E SE O GRINGO FOR “NEGÃO”?

Transcrição

E SE O GRINGO FOR “NEGÃO”?
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
E SE O GRINGO FOR “NEGÃO”?
“Raça”, gênero e sexualidade no Rio de Janeiro A experiência dos turistas “negros” norte -americanos
Marcelo Henrique Ferreira
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Saúde Coletiva, Curso
de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área de
concentração em Ciências Humanas e Saúde do
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
Orientadora: Laura Moutinho
Rio de Janeiro
2005
2
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBC
F383
Ferreira, Marcelo Henrique.
E se o gringo for “negão” ? Raça, gênero e
sexualidade no Rio de Janeiro: a experiência dos turistas
negros norte-americanos / Marcelo Henrique Ferreira. –
2005.
144f.
Orientadora: Laura Moutinho.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.
1. Sexo (Psicologia) – Teses. 2. Turismo sexual – Rio
de Janeiro (RJ) – Teses. 3. Negros – Estados Unidos –
Teses. 4. Raça negra – Teses. I. Moutinho, Laura. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Medicina Social. III.Título.
CDU 159.922.1
3
“Dedico este trabalho a cada um dos turistas “African-Americans”
que, durante suas viagens ao Rio de Janeiro, participaram,
ajudaram e incentivaram de forma tão intensa, as
reflexões que resultaram neste estudo...
Muito obrigado!”
4
“Os etnógrafos precisam convencer-nos não apenas
de que eles mesmos realmente ‘estiveram lá’,
mas ainda de que, se houvéssemos estado lá, teríamos
visto o que viram, sentido o que sentiram e
concluído o que concluíram.”
Clifford Geertz
5
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à exaustiva dedicação de minha
orientadora, profa. Laura Moutinho, qual acreditou neste trabalho antes mesmo
que eu o percebesse enquanto possível, em segundo lugar ao prof. Sérgio
Carrara pela minuciosa leitura crítica imprescindível para o enquadramento “do
foco” na reta final, e em terceiro lugar aos profs. Peter Fry, Jane Russo e Keneth
Camargo pelo acompanhamento desta reflexão, de forma provocativa e indutiva,
desde o seu início.
6
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ....................................................................................................................................... 7
ABSTRACT .................................................................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................10
SOBRE O AUTOR.........................................................................................................................................................18
A PESQUISA DE CAMPO.............................................................................................................................................20
1 - IMAGENS DO BRASIL E DO RIO DE JANEIRO....................................................................................27
1.1 O PORTAL DO MINISTÉRIO DO TURISMO.........................................................................................................30
1.2 O S WEBSITES DAS AGÊNCIAS DE VIAGENS BRASILEIRAS...............................................................................37
1.3 O “ TURISMO ÉTNICO” COMERCIALIZADO PELAS AGÊNCIAS NOS EUA ......................................................46
2 - OS TURISTAS “NEGROS” NO TURISMO CARIOCA..........................................................................56
2.1 DEMARCANDO LIMITES: “TURISMO ÉTNICO” VS. “ TURISMO SEXUAL”........................................................58
2.2 GRUPOS UTILIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO.............................................................................................73
3 - O TURISMO “ÉTNICO” NO RIO DE JANEIRO.......................................................................................78
3.1 A CONFIGURAÇÃO DA TENSÃO..........................................................................................................................80
3.2 UM EXEMPLO DA PERCEPÇÃO DO TRADE CARIOCA........................................................................................86
3.3 DO QUE DIZ RESPEITO À “RAÇA” - ...................................................................................................................94
CONCLUSÃO........................................................................................................................................................... 124
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................................ 126
BIBLIOGRAFIA COMPLEM ENTAR ................................................................................................................ 128
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. 01 – Grupo ITC no Pão de Açúcar ......................................................................15
Fig. 02 – Grupos do Trabalho de Campo ...................................................................25
Fig. 03 – Agências de Turismo líderes em operações com grupos “étnicos” ......46
Fig. 04 – Grupo ITC na Estação do Pão de Açúcar.................................................56
Fig. 05 – “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual” ........................................................63
Fig. 06 – Tabela de Grupos utilizados no trabalho de campo ................................74
Fig. 07 – Composição majoritariamente feminina.....................................................76
Fig. 08 – Dentro de um ônibus de turismo .................................................................78
Fig. 09 – No Corcovado ................................................................................................86
Fig. 10 – Com os meninos de rua ...............................................................................94
Fig. 11 – Em Santa Teresa ...........................................................................................96
Fig. 12 – No lobby do hotel...........................................................................................98
Fig. 13 – Uma das percepções ..................................................................................103
Fig. 14 – Outra percepção ..........................................................................................105
Fig. 15 – Mais percepções ..........................................................................................115
8
RESUMO
E SE O GRINGO FOR ‘NEGÃO’?
“Raça”, gênero e sexualidade no Rio de Janeiro.
A experiência dos turistas “negros” norte -americanos
O
turismo
étnico
é,
hoje,
uma
das
áreas
potenciais
para
o
desenvolvimento da atividade turística nacional, quando o histórico interesse de
“negros” norte-americanos pelo Brasil amplia-se via massificação do produto
turístico de recorte identitário. Esta dissertação é o resultado da pesquisa
realizada com turistas “negros” norte-americanos no Rio de Janeiro, que aponta
para a forma com que estes turistas, enquanto consumidores, influenciam na
reorganização do mercado turístico carioca por meio de demandas racializadas.
Curiosamente, por trás de tais demandas desvelou-se um fundo político,
marcado por papéis de gênero, que fornece instrumentos para o mapeamento
inicial do “turismo sexual” envolvendo aquela população na Cidade Maravilhosa.
A pesquisa aponta que este universo está basicamente dividido em dois grupos
de turistas: o do “turismo étnico”, majoritariamente formado por mulheres; e o do
“turismo sexual”, composto, com raras exceções, inteiramente por homens. Esta
diferença sugere que a racialização imposta no “turismo étnico” seja uma
exigência das mulheres americanas e indica a preocupação delas em
estabelecer identidades e constatar diferenças com os “negros” em lugares onde
eles tenham participado da história, preocupação que não atinge os “turistas
sexuais”.
9
ABSTRACT
AND WHAT ABOUT THE “BLACK” TOURIST?
“Race”, gender and sexuality in Rio de Janeiro The experience of African-American tourists
The ethnic tourism is one of the potential areas for the development of the
national tourist activity nowadays in Brazil, since the historic interest of AfricanAmericans widens through the popularization of an “ethnic” tourist product. This
dissertation is the result of a research, made with African-American tourists in
Rio de Janeiro, which shows the way, as consumers and through racial
demands, they manage to influence the configuration of the carioca’s tourist
market. Curiously, behind those demands was a political background, oriented by
gender roles, which helps to visualize the dynamic of the “sexual tourism”
involving that population in the Wonderful City. It shows that the AfricanAmerican tourist universe in Rio is basically divided into two groups: the “ethnic”
one, which is mainly formed by women and, the “sexual” one, only formed by
men. Such a difference suggests that the racial demands imposed by the “ethnic
tourism” may be gender oriented, which indicates the African-American women
preoccupation in establishing identities and finding out the differences about
places where “blacks” may have taken part of the local history, which has nothing
to do with the concerns of the “sexual tourists”.
10
INTRODUÇÃO
Esta dissertação é sobre um campo que não existe. Não existe turismo
étnico no Rio de Janeiro. Esta dissertação analisa a tensão existente entre a
demanda do turista “negro” norte-americano e a oferta dos “produtos étnicos”
pelo trade turístico carioca. Depois de dois anos dedicados a esta pesquisa me
dou conta de que o “turismo étnico” no Rio de janeiro é mais um campo em
construção que qualquer outra coisa.
Os turistas que transitam pelas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, na
maioria das vezes podem ser identificados em meio à população nativa. Quando
não pela evidência provida pela barreira lingüística ou pela câmera fotográfica,
pela forma de vestir, pela forma de andar, de gesticular, pela combinação de
todos estes fatores e… por que não, dentre tantos outros, pela cor da pele? O
estereótipo de “gringo” para os cariocas, e quem sabe para os brasileiros em
geral, passa definitivamente pela variável “cor”. Ao perguntar, casualmente, para
vários brasileiros, como eles descreveriam um gringo, as respostas, ainda que
diversas, quase sempre passam, em algum momento, pela cor da pele. Algumas
mais pontuais: “…são muito ‘brancos’!” ou “São loiros e de olhos azuis…”.
Outras, subjetivamente focadas nas relações raciais: “…ficam loucos com as
‘mulatas’…” ou “…adoram a nossa mistura ‘racial’”. No entanto, nunca imaginam
ou mencionam um turista “negro”. Para além disto está o fato de que a
representação social que os brasileiros têm de turistas estrangeiros articula
poder econômico e prestígio, aqui entendidos como indicadores de classe social,
o que de certa forma confere a esses indivíduos o status equivalente ao das
camadas superiores da estratificação social brasileira. Suponho que a
associação direta que se faz no Brasil entre “ser negro” e “ser pobre”, venha
impedindo que o mercado de turistas “negros” norte-americanos seja pensado
enquanto um valioso potencial.
11
Para esclarecer, com relação ao mercado afro -americano utilizarei parte de
um pequeno artigo intitulado “Mercado de grupos étnicos”, que foi publicado no
jornal O Globo em 14/9/2004, no qual o ex-embaixador do Brasil nos EUA,
Rubens Barbosa, discorre sobre a potencialidade para a exportação brasileira
que o mercado “negro” norte-americano pode representar pela via do turismo.
Ele diz que:
“O mercado americano é o maior, o mais dinâmico e um dos mais
abertos do mundo. Com um PIB de US$11,5 trilhões e importações
de
mais
de
US$
1,5
trilhão,
os
EUA
oferecem
muitas
oportunidades para o exportador atento e interessado em descobrir
e explorar nichos nesse mercado.
Dois desses nichos se enquadram nessa visão estratégica de
médio e longo prazos, e se destacam imediatamente pelo potencial
que podem representar para o exportador brasileiro: o latino e o
negro.
[…]
Vou focalizar, contudo, apenas o negro (outro grupo de
aproximadamente 36 milhões de pessoas) pelo seu potencial e
pelas oportunidades que oferece para o comércio exterior e
turismo no Brasil.
A minoria negra ou afro-americana representará, em termos de
disponibilidade de renda, cerca de US$ 921 bilhões em 2008.
Com relação à distribuição geográfica, os dez estados que
apresentaram maior poder de compra da comunidade negra dos
EUA em 2003 foram: Nova York (US$ 65 bilhões), Califórnia (US$
53 bilhões), Texas (US$ 50 bilhões), Geórgia (US$ 46 bilhões),
Flórida (US$ 41 bilhões), Maryland (US$ 38 bilhões), Illinois (US$
37 bilhões), Carolina do Norte (US$ 31 bilhões), Virgínia (US$ 29
bilhões) e Michigan (US$ 28 bilhões).
12
Se fosse uma nação, o mercado afro-americano seria a 11a
economia do mundo, maior, portanto, que a do Brasil. De acordo
com o estudo “Buying Power of Black America”, seu poder de
compra chegou a US$ 631 bilhões em 2002, com um aumento de
4,8% em relação a 2001.
No tocante ao turismo, segundo a publicação “Black Meetings and
Turism” (BM&T), a comunidade afro-americana gasta US$ 35
bilhões em viagens de lazer e de negócios.
O setor reflete o crescente poder de compra desse segmento da
população americana. Segundo, a BM&T, o mercado de turistas
afro-americano é o mais dinâmico do setor, tendo crescido 16%
nos últimos dois anos, enquanto o setor como um todo cresceu
apenas 1%. A população negra americana tem representado nos
útimos anos cerca de 17% das viagens de lazer, enquanto sua
participação relativa no total da população é de 13%.
A forte influência em nossa cultura por parte dos descendentes dos
negros potencializam as possibilidades de exploração comercial
desse diferencial mercadológico único no mundo, dadas as
similitudes
dos
matizes
das
populações
brasileiras
e
americanas…”
O primeiro intuito desta dissertação é apontar a tensão existente entre as
percepções brasileira e norte -americana acerca da “concepção racial”, do
“racismo” e da “classificação de cor” no turismo carioca. Mais especificamente,
no que diz respeito ao segmento do “turismo étnico”, no qual turistas “negros”
norte-americanos apresentam ao mercado turístico local demandas racializadas
que exigem serviços de referência “afro -descendentes” (pacotes, guias,
motoristas, restaurantes, etc.). Em segundo lugar, quero demonstrar como o
mercado de turistas “African-Americans” ajuda a problematizar o chamado
13
“turismo sexual”, e o quanto esta diferenciação está balizada por um recorte
marcado por papéis de gênero.
Minha intenção teve como eixo central a preocupação de mostrar de que
lugar este turista está percebendo o Rio de Janeiro e, sobretudo, o quão central
é o eixo “raça” nessa percepção. O que espero, ajude a esclarecer com relação
aos pontos de contato e distanciamento das relações “raciais” entre os dois
universos, tanto quando lido pelos African-Americans quanto pelos brasileiros.
Esta é uma reflexão que teve início durante meu projeto de monografia para
a graduação em Ciências Sociais, no qual focalizei a mediação cultural que se
dá entre o universo do turismo local do Rio de Janeiro e o universo dos turistas
que o visitam. Na época, meu interesse específico recaía sobre a forma como os
“guias de turismo” protagonizavam esta mediação, entendendo que existiria uma
tensão a ser administrada na compreensão pelo turista do universo que lhe
estaria sendo proposto na capital carioca, e isto sempre em relação ao seu
universo de origem. Na exemplificação desta tensão então, utilizei dois
exemplos: o “Favela Tour” e o “Turismo Étnico”. O primeiro se referia às
excursões feitas em favelas do Rio de Janeiro, e o segundo, que particularmente
será o responsável pelo desdobramento do qual resulta esta dissertação, sobre
os programas turísticos desenvolvidos para os grupos de turistas “negros” norteamericanos.
O que gostaria de recuperar, daquela experiência, para explicar as origens
desta dissertação é a idéia central de que existiria uma tensão a ser
administrada no tocante aos programas de turismo “étnico” para turistas “negros”
norte-americanos, organizados no Rio de Janeiro, que se dá sobretudo devido
ao confronto entre diferentes percepções acerca das “relações raciais”
americanas e brasileiras. E que, devido à demanda deste mercado ao turismo
brasileiro, área vista como potencial para o desenvolvimento do país pelo
Governo Federal, se faz necessário o desenvolvimento de estratégias e políticas
públicas que propiciem o gerenciamento e a formatação de um “produto” para os
turistas afro-americanos.
14
Segundo dados da Embratur 1, o gasto médio do turista (per capita ao dia) em
2002 foi o equivalente a US$86,17, o que ajuda a situar o poder aquisitivo (pelo
menos enquanto turista aqui no Brasil) dessa população que estamos
recortando 2. Isso significa dizer que gastam quase um salário-mínimo nacional
atual ao dia. Visto isto, torna -se clara a manutenção do status que lhes é
conferido. Os dados da Embratur também apontam que os turistas vindos dos
EUA estão entre os que mais nos visitam 3 e, ainda que esses dados não
possuam uma classificação “racial”, sabemos que 12,9% dos americanos se
declararam “black” ou “African-American” no censo do ano de 2000 4 nos EUA.
Estamos falando, portanto, de uma população de 36,4 milhões de possíveis
visitantes. O fato é que, a cada dia que passa, o número de “negros” norteamericanos transitando pelas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro parece
aumentar, transformando o quadro da população local. O bairro de Copacabana
pode ser lido como um termômetro do turismo no Rio de Janeiro, visto ser
central na dinâmica turística local 5, um espelho do quadro turístico da cidade
devido ao grande número de hotéis ali instalados.
O fato de os afro -americanos representarem uma camada significativa da
população dos EUA, não é o suficiente para explicar a escolha do Brasil como
destino turístico. Por isso, considero importante remarcar que, do início até
meados do século XX, “a imagem do Brasil enquanto paraíso racial na realidade
se tornou um mito importante para negros norte-americanos, dentre os quais
muito poucos teriam visitado a América do Sul durante o séc. XIX ou início do
próprio séc. XX”6, como mostra David J. Hellwig, em seu livro African-American
1
Ver Anuário Estatístico Embratur 2003, Anexo 3.
É importante estar atento ao fato de que o apresentado pela Embratur é uma media aritmética
que inclui todas as nacionalidades de turistas, das que menos consomem às que mais
consomem. No entanto, a nacionalidade que particularmente nos interessa neste projeto, a
norte-americana, além de ser uma das primeiras em número de visitantes é também a que mais
gasta em suas estadias, tendo apresentado uma media de US$125,72 em 2001 e US$106,08
em 2002. Ver tabelas no Anexo 3.
3
Ver anexo 3.
4
Ver The Black Population. In: United States Census 2000. Anexo 2.
5
Ver Ferreira, M. (2002).
6
Tradução minha. Ver Hellwig (1992).
2
15
reflections on Brazil’s racial paradise. Então, diante deste quadro, pergunto ao
leitor: e se o gringo for “negão”?
Fig. 01 – Grupo ITC no Pão de Açúcar
Ainda que pareça uma especulação, e sem muitos desdobramentos, não o é.
