escola,
compreender o sistema de ensino e as políticas públicas voltadas
para a educação.
No decorrer do período de cada Etapa Intermediária, a equipe de orientação pedagógica, composta pelos docentes, técnicos e
assessores, visita as aldeias para verificarem junto aos acadêmicos
como anda a realização das atividades, as dificuldades, as dúvidas,
o trabalho do professor na escola. Os encontros acontecem na escola,
na casa do acadêmico, no pátio ou sob as frondosas árvores da aldeia.
Em função de termos cerca de cento e cinqüenta e oito aldeias no projeto, situadas em locais distantes e de difícil acesso, tornase praticamente impossível visitarmos todas a cada semestre. Assim, reunimos pequenos grupos de cursistas em aldeias centrais para
realizar o acompanhamento pedagógico. Com o tempo acabamos
conhecendo todas as aldeias, conversando com as lideranças, com as
famílias, sabendo com maior propriedade a realidade dos acadêmicos e como as ações implementadas no projeto estão repercutindo na
escola e na comunidade indígena. Esse tem sido outro ponto importante para o projeto, porque possibilita discutir com as lideranças e a
comunidade questões relacionadas à educação, conhecendo situações e problemas do cotidiano do professor e da escola indígena.
Com isso, o projeto tem possibilidade de estar em movimento, em direção aos interesses dos povos indígenas envolvidos, possi-
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
bilitando redimensionar as ações dos cursos, tendo como ponto de
partida e de chegada o que esperam e o que desejam as comunidades indígenas da educação escolar. Essa postura é um dos eixos
fundantes do projeto, que se revela flexível e aberto às decisões e
modificações advindas do embate dos grupos, estando as equipes
preparadas para responderem às questões e necessidades que vão
surgindo no decorrer das etapas.
Nietta Monte, ao discorrer acerca da experiência da CPI/
AC sobre a formação de professores, enfatiza a importância de os
professores indígenas participarem efetivamente do processo, onde
“no aspecto pedagógico, o currículo de formação de professores indígenas e
de suas escolas é tema de investigação, parte indispensável da formação profissional e de fortalecimento político dos professores indígenas. Estes se dedicam a pensá-lo, ano a ano, nos cursos de formação e nas atividades desenvolvidas nas aldeias, utilizando-se de instrumentos reflexivos produzidos
ou concebidos nos cursos, na área de pedagogia e pesquisa” (2000: 16).
Gradativamente, estamos procurando proporcionar os instrumentos necessários para o professor/cursista assumir as suas atribuições como acadêmico, a aprender a sistematizar o seu trabalho
na escola, a estudar cotidianamente, a envolver a comunidade no
seu processo de formação e de ensino, buscando encontrar formas
onde dependa cada vez menos da presença do não-índio, no contexto de sua formação e prática docente.
A Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa – A
Etapa Intermediária, possibilita conhecer a realidade educacional e
sociocultural do educando, nos seus diferentes aspectos, com suas
tensões, contradições, perspectivas, ansiedades e sonhos. A presença dos formadores nas aldeias representa motivo de orgulho e satisfação para os acadêmicos, garantindo para a comunidade a seriedade e a especificidade da proposta implementada. Para o Projeto, é
uma oportunidade de avaliar a proposta que está sendo desenvolvida.
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SERVIÇO: A ETAPA DE ESTUDOS...
Andar pela aldeia, cumprimentar as pessoas, conhecer a casa
e a família do acadêmico, saber os hábitos locais, ver de perto as
dificuldades de deslocamento e sobrevivência, ouvir os conselhos
dos anciãos, maravilhar-se com as belezas naturais, surpreender-se
com as danças, cantos, pinturas, artesanato, culinária, enfim, é, também para nós, formadores não-índios, um aprendizado, um exercício de interculturalidade, de reflexão do nosso trabalho, de tolerância e respeito para com a diversidade étnica e cultural dos povos
indígenas.
Bibliografia
ARGUELLO, Carlos Alfredo. “Etnoconhecimento na Escola Indígena”. In: Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra
do Bugres: UNEMAT, v. 1, n. 1, 2002.
GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO. 3º Grau Indígena: Projeto de Formação de Professores Indígenas. Barra do Bugres: UNEMAT;
Brasília: DEDOC/FUNAI, 2001.
JANUÁRIO, Elias. “Ensino Superior para Índios: Um Novo
Paradigma na Educação”. In: Cadernos de Educação Escolar Indígena –
3º Grau Indígena. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 1, n. 1, 2002.
MONTE, Nietta L. “Os Outros, Quem Somos? Formação de Professores Indígenas e Identidades Interculturais”. In: Cadernos de Pesquisa, n. 111. São Paulo: Editora Autores Associados, 2000.
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Foto: Elias Januário
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Foto: Elias Januário
Orientação pedagógica aos professores Rikbaktsa, aldeia Primavera.
Orientação pedagógica aos professores do Parque Indígena do Xingu.
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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM CAMINHO
PARA A AUTONOMIA
Félix Rondon Adugoenau*
O filho do criador supremo pediu a todos que
pregassem o Evangelho e não que civilizassem. No entanto, os nossos antepassados, em nome da “civilidade”,
foram vítimas das atrocidades e crueldades impostas pela
sociedade não-índia. Um dos instrumentos usados para
tal fim foi a escola puramente à moda européia, onde não
era reconhecida a forma de entender e ver o mundo: a
cosmologia indígena. Os processos próprios de aprendizagem dos indígenas foram ignorados, assim como também a sabedoria milenar por eles adquirida. Isso perdurou por muitos anos.
Com o passar do tempo, os indígenas começaram
a se articular, aliando-se com instituições governamentais e não-governamentais, fazendo parcerias com o intuito de reinvidicar os seus direitos. Amparados pela
Constituição de 1988, procuraram melhorar a educação
escolar indígena. Seus gritos ecoaram pelos quatro cantos do país, em várias esferas da sociedade não-índia. Os
professores indígenas, as lideranças e os caciques estavam cientes de que, para a melhoria da qualidade da educação escolar nas aldeias, era preciso capacitar e formar
os seus educadores em todos os níveis, com cursos reconhecidos pelo governo. Travou-se então uma árdua luta
* Acadêmico do 3º Grau Indígena, professor Bororo na aldeia Córrego,
município de Santo Antônio do Leverger, Mato Grosso.
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
para a conquista do 2º Grau (Magistério), com o contingente de 200
indígenas a serem formados em nível Médio, para atender a uma
demanda crescente de alunos. Já no início do Projeto Tucum, mais
uma vez os professores, as lideranças, os caciques e demais parceiros se viram preocupados com o futuro da educação escolar indígena.
Após o encontro da Ameríndia (Cuiabá, 1997), onde os professores indígenas reivindicaram com veemência a formação continuada, o então governador do estado de Mato Grosso, Dante Martins
de Oliveira, assinou um decreto criando uma Comissão
Interinstitucional e Paritária, composta por índios e não-índios. O
objetivo dessa Comissão foi elaborar um anteprojeto para o 3º Grau
Indígena, a ser apresentado e apreciado pelo governo. Durante três
anos a Comissão trabalhou com afinco. O anteprojeto foi ganhando
contornos cada vez mais forte. As proporções foram tornando-se cada
vez mais precisas. Tudo em regime de debates, diálogos abertos e
francos, reflexões e redimensionamento. Além disso, as proposições
não se restringiram apenas à Comissão. O anteprojeto recebeu também críticas e propostas de ONGs, de pessoas que apóiam as lutas
indígenas, das comunidades indígenas, entre outros.
Com o anteprojeto pronto e com fortes rumores de haver a
possibilidade da implantação do 3º Grau Indígena no país, as lideranças indígenas, mais precisamente do estado de Mato Grosso, acompanhavam o desenrolar dos fatos com certa descrença. Os professores indígenas viviam numa expectativa permeada de aflições. Será
que irá mesmo ser implantado? Esta era a pergunta que constantemente se repetia. Uma preocupação, com razão, foram as muitas
pessoas não-índias contrárias ao otimismo relacionado as licenciaturas indígenas; para elas a implantação do 3º Grau Indígena não iria
dar certo em todos os aspectos que se pode imaginar.
Após longa caminhada, iniciaram-se as aulas da I Etapa de
Estudos Presenciais, no mês de julho 2001. No decorrer da primeira
semana, houve a aula inaugural. Como representante eleito pelo
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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM CAMINHO PARA A AUTONOMIA
colegiado de acadêmicos levei ao governador, através de lacônico
discurso, os nossos anseios e aspirações, solicitando apoio e reivindicando a continuidade do andamento do projeto. Houve ainda apresentações tradicionais das etnias presentes na universidade.
No início foi difícil, muitas pessoas estranhas. Em determinados momentos parecia encontro de velhos conhecidos, em outras
circunstâncias, encontro de desconhecidos, de mundos, de pensamentos, de idéias, de realidades.
A primeira observação que fiz foi do choque cultural, em
relação a povos com presença forte da sua cultura tradicional e os
povos com mais tempo de contato com a sociedade envolvente. Até
mesmo eu, senti momentos de fraqueza, fazendo julgamento equivocado sobre as pessoas que não tinham a aparência física tão
marcante como os índios de Mato Grosso.
No primeiro encontro com os novos acadêmicos, percorrendo o meu olhar sobre as pessoas, confesso que pensei estarem no 3º
Grau Indígena pessoas não-índias. Percebi que não foi somente eu
que fiz esse julgamento, pressenti uma leve dicotomia e o início de
uma polarização. Isso ficou mais explícito durante os debates e, se os
docentes não estivessem realmente preparados para uma clientela
com diversos problemas e com histórias tão distintas entre si, o clima acadêmico ficaria desagradável.
A minha convivência com outros povos indígenas durante
as etapas presenciais foi muito importante. Já participei de cursos de
curto prazo com alguns povos, mas no 3º Grau Indígena o
envolvimento foi maior, com trocas de experiências e de idéias. Tem
sido uma grande interação entre povos distintos.
Eu pude sentir os problemas, as dificuldades e, analisandoos, vi que se diferenciam conforme o lugar, o tempo e a política local
dos não-índios. O preconceito e a discriminação ainda são muito
grandes. Com a implantação do 3º Grau Indígena, senti-me
revitalizado, por ter um espaço onde estaremos refletindo a nossa
identidade, a nossa própria autonomia e assim consolidar a educa-
69
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
ção escolar indígena no meu entender. O uso dos temas transversais
tem sido um mecanismo importante para esse fim, porque aborda
tanto questões internas das comunidades, como delas com a sociedade envolvente.
O Ensino Superior indígena traz em seu bojo um significado
bastante amplo para o meu povo, Bororo. Os seus acadêmicos estão
ganhando a confiança e a credibilidade nas comunidades, suas presenças são requisitadas em várias circunstâncias dentro das aldeias.
O que nós, povos indígenas, comungamos e tornamo-nos
cúmplices, é de termos escolas geradas por índios. Para isso não basta somente formar os professores, educadores indígenas, técnicos,
científico, étnico e culturalmente, é imprescindível uma formação
que envolva todo o contexto da comunidade, isso porque são várias
as atribuições dirigidas aos acadêmicos. Eles podem ser por um dia
ou vários dias políticos, assessores do cacique, de lideranças, líderes, responsáveis pela escola, representantes de seu povo em um debate, em uma reunião importante, sem deixar o compromisso de serem professores e educadores. O que espero do Ensino Superior é
uma formação ampla, que dê possibilidades para estar apto na sala
de aula. Se há uma possibilidade de termos uma educação escolar
indígena específica, diferenciada, bilíngüe, intercultural, comunitária, de qualidade e sistematizada, então que seja pensada, elaborada
e executada por nós, índios, com critérios em consonância com a
realidade local.
70
ETNOCENTRISMO E A EXPERIÊNCIA DA
DIVERSIDADE CULTURAL
Chang Whan*
O primeiro contato físico entre membros de diferentes culturas é quase sempre um momento marcante,
de forte impressão. Somos geralmente tomados por um
turbilhão de sentimentos, emoções e racionalizações quando nos deparamos pela primeira vez com o diferente, o
desconhecido, o estranho. De início, por exemplo, somos
muitas vezes tomados por aquela primeira grande força
atrativa que é a curiosidade. Tão forte é este sentimento
que ele quase nos paraliza. Tanto que, não sendo exclusividade única dos seres humanos, muitos animais chegam
a se colocar em situações de extremo risco, arriscando-se
a perder suas vidas por pura curiosidade. O momento
instaura uma certa tensão, e outros sentimentos, como
medo, empatia, desconfiança, admiração, rejeição, simpatia, entre outros, podem também surgir depois, não necessariamente todos, ou nesta ordem, mas certamente alternados por esforços de racionalização, como reflexão,
exame, análise, comparação etc., na tentativa de compreender o novo. Encontros deste tipo são experiências fortes porque passam pela experiência de um paradoxo:
“Eles”, os outros tipos da nossa espécie, são tão
estranhamente diferentes de nós, mas... Por outro lado,
“nós” (“nós e eles”) na realidade, somos tão parecidos...
* Ms. em Antropologia da Arte, docente na etapa de Línguas, Artes e
Literaturas III.
71
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
O que pensar? Como agir? Devemos nos aproximar, ou nos afastar?
São dúvidas que pairam no ar.
Reconhecer o outro talvez seja o melhor primeiro passo. É
preciso reconhecer o outro, o culturalmente diferente, pois ele existe, e está aí, à minha frente, e, neste mundo globalizado do terceiro
milênio, muito provavelmente ele está aí para não mais ir embora.
Reconhecer é o primeiro passo para conhecer. E é só conhecendo
que podemos aprender a respeitar e a lidar com as diferenças. Se
pretendemos que sejamos respeitados dentro de nossas
especificidades culturais devemos então, do mesmo modo, saber respeitar as especificidades do outro, e relativizar os nossos próprios
valores culturais, a nossa visão de mundo.
Aprender sobre o outro significa também aprender mais sobre nós mesmos. O processo de conhecimento passa assim a ser, na
realidade, um processo de crescimento, de auto-conhecimento. Aí
reside a riqueza da oportunidade proporcionada pela experiência
multicultural. A experiência com a alteridade, com o outro, é certamente uma experiência instigante e enriquecedora. Olhar o outro é
como olhar-se no espelho, um espelho que, apesar de não refletir1 a
nossa própria imagem, mas a imagem do outro diferente, faz-nos
refletir sobre a nossa própria aparência física, a nossa identidade, a
nossa bagagem cultural, o nosso modo de ser, enfim, a nossa condição existencial, enquanto fazemos o mesmo sobre o outro que está à
nossa frente, e neste processo compreendendo que é preciso saber
relativizar a nossa própria visão de mundo.
É a oportunidade de compreendermos que os nossos modos
de vida não são os únicos, e tampouco podemos afirmar que sejam
os mais acertados. A grande variedade de formas culturais é resultante de muitos fatores, tais como a trajetória histórica dos povos, as
visões de mundo (incluindo as crenças e o ideário religioso), o meio
ambiente, as soluções encontradas para os problemas, os contatos e
as influências, entre tantos outros.
1
Atentemos aqui para o duplo sentido da palavra refletir: espelhar e pensar.
72
ETNOCENTRISMO E A EXPERIÊNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL
Entre a variedade de sentimentos que podem sobrevir na
relação com o outro cultural, muitos podem ser decorrentes de um
sentimento global reconhecido como etnocentrismo. Na definição
do Novo Dicionário Aurélio, etnocentrismo é a “tendência para considerar a cultura de seu próprio povo como medida de todas as outras”. Ter a própria cultura como referência é de certa forma natural
e compreensível, uma vez que obviamente é ela a que mais conhecemos, e é com ela que enxergamos o mundo e as outras culturas. Tal
perspectiva cultural se revela em muitas das formas de auto-denominação dos povos. Os chineses, por exemplo, nos primórdios de
sua história referiam-se ao seu território de ocupação como “Zhun
Quo”, que significa “a nação central”, nome que perdurou através
dos milênios até os dias atuais. Estavam convictos de que ocupavam
o centro do mundo, pois pouco sabiam ou totalmente desconheciam
o resto do mundo. Hoje, os chineses sabem que seus ancestrais estavam equivocados. Onde, aliás, poderia ser o centro do mundo, se o
mundo é redondo? Os Karajá se auto-denominam como “Inã”, que
vem a significar “gente de verdade”, com isso subtraindo da categoria de gente verdadeira os outros exemplares da espécie humana,
índios, “ixyju”, ou brancos, “tori”. Muitos outros exemplos ainda
podem ser lembrados. Com o progressivo aumento do conhecimento sobre as outras culturas, a visão de mundo etnocêntrica passa a
ser revista e questionada na sua lógica absolutista, sendo colocada
sob novas perspectivas relativizadoras. Os nomes ficam e se perpetuam pois são fortes e têm o peso da tradição, ainda que não reflitam
mais o estado de conhecimento e a compreensão que se tem do mundo.
O orgulho pela própria cultura é certamente um aspecto positivo decorrente do etnocentrismo. Com esse sentimento afirmamse e valorizam-se as formas culturais próprias e reforça-se a autoestima étnica. Para as minorias pode até mesmo atuar como uma
espécie de instinto de presenvação étnica, quando evocado a sobrepujar um esquisito sentimento de vergonha em face das formas cul-
73
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
turais dominantes. Cresce cada vez mais a consciência de que se um
povo não souber se valorizar dento de suas tradições culturais, pouco se pode esperar que outros povos o valorizem e o respeitem. Mas
como a uma faca de dois gumes, é preciso estarmos atentos, pois, se
o orgulho pela própria cultura é uma decorrência positiva do
etnocentrismo, por outro lado esta mesma perspectiva pode também levar-nos a supor que a nossa cultura é enfim melhor que as
outras, que os nossos modos de vida são os mais acertados, que as
nossas crenças e religião são os mais verdadeiros, que as nossas expressões artísticas são mais bonitas, e assim formar-se um tipo de
postura etnocêntrica que nos leva a desenvolver um sentimento de
auto-promoção, que, por sua vez, pode nos levar ao menosprezo pelas formas culturais alheias, e ao preconceito pelo que não é semelhante. “Eles são tão esquisitos... fazem isso, pensam aquilo...”. Equívoco
etnocêntrico novamente. Não é difícil perceber que atitudes
etnocêntricas e preconceituosas como estas são geralmente devidas
ao desconhecimento, ou ao pouco conhecimento, ou a um conhecimento superficial e distante do outro cultural, o semelhante, mas
diferente. Se pensássemos bem e seguíssemos a hipótese de que realmente há um sistema cultural melhor que os demais, certamente
todos haveriam de querer adotá-lo. O mundo seria então todo igual,
“unicultural”, ao invés de “multicultural”. Seria talvez como um rio
em que só houvesse um tipo de peixe. Que pobreza não seria!
Temos portanto, aí, os dois lados de uma mesma moeda, a
moeda do etnocentrismo: o orgulho positivo de afirmação da identidade cultural e étnica, de um lado, e o preconceito e a intolerância
para com o diferente, do outro. A postura sábia e madura estará em
tomar conciência desta dupla faceta para podermos sempre contar
com a sabedoria e o discernimento na hora de considerarmos os nossos semelhantes.
Na experiência do projeto do 3º Grau Indígena podemos distinguir três momentos basilares na proposta de formação de seus
acadêmicos, quais sejam:
74
ETNOCENTRISMO E A EXPERIÊNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL
1) Da reafirmação do saber indígena, do etnoconhecimento,
dos seus modos tradicionais de transmissão de conhecimento, prerrogativa garantida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996;
2) Da apresentação do saber formal institucionalizado, instância em que os acadêmicos têm a oportunidade de compartilhar
dos conteúdos de formação e de informação do 3º Grau convencional;
3) Do aprendizado pragmático decorrente diretamente da
experiência do convívio com a diversidade cultural, uma vez que,
reconhecidamente, “a base dessa educação específica e diferenciada é a
interculturalidade, isto é, o diálogo com as culturas” (Januário 2002:18).
Sendo o preconceito cultural, como visto, um dos grandes
empecilhos ao entendimento e à tolerância entre os povos, é exatamente a experiência concreta com o diferente e a diversidade proporcionada pelo Projeto do 3º Grau Indígena que representa uma
grande oportunidade de aprendizado. Na convivência próxima entre etnias e culturas diferentes, o sentimento preconceituoso, fruto
da ignorância e do desconhecimento, pode ser transformado em respeito e tolerância através do conhecimento e da aprendizagem. É
precisamente este o diferencial a mais que o projeto proporciona a
seus acadêmicos em relação ao 3º grau convencional dos grandes
centros urbanos. Como bem sintetiza Silva e Grupioni, a idéia é “...fazer da diferença um trunfo, explorá-la em sua riqueza, possibilitar a troca, o
aprendizado recíproco” (1995).
A diversidade é a riqueza e a vocação da nação brasileira, e,
apesar de todas as perdas culturais e étnicas já sofridas ao longo dos
seus quinhentos anos de história, é ainda pela sua extraordinária
riqueza cultural que o Brasil é reconhecido pelo resto do mundo.
Um caldeirão cultural, para o Brasil vieram imigrantes de todas as
partes do mundo, que, sentindo-se bem acolhidos, sentiram-se em
casa, e trouxeram seus hábitos, seus conhecimentos, suas culturas,
suas formas de vida e de arte, somando e acrescentando sempre à
75
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
rica herança cultural brasileira, admirada pelo mundo todo. É portanto desta multiculturalidade que devemos nos orgulhar, defendendo-a e preservando-a.
Bibliografia
JANUÁRIO, Elias. Ensino Superior para Índios: Um novo paradigma
na Educação. In: Cadernos de Educação Escolar Indígena. 3º Grau Indígena - n. 01, v. 01. Barra do Bugres: UNEMAT, 2002.
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
SILVA, Aracy L. e GRUPIONI, Luis D. B. Educação e Diversidade.
In: Silva, Aracy L. e Grupioni, Luis D. B. A Temática Indígena na
Escola. Brasilia: MEC/MARI/UNESCO, 1995.
76
OFICINA DO PERÍODO: UMA PROPOSTA PARA O
ENSINO PRODUTIVO DE PORTUGUÊS NO
3º GRAU INDÍGENA
Marcus Antonio Rezende Maia*
Este artigo pretende apresentar e discutir os conteúdos trabalhados em Língua Portuguesa na área de Línguas, Artes e Literaturas III do 3º Grau Indígena, que teve
lugar no campus da UNEMAT, em Barra do Bugres, em
julho de 2002. Nas duas etapas anteriores, conforme explicado em artigo1 publicado pela equipe, decidiu-se
priorizar a reflexão sobre conceitos introdutórios fundamentais na área de Lingüística, tais como linguagem, língua, fala, dialeto, gíria, norma etc. E estudar a fonética e a
fonologia das línguas indígenas e do português, visandose a estabelecer uma perspectiva livre de preconceitos sobre os estudos lingüísticos e iniciar a instrumentalização
dos alunos para a análise lingüística. Ao longo dessas duas
etapas, os professores adotaram também a prática de solicitar e corrigir redações em português, com a finalidade
de desenvolver a capacidade de expressão escrita dos alunos, objeto de preocupação não apenas dos docentes da
área de Línguas, mas também das demais áreas, da coordenação do projeto e dos próprios alunos. Esta preocupa* Dr. em Lingüística, Museu Nacional - Processo FUJB-UFRJ n. 6.729-6,
docente e consultor na Etapa de Línguas, Artes e Literaturas III.
1
Franchetto, B.; Sândalo, F.; Maia, M. & Storto, L. “A Construção do
Conhecimento Lingüístico: do Saber do Falante à Pesquisa”. Cadernos de
Educação Escolar Indígena, n. 1, v. 1. Barra do Bugres, MT: UNEMAT,
2002, p. 47-78.
77
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
ção, que viria, posteriormente, a se materializar na decisão consensual
de se oferecer um “reforço” na área de redação, com a proposta de
se destinar uma semana inteira na IV etapa do projeto, em janeiro de
2003, à língua portuguesa, levou-me a desenvolver preliminarmente um módulo sobre redação em português, durante a III Etapa. Este
módulo é o objeto de exame do presente artigo.
A análise das redações escritas pelos alunos revelava um
quadro bastante heterogêneo, onde se podia encontrar tanto a variedade de problemas normalmente existentes, por exemplo, na redação dos meus alunos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ,
quanto problemas mais específicos de expressão em português como
segunda língua, inclusive reveladores do fenômeno conhecido como
“transferência”, no qual estruturas da primeira língua interferem na
expressão oral e escrita da segunda língua.
Diante de situação tão diversificada, chamava a atenção, no
entanto, o fato de que, de modo geral, questões de ortografia e acentuação gráfica eram minoritárias, revelando um treinamento mais
ou menos eficaz de fundo normativo durante a formação escolar que,
embora, sem dúvida, também muito diversificada, parecia haver
obtido algum sucesso no que se refere à grafia dos vocábulos. Por
outro lado, no plano da estrutura sintática descortinava-se um panorama verdadeiramente desalentador, em que se identificavam problemas muito sérios de articulação de orações nos períodos, tanto na
subordinação quanto na coordenação. Se não, analisemos, a título
de exemplo, alguns dos períodos produzidos pelos alunos durante a
primeira etapa de Línguas, Artes e Literatura:
(1) “Durante da semana os trabalhos foram mais clara os
sons das palavras que se usa de maneira falar e de interessar os conhecimentos do professor dar o exemplo e os estudos lingüísticos
como surgiu as idéias com sugestões de expressar e utilização do
uso os sons que se diz, através do conhecimento”.
78
OFICINA DO PERÍODO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO PRODUTIVO DE PORTUGUÊS...
(2) “A metodologia didática, eu acho muito bom, que o professor usou para nós, além disso, nos vão levar o nosso conhecimento”.
(3) “Quando eu o vi que alegria que senti foi muito grande
porque como um amigo igual a este que nunca mais vou encontrar”.
Um exame desses períodos revela a dificuldade de organizar os enunciados em um conjunto minimamente coeso e coerente.
Em (1), há uma enumeração de fatos, justapostos sem paralelismo
ou nexo lógico entre eles, caracterizando uma estrutura de “arrastão”, onde orações independentes e dependentes são atadas entre si
por conectivos inadequados. Em (2), o primeiro sintagma (a
metodologia didática) parece ser um tópico, com o qual o comentário seguinte (eu acho muito bom) não concorda, resultando em um
anacoluto. A terceira oração (que o professor usou para nós) é ambígua entre uma leitura como subordinada substantiva (eu acho muito bom que o professor usou para nós) e uma leitura como adjetiva
extraposta (a metodologia didática que o professor usou para nós).
Em (3), não se consegue estabelecer a oração principal, a menos que
se interprete a oração iniciada por “que alegria” como exclamativa
e, caso decidamos assim, não temos como integrar o material subseqüente no mesmo período.
Os exemplos acima são suficientes para se concluir que
estamos diante de tentativas de transposição de discursos proeminentemente orais para a escrita. Na situação dialógica oral, a enumeração enfadonha de (1) talvez possa funcionar em virtude de recursos gestuais, do jogo de inflexões da voz. Em (2), a pronúncia
provavelmente também contribuiria para esclarecer se o locutor acha
muito bom que o professor tenha usado certa metodologia (valor
substantivo) ou se a metodologia é que é boa (valor adjetivo). Mesmo em (3), a situação face a face poderia permitir que se identificasse com facilidade o tipo da segunda oração. Na escrita, entretanto,
79
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
sem os recursos do som, do gesto e da situação, esses períodos resultam caóticos e mesmo impossíveis de ser interpretados.
