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20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil A tradição familiar de entrelaçar fios em contexto urbano: investigação sobre produção artesanal têxtil familiar em Brasília (DF) Cavalcante, V. P. 1 e Kanamaru, A. T. 2 1 Programa de Pós-graduação em Têxtil e Moda – Escola de Artes, Ciências e Humanidades – Universidade de São Paulo – EACH /USP – São Paulo – Brasil – 03828-000 – [email protected] 2 Prof. Dr. – Programa de Pós-graduação em Têxtil e Moda – Escola de Artes, Ciências e Humanidades – Universidade de São Paulo – EACH /USP – São Paulo – Brasil – 03828-000 – [email protected] RESUMO Este artigo tem como objeto de estudo a produção de tecidos a partir da técnica crochê, entre as décadas de 1980 e 1990, por mulheres de uma família de Brasília (DF) que tem origem em zona rural de Ipameri (GO). Objetivou-se a identificação de elementos visuais de tecidos feitos em crochê que apresentem relação com a produção familiar têxtil nas décadas de 1980 e 1990 e com a tradição de confecção de tecidos na família. Foram realizadas entrevistas com Luzia Peixoto e Cida Peixoto: mãe e filha que confeccionavam os tecidos de crochê, os quais, em um segundo momento, foram descritos a partir de seus aspectos visuais. Por fim, executou-se análise dos dados levantados em entrevistas e descrição de tecidos. Os resultados obtidos mostram que a prática do crochê por essas mulheres nas décadas de 1980 e 1990 apresenta correlação com a tradição familiar do trabalho com tecidos, principalmente no que diz respeito à maneira de transmitir conhecimento sobre a técnica e a destinação dos objetos finais para uso em contexto familiar. Palavras-chave: crochê; família; tradição. ABSTRACT The subject of this study is the production of fabrics made with the crochet technique between the decades of the 1980s and 1990s by a family of craftswomen originated from Ipameri (GO), currently living in Brasília (DF). The goal was to identify visual elements of crochet fabrics related with family textile production in the 1980s and 1990s and their cloth making tradition. Interviews were performed with Cida Peixoto and Lucia Peixoto: mother and daughter who made the crochet fabrics. Their production was later described in its visual elements. The results from analysis of both interviews and fabric description show that the practice of crochet by these women in the 1980s and 1990s correlates with the family tradition of working with fabrics. The link between crochet making and tradition is specially visible in the way of passion on knowledge about the technique and the destination of objects for use in the family context. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Keywords: crochet; family; tradition. 1. Introdução O objeto de estudo desse artigo é a atividade de confeccionar tecidos e objetos a partir da técnica crochê, entre as décadas de 1980 e 1990, por mulheres de uma família de Brasília (DF) que tem origem em zona rural da cidade de Ipameri (GO). As técnicas artesanais têxteis praticadas por essa família anteriormente à década de 1980 eram diversas: tecelagem, crivo, crochê, bordado, entre outras e geravam objetos destinados ao uso familiar. A prática dessas técnicas, do início a meados do século XX em zona rural do estado de Goiás, era característica de tradição familiar e ocupação feminina. Com a mudança da família para a região da nova capital do país, por volta do ano de 1980, e imersão em novas realidades representativas do contexto urbano da cidade de Brasília (DF), a produção de tecidos em ambiente familiar permaneceu, apesar de mudanças nas técnicas empregadas e na maneira de lidar com o trabalho manual. Os objetos produzidos são, portanto, registros materiais da produção e do uso do artesanato têxtil na família, assim como dos contextos socioculturais referentes às vivências das mulheres que confeccionavam os tecidos. Objetivou-se identificar elementos visuais de objetos feitos em crochê entre as décadas de 1980 e 1990 por duas mulheres dessa família, mãe e filha, como registros dos contextos produtivos relativos às suas concepções, para a compreensão da prática têxtil nessas décadas e sua relação com a tradição da confecção de tecidos na família. Definiu-se