Turistas “negros” norte-americanos têm se apresentado como um grande
desafio para o trade turístico 7 carioca, não somente por suas expectativas com
relação ao Rio de Janeiro, mas, sobretudo, pelas demandas específicas de corte
racializado que têm imposto ao mercado (guias negros, por exemplo). Prova
deste desafio é o fato de até hoje não existir, nesta cidade, um programa que
possa ser chamado de “étnico”. Daí as questões centrais desta dissertação:
7
Segundo o glossário do SINDEGTUR/RJ, encontrado no site www.sindegtur.org.br em maio de
2005, trade turístico seria o conjunto de agentes, operadores, hoteleiros e prestadores de
serviços turísticos.
16
1. Por que, nas pelo menos três décadas de existência deste mercado 8, o
Rio de Janeiro não foi capaz de criar e estruturar um programa de “turismo
étnico”?
2. O que existe de não identificado sobre este segmento, que chega a
impedir
o
desenvolvimento
de
um
nicho
de
mercado
sabido
como
“extremamente lucrativo”?
3. Será que o turista “negro” norte-americano representa uma ameaça para
o ideal de “democracia racial” brasileiro?
A estratégia que escolhi para responder a estas questões foi me concentrar
no átomo deste segmento: o próprio turista “negro” norte -americano. Perguntar,
vasculhar e conviver com as representações sociais que estes possuem sobre o
Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro.
Com relação à composição destes grupos, a primeira coisa que quero
colocar em evidência é a diversidade que encontramos: os turistas vêm das
mais diversas partes dos EUA, assim como suas profissões são as mais
variadas possíveis. Nova York, Chicago, Los Angeles e Atlanta são cidades que
estão, na maioria das vezes, representadas por um ou mais turistas. Em todos
os grupos, encontramos, ainda, um ou mais turistas com o titulo de Doutor.
Estes são fatores muito importantes quando nos damos conta da interação que
acontece nesses programas. A troca que se estabelece é impressionante, visto
que a experiência de vida de cada um passa a ser também um ingrediente
fundamental na composição da imagem da cidade. A imagem da cidade se cria,
ou melhor, se reformula, a partir desta interação.
Sabemos que os turistas “negros” norte-americanos estão olhando para o
Brasil com “olhos” americanos e que com “olhos” brasileiros esta tensão talvez
tivesse outras dimensões. Observado por um outro ângulo, nos damos conta
que de repente temos “negros” (ainda que americanos) compartilhando dos
8
O agente de viagens e diretor de uma das empresas norte-americanas que fez parte do meu
trabalho de campo, em uma entrevista comigo no Hotel Le Méridien, em 2003, afirmou que trazia
grupos de “negros” norte-americanos para o Brasil desde o início da década de 70.
17
estabelecimentos e serviços até então basicamente utilizados pelos “brancos” ou
“quase-brancos” das elites cariocas. “Negros” que passam a ser “o cliente que
têm sempre razão” e que precisam ter suas demandas sempre atendidas, o que
combinado com o “ideal de democracia ‘racial’”, na qual a sociedade brasileira
se acredita constituída, não abre espaço para o racismo.
E é importante ressaltar, aqui, que os turistas “negros” norte-americanos,
por mais miscigenada que seja a sua origem, jamais se vêem como “quasebrancos”. Muito pelo contrário, se afirmam enquanto “negros” e vêem o mundo
organizado a partir de um recorte racial em que as origens africanas, suas
supostas raízes, são extremamente valorizadas. Segundo a antropóloga Patrícia
Pinho, “a ‘africanidade’ deles é tanta, e tão bem conferida é sua ‘autenticidade’,
que permite a (con)fusão com a matriz, ou ao menos com o que se imagina
dela” 9. A autora também afirma que:
“Chamo estas pessoas de etno-turistas porque suas viagens
são impulsionadas pelo desejo de encontrar elementos que
possam ser utilizados para compor suas identidades étnicas
negras, identidades estas que são ao mesmo tempo
racializadas e centradas numa idéia específica de África
como
terra-mãe
e
centro
emanador
de
negritude
essencial.”10
Temos aqui, então, um impasse constituído: turistas “negros” norteamericanos, de alto poder aquisitivo, que estão interessados em resgatar aqui
no Brasil as “reminiscências africanas” que, segundo eles, teriam se perdido nos
EUA, experienciando o ethos “branco” ou “quase-branco” das elites cariocas,
9
Em um artigo intitulado “Pesquisando o turismo étnico na Bahia”, a autora confessa ter
confundido turistas “negros” americanos com africanos devido ao ostensivo uso do que na Bahia
são entendidos como signos de “africanidade”. Ver Pinho, P. (2002).
10
Idem. Paper apresentado no “Colóquio Internacional Atlântico Negro – A Construção Trans Atlântica das Nações de Raça e Anti-Racismo”, no Senegal em 2002.
18
leia-se “onde se organiza” o turismo, no intuito de encontrar uma “africanidade”
que estas mesmas elites posicionam no passado, ou no outro, e não
reconhecem em si mesmas. Ou seja, o turismo “étnico” no Rio de Janeiro está
começando a se construir devido a esta demanda do mercado “afroamericano”... está nascendo. Como ficará claro nas próximas páginas, existe
também no “turismo étnico”, um forte componente de gênero. Em especial, um
certo tipo de demanda calcada em um certo diferencial de gênero que coloca o
“turismo étnico” em confronto com o chamado “turismo sexual”.
Sobre o autor
Em um artigo chamado “Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita”11,
o antropólogo Clifford Geertz faz uma série de ponderações com relação à
produção de estudos antropológicos, no que se refere à escrita etnográfica.
Começando pela “questão do que vem a ser um ‘autor’ na antropologia”12, parte
do princípio de que “ainda é muito importante saber quem está falando” em
nossa, segundo sua provocação, “ingênua disciplina”. Meu intuito é tentar dar o
máximo possível de subsídios, para localizar o lugar de onde estou falando.
Primeiramente, gostaria de situar a questão da articulação entre o
turismo e a Antropologia Urbana. Desde o início, meus estudos nas ciências
sociais tiveram o intuito de iluminar a atividade turística e a forma com que esta
vem sendo construída na cidade do Rio de Janeiro. Penso que os estudos de
Antropologia Urbana foram cruciais para este entendimento, dentre os quais
posso destacar os trabalhos produzidos ou organizados pelo antropólogo
Gilberto Velho 13, por estarem diretamente relacionados à produção de uma
antropologia urbana, se não carioca, com certeza brasileira.
11
Ver Geertz, C. (2002:10 -39).
Idem (2002:18).
13
Ver os livros Mediação, Cultura e Política e Antropologia Urbana, os quais possuem artigos
que gradativamente foram incorporados ao meu discurso durante a execução de excursões.
12
19
Ainda que graduado em Ciências Sociais, meus interesses sempre
estiveram, por conseguinte, mais direcionados para o lado da Antropologia.
Sempre observei com fascínio a possibilidade de pensar uma antropologia
aplicada ao turismo, atividade profissional que exerço na condição de guia, no
que diz respeito à execução e criação de programas turísticos para o Rio de
Janeiro.
De uma forma muito peculiar, desenvolvi gradativamente uma técnica de
“observar o familiar” 14 estranhando-o, visto ser este estranhamento uma
condição fundamental para a aproximação do universo do “outro”, aqui os
turistas. Este movimento resultou em entender os tours que executo, devido ao
arsenal teórico antropológico que utilizo, com uma certa proximidade à minha
forma particular de etnografar. E, sem dúvida, concordo com Geertz, quando o
mesmo afirma que textos etnográficos são atormentados pela questão da
assinatura, pela presença autoral no texto 15. No entanto, ao considerar que
enquanto antropólogo seja possível executar um tour, me coloco em uma
posição de autor em relevo. Impossível não “estar lá”, visto que um dos
interesses dos turistas é exatamente a possibilidade de ouvir a sua posição
enquanto nativo, que consegue se distanciar a ponto de entender os
questionamentos produzidos pela alteridade. O tour etnográfico depende da
assinatura, da presença do autor!
Em segundo lugar, gostaria de apontar quão particular é o fato de estar
nos dois lugares ao mesmo tempo, visto que diversas vezes fui alertado, na
academia, por utilizar um discurso demasiado “nativo” da atividade turística em
minhas produções. Apesar de sempre ter tentado remediar esta problemática16,
é importante ressaltar que a minha motivação pela produção acadêmica tem o
seu motor, ou seja, se origina na atividade turística. Por conseqüência, não cabe
produzir para a academia algo que não seja ao mesmo tempo rentável para o
turismo. Digo rentável, porque considero uma suposta Antropologia que seja
14
Ver Velho, G. (1978).
Ver Geertz, C. (2002:20).
16
Durante a produção desta dissertação, me preocupei continuamente em usar o mínimo de
expressões “ditas nativas da at ividade turística”.
15
20
aplicada ao turismo, uma efetiva fonte para o desenvolvimento desta atividade,
que, por conseguinte, refletirá no desenvolvimento não somente da cidade onde
é aplicada, mas, sobretudo, na “imagem” que se construirá dela, no que diz
respeito às representações sociais, no imaginário coletivo internacional. Afinal,
cada turista que passa pela cidade maravilhosa ajuda a reafirmar ou rejeitar
certos mitos, e isso acontece como uma produção em cadeia. No entanto, este
ponto intermediário entre as duas áreas se provou um grande desafio,
principalmente no que diz respeito a pensar um grupo específico de turistas
como o proposto nesta dissertação.
Ou seja, em terceiro lugar, os turistas “negros” norte-americanos se
mostraram um grande desafio, não somente pela condição peculiar em que eu
me apresento, visto ser guia e antropólogo ao mesmo tempo, mas sobretudo por
adicionar um terceiro ingrediente: “relações raciais”. No caso deste estudo, como
já mencionei anteriormente, o eixo “raça” mostrou-se fundamental devido à
centralidade do “corte racializado” em que se dão as visões de mundo daqueles
turistas. Em outras palavras, significa dizer que o desafio estava não somente
em mediar os dois universos em questão – os EUA e o Brasil – mas, sobretudo,
mediar as configurações e dinâmicas das “relações raciais” de ambos países tal
como se apresentam.
Por fim, o fato de eu mesmo ser “negro” e brasileiro vem a ser o quarto e
último fator, que gostaria de ressaltar sobre o que diz respeito às peculiaridades
da minha relação, enquanto autor, com o meu objeto de estudos. Considero que
a administração da tensão proposta pelo mercado “afro-americano” demandou
uma difícil mediação entre os dois universos, visto que por um lado estes turistas
esperavam de mim uma postura baseada na minha “cor” e, por outro lado,
existia o meu referencial enquanto brasileiro que não fazia esta leitura.
A pesquisa de campo
Desenvolver uma pesquisa de campo com turistas “negros” norteamericanos envolveu uma primeira questão fundamental: Quem seria, afinal,
21
este “turista”? E, além disso: até que ponto dados como cidade de origem e faixa
etária poderiam influenciar na homogeneidade das informações coletadas?
Primeiro, houve a preocupação de refletir sobre a possibilidade de optar
por uma única cidade de origem, como, por exemplo, Nova York. Trabalhar
somente com turistas “negros” nova -iorquinos foi cogitado. No entanto, esta
proposição apresentava três problemas: o primeiro, era o de reduzir
significativamente meu universo de pesquisa ao privilegiar uma única cidade,
visto depender de turistas que estivessem no Rio de Janeiro e que viessem
daquela cidade somente; o segundo, era o fato de a própria constituição destes
grupos, que se dá a partir de uma lógica de mercado, que não depende da
cidade de origem do turista. Não importa onde o turista more nos EUA, com a
Internet é possível comprar em Chicago um pacote vendido por um agente de
viagens em Nova York. E para o mercado, o importante é ter um número mínimo
de turistas para que o programa possa acontecer, visto que os preços praticados
dependem de uma quantidade mínima de turistas; e, por último, o fato de não
estar dado que haveria a colaboração daqueles turistas para a execução de uma
pesquisa que tomaria parte de seu tempo e de suas férias.
Além de não querer correr tantos riscos por uma única decisão, existe um
outro fator que me fez ponderar sobre o recorte metodológico: a existência, de
fato, de um “Black USA”. Quero dizer que optei por privilegiar o universo “afroamericano” que, segundo minha hipótese, parte de uma compreensão de mundo
majoritariamente bipolarizada racialmente, que os separa do universo “branco”
daquele país. Adiante este ponto será melhor desenvolvido.
Em seguida, precisei decidir como me aproximaria dos turistas, visto que,
outro fator ponderado durante a formulação de meu projeto de pesquisa foi o
quão produtivo seria o meu trabalho de campo se feito com turistas conduzidos
por mim enquanto guia. Qual seria a minha possibilidade de distanciamento?
Como fazer um trabalho de campo ao mesmo tempo em que me ocuparia de
todas as incumbências de guiar? Obviamente que a posição profissional, como
guia, no trade turístico carioca, facilitava infinitamente a aproximação com meu
objeto de estudos. Cogitei, então, de fazer o campo observando “outros” guias
22
trabalhando: foi um fiasco! A única vez que consegui ser informado, por um dos
guias que conheço 17, da chegada de um grupo de “African-Americans”, não
consegui passar do saguão de desembarque no aeroporto! Tampouco consegui
me aproximar dos turistas!
O que, em princípio, parecia ser a parte mais fácil, a aproximação com os
turistas, se tornou impossível. Explico: como fui avisado com antecedência,
preparei meu kit entrevistas, com máquina fotográfica, gravador, caderno de
campo, etc. Tinha em mente o mapa de minhas ações: primeiro, fotografaria a
guia com a placa, depois o grupo chegando ao lobby de desembarque,
embarcando no ônibus. Em seguida, iria até o hotel e tentaria fazer uma
entrevista. Acompanharia a programação, durante toda a estadia deles na
cidade. Enfim, uma rotina com a qual eu já estava absolutamente familiarizado
enquanto executor.
No dia da chegada do grupo, quando entrei no saguão do aeroporto, a
guia já estava lá com a placa, fazendo seu trabalho como deve ser, e eu fiquei
de longe observando e esperando o grupo sair da área restrita. Tirei uma foto
dela segurando a placa, e de todos os outros que, por uma razão ou outra, se
encontravam no lobby à espera do grupo também. Eu e a guia, no entanto,
tínhamos combinado que antes de tirar fotos do grupo ou de me aproximar de
um dos turistas, eu pediria permissão ao agente de viagens que os
acompanhava. Afinal, apesar de nós não vermos nenhum mal no que eu
precisava fazer para desenvolver a minha pesquisa, não poderia simplesmente
fazê -lo sem a autorização daquele que seria o responsável pela viagem e,
obviamente, dos turistas.
Quando do aparecimento do agente de viagens, aproximei-me dele
discretamente e expliquei o que eu fazia. Disse-lhe que era antropólogo, que
estava desenvolvendo uma pesquisa sobre turistas “negros” norte-americanos e
se seria possível me aproximar de seu grupo para fazer algumas perguntas. Foi
desconcertante vê-lo olhar, no fundo dos meus olhos, e me dizer clara, direta e
17
É preciso dizer que conheço todos os guias que trabalham com “negros” norte-americanos no
Rio de Janeiro. No entanto, parece que a idéia de eu ter acompanhando seus grupos e
conversando abertamente com seus passageiros não agradou muito à maioria deles.
23
irremediavelmente: NÃO! Disse-me que não tinha porque se justificar e que não
haveria negociação. E, sobretudo, que não me autorizaria a fazer aquela
pesquisa com o seu grupo. Simples assim!
Bom... Tive que repensar minha estratégia de pesquisa. Definitivamente,
não podia correr o risco de compromete r o meu estudo por conta da negociação
com os agentes de viagens. Foi o que fez com que eu reconsiderasse pesquisar
os grupos de turistas nos quais eu fosse o guia. Era perfeitamente plausível, a
partir daquela experiência, fazer o trabalho de campo com meus próprios
grupos. Durante minhas excursões poderia, conforme as interferências dos
turistas, fazer as perguntas planejadas. Em vários momentos, quando os turistas
trocam experiências entre si, observar como se fora um grupo focal, colocando
minhas questões e provocando a reflexão em grupo. Foi perfeito, quanto mais
eu provocava meus passageiros, mais retorno eles me davam.
Em primeiro lugar, porque o grupo não estava circunscrito a somente uma
entrevista. Dado à continuidade que se forma de um tour ao outro durante toda a
estadia dos turistas, eu tinha a possibilidade de retornar aos tópicos sempre que
achasse necessário, e tendo uma média de quatro dias para fazê-lo, visto ser
este o período médio de estadia na cidade. Em segundo lugar, tampouco me
restringia a uma só pessoa: tal dinâmica permitia a reflexão em grupo. A única
desvantagem era estar desenvolvendo dois trabalhos ao mesmo tempo, um
exercício que demandou muita disciplina, mas que resultou em uma técnica
bastante peculiar.
É preciso não perder de vista que os turistas que compram um pacote
“étnico” já chegam com expectativas sobre discussões que envolvam o tema
“raça” no Brasil. Prontos para entender, por exemplo, como perguntou-me a Sra.
Thompson, uma das turistas do grupo KJLH:
“Eu ouvi dizer que o problema aqui no Brasil é econômico e não
racial. Pergunta: O que aconteceria se os negros que vivem na
Bahia trocassem de lugar com aqueles que detêm a riqueza? Será
24
que eles (os brancos) continuariam a dizer que é um problema
econômico e não racial?”