Embora não tenhamos tido a ocasião de proceder a um estudo mais metódico e minucioso das redações dos alunos, que nos
permitisse chegar a uma classificação exaustiva das suas
inadequações gramaticais e comunicativas, a análise de muitos exemplos, como os discutidos acima, levou-nos a propor o estudo dos
processos de organização das orações nos períodos como a questão
central a ser trabalhada no curso de Português que projetamos para
a III Etapa de estudos presenciais do 3º Grau Indígena. Esta proposta foi organizada na forma de uma “oficina do período”, a ser continuada na IV Etapa, visando a desenvolver com os alunos uma
metodologia prática de articulação das orações no período que, através da manipulação ativa e sistemática das orações, pudesse vir a
melhorar e ampliar seus recursos de expressão escrita.
Principiamos com o conceito de “perspectiva” que, como tivemos a agradável surpresa de constatar na etapa preparatória, também estava sendo trabalhada pela área de Ciências Matemática e da
Natureza. Procuramos, inicialmente, motivar a compreensão deste
conceito usando ilustrações gráficas do tipo “figura e fundo”, como
aquela em que ora pode se distinguir uma taça, ora se vêem dois
perfis humanos frente a frente. Há também uma outra, lembrada
por um aluno que, inclusive, a desenhou, onde a visão das orelhas
de um coelho pode dar lugar à identificação do bico aberto de um
pato. Ou vice e versa. Esta noção foi instrumental para que pudéssemos introduzir os processos de coordenação e subordinação das orações na unidade do período, tomando como referência bibliográfica
os textos de Garcia e Carone (cf. bibliografia). Discutimos também a
noção de perfil informacional da frase, refletindo em grupo sobre
noções complexas como sujeito/predicado, tópico/comentário, foco
e dêixis, que contaram com a participação ativa das turmas, inclusive para analisar exemplos de construções frasais em algumas línguas indígenas.
80
OFICINA DO PERÍODO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO PRODUTIVO DE PORTUGUÊS...
Nesta fase introdutória, refletimos também com as turmas
sobre dois tipos de evidências psicolingüísticas diretamente relacionadas à questão em tela: a aquisição da oração principal que, geralmente, ocorre antes das subordinadas e a sua maior relevância
perceptual na compreensão oral e escrita. Testes mnemônicos feitos
após a leitura ou audição de períodos têm revelado que a informação contida na oração principal é a que apresenta maior tempo de
retenção na memória de curto prazo. Ainda com o sentido de motivar a compreensão de noções como “período”, “oração”, “oração principal”, “oração subordinada”, “coordenação”, “subordinação”, passamos a analisar um conjunto de dados relevantes, selecionados de
corpus de produção lingüística infantil, textos literários e notícias de
jornais.
Em textos infantis, verificamos o predomínio da coordenação como arranjo linear das orações, mais ou menos dispostas em
ordem cronológica, mas sem a sinuosidade do processo subordinativo
que permite estabelecer de modo mais inequívoco o ponto de vista:
“O papai chegou e aí eu falei com ele e aí ele também falou
comigo e depois a gente foi ver o sítio na televisão com a minha mãe
e a minha irmã, mas ela num ficou muito tempo porque ela precisou
ir pra escola, mas eu fiquei em casa e nem fui pra escola porque hoje
eu num tive a minha aula” (Mei, 3 anos).
Analisamos também trechos de “Vidas Secas” de Graciliano
Ramos, onde a profusão de orações coordenadas parece ser recurso
estilístico usado com maestria para enfatizar a sucessão
indiferenciada dos fatos na mesmice da paisagem árida, expressando, através da monotonia linear da coordenação, a falta de perspectiva das vidas dos retirantes, no que já foi considerada uma representação “chapada” da realidade, que organiza os objetos em um só
plano, ou em fragmentos coordenados numa superfície (cf. Ramos,
1972).
81
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Finalmente, nos concentramos em notícias retiradas de jornais, das páginas de política e esportes, comparando, por exemplo,
estruturas como:
“Confuso, mostrando sentir a ausência de Paulo César, o
cérebro de suas ações ofensivas, o Vasco precisou de dois erros do
juiz J. R. Wright – fato raro em suas atuações – para vencer o Bangu,
ontem, em Moça Bonita, por 2 a 1" (Jornal do Brasil).
“Com um espírito de luta incomum, no segundo tempo, o
que não vinha sendo a tônica do time nos últimos jogos, o Vasco
venceu o Bangu – 2 a 1 – ontem, no Estádio Moça Bonita, apesar de
arbitragem controversa de José Roberto Wrigtht, depois de estar
perdendo de 1 a 0”. (Última Hora)
As notícias, sobre o mesmo jogo, veiculadas no mesmo dia,
por dois jornais do Rio de Janeiro, exemplificam com clareza o estabelecimento dos pontos de vista divergentes através do processo de
subordinação, que permite colocar em perspectiva as orações
concatenadas, sendo a oração principal (sublinhada nos textos) aquela
que expressa a angulação escolhida pelo redator em função da linha
editorial de cada jornal. Se a hipótese da oração principal, mencionada acima, que propõe que a informação codificada na oração principal permaneça por mais tempo na mente do leitor, estiver correta,
é lícito esperar-se que o leitor do Jornal do Brasil construa o seu
modelo mental sobre o jogo, destacando a necessidade do erro do
juiz para garantir a vitória do Vasco, enquanto que o leitor de Última Hora ficará com a imagem principal da vitória, passando o erro
do juiz à condição de subordinada concessiva. Essa constatação se
prolongaria, em algumas turmas, em um debate muito interessante,
sobre linguagem, mídia e ideologia, parecendo-me haver tocado em
uma questão surpreendentemente apaixonante para grande parte
dos alunos. Alguns aspectos dessa questão foram discutidos em sala,
82
OFICINA DO PERÍODO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO PRODUTIVO DE PORTUGUÊS...
tendo-se recorrido a referências teóricas, como “Linguagem, Escrita
e Poder”, de Maurizio Gnerre, e mesmo à “questão de Orwell”, proposta por Noam Chomsky para explicar “como podemos saber tão
pouco, se temos tantas evidências”.
A partir daí, passamos a propor exercícios interpretativos
de “desmontagem ideológica” do período, que consistiam, fundamentalmente, em procurar-se identificar, num primeiro momento, o
ponto de vista principal do período, passando, em seguida, a práticas de reescrita do período, enfatizando-se outros enunciados. Notese que, nessas práticas, procuramos evitar os procedimentos mecânicos de identificação automática da sintaxe da oração principal com
a sua semântica, mas a “descoberta” da noção de ponto de vista levou muitos alunos a buscarem uma explicitação dos critérios através dos quais poderiam expressar uma idéia como a principal do
período. Nesses momentos, a oficina do período pareceu de fato fazer jus ao seu nome: juntavam-se, separavam-se, intercalavam-se
orações, testavam-se conectivos, articulando diferentes ênfases e efeitos. O jogo consistia em se ter apenas um ponto final, fechando os
períodos, a princípio de duas ou três orações, depois avançando para
períodos mais complexos de quatro ou cinco orações. Às vezes comparávamos diferentes maneiras produzidas nas turmas de se conseguir a subordinação: o gerúndio e o particípio preparavam o cenário
onde se desenrolaria a ação principal, as orações adjetivas qualificavam os eventos, mas era a principal que os declarava cabalmente.
Muitas vezes um grupo trabalhava em conjunto, propondo, em seguida, sua “montagem” para ser interpretada por outro, testando se
sua intenção original de comunicação havia de fato sido atingida.
Outras vezes, a construção era coletiva, testando-se cada versão com
ouvido atento. Aliás, o jogo prosódico na leitura em voz alta foi muitas
vezes exercitado em sala para valorizar ou contradizer a articulação
sintática, aplicando-se a competência sintática no desenvolvimento
da competência leitora.
Um outro tipo de exercício produtivo levado a efeito na ofi-
83
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
cina consistiu em se propor três ou quatro enunciados separados,
solicitando-se que fossem articulados três ou quatro vezes, estabelecendo-se, em cada articulação, um ponto de vista principal. Desenvolvemos também a prática de se numerar cada uma das orações no
período, desenhando em seguida o “esquema estrutural do período”, seguindo proposta de Carone (1986). Estes esquemas permitem
visualizar as relações horizontais (coordenação) e as relações verticais (subordinação), possibilitando que se identifiquem mais explicitamente diferentes padrões relacionais dos períodos, incluindo
casos em que há duas orações principais coordenadas entre si ou
uma oração principal em relação a outra, mas subordinada em relação a uma terceira.
Enfim, a proposta de oficina do período deu início à área de
português instrumental no 3º Grau Indígena, devendo ser retomada
no próximo módulo presencial, a fim de continuar-se a desenvolver
a sensibilidade dos alunos para a produção escrita em língua portuguesa, tomando como ponto de partida a conscientização dos mecanismos sintáticos que permitem a expressão de relações semânticas,
lógicas e argumentativas. Na seqüência, planeja-se aprofundar e
exercitar noções como conexões sintáticas, ordem, paralelismo rítmico e sintático, circunstâncias, tópico frasal, parágrafo, avançando
no desenvolvimento das competências redacionais em português de
forma produtiva e integrada ao desenvolvimento da competência
interpretativa.
Bibliografia
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ed. Ática, 1986.
____________. Subordinação e Coordenação – Confrontos e Contrastes.
São Paulo: Ed. Ática, 2001.
CHOMSKY, N. Knowledge of Language. New York: Praeger, 1986.
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OFICINA DO PERÍODO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO PRODUTIVO DE PORTUGUÊS...
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna: aprenda a escrever
aprendendo a pensar. Rio de Janeiro: FGV editora, 2002.
GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
RAMOS, M. L. Fenomenologia da Obra Literária. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
85
O MELHOR MOTIVO PARA SER PROFESSOR É
GOSTAR DE APRENDER
Lucas ‘Ruri´õ*
Comecei a trabalhar na sala de aula da aldeia no
ano de 1978, achando que, para dar aula, era preciso ter o
máximo de conhecimento e domínio das disciplinas que
iria trabalhar durante o ano letivo, seguindo o que se fazia dentro do sistema convencional.
Na época, a minha visão era embaçada, dificultando a minha compreensão das particularidades, das dificuldades individuais ou coletivas de meus alunos na
sala de aula, sendo que ensinar a ler e escrever era entendido como tarefa exclusiva do professor transmissor e conhecedor do ensino sistemático da escola.
A partir de 1990, comecei a acordar, entendendo
e refletindo sobre a minha prática pedagógica, confirmando que eu “aprendi errando”. Entendendo o significado
da escola para o povo Xavante, busquei as informações
compartilhadas e experiências diversificadas para enriquecer, dinamizar e complementar a minha jornada na
sala de aula, descobrindo que a escola não se faz apenas
com quatro paredes, mas também com pessoas e idéias
compartilhadas, acreditando que as ações são muito mais
sinceras do que as palavras ou teorias.
Mergulhando no mundo das crianças, aprendi
que “o melhor motivo para ser professor é gostar de apren* Acadêmico do 3º Grau Indígena, professor Xavante na aldeia Abelinha,
município de Primavera do Leste - MT.
86
O MELHOR MOTIVO PARA SER PROFESSOR É GOSTAR DE APRENDER
der”, por isso não canso de aprender coisas novas, novas experiências, em função da demanda dos alunos Xavante, da comunidade e de
meus colegas de trabalho.
Na perspectiva de garantir um ensino de boa qualidade aos
meus alunos, estou integrado no 3º Grau Indígena, com o objetivo
de estudar, aprender um pouco mais daquilo que os alunos e a comunidade esperam e exigem de cada um de nós: conhecimento científico e autonomia intelectual, a partir de argumentos fundamentados num conhecimento geral da legislação maior, dirigida especificamente à educação escolar indígena específica, diferenciada e bilíngüe. A escola realizada, aquela que “faz a hora, não espera acontecer”, essa toma iniciativa, usando os recursos e potencialidades
para oferecer um ambiente com bom aprendizado a seus alunos, possuindo professores comprometidos, que atuam levando em conta o
seu contexto, procurando superar os estereótipos negativos sobre
carências e dificuldades dos alunos, acreditando no seu potencial e
no de seus alunos. É muito importante aprender com os nossos alunos e a comunidade. Assim estaremos nos aproximando cada vez
mais daquilo que sonhamos como educação escolar indígena diferenciada para cada etnia.
87
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
José de Alencar Simoni*
Déborah de Alencar Simoni**
Matthieu Tubino***
Observações Iniciais
O presente relato tem por objetivo apresentar uma
das atividades de Ciências realizada durante a II Etapa
de Formação de Professores Indígenas, no Projeto 3º Grau
Indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, Campus de Barra do Bugres, cujo tema central foi “Tempo”, realizada em janeiro de 2002.
Também apresentamos um breve resumo da atividade e uma série de observações sobre o desenvolvimento da mesma. Optamos por descrever o objetivo central das atividades sobre o tempo, onde o aspecto fundamental foi a cinética química em seus aspectos
qualitatitivos e semi-quantitativos. Importância maior é
dedicada à correlação entre as atividades experimentais
realizadas e o cotidiano na aldeia, principalmente em relação à preparação e conservação dos alimentos.
* Professor Assistente Doutor - Instituto de Química da Universidade
Estadual de Campinas, docente na Área de Ciências Matemática e da
Natureza II e III.
** Mestranda do Instituto de Química - Universidade Estadual de Campinas, Professora Auxiliar na Área de Ciências Matemática e da Natureza III.
*** Professor Titular - Instituto de Química da Universidade Estadual
de Campinas.
88
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
Introdução
Por que comemos e bebemos todos os dias?
Por que respiramos?
Você já parou para pensar nestas questões?
Será que podemos viver sem energia?
De onde vem a energia que usamos a todo momento?
Não seria de reações químicas que retiramos a energia para
viver? Pense nisto.
Se for verdade que retiramos das reações químicas a energia
para viver, assim, não podemos dizer que viver é uma intrincada
ocorrência de reações químicas?
Fundamentalmente, sim! É claro que nos organismos vivos
as coisas não se passam de maneira simples. Vivemos, sim, devido
às reações químicas que se processam aos milhares, e ao mesmo tempo, em nosso organismo. No ato de pensar coisas boas e coisas ruins,
no ato de amar, de sorrir, de ferir, em todos os momentos, somos
estimulados e estimulamos reações químicas. Nossos atos, movimentos, pensamentos e sensações podem ser entendidos como o
acoplamento de milhares de processos químicos, rápidos ou lentos,
porém sempre presentes.
Quem imaginaria que no ato do amor e na ingestão de um
pedaço de chocolate substâncias semelhantes são produzidas e / ou
liberadas em nosso corpo?
Quando as reações químicas cessam num organismo vivo
podemos ter certeza de que a vida se foi, pelo menos a vida material,
a espiritual já é uma outra história...
Se as reações químicas são assim tão importantes para nós,
por que não tentar entendê-las e controlá-las um pouco melhor? Pelo
menos aquelas que podemos controlar.
Fora do nosso corpo há muitas reações químicas importantes, as quais nos interessa controlar e entender, uma vez que, deste
entendimento, será possível tirar algum proveito.
89
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
A primeira pergunta que precisamos responder, para tentarmos entender as reações químicas é: como sabemos quando ocorre uma reação química? Consideremos um caso simples do nosso
dia-a-dia: um pedaço de madeira, por exemplo, sendo queimado
numa fogueira. É possível, pela cor e pelo cheiro, diferenciar a madeira do carvão e da fumaça formados? Ambos surgiram da queima
da madeira. De outra maneira, também podemos dizer que os materiais iniciais (madeira e oxigênio) são diferentes dos materiais finais
(carvão, gás carbônico e vapor d’água). Veja que os materiais de partida (iniciais) têm propriedades diferentes dos materiais finais. Sempre que se verifica a formação de novos materiais, os quais apresentam propriedades específicas distintas dos materiais iniciais, diz-se
que ocorreu uma reação química. Assim esta queima é um exemplo
de reação química, aliás, a própria fogueira é uma reação química.
Nós podemos usar os nossos sentidos para verificar se houve ou não uma transformação química (reação química). Sempre que
ocorrer uma reação química, onde um material é transformado em
outro, nós “observaremos” alguma mudança.
A velocidade de uma reação química é o tempo que os
reagentes levam para produzir uma certa quantidade de produtos
da reação.
Por que algumas reações químicas são lentas, como o
enferrujamento de um prego, e outras são rápidas, como a explosão
de um rojão? Neste ponto devemos tomar cuidado com os termos
corretos: reação lenta e reação rápida, a primeira se referindo ao caso
em que o tempo de reação é muito grande e, a segunda, em que ele é
pequeno. Um prego leva anos para enferrujar (lenta) enquanto que
um rojão explode em questão de segundos (rápida).
Outra pergunta que pode surgir é: de que me interessa saber quando uma reação é rápida e quando ela é lenta?
Para tentar responder a esta pergunta, façamos uma nova
pergunta: posso eu controlar a velocidade de uma reação química?
Para simplificar, consideremos o caso do prego se enferru-
90
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
jando (ferro sofrendo uma reação química com o oxigênio do ar). Se
eu uso este prego para fazer algum objeto, como um móvel, uma
casa, é importante que este prego não sofra a ação do oxigênio e se
mantenha o maior tempo possível em bom estado, pois só assim meu
objeto terá um longo tempo de vida. Se o prego se enferruja rapidamente, então meu objeto irá se estragar, rapidamente, e isto não é
bom para mim.
Acabamos de ver um bom exemplo de como é interessante
controlar a velocidade das reações químicas.
Mas alguém pode perguntar: no caso anterior, como eu resolveria o problema? O químico, com seu conhecimento pode fazer
uma cobertura do prego com um outro metal (galvanização), o zinco, por exemplo, que faz com que o enferrujamento seja mais lento,
com isto, aumenta o tempo de vida do prego e também de meu objeto. Isto mostra que, algumas vezes, é desejável fazer uma reação
química ser mais lenta, por exemplo, dificultando ou impedindo o
contato dos reagentes, já que isto nos beneficia.
Compare o tempo para uma reação química semelhante a
esta entre o prego e o oxigênio e a da palha de aço (Bombril®) com o
mesmo oxigênio. Quem enferruja mais rapidamente?
Será que há situações em que é desejável fazer com que a
reação química seja mais rápida? Os exemplos para esta situação são
ainda mais freqüentes no nosso dia-a-dia. Embora alguns alimentos
possam ser consumidos crus, boa parte deles nós precisamos cozinhar antes de consumi-los. Se eu cozinhar o milho verde em fogo
baixo (brando) o cozimento será bem lento. Em panela aberta, isto
poderia levar mais de uma hora. No entanto, se eu utilizar uma panela de pressão e fogo alto, o cozimento se processará em menos de
30 minutos. Vemos aí um caso no qual nos interessa aumentar a velocidade de uma reação química.
Alguns poderão estranhar o fato de chamarmos de reação
química o cozimento do milho, mas podemos afirmar que não é apenas uma reação química que está se processando neste caso, mas,
91
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
sim, muitas reações químicas ao mesmo tempo, mas isto já é uma
outra história.
Muitos outros exemplos poderiam ser utilizados para justificar o estudo da velocidade de uma reação química, porém vamos
para outros aspectos mais fundamentais.
Princípios em que se baseia a conservação de alimentos
De quanto em quanto tempo você precisa trocar o telhado
de sua casa?
Por que isto acontece?
Como você faz para que esta troca demore o maior tempo
possível?
Em qual época do ano isto leva menor tempo?
Por que a fogueira dentro da oca ajuda a conservar um telhado com folhas de buriti?
Diminuindo a velocidade das reações químicas e preservando os
alimentos
A fumaça e o moquear
Questões importantes no seu dia-a-dia estão relacionadas aos
alimentos que você consome. É um hábito comum aos povos indígenas, e também para os não indígenas, a defumação de alimentos,
especialmente as carnes.
A carne defumada dura mais tempo ou menos tempo do
que a carne fresca?
Os frutos transformados em doce duram mais tempo ou
menos tempo do que as frutas frescas?
Uma fruta no pé dura mais tempo ou menos tempo que uma
apanhada?
Quando um alimento se estraga, percebemos modificações
em seu cheiro, cor e aspecto. Essas modificações indicam que estão
92
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
ocorrendo reações químicas nesse alimento. A grande maioria das
reações químicas que levam um alimento a se estragar são realizadas por seres vivos muito pequenos, muitos deles somente visíveis
ao microscópio: os microorganismos (bactérias e fungos).
O que nos serve de alimento é também alimento para outros
seres, especialmente os microorganismos. Enquanto estes
microorganismos se alimentam, produzem substâncias que mudam
a cor, o cheiro e o sabor do alimento. Ao encontrar muito alimento,
todos os seres vivos, inclusive nós e os microorganismos se multiplicam rapidamente.
UM ALIMENTO SE ESTRAGA DEVIDO A REAÇÕES
QUÍMICAS
REALIZADAS
POR
MICROORGANISMOS. QUANTO MAIOR O NÚMERO DE MICROORGANISMOS, MAIS DEPRESSA OS ALIMENTOS SE ESTRAGAM!
Para fazer com que um alimento dure mais tempo deve-se
impedir a multiplicação dos microorganismos. Com isso evitam-se
reações químicas indesejáveis que levam o alimento a se estragar.
Os casos de defumação e moqueamento são exemplos típicos de morte dos microorganismos por ação química da fumaça
(aldeídos, ácidos alifáticos, álcoois, cetonas, fenóis, ceras e resinas) e
pelo aumento da temperatura (perda de água dos alimentos). Em
ambos os casos há uma diminuição significativa do número de
microorganismos presentes no alimento. Assim, as reações químicas
indesejáveis, efetuadas pelos microorganismos, ocorrem em menor
extensão e aquilo que estraga nosso alimento leva mais tempo para
acontecer.
Dizer que leva maior tempo para ocorrer significa que o processo de deterioração é mais lento, mais vagaroso, ou seja, há um
aumento do tempo das reações de deterioração.
Em relação a este aspecto, há um relato curioso em sala de
93
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
aula. Em uma das turmas do 3º Grau Indígena foi perguntado sobre
o tempo que cada alimento é preservado quando se faz uma
defumação. A discordância foi geral. Alguns diziam três dias, enquanto outros afirmavam que poderia ser de até meses. É evidente
que não se chegou a um denominador comum, já que ambos os extremos estavam corretos.
O tempo de preservação nestes casos de defumação e
moqueamento, este último mais curto, vai depender das condições
do processo de conservação, do tipo de alimento e também de outros fatores, como: condições de armazenamento, condições da
defumação (tempo e temperatura), superfície exposta do alimento,
tipo de contaminante presente e muitas outras variáveis do processo. Mas uma coisa é certa: “um alimento defumado ou moqueado
leva muito mais tempo para se deteriorar”.
Temperatura
Nós já vimos anteriormente que a defumação e o
moqueamento são processos que levam em conta a ação da temperatura na eliminação da água presente nos alimentos, e, com isso, há
uma dificuldade a mais para o desenvolvimento dos
microorganismos que decompõem as carnes.
- Haveria outros tipos de uso da temperatura para retardar
o desenvolvimento de microorganismos e, com isso, retardar a deterioração dos alimentos?
A temperatura pode nos ajudar de diversas maneiras na conservação dos alimentos. Quando fazemos uso da temperatura, como
ocorre nos processos de esterilização térmica LTLT (aquecimento
lento e baixa temperatura), HTST (aquecimento rápido e alta temperatura) e UHT ( aquecimento ultra rápido e alta temperatura) o tempo de conservação dos alimentos aumenta, pois eliminamos ou diminuímos a população dos microorganismos que deterioram o alimento.
Depois desses processos de esterilização por altas tempera-
94
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
turas, podemos usar a baixa temperatura para a conservação dos
alimentos. Uma carne fresca de caça pode, por exemplo, ser conservada em um igarapé, por até oito horas, desde que esteja protegida.
Um meio mais seguro de preservação é o resfriamento, normalmente obtido em geladeiras. Nestes casos, um alimento fresco poderá
ser conservado por até 3 dias. Para conservação mais prolongada, o
uso de câmaras frigoríficas ou freezers permite uma conservação de
até seis meses, mesmo em se tratando de carnes cruas.
Dessa forma concluímos que a temperatura poderá nos ajudar na conservação dos alimentos, tanto pelo seu aumento na etapa
inicial de preparo do conservado como na sua diminuição no posterior armazenamento.
A água
O crescimento e o metabolismo microbiano exigem a presença de água numa forma disponível. A atividade da água (Aa) é
um índice desta disponibilidade para utilização em reações químicas e crescimento microbiano.
A adição de sólidos como o açúcar e o sal à água irá causar
uma redução no valor da atividade da água (Aa). Quando o valor de
Aa diminui, a água torna-se menos disponível para o crescimento
microbiano e o alimento conserva-se por um tempo mais longo. Para
se ter uma idéia, o valor de Aa para a água pura é 1, e é igual a 0,86
quando se tem 20% de sal de cozinha ou 70% em açúcar (sacarose).
Nestas condições não há a proliferação da maioria das bactérias,
leveduras e fungos, por isso um peixe salgado leva tanto tempo para
se deteriorar.
Para uma boa conservação dos alimentos (reações lentas), o
sal deve penetrar homogeneamente e totalmente nos alimentos. Os
alimentos de volume menor conservam-se facilmente quando salgados a seco e, no caso da carne, a salmoura pode ser obtida dos sucos
do próprio alimento. Mas, em se tratando de um pedaço de carne
grande, de forma irregular é mais prático mergulhá-lo numa sal-
95
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
moura líquida preparada com antecedência.
No caso de doces e compotas, sabemos que quanto mais concentrado (mais açúcar houver) menor será a atividade da água e,
conseqüentemente, maior a conservação do doce.
Por relatos dos alunos do 3º Grau Indígena, percebemos que
estas técnicas de conservação não estão presentes em boa parte das
etnias, mas que seria de grande proveito para elas, uma vez que já
podem adquirir o sal e o açúcar do branco.
Os experimentos realizados e a proposta pedagógica
O tema da II Etapa Intensiva do 3º Grau Indígena foi “Tempo”. Dentro do universo das Ciências da Matemática e da Natureza,
mais especificamente a Química, o tempo é estudado sob o tópico
Cinética Química. Neste tópico estuda-se a influência de fatores como:
temperatura, pressão, estado de agregação e concentração dos
reagentes na velocidade das reações químicas.
Nosso caso não foi diferente. A partir de reações químicas
utilizando materiais do dia-a-dia, como: suco de limão, casca de ovos,
papel alumínio, palha de aço, palitos de fósforos, álcool e açúcar,
entre outros, pudemos estudar a influência dos vários fatores já mencionados.
Concentração: neste caso estudou-se a influência na concentração e na velocidade da reação de dissolução de alumínio metálico
por ácido muriático (concentração).
Temperatura: o efeito da temperatura na velocidade da reação foi estudado observando-se o tempo para dissolver uma certa
quantidade de açúcar cristal em um certo volume de água à temperatura ambiente e em água aquecida.