como procedimentos iniciais do trabalho a realização de entrevistas com Luzia Peixoto, 92 anos, e Maria Aparecida (Cida) Peixoto, 58 anos, e a descrição de elementos visuais dos objetos feitos em crochê do acervo da família. Os dados obtidos nesses procedimentos foram analisados e complementados por dados bibliográficos sobre atividades têxteis similares e aspectos sociais e econômicos das cidades de Ipameri (GO) e Brasília (DF), relativos aos períodos de residência da família. Sobre a análise dos objetos têxteis, considerou-se importante delimitar àqueles feitos a partir da técnica ‘crochê’, pois apresentam similaridades como suporte visual. Comentários sobre outras técnicas, em especial ‘tecelagem’, foram feitos quando relevantes à abordagem do histórico do trabalho com tecidos. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil O desenvolvimento do artigo estruturou-se a partir do histórico familiar anterior à década de 1980 e suas particularidades correspondentes à tradição da confecção artesanal de tecidos pelas mulheres da família desde o início do século XX, em área rural da cidade de Ipameri (GO) e à mudança para região de Brasília (DF). Em seguida foi apresentada a prática do crochê nas décadas de 1980 e 1990 e, então, abordadas a leitura e a análise de objetos do acervo da família. 2. Histórico da família e a tradição do trabalho com fios e tecidos Luzia nasceu em 1921 e foi criada em uma fazenda do estado de Goiás, entre os municípios de Campo Alegre e Ipameri. Seus pais eram nascidos na região do Triângulo Mineiro: sua mãe, Carolina, na cidade de Uberlândia (MG) e seu pai, Israel, na cidade de Araguari (MG). Quando os pais de Luzia se casaram, Carolina foi morar nessa fazenda próxima a Ipameri (GO), região onde Israel já vivia desde que seu pai, nascido em Portugal, comprou terras para uso da família. No início do século XX, a cidade de Ipameri passou por amplos processos de transformação relacionados à chegada da Estrada de Ferro Goiás, em 1913 (BRANDÃO, 2005, p. 52). Essa ferrovia, associada à relevância que a pecuária adquiria no momento, atraiu imigrantes e migrantes para o estado de Goiás. Assim ocorreu também em Ipameri (GO), que tinha a economia até então baseada nas atividades agrícola e pecuária voltadas ao atendimento de necessidades do mercado interno e de cidades próximas. (CUBAS; CAVALCANTE, 2010, p. 5-7). Porém, apesar do processo de urbanização ocorrido nas cidades de Goiás após a chegada da ferrovia, Brandão (2005, p. 46) afirma que as pessoas continuaram a “ter sua vida, em função do campo ou de um pequeno e simples comércio” e que na região foi mantido o “ritmo de sertão”. Esse ritmo de sertão é identificado no trabalho com tecidos presente na família de Luzia. Atividades ligadas a fibras, fios e tecidos eram tradição na família de seu pai e de sua mãe e realizadas exclusivamente por mulheres. Luzia declarou que sua mãe e suas tias praticavam a tecelagem manual em casa, assim como outras técnicas como crochê e bróia. Faziam parte da atividade doméstica o plantio do algodão e a criação de ovelhas, fontes das fibras que eram tratadas e fiadas para a obtenção dos fios. Estes podiam ser tingidos com corantes naturais obtidos de plantas da região. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Os tecidos para casa eram feitos por meio da tecelagem: colcha, pano de calça, toalha, etc. O crochê e a bróia eram usados para fazer barras de tolhas, de lençóis, além de tecidos para a cobertura de móveis ou apoio de objetos. Deste modo, Luzia aprendeu no contexto familiar a trabalhar com fios. Afirma que sua mãe lhe ensinou a tecer quando tinha por volta de 15 anos e que desde “menina” já fazia crochê. Os tecidos que confeccionava era para uso na casa da família, assim como para o enxoval de seu casamento e de suas irmãs. A prática do entrelaçamento dos fios por tecelagem, crochê e outras técnicas também era presente nas fazendas da região, nas quais as mulheres faziam os tecidos em casa para o “gasto”, ou seja, uso da própria família. Essa realidade foi identificada em regiões próximas, como no Triângulo Mineiro, local de nascença dos pais de Luzia, onde “(...) tanto no campo quanto nas cidades, mulheres do Triângulo Mineiro, criadas na roça, continuam