Foi a partir de curiosidades como esta que consegui extrair dos meus
informantes suas representações sociais sobre o Rio de Janeiro e da sociedade
carioca, no que dizia respeito sobretudo a “raça”/“relações raciais”. Tive total
liberdade para perguntar sobre o tema, e divagar sobre o minado campo das
“relações raciais”, sem que meus informantes se colocassem previamente na
defensiva. Não estavam previamente armados, na realidade estavam aqui para
discutir sobre isto comigo e tentar entender um pouco melhor o Brasil. Pude
deixar que eles falassem durante as excursões, nos restaurantes, nos pontos
turísticos e aproveitava sempre que algum tópico interessante aparecia. Os
diálogos e as perguntas não tinham nenhuma rigidez, eu deixava que os temas
aparecessem a partir da curiosidade dos próprios turistas, as informações
fluíam, e eu somente interferia quando me convinha encaminhar a discussão.
Como por exemplo, uma vez, durante uma visita à Catedral Metropolitana do Rio
de Janeiro, deparei com uma das turistas que chorava sem parar. Era um
domingo pela manhã, e nós tínhamos chegado durante a celebração de uma
das missas. Nada de anormal no quadro que eu percebia; no entanto, a Sra.
Roberts, que tinha aproximadamente 50 anos, percebeu algo totalmente distinto
e que a fez se emocionar. Quando me aproximei para perguntar se tudo estava
bem, ela me disse:
“…agora entendo o que você queria dizer com ideal de
‘democracia racial’. Eu estou tão emocionada pelo fato de ver aqui,
agora, em uma cerimônia do cotidiano, que não tem uma ‘cor’
predominante nos fiéis… apesar de todo mundo dizer que no Brasil
existe racismo, o que eu vejo aqui e agora me confunde muito. Lá
em casa, não existe isso, uma igreja onde todos pareçam iguais.
Existe igreja de ‘negros’ onde só vão os negros, ou igreja de
25
‘branco’ onde só vão os brancos… mas isso aqui, isso aqui é
diferente!”
Automaticamente, ao retornar com o grupo para o ônibus, aproveitei o
acontecimento e pedi para que ela relatasse para todos o que tinha me dito na
igreja. Assim foi possível mediar uma troca em que os próprios turistas me
ajudaram a formular pontos de aproximação/distanciamento entre as duas
sociedades em questão: os EUA e o Brasil.
Quando me dei conta de como dava certo esta técnica, passei a me
disponibilizar no trade turístico somente para grupos de americanos “negros”.
Recusei dezenas de grupos de franceses e outras nacionalidades, e avisei sobre
minha
pesquisa
e
a
preferência
por
trabalhar
com
este
mercado.
Automaticamente, os agentes de viagens cariocas começaram a me contratar
para que eu operasse os grupos de “afro-americanos”. O que resultou na tabela
que apresento a seguir, com os dezoito grupos que fizeram parte do meu
campo:
Fig. 02 – Grupos do Trabalho de Campo
PERÍODO
NOME
01
19/03 a 22/03/03
Radio Station – WBLS 2003
02
18/08 a 21/08/03
Boa Morte 2003
03
12/09 a 15/09/03
The African Heritage Tour
04
16/10 a 18/10/03
Afro-Heritage
05
20/11 a 22/11/03
Zumbi 2003
06
25/02 a 01/03/04
Heritage Tour 2004
07
20/03 a 23/03/04
Radio Station – WBLS 2004
08
08/07 a 12/07/04
Brasil is Paradise/D’zert Club
09
17/08 a 20/08/04
Boa Morte 2004
10
02/10 a 05/10/04
Soul Planet
11
29/10 a 01/11/04
Celebration to Life
12
05/11 a 09/11/04
Fairview Greenburgh
26
13
12/11 a 15/11/04
Zumbi (Dumas & White) ‘04
14
24/11 a 26/11/04
Inspection/GRP Hendrickson
15
04/02 a 09/02/05
Gerena Carnival Group
16
09/02 a 13/02/05
Heritage Tour 2005
17
16/03 a 20/03/05
Ministry in Global Perspective
18
23/03 a 26/03/05
Radio Station – KJLH (L.A.)
Estes foram os grupos de turistas “afro-americanos” que fizeram parte do
meu campo “em construção”. Nos capítulos que se seguem, tentarei apontar as
particularidades desta tensão da qual esta dissertação trata.
No capítulo 1, analiso os websites do Governo brasileiro e das agências
de viagens, brasileiras e norte-americanas, tentando extrair das imagens
veiculadas sobre o Brasil e a existência de referenciais ao mercado do “turismo
étnico”.
O capítulo 2 é um primeiro esforço em esboçar a diferença existente entre
“turismo sexual” e “turismo étnico”, visto ter sido esta uma confusão que se
apresentou no meu campo devido às fronteiras existentes se borrarem de vez
em quando.
O capítulo três trata especificamente do “turismo étnico” e da tensão que
vejo configurada no turismo carioca devido às demandas racializadas dos
turistas “negros” norte-americanos. Primeiramente apresento a tensão; em
seguida, tento focalizá-la pelo lado do trade turístico carioca e, por último,
apresento algumas das percepções dos “etnoturistas”.
27
1 - IMAGENS DO BRASIL E DO RIO DE JANEIRO
Existe uma variedade de imagens do Brasil e do Rio de Janeiro que são
utilizadas para a venda do “Produto Brasil”18 enquanto destino turístico. Além da
influência de referências como a música, o carnaval e as belezas naturais que
povoam o imaginário internacional sobre o país, um vasto material iconográfico e
informativo das cidades comercializadas está disponibilizado diretamente ao
público na Internet. A comercialização enquanto produto turístico articula uma
grande quantidade de agentes que vai desde o Governo Federal até a iniciativa
privada, representada principalmente pelos Agentes de Viagens (nacionais e
estrangeiros).
Este “produto” possui traços generalistas quando apresentado pelo
Governo, quando a maior preocupação parece estar centrada na integração do
turismo ao plano de desenvolvimento do país. Já os agentes de viagens
brasileiros, têm como prioridade adequar-se às demandas dos agentes de
viagens estrangeiros, e estes últimos especificamente às de seus clientes. Como
dito anteriormente, o objeto de estudos desta dissertação são as representações
sociais sobre o Rio de Janeiro e “relações raciais” veiculadas pelos turistas
“negros” norte-americanos. Nesse sentido, demonstrarei, neste capítulo, o
distanciamento entre as demandas/expectativas deste segmento e as imagens
veiculadas pelas instituições nacionais que promovem a venda deste produto na
Internet. Meu propósito é, sobretudo, avaliar como está apresentado pelos
diferentes agentes (governo e iniciativa privada nacional) o “turismo étnico” na
capital carioca, visto ter sido este o interesse central pontuado por aqueles
turistas19.
18
“Produto Brasil” é o nome dado ao produto turístico brasileiro, que dever ser compreendido
como: “o bem ou serviço negociado na indústria turística; pode ser unitário (passagem aérea,
serviço de guia de turismo, hospedagem, etc.) ou um conjunto destes (pacote de viagem)”. Ver
glossário do site do Ministério do Turismo, www.turismo.gov.br/br/glossario .
19
Segundo os turistas “negros” norte-americanos que fizeram parte da pesquisa de campo que
compõe este trabalho, a principal razão pela qual teriam escolhido o Brasil como destino seria as
influências “africanas” que compõem a cultura nacional. A “herança africana” seria o principal
atrativo para aquele segmento.
28
Para mapear a forma como o Brasil é apresentado, optei por percorrer os
websites das instituições que são responsáveis pela divulgação e veiculação
dessas imagens no Brasil e no mundo, privilegiando o que é dito e mostrado
sobre a Cidade Maravilhosa. Primeiro, apresento o site oficial para o turismo
nacional produzido pelo Governo Federal, o Portal Brasileiro do Turismo. Em
seguida, percorro os sites das agências de viagens 20 brasileiras que fizeram
parte do meu trabalho de campo, considerando serem estas as responsáveis
pelos produtos vendidos por suas parceiras norte -americanas.
Vale explicar que os produtos são vendidos para o consumidor final, nos
Estados Unidos, por agências de viagens norte-americanas e estas, por sua vez,
só fazem intermediar os produtos dos representantes que possuem nos países
que promovem. Por exemplo, ao venderem um “produto étnico” a ser realizado
no Rio de Janeiro, a agência norte -americana contrata os serviços de uma
agência carioca, que será a responsável pela execução (operação) destes
serviços no Rio de Janeiro. Existe uma parceria entre as duas agências, a de
exportativo (que envia os passageiros) e a de receptivo (que recebe os
passageiros), que são, na realidade, intermediadoras, o elo entre o turista e o
“produto final”, no caso em foco, a cidade do Rio de Janeiro.
O Portal do Ministério e os sites das agências de viagens nacionais
ajudam a capta r o que está sendo vendido pelos brasileiros para os
estrangeiros. As cinco agências de viagens brasileiras que fizeram parte do meu
trabalho de campo foram: a “BIT Incentives e Turismo Ltda.”, a “Blumar Turismo
Ltda.”, a “Brasil Guide Turismo Ltda.”, a “Havas Viagens e Turismo Ltda.” e a
“Walpax Viagens e Turismo Ltda.”. Esta seleção se deu devido ao fato de serem
estas as agências que operam regularmente os grupos de “African-Americans”
na cidade do Rio de Janeiro.
Já os sites das agências norte -americana s ajudam a ver a imagem que
está sendo veiculada por elas para o consumidor final, o turista “negro” norte20
Agências de viagens e turismo, segundo a definição disponibilizada no glossário do Ministério
do Turismo, “são empresas organizadas que têm a função de serem intermediárias de todos os
serviços turísticos, permitindo o encontro da demanda com a oferta de serviços, além de prestar
assistência turística aos viajantes ou turistas”.
29
americano. As cinco agências de viagens norte-americanas foram as que
trouxeram, através de seus pares nacionais, o maior número de passageiros
“African-Americans” nos anos de 2003 e 2004. Foram elas: a “Brazil Nuts Tours”,
a “Equator 3 Tours”, a “Trendsetters Tours”, a “South Star Tours Inc.” e a
“Consolidated Tours Inc.”.
Tendo em mente que a apropriação das imagens do Rio de Janeiro pelo
mercado turístico se dá de acordo com as necessidades específicas que surgem
gradativamente com as demandas, ao observarmos a especificidade do
mercado “African-American” percebemos o distanciamento existente entre as
expectativas daquele cliente e o produto ofertado 21. É sabido pelos agentes de
viagens, tanto nacionais quanto norte-americanos, que o interesse daqueles
passageiros está centrado na cultura “afro -brasileira”; no entanto, o mercado
brasileiro parece encontrar dificuldades para formatar este produto. Ainda que a
grande maioria das agências norte-americanas apresentem, em seus sites,
programas que ressaltem a herança africana no Brasil, quando comparamos
com os sites de seus pares cariocas percebemos uma certa descontinuidade,
haja vista não encontrarmos nenhuma menção a esse produto nos sites
brasileiros. Interessante notar que o Ministério do Turismo nem menciona este
segmento na sua página oficial, parecendo ignorar as potencialidades deste
mercado.
21
Um distanciamento que aparecia de modo evidente na minha experiência como guia e
que, como será visto adiante, fez-se presente em meu trabalho de campo.
30
1.1 O portal do Ministério do Turismo
O Portal Brasileiro do Turismo 22 possui informações articuladas tanto do
Ministério do Turismo, quanto da Embratur (Instituto Brasileiro de Turismo). A
criação do Ministério do Turismo, em janeiro de 2003, na gestão do presidente
Luís Inácio Lula da Silva, teve o propósito de atender a uma antiga reivindicação
dos envolvidos nas atividades do setor turístico: a articulação entre os órgãos
públicos (Federal, Estadual, Municipal), o setor privado e a sociedade
organizada. Este foi um movimento sem precedentes, em que, enquanto órgão
da administração direta, o Ministério passa a cumprir o papel de “aglutinador”
com a função de integrar as políticas públicas e o setor privado, sendo norteado
pela missão de “desenvolver o turismo como uma atividade econômica
sustentável com papel relevante na geração de empregos e divisas
proporcionando a inclusão social”.
Dentre as modificações lançadas pelo Ministério, primeiro gostaria de
citar a criação do Plano Nacional de Turismo (PNT), que se deu com o objetivo
de “consolidar o Ministério como articulador do processo de integração dos mais
diversos segmentos do setor turístico”, exemplificando a importância de
estabelecer, através dele, “um elo entre os governos federal, estadual e
municipal; as entidades não governamentais; a iniciativa privada e a sociedade
no seu todo”. O Plano tem o objetivo de potencializar a capacidade do setor
turístico de desconcentrar o crescimento econômico, reduzir desigualdades e
criar novas oportunidades para o desenvolvimento sustentável. Os seguintes
vetores de governo foram apontados como norteadores de programas, projetos
e ações do Plano: redução das desigualdades regionais e sociais; geração e
distribuição de renda; geração de emprego e ocupação; e equilíbrio do balanço
de pagamentos.
Parece central, na fo rmulação do PNT, o reconhecimento do turismo
como um elemento-chave no plano do atual governo, que o menciona enquanto
22
Acessado durante o mês de junho de 2005. Ver em www.turismo.gov.br.
31
produtor de mudanças capazes de proporcionar o desenvolvimento sustentável
da própria atividade e da sociedade brasileira, visto ser este um setor que
depende de uma ampla gama de fornecedores e que permite a descentralização
dos
lucros.
Esta
é
uma
visão
que
dá
continuidade
às
disposições
constitucionais, onde encontramos:
“Art. 180 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
promoverão
e
incentivarão
o
turismo
como
fator
de
partem
da
desenvolvimento social e econômico”. 23
As
metas
apresentadas
pelo
Ministério
do
Turismo
pressuposição de que seja possível lançar mão do PNT enquanto:
•
Fonte geradora de novos empregos e ocupações;
•
Multiplicador de postos de trabalho no território nacional;
•
Agente da valorização e conservação do patrimônio ambiental
(cultural e nacional);
•
Instrumento de organização e valorização da sociedade;
•
Produtor de programas de qualificação profissional capazes de
elevar a qualidade da oferta turística nacional;
•
Mecanismo instigador de processos criativos para a geração de
novos produtos turísticos apoiados na regionalidade, genuinidade e
identidade cultural do povo brasileiro;
•
Contribuidor para a saúde física e mental do trabalhador quando
articulado a novas políticas sociais;
•
Estruturador de uma oferta turística qualificada capaz de atender
melhor o mercado internacional;
•
Mecanismo para alcançar as metas desejáveis no balanço de
pagamentos; e
•
Dinamizador de uma constante troca de informações entre os
destinos turísticos, a oferta e os mercados consumidores.
23
Ver Constituição da República Federativa do Brasil.
32
Em segundo lugar, é importante mencionar a transformação da Embratur
em uma “autarquia que tem como área de competência a promoção, divulgação
e o apoio à comercialização dos produtos, serviços e destinos turísticos do país
no exterior”. De acordo com o PNT, o instituto passa a ser responsável pela
execução “da elaboração e implantação do plano de marketing para o turismo
brasileiro”, “da definição e execução da política de ações promocionais e apoio à
comercialização dos produtos turísticos”, “da formatação e organização de
novos produtos e roteiros turísticos integrados”, bem como pela “elaboração de
estudos e pesquisas que orientem os processos de tomada de decisão e
avaliem o impacto da atividade turística na economia nacional”. Em outras
palavras, todas as atividades referentes ao turismo doméstico foram assumidas
pelo Ministério (ex: cadastro de empresas prestadoras de serviços turísticos, de
guias
e
de
bacharéis;
políticas
públicas;
fomento;
regulamentação;
normatização; promoção interna etc.), enquanto a Embratur passou a se
concentrar exclusivamente à “promoção, marketing e apoio à comercialização
dos produtos brasileiros no exterior”.
Ao navegar pelo “Portal Brasileiro do Turismo”, além de encontrar
informações sobre o Ministério e a Embratur, temos acesso também às imagens
que são veiculadas pelo governo brasileiro sobre os destinos dos turistas, sejam
esses brasileiros ou estrangeiros. Já seguindo a tentativa de padronização
sugerida pelo PNT, os produtos fomentados estão subdivididos em 13
segmentos, que são apresentados no site como supostos representantes das
potencialidades das cidades brasileiras. Estes segmentos são: Aventura;
Cidades Patrimônio; Ecoturismo; Festas Populares; Golfe; Incentivo; Mergulho;
Negócios e Eventos; Pesca Esportiva; Resorts; Sol e Mar; Turismo Rural; e,
Turismo GLS 24. O segmento “étnico” não é encontrado.
24
O único segmento que ainda não possui cidades determinadas na listagem é o Turismo GLS,
que é definido como “um segmento do merc ado turístico para atender ao público GLBT (gays,
lésbicas, bissexuais e trangêneros)”. As referências a este segmento mencionam a “Parada Gay
de São Paulo” e o concurso “Miss Brasil Gay de Juiz de Fora”, destacando, com relação à
primeira, que em 2003 1 milhão de pessoas compareceram ao evento, e, com relação à
segunda, destaca-se que paralelo ao concurso, criado em 1969, acontece a “rainbow fest”. O
33
A janela inicial permite selecionar o idioma desejado entre o português, o
inglês e o espanhol e logo abaixo desta seleção, no canto superior direito,
aparece um mapa do Brasil que serve como link para outra janela com o mesmo
mapa, no qual é possível selecionar a região do país de interesse do usuário. As
cinco regiões estão representadas, e cada uma delas abre uma outra janela que
permite acessar o Estado de interesse.
Com relação ao Estado do Rio de Janeiro, o portal fornece informações
sobre a subdivisão por regiões turísticas, listando a Costa Verde, a Costa do Sol,
a Região Serrana, a Região do Parque Nacional do Itatiaia, Conservatória e a
Capital homônima. Esta última é mencionada como “mundialmente famosa e o
mais importante portão de entrada do Brasil” e, ao prosseguirmos através de seu
link encontramos, além de duas fotos do Pão de Açúcar, uma descrição que
começa mencionando o nome fantasia de “Cidade Maravilhosa”.