Estado de Agregação: estudou-se a influência do estado de
agregação de carbonato de cálcio (casca de ovo) na velocidade da
reação de decomposição deste carbonato com vinagre.
Vale ressaltar que, antes de efetuarmos o estudo da cinética,
96
REAÇÕES QUÍMICAS: AS ESSÊNCIAS DA VIDA
os alunos realizaram experimentos para descrever as propriedades
de várias substâncias, depois fizeram experimentos para verificar os
critérios para se estabelecer a ocorrência ou não de reação química e
só depois de realizar todos estes experimentos é que fizeram os estudos cinéticos.
Após este estudo experimental da cinética química procuramos fazer uma analogia com o cotidiano da aldeia, no que concerne
à preparação, conservação e consumo de alimentos. A idéia central
do nosso projeto, em relação ao tema proposto, sempre foi a de estabelecer esta ligação: prática experimental – cotidiano indígena.
Discussão final
Os alunos não tiveram qualquer dificuldade em realizar os
experimentos. O manuseio do material foi feito de maneira consciente e correta. Não foi registrado nenhum incidente ou acidente durante a realização destes experimentos, o que demonstra o perfeito
entendimento dos alunos no trato de materiais “diferentes” do seu
cotidiano.
Na interpretação dos dados e na leitura de alguns resultados, pudemos perceber alguma dificuldade. Alguns alunos, num
determinado experimento, por exemplo, confundiam o desprendimento de gases com as cascas dos ovos efetuando o movimento de
sobe e desce dentro do copo de água com ácido.
Num outro experimento da reação de uma bolinha de papel
alumínio com ácido, houve alguma dificuldade em estabelecer o tempo para a reação mais rápida, pois o final do processo era muito
rápido e ocorria de maneira brusca.
Como havíamos dito que o desprendimento de gases era um
dos critérios para definir a ocorrência de uma reação química, alguns estudantes começaram a associar a saída de gases em refrigerantes com uma reação química, o que não é verdadeiro.
Também mostramos como a temperatura pode atuar na con-
97
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
servação e na fabricação dos alimentos. Quando resfriamos uma comida, para aqueles que têm geladeira, retardamos o processo de
decomposição de comidas como carnes e frutas.
Ficou evidente, também, que o aumento da superfície de
contato entre reagentes acelera a velocidade das reações, quando fizemos uma comparação entre conservar um pedaço de carne picada
e outro em um só pedaço.
Acreditamos que se os estudos realizados não houvessem
sido correlacionados ao dia-a-dia do estudante, os mesmos não se
interessariam pelo assunto. Por isso mesmo procuramos correlacionálos ao seu cotidiano. Procuramos apontar processos nos quais eles
retardam as reações químicas, como por exemplo no processo de
moqueamento e defumação de carnes e também na salga de carnes e
peixes. Também mostramos que alguns tipos de alimentos, como a
carne de peixe, “reagem” (decompõem-se) mais rapidamente do que
outros, como a carne de mamíferos.
Bibliografia
ROCHA FILHO, R. C. Femtoquímica: reações químicas em tempo
real. In: Química Nova na Escola 10. 1999.
MORTIMER, E. F. Transformações – concepções de estudantes sobre reações químicas. In: Química Nova na Escola 2. 1995.
ATKINS, P.; JONES, L. Princípios de Química. Porto Alegre: Bookman,
2001.
98
LITERATURA
E
EDUCAÇÃO INDÍGENA
Cláudia Neiva de Matos*
No primeiro número dos Cadernos de Educação
Escolar Indígena, publicado em agosto de 2002, eram expostos dados e reflexões sobre as disciplinas oferecidas
nas duas primeiras etapas do Projeto 3° Grau Indígena,
implementado em Mato Grosso pela UNEMAT, SEDUC
e FUNAI. Na seqüência dessas exposições, venho tecer
alguns comentários sobre o trabalho com Literatura neste
mesmo contexto, ideológica e pedagogicamente
caraterizado por princípios e procedimentos de educação diferenciada, específica, bilíngüe e intercultural.
Foi na III Etapa presencial, em julho de 2002, que
pela primeira vez se ofereceu, neste projeto, um curso da
disciplina consagrada especificamente aos estudos literários. Também, no quadro geral da educação indígena no
Brasil, ainda não é freqüente que os usos artísticos da linguagem ocupem espaço próprio na grade curricular. Não
se pode portanto fazer economia das questões que isso
levanta, a começar pelas mais simples e abrangentes: que
significa a presença de uma disciplina chamada “Literatura” no currículo de formação de professores indígenas?
Quais são seus pressupostos teóricos, seus objetivos pedagógicos? Que papel a Literatura deve cumprir na formação do professor indígena? E quais podem ser os desdobramentos dessa formação disciplinar na atuação dos
professores nas escolas das aldeias?
* Doutora em Letras, professora de Literatura na UFF, docente na Etapa
de Línguas, Artes e Literaturas III.
99
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
No 3° Grau Indígena da UNEMAT, a disciplina Literatura
está alocada na área de Línguas, Artes e Literatura, ao lado de Língua portuguesa, Lingüística e Artes. Tal como esta última, trata de
questões estéticas e expressivas; tal como as duas primeiras, explora
os territórios da linguagem verbal. São muito consistentes as afinidades e interações potenciais entre elas todas, como apontaram os
professores responsáveis pela subárea de Lingüística:
“Conhecer a língua é pré-requisito para falar de análise do discurso; uma análise do discurso atenta aos contextos sociais e culturais permite
falar dos gêneros de arte verbal, sua universalidade e especificidades, como a
narrativa (mítica, ficcional, histórica), a oratória, a poética etc. O ritmo está
nas línguas e nas formas de arte verbal, sobretudo em sociedades de tradição
oral (mas não somente). Ritmo, simetria, representação (em seus vários níveis) atravessam a linguagem, as línguas e as artes. Consideramos que esta
maneira de construir as relações entre as três sub-áreas – uma entre as possíveis – é interessante, não trivial, para docentes e discentes” (Franchetto
et alii, 2002: 50-51).
Na denominação geral da área, entretanto, chama atenção o
tratamento singular dado ao termo “literatura”, enquanto os termos
“línguas” e “artes” encontram-se devidamente pluralizados, o primeiro por referir-se ao conjunto de idiomas concernidos pelo programa – grande número de línguas indígenas, além do português -,
o segundo por indicar uma variedade de sistemas estéticos, manifestações e práticas criativas, suportes e técnicas no domínio das artes visuais. Acredito que, no decorrer do Projeto, esse espectro possa
ser ampliado e aprofundado – por exemplo, com a inclusão de abordagens do campo musical. E certamente se evidenciará a conveniência de também pluralizar o termo “literatura”: porque o sentido que
lhe dermos deverá estar aberto à pluralidade de manifestações de
arte verbal das diversas culturas concernidas, indígenas e não-indígenas, de dominância oral ou escrita; e porque o próprio fato de
pautarmos nossa abordagem por uma ótica valorizadora das linguagens poéticas externas ao cânone ocidental nos conduz a
100
LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA
descompartimentar e problematizar a idéia que fazemos sobre o que
é “literatura”.
É no sentido indicado por tais considerações que passo agora a expor e discutir alguns aspectos do estudo/ensino de
Literatura(s) no âmbito da educação indígena.
Começo sublinhando que, no trato das questões literárias
(mas tenho certeza de que a maioria dos docentes das outras disciplinas, neste e em outros programas, concorda comigo), trabalhar
com os professores-cursistas indígenas é sob vários aspectos especialmente fácil e produtivo. Menos propensos que os estudantes “brancos” da cidade à censura e à insegurança provocadas pelo sistema
de ensino “civilizado”, são eles pródigos em oferecer feed-back aos
estímulos e problemas levantados em classe, facilitando um fluxo
comunicativo precioso, notadamente para operações de percepção,
discussão e produção poéticas. Mostram também grande capacidade de concentração e esforço de compreensão, atitudes que entre os
estudantes não índios são freqüentemente negligenciadas em prol
do empenho na retenção de informação. Destaque-se além disso seu
alto grau de sensibilidade e disponibilidade para a fruição dos aspectos lúdicos e estéticos dos textos.
Por outro lado, como acontece aliás em qualquer disciplina,
colocam-se muitas dúvidas e delicadezas quanto à organização básica de um curso de Literatura para professores indígenas: prioridades, conteúdos, materiais e métodos pedagógicos adequados à
especificidade de suas culturas e de sua inserção no quadro social
do país. Neste sentido, é preciso estar disposto a retificar constantemente os planos iniciais de um curso; e a aptidão para tais retificações, isto é, a disposição para responder às colocações e necessidades do grupo, fazendo da atividade pedagógica uma forma efetiva
de troca cultural, constitui-se afinal num verdadeiro princípio de
trabalho. Porque, muito mais do que transmitir conhecimentos e competências, no caso da construção de um quadro educacional indígena, trata-se de viabilizar e apoiar a elaboração de algo com caracte-
101
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
rísticas particulares e novas. O que, e de que forma, importa praticar
nas escolas da floresta? E, questão subordinada à primeira, porém
mais imediata em nosso caso, o que e de que forma importa praticar
na formação dos professores que atuam nessas escolas?
As sugestões que podemos oferecer a respeito de tais questões são fruto de uma experiência ainda incipiente. Sublinhe-se ainda que é sobretudo aos próprios agentes de educação indígenas que
cabe dar conta delas, numa perspectiva de educação e ação social
que não pretende impor concepções e condutas, mas assegurar condições para a afirmação e expansão de personalidades culturais diferenciadas.
O problema já se manifesta na denominação da disciplina.
Vale recordar aqui os primeiros passos de minha atuação em educação indígena, em 1994, quando estava tratando de elaborar e oferecer, na ONG Comissão Pró-Índio do Acre, o primeiro curso especificamente voltado para questões literárias naquele programa de formação de professores indígenas. Propus inicialmente à instituição
um curso intitulado “Iniciação à linguagem literária”, mas, uma vez
encetadas as aulas, logo decidi abandonar essa expressão carregada
de ranço acadêmico em favor de um termo mais abrangente, mais
“bonito” e mais adequado à captação imediata pelo público envolvido: “poesia”. Íamos simplesmente tratar de Poesia – coisa de que
todo mundo já ouviu falar e sobre o que tem alguma idéia mais ou
menos formada.
“Poesia” foi portanto a noção com a qual iniciamos os estudos literários na CP-I/AC, em 1994, como parte da formação de professores indígenas em nível de 2° grau. No 3° Grau Indígena da
UNEMAT, em 2002, o ponto de partida foi a idéia de “linguagem
poética”, elaborada com base no confronto com outros tipos de linguagem: científica, técnica, jornalística, coloquial etc. Em qualquer
caso, o importante é que o conceito seja construído pelo conjunto
dos professores-cursistas e por cada um individualmente, com base
em experiências de recepção de textos escritos ou orais/oralizados,
102
LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA
mas sobretudo em conexão com os repertórios discursivos representativos de suas próprias experiências lingüísticas, estéticas e culturais.
Na III Etapa presencial, o primeiro passo no curso de Literatura foi a leitura de textos diversificados, abrangendo discursos de
matriz indígena e não-indígena, oral e escrita. Com base em abordagens comparativas, tentamos encetar coletivamente a construção de
uma noção de linguagem poética. Evidentemente, não se tratou de
nomear ou distinguir autores, obras, escolas literárias. Não se privilegiou a transmissão de informações sobre o sistema literário nem se
investiu na aquisição de nomenclaturas ou espectros conceituais. A
pouca terminologia especializada que comparecia em nossas atividades remetia a conceitos muito simples, ligados a uma descrição
técnica do texto poético: verso, prosa, ritmo, rima, imagem etc.
Os professores/estudantes indígenas costumam reagir com
interesse e sensibilidade à abordagem de textualidades poéticas,
expressivas e criativas. Na escola “branca”, ao contrário, uma deficiência pedagógica pertinaz (muito mais do que o alto consumo de
histórias em quadrinhos ou programas de televisão, aos quais
freqüentemente se imputou a culpa pelo desapego dos alunos à leitura) é capaz de criar nos estudantes certa resistência a textos que
consideram difíceis ou chatos na mesma medida em que são percebidos como “literários”. Muitos professores atualmente tentam contornar o problema trabalhando, por exemplo, com letras de canções.
Mas também textos sem dimensão melódica podem, mediante um
adequado tratamento pedagógico, ganhar voz, incrementando as possibilidades de uma recepção ricamente intelectiva, emocionada e/
ou lúdica (cf. MEDEIROS, 2001: passim). É fundamental explorar
pedagogicamente o prazer do texto, mesmo porque, como lembra
Paul Zumthor (2000: 29), “para o leitor, esse prazer constitui o critério
principal, muitas vezes o único, de poeticidade (literariedade)”.
Importa não “bacharelizar” a literatura, não convertê-la em
fator de status social, nem solenizá-la como ícone histórico. Se a his-
103
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
tória literária tem-se mantido como a forma predominante de ensinar literatura, isso se deve em boa parte à dificuldade, experimentada inclusive por muitos docentes, de promover e explorar a riqueza
das performances receptivas, estabelecendo com os textos uma relação mais íntima, de alma e corpo presentes. A experiência que tenho
de trabalho com professores indígenas aponta boas condições para
praticarmos esse tipo de abordagem, descartando qualquer protocolo de espírito museológico. Toda literatura que vale a pena é viva e
contemporânea, assim como um canto ritual, haja ele surgido num
tempo imemorial entre ancestrais humanos e espíritos da natureza,
tem de ser vivo e atual para poder funcionar e significar.
Em boa medida, a conduta pedagógica assim sugerida implica pôr em cheque a noção tradicional e o próprio termo “literatura”, historicamente vinculados a ideologias de caráter elitista e a
poéticas de feição canônica. Além de tentar adequar-se às necessidades e peculiaridades do corpo discente do projeto, essa postura participa de uma problematização do campo literário que vem sendo
levada a cabo nas últimas décadas, estimulada por diferentes fatores, alguns dos quais me contento em mencionar de passagem: as
diluições pós-modernas de circunscrições artísticas e estatutos semânticos; a expansão e evolução da etnopoética; a constituição de
campos textuais regidos pela “nova oralidade” mediatizada de que
fala Paul Zumthor (1997:28); o desenvolvimento do estudo e da compreensão de muitas formas de literatura vocal; o interesse pela
performance como elemento fundamental em vários modos de comunicação estética; os condicionamentos e reações da produção literária em face dos imperativos do mercado e da indústria cultural.
Segundo apontava Zumthor em 1990, grande parte do intelecto universitário padeceria do que ele chamou de “preconceito literário” e estaria assim precisando fazer um esforço de “desalienação
crítica”. Para isso, é necessário romper os limites da própria literatura, esta noção “historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo”, que desde o século XVII se refere a um domínio
104
LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA
restrito da cultura ocidental. Zumthor faz questão de distingui-la
“claramente da idéia de poesia, que é [para ele] a de uma arte da linguagem
humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas
estruturas antropológicas mais profundas” (ZUMTHOR, 2000:15). Essa
perspectiva abre um largo caminho de articulação entre as variadas
experiências (indígenas e não indígenas) de arte verbal presentes no
ambiente intercultural dos programas de educação indígena. O território em comum é balizado por uma noção tão simples quanto seminal: “A ‘poesia’ (se a entendemos como o que há de permanente no fenômeno que, para nós, tomou a forma da ‘literatura’) repousa em última análise sobre um fato de ritualização da linguagem” (id. ibid.: 36).
O redimensionamento do campo poético/literário no sentido de torná-lo mais inclusivo não acarreta afrouxamento ou rarefação da nossa percepção estética, mas sim a possibilidade de garantir
conexões dessa percepção, e do pensamento crítico que lhe é correlato,
com formas diferenciais e não-hegemônicas de arte verbal: da vanguarda mais radical e cosmopolita aos discursos mais populares ou
tradicionais. Nesse quadro, destaca-se o resgate de numerosas modalidades de vocalidade poética, cuja importância veio se afirmando nas últimas décadas, inclusive no campo da literatura escrita.
Uma das questões que se colocam para o ensino de literatura na atualidade, em qualquer contexto escolar mas, particularmente na escola indígena e na formação de seus professores, há de ser
esta: como criar as condições para fazer uso e tirar partido, no trato
pedagógico com formas poéticas de discurso, da poderosa energia
comunicativa da voz? Em contraposição ao grafocentrismo que determinou durante os últimos séculos a circunscrição social e estética
da literatura e do seu ensino, é o medium oral ou vocal que melhor
acolhe e estimula a performance estética de um discurso; é nele que
podem associar-se as formas mais ancestrais e mais contemporâneas
de comunicação poética. No caso da educação indígena, a exploração áudio-vocal do poema, por si só uma prática estimulante e
sensibilizadora de qualquer estudo de poesia, é um procedimento
105
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
que nos aproxima e nos capacita a tirar melhor proveito da experiência de arte verbal já trazida pelos professores-cursistas. Ele se inscreve também no quadro geral de valorização da cultura oral que
tem sido sublinhado e encarecido no âmbito das outras disciplinas,
como apontou a profª Susana M. G. Guimarães (2002: 31) a propósito das Ciências Sociais no 3° Grau Indígena:
“Temos que nos recordar que as sociedades indígenas, nos dias de
hoje, ainda têm na oralidade um forte mecanismo de reprodução social. O
estudo da força e dinamismo dessa forma de reprodução sociocultural ainda
é pouco desenvolvido. [...] A pedagogia crítica indígena deve pesquisar a
oralidade, seu valor e uso como instrumento pedagógico”.
Evidentemente, o estudo de literatura também é uma ferramenta eficaz para desenvolver as habilidades relativas ao consumo
e produção de textos escritos, e além disso uma atividade fundamental para o aprimoramento da expressão e compreensão em língua portuguesa. Mas estes objetivos não se devem sobrepor a outro,
mais importante, que é o de contribuir para o conhecimento e
revitalização das línguas e culturas dos povos indígenas.
Na presente situação dos cursos de habilitação docente, que
atendem a um público muito diversificado (no caso do 3° Grau Indígena são 36 etnias e 28 línguas nativas), o português é forçosamente
a língua de comunicação geral e de todos os textos trabalhados em
classe, excluindo-se portanto a abordagem dos repertórios originais
em línguas indígenas. Isso reforça a necessidade de capacitar os professores-cursistas a desenvolverem, individualmente e em cooperação com seus colegas da mesma etnia ou grupo lingüístico, uma compreensão mais completa e aparelhada de suas próprias bagagens e
sistemas poéticos. Um objetivo primordial do estudo de Literatura
na licenciatura indígena será portanto estimular e instrumentalizar
tanto a pesquisa, registro e revitalização das tradições e artes verbais orais quanto o desenvolvimento do conhecimento reflexivo sobre esses repertórios. Assim estaremos correspondendo a uma premissa importante da atuação de muitos programas de formação de
106
LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA
professores indígenas na atualidade, que é assegurar os meios para
que eles cumpram, além da função pedagógica, o seu papel de “intelectuais orgânicos”, pesquisadores e auto-etnógrafos.
A multiplicação e elaboração político-pedagógica dos programas de educação indígena diferenciada, específica e bilíngüe no
Brasil já vem produzindo resultados consistentes nessa área, estimulando e instrumentalizando as atividades de recuperação e pesquisa dos vários repertórios de literatura oral nas línguas maternas,
inclusive o registro e observação dos cantos indígenas, domínio de
expressão poético-cultural que tem sido muitíssimo negligenciado
pelos pesquisadores “brancos”, provavelmente devido às dificuldades de documentação e tradução. Essas tarefas, bem como a reflexão
sobre o valor de representação da subjetividade indígena, em seus
aspectos sociais e/ou individuais, que possui o texto poético, cabem
prioritariamente aos próprios intelectuais/professores indígenas.
Quanto aos objetivos escolares, ainda é cedo para avaliar os
níveis e modalidades de aproveitamento pedagógico, nas aldeias,
da formação em Literatura recebida pelos professores indígenas. Mas
já é possível notar, a partir do que foi relatado, por exemplo, pelos
professores da Comissão Pró-Índio com os quais trabalhei, que seus
resultados não repercutem apenas na área de Língua Portuguesa.
Os conteúdos e competências elaborados nas aulas de Literatura
sofreram transformações operacionais bastante livres, criativas e mesmo inesperadas, revertendo-se para procedimentos de comunicação
oral (dramatizações etc.), muitas vezes realizados nas línguas maternas. Nas escolas da floresta, o texto escrito é freqüentemente tomado como referência a partir da qual se retorna – ou se avança –
com vigor e interesse renovados para usos comunitários e interativos
da linguagem.
A produção e leitura de textos poéticos escritos em Português estimula uma fruição, reflexão e elaboração crítica valorizadoras
da própria existência cultural identitária dos diversos povos indígenas, que passam a projetar também na escrita aspectos históricos e
107
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
criativos de sua visão de mundo, práticas estéticas, tradições e expectativas. As conexões entre literatura e cultura, detectadas nos textos indígenas, nos textos “brancos”, e nas aproximações e confrontos
entre eles, são trabalhadas como estímulo e parte integrante do processo de auto-construção, preservação, revitalização e promoção da
cultura identitária.
Também é certo que esse tipo de trabalho vem encaminhando a produção, em línguas maternas, em português ou em edições
bilíngües, de um acervo cada vez mais amplo e acessível de literaturas indígenas. E não há dúvidas de que a comunicação intercultural
aí possibilitada e desenvolvida é algo de extremamente importante,
útil e agradável para todos os que, índios e não índios, compartilham o desejo e a necessidade de autoconhecimento, eqüidade e cooperação em nossa sociedade multifacetada.
Bibliografia
FRANCHETTO, Bruna; MAIA, Marcus; SANDALO, Filomena;
STORTO, Luciana R. “A construção do conhecimento lingüístico: do
saber do falante à pesquisa”. Cadernos de educação escolar indígena - 3°
grau indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002.
GUIMARÃES, Susana Martelletti Grillo. “Ciências Sociais no Projeto 3° Grau Indígena: focos principais”. Cadernos de educação escolar
indígena - 3° grau indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002.
MEDEIROS, Fernanda Teixeira de. “Pipoca moderna: uma lição –
estudando canções e devolvendo a voz ao poema”. In: MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda
Teixeira de (org.). Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
____________. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.
108
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE
VIVER BAKAIRI
Magno Amaldo da Silva*
Introdução
Outrora, o imenso território brasileiro abrigava
povos que durante milhares de anos desenvolveram uma
rica diversidade cultural. Seus descendentes ainda são
encontrados, uns no litoral, outros no interior do país, localizados em florestas, vilas e até mesmo nas cidades.
Alguns vivem isolados e outros em contato permanente
com a sociedade nacional. Alguns desses povos já desapareceram, deixando, porém, suas marcas na população
e na cultura de algumas regiões. Esses povos foram chamados de índios, como se fossem um único povo. Chegaram até a serem classificados como apenas 2 grupos: os
Tapuya, do interior, e os Tupi, do litoral. O que revela
uma visão equivocada dos povos indígenas.
A realidade indígena, porém, mostra-se com uma
variedade de costumes, tradições, experiências, que torna difícil enumerá-los. As sociedades indígenas são
diversificadas, cada uma possui uma lógica própria e uma
história específica. Habitam diversas áreas ecológicas e
experimentam situações particulares de contato e troca
com outros grupos humanos. Essa verdade, a de uma rica
diversidade sociocultural indígena, não aparece nos li* Professor Bakairi, bacharel em Ciências Econômicas, docente na área
de Ciências Matemática e da Natureza III.
109
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
vros, em especial nos livros didáticos, que não é entendida nas escolas dos não índios com uma prática positiva. O que se vê são alguns
estereótipos tais como:
- “Os índios vivem exclusivamente da caça e da pesca”;
- “Os índios são preguiçosos, apenas as mulheres trabalham”;
- “Os índios falam a língua Tupi”;
- “Todos os índios dormem em rede” etc.
Saibam que, ao contrário do que é difundido, o índio não é
preguiçoso nem desconfiado, pelo contrário, dedica-se com afino e
satisfação às tarefas que lhe cabem na organização da sua sociedade.
Na maior parte do tempo, possui um temperamento alegre e brincalhão. Ele é naturalmente irreverente, sem ser ofensivo, e sabe brincar entre si e com os brancos.
Além do que, a educação dos povos indígenas tem processos próprios de socialização, que se dá durante todas as fases de sua
vida, através do tempo e do espaço da vida cotidiana, vivenciando
reflexões e interpretações da sua cosmologia, principalmente através dos rituais sagrados. E é justamente sobre um específico ritual
sagrado, praticado pelo povo Kurâ-Bakairi, que se trata este artigo.
Os Kurâ-Bakairi
Pertencente a família lingüística Karib, os Bakairi se
autodenominam “Kurâ”, podendo ser entendido como “nossa gente”, “nosso povo”. O termo Bakairi não pertence ao vocabulário de
sua língua falada.
Reunidos atualmente em duas áreas indígenas, Santana, no
município de Nobres e Bakairi, em Paranatinga, ambas no estado de
Mato Grosso, cuja distância entre elas é de aproximadamente 150km,
encontram-se cerca de 1.000 habitantes. Após 300 anos de contato,
sua indianidade é bem marcada pela língua indígena falada e pela
consciência de identificação com os rituais Kurâ, onde procuram demonstrar através das danças e dos conhecimentos que exibem os
110
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
traços culturais, os quais são muito apreciados e valorizados.
O povo Kurâ-Bakairi do município de Paranatinga, denominam seu território de Pakuera (rio das pombas), um denominação do rio Paranatinga na cosmologia Bakairi, da qual faz parte o
ritual a ser apresentado.
Entre os diversos povos indígenas que habitam o Brasil, há
alguns pontos em comum com o povo Kurâ-Bakairi. A divisão do
trabalho entre homens e mulheres Bakairi, por exemplo, é bastante
rígida, um não entra no terreno do outro. O homem é encarregado
da construção das casas, da derrubada da mata, do preparo do terreno para roça, da caça e da pesca e da manufatura de instrumentos de
madeira e cestos. À mulher é reservada a fabricação de utensílios de
cerâmica, tecelagem, o preparo de alimento, cuidar das roças e da
colheita e o suprimento de água, além dos encargos de mãe. E, ao
contrário das comunidades capitalistas, as comunidades indígenas
não têm aquela preocupação de acumular riquezas, pelo contrário, o
excedente da produção de alimentos é distribuído, garantindo o desenvolvimento social, através de festas comunitárias, onde por vezes são vividos e experienciados atos que influenciam o bom convívio social do grupo.
Os Kurâ-Bakairi, que vivem na região do cerrado norte matogrossense, no município de Parantinga, realizam um ritual denominado Iakuigady, parte integrante de um complexo ritual, de natureza sagrada e comunitária, denominado Kado, cuja prática mantém a
ordem do universo tanto ameaçado. É através dele que buscam neutralizar a possibilidade de caos e de marcar diferenças, reequilibrar
as forças, estabelecer fronteiras e conduzir a vida em ordem.
