Rituais de passagem nas escola brasileiras

Transcrição

Rituais de passagem nas escola brasileiras
RITUAIS DE PASSAGEM NAS ESCOLAS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS:
CAMISETAS DE FORMATURA
Ao longo das duas últimas décadas exercitando a função de docente no Ensino
Fundamental, em uma escola pública do Estado de São Paulo, tenho constatado,
empiricamente, um fenômeno peculiar que ocorre de modo cada vez mais acentuado
tanto em escolas públicas quanto em escolas privadas. Alunos que estão prestes a
concluir seus estudos na última série do Ensino Fundamental e Ensino Médio se
dedicam a escolher uma camiseta que possa representar sua turma, a fim de
manifestar para a escola e para a sociedade em geral que estão próximos da
conclusão de uma etapa de seus estudos.
Eles empenham-se como nunca em escolher o texto que será inserido na
camiseta, a imagem que identificará o grupo, assim como a cor que será utilizada em
sua confecção. Nesse processo, reuniões são realizadas, debates são proferidos, o
design e a mensagem são avaliados pelo diretor para eventual autorização e, após
todo esse processo, passam a exibir orgulhosamente, dentro e fora da escola, o fruto
de seus esforços.
Esse fenômeno se tornou tão comum que praticamente compõe um dos
elementos previsíveis e naturais que ocorrem ao longo da realização da trajetória
escolar, como o ato de se levar à escola os apetrechos de estudo, vestir uniformes
escolares, a existência de giz e louza, bem como manifesta tão somente mais um dos
“modismos” ou desdobramentos culturais da sociedade atual.
Contudo, ao lidar empiricamente com esse fenômeno, verificar seu processo de
produção e seu produto final, fui assaltado por uma inquietação investigativa, a qual
me apontava a possibilidade de que o banal talvez necessitasse de eventual
“desbanalização”.
Os motivos que me levaram a aventar essa possibilidade foram muitos e,
dentre eles, eu citaria os aspectos singulares presentes nesse fenômeno, ou seja, que
o diferenciam dos eventos quotidianos citados a pouco e que se encontram presentes
na escola, são eles:
•
Acontece em um momento de transição do status (saída de um nível de ensino
para outro) do aluno dentro da escola.
•
Para que o produto final (camiseta) seja produzido, realizam-se processos de
diálogo e discussão para sua escolha, e os alunos envolvem quase sempre
toda a turma que compõe a respectiva série/sala nesses processos.
•
É escolhida uma mensagem, imagem ou ambas para identificar o grupo de
alunos em detrimento dos demais que se encontram numa etapa diferente do
ensino ou daqueles que passam pela mesma circunstância e estão também
produzindo suas próprias camisetas.

A fim de que esse objeto se concretize dentro do espaço escolar, é necessário
que os agentes instituicionais portadores de autoridade (professores, diretores
da escola etc.) se posicionem, aprovando ou reprovando esse objeto.

Os criadores desse objeto passam a exibi-lo nos espaços sociais como meio de
identificação da situação particular em que se encontram.
Também considero relevante investigar quais são os discursos visuais e
textuais apresentados, pois, se essa vestimenta é produzida com a intenção de
comunicar algo a respeito de quem a criou e esse alguém se encontra nesse momento
específico de mudança em seu status escolar, certamente ela pode ser um
instrumento pertinente para se verificar o que os sujeitos envolvidos nesse processo
desejam comunicar e, portanto, torna-se documento portador de conteúdo com
informações sobre esses sujeitos.
Tendo como referência esses aspectos, apresentarei ao longo deste texto os
quesitos que considero relevantes, para que se possa justificar uma pequisa que
desenvolvo nesse momento (2014) e delinear em linhas gerais quais instrumentos
metodológicos serão utilizados para realizá-la adequadamente.