A cidade do Rio de Janeiro encontra -se listada como potencial em cinco
dos segmentos mencionados acima: aventura, festas populares, golfe, incentivo
e ”sol e mar”. Este último, no entanto, ainda é o que orienta a imagem vendida
da cidade que é apresentada como “uma combinação perfeita de mar, terra,
clima e gente. Caldo agradável das culturas indígena, branca e negra,
fermentado em grandioso cenário natural”. A descrição se desenvolve
mostrando a faceta cosmopolita da cidade, mencionada como “um dos principais
centros de cultura do país” devido aos seus inúmeros “cinemas, teatros,
museus, salas de concertos, etc”. Em seguida, afirma que, além de moderna, a
mesma permite desenvolver a associação com outros períodos históricos do
Brasil através dos movimentos arquitetônicos, e aponta o barroco e o art decó
como fatos que fazem “do Rio testemunha da sua própria história”. O eco do
carnaval dá continuidade à descrição que, mais adiante, será adicionado ao
futebol, à festa de Réveillon e à uma imagem de “permanente celebração à
vida”. Por último, além de mencionar a infra-estrutura disponível através de
hotéis, agentes de turismo, sistema de comunicações/ins talações para eventos,
potencial turístico do público GLS é explicitado em números, estimando que cerca de 10% da
população brasileira seja homossexual levando à impressionante cifra de 18 milhões de
pessoas.
34
aeroportos, etc., sugere, sob o título de “NÃO PERCA”, os seguintes locais e
eventos: Praias, Corcovado, Pão de Açúcar, Floresta da Tijuca, Jardim
Botânico/Lagoa, Museu de Arte Contemporânea, Carnaval e Réveillon. Estas
são as informações às quais se resume o Rio de Janeiro no portal.
O turismo étnico afro-brasileiro não existe para os órgãos oficiais de
turismo brasileiros. A única menção a este segmento existente no site oficial
está no glossário, que o descreve como:
“A atividade destinada a favorecer a criação de correntes turísticas
específicas para conhecer, conviver e integrar-se com as
diferentes etnias formadoras da raça brasileira”.
Este é, no entanto, um conceito que reforça a valorização da
miscigenação e da “democracia racial” que são mencionados diversas vezes em
todo o site, e que são reflexo de uma visão muito particular das relações raciais
como se dão no Brasil. Aliás, no link denominado “Sobre o Brasil”, este é
mencionado como “um país aberto para o novo”, no qual a base desta abertura
seria justamente a “democracia racial”. Vejamos a transcrição desta parte:
“UM PAÍS ABERTO PARA O NOVO - Poucos lugares do mundo
possuem o grau de abertura para o novo como o Brasil. A base dela é
justamente a democracia racial que se construiu ao longo dos
séculos. Oculto pelo preconceito racial de parte da elite, que vigora de
maneira muito mitigada (se comparado, por exemplo, aos Estados
Unidos ou à Europa), este costume permitiu a construção de uma
democracia política efetiva num País que tinha tudo para não possuíla.
Sobre a base miscigenada inicial foi montada uma sociedade
escravista. Mas que, apesar de escravista, nunca conseguiu eliminar
o costume já tornado tradicional - e que podia ser visto a cada dia em
filhos de brancos com negros, negros com índios, mulatos com
35
brancos, brancos com índios. Esta gente, condenada como inferior,
conseguiu transformar a condenação em identidade, no momento da
Independência. E uma identidade tão forte que não houve divisão no
território, disputas políticas internas de maior monta. Pelo contrário, a
Nação foi construída com base em arranjos que muitas vezes
pareciam disparatados aos olhos europeus - e mesmo a muitos
brasileiros - mas que funcionam até hoje de maneira um tanto inusual.
O desejo de democracia no Brasil se traduz, desde o século passado,
numa arraigada crença na necessidade de se distribuir o poder a
partir de mecanismos de representação política. Desde 1823 há
eleições nacionais no Brasil, e desde então com uma abertura para o
registro de eleitores incomum mesmo para os padrões das
democracias européias. O Congresso Nacional, diga-se o que disser
dele, funciona com a regularidade de um relógio há 175 anos.
Somente em três ocasiões, em toda a história do País, deputados
eleitos não completaram seus mandatos. A força do Congresso é
tamanha que nem mesmo a ditadura militar dos anos 60 pôde
prescindir dele. Até os ditadores sabem que o Brasil é ingovernável
sem representantes eleitos.
A força do Congresso existe porque está ancorada numa grande força
social. A sociedade de escravos foi capaz de se transformar,
absorvendo uma imensa quantidade de imigrantes e, mais que isso,
fundindo-se com eles. O hábito de considerar atraente qualquer
possibilidade matrimonial, independente de origem étnica, conseguiu
prevalecer sobre a tendência ao fechamento, que marcava a maior
parte dos grupos imigrantes. E assim como absorve pessoas de fora
sem perder sua identidade, o Brasil absorve empresas. A primeira
empresa de capital estrangeiro do País instalou-se em 1825, e
funciona até hoje. Nunca uma empresa de propriedade de
estrangeiros teve qualquer alteração em seu regime de propriedade
36
fora dos estritos termos da lei.
Essas são apenas algumas das conseqüências da estruturação
fundamentalmente democrática do País. O Brasil é uma das últimas
províncias da terra onde ninguém é estrangeiro, onde é possível
mudar um destino sem perder a identidade. E é essa, justamente, a
característica que faz com que muitos o chamem de ‘país do futuro’:
desde a Colônia (1500-1822), passando pelo Império (1822-1889) e
durante a República (1889 até hoje), a globalização é parte da
natureza de cada brasileiro. Talvez agora o Brasil possa ser visto
como semente de uma realidade cultural onde o orgulho de grupo não
está acima da possibilidade de aceitar o novo.”
37
1.2 Os websites das agências de viagens brasileiras
A reivindicação que o PNT espelha pode ser bem compreendida ao
analisarmos especificamente a venda do “produto Brasil” no mercado
internacional. A necessidade de articulação dos diferentes atores pretende, em
última instância, otimizar a prestação de serviços vendidos ao cliente final: o
turista. Existe a preocupação de satisfazer as expectativas do cliente e, nesse
sentido, os agentes de viagens brasileiros tentam atender às demandas levando
em consideração cada caso individualmente. Este atendimento personalizado
caracteriza o diferencial que cada agência é capaz de oferecer em maior ou
menor grau. No entanto, é preciso lembrar que as agências de viagens fazem
parte de um mercado competitivo em que a conquista do cliente depende, além
da relação custo -benefício, da adaptabilidade e da capacidade de atender a
demandas específicas.
Esta predisposição para atender especificidades das demandas dos
clientes se reflete na multiplicidade de produtos ofertados pelas agências
nacionais. Percorri individualmente os sites das agências que fizeram parte do
meu campo, concentrando-me nas representações sobre o Brasil e sobre o Rio
de Janeiro, buscando encontrar referências ao segmento do “turismo étnico”,
bem como compreender as representações sociais sobre o tema veiculadas nos
sites em questão.
O primeiro website ao qual me ative foi o da agência Walpax25. Em sua
página inicial encontramos o link de redirecionamento para o idioma desejado,
que pode ser inglês, francês ou alemão. A página seguinte (inglês) possui
curiosamente a foto de uma orquestra sinfônica e, ao lado, a filosofia na qual a
empresa se apresenta como capaz de prover serviços “tão bem afinados quanto
em uma orquestra” 26. Nessas primeiras linhas, o foco na adaptabilidade já é
25
Ver em www.walpax.com.br.
Como meu propósito é observar como o Rio de Janeiro está sendo apresentado para os norteamericanos, observarei todas os sites na versão em inglês e todas as menções serão feitas com
traduções feitas por mim.
26
38
apontado ao mencionar que esta é uma empresa voltada para “atender a todas
as necessidades” do cliente.
Na parte superior da tela existem cinco links: Sobre Nós, Brasil, Principais
Cidades, Contacte-nos e Home. No primeiro item, é apresentado o “perfil da
empresa” com o subtítulo “seu escritório no Brasil”. Ali, a empresa relata ter sido
fundada em 1963 e ter se transformado em uma DMC (Destination Management
Company) em 1978, quando “não somente teria se transformado em uma
especialista em turismo receptivo, mas também em uma líder no que diz respeito
à representação de operadores estrangeiros no país”. Existe o objetivo claro de
promover as habilidades de gerenciamento (management) da empresa.
No link chamado Brasil, encontramos informações sobre “dados gerais”
(capital, localização, área, língua, etc.), um “mapa” e as subdivisões regionais.
Sendo esta última uma das duas formas de se chegar à descrição sobre a
cidade do Rio de Janeiro, a outra está no link “Principais Cidades”, que
apresenta uma listagem de Tours e hotéis. Faz uma síntese do que seria a
cidade maravilhosa, denominando-a como “a cidade dos contrastes de cor e de
estilos de vida” e afirmando ser ali “a capital da alegria, lavada pelo sol, cidade
do carnaval, construída ao redor da mais bonita baía do mundo”.
Na listagem das excursões disponíveis, não encontramos nenhuma
menção a “programas étnicos”; no entanto a adaptabilidade pressuposta na
forma em que a empresa se apresenta parece sugerir que, não importando o
tipo de cliente, a Walpax seria capaz de “montar um itinerário exclusivo para
atender suas necessidades” (…design a tailor-made itinerary to suit your needs).
O segundo website analisado foi o da agência BGT27, que já apresenta,
na página inicial, uma listagem de 29 destinos no país, divididos entre cidades e
estados dispostos aleatoriamente, os quais estão posicionados nas margens
direita e esquerda da tela. Estes seriam, na realidade, os links para a descrição
de cada um daqueles destinos. Ao centro da página encontramos uma
composição com sete imagens sob o título “Brasil”. Uma igreja em estilo barroco,
27
Ver www.bgt.com.br.
39
o Cristo Redentor, e uma típica baiana “negra” são algumas dessas imagens
que se encontram ao redor de um papagaio. Além das cidades, existem links
para o que eles denominam como “descritivo”, “Indústria” e “Hotéis”.
É interessante observar que, na “breve história” que é relatada ao
abrirmos o “descritivo”, encontramos a seguinte definição sob o título de “povo
brasileiro”:
“Os habitantes do Brasil são descendentes de uma mistura de
povos. Colonizadores portugueses se misturaram com índios
nativos e escravos africanos (majoritariamente de origem Yorubá e
Quinbundo, que correspondem atualmente à Nigéria/Benin e
Angola). Coloniza ções holandesa e francesa também se deram no
nordeste. No séc. XIX, ondas de imigrantes alemães, italianos,
poloneses e japoneses adicionaram novos elementos à mistura.
Os brasileiros são, talvez, um dos povos mais racialmente
misturados do mundo”.28
O link para a cidade do Rio de Janeiro apresenta a cidade de forma
resumida, ressaltando, sobretudo, qualidades como descontração e simpatia,
tidas como características dos cariocas. Em todas as páginas com descritivos
das cidades ou estados existem listagens de restaurantes, entretenimento e
hotéis.
É visível o direcionamento da empresa para o turismo de Incentivos,
muitas referências para este segmento que, segundo o glossário do Ministério,
seria “aquele constituído por viagens-prêmio concedidas com o obje tivo de
incentivar o desempenho profissional”. O website da BGT, no entanto, não faz
28
Tradução minha; apresento, a seguir, o original: “PEOPLE - Brazil's inhabitants are
descendants of a mixture of people. Portuguese colonizers mixed with the native Indians and
African slaves (mostly of Yoruba and Quimbundu origin, corresponding to modern-day Nigeria /
Benin and Angola). Dutch and French colonization also took place in the Northeast. In the 19th
century, waves of German, Italian, Polish and Japanese immigrants added new elements to the
mixture. Brazilians are perhaps one of the most racially mixed people in the world”.
40
nenhuma menção ao segmento “turismo étnico”, ou a qualquer produto que se
relacione com a herança africana na cultura do país.
O terceiro website, da agência “Havas” 29, é o mais sucinto de todos, no
qual o que parecia ser um som unívoco sobre a mistura de raças como um
delineador do “produto turístico” nacional, não encontra espaço na página
amarela e vermelha em formato de cartão postal. A logomarca da empresa está
disposta como se fosse um selo de postagem. Inicialmente, temos a
possibilidade de escolher entre dois idiomas para prosseguir, o inglês e o
português, porém, a empresa ressalta ter uma equipe “full time” e guias
multilingües. A página inicial já abre em inglês.
Ao prosseguirmos, encontramos links para: “Congressos e eventos”,
“Pacotes terrestres”, “Pacotes terrestres e aéreos”, “Turismo de lazer”, “Perfil da
companhia”, “Fale conosco” e “Incentivos”. E em seguida, sob o título de “viaje
pelo Brasil” a possibilidade de escolha entre quatorze cidades brasileiras. No
centro do “cartão postal” encontramos fotos das cidades brasileiras que vão se
intercambiando gradativamente, uma a uma.
Depois de selecionarmos a cidade do Rio de Janeiro, encontramos uma
página sem links secundários, que se inicia provendo a seguinte definição:
“A capital cultural do Brasil. Sua beleza de perder o fôlego fez dela
uma das mais atrativas cidades do mundo. O clima temperado do
Rio é atraente. E em sua beleza natural encontramos o Morro do
Corcovado, com a estátua do Cristo Redentor; a Floresta da Tijuca
e sua flora silvestre; o Pão de Açúcar com sua soberba vista do
Rio; e muitos outros – como as adoráveis praias de Copacabana,
Ipanema, Leblon e São Conrado, são uma atração turística
perpétua”. 30
29
Ver em www.havasbrazil.com.br.
Tradução minha, segue o original: “The cultural capital of Brazil. Its breathtaking beauty has
made it one of the most attractive cities in the world. Rio's temperate climate is enticing. And its
natural beauty spots - the Corcovado mountain with its statue of Christ the Redeemer; the Tijuca
Forest and its jungle flora; the Sugar Loaf with its superb view of Rio; and so many others - as
30
41
Margeando esta definição, aparece um mapa do Brasil que sinaliza a
localização da cidade. Abaixo, estão listados os serviços oferecidos. Treze
excursões, dentre as quais estão incluídos os óbvios Corcovado e Pão de
Açúcar, e saídas às cidades vizinhas de Petrópolis, Búzios, Angra dos Reis e
Paraty.
Paralelo ao perfil já observado nas duas agências anteriores, a Havas
também parece dar grande destaque ao “Turismo de Incentivos”, e tampouco faz
menção alguma ao segmento do “turismo étnico”. A única referência à herança
africana encontrada em sua página está na descrição, em português, da cidade
do Rio de Janeiro, em que a noite de 31 de dezembro é relatada como o dia em
“todos os cariocas se dirigem às praias para homenagear Iemanjá, uma Deusa
africana considerada a rainha do mar”.
A “Blumar” 31, quarta agência nacional a ter seu website analisado,
apresenta um conteúdo bem mais variado que as três anteriores. Sua página
inicial, além de oferecer entradas para produtos, destinos, eventos e
informações sobre o Brasil, possui também propostas de turismo de aventura e
ecoturismo, por exemplo. Tem fotos do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar ao
lado das Cataratas do Iguaçu, e de uma chamada para uma página sobre
Carnaval.
Em destaque, do lado inferior esquerdo, está uma foto que se pressupõe
ser de duas baianas, tipicamente vestidas (pano da Costa, torço amarrado na
cabeça, e muitas guias) sob o título de: “Venha para Salvador…”. Ao clicarmos
ali, encontramos uma breve descrição da cidade vista pelos “negros” americanos
como fonte emanadora da verdadeira herança da cultura africana.
O perfil da empresa é colocado de forma objetiva: além de informar ter
sido criada há 19 anos atrás, também se apresenta como uma das agências
líderes do turismo receptivo e como DMC, “capaz de apresentar ao mercado o
well as the lovely beaches of Copacabana, Ipanema, Leblon and São Conrado, are perennial
tourist attractions”.
31
Ver em www.blumar.com.br.
42
melhor que o Brasil tem para oferecer”. Mais adiante, enfatiza sua
“especialização em montar e operar programas feitos sob medida (custommade) com bases em interesses espaciais”.
Como descrição para o país e para o povo, encontramos o estereótipo do
paraíso tropical, sugerindo que “ao pensar o Brasil como destino”:
“[…] deve -se manter em mente que um país tão vasto oferece
opções para todos os gostos e interesses: selvas, rios, ilhas,
cachoeiras, etc. Desde intermináveis praias brancas delimitadas
por oásis com altos coqueiros e palmeiras, até pedaços
escondidos de areias douradas ligando a água azul brilhante a
cavernas rochosas. Esportes aquáticos, golfe, cavalgadas. Fauna
e Flora ricas, com sol ao longo de todo o ano. Uma cultura
esplêndida, refletida em seus museus, igrejas barrocas, arquitetura
colonial, cidades históricas, pinturas e galerias de arte. Refletido
também na sua excelente gastronomia, no seu misticismo e na sua
música rica e sensual: samba e Bossa Nova, entre outras.” 32
“Não esquecendo de mencionar que o Brasil é também o seu povo
amável cujo calor e hospitalidade são famosos.”33
No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, encontramos um pequeno
resumo que reforça a imagem de destino de praias e belezas naturais
combinadas a características como arte, moda, estilo e elegância. A agência
apresenta como itinerários sugeridos pelo menos dois programas bem
32
Segue versão original: “When thinking of Brazil as a destination , one must have in mind that
such a vast country offers options for all tastes and interests: jungles, rivers, islands, waterfalls
etc. From endless white beaches delimited by oasis of tall coconut and palm trees to hidden
pieces of golden sand linking sparkling blue water and rocky caves. Water sports, golf, horse
riding. Rich fauna and flora with sun all year long. A splendid culture, reflected in its museums,
baroque churches, colonial architecture, historical cities, paintings and art galleries. Reflected
also in its excellent gastronomy, its mysticism and rich and sensual music: Samba, Bossa Nova,
among others.”