fiando e tecendo à mão.” (FUNDAÇÃO, 1984, p. 3), e na cidade de Hidrolândia (GO): Num passado distante, a tecelagem era uma ocupação doméstica e constituía-se numa das qualificações femininas, inclusive as moças aprendiam a tecer para fazer o seu próprio enxoval. Uma moça que soubesse fiar, tecer, enfim que conhecesse a lida do argodão, tinha sempre bons pretendentes. Nessa época se tecia mais para o consumo interno, ou seja, para uso da própria família (GARCIA, 1981, p. 171). As mulheres ensinavam umas às outras a como praticar as técnicas ou como realizar desenhos, apesar dos trabalhos com os fios serem feitos individualmente. E para o aprendizado de novos desenhos, era comum a observação de tecidos feitos por familiares ou vizinhas, chamados de amostras. Após se casar e enquanto morava na região da cidade de Ipameri (GO), até o final dos anos 1970, Luzia continuou a praticar o preparo de fios e a fazer tecidos para uso pela família a partir da tecelagem, crochê e outras técnicas. Nesse contexto, Cida, filha de Luzia nascida em 1955, nutriu admiração e interesse pelo artesanato têxtil e ainda criança fez alguns objetos em crochê. Aos 12 anos foi morar na cidade de Ipameri (GO) e então aprendeu na escola ou em aulas particulares a bordar, fazer crochê, além de outros trabalhos manuais. Em meados da década de 1970, a família vivencia a saída de alguns filhos de Ipameri (GO). Com relação à situação da cidade nesse período, Brandão (2005, p. 50) afirma que após um processo de urbanização acompanhado da inauguração de obras públicas entre as décadas de 1910 e 1930: (...) a cidade continua assistindo às inaugurações durante toda a década de 1940 e 1950, passando nas décadas seguintes a um processo inverso, o de fechamento das casas comerciais e bancárias e a mudança de várias famílias para cidades próximas, 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil principalmente com a construção da estrada de rodagem “BR 050” que liga Belém – Pará a Brasília – DF. Em termos econômicos, a cidade passa por um período que é percebido e por todos representado como sendo de “decadência”. Em 1975, Cida foi para Goiânia concluir o ensino médio e estudar para concursos públicos, acompanhada e por incentivo de alguns irmãos. Após aprovação em concurso, em 1977, Cida se dirigiu à Brasília (DF) para tomar posse em órgão público. Morou sozinha e com alguns irmãos no plano piloto, área central de Brasília (DF). Em 1980, um de seus irmãos recebeu uma casa na cidade satélite de Ceilândia (DF), pela Sociedade de Habitação de Interesse Social – SHIS, mecanismo institucional criado em resposta à crescente demanda por habitações na região (GONZALES, 2013, p. 118-119). Esta casa foi importante no momento de mudança da família para a região de Brasília (DF) e serviu de moradia para Cida, até seu casamento, e para outros irmãos que chegavam à cidade para trabalho ou estudo. Assim como para Luzia e seu esposo, que a partir de 1981, usaram essa casa como residência na “cidade”, apesar de passarem a maior parte dos dias em uma chácara no município de Cocalzinho (GO), a aproximadamente 70 km de distância de Brasília (DF). Ao tratar da questão habitacional em Brasília (DF) entre os períodos de 1970 e 1976, Gonzales (2013, p. 117) aborda aspectos relativos à realidade vivida pela família de Luzia e Cida na chegada à cidade: (...) foi um período de grande intensificação da demanda habitacional, pela imigração tanto de trabalhadores de baixa renda quanto de funcionários de uma significativa proporção de órgãos governamentais, cuja mudança para a nova capital ocorreu nesse período. A cidade planejada “não permitia o acréscimo de tecido urbano novo” (FICHER, 2013, p. 364) e a expansão ocorreu por meio da implantação, além do “cinturão verde” definido em torno do plano piloto, das cidades-dormitórios, as chamadas cidades-satélites. 3. A prática do crochê nas décadas de 1980 e 1990 Com relação à interferência que a saída da cidade de Ipameri (GO) teve nas atividades relativas à tradição do trabalho com fios e tecidos na família, observou-se que depois da mudança para a região de Brasília (DF), Luzia deixou de praticar a tecelagem e fiava o algodão esporadicamente. Cida afirmou que no período em que Luzia morou na chácara com seu esposo, o tempo que tinha para a realização de trabalhos manuais foi reduzido por se ocupar com necessidades da chácara. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Deste modo, no que diz respeito às atividades praticadas nesse período, Luzia descreveu o trabalho com o crochê para a confecção de tecidos pequenos usados para cobrir prateleiras, móveis e eletrodomésticos, além da costura de peças referentes às demandas da chácara. Avaliou-se que esse foi o momento onde ocorreu maior distanciamento da tradição familiar, devido, principalmente, à interrupção do trabalho com a tecelagem e à diminuição do volume de objetos para uso doméstico resultantes de técnicas manuais têxteis. Somente em 1995, Luzia passou a morar na casa da cidade-satélite de Ceilândia (DF), visitando a chácara esporadicamente. A partir desse ano, fez objetos para uso domiciliar e também algumas cobertas e roupas para netos e bisnetos, apesar de não as confeccionar para uso próprio. Nesse momento, Luzia tinha mais tempo disponível para os trabalhos manuais e então voltou a fazer peças maiores e a presentear familiares. No momento em que Luzia chegava a Brasília (DF), em 1981, Cida preparava o enxoval de seu casamento. Diferentemente da tradição da família, Cida comprou peças de tecido industrializadas para compor seu enxoval, as quais eram comercializadas em lojas da cidade. Porém, também fez ou ornamentou outras peças a partir do crochê e do bordado. Para o enxoval de seus filhos, fez algumas vestimentas em crochê, como mantas e sapatos, além de coberturas para objetos usados para o cuidado com o bebê. Cida trabalhava fora de casa e praticava o crochê quando tinha tempo livre. Afirmou que não costumava ter paciência ou disponibilidade para fazer peças grandes ou que demandavam muito tempo. Assim como Luzia, os objetos feitos por Cida eram para uso na casa de sua família ou para dar de presente. Em 1995, por um problema de saúde, Cida interrompeu o trabalho com o crochê e outras atividades manuais por alguns anos. Portanto, os objetos feitos por Cida e disponíveis para análise foram confeccionados até o ano de 1995. Com relação à origem dos desenhos de tecidos, Cida declarou que preferia aprender por meio de objetos prontos ao invés de seguir modelos disponíveis em revistas que ensinavam o crochê. E lhe agradava partir de um tecido pronto como exemplo e mudar alguns detalhes no momento de sua reprodução. Assim como na tradição familiar, também obtinha e trocava amostras de tecidos com familiares ou conhecidos. Mas também observava objetos feitos em crochê em lojas, casas de amigos, revistas, etc, em busca de desenhos e pontos não conhecidos. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil No que diz respeito às trocas entre mãe e filha, Cida e Luzia admitiram que seus trabalhos mantêm correspondência. Cida afirmou que Luzia a ensina aspectos relativos à técnica e à prática do crochê, assim como Luzia havia aprendido com sua mãe. Já Cida ensina Luzia como usar a técnica de uma maneira diferente: pontos e desenhos novos. Quando questionada sobre o porquê realizava atividades como tecelagem e crochê, Luzia declarou “Eu gostava, eu achava delicioso. Quando eu estava tecendo (...) eu demorava ir almoçar.”. E quanto ao crochê que faz atualmente Luzia afirmou que “se deixar, eu fico o dia inteiro fazendo”. Já Cida revelou “Eu gosto de colocar em prática as minhas ideias. Eu gosto de transformar a linha em coisas práticas. (...) de criar.”. Enquanto Luzia relaciona a confecção de tecidos com a qualidade do tempo despendido na execução da técnica, Cida ressalta o desejo de usar o trabalho também como uma oportunidade para a criação de algo novo. 4. Leitura dos objetos disponíveis em acervo Ao avaliar as possibilidades para leitura e detalhamento dos objetos feitos a partir do crochê, decidiu-se adotar como base a abordagem de Bruno Munari (1997, p. 69) para o suporte visual (de uma mensagem visual) como o conjunto dos elementos: textura, forma, estrutura, módulo e movimento. Devido às características dos tecidos confeccionados pela técnica do crochê, que apresentam em comum o modo de construção da superfície a partir de estrutura modular que pode conter ou compor formas diversas, a descrição dos objetos foi feita a