Para justificar a possibilidade de que esse projeto de pesquisa tenha certa
relevância acadêmico-científica, apresento, a seguir, alguns aspectos que me
amparam e me levam a propor esse tema de investigação:
Originalidade do projeto: realizei em janeiro de 2012 uma pesquisa na rede
mundial de computadores a respeito desse processo de construção das camisetas de
formatura e, mais especificamente, nos portais dedicados ao armazenamento e
divulgação de trabalhos científicos Scielo e Google Scholar.
Na oportunidade, fiz uso das palavras-chave (em português e inglês):
camisetas, discursos e escola, vestimenta, comunicação, rituais de passagem,
sociedade, escola. No entanto, não foi encontrada nenhuma publicação que tenha
tratado desse tema.
A única produção que encontrei e que possue uma certa proximidade com o
quero investigar é a de Cox e Dittmar (1995). Nela, os pesquisadores investigaram
como estudantes ingleses escolhem as roupas a partir de suas funções e respectivas
relações de satisfação ou insatisfação, tendo como elemento comparativo o gênero
dos estudantes.
Desse modo, constatei que até este momento não há nenhuma pesquisa que
aborde algo semelhante ao que me propus a realizar e, diante disso, considero este
projeto original.
Fundamentação científica e filosófica: tendo como referência o processo de
produção dessas camisetas e sua manifestação discursiva, constatei, nesses dois
aspectos, duas possíveis abordagens cujas categorias de análise poderiam ser
utilizadas para a investigação desse fenômeno.
A primeira delas, de cunho científico, advém da antropologia social e assentase na categoria investigativa que trata dos rituais de passagem ou iniciação. Essa
categoria, que tem nos trabalhos de Arnold Van Gennep (2011) sua fundamentação
epistemológica, defende a possibilidade desses rituais, de modo que o uso de
vestimentas em momentos específicos da vida, permeado por certos procedimentos
explicitados nessa teoria, poderia vir a constitui-los.
Amparado por essas considerações de Gennep e de outros autores, como
White (2009); Christopher, Mahdi e Meade (1996); Bosko (1986); Berlo, Dewyer e
Schevill (1996), que identificam a utilização de roupas como elemento ritualístico,
acredito que alguns dos aspectos envolvidos na produção dessas camisetas possuem
certas particularidades semelhantes àquelas propostas por esses autores e sustento a
possibilidade de analisar esse fenômeno, referenciando-me em sua respectiva filiação
teórico-científica.
Pode-se dizer que esta proposta possui relevância científica, pois, se
confirmada tal possibilidade, teremos uma manifestação de ritual de passagem que
surgiu recentemente e, devido a essa condição, necessita ser investigada naquilo que
possui de particular e original.
A segunda fundamentação assenta-se na Filosofia e, embora saibamos, tal
como proposto por Edmund Russel (2014), que essa área do saber humano possue
particularidades que a diferenciam da Ciência, temos certeza de que suas produções
têm orientado e direcionado reflexões a respeito da sociedade e do homem na
atualidade, o que a torna um instrumento valoroso na tentativa de se desvendar esse
fenômeno.
Especificamente em relação ao nosso objeto de estudo, verifiquei na produção
dos filósofos da Escola de Frankfurt e, em especial, nas produções de Theodor Adorno
(2002) a presença da categoria intitulada indústria cultural, e esta, como bem
sabemos, busca desvelar o fenômeno da posse, criação e venda de produtos que
possuem como característica apresentar discursos de ordem cultural e sua
transformação em objetos de consumo.
Além disso, a manifestação dessa indústria não se dá tão somente no espectro
dos produtos culturais típicos (música, literatura, pintura etc), mas também se
apresenta no objeto de investigação ora em andamento, posto que se manifesta nas
vestimentas que utilizamos em nosso cotidiano (BIETTI, 2012, p. 2).
Assim, embora eu possa analisar esse fenômeno por meio desses dois
possíveis caminhos investigativos, optei por me apoiar na antropologia social, pois
considero a eventual existência de um novo ritual de passagem uma possibilidade de
maior relevância científica.