33
Do original: “Not forgetting to mention that Brazil is also its friendly people which warmth and
hospitality are famous”.
43
particulares: o primeiro, sob o título de “Brazil like a native”, e o segundo, sob o
título de “Candomblé”. O primeiro combina as cidades do Rio de Janeiro,
Manaus e Salvador, oferecendo na “Cidade Maravilhosa”, além dos pontos
turísticos, saídas como a Gafieira e o “Carnival behind the scenes”, qual seja,
uma visita a um barracão de escola de samba. Já o itinerário “Candomblé”, que
se dá em Salvador, oferece “uma exposição informal” sobre a religião no Museu
Afro-Brasileiro, seguida da visita a um dos terreiros mais tradicionais da cidade,
que continua com a consulta a uma mãe de santo para jogar búzios.
A Blumar é a primeira das quatro agências a publicar em sua página na
Internet um programa, ainda que resumido, especificamente centrado na
herança da cultura africana no Brasil. Entretanto, nenhuma referência é feita ao
Rio de Janeiro neste programa, somente Salvador é mencionada para a
realização do “tour com foco social e religioso”.
A quinta e última webpage de agência nacional que analisei foi a da
34
“BIT” . O nome é uma abreviação de “Brazilian Incentive & Tourism ”. Esta
homepage, de longe, mostra-se o mais completo dos sites visitados, visto que,
além de todas as informações encontradas nos anteriores, encontramos uma
variedade imensa de proposições em caráter de turismo segmentado.
Na página inicial, em inglês, encontramos ao centro uma variedade de
fotos de diferentes partes do país, que mudam gradativamente, mantendo em
sua margem a frase: “Nós conhecemos um outro Brasil”. Em seguida, anuncia
que o site contém 8.000 fotografias, 36 vídeoclipes e 3.500 páginas de
informação, e afirma que “sendo uma das DMCs líderes do mercado, pode
oferecer as melhores opções de viagens e os melhores preços em hotéis, online e em tempo real!”.
Ainda na primeira página, em “special tour packages” encontramos,
listado entre oito outros, o subtítulo: “African Roots”. É preciso mencionar que
esta é a primeira agência que promove explicitamente a comercialização de um
produto do segmento “turismo étnico”. Ao abrirmos o link, encontramos uma foto
de muitos negros dançando na rua, mulheres vestidas com trajes de baianas
34
Ver em www.bitourism.com.
44
bem coloridos e os homens estão de pés descalços, com calças listradas
também muito coloridas, uma faixa branca na cintura e o torso desnudo. O
programa é sugerido aos interessados “em um mergulho real na cultura baiana”,
no qual 11 dias são divididos entre as cidades de Salvador, Cachoeira e Praia
do Forte. Reproduzo sua apresentação:
“Especialmente criado para um verdadeiro mergulho no coração da
cultura baiana. Intercalado por partes (stages), conferências e
visitas, esta descoberta da Bahia revela os pequenos detalhes
(como) os restaurantes e os menus, as jornadas desta visita, as
interferências no nível afro -brasileiro. Tudo foi preparado para que
este Brasil ‘fora do convencional’ apareça como um encontro real
[...]. Nesse ínterim aprende -se tudo sobre a sociedade afro-baiana
com todos os seus mitos e ritmos”. 35
Mas nada que diga respeito ao Rio de Janeiro…
Ao voltarmos à página inicial, encontramos na margem esquerda, dentre
outros ícones, o item “Special Interests” que ao ser clicado encontra-se
subdividido em seis grupos. A primeira opção do grupo “cultural” é chamada de
“African culture in Brasil”, e esta nos encaminha para outra página em que
encontramos propostos três pacotes: o já mencionado “African Roots”, de 11
dias, o “African Soul”, de 5 dias, e o “Boa Morte Festival”, de 6 dias. O “African
Soul” propõe as cidades de Salvador, Cachoeira e Santo Amaro, enquanto o
seguinte somente Salvador e Cachoeira. Enfim, encontramos nesta agência
brasileira três produtos desenvolvidos sob a rubrica do “turismo cultural étnico”
de bases “afro-descendentes”; no entanto, nenhum deles sequer menciona a
cidade do Rio de Janeiro.
35
Original: “Especially created for a real dive into the heart of the Bahian culture. Interrupted by
stages, conferences and visits, this discovery of Bahia discloses the smallest details, the
restaurants and the menus, the journeys of this visit, the interference on the afro-brazilian level.
All has been prepared that this Brazil “off the beaten track” imposes like a real meeting [...]. In
between we learn everything about the Afro-Bahian Society with all its myths and rythms.”
45
Após visitar as páginas das agências de turismo cariocas que operam os
roteiros de turismo “étnico” no Rio de Janeiro, percebemos que poucas são as
referências feitas à herança cultural afro-brasileira no que tange à capital
carioca. Quando mencionado, o produto se circunscreve exclusivamente à
capital baiana.
46
1.3 O “ turismo étnico” comercializado pelas agências nos EUA
Observo, a seguir, como os produtos estão apresentados na web pelos
pares norte-americanos das agências brasileiras analisadas. Meu primeiro passo
será relacionar essas parcerias. Vejamos:
Fig. 03 – Agências de Turismo líderes em operações com grupos “étnicos”
Brasileiras
1
Norte-Americanas
Nome da
Produto
Nome da
Produto
Agência
“étnico”
Agência
“étnico”
WALPAX
Não menciona
CONSOLIDATED
Não Menciona
no título
2
BGT
Não menciona
TRENDSETTERS
“Afro-Brazilian
Black History
Tour”
3
HAVAS
Não menc iona
SOUTH STAR
“African
Heritage in
Brazil”
4
BLUMAR
1 mencionado
EQUATOR 3
(em Salvador
Não menciona
no título
somente)
5
BIT
3 mencionados
(em Salvador
BRAZIL NUTS
“Celebration
of life”
somente)
A Consolidated Tours36, parceira da carioca Walpax, apesar de não
mencionar explicitamente a comercialização de pacotes de “turismo étnico”, tem
36
Ver em www.ctoinc.com.
47
na sua página inicial a promoção dos “Special Tours” dentre os quais o primeiro
mencionado é “Brazil: Boa Morte”. A empresa, que comercializa outros destinos
como Terra Santa, África e Europa, ao descrever seu pacote para a festa de N.
Sra. da Boa Morte, que acontece todos os anos no mês de agosto, e atrai
centenas de turistas “negros” norte -americanos, mostra a combinação proposta
entre Salvador e Rio de Janeiro. Aliás, o programa chama “Boa Morte”, mas a
foto promocional é do Cristo Redentor…
O programa em Salvador é descrito minuciosamente, falando de sambade-roda, capoeira, candomblé e todos os seus Orixás. A impressão que se tem é
que esses são símbolos exclusivos da Bahia, pois aqui também o Rio de Janeiro
tem reforçada sua característica cosmopolita combinada à de cidade litorânea. É
como se a Bahia fosse o único lugar do Brasil onde encontramos essas
manifestações culturais de descendência afro-brasileira.
A Consolidated opera, exclusivamente com a Walpax, há mais de dez
anos, os grupos de “negros” norte-americanos e, segundo o seu diretor, traz
esses clientes ao Rio de Janeiro e Salvador desde a década de 1970.
A segunda agência norte-americana a observarmos é a Trendsetters 37,
que apresenta quatro destinos: o Brasil, a França, Barbados e a Jamaica. Esta
agência tem a peculiaridade de promover seus pacotes junto com estações de
rádio norte-americanas, estas últimas conhecidas pela eficácia no que tange ao
alcance à população “African-American”. Esta é a razão pela qual um de seus
links tem o título de “Radio Station Tours”, no qual encontramos listados todos
os pacotes operados desde abril de 2003.
Os títulos para os programas variam entre: “Afro-Brazilian Black History
Tour”, “Brazil is Paradize”, “Where dreams come true” e os nomes das estações
de rádio que os promovem.
É importante mencionar que tanto a Trendsetters quanto a Consolidated
trabalham exclusivamente com grupos de clientes “negros” e possuem o seu
produto voltado para este mercado. Prova disto foram as excursões operadas no
37
Ver www.trendsetterstours.com.
48
Brasil nos anos de 2003 e 2004, dentre as quais uma parte significativa fez parte
do meu trabalho de campo.
Sua descrição do povo brasileiro merece atenção; em um longo
parágrafo, a agência menciona, dentre outras coisas, que:
“O Brasil é uma mistura de muitas ancestralidades diferentes, a
maior parte vinda da África, da Europa e das populações
indígenas. Quase metade da sua população é de africanos […] –
compondo a maior população de negros no Hemisfério Ocidental
[…].”38
A Trendsetters é uma das agências que vendem, de forma marcada e
explícita, o produto “Turismo étnico”. Este segmento está definido desde o
“título” dos programas, que se restringem, na grande maioria das vezes, ao Rio
de Janeiro e a Salvador. Todos os seus programas no Rio de Janeiro são
operados pela BGT há pelo menos cinco anos.
A terceira agência, a South Star Tours 39, parceira da Havas turismo, tem
um website no qual se apresenta como especialista em América Latina. Ao
clicarmos em sua página inicial, encontramos um mecanismo de busca que, ao
selecionar “Brasil”, nos é apresentado, dentre os “possíveis interesses”, o título:
African Heritage. Ali, o resumo do programa com o título “African Heritage in
Brazil” diz:
38
Transcrevo o parágrafo original na íntegra: “Brazil has the largest population in South America
and is the fifth most populous country in the world. Brazil is a mixture of many different
ancestries, mostly, from Africa, Europe, and indigenous populations. Almost half of its population
is African or African mixed with European, indigenous or Asian ethnicities - making it the highest
population of black people in the Western Hemisphere. About 55 percent of the population is
white (mainly Portuguese, German, Italian, Spanish, Polish descent), 6 percent African, 38
percent mixed African and white/indigenous), and 1 percent other (Japanese, Arab, Indigenous Amerindian ethnicities). Portuguese is the official language, yet Spanish, English, and French are
widely spoken. About 80 percent of the population is Roman Catholic. Most of the estimated
150,000 indigenous Amerindian people live in the rain forests of the Amazon River basin. The
literacy rate among women and men is equal at more than 83 percent. There are more than 50
universities in the country.”
39
Ver www.southstartours.com.
49
“Este pacote especial sobressalta a riqueza da cultura negra no
Brasil. Excursões e educação se fundem neste tour único, que leva
os visitantes às cidades de Salvador/Bahia e Rio de Janeiro. A
cultura africana brilha no Brasil e este tour apresenta seus pontos
altos de forma muito rica, visitando locais especiais de interesse
histórico tais quais museus, “Terreiro de Candomblé”, cidades
coloniais e um pouco de palestra (lecture ). Sem mencionar a
grande oportunidade de aproveitar a saborosa comida brasileira
tão influenciada pela presença africana.” 40
Para além desta sinopse, a South Star apresenta o programa detalhado
para os 9 dias propostos para o Brasil, em que, na cidade do Rio de Janeiro, tem
planejada uma “visita ao Corcovado e lugares relacionados à cultura negra,
como a Pedra do Sal, igreja da Ordem Terceira do Carmo, igreja de N. Sra. do
Rosário e o Museu do Carnaval […]”. A empresa propõe um programa de
“turismo étnico” para o Rio de Janeiro.
A quarta agência, parceira da BLUMAR, é a Equator 3.41 Esta, apesar de
não intitular seus tours como “étnicos”, possui grupos compostos somente por
“negros” norte-americanos e seus programas para o Brasil são atualmente três:
“Rio/Bahia Carnaval”, “Festa de N. Sra. da Boa Morte” e “Ano Novo no Rio com
Paraty”.
O primeiro é vendido como o maior expoente da herança africana no
Brasil, o Carnaval. Durante o carnaval ficam na cidade de Salvador e no final de
semana seguinte vêm para o “Desfile das Campeãs”, no Rio de Janeiro. O
segundo é para a Festa de N. Sra. da Boa Morte, na Bahia, e o terceiro propõe
participar da festa para Iemanjá na praia de Copacabana durante o Réveillon.
40
Transcrevo o trecho no original: “AFRICAN HERITAGE IN BRAZIL - 9Days/7Nights - Group
Tour - This special package highlights the richness of the Black Culture in Brazil. Sightseeing and
education merge in this unique tour, which takes visitors to the cities of Salvador, Bahia and Rio
de Janeiro. African culture shines in Brazil and this tour introduces its high points on a very rich
way by visiting special and historical places of interest such as museums, “Candomble Temple”,
colonial towns and a bit of lecture. Not to mention the great opportunity to enjoy the taste the
Brazilian cuisine much influenced by the African presence.”
41
Ver www.equator3.com.
50
Esta é uma empresa em que todos os programas possuem tours históricos afrobrasileiros, capoeira e feijoada e seus prospectos anunciam que todos os guias
brasileiros são afro -descendentes.
Finalmente, a quinta agência é a Brazil Nuts, que é espelho da carioca
BIT, começando pelo website, que além de ter o mesmo formato da parceira
brasileira, possui boa parte das informações padronizadas existentes. Existe
uma sintonia articulada entre o que é proposto aqui no Brasil e o que é mostrado
lá nos EUA. Obviamente que esta é uma agência que vende exclusivamente o
“Produto Brasil”. No que tange ao ”turismo étnico”, esta promove um programa
chamado “Celebration of Life”, o qual, segundo a descrição, “explora a rica e
interessante herança africana que faz o Brasil tão especial”.
Este é, na realidade, um programa de 10 dias, que combina o Rio de
Janeiro e Salvador, mas que tem um formato proposto independente de datas
especiais. A Brazil Nuts parece investir no mercado Afro -Americano com um
programa que pode ser vendido durante todo o ano, assim como faz a South
Star. Flexível, direto e “étnico”. Esta agência parece que se propôs a acreditar
nas perspectivas deste mercado promissor, prova disto é o lançamento de uma
outra empresa do mesmo grupo nos EUA, de nome “Destination Partners”42, que
promove a herança africana de outros países além do Brasil.
A composição destes grupos, para os agentes de viagens norte -americanos
que vendem os pacotes, tem como prioridade o alcance de um número mínimo
de passageiros. O que significa dizer que como estratégia de vendas, os
agentes possuem representantes por todo o país (EUA) empenhados na
composição de um número mínimo de passageiros, o que também influi na
grande diversidade desses grupos. Na realidade, um grupo pode ser formado
por turistas oriundos de uma cidade, assim como pode acontecer de ter várias
42
A Destination Partners é uma agência nova, criada entre o final de 2004 e o início de 2005,
parte do grupo Brazil Nuts, que promove outros destinos além do Brasil. Aqui, a herança africana
é promovida para além das fronteiras nacionais, o que parece uma boa estratégia para
desenvolver a fidelização de sua clientela. Esta empresa, por ser recente, não teve nenhum
grupo que tenha feito parte do meu trabalho de campo. Ver www.destinationpartners.net.
51
cidades representadas. Um grupo pode se originar em uma universidade, em
uma igreja, através de programas de rádio, bem como pode ser articulado no
intuito de alcançar aquele número mínimo previsto de passageiros.
Outro fator importante, no que caracteriza essa composição, é a existência
de dois canais de comunicação significativos para a comunidade: a rádio e a
igreja. Muitos grupos são organizados através desses dois canais, ambos de
longo alcance, para o repasse da troca de experiências. Esses canais, em última
instância transformam-se em propaganda boca à boca, e de massa! Não é por
acaso que, dos 18 grupos que foram observados durante o meu trabalho de
campo, três deles foram organizados via Radio Stations (WBLS, de Nova York, e
a KJLH, de Los Angeles) 43.
A WBLS, por exemplo, promove um pacote que combina Salvador e Rio de
Janeiro, todos os anos, no mês de março. Em uma entrevista concedida no
Hotel Sheraton da Barra da Tijuca, durante o grupo de 2004, um famoso
radialista que acompanhava o grupo me relatou que:
“A rádio é um canal de comunicação muito eficaz, porque faz parte do
hábito cotidiano dos African-Americans de todas as idades. Atinge desde
as donas-de-casa até os empresários presos em engarrafamentos,
passando, obviamente, pela juventude amante do Hip-Hop...”
“A rádio tem, sobretudo, uma função social, qual seja, a de esclarecer o
‘nosso povo’ e de repassar os conhecimentos adquiridos no intuito de
melhorar nossa qualidade de vida... “
Radialista de Nova York
O ponto de vista de Bob Lee é significativo para entender uma das formas
através da qual a comunidade African-American se articula politicamente. Para
além da menção constante de ícones de sua luta política, como Martin Luther
King, por exemplo, está a prática contínua do “empoderamento” via
43
o
Grupos de n 01, 07 e 18.
52
conhecimento e, sobretudo, via mercado. A lógica é simples, e pode ser bem
representada através das palavras dos diretores de uma das agências norteamericanas que fizeram parte do meu campo:
“Se vamos dar o nosso dinheiro para algum comerciante, vamos sempre
preferir que este seja um afro-descendente, que seja um de nós. E
quando digo ’nós‘, não estou falando de mim especificamente, mas dos
afro-americanos como um todo...”