partir dos seguintes aspectos: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Uso Dimensões Cor Material – tipo de linha usado Forma externa do objeto – relacionada ao seu uso Formas no interior da estrutura - obtidas pelo agrupamento dos módulos Textura – rarefação ou adensamento das linhas na superfície Estrutura(s) – formada(s) a partir de módulo(s) O acervo dos objetos artesanais têxteis feitos em crochê entre as décadas de 1980 e 1990 por Luzia e Cida é composto por aproximadamente 40 unidades. Essa quantidade não corresponde a toda produção das duas décadas, pois alguns objetos foram doados e outros, como eram usados em casa, se degradaram. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Selecionou-se 10 unidades da década de 1980 e 10 unidades de 1990 para leitura e análise. Partiu-se de dois critérios para a seleção dos objetos: semelhança e representatividade, em termos visuais, de outros objetos produzidos em uma mesma década; e diferenciação do objeto com relação à totalidade do acervo. 5. Análise dos objetos feitos em crochê como suporte visual Após leitura dos 20 objetos selecionados, partiu-se para a identificação de aspectos formais da técnica crochê e de elementos visuais que apresentassem relação com os contextos produtivos ao longo das décadas de 1980 e 1990. A característica comum a todos os objetos de crochê é a simetria. Circulares, retangulares, feitos a partir da união de módulos: em todos os tecidos o equilíbrio como suporte visual é obtido por meio de composições simétricas. A grande maioria deles é bidimensional e para uso no interior de casas e em atividades domésticas. 5.1 Cores Os tecidos são, em maioria, compostos de somente uma cor. As cores branca, amarela e vermelha são presentes em todo o acervo. Nos objetos da década de 1980 se destacam alguns tons alaranjados associados à cor marrom, enquanto diferentes tons de rosa são relevantes na produção da década de 1990. Sobre a diferença nas cores ao longo das duas décadas, Cida associa tanto ao gosto da pessoa que realizava ou recebia a peça, quanto à moda do o que era usado nos interiores das casas no momento. 5.2 Material Com relação ao material dos tecidos, pode-se observar a interrupção do uso do fio de algodão fiado manualmente e a predominância do fio industrial como matéria-prima. Três objetos feitos por Luzia na década de 1980 foram confeccionados com fio de algodão fiado manualmente, enquanto na grande maioria dos objetos analisados foi usada linha industrial de algodão. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil A mudança do tipo de algodão interfere também nas cores dos objetos de crochê. Os tecidos feitos com algodão fiado eram usualmente de cor branca ou ganga (nome dado à cor de um tipo de algodão que nasce com tom acastanhado), referentes às cores naturais do algodão. 5.3 Forma, estrutura e módulo Durante análise, observou-se que alguns objetos circulares e quadrados, usados individualmente ou como módulos de peças maiores, são compostos por diferentes partes que normalmente correspondem a formas geométricas – losango, triângulo, círculo, semicírculo. E cada uma dessas áreas é estruturada por uma sequência regular de pontos, ou seja, módulos comuns, como visto na imagem 1. Imagem 1: Objetos circulares ou retangulares formados por áreas de diferentes estruturas Dos tecidos do acervo, dez da década de 1980 e dois de 1990 são circulares. Com a exceção de um tapete, esses tecidos são forros de diferentes tamanhos para cobertura de prateleiras, móveis ou eletrodomésticos ou para apoio de objetos. Nesses forros, é possível reconhecer formas que se aproximam de elementos figurativos, como estrelas e flores. Objetos circulares ainda foram usados por Cida na década de 1980 como módulos para a construção de tecidos para a ornamentação de mesas, referentes aos dois primeiros objetos da imagem 2. Imagem 2: Objetos feitos pela união de módulos circulares ou quadrados 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Duas colchas também foram estruturadas a partir da união de módulos, nestes casos quadrados, por Luzia entre os anos 1995 e 1997. Este período coincide com o momento em que passou a morar na casa da “cidade”, dispondo de mais tempo livre para confecção de peças mais