Iakuigady é uma denominação do ritual no qual os Bakairi
usam as máscaras retangulares, entalhadas em madeira, e ovais,
tecidas com fios de algodão, que mereceram tanta atenção de Steinen
e Max Schimidt, como registra a antropóloga Edir Pina de Barros
(BARROS, 1989).
111
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
As máscaras
Pelo termo máscara entende-se a indumentária completa
utilizada pelo dançarino. Existem os “cara de pau”, como dizem os
próprios Bakairi, que são referidas tanto pelos nomes específicos
quanto pelo termo genérico: Iakuigady. As ovais são denominadas
Kwamby, que por sua vez têm o seu próprio nome.
É apresentada abaixo uma pequena descrição de cada máscara em ordem hierárquica:
KWAMBY
Nuiamani: chefe de todos os Kwamby, considerado o avô
de todos os demais, é um tipo de peixe agulha.
Numitao: fêmea de Nuiamani, é pyaje (xamã) de cor vermelha.
Tânupedy: um tipo de peixe piau.
Kualowy: espécie de peixe de escama, tipo curimbatá, de
cor preta.
Wyly-wyly: tipo de pássaro, parecido com quero-quero, só
que menor.
Nueriko: tipo de piranha, fêmea de Tânupedy.
Makualinha: uma variedade de bagre, também chamado
de Kwambynho.
Mapabalo: borboleta grande de cor azul, mariposa.
112
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
Numitao
Kaulowy
Nueriko
Makualinha
Mapabalo
Autor das máscaras: Juares Cuchuavara
Nuiamani
IAKUIGADY (cara de pau)
Matola: representa a mangaba, é o chefe de todos.
Iakua: piranha grande de cor vermelha, é o “vice-chefe”.
Papa: pomba.
Toilen: um bagre grande.
Maekori: peixe cará.
Kakaia: uma gaivota.
Menxu: peixe pacu; existem macho e fêmea.
Nawiri: um tipo de passarinho.
Pânren: piranha de escama branca.
Pili: tucano pequeno.
Sewi: fêmea de Ikunahum.
113
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Natuninha: pequeno jaboti macho.
Ikunahum: espécie de peixe cará, macho de Sewi.
Mâty-iery: esposa de Natuninha.
Matola
Papa
Toilen
Kakaia
Menxu
Nawiri
Autor das máscaras: Juares Cuchuavara
Maekori
Iakua
Pânren
Pili
Natuninha
114
Mâty-iery
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
Os dançarinos
Cada máscara possui um “dono”, âtyodo, posição que confere prestígio e honra. O dono da máscara jamais a anima. Existem
dançarinos pré-escolhidos num ritual, onde é vetada a participação
daqueles cujas esposas estejam grávidas ou reclusas, cuja transgressão resulta em infortúnios, podendo chegar até à morte.
Nesse ritual, cilindros de madeira são preparados com pinturas nas extremidades, feitas de urucum, carvão e tabatinga. Esses
cilindros, então, recebem o nome de ama, e representam simbolicamente as máscaras. Numa reunião, o dono do ritual oferece os cilindros aos demais homens presentes, onde aquele que pegá-lo estará
aceitando publicamente o compromisso de ser o dançarino daquela
máscara específica, os chamados iegado samâni. Mesmo já tendo
uma pessoa escolhida, o cilindro deve ser oferecido a todos por três
vezes, para ter certeza absoluta do compromisso firmado diante da
comunidade. Esses dançarinos, além de dançar e cantar os cantos
específicos de cada máscara, devem-se alimentar somente de pogo
(chichas) e manter total abstinência sexual, pois eles vão representar
os espíritos que vivem no mundo sobrenatural, onde não se casam
nem têm filhos, apenas esperam ansiosos a oportunidade de resgatar cônjuges e filhos que possuíam em vida, ou seja, não fazem sexo;
é a contrapartida do kado. Também são responsáveis pela construção das próprias máscaras que vão animar.
Os homens, já devidamente protegidos por urucum, dirigem-se ao rio Pakuera (Teles Pires), em lugar determinado, para
invocar as entidades tutoras das máscaras. Os cantos dos homens
atraem esses seres subaquáticos que, livres dos espíritos que os controlam naquele mundo, sobem para a terra e, orientados pelos pyaje
(xamãs), incorporam os cilindros símbolos das máscaras e dirigemse para a casa sagrada, o Kadoety.
115
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
O ritual
A realização desse ritual envolve o trabalho de toda a comunidade, há caçadas e pescarias coletivas, limpeza do pátio, transporte de alimentos da roça e sua preparação pelas mulheres, a colocação
de oferendas aos espíritos (Iamyra) que, atraídos pelos cantos e rituais, fazem-se presentes. Os cantos atraem, também, as mulheres e
crianças, que vão se agrupando para assistirem à “saída” do
Iakuigady. O pátio é tomado por um intenso sentimento de emoção
e encantamento. Todos encontram-se devidamente ornamentados
com pinturas corporais e faciais. Nenhuma mulher que esteja grávida ou menstruada pode estar presente, bem como os seus respectivos esposos.
Para a saída do Iakuigady, cada dono de máscara dirige-se
ao Kadoety portando na mão direita um arco e uma flecha. O dono
de Nuiamani, chefe de todos os Kwamby, líder avô de todos os
Iakuigady, entra no Kadoety e convida-o a sair e ir até sua casa para
visitar a sua “família”. A máscara sai, cantando e dançando, marcando o ritmo com o pé direito e movimentando a saia de buriti, o
que gera grande emoção ao povo Kurâ-Bakairi. Nuiamani coloca-se
do lado de fora e fica aguardando a saída de todos os demais; para
cada máscara, a cena se repete. Matola é o segundo a sair, ele é considerado o chefe de todos, razão pela qual fica junto de Nuiamani.
Na medida em que as máscaras vão saindo, elas vão formando uma
fila indiana, sempre dançando e cantando. Todos cantam ao mesmo
tempo, cada um o seu canto específico. Uma vez todos na fila,
Nuiamani e Matola tomam os seus devidos lugares, o primeiro é
Nuiamani, seguido pelos demais Kwamby; em seguida, Matola encabeça os “cara de pau”. Eles se cumprimentam publicamente e em
seguida, acompanhados de seus donos, dirigem-se às suas casas.
Nelas, cada um é recebido pela sua “família” e a sua “mãe” oferece
alimento que um menino de casa, considerado seu irmão, recebe e
conduz a oferenda ao Kadoety. Para lá também mandam alimentos
116
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
aqueles que não possuem máscaras. Após a chegada de todos as mascarados, eles saem para se despedir, sempre dançando e cantando.
Todas as pessoas de sexo masculino entram no Kadoety,
onde os alimentos são distribuídos, de tal forma que ninguém receba alimento produzido pela sua própria família. As mulheres recebem alimentos trazidos por seus esposos, na própria casa em que
vivem.
À tarde, bem antes do sol se pôr, repetem-se as ações. Algumas vezes seguem todos juntos, sempre cantando e em fila indiana
percorrendo em conjunto, uma a uma, as casas de seus donos. Completando esta etapa, todos voltam ao Kadoety e fazem novamente
refeição coletiva; os homens levam alimentos para as mulheres, mães
e filhas que, impedidas de entrarem no local, aguardam do lado de
fora ou em suas próprias casas. Essas visitas são chamadas de
Adakuily.
Existe também o Adakobâdyly (passeio), que é realizado
pelos Kwamby durante todo o dia. Essas máscaras Kwamby saem
pela manhã, depois do almoço e depois do Adakuily. Percorrem
todas as casas, principalmente aquelas em que não vivem “donos”
de máscaras. Jamais pronunciam uma só palavra e cada um deve ser
chamado pelo nome da entidade que a máscara representa. Ninguém
se nega a entregar alimentos; deste modo não há uma única família
que não contribua para a manutenção econômica do ritual. Através
de mímicas brincam com todos, independente de idade e sexo. De
todos os Kwamby, Numitao é o mais travesso, apenas ele pode pegar alimentos entrando sorrateiramente nas casas, sem a autorização dos moradores. Algumas vezes eles vão todos juntos à mesma
casa e, enquanto uns distraem seus moradores, outros furtivamente
carregam alimentos, às vezes chegam a carregar panelas cheias de
comida para o Kadoety, para onde depois retornam com outros tipos de alimentos. Mas não é raro um deles ser apanhado; amarramno e escondem-no, e às vezes são obrigados a trabalhar como pegador
de lenha. Neste caso, somente outro Kwamby pode prestar socorro.
117
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Devido à exigência do Adakobadyly, todos os homens, com exceção daqueles cujas mulheres estiverem em reclusão, podem animar
os Kwamby.
Há vezes em que, durante o Kâmaguely, são inventados cantos que falam das contravenções das mulheres. Já bem tarde da noite, os mascarados dirigem-se às casas das mulheres envolvidas em
suas composições. As casas devem ficar sempre abertas e com suas
“salas” devidamente iluminadas. As mulheres mantem-se reclusas
em outro compartimento, de onde ouvem com atenção as letras das
músicas. Cada mascarado dirige-se à casa da mulher alvo de seus
fuxicos rituais, entram na sala dançando e cantando, bem alto para
que todos possam ouvir, e não é raro que quando um esteja saindo
outro esteja entrando, reforçando assim a reprovação do ato. Um
mascarado pode responder às críticas quando a atingida é uma pessoa de sua família, criando uma canção que jamais poderá ser dirigida
diretamente à pessoa.
Quando as entidades encontram-se cansadas, para-se o ritual por alguns dias, o tempo é utilizado para recuperar pinturas e
alguns estragos que haja nas máscaras. Neste intervalo de tempo, a
ordem das coisas se inverte; as mulheres circulando no pátio, indo
de casa em casa, e os homens reclusos em suas casas ou no Kadoety.
Elas aproveitam para realizarem o Âryko, ritual feminino, onde dançam de braços dados e vão devolver as críticas que lhe fizeram os
homens. Os temas mais comuns são preguiça, bebedeiras, comportamento sexual reprovado, entre outros. Elas vão na casa do criticado e cantam bem alto para que todos possam ouvir. Quando o
Iakuigady retorna, as mulheres ficam impossibilitadas de realizarem o Âryko.
Durante a realização do Iakuigady, os donos das máscaras
têm o direito de solicitarem a realização de um mutirão, via de regra
para a realização de trabalhos na roça. Pela manhã os mascarados
dirigem-se cada qual à casa de seu dono, onde recebe, além de comidas, ferramentas apropriadas para a realização do trabalho. Todos
118
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
em fila indiana, encabeçados por Nuiamami, seguem cantando e
dançando, cada qual o seu canto, em direção ao local de trabalho. Já
na mata, tiram as máscaras e juntam-se aos demais homens da aldeia. Feito o serviço, voltam cantando e dançando, animando a vida
Bakairi.
Quando as entidades, através de Nuiamami, acham que já
chegou a hora de irem embora, o Iakuigady se encerra. O aviso é
comunicado a todos e, na noite seguinte, o grupo mascarado, coordenado pelo Pyaje, dirige-se ao rio, no mesmo local em que as entidades foram invocadas para devolvê-las a sua morada. Cada dançarino, obedecendo a hierarquia, cantando e dançando, despe-se da
máscara e atira-a no rio, de onde retorna para sua casa. Momento de
grande emoção e tristeza para todos, que lamentam a partida do
Iakuigady; mas, em contrapartida, espera-se fartura de alimentos e
chuvas regulares durante o restante do ano. Acreditam que a força
das máscaras é tanta que as nuvens se concentraram e que os Iamyra,
satisfeitos, voltam para suas moradas ofertando a todos os seres vivos chuvas regulares, que farão crescer as plantas e florescer a própria vida Bakairi.
Considerações finais
O povo Kurâ-Bakairi, assim como a grande maioria dos povos indígenas do Brasil, que tiveram problemas no contato com os
não-índios, teve várias repressões e proibições, entre elas, a proibição da prática de seus rituais. Mesmo com esses fatores, procuramos
alternativas de resistência e ainda hoje o ritual do Iakuigady continua presente na vida da comunidade Kurâ. É claro que não mais
com a intensidade dos tempos antigos, onde a realização era por
vezes compartilhada por povos altoxinguanos1, mas com uma essência viva e pulsante nos corações de cada novo índio que nasce (o
Durante muito tempo, boa parte dos Kurâ-Bakairi viveram no Alto Xingu, onde
mantiveram diversas relações culturais.
1
119
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
que mantém viva a cultura). A realização do ritual do Iakuigady,
agora com intervalos cíclicos maiores, traz paz, alegria e vida ao povo
Kurâ-Bakairi. E hoje está sendo contado para que os novos povos
indígenas e não-indígenas possam conhecer, respeitar, valorizar e
defender essa diversidade cultural, que por hora não é mostrada em
nenhum livro didático, mas já está alcançando uma nova literatura,
onde o índio é o sujeito de sua própria história.
Os rituais constituem as principais fontes do processo de educação indígena, pois é participando da vida indígena, desde quando
nasce, passando pelos aprendizados do dia-a-dia, com os mais velhos, com a natureza, com o sobrenatural, que se mergulha na
cosmologia indígena para formação do índio autêntico, que alça novos vôos na busca do entendimento do “novo”: a educação escolar
indígena. Por isso a importância de vivenciar os rituais.
Egã Kurâ Waunlo Xina!2
Bibliografia
BARROS, Edir Pina de. Os Bakairi. Museu Oficina Kuikare: Processo
de Resgate Cultural Bakairi, 1989.
Autor das Máscaras: Juares Cuchuavara.
2
Olhe, nosso povo, nós somos assim!
120
Foto: Acervo Pessoal - Magno Amaldo
UMA ETNOGRAFIA DO IAKUIGADY: O JEITO DE VIVER BAKAIRI
Numitao, Magno Amaldo e Makualinha
121
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O
SISTEMA ESCOLAR NA REGIÃO DE VAUPÉS
Stephen Hugh-Jones*
Fim de agosto de 1996, a população da região do
Rio Pirá-Paraná, um lugar afastado no sul do estado colombiano de Vaupés, reuniu-se para discutir a educação
dispensada à região e propor novos programas menos
prejudiciais à cultura tradicional e mais de acordo com
suas próprias necessidades. Apoiada pela ACAIPI
(Asociación de los Capitanes Indígenas del Río Pirá-Paraná),
uma organização indígena local, e a Fundação Gaia-Amazonas, uma ONG colombiana com ramificações internacionais, a reunião contou com representantes de todas as
aldeias e comunidades, alguns payés (xamãs) importantes e um grupo de professores indígenas. No entanto, estavam ausentes os habitantes das malocas (casas comunitárias) ainda existentes, e quase todas as mulheres.
Estavam presentes também um deputado estadual índio da região, dois representantes das autoridades
estaduais de educação de Mitú, capital de Vaupés, e o
coordenador da divisão de etnoeducação do Ministério
da Educação, igualmente índio mas originário de outra
parte de Vaupés. O encontro definiu as linhas gerais de
um plano qüinqüenal visando a desenvolver um progra* Antropólogo da Universidade de Cambridge, Reino Unido. Uma primeira versão deste artigo, traduzido por Laurence Pâris, e aqui reduzido e retocado, foi publicada nos Cahiers des Amériques Latines n. 27, 1997.
(Nota do Trad.: A presente tradução foi feita a partir da versão publicada
nos Ethnies-Documents vol. 12 / 22-23, 1997 (Repenser l’école. Témoignages
et expériances éducatives en milieu autochtone).
122
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
ma de estudos e de formação de uma equipe de professores locais
voluntários à iniciativa do novo PEI (Projeto de Etnoeducação
Institucional) do Ministério da Educação.
Para todos aqueles que conhecem bem essa região, tratavase então de um acontecimento sem precedentes. Que um tal encontro tenha tido como conseqüência a constatação das profundas mudanças sobrevindas na parte mais tradicional da região de Vaupés; e
que ele tenha reunido pessoas tão importantes é revelador das mudanças radicais da política indígena da Colômbia, mudanças que
tiveram lugar no correr das três décadas anteriores e que culminaram, em 1991, na adoção de uma nova constituição. Uma descrição
detalhada e uma análise da reunião de 1996 permitem determinar
como as mudanças globais afetaram a população dessa região particular.
O enfoque na língua, na cultura e nos esforços por fazer
reviver ou impedir o declínio das tradições está claramente ligado à
importância com que se tomam hoje em dia tais tradições no contexto das políticas inter-étnicas. A reunião de 1996 foi particularmente
interessante nesse sentido. O reconhecimento explícito da cultura
aparece como um fator relativamente novo na zona do Pirá. Além
disso, a população foi levada a refletir sobre o conteúdo dessa cultura tradicional e suas diferentes formas, sobre a maneira como ela é
ensinada e transmitida, e sobre as tradições que seria importante
preservar. Tal conscientização explica-se, em parte, pela necessidade de estabelecer um novo programa de estudos compatível com as
tradições e com o respeito a elas, e ainda facilitar a aquisição de novas formas de conhecimento derivadas de um contexto cultural diferente. Mas tal consciência é igualmente o produto de um momento
histórico particular e de um conjunto de circunstâncias locais que
permitiram à população comparar as formas modernas e tradicionais de ensino, examinando a sua interação.
Essa reunião foi possível graças a uma nova organização
comunitária, procedente da antiga, mas que marcou uma ruptura
123
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
no equilíbrio de poderes entre os velhos e os jovens instruídos, e
entre os interesses locais e aqueles de uma comunidade mais ampla.
Se o encontro revelou as tensões e as contradições latentes resultantes de tal ruptura, seu sucesso mostrou igualmente a capacidade da
população de administrar essas contradições.
O encontro reuniu um público excepcionalmente amplo da
população local - e que não costuma cooperar muito dessa forma -,
assim como um certo número de estrangeiros cuja presença resulta
indiretamente de mudanças ocorridas na política indígena governamental. Espero mostrar como a população local adaptou e modificou as formas culturais e sociais existentes para interpretar as pressões externas e responder a elas, e como a modificação do contexto
favoreceu um novo interesse pela cultura e criou uma nova consciência étnica.
Do comércio à cultura: elementos de história
Começo por sublinhar as mudanças que sobrevieram na região do Pirá-Paraná depois de minha primeira visita em 1968 e por
explicar os motivos pelos quais esta região foi levada a desempenhar um papel particular nas políticas da identidade indígena.
Em 1968, o estilo de vida dos povos viventes no Vaupés central, que falavam as línguas da família Tukano oriental, já havia sido
substancialmente modificado pelas atividades dos comerciantes e
dos missionários. Os exploradores do caucho haviam empregado os
habitantes do Vaupés durante seus booms, o primeiro de 1890 até os
anos 1920, o segundo durante e após a Segunda Guerra Mundial. A
partir de 1914, os missionários católicos por sua vez haviam ordenado à população o abandono de suas casas comunitárias familiares
(malocas) em detrimento da vida nas aldeias, onde poderia ser mais
facilmente controlada e escolarizada. A política de educação dos
missionários visava a erradicar as particularidades lingüísticas e culturais que impediam a integração desses índios “selvagens” a uma
124
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
nação “civilizada”. As crianças eram obrigadas a entrar para os internados (pensionatos) – muitas vezes contra a vontade dos pais –,
onde eram impedidas de falar sua própria língua e onde o programa de estudos não fazia qualquer referência à sua cultura local. A
missão colombiana de S. Francisco Xavier seguiu-se aos monfortianos
holandeses, e continuou essa política até o fim dos anos 1960. Por
fim, apenas o Pirá, a zona mais recolhida do Vaupés, abriga ainda
populações Tukano vivendo em malocas tradicionais, e conservando
o modo de vida que antes caracterizava toda a região.
Situação dos Tukano
A maior parte dos Tukano vive na bacia do Vaupés. O PiráParaná, um afluente do Apaporís, corta o Vaupés e faz parte do sistema Caquetá/Japurá.
Antes da criação de campos de aterrissagem, a zona do Pirá
era uma região de difícil e perigoso acesso, mas seu conservadorismo
não se explica simplesmente por seu distanciamento. As dificuldades e os perigos eram tão psicológicos quanto físicos e o resultado de
ações políticas e de decisões tomadas com consciência pela própria
população. Os conflitos com os exploradores do caucho e o assassinato de numerosos balateros (caucheiros) no começo dos anos 1930
conferiram aos habitantes do Pirá uma má reputação, reforçada pelo
hábito de esconderem suas malocas ao longo de pequenos cursos
d’água ao invés de estabelecê-las ao longo dos rios principais.
O isolamento era em si mesmo um meio político que permitia à população tirar suas próprias lições de sua experiência limitada
com o exterior e aprender indiretamente com seus contatos com os
vizinhos mais aculturados. Os Tatuyo e os Makuna viventes na proximidade da nascente e da foz do rio principal estavam entre os mais
expostos ao contato com os estrangeiros. Conseqüentemente, tais grupos representaram o papel de anteparo, protegendo outros grupos
Tatuyo, Makuna, Barasana, Bará e Taiwano. Esse período de isola-
125
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
mento relativo chegou ao seu fim quando a missão católica e os evangélicos americanos do Summer Institute of Linguistics (SIL) estabeleceram bases na região no fim dos anos 1960. Ao passo que certas
pessoas preferiram manter uma distância segura, outras, em busca
de mercadorias, instrução ou medicamentos, começaram a abandonar suas malocas, trocando-as pelas pequenas casas reunidas junto
ao campo de aterrissagem, à escola e ao posto médico.
Tal processo de ajustamento foi seguido por uma nova política dos missionários católicos, visando a diminuir seu impacto nessa região ainda tradicional. Esta política mais tolerante era o resultado da adoção da Teologia da Libertação pelos católicos e do apoio
dado pelo governo ao programa de educação bilíngüe do SIL, apoio
que fazia pesar, assim, uma ameaça sobre o controle exclusivo da
educação, exercido até então pelos missionários. O SIL construiu campos de pouso e postos avançados perto de malocas estratégicas, aprendeu as línguas locais, desenvolveu sistemas de escritura e estabeleceu pequenas escolas. Os católicos, por sua vez, erigiram uma igreja
de estilo indígena e uma escola, onde estabeleceram um programa
de educação primária integrando em parte as línguas locais. A missão católica retirou-se do Pirá em 1987, enquanto que as atividades
do SIL foram recentemente bastante reduzidas pela guerrilha.
Os missionários provocaram um impacto econômico significativo. Depois do declínio da indústria do caucho, o trabalho nos
campos de pouso e nas construções forneceu uma nova fonte de emprego para os índios, enquanto que os mercados dos missionários
satisfizeram a demanda crescente por bens de consumo. Esse período foi seguido pelo boom colombiano da cocaína. Zona afastada, beneficiada por muitos campos de pouso feitos para as missões, o Pirá
tornou-se o lugar ideal para a produção da cocaína.
A chegada dos missionários coincidiu com a dos duturos
(“doutores”), o termo indígena para designar os pesquisadores científicos. Ao menos oito antropólogos e três lingüistas efetuaram
pesquisas na região, e seis documentários também foram realiza-
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EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
dos. Após esse período, os contatos com professores, educadores,
equipes médicas, especialistas e outros representantes do Estado e
do governo local não cessaram mais de aumentar. Todo esse fluxo
marcou um deslocamento das relações essencialmente comerciais
que os índios antes tinham com a população não-indígena que, em
sua maioria, vivia na região mas não fazia senão breves visitas locais. Ao mesmo tempo, a chegada dos estrangeiros permitiu novas
aberturas econômicas e políticas. Anteriormente, os índios não eram
mais do que trabalhadores, alunos ou pacientes; hoje eles são também empregados, professores ou assistentes médicos. Todas essas
novas possibilidades deram nascença a uma nova elite de jovens
instruídos e a uma demanda crescente por educação. Aliás, organizada em grande parte pelo novo grupo de jovens, a reunião, além
de conceder importância à tradição cultural, também foi um signo e
uma expressão do entusiasmo dessa nova elite pela modernização.
Além do mais, o fluxo de estrangeiros interessados pelos
índios permitiu às populações locais uma conscientização de sua
cultura e de sua identidade “indígena”. Durante minha primeira
visita à região, a “cultura” era geralmente implícita e a maior parte
do tempo adquirida sem instrução formal. Esta cultura implícita,
comum a toda população da região, contrastava com suas manifestações mais conscientes, tais como as festas cerimoniais e os direitos
mais abstratos concernentes ao território, língua, nomes, cantos, encantamentos e mitos. Vistos do exterior, os grupos diferenciavam-se
por certos direitos exclusivos sobre uma parte dessa cultura ritual;
do interior, os grupos e os clãs classificavam-se segundo uma ordem hierárquica. Em um plano mais pessoal, enfim, o conhecimento e a mestria de vários aspectos da cultura formal eram o fundamento dos estatutos individualizados de dirigente, cantor, dançarino ou payé. As relações preferenciais dos antropólogos com seus especialistas culturais permitiram a valorização da reputação dos
anciãos, e suas questões deram novo interesse às manifestações que
anteriormente eram ou expressas inconscientemente ou fadadas ao
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
abandono. No entanto, os cadernos de notas, as coleções etnográficas
e os filmes criaram uma suspeita crescente a respeito dos pesquisadores, em razão do valor comercial real ou suposto das manifestações objetivadas da cultura.
Quanto à identidade, ela estava ligada ao contexto e era essencialmente expressa em termos de parentesco, linguagem, lugar e
origem. Os povos conheciam seus parentes imediatos, a sua pertença a um clã particular e o lugar deste clã na ordem hierárquica; sabiam que aqueles que partilhavam a mesma linguagem descendiam
de um mesmo ancestral, diferente daquele de seus vizinhos; e conheciam os nomes e a existência de populações mais distantes, falantes de outras línguas Tukano, todas com seu lugar dentro de um
grande esquema vagamente estruturado. Mas eles não possuíam ainda nenhuma idéia de uma identidade genérica enquanto “índios do
Pirá-Paraná” ou “índios colombianos”.
Sob a autoridade das missões, a “cultura”, enquanto conjunto dos costumes indígenas, crenças, e estilo de vida, era considerada
como um obstáculo no caminho da civilização. Enquanto os antropólogos acusaram os católicos de arruinar essa cultura, a missão procurou, antes de mais nada, recrutar os cientistas como conselheiros.
Mais tarde, os missionários apropriaram-se da antropologia e de sua
noção de “cultura”, apresentando-se como seus verdadeiros defensores. Eles atacaram os antropólogos acusando-os de roubo e exploração do que pertencia exclusivamente aos índios. Entre os índios,
tal ambivalência com relação aos antropólogos torna-se então mais
forte e manifesta no Pirá. A influência da missão foi, nesse sentido,
capital.
Sob as novas diretrizes da Teologia da Libertação, os missionários apreenderam de uma maneira radicalmente diferente a “cultura” indígena e as conseqüências de sua preservação ou de sua perda. Assim, eles incitaram os índios a retornar à sua vida nas malocas.
Além disso, dali em diante a cultura indígena foi considerada como
sendo mais amplamente compatível com a mensagem cristã – uma
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EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
visão partilhada pelo SIL –, se bem que certas características culturais continuavam inaceitáveis. Mas a instrução oferecida pelos missionários não compreendia apenas aquilo que era ensinado formalmente na escola. Ela integrava igualmente um novo regime alimentar, novas habitações físicas, novas vestimentas, uma nova tecnologia
e uma nova ordem social. Mas os habitantes do Pirá tiraram também lições de seus contatos com os exploradores do caucho e de
seus vizinhos mais aculturados. Para eles era claro que, se por um
lado a sua cultura tinha conotações positivas, por outro lado ela era
explicitamente incompatível com a civilização ou a modernidade.