“...porque a primeira coisa que um African-American faz quando entra em
um estabelecimento é quantificar! Contar quantas pessoas de cor (people
of color) existem ali e em qual proporção ao total de funcionários...”
Agentes de viagens norte-americanos
A especificidade dos interesses desses turistas pela referência africana na
cultura brasileira pode ser claramente observada nos dois prospectos da
Equator3 encontrados no ANEXO 4. Em ambos, além de referências à Festa de
Iemanjá, festa de Omolu, Capoeira e tours históricos ditos “afro-brasileiros”,
encontramos a observação: “Serviços de guias ‘afro -brasileiros’”.
Para avançar em nossa reflexão, é central estar atento a dois pontos:
primeiro à idéia de “comunidade” existente e difundida entre os Afro-Americanos,
que atualmente toma proporções que transcendem os limites nacionais por
conta do turismo e das facilidades tecnológicas44. Esse é um movimento de
valorização da “diáspora africana”, que transforma em “brothers and sisters”
todos
os
afro-descendentes,
sem
restrição
de
nacionalidade,
o
que
automaticamente acaba por incluir os brasileiros de ascendência “negra”. O
outro ponto central, já mencionado anteriormente, é a empreitada pelo
“empoderamento” de afro -descendentes via conhecimento, articulações e
44
Ver no ANEXO 5 o panfleto eletrônico da LIBRADIO NETWORK que me foi enviado como
convite para participar de uma entrevista on-line, no intuito de discutir, esclarecer e divulgar os
programas de turismo étnico no Brasil.
53
preferências para consumo da própria comunidade45, o que, devido à expansão
dos horizontes ao focalizar a diáspora africana, inclui a tarefa de esclarecer
também aqueles que não nasceram nos EUA, neste caso especificamente, os
cariocas.
Temos aqui, então, um ponto de distanciamento significativo: de um lado
encontramos os “negros” norte-americanos que tendem a transformar em
“negros” todos os que têm ascendência africana, portanto considerados “nãobrancos”, privilegiando, assim, a origem africana sobre qualquer outra existente.
Do outro, temos os brasileiros que transformam em “quase-brancos” os
indivíduos de ascendência africana em algumas situações. Ou seja, a
valorização “racial” se dá em direção oposta.
Ao ler “A brancura desconfortável das classes médias brasileiras” de
Norvel46 , vemos como as camadas médias se colocam como “brancas” ou
“quase-brancas”, a partir de uma lógica dual. Este segmento se legitima
enquanto classe dominante ao mesmo tempo em que se descompromete do
domínio nacional-cultural, edificado em alicerces da herança africana 47 e
indígena. Segundo o autor, ao rever os livros clássicos de Paulo Prado, Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda no que diz respeito à miscigenação, o mito
das três “raças” parece ter privilegiado a brancura da herança portuguesa no
discurso das classes dominantes, em que a ascendência africana ou indígena
está situada em algum lugar do passado, no que diz respeito a si mesmo para
os “quase-brancos”, ou no “outro” para os “brancos”.
Curiosamente, é lugar comum: ao perguntar para “negros” americanos que
transitam pelo Rio com relação à existência de racismo no Brasil, as respostas
quase sempre confirmam o racismo. No entanto, as explicações sempre se
resumem à ausência de “negros”, ou como eles mesmos denominam “coloured
people”, nos lugares que freqüentam, e nunca com relação a si mesmos. O que
45
É esclarecedor ver as “21 things African-Americans should do” na lista retirada do website da
Rádio KJLH (Qual organizou o grupo de número 19 do meu trabalho de campo). Estes princípios
foram amplamente divulgados e repetidos durante a estadia no Brasil. Ver ANEXO 6.
46
Ver Norvel, J. (2001).
47
Ver Fry, P. (2001).
54
parece colocá-los, de alguma forma, em uma posição diferente daquela em que
os “negros” brasileiros se encontram. O “negro” discriminado aqui é o “outro”, e
nunca eles mesmos. Notemos a resposta de um de meus informantes
americanos:
“Como sou turista, não sei exatamente se a sociedade brasileira é
racista ou não. Preciso admitir que me sinto muito confortável…
que não senti em nenhum momento uma situação de racismo com
relação a mim. Mas minha experiência enquanto americano negro
na minha casa, me faz suspeitar do fato de não ver pessoas de cor
nos bons restaurantes, trabalhando nas recepções de hotéis, como
vendedores nas lojas em Ipanema, nos cinemas em Copacabana,
etc., ao mesmo tempo que percebo que os mendigos, os
vendedores ambulantes, os meninos de rua e até mesmo os
adolescentes que fazem malabarismos nos sinais de trânsito têm
‘cor’ e ela não é ‘branca’. Isso me faz afirmar que existe! Se não
existisse, como seria possível explicar essa polaridade de ‘cores’
tão inversamente posicionada?”
A resposta de meu interlocutor me remete a um livro chamado “Town &
Country in Brazil”, no qual Marvin Harris, ao desenvolver uma pesquisa nos anos
de 1950 e 1951 no interior da Bahia, já teria apontado para a peculiaridade de
que no Brasil “riqueza, ocupação e educação (…) têm, até certo ponto, o poder
para definir a ‘raça’” 48 e que “é devido a este fato que não existem grupos
socialmente importantes […] que sejam determinados puramente por suas
características físicas” 49.
No extenso capítulo intitulado “Class and Race” o autor descreve a
estratificação social de uma pequena cidade chamada Minas Velha, onde
existiriam basicamente três classes: uma pequena elite majoritariamente
48
49
Tradução minha. Ver Harris, M. (1971:126).
Idem. Aqui é importante ter em mente o corte racial dito ”vertical” existente nos EUA.
55
“branca”, uma pequena classe baixa majoritariamente “negra” e uma extensa
classe intermediária composta pelo que chamou de “tipos intermediários” (leiase mestiços) onde, segundo ele, tamanha extensão serviria “como um
conveniente mecanismo para negar a identificação com a classe mais baixa”50
(“negros”). Mais adiante, afirma que “uma importante característica das relações
raciais em Minas Velha, assim como na maior parte do Brasil, é a ocasional
habilidade de indivíduos com tipos físicos ‘inferiores’ ascenderem ao status de
tipos físicos ‘superiores’”51. No que diz respeito ao locus de socialização da elite
de Minas Velha, o Clube Social, destaca que a maioria que a ele pertence é
“branca” e “aqueles que não o são, têm um excesso de dinheiro ou algum outro
fator de prestígio em razão inversamente proporcional à sua ‘deficiência’
racial” 52. Para avançar na minha reflexão, gostaria de convidar o leitor a refletir
sobre os pontos de contato existentes entre a sociedade que Harris analisou
então, e a sociedade carioca da atualidade, pensando a Zona Sul do Rio de
Janeiro enquanto locus de socialização da elite e da classe média cariocas. Será
que o leitor considera, tanto quanto eu, que tal analogia faz todo sentido? Bom,
caso considere, talvez fique inquieto com a revelação que segue, ainda na
análise de Harris, de que existiria uma tensão social na qual:
“Não há difusão de sentimentos contra alguns negros ocupando status
equivalentes
ou
mais
altos
que
alguns
brancos
(ex.
“se
embranquecendo”), mas há evidentemente um valor crítico em relação ao
número de tais casos que podem ser tolerados. Em outras palavras, há
implícito na dada configuração do ideal de estratificação racial uma ‘cota’
na proporção de negros aos quais os brancos se admitiriam equiparados
ou acima deles”. 53
50
Tradução minha. Ver Harris, M. (1971:123).
Idem. (1971:127). O autor também aponta que na visão da população local, os “negros” são
vistos como tipos inferiores e os “brancos” como superiores.
52
Idem. (1971:129).
53
Idem. (1971:135).
51
56
2 - OS TURISTAS “NEGROS” NO TURISMO
CARIOCA
Fig. 04 – Grupo ITC na Estação do Pão de Açúcar
Para pensarmos o universo dos turistas “negros” que visitam a cidade do Rio
de Janeiro, primeiramente se faz necessário visualizar uma subdivisão crucial
para sua compreensão, visto que meu trabalho de campo apontou dois grupos
independentes visitando a cidade. O primeiro, é o segmento do “turismo étnico”,
representado por aqueles turistas que visitam a cidade com o programas de foco
“afro-brasileiro”, que foi o objeto inicial deste estudo. No entanto, com o decorrer
da pesquisa, pude perceber a sutileza que demarcava a existência de um outro
57
segmento, que talvez não seja prematuro chamar de “turismo sexual” 54. Foi
preciso, então, tentar estabelecer um caminho que pudesse possibilitar a
delimitação referente a estes dois segmentos, de modo que facilitasse a
compreensão de ambos e que permitisse continuar minha reflexão sobre aquele
primeiro.
No que diz respeito ao segmento do “turismo sexual” irei me apoiar,
sobretudo, no estudo pioneiro de Adriana Piscitelli, visto que a autora
compartilha uma linha de pensamento em que este “é conceitualizado como
qualquer experiência de viagem na qual a prestação de serviços sexuais da
população local, em troca de retribuições monetárias e não monetárias, seja um
elemento crucial para a fruição da viagem”. Além dos estudos de Piscitelli,
utilizarei os artigos “Nossa Senhora da Help: sexo, turismo e deslocamento
transnacional na orla de Copacabana ” (2004) e “A mistura clássica: o apelo do
Rio de Janeiro como destino para o turismo sexual” (200?) ambos, produzidos
por Thaddeus Blanchette e Ana Paula Silva, e circunscritos ao universo do
“turismo sexual” em Copacabana, no Rio de Janeiro.
54
Ver Piscitelli (2001:4).
58
2.1 Demarcando limites: “turismo étnico” vs. “turismo sexual”
É preciso ter clara consciência de que os propósitos, as características e a
dinâmica aos quais se circunscrevem aqueles turistas interessados no “turismo
étnico”, nada, ou muito pouco, têm a ver com os do universo do mercado do
sexo e dos afetos no Rio de Janeiro. É bem verdade que algumas vezes os dois
universos apresentam fronteiras que se “borram” a ponto de se confundirem,
visto que um “turista sexual” é, antes de qualquer coisa, um “turista”. No entanto,
ao observarmos e articularmos determinado conjunto de fatores no meio em que
se dão estas dinâmicas, é possível uma aproximação maior ou menor do
“universo do turismo sexual”. Penso não ser correto pretender que o “etnoturista”
que vem à “Cidade Maravilhosa” e que não tenha nenhum envolvimento com a
prostituição praticada na “orla da Baixa Copacabana” 55, em última instância, não
tenha como ser diferenciado daquele que vem especificamente com propósitos
sexuais56. Gostaria de deixar claro que em momento algum tive a intenção,
neste estudo, de hierarquizar ou valorizar o “universo do turismo sexual” em
oposição ao do “turismo étnico”. No entanto, considero oportuno pontuar que
ambos os universos são perfeitamente identificáveis, não cabendo se deixar
enganar pelo “discurso da invisibilidade do turismo sexual”, já criticado por
Blanchette e Silva em “Nossa Senhora da Help”. Além disto, durante meu
campo, apareceram suposições de que o “turismo étnico” não estaria sendo
incentivado pelas vias governamentais devido à crença de que este estaria
aumentando o universo do turismo sexual. De fato, como veremos mais adiante,
é sabido que o número de “turistas sexuais negros” teve um aumento
significativo nos últimos anos; no entanto, como demonstrarei neste capítulo, é
um grave equívoco pensar que este aumento esteja relacionado com o que aqui
estou chamando de turismo “étnico”, e que não incentivar o crescimento deste
segundo teria qualquer influência no avanço do primeiro.
55
Para referências sobre a prostituição em Copacabana ver Gaspar (1984); Blanchette e Silva
(2004).
56
Ver Blanchette e Silva (2004:2).
59
Dito isto, é preciso fazer algumas ponderações sobre o tema: (1) Nem todo
turista “negro” norte-americano no Rio de Janeiro é um “etnoturista”; (2) Existem
aqueles turistas “negros” 57 norte-americanos que vêm ao Rio de Janeiro
exclusivamente para o “turismo sexual”, e que nada têm a ver com o “turismo
étnico”. Thaddeus Blanchette e Ana Paula Silva, afirmam que “nos últimos dez
anos houve uma onda crescente de turismo sexual no Rio de Janeiro
protagonizado por norte -americanos negros”; (3) Alguns “etnoturistas” podem se
transformar em “turistas sexuais acidentais” 58, durante a estadia, devido às
circunstâncias. Esta expressão é utilizada por Thaddeus Blanchette e Ana Paula
Silva em referência ao turista que “explica o fato de estar à procura de garotas
de programa pela conjuntura de estar no Rio de Janeiro (cidade onde o sexo
livre e abundante é considerado ‘natural’ ou ‘normal’)” e que considera o
acontecido como “algo excepcional, não esperado no decorrer da vida normal”.
Para além disto, está o fato de que os “turistas sexuais ‘negros” norteamericanos se mostraram como um interessante exemplo de negociação na
tensão existente entre o ’modo bi-polar’ e o ideal de ‘democracia racial’”.
Para entrar em tal discussão, precisamos definir o quadro teórico pelo qual
adicionaremos ao nosso repertório o eixo sexualidade. Vejamos:
Afirmando que “nossas definições, convenções, crenças, identidades e
comportamentos sexuais [… ] têm sido modelados no interior de relações
definidas de poder”, Jeffrey Weeks, em um texto intitulado “O corpo e a
sexualidade”, mostra, dentre outras coisas, a sexualidade como uma construção
social e assinala sua centralidade para o modo como o poder atua na sociedade
moderna. Segundo ele, as relações de poder, em particular no que diz respeito
“às suas conexões com gênero, classe e ‘raça’, tornam-se significativas para a
definição do comportamento sexual” 59.
57
Ver Blanchette e Silva , retirado da internet (http://www.leituracritica.net/lc041210_artigo3.php )
em 16 de maio de 2005.
58
Ver Blanchette e Silva (2004:17).
59
Ver Weeks, J (1999:38).
60
O autor desenvolve de forma instigante como “nosso conceito de sexualidade
tem uma história”, argumentando que uma variedade de linguagem nos diz “o
que o sexo é, o que ele deve ser e o que ele pode ser”. Assim como Carole
Vance60, aponta a “História da Sexualidade” de Michel Foucault como um marco
teórico da abordagem do “construtivismo social” no contexto da história e da
sociologia da sexualidade. E, ao citar o referido autor, afirma que o sexo oferece
“um meio de regulação tanto dos corpos individuais quanto do comportamento
da população como um todo”. O poder, diria ele, “atuaria através de mecanismos
complexos e superpostos”, produtores de estruturas de dominação e
subordinação nas quais “três eixos interdependentes têm sido vistos,
atualmente, como particularmente importantes: os da classe, do gênero e da
raça”61.
Weeks acrescenta, ainda, que nossa cultura atribui extrema importância à
sexualidade, a qual seria “construída como um corpo de conhecimento que
modela as formas como pensamos e conhecemos o corpo” e que a mesma, por
sua vez, “é modelada na junção de duas preocupações principais: com a nossa
subjetividade e com a sociedade”62. Ou seja, que os debates sobre sexualidade
seriam debates sobre a natureza de determinada sociedade, na qual o poder
atuaria por meio de mecanismos complexos e superpostos de controle,
produzindo subordinações e resistências. A sexualidade estaria entremeada por
relações superpostas de poder, nas quais a questão da diferença seria central
no jogo de forças que determinam os padrões sociais. As diferenças de classe,
gênero e “raça” nessas relações de poder são determinantes no que diz respeito
à forma como a sociedade constrói certos padrões de comportamento e
demonstra a complexidade das forças que modelam as atitudes e o
comportamento sexual.
Minha intenção ao utilizar aqui os “turistas sexuais ‘negros’” norteamericanos é a de materializar a complexidade desses três eixos propostos por
60
61
62
Ver Vance, C. (1995:12).
Ver Weeks, J. (1999:55).
Ver Weeks, J. (1999:51-52).
61
Weeks: (1) O fato de serem norte-americanos é significativo para o eixo classe.
Ainda que em uma perspectiva de relações internacionais, se pensarmos no par
de oposição EUA/Brasil no contexto que estou propondo, a diferença de classe é
explícita e abre espaço para uma reflexão sobre as relações de poder Norte/Sul
no que tange ao “turismo sexual”. Piscitelli toma como base o trabalho de
Truong (1990) para vincular o turismo sexual “às relações entre homens de
países desenvolvidos e nativas de nações pobres à prostituição”, considerando
o “resultado de uma série de relações sociais desiguais, incluindo relações entre
Norte e Sul, capital e trabalho, produção e reprodução, homens e mulheres”.
Esta visão se articula perfeitamente com a superposição de poderes proposta
por Weeks; (2) O fato de serem “negros” possibilita rever como se dá a relação
de poder ao acionarmos o eixo “raça”, visto existir uma variação curiosa no
clássico
par
de
oposição
Homem/Branco/Estrangeiro/Opressor
e
a
63
Mulher/Mestiça/Brasileira/Oprimida , sob os quais operam tanto a historiografia
brasileira clássica64 quanto os estudos sobre “turismo sexual”; (3) Já com
relação ao eixo gênero, estou partindo da afirmativa de Joan Scott de que este
não pode ser considerado como um subproduto de estruturas econômicas 65, e
como veremos a seguir, no caso dos “grupos de turismo étnico” no Rio de
Janeiro, os papéis de gênero se mostram muito bem marcados neste mercado.