trabalhosas. Outro tipo de objeto comum aos analisados é o que tem a superfície estruturada por módulos quadrados, os quais podem ser preenchidos ou vazados, possibilitando a execução de desenhos. Imagem 3: Objetos com estrutura quadriculada O primeiro tecido da imagem 3, elaborado por Luzia na década de 1980, tem essa estrutura quadriculada e apresenta desenho com formas geométricas e curvas, como arabescos. Do início da década de 1990, há sete ‘bicos’ (faixas usadas como ornamento) para toalhas, feitos por Cida, com esse tipo de estrutura. Nesses ‘bicos’ foram gerados elementos figurativos como flores, folhas, corações e formas geométricas. Constatou-se que objetos circulares, ou feitos por módulos circulares, são mais comuns no acervo da década de 1980. Já os objetos com estrutura quadriculada constituem maioria no conjunto de objetos da década de 1990. O uso de elementos figurativos é comum nos tecidos feitos no início da década de 1990 por Cida, enquanto nos objetos realizados na década de 1980 por Cida ou nas duas décadas por Luzia, a possibilidade de associação das formas a elementos figurativos não é muito explícita. Além disso, observou-se que os objetos referentes à década de 1980 foram confeccionados completamente em crochê e, naqueles da década de 1990, o crochê foi usado para a realização de ornamentos de tecidos já prontos, como toalhas, coberturas para mesas e bandejas. Sobre os tecidos gerados pela técnica crochê e utilizados em casas na década de 1980, Cida declarou que era comum o uso de forros similares aos tecidos circulares para cobrir móveis e 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil eletrodomésticos. Acrescentou, porém, que na década de 1990 eles não eram usados de forma tão ampla. Observou-se, então, que existe uma correlação entre os tecidos realizados por essa família e a moda relativa ao uso de objetos de crochê. Verificou-se que o interesse de Cida por tecidos de fontes diversas, possibilitou maior influência daquilo que era feito e usado em crochê nas décadas de 1980 e de 1990, no contexto urbano da cidade de Brasília (DF). 5.4 Objetos que se diferenciam do conjunto Alguns objetos que apresentam características diferentes de todo o conjunto analisado são aqueles com aspectos tridimensionais, mostrados na imagem 4: colete de lã não finalizado e cobertura para saboneteira e para embalagem de colônia infantil, confeccionados por Cida em 1980 e 1982, e vestido feito por Luzia para neta em 1999. Imagem 4: Vestimentas e objetos tridimensionais Além de características tridimensionais, essas peças em crochê apresentam superfícies com estruturas mais regulares que outros objetos analisados. Não são compostas por elementos figurativos e as formas geométricas em suas superfícies são geradas por pontos que estruturam padronagens contínuas. Outros objetos se diferenciam do conjunto por seu modo de construção. Um deles, mostrado na imagem 5, é resultado de um experimento de Cida no início da década de 1990: a partir de estrutura regular, Cida criou um desenho no tecido trocando a cor de linha a ser tecida. O desenho é formado pela diferença entre cores, não entre pontos. 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil Imagem 5: Bicos revistas / tecido com flor experimento Cida Já os objetos à esquerda da imagem 5 são ‘bicos’ para ornamentação de toalhas ou panos de prato, os quais foram confeccionados por Cida a partir de revistas com modelos de peças em crochê. Apresentam padronagens contínuas intercaladas por pontos diferentes ou são estruturados a partir de união de elementos, de modo não comum aos tecidos produzidos por Luzia e Cida. Constatou-se, primeiramente, que há diferença entre o uso do crochê em tecidos para casa ou para vestimentas, já que as possibilidades da técnica de estruturar superfícies e de gerar ornamentos não são exploradas do mesmo modo. As estruturas dos objetos para casa são complexas ou há o uso de elementos figurativos na superfície dos tecidos, o que não acontece nas vestimentas. E ao observar a pequena quantidade de objetos que apresentam diferenças no modo de gerar estruturas e desenhos, com relação aos dois conjuntos de objetos circulares ou com estrutura quadriculadas, inferiu-se que a maioria dos tecidos feitos por Cida e Luzia são construídos a partir de lógicas estruturais específicas, as quais não mudaram consideravelmente ao longo das duas décadas. 