Isso foi claramente expresso no decorrer da reunião através da discussão que tinha por objeto a vergonha sentida pelas pessoas em
participar das danças e de outras práticas tradicionais.
A Constituição de 1991, que reconhece o pluralismo étnico,
cultural e lingüístico da nação colombiana, assim como as diferentes reformas da educação dos indígenas, também contribuíram bastante para a crescente conscientização dos índios do Pirá de sua cultura e de sua identidade. Além disso, a descentralização dos serviços educativos e o fim do monopólio da Igreja Católica sobre a educação foram reformas que reconheceram o valor da diversidade étnica e cultural, permitindo dar aos indígenas um maior controle sobre a organização, a apresentação e o conteúdo da instrução que
eles recebem1. Para as populações indígenas como para as outras, a
noção de “cultura” designa doravante explicitamente uma particularidade étnica que comporta direitos e privilégios específicos; é também um recurso que pode ser preservado, perdido ou recuperado.
De modo significativo, o relatório da reunião considera “o conheciAlgumas dessas modificações são perceptíveis na Constituição de 1991. A lei 20 de
1974 rompe com a antiga Concordata de 1889 entre o Vaticano e o Estado Colombiano
que dava à Igreja o controle exclusivo da educação no “território das Missões”. A
Igreja oferece atualmente uma educação sob contrato com o Estado. O decreto 1142 de
1978 dá validade antes de mais nada a uma política de educação bilingüe e bicultural.
O art. 55 da lei 60 de 1993, a Lei geral geral sobre educação e os arts. 56 e 57 da lei 115
de 1994 detalham as principais reformas pós-constitucionais.
1
129
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
mento dos direitos e deveres de cada um reconhecidos pelo Estado”
como uma vantagem da educação ocidental, e distingue entre seus
inconvenientes “a perda do valor da tradição cultural”, “o não-reconhecimento da identidade indígena” e a “vergonha dos índios em
participar de seus próprios costumes”.
Se essa nova concepção de cultura é mais explícita, ela também é mais restritiva. A noção de “cultura” é crescentemente utilizada para designar uma escolha limitada de traços mais característicos e exóticos como os adereços de plumas, as danças tradicionais e
os mitos. Juntamente com a língua, tais elementos são considerados
como caracterizando todos os povos indígenas, e como distinguindo
estes das populações brancas. Na zona do Pirá nota-se que, dentro
de um contexto bem diferente, são esses mesmos elementos que, como
base da organização social tradicional, determinam os indivíduos,
situando-os nos clãs e em outros grupos mais amplos. Entretanto,
para além desse sistema local, a população tem começado a considerar tais atributos cerimoniais como elementos de uma nova identidade pan-indígena.
A população do Pirá tem há muito tempo consciência de que,
após a atividade das missões na região central do Vaupés, apenas
ela detém ainda os costumes ancestrais. Portanto, recentemente, uma
mudança interveio em sua percepção das relativas vantagens e inconvenientes ligados ao estatuto “de região mais tradicional”. Em
1968, a região sofria a falta de bens de consumo e sabia que era considerada pelos outros índios do Vaupés uma população pobre e atrasada. Hoje, essa mesma população exibe-se como guardiã de uma
cultura autêntica e vende os adereços de plumas e conselhos xamânicos
aos vizinhos culturalmente mais pobres, e que invejam-na pela atenção concedida por parte de um número crescente de ricos e prestigiosos estrangeiros. Aos seus olhos, como aos olhos dos outros, eles
são “índios verdadeiros” ou “pessoas reais”.
130
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
A reunião e sua pauta
A reunião de 1996 é o fruto de encontros anteriores entre a
Fundação Gaia e a ACAIPI, assim como de uma série de visitas de
um antropólogo da Gaia a quase todas as comunidades e malocas a
fim de realizar uma sondagem sobre a percepção local da educação.
Gaia, da mesma forma que a população local, está consciente das
oportunidades oferecidas em matéria de educação pelas reformas
governamentais, e da necessidade das autoridades locais elaborarem propostas viáveis a serem postas em ação.
O lugar do encontro, uma maloca na aldeia barasana de San
Miguel, é em si mesmo revelador: San Miguel é o lugar da primeira
missão católica; a escolha da maloca em lugar do estabelecimento
escolar reafirma explicitamente a importância das noções de cultura
e identidade indígena. Cada aldeia possuiu ao menos uma maloca
utilizada como lugar de encontros e centro de cerimônias rituais,
materializando assim a tradição cultural. Significativamente, tais
malocas de aldeia estão situadas a uma certa distância da escola e da
igreja – logo uma separação intencional entre a tradição e a vida
moderna – e são mantidas por anciãos escolhidos por seus saberes
tradicionais.
Diversos discursos revelaram um certo saudosismo pela atmosfera de convivência das malocas, a população tendo hoje em dia
escolhido viver em casas separadas. A disposição dos diversos participantes no seio mesmo da maloca refletiu também a ordem tradicional da organização do espaço nas casas: ao passo que os anciãos e
os elementos sagrados ocupavam o centro, os jovens foram colocados adiante e as mulheres atrás.
A maior parte das discussões foram conduzidas em barasana
e em makuna, as duas línguas que dominam a região, mas outras
foram mantidas em bará, em taiwano e tatuyo. As atas foram traduzidas
em espanhol pelos estrangeiros e o saber dos payés foi explicado a
uma audiência pouco familiar aos ritos de iniciação e aos encanta-
131
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
mentos xamânicos. Para aqueles que ignoravam o espanhol, os jovens recorreram a inspiradas metáforas para traduzir os discursos
dos funcionários para os idiomas locais, explicando com sucesso a
organização complexa e a legislação barroca do sistema educativo
colombiano a uma geração mais idosa, vivendo ainda em um mundo fundado sobre premissas radicalmente diferentes.
Se a maloca simbolizou a tradição, ao inverso a diplomacia
da presidência do Comitê, os procedimentos burocráticos, a pauta
escrita, as prudentes anotações e os relatórios batidos à máquina sem
dúvida nenhuma enfatizaram a modernidade da manifestação.
A pauta da reunião, redigida sobre um grande papel pregado sobre a fachada da maloca, dá uma clara idéia dos focos de interesse da população e dos assuntos em discussão:
O que é educação? Qual é seu objetivo? Que espécie de educação
nós desejamos? O que desejamos que nossas crianças aprendam e por quê?
O que é aprender? Como a população aprende - tradicionalmente e em comparação com o mundo dos brancos?
Como a educação tem sido oferecida na região do Pirá? (o plano de
estudos do PEI).
Quais foram as vantagens e as desvantagens desta educação? Quais
são os problemas ligados à aprendizagem do mundo dos brancos e à aprendizagem tradicional?
Que papéis os membros das comunidades, particularmente os homens e mulheres idosas, irão desempenhar na educação de suas crianças?
Como reforçar nossa cultura? A profissionalização como solução.
Discussão de uma proposta para uma educação apropriada à região
do Pirá no que se refere à legislação sobre educação indígena.
Discussão das propostas com os representantes do governo.
Mais do que retomar a pauta em si mesma, prefiro concentrar minha atenção sobre os temas principais dos debates, a saber,
“educação”, “cultura”, “identidade” e “comunidade”. Começarei
pela “cultura” e pela “educação”, que foram apreendidas como dois
elementos opostos, e tentarei determinar em que uma “perda da
132
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
cultura” era uma preocupação maior. Debruçar-me-ei em seguida
sobre a formação da ACAIPI e as questões de “identidade” e “comunidade” antes de tomar em consideração as diferentes categorias de
indígenas e de participantes exteriores presentes à reunião.
Educação e cultura indígena: um casamento desigual
Outrora, a população do Pirá ocupava-se essencialmente de
comércio e não de educação: como obter bens manufaturados evitando ao máximo o contato com um exterior identificado à brutalidade e às doenças que vinculava. A capacidade de controlar diretamente a população branca era frágil, mas onde isso era possível os
índios preferiam ir trabalhar nos campos de coleta de caucho ou nas
missões, mais do que ver estrangeiros entre eles. A natureza do trabalho e o desejo de proteger suas mulheres dos estrangeiros implicavam a mediação dos homens em praticamente todos os contatos
com o exterior.
Possuir as armas, vestimentas e outros bens chamados
gaheumi – mesmo termo usado para designar os bens cerimoniais –,
era um meio de reparar a evidente disparidade entre brancos e índios. O desejo de uma igualdade material continua a ser importante
até hoje, notadamente para a nova geração (ver também Hugh-Jones
1988, 1992), e explica a demanda crescente por bens de consumo e
sua disponibilização pública.
Há muito tempo a população está consciente dos benefícios
evidentes da instrução. Durante a reunião, eles eram enumerados
assim: aprendizagem da leitura, da escrita e da língua espanhola,
capacidade de negociar com os brancos e utilização da moeda. Algumas famílias já haviam enviado suas crianças às escolas da missão, e logo que os missionários chegaram muitos mostraram-se críticos com relação à nova política que apoiava a cultura indígena. Eles
desejavam um internato propriamente dito e o ensino do espanhol,
e não as construções folclóricas e uma instrução bilíngüe rudimen-
133
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
tar. Tais demandas foram reiteradas ao correr da reunião, bem como
manifestaram-se certas preocupações concernentes à “etnoeducação”,
que não seria mais do que um pálido substituto da “verdadeira educação”.
Se a reunião pôs em evidência um interesse crescente pela
instrução, ela revelou igualmente preocupações relativamente novas sobre suas conseqüências mais negativas. Assim, foram condenadas a ruptura dos jovens com sua cultura e sua identidade, seu
relaxamento moral e sua falta de respeito para com os mais velhos, o
declínio da vida comunitária e de seus valores e a perda geral dos
conhecimentos e da experiência. Tudo isso era visto como conseqüência de um sistema de educação que não dava à população local
mais do que um pequeno controle em sua definição, organização e
execução. O relatório da reunião enumera da seguinte maneira os
efeitos perversos da educação:
“Ela desvaloriza a cultura tradicional da população; ela não reconhece a identidade indígena; ela favorece os interesses pessoais pelas mercadorias das populações brancas. A população tem vergonha de praticar seus
costumes; a desordem instala-se nas cerimônias tradicionais. Os jovens têm
tendência a abandonar sua comunidade para satisfazerem outros desejos”.
A reunião suscitou uma exame de consciência e uma reflexão impressionantes, concernentes ao processo de aprendizagem tradicional e sua oposição à educação e aos problemas derivados da
introdução de uma escola convencional. Da mesma forma que a já
referida oposição espacial entre a escola e a maloca, “educação” e
“cultura” foram consideradas opostas. “Aprender” foi considerado
um processo oral, informal, prático e moral, onde os pais, assim como
os payés, desempenhavam um papel preponderante. Ao contrário, a
“educação” foi percebida como um processo de alfabetização, formal, abstrato e pragmático, marginalizando o papel do payé e favorecendo, com a introdução das escolas, o abandono da responsabilidade parental. O novo programa de estudos proposto consagra uma
seção inteira à “orientação sexual”, dando um renovado poder aos
134
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
pais e à comunidade em assuntos de moralidade. Ele acentua também o fato de que, se os pais e os professores desejam fazer reviver a
cultura tradicional e conferir-lhe novamente valor, eles devem igualmente praticar aquilo que pregam. Uma das condições para a candidatura aos cursos de profissionalização que serão oferecidos estipula que, enquanto índios, os candidatos devem conhecer a cultura e
seus valores, e mostrar-se ativos tomando parte das cerimônias tradicionais.
O lugar da cultura
Esse novo interesse pela “cultura” tem muitas origens. Diversas comparações com seus vizinhos permitiram à população local a realização de que ela ainda detinha qualquer coisa que os outros haviam perdido e que agora buscavam recuperar. Para além
disso, comparações mais recentes entre os jovens e as pessoas idosas, ou entre a aldeia e a maloca tornaram a ameaça da perda da
cultura bastante real. O afluxo de estrangeiros interessados por uma
região conhecida por suas tradições demonstrou a vantagem potencial da manutenção da cultura. E, graças aos antropólogos militantes, aos da Igreja e aos movimentos indígenas, a população adquiriu
uma retórica da “cultura”. Como observa Jackson (1994:399), da
mesma forma que os índios foram anteriormente considerados como
um povo distinto e diferente de seus vizinhos, eles estão agora conscientes de sua cultura.
No curso da reunião, os anciãos queixaram-se da falta de
respeito e do declínio do conhecimento e dos costumes, mas não de
uma “perda da cultura”. Aqueles que mais falaram em “perda da
cultura” e na necessidade de dar uma nova força e um novo valor a
ela foram os jovens instruídos, notavelmente os professores encarregados de preparar as propostas para um novo programa de estudos.
Os mais velhos mostraram-se mais preocupados com a ameaça
pairante sobre seu prestígio e sobre seu estatuto, assim como sobre a
135
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
progressiva perda de seu controle sobre os jovens que valorizavam
seus conhecimentos e seus poderes rituais. Suas mágoas a propósito
da penúria de cerveja de mandioca, das pessoas que de forma egoísta bebiam em suas casas e das malocas vazias, onde as pessoas não
mais se encontravam para fumar, mastigar a coca e discutir um pouco de tudo, revelavam seu desapontamento em face da erosão de
um certo estilo de vida, organizado em torno da família, e que definia as “verdadeiras gentes”.
Além da preocupação relativa à perda dessa cultura mais
esotérica e mais ligada à identidade do grupo, os participantes igualmente manifestaram queixas de outra sorte. Devido ao fato de os
estrangeiros não terem dado atenção aos conhecimentos e aptidões
técnicas da população local, os mais jovens perderam a mestria prática do meio-ambiente da qual depende a economia local. Eles não
sabem mais utilizar a grande variedade de recursos alimentares e
dependem, assim, cada vez mais, de alimentos e equipamentos provenientes do exterior: pouco a pouco, eles perderam assim a sua capacidade de se desembaraçarem sozinhos. A exposição desse problema mostrou-se essencial ao fazer as pessoas tomarem consciência
do perigo resultante do desaparecimento dos aspectos práticos e implícitos da “cultura”, aspectos importantes e que são eclipsados pela
ênfase posta sobre uma cultura ritual e explícita que as políticas da
identidade encorajam. A profissionalização proposta em seguida à
reunião visa então a reafirmar a existência e o valor de um saber
local, constituindo um novo ensinamento baseado naquilo que já é
conhecido. Ao mesmo tempo, o reconhecimento dos sistemas de saber indígenas suprime a exigência que afirma que apenas aqueles
que recebem uma educação formal podem tornar-se instrutores. Essa
disposição, que recebeu aprovação das autoridades educativas locais, é uma solução parcial à desconfiança que existe com relação
aos professores indígenas oriundos de outras partes do Vaupés, devido à falta de pessoas do Pirá dotadas de uma formação suficiente.
A ênfase posta na reunião sobre a necessidade de reforçar e
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EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
revitalizar a cultura tradicional não deve ser tomada como uma expressão de resistência ao processo de modernização, mas principalmente como uma parte integrante do processo no qual o movimento
indígena desempenhou um papel ativo e muitas vezes entusiasmado (ver também Gros, 1997). A população da região do Pirá exprime
o desejo de combinar aquilo que ela considera como o melhor dos
dois mundos, e de recolher os benefícios de uma maior integração
na sociedade nacional, sem no entanto perder sua cultura e sua identidade, mesmo se esta apresenta uma significação diferente de acordo com a idade e a experiência dos participantes.
No relatório da reunião, a etnoeducação é considerada como
um processo que deve permitir à população do Pirá revalorizar e
reforçar sua cultura, assim como adquirir no exterior as formas de
conhecimento que permitirão seu desenvolvimento no mundo de
hoje. Menos formalmente, as pessoas falam de seu desejo de “combinar os dois lados”, uma imagem que sugere uma mudança na
maneira como os estrangeiros são percebidos. Na cosmologia tradicional, a população do Pirá situa-se ao centro de um universo concêntrica e hierarquicamente ordenado, relegando os brancos a uma
posição menos favorável na borda extrema, para onde eles foram
enviados nos tempos ancestrais. Os payés teriam então utilizado seu
poder para manter os brancos em seu lugar e para impedi-los de se
aproximar do centro sagrado onde viviam as “pessoas verdadeiras”.
Os estrangeiros eram assim excluídos das relações bilaterais e igualitárias reservadas aos casamentos e outras trocas entre grupos indígenas. Entretanto, enquanto detentores do poder técnico, os brancos
eram por sua vez superiores e inferiores; em um plano prático, a
resistência xamânica era combinada a uma necessária porém limitada conciliação, a fim de assegurar o abastecimento de mercadorias
(ver também S. Hugh-Jones 1988, 1994).
A imagem dos “dois lados” implica uma reformulação do
esquema cosmológico. Até então, os brancos tinham um estatuto
ambíguo, para além da esfera das interações humanas normais, e
137
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
eram eles que se recusavam a permanecer em seu lugar. Hoje são os
índios que colocam os brancos ativamente no centro da cena, como
iguais com os quais um diálogo aberto é possível. A aparente
inelutabilidade das antigas formas de contato foi substituída por uma
tomada de consciência segundo a qual a população, de ali em diante, desempenha um papel ativo na determinação de seu destino e na
manutenção de sua cultura e sua identidade.
Professor: um estatuto ambíguo
Os professores acham-se em uma posição bem contraditória
com relação à sua própria cultura. Seu estatuto depende de um saber e de aptidões estrangeiras; eles são constantemente obrigados a
aprofundar seus conhecimentos a fim de levar a bom termo sua missão e de desempenhar seu papel na organização da comunidade e
nas negociações com os estrangeiros. Mas eles estão também bastante próximos das idéias dos movimentos indígenas, podendo fazer
valer sua instrução para analisar de um ponto de vista radical a situação de seu povo. Mas devido ao fato de que um novo saber é habitualmente adquirido à custa da aprendizagem de certas realidades
mais próximas, eles são constrangidos a tomar certa distância de sua
própria cultura, contribuindo ativamente, com seu ensinamento, à
perda futura desta. Como observa Gros, “são aqueles que em um certo
sentido perderam mais essa cultura, aqueles que sabem menos, aqueles para
quem a identidade é a mais fluida e a mais controversa que o movimento
dirige-se e demanda a construção do discurso que legitima a especificidade
cultural, os valores tradicionais, o direito à diferença e à identidade étnica”
(1994:147).
Existe um conflito potencial entre os objetivos da
etnoeducação e o tipo de experiência e de formação necessária à sua
prática. Os participantes da conferência estiveram conscientes disso,
o que explica que eles tenham desejado que os professores ao mesmo tempo conheçam sua própria cultura e vivam em função daquilo
138
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
que sabem. Tal situação coloca aqueles que chegam de outras partes
do Vaupés numa posição particularmente difícil. Segundo a população local, eles são os representantes de fato da sociedade branca: pertencem a outros grupos, falam outras línguas e devem ensinar em
espanhol. Eles ameaçam mais particularmente as identidades locais,
e não estão bem posicionados para ensinar ou defender uma cultura
da qual eles conhecem relativamente pouco. A evidente contradição
foi manejada com cuidado na reunião, mas todos foram de acordo
sobre o fato de que a substituição dos professores estrangeiros deveria ser uma prioridade maior.
Conclusão
A reunião que viemos considerando até aqui aparece em
muitos pontos de vista como um acontecimento histórico. Ela caracterizou-se por um nível de cooperação inteiramente novo entre a
população local e um poderoso grupo de estrangeiros, pela capacidade da primeira em conduzir as negociações com sucesso, assim
como pela conscientização de sua situação histórica e das possibilidades de determinação de seu futuro. Mas isso também é uma etapa
nova de um processo bem mais antigo.
No Vaupés a violência social é frágil. Mesmo no passado, a
guerra representou um papel menor. A resistência violenta aos brancos foi esporádica e curta, em razão dos valores tradicionais, do custo elevado que ela representava, de sua ineficácia e da chegada de
missionários que permitiram limitar os excessos mais nefastos dos
comerciantes. Após uma breve fase de movimentos milenaristas na
segunda metade do século anterior (ver S. Hugh-Jones 1994), a ênfase foi posta principalmente na conciliação, mais do que sobre a resistência.
Na zona do Pirá, onde os missionários chegaram relativamente tarde, a resistência ativa persistiu com os payés tendo procurado manter os brancos na periferia de seu universo concêntrico. Em
139
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
um plano prático, essa resistência cultural fez-se acompanhar de um
compromisso material necessário, a fim de assegurar o abastecimento em produtos de consumo.
Inicialmente, os missionários eram mais percebidos como
fonte de mercadorias. A instrução era considerada mais como uma
garantia de relações comerciais equânimes e como uma nova fonte
de empregos do que como geradora de conflito “cultural”. A “cultura” era essencialmente uma preocupação dos estrangeiros. O impacto cultural da educação dos missionários e do proselitismo no Pirá é
o tema principal de A Guerra dos Deuses. Este filme2, realizado em
1971, influenciou as relações políticas entre missionários e antropólogos trabalhando no Vaupés, e permitiu colocar a cultura e a educação na pauta do novo movimento indígena. Seu tom pessimista reflete o fato de que, à época, o futuro da cultura indígena parecia
estar nas mãos dos estrangeiros, estando a população pouco consciente da realidade da situação. Como conseqüência, ela não estava
em posição de reivindicar o que quer que fosse.
A conferência de 1996 mostrou que um tal pessimismo não
era justificado: se esse sentimento foi um sintoma da aceleração da
mudança e do aprofundamento da integração na sociedade nacional, ele também subestimou a capacidade da população do Pirá em
gerenciar seus próprios negócios e em produzir soluções inovadoras para os novos problemas, reinterpretando-os sob uma nova luz.
O crescimento do movimento indígena, a nova Constituição e a reforma do sistema educativo modificaram o equilíbrio de poder no
jogo complexo entre a população local, os Tukano mais aculturados,
os missionários, comerciantes e antropólogos, e fizeram os políticos,
as ONGs e os representantes diretos do Estado os novos atores da
cena. Indiretamente, tais mudanças deram nascença a uma nova forma de organização, fundada nas antigas prerrogativas do capitan,
2
Guerra dos Deuses, Televisão Granada, série “Os Mundos em via de desaparição”.
Diretor: Brian Moser; antropólogos consultados: C.Hugh-Jones, S.Hugh-Jones e P.
Silverwood-Cope.
140
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
agora exercidas no seio da ACAIPI. Mais diretamente, tais mudanças permitiram à população recolocar em questão a dependência cultural criada pelo antigo sistema de educação e exigir uma maior participação na futura organização. Se Jackson (1991:140) tem razão em
estimar que A Guerra dos Deuses está agora em via de transformar-se
na “guerra dos burocratas”, é também uma guerra onde os estrangeiros dançam cada vez mais uma música indígena.
O desenvolvimento de uma nova consciência da cultura e
de um novo e mais amplo sentido de identidade étnica foi um elemento crucial no processo. Esse interesse pela cultura e pela identidade teve duas fontes principais. De uma parte, os professores e
outros jovens puderam exprimir, através da instrução, novas idéias
e um vocabulário oriundo do movimento indígena e seus aliados.
De outra parte, o impacto da educação, inicialmente nos outros
Tukanos e mais tarde no próprio Pirá, fez a população tomar consciência de que a cultura, agora reconhecida como tal, pode ser mantida
ou perdida. A conferência mostrou que os jovens usam a sua educação para pensar de uma maneira nova as relações com o exterior e
especialmente a dependência cultural que ela criou, complementando
assim o ponto de vista dos mais antigos.
Os homens mais idosos têm sempre tendência a considerar
a cultura tradicional como uma realidade criada nos tempos ancestrais e situada bem para além do controle dos humanos: quer dizer,
uma realidade que deve manter-se não modificada enquanto os procedimentos rituais sejam corretamente executados. Durante a reunião, os índios deram-se conta de que, além dos ritos e dos mitos, a
aprendizagem prática era um outro importante mecanismo de transmissão da cultura. A reunião pôs então em evidência o conflito entre
os modos tradicionais de aprendizagem e a escola convencional, assim como o fato de que a transmissão cultural depende igualmente
da intervenção ativa de toda a população. O curso de
profissionalização ilustra essa intervenção e visa a reduzir o conflito
entre as antigas e as novas formas de aprendizagem, combinando-se
o melhor das duas.
141
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
A formação e o novo programa propostos implicam um processo de “re-indianização” dos professores e dos alunos. Entretanto,
é manifesto que eles não serão jamais os “índios” de antigamente.
Reestabelecer completamente as formas culturais e sociais que as
malocas representam comporta um risco crescente de marginalização
social. A persistência de antigos estereótipos comporta também o
risco de identificação como “não-civilizados”. A população reconhece
esse paradoxo, mas, o que é mais importante, ela dispõe agora de
espaço para administrá-lo à sua própria maneira.
Bibliografia
HUGH-JONES, Stephen. From the Milk River. Cambridge University
Press, 1979.
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Indians”. L’Homme, n. 106-7, 1988.
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and Barter in Northwest Amazonia” in C. Humphrey et S. HughJones eds., Barter, Exchange and Value, Cambridge University Press,
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Humphrey et N. Thomas eds., Shamanism, Colonialism and the State,
Ann Arbor, University of Michigan Press, 1994.
JACKSON, J. “Being and Becoming an Indian in the Vaupés”, in G.
Urban et J. Sherzer eds., Nation States and Indians in Latin America,
University of Texas Press, 1991.
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Amazonian Indians, University of Arizona Press, 1994.
GROS, C. “Identités indiennes, identités nouvelles: quelques
réflexions à partir du cas colombian”. In: Caravelle, n. 63, 1994.
142
EDUCAÇÃO E CULTURA: UMA REFLEXÃO SOBRE O SISTEMA ESCOLAR...
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Bogotá: 1997.
Republica de Colombia - Política del gobierno nacional para la protección
y desarrollo de los Indígenas y la conservación Ecológica de la Cuelca
Amazónica, Secretaria General, Oficina de Publicaciones. Bogotá: 1998.
143
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO
INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
Luís Donisete Benzi Grupioni*
A existência de uma política pública de educação
escolar indígena, pautada pelo esforço de estender aos
povos indígenas a universalização do ensino público,
laico, não de modo homogeneizador, mas procurando respeitar e valorizar suas diferentes línguas e culturas, é uma
conquista recente do movimento indígena e de apoio aos
índios no Brasil. A aceitação oficial da possibilidade de
uma escola pautada pela afirmação das especificidades
culturais dos povos indígenas ocorreu no bojo do processo de reconhecimento do direito desses povos a permanecerem enquanto tais, e a terem suas práticas sociais e
suas visões de mundo respeitadas e valorizadas pelo Estado nacional.
As condições objetivas para a elaboração e
implementação de uma política pública de educação escolar indígena foram estabelecidas, no plano jurídico, a
partir da promulgação do atual texto constitucional, quer
por abandonar a perspectiva integracionista, quer pelo
efetivo reconhecimento da existência de comunidades étnica e socialmente diferentes, e no plano administrativo,
pela transferência da responsabilidade pela condução da
educação indígena do órgão indigenista federal para o
Ministério da Educação, em 1991, por meio do decreto
* Doutorando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo e
pesquisador no Mari - Grupo de Educação Indígena da USP. Consultor
da política de educação escolar indígena do Ministério da Educação.