Ainda que não tenha se referido a “negros” estrangeiros, Laura Moutinho já
apontou esta variação no par de oposição clássico existente na historiografia
brasileira. Em seu livro Razão, ”cor” e “desejo”, a autora apresenta um par de
oposição que inclui o homem “negro” brasileiro na relação afetivo -sexual “interracial”, ampliando a compreensão das relações sociais e raciais no Brasil e
tomando por via a sexualidade, o erotismo e o desejo circunscritos a essa
combinação66. Ao pensar sobre relacionamentos afetivo -sexuais “inter-raciais”, a
autora mostra como alguns autores “perceberam as idéias de ‘raça’, mestiçagem
e erotismo como temas centrais da constituição da nacionalidade brasileira” em
63
64
65
66
Ver Moutinho, L. (2004:cap. 4).
Ver Moutinho, L. ( 2004:cap. 2).
Ver Scott, J. (1995:80).
Ver Moutinho (2004:cap. 4).
62
determinados momentos de suas reflexões. Tendo como foco de sua atenção o
“casal miscigenador”, analisa os escritos desde o chamado “pai do racismo”
científico, Conde de Gobineau, até às Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de
Holanda, passando por Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Paulo Prado e Gilberto
Freyre. A autora mostra como, nesses clássicos, a categoria mestiçagem
emerge enquanto a “linguagem que orquestra as diferenças e hierarquias entre
os sexos” e como “foram fundamentais na constituição de nossa idéia de
nação”.67
Dei-me conta da importância de se tratarem de dois subgrupos de turistas
“negros” distintos ao ser interpelado por um amigo com relação ao tipo de turista
que estava estudando. Vejamos:
“É verdade, tem muitos turistas ’negros‘ norte -americanos em
Copacabana! É incrível que eu não tivesse percebido antes.
Depois que soube do que se tratava sua pesquisa, comecei a me
dar conta de como podem ser claramente identificados pelas ruas.”
“[…]o engraçado é que estão sempre em grupos de dois ou três
homens. Pode observar, são sempre grupinhos pequenos! Mas,
me explique uma coisa: só vêm homens?”
É verdade que ao andarmos por Copacabana, como já mencionado
anteriormente, deparamos com uma quantidade singular de turistas, visto estar
ali o termômetro do turismo nacional. Também é verdade que, dentre os turistas
que por ali transitam, encontraremos uma quantidade significativa de “AfricanAmericans”. No entanto, o grupo ao qual tinha me dedicado em princípio neste
trabalho, não eram os pares ou trios só de homens que são vistos durante todo
o dia em Copacabana, mas sim um outro subgrupo que, na maioria das vezes,
67
Ver Moutinho (2004:cap. 2).
63
tem uma programação tão intensa que muito pouco tempo livre lhes resta para
circular pelas ruas do bairro .
Fig. 05 – “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual”
Outro fator importante que me fez incluir esta reflexão inicial sobre o “turismo
sexual”, no que tange turistas “negros” norte-americanos, foi o fato de que os
grupos que fizeram parte do meu campo terem sido incluídos aleatoriamente 68.
São as agências que escolhem os guias e, devido a esta dinâmica, acabei
sendo agendado para o carnaval de 2005 para trabalhar com um grupo de
“negros” atípico para este mercado, visto que a maioria dos participantes eram
homens, contrariando uma das características principais dos grupos de “negros”
norte-americanos, que é ser majoritariamente formado por mulheres sozinhas e
mulheres que vêm acompanhadas por membros da família (marido ou filha ou
68
Os Guias de turismo no Brasil são profissionais autônomos. Ou seja, organizam suas agendas
de trabalho conforme a ordem em que os mesmos lhes são ofertados ; assim, sempre dependem
de serem chamados por uma ou outra agência. Trabalham para várias agências, o que faz com
que a primeira a ligar e reservar certo período, seja a escolhida.
64
irmã). Este grupo do carnaval de 2005 tinha, entre seus componentes, 80% de
pessoas do sexo masculino. Uma inversão, se comparado a todos os outros
grupos do meu campo.
A fala da agente de viagens que me contratara pode, por outro lado, nos
ajudar a visualizar a desconfiança que tais grupos geralmente despertam no
trade turístico carioca:
“[…] preciso te dizer uma coisa Marcelo: seu grupo é quase só de
homens! Eu juro que não sabia, vim saber ontem quando a
agência de Nova York me enviou a listagem de passageiros. Bem,
quase dez homens sozinhos no Rio de Janeiro pro carnaval…
sabemos que eles vêm para sexo, só não sabemos para que lado!
Se forem gays, sabemos que comprarão excursões, mas se forem
heteros… enfim, se forem heteros você vai pelo menos ter os dias
livres para brincar o carnaval!”
De fato, meu grupo do carnaval tinha oito homens e duas mulheres e, a
profecia se cumpriria: como se anunciaram enquanto heteros, mais da metade
do grupo desapareceu durante a estadia, visto que 60% deles eu só viria a ver
novamente durante o traslado de volta para o aeroporto, no dia da saída. Aliás,
esta metade nem mesmo aparecera para a excursão que já havia sido paga
como parte do pacote. Porém, quatro passageiros apareceram para o tour ao
Corcovado e ali, tive a possibilidade de começar a pensar em uma possível
demarcação dos limites entre o universo dos “etnoturistas” e o dos “turistas
sexuais”.
Como se eu não desconfiasse do provável motivo pelo qual os outros seis
homens não tinham comparecido ao tour do Corcovado, perguntei a uma das
mulheres o que acontecera. Esta, visivelmente desapontada, me dissera que os
outros estariam provavelmente dormindo, “visto que eram nove horas da manhã
65
e eles teriam passado suas trêsúltimas noites muito ocupados com suas
conhecidas na ‘Help’” 69. Logo em seguida, a mesma turista me diria:
“Você sabe do que eu estou falando, não sabe? …pode dizer! Eu
estive lá ontem. E foi muito ESCLARECEDOR (eye-openning) ter
estado lá!… porque ficou muito claro para mim (it made clear to
me)
que
os
nossos
homens,
“African-Americans”,
não
necessariamente preferem mulheres de cor (colored women)!
Definitivamente não, a partir do que vi com os meus próprios olhos
ontem… VERY EYE-OPENNING!”
Esta fala denunciou, em princípio, duas coisas: a primeira seria relativa à
reprovação feminina com relação ao envolvimento de “negros” americanos no
circuito do “turismo sexual”; a segunda seria o desconforto com que esta
turista“negra” estava interpretando a não-racialização, por parte de seus pares
masculinos, na escolha de suas parceiras na dinâmica do “turismo sexual”
carioca.
Foi a partir daí que resolvi dar mais atenção ao “turismo sexual”, por parecer
que ali, como ela mesma teria insinuado, algo de “esclarecedor” (eye-openning)
poderia ser encontrado no que diz respeito às “relações raciais” no Brasil,
envolvendo homens “negros” norte -americanos. Afinal, a preferência pela
bipolarização começava a se mostrar menos unânime do que parecia. Além do
mais, os trabalhos sobre “turismo sexual” no Brasil que conhecia até então, se
restringiam àqueles produzidos pioneiramente por Adriana Piscitelli, qual se
circunscreve ao mesmo par de oposição utilizado pela historiografia clássica.
Os outros dois trabalhos que utilizo, de Blanchette e Silva, são relativamente
novos, e posteriores ao início desta pesquisa. Segundo estes autores, seguindo
69
Blanchette e Silva já teriam mencionado que “a gerência da Help faz questão de que a boate
seja internacionalmente reconhecida como o maior e mais famoso local de encontro entre
‘meninas’ brasileiras e turistas estrangeiros”. Ver Blanchette e Silva (2004:6-7).
66
os passos de Maria Dulce Gaspar no conhecido Garotas de Programa,
Copacabana seria “uma área entendida no universo carioca como uma região
moral tipificada pela presença de prostitutas e estrangeiros”70, em outras
palavras, o locus do turismo sexual na Cidade Maravilhosa. No entanto, nestes
trabalhos tampouco encontramos foco no turista “negro” norte-americano,
apesar de encontrá-los mencionados um par de vezes.
Levando em consideração que este locus do “Turismo Sexual” se confunde
com o do “turismo étnico”, apontarei algumas características que nos ajudem a
delimitar os dois universos. É preciso mencionar que, em momento algum esta
delimitação tem a pretensão de esgotar o tema; ela é, sobretudo, um
mapeamento inicial das especificidades de cada um destes universos.
Apresentarei, separadamente, os treze itens 71 que vejo como relevantes,
inicialmente, nesta diferenciação. Discutirei cada um deles, apontando as
particularidades referentes a ambos os universos. Vejamos:
1
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Grupos
Individuais
Primeiramente, observei que, na grande maioria das vezes em que os
agentes de viagens brasileiros se referem a “programas étnicos”, se referem
também a grupos de turistas com 15 ou mais passageiros. No caso do “turista
sexual”, este geralmente viaja sozinho, em duplas ou trios, mas nunca em
grupos.
“Etnoturistas”
70
“Turistas Sexuais”
Idem (2004:2).
Os treze itens estão apresentados sob a forma de uma única tabela no ANEXO 9 desta
dissertação, sob o título de “Quadro comparativo: “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual”.
71
67
2
Maior
parte
mulheres
composto
sozinhas
por Composto somente por homens
ou
acompanhadas por membros da
família (marido ou filha ou irmã)
Em segundo lugar, foi bem marcante, no caso do turismo étnico, o fato de
que a grande maioria dos turistas eram mulheres: dentre os grupos que
observei, 74,8% dos turistas eram de sexo feminino. Segundo a literatura
produzida no Brasil até então, o turismo sexual tem se circunscrito ao universo
masculino, não se tem notícia de mulheres praticantes de turismo sexual no Rio
de Janeiro. Este fato é revelador, porque mostra que o universo dos turistas
“negros” norte-americanos no Rio de Janeiro está subdividido a partir de um
recorte de gênero, em que o “étnico” é basicamente composto pelo feminino,
enquanto o “sexual” é exclusivamente composto pelo masculino.
“Etnoturistas”
3
Têm
programas
intensos.
“Turistas Sexuais”
turísticos Visitam o Corcovado e/ou Pão de
Açúcar, quando muito.
Outro fator importante a ser considerado é a intensidade dos programas de
turismo “étnico”, nos quais os turistas têm programações diárias que ocupam a
maior parte de seus dias. Já o “sexual” se circunscreve à área da “baixa
Copacabana” e, na grande parte das vezes, não está vinculado a nenhum
programa turístico diário. Eles passam a noite nas danceterias de prostituição,
principalmente na “Help”, e geralmente passam as manhãs dormindo.
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
68
4
Demonstram
interesse
de Retornam várias vezes ao Rio de
retornar, no futuro.
Janeiro, com intervalos médios de
6 a 12 meses, entre uma estadia
e outra.
Os “etno” demonstram o interesse de retornar no futuro, não necessariamente
pontuando quando. Já os “sexuais” retornam com certa assiduidade, pelo menos
uma vez ao ano. No dia da saída para o aeroporto, do grupo com o qual
trabalhei no carnaval 2005, fui informado a razão pela qual a maioria dos
homens não terem comparecido à excursão ao Corcovado: “já conheciam o Rio
muito bem visto ser aquela a quarta ou quinta vez que cada um deles vinha à
cidade nos últimos três anos”.
“Etnoturistas”
5
Dificilmente
têm
“Turistas Sexuais”
envolvimento O interesse sexual é o objetivo
afetivo-sexual com os brasileiros.
central da viagem, que algumas
vezes resulta em envolvimento
afetivo.
Devido ao pouco tempo livre disponível pelos turistas de roteiros “étnicos”,
existe pouca possibilidade de envolvimento afetivo -sexual com os brasileiros. Ao
passo que, no “sexual” este é o principal motivo da viagem, ainda que na maioria
dos casos se restrinja à prostituição
6
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Ficam hospedados em hotéis 4
Alugam
ou 5 estrelas, na grande maioria temporada,
apartamentos
principalmente
por
nas
69
das vezes.
proximidades da discoteca “Help”.
Todos os grupos que observei durante meu trabalho de campo ficaram
hospedados em hotéis de quatro ou cinco estrelas, que já faziam parte de seus
pacotes. No entanto, estes estabelecimentos têm, freqüentemente, impedido a
entrada de acompanhantes (leia-se garotas de programa) nos quartos, o que
tem feito com que os turistas sexuais cada vez mais aluguem apartamentos por
temporada, nas proximidades da “Help”. Assim, podem levar quem e quantos
acompanhantes quiserem.
7
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Têm interesse pela herança
Têm interesse pelo sexo com
africana contida na sociedade
mulheres brasileiras,
brasileira.
aparentemente não se importando
com a “cor” das parceiras.
O discurso dos “etnoturistas”, durante todo o meu campo, foi norteado pelo
interesse em conhecer as raízes africanas na cultura brasileira. Existe uma
sobrevalorização do que é “negro” na reconhecida miscigenação da população
do Brasil. Já no que diz respeito aos “turistas sexuais” não parece existir
restrições ou imposições no que diz respeito à cor.
8
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Reconhecem a mistura mas
Acham que a mistura racial é a
criticam as “relações raciais” no
característica central da
Brasil, no que tange à não-
sociedade brasileira, parecendo
racialização.
não se importar com esta
questão.
70
Os turistas do turismo “étnico” criticam o “ideal de democracia racial” pelo
fato de, segundo eles, não refletir uma democracia econômica. Consideram que
o fato de não existir uma “sociedade afro-brasileira” impede que os “negros” se
ajudem entre si para melhorar sua condição econômica. Já os turistas “sexuais”
afirmam entender que a sociedade brasileira seja assim, miscigenada.
9
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
O período médio de estadia é de
Estadia média de uma a duas
7 a 10 dias, dentre os quais
semanas.
aproximadamente 4 dias
dedicados ao Rio de Janeiro.
Como pude observar, os pacotes turísticos ditos “étnicos”, geralmente
designam aproximadamente de 7 a 10 dias para os programas. Já os “turistas
sexuais” permanecem um mínimo de uma semana, na maioria das vezes,
podendo chegar a duas semanas.
10
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Visitam o Rio de Janeiro e
Visitam especificamente o Rio de
Salvador, na maioria dos
Janeiro.
programas.
A diferença quanto ao tempo de estadia fica significativa ao observarmos que
os etnoturistas, na grande maioria das vezes, visitam as cidades de Salvador e
Rio de Janeiro, o que resulta em uma média de 4 dias de estadia na Cidade
Maravilhosa, ao passo que os turistas “sexuais” passam seu tempo
integralmente no Rio, na grande maioria das vezes.
71
11
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Exigem serviços prestados por
Não se importam com a
brasileiros “afro -descendentes”.
variedade étnica das prestadoras
de serviços.
Uma das exiências mais comuns feitas pelos “etnoturistas” é que os
prestadores de serviços utilizados sejam “afro-brasileiros”, o que, segundo eles,
é uma forma de dar oportunidade econômica para essa parcela da população
brasileira. Os turistas sexuais, no entanto, dizem não ter preferência por uma
“cor” específica, afinal o Brasil é o país da miscigenação.
12
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
Criticam o que chamam de
Apreciam a “invisibilidade” com
“daltonismo racial” no Brasil,
que transitam pelo Rio de Janeiro.
pondo em xeque a invisibilidade
com que as “relações raciais”
são tratadas.
Os “etnoturistas” reclamam do fato de que sua própria raça não é
reconhecida no Brasil. Segundo eles, parece que sua “cor” não é reconhecida, e
consideram isso como uma deficiência no Brasil de reconhecer a existência de
“negros”, como se existisse um “daltonismo racial” que impedisse ver a sua
“cor”. Os turistas sexuais parecem transitar livremente no mercado do afetivosexual do Rio de Janeiro. Ambos apontama inexistência de foco, por parte dos
brasileiros, no que diz respeito à “raça”, uma certa invisibilidade. Porém,
72
interpretam de formas opostas: para os “etnoturistas” é negativo, porque parece
negligenciar sua “negritude”; para os turistas “sexuais”, é positivo porque permite
a mesma mobilidade que os outros turistas
13
“Etnoturistas”
“Turistas Sexuais”
A faixa etária média está entre
A faixa etária média está entre 30
40 e 65 anos.
e 45 anos.
A faixa etária média do turista que vem para o Rio de Janeiro para conhecer
a herança africana está entre 40 e 65 anos; já os turistas que vêm em busca de
sexo, aparentam, geralmente, entre 30 e 45 anos.
Esses foram alguns itens que, apesar de não fazerem muita diferença
isoladamente, quando combinados permitem ver com maior clareza os dois
universos separadamente. Obviamente que estas não são classificações
estáticas, e podem variar de acordo com casos específicos; no entanto, a
incidência de características de um ou outro grupo nos ajuda a visualisar o
propósito da viagem do turista. Em síntese, se um homem “negro” norteamericano estiver visitando o Rio de Janeiro com outros propósitos que não os
do “turismo sexual”, sua viagem muito provavelmente estará mais próxima das
características do “etnoturista”.
Minha intenção, neste sub -item, foi tentar estabelecer a diferença crucial
existente entre dois grupos distintos de turistas “negros” que visitam o Rio de
Janeiro: os do segmento do “turismo étnico” e os do segmento do “turismo
sexual”, por acreditar que esta seja uma diferença crucial para podermos
visualizar os “etnoturistas” aos quais esta dissertação se refere. No próximo subitem explicarei, a partir de uma tabela, os grupos que fizeram parte do meu
trabalho de campo, em que apontarei os detalhes relevantes da pesquisa e do
trabalho de campo.