6. Conclusão A prática do crochê por Luzia e Cida nas décadas de 1980 e 1990 na região de Brasília (DF), apresenta correlação com o trabalho realizado por mulheres da família na região de Ipameri (GO) desde o início do século XX. No contexto familiar respectivo à vida na zona rural da cidade de Ipameri (GO), as mulheres, assim como Luzia, trabalhavam em casa e tinham como parte de suas ocupações a produção de tecidos para o uso doméstico, confeccionados com matéria-prima obtida localmente. A mudança da família para a região de Brasília (DF), no início da década de 1980, foi caracterizada por novo contexto sociocultural: zona urbana, na qual havia oferta de tecidos e 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil fios industrializados. Cida, a exemplo de outras mulheres, trabalhava fora de casa. Nessas condições, a confecção de tecidos passou a ocupar atividade de hobby, representativa para Luzia e Cida pela satisfação obtida por meio da técnica do crochê e por suas oportunidades como meio para a expressão criativa. Nos dois contextos, os objetos feitos por mulheres dessa família eram em maioria para uso em casa, como ornamento ou para cumprir função prática. Familiares e conhecidas ensinavam umas às outras aspectos da técnica e trocavam amostras de tecidos. Os objetos realizados não somente atendiam às necessidades da casa ou do núcleo familiar, eram também confeccionados para serem dados de presente. A análise de objetos feitos em crochê das décadas de 1980 e 1990 levou à identificação de elementos visuais próprios da técnica e que se relacionam com aspectos relativos aos contextos socioculturais da família. A técnica ‘crochê’ apresenta amplas possibilidades de construção de superfícies, desenhos e padronagens, as quais foram exploradas por Cida a Luzia na confecção de um conjunto variado de objetos, a partir do qual foi possível reconhecer também similaridades entre os tecidos. Constatou-se que as formas, as estruturas e as cores dos tecidos tiveram alterações ao longo das duas décadas, que se relacionam com mudanças da moda de quais objetos em crochê eram adotados para uso em casa, principalmente. Apesar do interesse de Cida por a prender e realizar pontos e desenhos novos, verificou-se que as peças feitas por Cida e Luzia ao longo das duas décadas seguem lógicas estruturais específicas para a construção de superfícies. Portanto, as mudanças na produção de tecidos em crochê apresentam maior correspondência com o uso definido para os tecidos, o qual pode privilegiar formas e desenhos específicos, do que com o modo de construção desses tecidos. Os objetos confeccionados em crochê por essa família são registros de mudanças relativas a processos de obtenção de matéria-prima; à disponibilidade de praticar o crochê em meio a outras ocupações, quando características dos objetos evidenciam que as obrigações associadas à profissão ou ao cuidado com a casa relativizam o tempo disponível para a atividade; assim como ao modo de aprender novos desenhos, por meio da interação com outras pessoas ou observação de tecidos em lojas e revistas. Consideram-se os tecidos elaborados manualmente como expressões materiais da cultura da família de Luzia e Cida, sendo assim parte da cultura material da sociedade. “A cultura 20 a 22 de maio de 2014 – São Paulo - Brasil material é, por excelência, matriz e mediadora de relações.” (REDE, p. 274). A partir dessa afirmação, entende-se que esses objetos podem ser vistos como resultados de fatores relativos ao dia-a-dia de suas executoras, à tradição do trabalho com o tecido na família e à moda vigente em cada momento. Assim como são condicionantes de novas ações e avaliações, ao serem usados como amostras para a execução de outros objetos, ou ainda quando são vistos como símbolo da criatividade e tradição das mulheres da família no que diz respeito à feitura de tecidos para uso por seus familiares. Referências bibliográficas BRANDÃO, Hilma Aparecida. Memórias de um tempo perdido: A Estrada de Ferro Goiás e a Cidade de Ipameri (Início do século XX). 2005. Dissertação (Mestrado). 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