144
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
presidencial de número 26. Ainda que recebida com ressalvas, pois
inseria-se num contexto de desmantelamento do órgão indigenista,
com o esfacelamento de suas atribuições por diferentes ministérios,
essa transferência de responsabilidade não se restringiu a uma mudança administrativa, mas ensejou um processo que permitiu que a
oferta de programas de educação e de acesso à escola por parte dos
povos indígenas deixasse de ser pensada enquanto assistência para
ser enfrentada como direito, a ser garantido por meio de uma política
pública específica para o setor.
Ao ser percebida como um direito dos povos indígenas, a
proposta de uma escola que lhes permitisse acesso aos conhecimentos universais por meio da valorização dos seus modos próprios de
pensar, produzir e expressar conhecimentos, deixa para trás uma
prática de intransigência e imposição de um modelo de escola que
historicamente se estruturou a partir de premissas civilizadoras e
catequéticas1.
Essa política passou a ser desenhada ao longo dos últimos
anos, de forma gradual e cumulativa, obviamente absorvendo orientações e sofrendo os constrangimentos das propostas e programas
educacionais implementados pelos diferentes governos do período2.
Também é verdade, que essa política foi sendo escrita pelas mãos de
diferentes atores do campo educacional indígena3, que ocuparam
posições e espaços abertos no governo, e ainda que não tenha sido
Para uma contextualização dos diferentes modelos de escola implementados em meio
indígena, pode-se consultar as seguintes coletâneas: Lopes da Silva, Aracy (org.) 1981;
o periódico Em Aberto, Vol. 63, jul/set, 1994; D’Angelis, Wilmar e Veiga, Juracilda
(orgs.) 1997; Lopes da Silva, Aracy e Ferreira, Mariana (orgs.) 2001.
2
Refiro-me especificamente aos governos de Fernando Collor, Itamar Franco e
Fernando Henrique Cardoso, no período de 1991 a 2002, e seus respectivos ministros
da educação Carlos Chiarelli, Murílio Hingel e Paulo Renato Sousa.
3
Acredito que é possível pensarmos os atores e suas propostas para a educação indígena como compondo um campo específico de atuação, que ainda que faça parte do
campo indigenista, vem cada vez mais ganhando conformação própria. Estou utilizando a noção de campo enquanto “um sistema estruturado de forças objetivas”, tal
como Pierre Bourdieu propõe em “O Campo Científico” In Ortiz, Renato - Pierre
Bourdieu, São Paulo: Ática, 1982.
1
145
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
uma prioridade, a problemática da educação escolar indígena ganhou importância política e institucional, bem como visibilidade
dentro da esfera da administração pública federal e estadual. O resultado final é que algumas orientações e formulações foram
construídas, e encontram-se hoje, não só fundamentadas no âmbito
do Estado, como constituem princípios gerais vistos como conquistas pelos atores sociais diretamente envolvidos no campo educacional indígena.
O momento atual é marcado por experiências exploratórias
em torno das novas possibilidades que se abriram a partir da densa
legislação que dá respaldo a essa nova escola indígena, bem como
em relação ao atendimento que as políticas públicas podem dar a
essa escola. De tal modo que, passamos, como registra Lopes da Silva, “da denúncia da escola antiindígena à avaliação de suas possibilidades
como agência libertária e afirmativa da especificidade indígena no cenário
nacional” (2001: 101).
Refletir sobre os avanços obtidos, desde a promulgação da
Constituição de 1988, no que se refere a consolidação de uma política pública que assegure o direito a uma educação específica e diferenciada para os povos indígenas que vivem no Brasil, respeitosa da
diversidade étnica e cultural, e apontar alguns impasses para a sua
implantação, são os objetivos desse artigo.
A abertura do Estado
A tentativa, por parte do Estado brasileiro, de construir consensos, face a diversidade de concepções e práticas a respeito da escola e do sentido que a escola poderia ter em comunidades indígenas, talvez seja o maior avanço obtido nesses últimos anos: pode-se
dizer que os pilares sobre os quais se assentam a política de educação indígena hoje no país são consensuais e isso não é pouca coisa,
visto a enorme heterogeneidade de orientações e posições defendidas pelos diferentes atores do campo da educação indígena.
146
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
A proposta de que a escola pode contribuir para que os povos indígenas mantenham e valorizem suas identidades diferenciadas, de que ela pode colaborar para o estabelecimento de relações
mais equilibradas com os demais segmentos da sociedade brasileira, de que ela tem um desempenho melhor se a sua frente estiverem
professores indígenas da própria etnia, de que a comunidade indígena tem um papel fundamental na definição dos objetivos e na gestão da escola, de que ela produza e trabalhe com materiais didáticos
específicos, de que a alfabetização ocorra na língua materna; de que
o calendário escolar deva interagir com as práticas cotidianas e rituais do grupo, de que o professor indígena se qualifica para o magistério ao mesmo tempo em que se escolariza, de que a educação escolar pode cumprir uma função importante no diálogo intercultural,
permitindo aos índios entender melhor o mundo em que estão inseridos, são alguns dos consensos estabelecidos, que se encontram
explicitados tanto na legislação quanto em documentos normativos
do governo federal.
Esses consensos não significam práticas homogêneas, ao contrário, ainda que no conjunto se identifique várias concepções comuns a muitos dos projetos de formação de professores indígenas
ou de experiências inovadoras de escola indígena, eles se traduzem
na prática em diferentes e distintas experiências de atuação. Ainda
que se verifique procedimentos comuns a muitos desses projetos e
experiências, variam enormemente seus objetivos, métodos, estratégias e enfoques prioritários. Isto se torna particularmente evidente
quando se comparam ações conduzidas por organizações não-governamentais ou por órgãos de governo. Portanto, longe de formular que há uma homogeneização de práticas e concepções no campo
da educação escolar indígena, o que estou afirmando é que há hoje
um discurso hegemônico, amplamente partilhado, alicerçado em
algumas concepções que emanadas do movimento indígena e de
apoio aos índios tornou-se paradigma para a legislação e para a definição de uma política pública especialmente voltada para a educa-
147
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
ção indígena. Como condição e decorrência da construção desses
consensos, houve o envolvimento, em diferentes momentos e de diferentes formas, dos vários setores e atores, governamentais e nãogovernamentais, nos processos de formulação de novos paradigmas,
e na elaboração de ações e programas educacionais voltados para as
comunidades indígenas.
O que ocorreu nestes últimos anos foi que, ao assumir a condução do processo da oferta de educação escolar aos povos indígenas, o Ministério da Educação, que não tinha qualquer tradição de
atuação nessa área, criou dentro de sua estrutura, instâncias e mecanismos por meio dos quais diferentes segmentos do campo educacional indígena se fizeram presentes, contribuindo para a elaboração
dessa nova linha de política pública. Se, de um lado, houve uma
abertura do Estado para acolher proposições destes atores, de outro,
devemos reconhecer, que eles foram competentes em buscar canais
efetivos por meio dos quais se fizeram ouvir dentro do Estado, conquistando posições e influenciando positivamente a agenda do governo. Isso foi realizado de tal forma que se conseguiu, ainda que de
modo limitado, um certo controle social das práticas e da política
implementada pelo Estado4.
Houve, nesse período, um esforço em definir e construir um
arcabouço jurídico e normativo, que balizasse a proposta de uma
escola diferenciada, que cumprisse um papel a favor do futuro dos
povos indígenas, incentivando a autonomia e uma ação afirmativa
em relação às suas línguas e culturas. Esse processo ganhou maior
4
Refletindo sobre esse período, escreve Monte: “A relevância de alguns grupos organizados da sociedade civil na formulação das políticas de educação escolar indígena vem sendo
motivo de cantada conquista no Brasil das últimas décadas. Diferentes atores políticos envolvidos com a implementação da nova escola indígena - organizações não governamentais, movimentos indígenas e órgãos de Estado -, de diversas posições e perspectivas políticas, pronunciam discursos similares sobre a educação requerida. É como se as vozes das sociedades indígenas, há séculos silenciadas pelas políticas educacionais, finalmente pudessem formular e
explicitar seu projeto de escola, faze-lo ecoar e reproduzir, ainda que sob intenso debate e
conflito, em forma de novas propostas de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado
brasileiro” (2000: 08).
148
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
vazão na medida em que diferentes projetos de leis foram discutidos e aprovados no Congresso Nacional, permitindo que o direito a
uma educação intercultural fosse incluído e recepcionado nessas leis,
ampliando o seu processo de reconhecimento e legitimação.
Paralela e concomitantemente, buscou-se a estruturação de
um sistema e de um modelo de gerenciamento e execução para a
educação escolar indígena, com atribuição e definição de competências, entre os diferentes atores e instâncias governamentais, fazendo
com que o sistema educacional incorporasse as escolas indígenas.
A busca de uma escola que abrisse as portas da cidadania
aos índios, ao mesmo tempo em que lhes permitisse valorizar e dar
continuidade às suas práticas e saberes tradicionais, reavivando o
sentimento de pertencimento étnico, ensejou a elaboração de vários
documentos, referenciais e programas, que, sintetizando concepções
e práticas, apontaram caminhos para a ação e para a atuação dos
diferentes agentes governamentais e não-governamentais do campo
da educação indígena.
Nesse processo, os professores indígenas tiveram um papel
fundamental, na medida em que sua organização em associações de
professores indígenas ou sua participação em assembléias e encontros de lideranças indígenas, conduziu a temática da escola diferenciada ao topo das reivindicações, juntamente com questões relativas
ao reconhecimento territorial, à assistência à saúde e à representação política. Questões de caráter eminentemente pedagógico, como
currículos, calendários, regimentos, conteúdos escolares foram discutidas e tratadas como questões em que se deveria exercer o direito
à afirmação da diferença, percebido como condição para romper com
os modelos de escola predominantes, em inúmeras reuniões e encontros de professores indígenas. Proposições surgidas nesses fóruns
ganharam amplitude ao serem incorporadas e propagadas por organizações não-governamentais e especialistas de universidades, a
ponto de servirem de parâmetro para apresentação de propostas tanto
em termos das leis que entraram em discussão no Congresso Nacio-
149
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
nal quanto da política nacional de educação indígena elaborada pelo
governo federal.
Como decorrência dessas modificações que se impuseram
no tratamento governamental dado a questão da educação indígena, algumas mudanças de postura e a abertura de novos espaços
institucionais merecem comentários.
Novos cenários
Primeiramente, podemos registrar que, neste período, firmou-se a idéia de que o trabalho em educação indígena não se resolve em gabinete e tampouco numa ação exclusiva do corpo técnico e
administrativo do Estado, mas precisa e ganha valor na medida em
que se baseia na participação dos índios e de seus aliados. Percebida a
necessidade de se contar com especialistas em antropologia, lingüística, pedagogia e em outras áreas do conhecimento, ao mesmo tempo em que não se pode prescindir da participação da comunidade
indígena na definição dos objetivos da escola, tratou-se, por diferentes meios, de garantir o envolvimento dos diferentes atores da educação indígena na definição das políticas e das ações a serem desenvolvidas.
O movimento pela participação desses atores partiu do reconhecimento, por parte do Estado, de que as melhores e pioneiras
experiências de escolas indígenas, dentro desse novo marco da diferença e de valorização lingüística, foram criadas e levadas a cabo
por organizações não-governamentais de apoio aos índios, contra a
prática integracionista do Estado brasileiro. É também oportuno lembrar que boa parte do melhor do que se tem produzido em termos
de reflexão e de construção de idéias e práticas em torno dessa nova
proposta de escola indígena tem se dado no âmbito das universidades, das organizações de apoio e do próprio movimento indígena,
assessorado por especialistas, num amplo e construtivo movimento
150
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
de parceria5.
No âmbito do Governo Federal, esse princípio foi exercido
por meio da constituição de um Comitê Nacional de Educação Escolar
Indígena, no MEC, reunindo diferentes atores do campo da educação, que conduziu o início do processo de elaboração da política nacional de educação indígena6. Coube a esse colegiado traçar as linhas da política a ser implementada, bem como definir programas e
ações a serem executados. Nas esferas estaduais, incentivou-se a criação de Núcleos de Educação Indígena, com ampla representação dos
vários atores institucionais locais7. Em alguns estados da Federação,
esses núcleos potencializaram propostas de mudanças no quadro da
educação indígena, tendo atuação pioneira a partir de trabalhos desenvolvidos coletivamente em parceria com os governos locais. Ainda nessa linha, tem-se hoje a Comissão Nacional de Professores Indígenas, composta por 13 professores indígenas titulares e outros 13 suplentes, de diferentes regiões do Brasil. Empossada em 2001 no MEC,
tem função assessora e propositiva em relação a política de educação escolar indígena. Considerada uma conquista pelo movimento
indígena, esta Comissão é a única instância totalmente indígena a
O crescimento da produção escrita sobre a educação indígena pode ser aferida em
diferentes frentes, como, por exemplo, pelos inúmeros documentos preparados em
encontros e reuniões de professores indígenas, pela quantidade e variedade de materiais didáticos diferenciados escritos em línguas indígenas e em português, pelas várias coletâneas de artigos lançadas nos últimos anos (ver bibliografia), ou ainda pela
quantidade de dissertações de mestrado e teses de doutorado abordando temas de
interesse da educação indígena: segundo levantamento recente seriam mais de 70 trabalhos nos últimos 25 anos (Cf. Grupioni, L.D.B. - “A Educação Indígena na Academia:
inventário comentado de dissertações e teses sobre educação escolar indígena no Brasil (19782002)” in Em Aberto, vol 76 - Formação de Professores Indígenas no Brasil, INEP/
MEC, Brasília, no prelo).
6
A criação deste Comitê foi uma reivindicação formulada durante seminário promovido pelo Mari-Grupo de Educação Indígena da USP e pela Associação Brasileira de
Antropologia, em 1992 que contou com a presença de especialistas e representantes
de ongs. Para uma visão sobre esse período, consultar o Boletim da ABA, n.16 de
Abril de 1993.
7
A proposição da criação desses NEIs, nos sistemas estaduais de ensino, se deu por
meio da Portaria interministerial 559/91, que definiu sua composição bem como seus
objetivos.
5
151
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
executar o controle social de uma política implementada pelo Estado brasileiro.
Nos últimos anos, um conjunto importante de referenciais
normativos e legais foram elaborados, abrindo a possibilidade para
se pensar em novos modelos de escola e de práticas escolares em
terras indígenas. A bem da verdade, desde a promulgação da Constituição de 1988 vem se constituindo um novo e detalhado quadro
jurídico a regular o direito dos povos indígenas a uma educação
pautada pelos paradigmas da especificidade, da diferença, da
interculturalidade e da valorização da diversidade lingüística. Num
curto período de tempo, a educação escolar indígena encontrou acolhimento nas principais leis do país a regulamentarem a educação
nacional. Este recente ordenamento legal se deu de modo homogêneo, não contraditório e inscreveu definitivamente a educação indígena no rol dos temas da educação do país. Deste conjunto merecem
ser destacadas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/
96); a Lei 10.172 de 2001 que institui o Plano Nacional de Educação, que
entre as modalidades de ensino, inclui a educação indígena; a Resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação que fixa diretrizes
nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e o Parecer 14/
99, do mesmo Conselho, que estabelece as diretrizes curriculares
nacionais da educação escolar indígena8.
Em conjunto estes textos legais e normativos disciplinam e
orientam inúmeras questões referentes a definição do que é escola
indígena, da formação e do trabalho do professor indígena, da natureza e dos objetivos do currículo e dos materiais didáticos diferenciados, dos conteúdos e das competências a serem desenvolvidas nos
processos escolares. Esse disciplinamento consegue ser suficientemente operativo para regulamentar e orientar várias dessas questões sem ser restritivo a ponto de engessar situações etnográficas
O conjunto destes textos legais e normativos encontra-se reproduzido e comentado
na publicação As leis e a educação escolar indígena (Programa Parâmetros em Ação de
Educação Escolar Indígena), editado pelo MEC/SEF, em 2001.
8
152
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
particulares. Face a diversidade étnica, histórica e cultural representada pelos mais de 200 povos indígenas contemporâneos e a histórica necessidade da existência de leis para obrigar e orientar os agentes públicos, devemos reconhecer que esse arcabouço legal cumpre
um papel a favor dos índios e não contra.
Ainda sobre esse conjunto de leis e atos normativos, devemos dizer que boa parte deles surge como conseqüência da prática e
da reflexão de projetos pioneiros desenvolvidos em algumas regiões
do país, notadamente na região norte, por organizações não-governamentais de apoio aos índios, constituindo-se assim em iniciativas
pioneiras e inspiradoras de novos projetos e situações. Neste sentido, esta nova legislação encontra-se, de certa forma, na vanguarda
do movimento pela institucionalização da educação indígena nos
sistemas de ensino, e mais do que impor limites ao surgimento de
novas práticas, esta nova legislação vem abrindo todo um campo de
possibilidades de construção de novos modelos e de novos
paradigmas, a despeito das leituras que associam normatizar a
engessar e oficializar a oprimir.
Nunca é demais lembrar, todavia, a distância que separa o
que se estabelece na lei e o que se vivencia no dia-a-dia. E avaliações
recentes sobre a situação da educação escolar indígena no país evidenciam o quanto a legislação sobre educação escolar indígena ainda não foi absorvida pelos sistemas de ensino. Um fator a contribuir
negativamente para essa situação é o baixo grau de conhecimento
dos próprios professores indígenas e de suas comunidades quanto
as mudanças ocorridas na legislação indigenista pós Constituição
de 1988, bem como o fato de que a reflexão sobre essa nova proposta
de educação indígena ser ainda incipiente para muitas comunidades indígenas. Tem-se aqui um enorme desafio no sentido de preparar os professores indígenas, suas lideranças e comunidades para
conhecerem, entenderem, avaliarem e exigirem o cumprimento de
seus direitos a uma educação diferenciada e de qualidade.
No tocante a orientações e formulações de paradigmas, bem
153
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
como de inclusão das escolas indígenas em programas governamentais, cabe registrar que nesses últimos 10 anos elaborou-se alguns
documentos que passaram a nortear as ações do Estado e também
de setores não governamentais envolvidos com a educação indígena. Estes documentos foram produzidos e editados no âmbito do
governo federal, mas contaram com a participação de diferentes segmentos do campo educacional indígena. É o caso das Diretrizes para
a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1994, produzido
pelo então recém constituído Comitê de Educação Escolar Indígena,
e que foi o instrumento catalizador da promoção desse novo modelo
de escola que passou a ser defendido após a Constituição de 1988,
servindo de guia para a absorção desta nova demanda por parte dos
sistemas estaduais de ensino.
Alguns anos depois, em 1998, no bojo do processo de elaboração de novos parâmetros para a educação básica, formulou-se o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, cuja coordenação também ficou a cargo do Comitê de Educação Escolar Indígena, mas que envolveu, tanto na redação de suas partes quanto na
apreciação do texto final, um grande número de especialistas e professores indígenas. Por fim, em 2002, lançou-se os Referenciais para a
Formação de Professores Indígenas, documento escrito a partir da realização de seminários com diferentes atores do campo educacional9,
que sistematiza as principais idéias e práticas adotadas em diferentes programas de formação de professores indígenas no Brasil, apresentado como subsídio para a implantação de programas deste tipo
nos sistemas estaduais de ensino.
Esses três documentos mantêm não só um diálogo entre si,
apesar de terem sido produzidos em momentos distintos, como comUm primeiro seminário foi realizado com os coordenadores de programas de formação de professores indígenas promovidos por secretarias de educação, por organizações não-governamentais e universidades, a partir do qual elaborou-se a primeira
versão do documento. Esta versão foi submetida a um grupo de professores indígenas representando diferentes regiões do país, sendo depois apreciado pelas secretarias estaduais de educação e por pareceristas de diferentes instituições.
9
154
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
põem um corpo de formulações, de certo modo consensual, que tem
sido debatido em diferentes fóruns, criando um campo discursivo
em torno da educação escolar indígena, a partir do qual os diferentes atores têm se posicionado. Em algumas instâncias em que estes
documentos não produziram o efeito normatizador que deles se esperava, notamos que serviram de instrumentos para uma reivindicação indígena qualificada, que soube extrair deles o caráter de terem sido gerados no âmbito federal.
Por fim, como conseqüência do movimento que retirou do
órgão indigenista oficial a condução dos assuntos referentes a escola
indígena e o inseriu no âmbito do sistema nacional de educação,
gerou-se a necessidade de se estruturar um modelo de gerenciamento
e de execução da educação indígena no país. Após um longo período de indefinições legais e administrativas, permeado por disputas
entre os órgãos envolvidos na questão, acabou-se por firmar um
modelo em que a coordenação das políticas e programas nacionais
voltados às escolas indígenas ficou sob responsabilidade do Ministério da Educação, cabendo a execução e o atendimento escolar aos
sistemas estaduais, e sob condições restritivas, também aos municipais.
Tal como analisou, na época, Lopes da Silva: “Está em pauta,
no momento atual, o processo de implementação efetiva dessas propostas e o
que já se nota é o desencontro entre as experiências positivas de construção
de escolas indígenas diferenciadas pelos próprios índios e o modo como, em
geral, as novas normas e os novos direitos indígenas são apreendidos nos
âmbitos institucionais estaduais e municipais, mais distantes dos centros
federais de decisão - que estabelecem as diretrizes e os princípios que devem
reger a escola indígena- porém mais diretamente encarregados do acompanhamento e da viabilização e reconhecimento oficial dos projetos de
escolarização diferenciada propostos por comunidades indígenas específicas
ou grupos ligados a ONGs ou a universidades” (2001: 110).
Certamente é aqui que residem as principais fraquezas da
proposta de dar a educação indígena um tratamento de política pú-
155
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
blica e de buscar o envolvimento efetivo e real do sistema educacional como um todo com a oferta de uma escola de qualidade para os
povos indígenas, que rompa com um modelo de subordinação e tutela a que estavam submetidas inúmeras comunidades. Isto porque
implica na criação de novas práticas administrativas, que só podem
ser viabilizadas a partir da qualificação do corpo técnico burocrático
do Estado e da vontade política dos dirigentes governamentais. Nesses últimos anos, é possível dizer que para a maioria dos estados da
Federação faltou a sincronia desejada entre a demanda indígena por
novos rumos para a educação escolar, a disposição administrativa
para buscar soluções inovadoras e a vontade política. Mas é aqui
também, paradoxalmente, que se contabilizam grandes avanços no
sentido do enraizamento da educação indígena como política pública e do acolhimento das escolas indígenas por parte dos sistemas de
ensino, notadamente em algumas unidades da Federação10.
Hoje, diferentemente de alguns anos atrás, é possível afirmar que há um sistema estruturado para a execução da educação
escolar indígena no país, balizado pela legislação que trata do tema.
Os contingenciamentos que ele sofre no dia-a-dia, diante da
inoperância dos agentes governamentais, marcada por falta de competência técnica e de vontade política exige que se encontre soluções
para entraves que tendem a se cristalizarem em rotinas de trabalho
pouco eficientes e inibidoras dos avanços conquistados na legislação.
Se, de modo geral, no plano legal e normativo e de formulações conceituais chegou-se a um relativo entendimento, a partir do
qual diferentes práticas podem ser experimentadas, o mesmo não se
pode dizer do modelo de gerenciamento da educação indígena, em
Para uma análise dos percalços envolvidos nesse processo, consultar o artigo de
Grupioni, Luís Donisete Benzi - “De Alternativo a Oficial: sobre a (im)possibilidade
da educação escolar indígena no Brasil” In: D’Angelis, W. & Veiga, J. (orgs). 1997 e o
artigo de Lopes da Silva, Aracy - “Educação para a Tolerância e povos indígenas no
Brasil” In: Grupioni, Vidal e Fischmann (orgs.), 2001.
10
156
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
que alguns atores defendem a revisão e a mudança do que está estabelecido, pregando a federalização das escolas ou a criação de um
sistema educacional indígena autônomo. Essa discussão permanece
latente e, diferentemente do início dos anos 90, em que a discussão
foi pautada pelos aliados dos índios, há agora um leque expressivo
de expoentes indígenas que se legitimaram como lideranças desse
campo bem como de organizações de professores que têm posições
e visões próprias sobre essa e muitas outras questões.
Impasses e desafios
Muitas e importantes mudanças foram conquistadas nestes
últimos anos no sentido de reconhecer aos índios o direito a uma
educação que lhes respeite enquanto membros de minorias étnicas,
protegidas pelo Estado brasileiro, rompendo o ranço colonial tanto
da legislação quanto da política indigenista que orientava o projeto
civilizador de integração dos índios à comunhão nacional. E se considerarmos que estamos abordando um período de cerca de 15 anos,
essas mudanças de perspectiva e de paradigma, tanto no plano
legislativo, quanto da política do Estado, não há como deixar de reconhecer que elas se processaram num ritmo rápido, de modo relativamente consistente, e que apontam para um cenário completamente diferente de futuro para os povos indígenas no país.
Não obstante, para a maioria dos sistemas de ensino, os sinais de consolidação desse reordenamento jurídico são frágeis e não
impactaram positiva e largamente as políticas públicas de educação
por eles implementadas: de modo geral, as inúmeras demandas colocadas pelos povos indígenas em relação aos processos escolares
em curso em suas terras permanecem sem respostas satisfatórias por
parte do poder público.
Isto ocorre, dentre muitos outros fatores, pelo não cumprimento da legislação por parte dos sistemas de ensino e pela dificuldade de se acionar judicialmente seus gestores. Ainda que o movi-
157
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
mento dos professores indígenas tenha crescido exponencialmente
nesses últimos anos, e que o conhecimento sobre os novos direitos
tenha se disseminado por todo o país, a mobilização por uma nova
educação indígena enfrenta diversos constrangimentos. Um deles
diz respeito ao fato de que para terem acesso ao modus operandi do
sistema de ensino, para cobrar seu bom desempenho, dependem justamente dele, isto é, os personagens que devem ser questionados ou
criticados são os mesmos que, em princípio, deveriam lhes repassar
as informações necessárias para isso.
Nessa situação paradoxal encontramos o professor indígena, hoje em sua maioria contratado pelo Estado, a quem se subordina como funcionário público, dependente do salário e das políticas
de formação e capacitação profissional, que tende cada vez mais a
dar respostas a este sistema que a submeter-se ao controle social de
sua própria comunidade. Esse é, também, um fator importante a ser
considerado: hoje, poucas são as comunidades que controlam efetivamente as suas escolas e os seus professores. A educação indígena
diferenciada tem sido conduzida mais pelos professores indígenas,
assessorados por ongs ou secretarias de educação, do que propriamente pelas comunidades indígenas. Este é um desafio a ser enfrentado por aqueles que vêm pensando a educação escolar indígena,
pregando que uma de suas características básicas deva ser o de se
constituir como escolas comunitárias.