73
2.2 Grupos utilizados no trabalho de campo
O trabalho de campo foi desenvolvido entre março de 2003 e março de
2005, como demonstrado na tabela abaixo, com grupos originários das cinco
agências de viagens nacionais e seus pares norte-americanos que tiveram seus
websites analisados no capítulo anterior. É importante remarcar que apesar da
quase inexistência de menções sobre o segmento do “turismo étnico”, tanto pelo
Ministério do Turismo quanto pelas agências de turismo brasileiras, as agências
de turismo norte-americanas de fato vendem este produto. Os turistas destes
grupos que relaciono abaixo se percebiam, quase na sua totalidade, como
“turistas étnicos”. Vejamos:
PERÍODO
NOME
AGÊNCIA USA/BRASIL
H
%
M
%
TOTAL
Trendsetters/BGT
69
31,2
152
68,8
221
Consolidated/Walpax
03
15,0
17
85,0
20
03 12/09 a 15/09/03 The African Heritage Tour
South Star/Havas
05
22.7
17
77,3
22
04 16/10 a 18/10/03
Afro-Heritage
South Star/Havas
06
24,0
19
76,0
25
05 20/11 a 22/11/03
Zumbi 2003
Consolidated/Walpax
13
22,0
46
78,0
59
06 25/02 a 01/03/04
Heritage Tour 2004
Equator3 tours/Blumar
05
26,3
14
73,7
19
07 20/03 a 23/03/04 Radio Station – WBLS 2004
Trendsetters/BGT
15
27,8
39
72,2
54
08 08/07 a 12/07/04
Brasil is Paradise/D’zert
Club
Trendsetters/BGT
09
19,6
37
80,4
46
09 17/08 a 20/08/04
Boa Morte 2004
Consolidated/Walpax
04
33,3
08
66,7
12
10 02/10 a 05/10/04
Soul Planet
Brazil Nuts/BIT
02
10,6
17
89,4
19
11 29/10 a 01/11/04
Celebration to Life
Brazil Nuts/BIT
04
06,6
57
93,4
61
12 05/11 a 09/11/04
Fairview Greenburgh
Brazil Nuts/BIT
07
16,7
35
83,3
42
Consolidated/Walpax
06
28,6
15
71,4
21
01 19/03 a 22/03/03 Radio Station – WBLS 2003
02 18/08 a 21/08/03
Boa Morte 2003
13 12/11 a 15/11/04 Zumbi (Dumas & White) ‘04
14 24/11 a 26/11/04
Inspection/GRP KJLH
South Star/Havas
01
50,0
01
50,0
02
15 04/02 a 09/02/05
Gerena Carnival Group
Brazil Nuts/BIT
08
80,0
02
20,0
10
16 09/02 a 13/02/05
Heritage Tour 2005
Equator3/Blumar
08
36.4
14
63.6
22
74
17 16/03 a 20/03/05
Ministry in Global
Perspective
18 23/03 a 26/03/05 Radio Station – KJLH (L.A.)
Consolidated/Walpax
02
20.0
08
80.0
10
South Star/Havas
16
30.8
36
69.2
52
TOTAL
165
25.2
490
74.8
655
Fig. 06 – Tabela de Grupos utilizados no trabalho de campo
A primeira coluna diz respeito ao período do ano em que estiveram no Rio
de Janeiro e a duração de seus pacotes. Podemos observar que 50% dos
grupos permaneceram na cidade durante 4 dias e que esta média varia de 3 a 6
dias. Este é o tempo utilizado pelas agências para apresentar desenvolver os
pacotes turísticos que foram propostos.
Na segunda coluna, temos os nomes sob os quais estes grupos chegam
à cidade e são identificados pelas agências. Não existe uma regra rígida que
determine estes nomes, eles podem ser: o mesmo utilizado pelas agências nos
seus pacotes padrão - como o “Celebration of life” das agências “Brazil Nuts” e
“BIT” utilizado no grupo de número 11 na tabela por exemplo; homônimos das
instituições que os organiza como as estações de rádio como a WBLS e a KJLH
ou Associações particulares como o D’zert Club no grupo de número 08. Aliás,
três dos grupos foram organizados por estações de rádio, na tabela os de
número 01, 07 e 18, por isso levam seus nomes. A lógica é bem simples: uma
estação de rádio promove um evento em um determinado destino, procura um
agente de viagens norte-americano que organizará a viagem com um agente de
viagens brasileiro. A rádio nada tem a ver com a organização e a logística do
produto turístico, se concentram em agrupar seus ouvintes que viajarão juntos.
Elas, no entanto, têm a opção de decidir o nome do Grupo. A WBLS de Nova
Iorque por exemplo, promove uma viagem ao Brasil todos os anos no mês de
março; seja por conta de eventos específicos como referentes à cultura negra no
Brasil - como a festa de N. Sra. da Boa Morte na Bahia, o feriado de Zumbi dos
Palmares no Rio de Janeiro e
o Carnaval. “African Heritage” Exaltando a
herança africana - é um nome bastante utilizado sob infinitas variações e muitas
vezes é usado como sub-título das programações. Há outras opções possíveis
75
como nomes próprios – “Ministry in Global Perspective”, grupo de número 17, é
o título de uma cadeira de pós-graduação. Por ora, gostaria de colocar em
relevo
que
os
nomes
mais
comuns
dados
aos
grupos de turistas“negros” norte-americanos são aqueles que explicitam a
herança africana no Brasil72, que resultam em infinitas variações como “African
Heritage”, “Afro-Heritage” e “Heritage”. Outros dois nomes frequentemente
encontrados são “Zumbi” devido ao feriado de Zumbi dos Palmares no Rio de
Janeiro (Dia Nacional da Consciência Negra) e “Boa Morte” devido à festa de
Nossa Senhora da Boa Morte na Bahia. Para além destes, estão aqueles que
celebram o Brasil como o “Brazil is Paradise” e o “Celebration of Life”. Uma
outra forma recorrente de nomear os grupos é a partir da instituição que os
organiza, como por exemplo os programas das “Radio Stations” . O mais
importante é atentarmos para o fato de que estes nomes são dados aos
programas pelas próprias agências de viagens norte-americanas.
A terceira coluna é referente às agências de viagens organizadoras
daqueles grupos especificamente. Apresento, lado a lado, a agência brasileira e
a norte-americana. Nesta pesquisa trabalhei, como dito, basicamente com
grupos provenientes de cinco agências no Rio de Janeiro: a Walpax, a BGT, a
BIT, a Havas e a Blumar. Estas representam respectivamente, as agências
norte-americanas: Consolidated, Trendsetters, Brazil Nuts, South Star Tours e
Equator 3.É importante mencionar que estes não foram os únicos grupos de
“negros” americanos que estas agências trouxeram ao Rio de Janeiro, são
somente os que ficaram sob minha responsabilidade. Em nenhuma das
agências mencionadas existe uma contagem do número total de turistas
“negros” atendidos por elas neste período.
Da quarta à oitava coluna encontraremos dados numéricos sobre estes
grupos dispostos da seguinte maneira: a quarta e a quinta colunas são,
respectivamente, o número de homens e o percentual ao qual correspondem na
composição de cada grupo; a sexta e a sétima colunas são o correspondente ao
número de mulheres e o percentual que representam; e a nona coluna o número
72
Ver nomes dos grupos sob os números: 03, 04, 05, 07 e 17.
76
total correspondente de cada um dos grupos. As mulheres se provaram
predominantes nestes grupos, nos quais podemos constatar que dos 655
turistas, 490 eram do sexo feminino, o equivalente a 74,8%. Este é um dado
revelador, no sentido de indicar a probabilidade de existir, na demanda
racializada dos “grupos étnicos”, uma orientação norteada pelo gênero feminino.
Fig. 07 – Composição majoritariamente feminina
No entanto, dentre os 18 grupos que foram acompanhados para este
trabalho, todos tiveram as mesmas características, com exceção de um deles,
que se mostrou diferente na sua composição, visto ter sido majoritariamente
formado por homens. O “Gerena Carnival Group” de 2005, de número quinze na
tabela, possuía 80% de seus participantes do sexo masculino, fator
inversamente proporcional a todos os outros grupos do campo. Também foi o
único que não possuía uma programação contínua; na realidade, teve somente
77
uma excursão, e foi onde os indícios de “turismo sexual” foram delatados por
uma das passageiras do sexo feminino.
Para melhor entendermos esta diferença, mais adiante vou me dedicar a
destrinçar um dos programas referentes aos grupos de turismo “étnico”, qual
seja, o último grupo da tabela, por considerar que este seria um exemplo do
padrão deste tipo de programa. Esta é uma estratégia que nos possibilitará
visualizar melhor quais as representações articuladas pelos turistas que vêm ao
Rio de Janeiro buscar suas referencias “étnicas” na herança africana contida na
cultura brasileira.
Ainda que o objetivo desta dissertação, no seu início, tivesse sido
estritamente focalizar o universo dos grupos de “turismo étnico”, o trabalho de
campo apontou a importância de delimitar também o universo do “turismo
sexual”, pelo fato de parecer que este segundo estivesse sendo confundido com
o primeiro. O intuito deste capítulo foi tentar esboçar os limites existentes entre
estes dois universos distintos, a fim de propiciar uma melhor demarcação
daquele ao qual este trabalho se refere em primeiro plano: o “turismo étnico”.
78
3 - O TURISMO “ÉTNICO” NO RIO DE JANEIRO
Fig. 08 – Dentro de um ônibus de turismo
Parece estranho para um brasileiro pensar a dinâmica de um mundo
racialmente polarizado, quando esta é a percepção de mundo que o “etnoturista”
traz consigo. Este é, na realidade, o desafio que enfrenta o trade turístico
carioca no que diz respeito à confecção de roteiros ditos “afro-brasileiros” para
os “negros” norte -americanos. Nunca tinha me passado pela cabeça um ônibus
somente com turistas “negros”, tal qual a foto apresentada acima! Tampouco
passa pela cabeça dos brasileiros em geral que tal configuração seja possível,
pelo menos não no Brasil. Isto resulta em uma tensão: de um lado está o
mercado “afro-americano” com sua visão racial bipolar do mundo e interessado
na herança africana (significa dizer “negra”) do Brasil; e do outro lado, o trade
79
turístico carioca que, balizado pelo “ideal de democracia racial” no qual
acreditam os brasileiros, enfrenta o desafio de acomodar as demandas do
mercado “afro-americano”, entendidas algumas vezes como racistas e
indesejáveis, e defendendo princípios culturais nacionais.
Apesar do estranhamento dos brasileiros ao modo de relações raciais bipolar
norte-americano, não menos estranho é para um “etnoturista” norte -americano
entender o ideal de democracia racial brasileiro. Segundo eles, mais difícil ainda
é ver um país como o Brasil, onde é suposta a existência de uma igualdade
racial, e que, no entanto, revela enormes desigualdades econômicas que podem
ser explicadas através de uma leitura racializada. Neste capítulo, procuro
dimensionar esta tensão proposta, utilizando dois exemplos: de um lado uma
possível percepção desta tensão pelo trade carioca e, do outro, a dos
“etnoturistas” norte -americanos.
80
3.1 A configuração da tensão
Todos os grupos que fizeram parte do meu campo, deixaram claro o
descrédito e a desco nfiança com os quais a maioria dos “etnoturistas” norteamericanos vêem a idéia de “democracia racial brasileira”. Como diria o
antropólogo Peter Fry: “As representações não são menos reais que as relações
sociais”73. Ao partirmos deste pressuposto, o ideal de “democracia racial”
brasileiro passa a ser tão real quanto a visão de mundo bipolar norte-americana,
no que se refere às “relações raciais”. É intrigante e instigante ao mesmo tempo,
portanto, pensar que a força que atrai estes turistas ao Brasil (a herança africana
na cultura nacional), por eles entendida como “cultura afro-brasileira”, aqui seja
entendida exclusivamente enquanto “cultura brasileira”. Talvez, seja entendida
como “afro-descendente” ou “afro-brasileira” por uma minoria de brasileiros, mas
isto definitivamente não vem a ser regra nacional. Um exemplo disso será o fato
de uma agente viagens, o qual mencionarei no próximo sub-item, ter deduzido
que eu, por ser “negro”, teria mais conhecimento da “cultura afro-brasileira” e
que isto me habilitaria a trabalhar com “etnoturistas”. Conteúdo que ela própria,
apesar de brasileira, parecia desconhecer.
Um outro ponto crucial que está em jogo, é o fato de “localizar” o racismo na
sociedade brasileira, visto que em uma sociedade bipolarizada, o racismo só
pode estar em dois lugares, ao passo que em uma “democracia racial” o racismo
pode estar em qualquer lugar. Mais que isso, numa sociedade que condena o
racismo como o Brasil, ele pode estar camuflado. O que significa dizer que pode
estar em algum lugar qualquer... e não localizável.
Dito isto, uma das etapas mais difíceis das minhas excursões com os “afroamericanos” é explicar a não existência de uma sociedade exclusivamente “afrobrasileira”. No grupo da estação de rádio KJLH do meu trabalho de campo,
sobre o qual me debruçarei no sub-item 3.3, ficou claro que a pergunta -chave
para eles era:
73
Ver Fry, P. (1996:126).
81
“Por que os ‘negros’ brasileiros parecem estar tão defensivos à
idéia de existência de uma cultura afro-brasileira?”
Grupo KJLH
Para que o leitor possa acompanhar meu raciocínio, no que diz respeito à
relevância da demarcação racial para os “negros” norte -americanos, mostro, no
“Anexo 1”, cópias de algumas fichas preenchidas para registro nos hotéis, nas
quais, ao declararem suas nacionalidades, os hóspedes escreveram: “AfricanAmerican”, “Black” e “Black USA”.74 E para complementar a compreensão deste
“Black USA”, coloco, no Anexo 2, o mapa dos EUA, retirado do website do
governo norte-americano, sobre o censo de 2000, em que é possível visualizar a
demografia da América “negra”. Ou seja, estes são turistas para os quais existe
um universo “afro -americano”. E é a partir deste referencial de compreensão de
mundo que esperam encontrar no Brasil não somente uma população “afrobrasileira”, mas um Brasil “negro”.
Afinal, não seria este o país que, fora da
África, possuiria a maior população “afro -descendente” do planeta?
Na realidade, não somente é esperado encontrar um Brasil “negro”, mas,
sobretudo, um país consciente de sua participação em uma diáspora africana da
qual os EUA também fariam parte. A idéia da existência de um “Black USA”,
poder ser bem representada na fala de uma das turistas:
“[...] você já nasce aprendendo a ficar com o seu próprio
povo! Você deve ser o que você é... ser ’negro‘.
Independenteme nte da sua origem (background), mesmo
que seja misturada (mixed), para eles (os ’brancos‘) você é
’negro‘. Portanto, eu escolhi ser ‘negra’! Eu também tenho
origem miscigenada! Mas eu escolhi ser ’negra’!”
Turista do Grupo KJLH
74
FNRH – Ficha Nacional de Registro de Hóspedes, preenchida quando da entrada do hóspede
no hotel. Para exemplificar, ver cópias das fichas preenchidas por alguns turistas pertencentes
aos grupos 16 e 18 (da tabela de trabalho de campo) no anexo 1.
82
Ao refletir sobre a declaração relatada acima, temos um exemplo da tensão
existente nas “relações raciais” nos EUA, a qual produziu uma “cultura afroamericana” em que os “negros” daquele país teriam como referência identitária
sua afro-descendência e na qual, segundo Fry, seria o
ócus classicus do modo
75
bipolar . Essa construção enquanto grupo identitário, no que diz respeito à
projeção no mercado econômico, resultou no aparecimento de uma série de
produtos e serviços criados especificamente para aquela parcela da população.
Como nã o poderia ser diferente, o turismo também criou produtos para atender
a este tipo de demanda. Os chamados roteiros étnicos seriam produtos que
teriam seus interesses centrados nas raízes e referências africanas, tanto nas
Américas quanto na própria África. O Brasil entra no mapa de destinos étnicos
afro-descendentes principalmente através de duas cidades: Salvador e Rio de
Janeiro.
O Rio de Janeiro, curiosamente, a princípio não seria pensado como um
destino do turismo étnico, dito “afro -brasileiro”. Salvador seria a cidade
possuidora do estereótipo em que
uma “verdadeira cultura afro -brasileira”,
latente e explícita, seria encontrada 76. Obviamente que o fato da visibilidade em
Salvador, das tradições compreendidas pelos “negros” norte-americanos como
“afro-brasileiras”, fazem com que sua cultura local seja mais facilmente
transformada em produto turístico. No entanto, o fato de ser um portão de
entrada para o turismo nacional, combinado com a fama enquanto destino
turístico tradicional, faz com que o Rio seja combinado com Salvador na maior
parte dos pacotes que trazem “negros” norte -americanos ao Brasil. Afinal,
segundo Celso Castro, o “Zé Carioca” teria sido um dos personagens-símbolo
“do impacto que o investimento político e cultural americano trouxe para a
imagem do Brasil no exterior” durante a Segunda Guerra Mundial77. Ou seja,
como roteiro étnico ou não, a cidade do Rio de Janeiro e os cariocas fazem
75
Ver Fry, P. (1996:133).
Pinho, P. (2002) afirma que: “O desejo de encontrar a ‘cultura negra original’ tem desviado os
etno-turistas do trajeto predominante no Brasil, que normalmente concentra os turistas
internacionais nos cartões postais do Rio de Janeiro”. Já vimos que em lugar de serem
“desviados” para a Bahia, esses turistas combinam em seus roteiros as duas cidades.
77
Ver Castro, C. (2001:122).
76