Uma outra dificuldade a ser superada diz respeito a criação
de linhas de financiamento estáveis que permitam bancar o custeio
das demandas colocadas por essas escolas para seu adequado funcionamento, bem como para os programas de formação de professores e de produção e publicação de materiais didáticos de autoria
indígena. Hoje os recursos disponíveis para financiamento da educação escolar indígena, quer no âmbito federal, quer estadual, são
modestos, descontínuos, pontuais e, de modo geral, insuficientes,
colaborando para a prática de realização de eventos de capacitação
de professores indígenas ou de edições únicas de materiais didáti-
158
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
cos, quando deveriam possibilitar a institucionalização de processos
de formação inicial e continuada desses professores e de linhas permanentes de publicações para essas escolas. Isso sem contar a total
falta de equipamentos e recursos didático-pedagógicos em que se
encontram a quase totalidade das escolas indígenas do país, que por
possuírem, normalmente, um número reduzido de alunos, não são
beneficiadas pelos programas nacionais de melhoria das condições
de ensino.
Junte-se à falta de recursos financeiros a também inexistência
de recursos humanos qualificados e estáveis na administração dos
sistemas de ensino, com alto grau de rotatividade e pouca especialização e conhecimento técnico do campo da educação escolar indígena, e os desafios a serem contornados tornam-se ainda maiores. Nesse
contexto, devemos reconhecer que o Ministério Público Federal tem
tido, de modo geral, uma atuação tímida face aos desmandos e
idiossincrasias praticadas pelos sistemas de ensino.
Pois quando se deparam com má vontade, com descaso, com
indiferença, com prepotência e com ignorância, os professores indígenas e suas comunidades ainda não sabem muito a quem recorrer,
a quem apresentar suas demandas: uma ação mais ativa e incisiva
da parte do Ministério Público Federal, chamando os agentes públicos para o cumprimento dos dispositivos legais existentes e para o
atendimento das demandas específicas postas pelas comunidades
indígenas em relação as escolas localizadas em suas terras poderia
representar uma grande diferença no cenário educacional indígena.
Inúmeras são as dificuldades ainda a serem superadas para
que esse modelo de escola indígena possa se realizar em plenitude,
atendendo aos diferentes anseios e expectativas das comunidades
indígenas em relação a ela, e impedindo que a busca de maior
escolarização por parte de indivíduos e de famílias indígenas façam
da escola em terra indígena a porta de saída de suas comunidades
em direção aos núcleos urbanos. Tais dificuldades seriam, sem dúvida alguma, maiores se não tivéssemos uma legislação favorável e
159
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
um movimento social organizado em torno de propostas, conceitos,
idéias e práticas que vêm, gradativamente, sendo incorporadas pelas políticas públicas. O desafio está em torná-las efetivas, mas os
passos certeiros dados até aqui, indicam que o movimento indígena
e de apoio aos índios continuará a conquistar novas posições nesse
jogo.
Hoje, mais do que ontem, os professores indígenas e suas
comunidades estão atentos e conscientes dos avanços conquistados
nos últimos anos quanto ao potencial da escola em seu meio. O que
se garantiu nos textos legais e normativos lançou bases para a
edificação de projetos próprios e autônomos de escola indígena. O
que se precisa garantir agora é que os sistemas de ensino, ao
recepcionarem essas escolas e esses novos processos escolares o façam de modo a oxigenar suas engrenagens, para que delas saiam
novas práticas que permitam o exercício pleno do direito a uma educação intercultural.
Afinal o Estado brasileiro contraiu uma dívida secular com
os povos indígenas ao longo da história, e talvez tenha chegado o
momento de implementar, de forma corajosa, políticas afirmativas,
que impulsionem o sentimento de pertencimento étnico por parte
desses povos minoritários, para um exercício pleno de cidadania e
de democracia.
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Paulo: Brasiliense e Comissão Pró-Índio/SP, 1981.
160
DO DISCURSO E DAS AÇÕES: A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL COMO POLÍTICA PÚBLICA
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São Paulo: Instituto Sócioambiental, 2000.
SANTILLI, Márcio. Os Brasileiros e os índios. São Paulo: Editora Senac,
2001.
161
A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ1
Kleber Gesteira e Matos*
Nos últimos trinta anos desenvolveram-se no Brasil projetos de educação escolar indígena que trazem as
marcas da tradição de cada etnia, associadas a inovações
pedagógicas, didáticas e curriculares que muito têm a
oferecer aos demais segmentos da educação nacional. Vou
focar, nesse relato, uma das experiências de educação matemática entre os jovens e adultos do povo Xacriabá, que
protagonizam um processo de formação de professores
de alfabetização e de séries iniciais do Ensino Fundamental. Existe uma profunda relação desta sociedade com seu
território, cujo significado simbólico e político-social transcende, em muito, o mero papel de suporte físico para existência dos Xacriabá. Dessa forma, a educação escolar só
poderá esgotar todas suas potencialidades se for
referenciada no espaço geográfico que abriga aquele povo.
Uma breve digressão histórica é necessária para melhor
contextualizar essas idéias.
Os Xacriabá
Os Xacriabá são descendentes de povos que habitavam um extenso território delimitado pelos vales dos
* Licenciado em Física pela UFMG, consultor em Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação, consultor e formador em vários projetos de educação escolar indígena no Brasil.
1
Este texto foi publicado na Revista Alfabetização e Cidadania, n. 14.
RAAB - SP: julho, 2002.
162
A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ
rios São Francisco e Tocantins. Falantes da língua Akwén, tronco
lingüístico Macro-jê, apresentavam afinidades culturais e lingüísticas com os Xavante e os Xerente. Existem registros históricos da
invasão de seu território já em princípios do século XVII, quando os
bandeirantes paulistas varreram os sertões à caça de escravos e ouro.
Outra via de penetração colonizadora foi o São Francisco: expedições armadas subiram o rio em busca das chamadas “drogas do sertão”, e eram combatidas por grupos Akwém.
Capistrano de Abreu narra escaramuças entre povos indígenas que habitavam o vale do São Francisco e os colonizadores. Com
o objetivo de “limpar os sertões” é declarada em 1669 a Guerra aos
Índios Tapuias do Nordeste. O termo Tapuia designava todos os
povos que não eram falantes das línguas Tupi, que de modo geral
dominavam amplamente a região litorânea do que é hoje o território
brasileiro. Hordas comandadas por Domingos Jorge Velho, Matias
Cardoso e Morais Navarro, entre outros, combateram os índios do
São Francisco, matando, escravizando e pondo em debandada um
número indeterminado de povos. À medida que ocupavam militarmente a região, os colonizadores implantavam empreendimentos
rurais para criação de gado.
Os grupos que logravam sobreviver eram aglutinados em
missões religiosas, aldeamentos controlados pela Igreja Católica, que
tinham a tarefa de converter o gentio e garantir o provimento da
mão-de-obra necessária à expansão das atividades pastoris e de coleta de especiarias. Nessas missões, membros de diversas etnias eram
obrigados a uma vida em comum. A imposição da religião católica,
do uso da língua portuguesa, do trabalho escravo e a permanente
tomada de mulheres indígenas pelos colonizadores foi constituindo
uma população indígena que ao longo dos séculos acolheu ainda em
seu território muitos negros fugidos do cativeiro.
No início do século XVIII, Januário Cardoso, senhor de terras na região do médio São Francisco, fez a doação de uma sesmaria
aos índios da “Missão do Senhor São João”. Posteriormente os fa-
163
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
mosos viajantes Richard Burton e Saint-Hillaire dão notícias dos
aldeamentos Xicriabás, ou Chacriabás, na região.
Nos anos 20 do século passado, a região volta a ser abalada
por conflitos fundiários entre índios e não-índios. Em virtude de um
embate com latifundiários, inúmeras famílias de Xacriabá, conhecidos à época como “caboclos” ou “índios gamela”, são obrigadas a
abandonar parte de seu território original e a se dispersar pela região. No entanto, a relativa estagnação econômica do norte mineiro
permite aos Xacriabá uma vida pacífica até o início da década de
1970, quando a Ruralminas, uma autarquia do estado de Minas Gerais, passa a cadastrar terras a pretexto de “regularizá-las”. Para
evitar a expulsão, os legítimos donos do território são obrigados a
pagar taxas de registro de glebas individuais de terra. Resistindo a
esse processo de espoliação e desapropriação, os Xacriabá iniciam
uma luta coletiva pela posse da terra que só obtém sucesso em 1987,
com a demarcação da Terra Indígena Xacriabá, depois do assassinato de três líderes indígenas.
Posteriormente, um outro território, denominado Rancharia,
foi reconhecido e demarcado. Atualmente, mais de 6.600 pessoas se
distribuem por uma área total de 53.015 hectares, habitando dezenas de pequenas aldeias. O atual território Xacriabá estende-se pelos municípios de São João das Missões e Itacarambi, no norte de
Minas, a uma distância aproximada de 720 Km de Belo Horizonte.
Toda essa longa experiência histórica de luta e resistência
forjou uma população muito cônscia de sua identidade e extremamente vinculada à terra que habita. Construiu também as múltiplas
estruturas de uma sociabilidade complexa e diversificada, em que
são cultivadas com força, beleza e muita originalidade expressões
culturais originárias dos diversos atores sociais que, ao longo de todos aqueles anos, participaram da constituição da sociedade Xacriabá
de hoje. Entre eles, podemos observar expressões pictóricas como as
reelaborações de pinturas corporais e pinturas de residências com
barro colorido da região, decoradas com motivos semelhantes a de-
164
A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ
senhos rupestres. Manifestações religiosas que incluem a adoção de
um panteão de santos e mártires da fé católica associados a entidades protetoras ligadas aos rituais do Toré, mescladas com a prática
de romarias ao Senhor Bom Jesus da Lapa e ladainhas que ainda
guardam seqüências inteiras em latim. Músicas de forte base rítmica executadas, com tambores, violas, palmas - como o Batuque -,
dialogam com cantigas de roda, Folias de Reis e a chamada música
sertaneja ou caipira. Enfim, os Xacriabá se apresentam hoje como as
lindas colchas de retalho produzidas no interior de Minas: diversos
tons, múltiplas texturas, muitas cores compõem um tecido social
costurado por uma filosofia de vida, uma ética sertaneja e um conjunto de valores que possibilitam a permanente reconstrução de fronteiras étnicas.
Educação escolar indígena
Um dos mais expressivos movimentos do processo de
redemocratização da sociedade brasileira na década de 1980 foi o de
lideranças indígenas apoiadas por organizações não-governamentais e indigenistas. Articulando encontros, marchas, protestos e ações
diretas, especialmente em Brasília, os índios conseguiram inscrever
na Constituição Federal de 1988 o direito à sua sobrevivência física e
cultural. Além de garantir aos índios a manutenção de sua identidade cultural, a Constituição assegurou, em seu artigo 210, o uso das
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem no Ensino
Fundamental. Nascia, com esse preceito constitucional, uma nova
idéia de educação escolar no Brasil: a educação escolar indígena comunitária, específica, diferenciada, intercultural e bilíngüe.
Em Minas Gerais, a Secretaria de Educação do Estado começou a responder àquelas demandas em 1994, por meio da realização
de encontros cujo tema era a educação escolar indígena. No ano seguinte foi realizado um diagnóstico para determinar e discutir as
necessidades e expectativas de cada povo em relação à sua educação
165
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
escolar. Um Programa de Educação Escolar nascia da parceria entre
os povos indígenas que tem suas terras em Minas (Xacriabá, Krenak,
Maxakali e Pataxó) e a Secretaria Estadual de Educação, além de
outros órgãos governamentais como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Os Xacriabá escolheram 45 futuros professores para participar do Curso de Formação de Professores Indígenas com habilitação
em Magistério, nível médio. O grupo abrigava desde jovens que ainda
não haviam concluído o Ensino Fundamental a senhoras que já trabalhavam há anos nas poucas escolas que funcionavam em seu território.
O currículo do Curso de Formação foi sendo construído ao
longo das etapas de ensino presencial que ocorriam a cada semestre.
Nessas etapas, todos os futuros professores das quatro etnias citadas
se reuniam em um centro de treinamento, localizado em uma reserva florestal. Em pequenos grupos, desenvolviam, sob a coordenação
de docentes especialmente convidados, estudos agrupados em três
grandes áreas de conhecimento: Múltiplas Linguagens (que abrange todas as expressões artísticas, Língua Portuguesa e Língua Indígena, além de Matemática), Ciências e Pedagogia Indígena (que abarca os conteúdos e procedimentos relacionados com o funcionamento da escola, didática, história da educação, legislação, processos próprios de ensino e aprendizado, etc). O trabalho de formação prosseguia quando os futuros professores retornavam aos seus territórios
com estudos autônomos, desenvolvimento de pesquisas e a realização de etapas de ensino presencial dedicado aos grupos de cursistas
de cada etnia, com a realização das aulas em terra indígena.
De imediato, os Xacriabá elegeram como eixo norteador de
sua formação o tema “Terra”. Todos os conteúdos disciplinares estudados se articularam de alguma forma com esse tema. Além disso, foi reservado um tempo específico para garantir a reflexão e o
registro dos conhecimentos em uma disciplina denominada “Uso
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A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ
do Território”. A Matemática também tem papel de destaque na formação dos professores, quando os procedimentos, estratégias intelectuais e conteúdos matemáticos dialogam com os conhecimentos
tradicionais a respeito da terra Xacriabá. É o que procuro registar
narrando, a seguir, alguns momentos de um curso de formação continuada do qual participaram os professores, agora já formados e
em plena atividade profissional, das séries iniciais e de alfabetização de adultos da Escola Indígena Bukimuju.
Discutindo mapas, escalas e território
Durante ano letivo de 2000, os professores Xacriabá trabalharam com seus alunos diversos tópicos de Geografia. Tiveram destaque as atividades relacionadas com desenho de plantas e mapas
das aldeias, dos caminhos e veredas do território Xacriabá, curso de
riachos e localização de fontes de água. Nesse trabalho, diversas
escalas foram criadas pelos professores: nos mapas das aldeias foram usadas escalas baseadas na quantidade de passos necessários
para percorrer pequenas distâncias; para representar os caminhos e
veredas, minutos de caminhada ou minutos de viagens a cavalo foram mais indicados; para representar os cursos d’água serpenteando penosamente ao longo do terreno, muitos desenhos foram feitos
utilizando como escala as horas de viagem num cavalo ou os minutos necessários para deslocamento nas “caronas” dos poucos veículos que trafegam por lá. A beleza de alguns mapas e a originalidade
das idéias, no entanto, escondiam uma grande dificuldade: como
compatibilizar as diversas escalas? Como calcular em um mapa a
distância desejada, se minutos de caminhada, por exemplo, podem
ser diferentes dependendo da disposição e do tamanho das pernas
dos caminhantes? Por todas essas razões, a motivação para entender “de vez” as idéias básicas a respeito de escalas era muito grande
no encontro de formação continuada ocorrido no final do ano.
As atividades de formação com os professores Xacriabá são
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
marcadas por um processo dialógico muito interessante. Herdeiros
de uma vigorosa oralidade, os jovens e adultos vão conduzindo o
docente a estabelecer uma autêntica conversa “ao pé do fogão a lenha” ou “debaixo do pequizeiro” dentro da sala de aula. Obediente
a essa tradição, pedi inicialmente que os professores dissessem o
que entendiam por escala. As respostas apontavam as seguintes idéias: “uma forma de medida”, “uma redução das medidas”, “fazer a medida
de alguma coisa”, “é aproximação do tamanho real reduzido”. Surgiram
ainda as expressões: escala de futebol, escalação e escalar um time.
Alguns também disseram algo a respeito de escala de temperatura e
escala da régua. A relação entre a idéia de escala e o processo de
medição era evidente. Disse aos professores que para aprendermos
matemática temos que entender primeiro as idéias, os conceitos, e
em seguida desenvolver os procedimentos, os cálculos, nos envolver com os números. Discutimos o significado dessas expressões e
fomos trabalhando as idéias, usando exemplos práticos, até chegar
aos seguintes conceitos: “Escala é a proporção em que uma figura (ou
objeto) é ampliado ou reduzido” e “escala é quantas vezes alguma coisa foi
reduzida ou ampliada”. Fomos então conversando sobre o significado
de 1:100m; 1/10.000 cm; etc. O passo seguinte foi solicitar desenhos
em escalas 1:2; 1:5 e 1:100. Cada desenho, assim que concluído, era
mostrado e discutido com os parceiros mais próximos.
Na discussão desse exercício fui afirmando que a escala “nos
diz quantas vezes devemos dividir o tamanho real para fazer o desenho do
objeto”. Depois de conferirmos alguns desenhos decidimos experimentar uma única escala para representar um local importante da
área Xacriabá. Numa breve discussão foi escolhida a Aldeia Santa
Cruz, que possui um belo cruzeiro diante da grande caixa d’água,
ocupando um lugar de destaque na aldeia. A maioria fez a tarefa
sem apresentar muitas dificuldades e a conversa na sala de aula fluiu
rapidamente para as diversas festas religiosas que o povo faz em
homenagem aos seus santos protetores. De imediato, um dos professores mais jovens propôs montar um mapa do Território Xacriabá
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A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ
associado a um calendário de festas. Como se tratava de representar
todo o território, a discussão a respeito da escala mais adequada foi
intensa.
Antes de encerrar um primeiro dia de atividades, pedi que
os professores listassem os assuntos relacionados ao tema em estudo
que precisariam ser revistos. Foram apontados: regra de três, porcentagem e frações, potenciação e medidas (principalmente conversão de medidas). Além da quase natural insegurança que aqueles
temas do currículo tradicional da matemática escolar despertam, temos que ressaltar o fato de que o curso de formação desses professores durou quatro anos e nem todos os tópicos estudados puderam
ser convenientemente trabalhados. Não podemos esquecer que a
escolarização inicial daqueles jovens e adultos mal alcançava o equivalente à chamada sexta série da escola nacional quando do início
do curso de Magistério Indígena.
Introduzindo o estudo das conversões de medidas (conversões de unidades), constatei que os professores Xacriabá conheciam
muitas medidas originais, muito práticas e antigas e que esse conhecimento tinha que ser levado em conta para melhor desenvolvimento do nosso assunto. Surgiram então em cena medidas de comprimento usadas para determinar limites de pastos, hortas e cercas;
unidades de volume para determinar quantidades de querosene,
“pinga”, leite e água; unidades denominadas prato, quarta e oitava,
para determinar uma certa quantidade de milho, arroz ou feijão.
Para comprar e vender o fumo de rolo, tradicional na região, era
muito empregado o “dedo”, que corresponde ao comprimento da
ponta do polegar à palma da mão. Todo um dia de trabalho foi dedicado, então, ao registro dessas unidades tradicionais e aos inúmeros
exercícios de conversão delas em unidades do Sistema Métrico. Tudo,
como sempre, recheado de boa prosa referenciada nos usos e costumes Xacriabá.
Voltamos a seguir ao estudo das escalas. Levei para a sala
uma série de esculturas e pequenos objetos de vários povos: bichi-
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
nhos Ticuna, cerâmicas Karajá, casinhas de artesãos do vale do Rio
Jequitinhonha, carrinhos de artesãos do Nordeste, um ônibus de plástico, pequenos instrumentos musicais da Bahia e cachimbinhos do
“seu” Manoel, um morador da aldeia Xacriabá do Morro Falhado. O
desafio para os cursistas era descobrir em qual escala estava a miniatura. Escolhendo partes das miniaturas e fazendo medidas, os professores, de início com alguma dificuldade, foram descobrindo as
escalas aproximadas, que ficavam em torno de 1:14; 1:12; 1:8 etc.
Percebi que as idéias a respeito estavam bem construídas, os
professores demonstraram segurança ao resolver uma série de exercícios propostos no quadro. Finalizando a atividade, distribui a todos vários mapas retirados de atlas geográficos. Os mapas, de continentes, países, regiões, estados, regiões metropolitanas e cidades,
apresentavam uma gama muito diversificada de escalas. Em pequenos grupos, os professores analisavam os mapas, interpretavam as
escalas, mediam e calculavam distâncias em linha reta. Um dos professores, com muita perspicácia, observou que as distâncias calculadas eram aquelas percorridas de avião. Muita conversa aconteceu a
respeito de países, cidades, viagens etc.
Em alguns mapas as escalas gráficas não estavam na proporção de 1 cm para x quilômetros e sim 1,2 cm ou 1,4 cm para x
quilômetros. Nem isso representou dificuldade para o grupo, aos
poucos alguns cursistas descobriram que era possível achar a distância fazendo regra de três. A solução encontrada foi o “gancho”
ideal para conversarmos sobre proporcionalidade e regra de três,
assunto desenvolvido em outro dia de trabalho.
Para abordar as proporções optei por iniciar a conversa através de exemplos (comprimento de um bebê em duas idades diferentes e valor a pagar em um açougue para duas quantidades diferentes de quilos que o freguês comprava). Trabalhando com essas e
outras situações mostrei aos professores que em alguns casos existia
uma proporção entre duas grandezas, em outros casos não. Discutimos e identificamos vários pares de grandezas diretamente propor-
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A ESCOLA NA TERRA XACRIABÁ
cionais. Na seqüência foram feitos muitos exercícios sobre o assunto. Os professores, de modo geral, já conheciam os esquema básico
de resolução desse tipo de problema (a “armação” da conta) de modo
que o progresso foi relativamente rápido.
No início da manhã de nosso último dia de encontro exercitei muito com os professores a capacidade de previsão e estimativa
de cada um. Pedi que eles fizessem cálculos mentais antes de se “atirarem” ao papel para fazer as contas. Conversamos a respeito da
importância de incentivarmos os alunos a desenvolverem esse tipo
de prática. Era hora de voltar à proposta de criarmos um mapa do
território Xacriabá e associarmos aquele espaço às festas e comemorações das diversas comunidades. Todo o debate em torno da escala
mais adequada ou a respeito dos procedimentos que tornariam mais
fácil a tarefa, associados ao desejo de produzir mapas mais bonitos,
foram muito interessantes. No entanto, o que gostaria realmente de
registrar são os depoimentos das professoras mais antigas descrevendo a organização das festas, o papel que cada família desempenhava no evento, as trocas de presentes ou de cantorias de casa em
casa, a observância de certas formas específicas de deslocamento do
grupo de batuque naqueles trajetos, demonstrando, talvez, uma concepção de territorialidade bem diversa da que estamos acostumados. Lembrei naquele momento de um fragmento de verso: “esse mar
é meu chão” e compreendi que a possibilidade de construir uma autêntica educação escolar diferenciada com os Xacriabá implica elaborar uma prática pedagógica com aquele chão.
Bibliografia
ALMEIDA, Maria Inês (Org.). BAY – A Educação Escolar Indígena em
Minas Gerais. Belo Horizonte: SEE-MG, 1998.
OLIVEIRA, José Nunes & PROFESSORES XACRIABÁ. Índios Xacriabá
– O tempo passa e a história fica. Belo Horizonte / Brasília: SEE-MG /
SEF-MEC, 1998.
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Xacriabá de Rancharia – MG.
Brasília: FUNAI, 1999 (mimeo).
172
INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
Celia Leticia Gouvêa Collet*
O conceito de interculturalidade é um dos princípios básicos tanto do Referencial Nacional Curricular
para as Escolas Indígenas (RNCEI), como de diversos projetos de educação escolar indígena existentes no Brasil.
Em toda a bibliografia levantada, a interculturalidade está
relacionada à educação formal escolar e será, portanto, a
partir desse aspecto que o tema será desenvolvido. Consideramos que vale a pena contar um pouco a história da
educação intercultural para poder discutir melhor o que
está acontecendo no Brasil.
Em um primeiro momento, farei uma análise do
conceito de interculturalidade ligado às políticas de educação para populações indígenas nas Américas, desde o
seu surgimento até a sua consolidação nas últimas três
décadas, em um “novo” cenário mundial, que enfatiza a
idéia de pluralidade cultural. Iniciarei abordando a proposta de educação indígena intercultural tal como se deu
nos Estados Unidos (EUA). Depois, passarei a tratar da
política indigenista para a América Latina, onde foi grande a influência do Summer Institute of Linguistics (SIL)
no campo da educação bilíngüe e intercultural. A partir
do México, o SIL passou a atuar em vários países da
América Latina, inclusive no Brasil, onde foi o responsá* Antropóloga, professora da Universidade Federal do Acre e doutoranda no Museu Nacional/UFRJ.
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
vel, durante muito tempo, pelos programas educacionais do órgão
indigenista federal (FUNAI). Nessa posição, o Summer formou alguns lingüistas e agentes não-missionários, que viriam a trabalhar
em diversos projetos voltados para a educação bilíngüe. Atualmente, a maioria dos programas de educação indígena faz críticas veementes à política do SIL, por colocar sua prática a serviço da
integração civilizatória e cristianizante. Entretanto, o adjetivo
‘intercultural’ manteve-se entre os princípios que orientam os projetos laicos atuais, embora possamos observar diferenças tanto no discurso quanto na prática destas duas propostas. Em sua retórica, os
novos projetos se definem sempre tendo por base a oposição ao
integracionismo do SIL. Na prática, os novos projetos declaram, entre outras coisas, que a relação entre índios e brancos deve ser mais
democrática, que os professores índios devem ter mais autonomia,
que a “verdade” vem dos “nativos” e não dos brancos (ou da doutrina cristã).
Falarei, em um segundo momento, do surgimento de projetos com caráter intercultural, principalmente no que diz respeito aos
programas educacionais, principalmente na Europa. Veremos que
na Europa convivem dois pontos de vista. Um deles aposta na ‘educação intercultural’ como um avanço em relação às políticas
assimilacionistas anteriores. O outro ponto de vista considera que a
‘educação intercultural’ é apenas uma adequação às mudanças que
têm ocorrido no mundo nas últimas décadas, as quais seguiriam um
modelo “neoliberal” de dominação, que, sob aparência de inclusão,
excluiriam cada vez mais certas parcelas da população.
1. Educação indígena bilíngüe e intercultural nas Américas
O projeto assimilacionista, promovido pelo governo americano, principalmente no período de final do século XIX e início do
século XX, teve como um de seus pilares básicos o programa educacional indígena. Foi somente a partir de 1928 que essa situação co-
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
meçou a se modificar. Neste ano foi divulgado o resultado final da
pesquisa sobre o estado dos grupos indígenas no país, chamado de
Relatório Merian. Este relatório trouxe a público a vida precária em
que se encontravam os índios, principalmente no que diz respeito à
saúde e à educação. Quanto a esta última, foi criticado fortemente o
modelo de internato. Em sua conclusão, o relatório pedia providências para que esse quadro fosse alterado, sobretudo tendo em vista a
defesa da manutenção do modo de vida indígena.
Iniciou-se, então, um projeto educativo ‘intercultural’, que
tinha como princípios a valorização da cultura “nativa” e o desenvolvimento das populações indígenas. No lugar dos internatos, onde
viviam crianças retiradas do convívio comunitário e familiar, começaram a surgir escolas diurnas integradas à comunidade, onde os
alunos podiam estudar sem ter que deixar seu grupo e seu modo
próprio de vida. Para essa nova política, a escola deveria ser o centro
da comunidade. Mulheres, crianças, homens e idosos deveriam voltar suas atividades para esta instituição, que promoveria, antes de
tudo, o “espírito comunitário”. Nesse sentido, a escola foi planejada
com funções extra-classe, como lavanderia, horta, local para banho,
oficina com ferramentas diversas e biblioteca (Szasz, 1974).
O novo currículo também se pautaria no discurso da valorização da cultura indígena. Nele foram incluídas disciplinas como história, arte e língua indígena. Além disso, os alunos seriam incentivados à produção de artesanato e objetos de arte tradicionais de cada
grupo e à manutenção de seus costumes, religião e organização social.
O ensino bilíngüe foi considerado o fundamento do projeto
de educação intercultural. O órgão indigenista norte-americano enfrentou muitas barreiras, principalmente devido à novidade da proposta e, conseqüentemente, ao despreparo dos profissionais para a
sua realização. Os professores não eram índios e, portanto, desconheciam completamente a língua falada por seus alunos. Além disso, a língua indígena sempre foi vista como inferior, como expressão
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
de primitivismo, bem como um obstáculo à integração desses povos
à nação anglófona (que fala a língua inglesa). Tampouco havia material adequado ao bilingüismo, tal como cartilhas e livros.
Com a justificativa de solucionar tal situação, foram promovidos treinamentos voltados para os professores, com apoio de lingüistas e antropólogos. Os cursos tiveram como princípio a
interculturalidade, baseando-se na retórica da troca de conhecimento entre índios e não-índios. O curso de 1936, por exemplo, contou
com as seguintes disciplinas: filosofia da educação indígena, sociologia rural, administração da escola indígena, corte e costura, psicologia racial, agricultura, línguas Sioux e Navaho, antropologia, saúde e higiene mental.
De 1945 a 1965, esse movimento “progressista” não foi adiante. O que havia avançado retrocedeu. Somente em 1969, com o
Relatório Kennedy, o antigo Relatório Merrian foi reatualizado, para
balizar a política do órgão governamental indigenista norte-americano nos anos subseqüentes. Então, a partir da década de 70, com as
mudanças políticas no contexto mundial e também nas relações internas à sociedade americana, o quadro relativo ao ensino dado aos
povos indígenas foi-se modificando, apesar das muitas resistências
encontradas entre políticos e parcelas da população. A emergência
das lutas das minorias étnicas pela garantia dos direitos civis a toda
a população, das quais participaram não só os negros, índios e demais setores da sociedade submetidos à discriminação, mas também
parcela considerável da opinião pública, teve grande reflexo no tratamento da população indígena.
Setores do Congresso americano e da academia passaram a
apoiar a causa indígena, falando em conquista da autodeterminação. No que diz respeito à educação, o governo passou a implementar
projetos na mesma linha dos desenvolvidos antes da II Guerra Mundial, visando à valorização da cultura indígena e à participação desses povos nas políticas públicas de seu interesse. As escolas, então,
segundo esse programa, seriam financiadas pelo governo, mas con-
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
troladas pelos nativos. Estes poderiam construir a escola que mais
conviesse à sua realidade e interesse, no tocante tanto à língua utilizada pelo professor na sala de aula, quanto ao currículo e ao calendário, entre outras adequações à especificidade de cada povo.
Através dessa digressão sobre a política norte-americana
relativa à educação escolar indígena pretendi chamar atenção sobre
as raízes e os desdobramentos da proposta de educação baseada na
interculturalidade no continente americano. Vimos como o projeto
ensaiado no início do século só encontrou solo propício para sua
efetivação na década de 70, no meio das lutas pelos direitos civis das
minorias. Tudo isso não significa, todavia, que a educação indígena
intercultural tenha tido o sucesso anunciado pelos seus partidários
e, com certeza, sua existência e aprimoramento continuam dependendo das lutas mencionadas.
Na América Latina, foi através do trabalho do SIL, instituição missionária norte-americana, e do Instituto Indigenista
Interamericano (III), que a idéia de interculturalidade se tornou uma
espécie de ponto forte do discurso educacional para as populações
indígenas dessa parte do mundo. O primeiro país onde a proposta
educacional fundada na interculturalidade e no bilingüismo ganhou
o status de política oficial foi o México. Somente depois do desenvolvimento, pelo SIL, da proposta e metodologia de alfabetização nesse
país, iniciou-se a expansão para o restante do continente, inclusive o
Brasil.
Foi, então, através de um longo percurso histórico, que a
proposta de educação intercultural foi se consolidando enquanto
política educacional para as populações nativas, inicialmente nos
EUA e México, depois chegando a vários países da América Latina
e, entre eles, ao Brasil.
Durante a década de 50, quando da expansão do SIL para a
América do Sul, o Brasil, assim como os outros países, enfrentava
problemas com os seus programas de educação para índios. Havia,
nesta época, 66 escolas em área indígena, todas seguindo o padrão
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
de escola rural, com a alfabetização sendo feita em português. Entretanto, essa experiência não alcançou o sucesso esperado, isto é,
não conseguiu alfabetizar nenhuma população indígena expressiva
(Barros, 1993).
Mesmo com esse fracasso, num primeiro momento, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) não aceitou a proposta do Summer
de vir atuar junto a ele no Brasil, pois a filosofia de Rondon pregava
um indigenismo independente de qualquer organização missionária.
O SIL, então, procurou o respaldo de uma instituição acadêmica, o
Museu Nacional, em 1957. Ele foi aceito não para implementar políticas educacionais, mas para iniciar pesquisa lingüística com grupos
indígenas brasileiros. Entretanto, esse trabalho acadêmico não foi
desenvolvido como previsto no convênio, fato que é atestado por
uma avaliação feita pelo Museu Nacional, onde constatou-se que,
enquanto poucas línguas haviam sido analisadas, muito material
didático havia sido produzido. Nessa época, no entanto, o SIL já
havia conseguido assinar convênio com a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI). A FUNAI passou ao SIL a responsabilidade pelo
seu setor de educação.
Hoje, na “nova” fase - caracterizada pelos princípios defendidos no RCNEI e pelo discurso de rompimento com a trajetória de
origem missionária e integracionista - o SIL tem perdido o apoio dos
órgãos governamentais e acadêmicos, apesar de continuar atuando
no país. Nas instituições brasileiras parece ter vencido, talvez definitivamente, a proposta de uma educação nacional livre das amarras missionárias que, muitas vezes não claramente, fazem da escola
um lugar da conversão religiosa e cultural. Fica uma pergunta: será
que pode funcionar positivamente uma proposta de prática educacional em que a interculturalidade foi ‘inventada’ por missionários?
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
2. Educação intercultural: libertadora ou excludente?
Não só na América, mas em grande parte do mundo, a noção de interculturalidade passou a ocupar um lugar central nos debates sobre educação, a partir da década de 70, quando a diversidade étnica e cultural se tornou foco de maior preocupação nos países
desenvolvidos. A escola passou a ser vista como uma instituição fundamental nas políticas voltadas para as minorias. Assim, os governos estão recorrendo à proposta de educação intercultural como
parte de suas políticas com relação aos grupos étnicos e nacionais
que se fazem presentes nos diversos países. No Brasil houve o crescimento, na última década, nos meios oficiais, da educação
intercultural, principalmente no que se refere às populações indígenas; o RCNEI é um exemplo dessa política.
Na Europa, na década de 80, organizações, como o Conselho da Europa e a Comunidade Econômica Européia, passaram a se
preocupar de forma mais efetiva com o aumento da imigração nos
países desse continente e resolveram tomar algumas medidas, visando a melhorar a relação dos imigrantes com as sociedades que os
receberam. Nesse sentido, em 1983, na Conferência Permanente dos
Ministros da Educação, em Dublin (Irlanda), foi feita uma Recomendação para que se desenvolvessem programas visando à formação
dos professores com ênfase na interculturalidade (Losada, 1992).
Na França, já na década de 70, alguns trabalhos, voltados
para os filhos de trabalhadores imigrantes, foram realizados com
uma preocupação especial diante de suas dificuldades lingüísticas
e escolares e, também, para a manutenção de sua ligação com as
respectivas culturas de origem. Na década seguinte, apareceram os
primeiros trabalhos teóricos sobre a educação intercultural, tendo
como base essas experiências anteriores.
Na Itália, segundo Falteri (1998), por não ser tão imediato o
impacto do aumento dos imigrantes, até a década de 80, a preocupação com a educação intercultural originou-se do desejo de “promover
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
uma nova propensão à convivência e uma plena consciência da globalização
de processos e problemas...” (Ibid., p.36). Depois, com o grande fluxo
de migrantes, principalmente do hemisfério sul e do Leste Europeu,
Falteri considera que a Itália pode ser pensada como uma nação
multicultural e a escola, então, passou a dar conta também desse
fato (Falteri, op.cit.). Da mesma forma, a Espanha desenvolveu um
programa de escola intercultural, para tratar das especificidades
culturais que surgiram com a migração de latino-americanos (Juliano,
1993).
Essas políticas nacionais para as minorias tinham a intenção, muitas vezes explícita, de romper com as práticas dominantes
anteriores, chamadas de “integracionistas” e “assimilacionistas”. A
França seria o melhor exemplo de uma prática integracionista, que
teria como objetivo a integração gradual dos indivíduos à cultura
francesa, sua língua e costumes e, também, à sociedade e economia
deste país (Losada, 1992). A proposta assimilacionista caracterizaria
o modelo anglo-saxão, desenvolvido tanto na Inglaterra como na
Austrália, Nova Zelândia e nos EUA (Havighurst, 1976). Este modelo estaria voltado não para indivíduos, mas para certos segmentos
da sociedade, sendo uma tentativa de adequação das minorias aos
valores nacionais através dos meios de comunicação e da escola. Essa
política foi substituída, depois, por uma proposta baseada no respeito às minorias, as quais, entretanto, deveriam se manter separadas do resto da sociedade, ainda que se submetendo às normas e à
língua nacionais (Juliano, 1993).
Em suma, enquanto o modelo francês visaria a integrar as
diferenças culturais à unidade nacional que se acredita existir, através de uma estratégia baseada no indivíduo, os anglo-saxões teriam
suas políticas assimilacionistas baseadas nos grupos sociais. No entanto, elas têm em comum a dificuldade de lidar com a diferença e
também o desejo de eliminá-la.
As políticas em questão foram construídas sobre conhecimentos oriundos da antropologia. Assim, por exemplo, a idéia de
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
“relativismo cultural” estaria na base tanto das políticas separatistas, como, de outra forma, da proposta atual da interculturalidade.
Com relação a esta última, o relativismo se mostra importante através do pressuposto de respeito à diferença, visto como a principal
característica da interculturalidade. A estes termos, outros vêm se
juntar nas definições de interculturalidade: tolerância, visão positiva
da diferença, inter-relação, diálogo, troca, diversidade e relação (Juliano,
1993; Falteri, 1998; Greenman, Greenbaum, 1996). Todos esses termos apontam para um tratamento igualitário, onde não haveria a
sobreposição de uma cultura dominante sobre outra subordinada.
Visando a uma sociedade que saiba lidar melhor com a diferença, a
educação intercultural se basearia, principalmente, na formação de
professores, voltada para o respeito à diversidade, e na produção de
materiais didáticos que contemplem a pluralidade de culturas existentes nos diversos países europeus. Segundo Juliano (1993), o desafio dessa proposta seria tratar a diferença como fator enriquecedor e
não como um obstáculo.
Muitas vezes são confundidas as noções de
“interculturalidade” e “multiculturalismo”. Entretanto, alguns autores (Juliano, 1993; Falteri, 1998; Giacalone, 1998) fazem diferença
entre elas, nos seguintes termos: “multicultural” se referiria a um
dado objetivo, à coexistência de diversas culturas, sem entretanto
enfatizar o aspecto da troca ou da relação, podendo este termo ser
usado, inclusive, com referência a contextos em que sociedades e
culturas são mantidas separadas. “Intercultural”, por outro lado,
daria ênfase ao contato, ao diálogo entre as culturas, à interação e à
interlocução, à reciprocidade e ao confronto entre identidade e diferença.
Além disso, Greenman e Greenbaum (1996) ressaltam que,
apesar de as literaturas sobre educação multicultural e intercultural
geralmente se confundirem entre si, há uma difusão maior da primeira denominação (multicultural), inclusive fora dos espaços acadêmicos. A segunda (intercultural) se restringiria ao meio acadêmi-
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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
co, referindo-se, principalmente, à dimensão da interação, na escola,
entre professores e alunos com culturas diferentes, geralmente uma
dominante e outra subordinada.
Nos enfoques citados, a educação intercultural seria vista
como instrumento de inclusão das minorias e de atribuição de poder às populações que estão às margens da cultura dominante. A
idéia subjacente a essa visão seria que, através do domínio tanto dos
seus códigos específicos como dos códigos “ocidentais” ou nacionais, as minorias poderiam reivindicar um espaço na sociedade e na
economia nacionais e globais.
Entretanto, autores como Diaz e Alonso (1998), que escrevem sobre educação intercultural na Argentina para as chamadas
populações étnicas e de risco, dizem que essa mesma idéia de diversidade pode ser utilizada para excluir e para manter os “pobres” à
parte das oportunidades econômicas e políticas. Eles chamam essa
política de “apropriação neoliberal da diversidade sociocultural” (Ibid.,
p.2) e ressaltam o fato de que a educação que parece voltada para a
tolerância e o respeito visaria, na verdade, a encobrir os profundos
conflitos e as estruturas de poder.
Seu trabalho parte da análise da “proposta de docentes capacitados em população de alto risco social e a de docentes capacitados em horta,
granja, diversidade cultural, ruralidade, etc...”(Ibid., p.1), do governo
do estado de Neuquén, na Argentina. Esta proposta faria parte de
um corpo maior de documentos argentinos: a Lei Federal de Educação, os Desenhos Curriculares Estaduais, os projetos de Ongs e do
Instituto Nacional de Assuntos Indígenas. Sendo assim, esse documento pode ser uma importante fonte de diálogo com o documento
brasileiro “Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas”, que foi elaborado pelo Ministério da Educação/MEC, com o
mesmo intuito de dar as diretrizes para uma educação escolar diferenciada.
Diaz e Alonso afirmam que, debaixo dos princípios de diversidade e pluralidade defendidos nesses documentos, estaria uma
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
proposta que pretende ser baseada em princípios válidos para todos, neutra, fora da reprodução do sistema social dominante. A “diferença”, cultural e social, nesse programa, seria tratada como algo
natural, um dado objetivo do mundo e não como uma construção
histórica.
Em suma, esses autores estão chamando a atenção para o
fato de que, antes de haver diferença, o que existe é desigualdade, e que
esta não está sendo contemplada nos projetos de educação diferenciada. Esses projetos, ao se preocuparem com a dimensão da diferença, acabam deixando de lado o fundamental, que seria a desigualdade
e, portanto, estariam contribuindo para a reprodução de uma estrutura social discriminatória. Assim, a educação intercultural seria, segundo eles, o “paradigma educativo da nova modernidade” (Ibid., p.10).
Dias e Alonso dizem (Ibid., p.11): “A incorporação acrítica desses problemas no campo educativo, e sem as mediações e reconstruções teóricas e
políticas que os marcam, coloca-nos diante de uma apropriação indébita do
arcabouço conceitual trabalhado pela antropologia social. Um uso, assim,
decontextualizado e reterritorializado em função de um imaginário tipo “mercado-consumidor”, viria a peencher os vazios de outro imaginário, do tipo
“Estado-cidadania”, o qual tem caracterizado a instrução pública como ideal educativo hegemônico. As afirmações essencialistas do culturalismo, assim como as conseqüências funcionalistas de um relativismo extremo se prestam a esse jogo...” (Tradução de Celia Collet).
Os conceitos culturalistas da antropologia, utilizados nos
programas de educação intercultural, acabam retirando a cultura do
seu contexto político. Por exemplo, a idéia de “diálogo” não pode
ser concretizada, enquanto se mantiverem as condições de desigualdade a que estão submetidos os atores envolvidos. Também o princípio da “tolerância” afastaria a educação de seu contexto político:
“Assim, a linha divisória entre tolerância e intolerância nos coloca em um
lugar de decisão política e nunca é uma definição essencial, única e universal” (Ibid, p.19). A preocupação com a diferença cultural estaria, portanto, escondendo a desigualdade político-econômica.
183
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
A partir dessa discussão, gostaria de falar um pouco de duas
questões. A primeira seria sobre a dupla reação, por parte dos índios, aos projetos de educação específica e diferenciada. Se, por um
lado, grande parte dos grupos indígenas vêem a educação
intercultural como forma de inserção na sociedade e economia nacionais, por outro lado há os que sentem nesse tipo de proposta uma
visão discriminatória e excludente. Estes últimos querem a escola da
aldeia nos mesmos moldes da escola do branco, com o mesmo material e os mesmos conteúdos curriculares. A proposta intercultural,
na qual a cultura e a língua indígena fariam parte da educação escolar, interagindo com o conhecimento do branco, contribuiria, segundo eles, para os índios serem tratados, cada vez mais, como diferentes, uma diferença vista como exclusão.
A outra questão vem da descontextualização da cultura, ressaltada por Greenman e Greenbaum (1996) quando chamam a atenção para o fato de que, no afã de se desenvolver uma educação
multicultural, as complexidades das culturas vão se reduzindo a alguns símbolos descontextualizados, como comidas, roupas e heróis.
Para essas autoras, tal situação seria conseqüência do fato de a maioria dos cursos de formação de professores não contar com antropólogos em seus quadros (e, acrescentaria, de lingüistas especialistas
nas línguas envolvidas), bem como de os conceitos retirados da antropologia, como “cultura” e “relativismo cultural”, serem utilizados sem muito critério, como se fossem naturais e não criados historicamente. Apontam, portanto, para o que Jackson (1995a) chama
de “folklorização” da cultura, através da simplificação desta a um
número restrito de traços culturais. Essa simplificação ocorreria, justamente, com fins políticos e econômicos.
Diante das duas posições teóricas e ideológicas relativas aos
programas de educação indígena, até agora descritas, eu me coloco
de forma cautelosa. Compartilho da posição crítica defendida por
Diaz e Alonso quando denunciam que esses projetos não atingem
realmente a meta da inclusão ativa da população indígena no cená-
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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM BREVE HISTÓRICO
rio político-econômico nacional, e que, pelo contrário, acabam, através de sua “nova” fórmula, ratificando a exclusão. No entanto, penso que as relações sociais e políticas não podem ser vistas de uma
forma determinista. Assim, se o espaço que é dado às populações
indígenas hoje no Brasil segue uma estrutura que eles chamam de
“neomoderna”, por outro lado, com suas “lutas” por melhores condições de vida (que inclui não só os aspectos econômico e político),
os grupos indígenas e seus parceiros (Ongs, universidades e setores
de órgãos governamentais) vêm conseguindo avanços, tanto no campo da educação escolar quanto nas demais áreas consideradas importantes para sua existência enquanto sociedades diferenciadas (a
principal delas sendo a garantia de suas terras). O problema é que
deveria ser feita uma discussão mais ampla e aprofundada sobre o
que se entende por ‘cultura’, sobre o que se entende por diálogo e
intercâmbio entre ‘culturas’. Finalmente, precisaria documentar e
avaliar como as idéias ou a retórica da interculturalidade são
traduzidas na prática, tanto nos cursos de formação de professores
como no dia-a-dia da experiência escolar indígena. Algumas observações iniciais, incluídas em minha dissertação de mestrado (Collet,
2001), apontam para a existência de uma ignorância difusa que gera
equívocos no uso de conteúdos culturais (ou interculturais) e uma
banalização preocupante da diferença.
*
Pretendi, neste trabalho, reconstituir historicamente o conceito de interculturalidade. Vimos que esta noção apareceu em
contraposição às ideologias anteriores de assimilação e integração
da diferença. Enquanto estas tendiam à homogeneização cultural dos
Estados nacionais, vendo tudo que fosse diferente como uma ameaça ao ideal de uniformidade, a interculturalidade viria com o discurso da defesa da coexistência entre modos de vida diversos. Aqui
a diversidade seria vista como riqueza, não como obstáculo, e, para
185
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
que ela fosse respeitada, deveriam ser incentivadas as práticas de
tolerância, diálogo, relativização e troca.
A escola, vista como uma instituição formadora de ideologia, teve, portanto, um papel fundamental a desempenhar nas novas políticas relativas às minorias. A educação intercultural passou
a ganhar cada vez mais espaço nos discursos e nas políticas públicas, principalmente a partir da década de 70. Nessa época, na Europa, surgiram os primeiros projetos baseados nessa proposta e, nos
EUA, com o Relatório Kennedy, de 1969, houve uma volta ao projeto intercultural iniciado na década de 30. Nos países da América
Latina, como o Brasil, houve o crescimento dos projetos de educação bilíngüe e intercultural, voltados para as populações indígenas,
primeiro ligados ao SIL e, depois, através das Ongs e do próprio
Estado.
Pudemos conhecer, também, diferentes visões políticas distintas acerca do desenvolvimento da educação intercultural em nível mundial. Alguns autores apostando nessa proposta como um
avanço em relação às anteriores e outros vendo-a apenas como uma
adaptação das políticas públicas ao cenário global atual. E, no Brasil,
o que estamos fazendo com o princípio da interculturalidade na educação escolar indígena?
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CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DE
MATO GROSSO – CEI/MT: UM ESPAÇO DE
EXERCÍCIO DA CIDADANIA
Francisca Novantino P. de Ângelo*
Elias Januário**
Histórico
Desde meados dos anos de 1960, inúmeras instituições missionárias e indigenistas se fizeram presentes
no cenário mato-grossense, a fim de discutir a educação
escolar indígena. Também com esse intuito foi criado em
1987, em Mato Grosso, o Núcleo de Educação Escolar Indígena – NEI/MT. A criação do NEI/MT foi um marco
fundamental na consolidação de uma política educacional voltada ao atendimento das comunidades indígenas.
Por meio dele, consolidaram-se as bases para a criação
do Conselho de Educação Escolar Indígena, um órgão de
caráter oficial, institucional e com a efetiva participação
dos professores indígenas.
O Conselho de Educação Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso – CEI/MT, criado pelo Decreto nº
265, de 20 de julho de 1995, é um órgão consultivo,
deliberativo e de assessoramento técnico, cuja finalidade
principal é promover o desenvolvimento das ações refe* Professora Paresi, Presidente do Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso e membro do Conselho Nacional de Educação.
** Dr. em Educação, docente no Departamento de História da UNEMAT,
Coordenador do 3º Grau Indígena e Vice-Presidente do Conselho de
Educação Escolar Indígena de Mato Grosso.
189
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
rentes à educação escolar indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino.
O papel do Conselho é reconhecido pela Lei Complementar
Nº 49/1998, que dispõe sobre o Sistema Estadual de Ensino em Mato
Grosso, na Seção X, Art. 106.
Composição
A composição do CEI/MT é interinstitucional de ação conjunta, vinculado à Superintendência de Currículo e Gestão Escolar,
da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso.
Sua composição é constituída por representantes de órgãos
e entidades públicas (SEDUC, CEE/MT, FUNAI, CAIEMT, MEC,
UNDIME, UNEMAT, UFMT, ONGS) e pelos representantes indígenas (12 titulares e 12 suplentes), todos professores de escolas indígenas.
As reuniões plenárias do CEI/MT acontecem duas vezes a
cada semestre, quando são discutidas as questões trazidas pelos conselheiros, além dos projetos e programas na área da educação escolar indígena desenvolvidos no estado.
A organização administrativa do CEI/MT é regulamentada
pelo seu regimento interno, que dispõe sobre a sua estrutura e funcionamento.
Objetivos
Entre os seus objetivos destaca-se: a) o acompanhamento e
avaliação de ações referentes à educação escolar nos municípios; b)
o estabelecimento de metas anuais da educação escolar indígena no
estado; c) o encaminhamento das diretrizes que garantam uma educação diferenciada, específica, intercultural e de qualidade; d) a deliberação sobre os parâmetros e fundamentos que irão nortear o Conselho Estadual de Educação na aprovação e reconhecimento das es-
190
CEI/MT: UM ESPAÇO DE EXERCÍCIO DA CIDADANIA
colas, cursos e projetos relativos à educação escolar indígena, entre
outros.
Conquistas
O Conselho Indígena, nos seus seis anos de existência, teve
um papel importante para o fortalecimento da educação escolar específica e diferenciada.
Atuou na realização do primeiro diagnóstico da educação
escolar indígena em Mato Grosso. Articulou politicamente a
concretização do Projeto Tucum (formação em nível de magistério)
e recentemente a criação do 3º Grau Indígena.
Ocupa uma vaga no Conselho Estadual de Educação – CEE/
MT, onde delibera sobre as políticas públicas voltadas a educação
escolar indígena.
Atuou no extinto Comitê de Educação Escolar Indígena do
MEC e atualmente integra a Comissão Nacional de Professores Indígenas do MEC.
No momento, desenvolve projetos para a qualificação dos
conselheiros indígenas, a realização de um diagnóstico das escolas
indígenas do estado de Mato Grosso e a regulamentação da Resolução nº 03 em âmbito estadual.
Tem propiciado discussões proveitosas sobre os processos
educacionais no contexto indígena, favorecendo o entendimento do
que seria essa educação escolar indígena específica e diferenciada, o
papel do professor índio, a relação com a comunidade, entre outras.
Ações
Por meio de discussões, grupos de estudo, informativos e
entrevistas que ocorrem no âmbito das reuniões plenárias do CEI/
MT, os professores indígenas conselheiros mantêm suas comunidades atualizadas, procurando cada vez mais fortalecer o movimento
dos professores indígenas dentro do estado.
191
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Tem participado das discussões sobre formação de agentes
e auxiliares de saúde indígena nos projetos desenvolvidos no estado.
Também faz parte da função dos conselheiros ajudar a comunidade escolar a elaborar os currículos específicos e o acompanhamento pedagógico às escolas, fortalecendo a condução escolar
de base diferenciada, assegurando às escolas indígenas a possibilidade de gerirem os seus processos escolares e pedagógicos com autonomia.
Referência
Por tratar-se de uma instância colegiada de caráter
interinstitucional, as ações do CEI/MT partem da interculturalidade,
isto é, do diálogo e entendimento entre as culturas, buscando o intercâmbio entre as diversas sociedades na perspectiva de um futuro
com maiores possibilidades de melhoria social.
Tem atuado no assessoramento a outros estados da Federação para a implementação de Conselhos de Educação Escolar Indígena, buscando fortalecer o movimento dos professores indígenas
no país. Articulou, por meio de seus conselheiros, a criação da Organização dos Professores Indígenas de Mato Grosso, estabelecendo
mais um instrumento da luta pela educação escolar indígena.
Na verdade, o CEI/MT, configura-se em um espaço de luta
dos povos indígenas pela participação efetiva na educação escolar
implementada em suas comunidades, dialogando constantemente
com o poder público e com a sociedade não-índia, em busca de uma
educação escolar específica e diferenciada, de qualidade e em consonância com os projetos societários de suas comunidades.
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CEI/MT: UM ESPAÇO DE EXERCÍCIO DA CIDADANIA
Bibliografia
GOVERNO do Estado de Mato Grosso. Lei Complementar Nº. 49/
98 - Sistema Estadual de Ensino de Mato Grosso. Cuiabá: Mato Grosso, 1998.
REGIMENTO Interno do CEI/MT. Cuiabá: SEDUC/MT, 1995.
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