Delimitada a fundamentação de que farei uso nessa investigação, convém
agora apresentar as justificativas que me levaram a investigar esse fenômeno. Essas
justificativas se caracterizaram por apresentar a possibilidade de que os benefícios
desta pesquisa não se limitam ao campo de investigação do qual faço uso, mas
também podem beneficiar outros campos.
Campo político: nos contatos empíricos que tive com a produção desse
objeto, verifiquei que há atores diferentes envolvidos nele. Os atores a que me refiro
são os alunos, professores da escola e diretores. Para se alcançar o produto final
desse processo, realizam-se negociações entre esses atores, relações de autoridade
são exercitadas na censura ou aprovação das camisetas pelos alunos, assim como
ocorrem, vez ou outra, processos de ruptura dessa ordem hierárquica.
Esses processos são de ordem eminentemente política e remetem ao que
Michel Foucault intitulou como exercício da microfísica do poder (1984), pois neles
temos tacitamente apresentadas as cinco características da concepção jurídicodiscursiva, as quais, segundo Dávila (1993, p. 392-393), são propostas por Foucault
para a análise do fenômeno político em seu processo embrionário:
•
A relação negativa: a presença do diretor dizendo e impondo o não para
esta ou aquela camiseta.
•
A insistência da regra: no momento de seleção da camiseta, ocorre sempre
a decisão da autoridade a respeito do que se pode ou não fazer.
•
O ciclo de proibição: a chamada “lei de proibição”, em o aluno é obrigado a
renunciar a si mesmo e se submeter a essa lei.
•
A lógica da censura: ao lidar com a escolha do aluno, aparece na decisão
da autoridade aquilo que não pode ser formulado junto, os tabus que não
podem ser tratados.
•
A uniformidade do aparato: a dominação social em sua plena forma, pois o
aceitável e permitido é visto de modo consistente e uniforme; desse modo,
afirma-se a esfera do geral e o que é correto, cabendo ao aluno sua total
submissão e obediência.
Assim, considero importante examinar essa faceta do exercício do poder,
identificar seus autores, suas possíveis vítimas e, por meio dessa ação, oferecer
eventuais insights investigativos para os pesquisadores que se dedicam a lidar com
esse campo de investigação.
Campo cultural: ao me propor a realizar esta pesquisa, considero como digna
de nota a possibilidade de que ela venha a trazer contribuições sobre o estudo de
nossa cultura contemporânea brasileira e, em especial, investigações sobre a história
da educação, manifestada na categoria de análise intitulada cultura escolar (FARIA
FILHO, 2004).
Considero justificável essa possibilidade, levando em conta que meu objeto de
estudo (ritual de passagem) é considerado um dos elementos que compõem o rol de
fenômenos a serem investigados na cultura escolar, pois, segundo Viñao Frago (2006,
p. 73, grifo meu):
A cultura escolar, assim entendida, estaria constituida por um
conjunto de teorias, ideias, principios, normas, pautas, rituais,
inercias, hábitos e práticas (formas de fazer e pensar, mentalidades e
comportamentos) sedimentadas ao longo do tempo em forma de
tradições, regularidades e regras do jogo não postas em entredito, e
compartilhadas por seus atores, no seio das instituições educativas.
Nessa investigação que estou realizando, constatei que o objeto de estudo é
também fonte de investigação de uma vertente de pesquisa da cultura escolar que
tem:
[...] posto o acento sobre as práticas escolares, a materialidade e
formalidade da cultura escolar [...] De uma forma geral, os estudos
que se concentram nessa vertente, em íntimo diálogo com outros
desenvolvidos na área, têm afirmado o quanto os praticantes da
cultura escolar desenvolvem suas práticas a partir de seus lugares,
de suas posições no interior de um sistema de forças assimétricas.
(FARIA FILHO, 2004, p. 151).
Desse modo, considero-me em condições de afirmar que este projeto possui
fundamentação científica, bem como originalidade acadêmica e será capaz de
proporcionar informações importantes que poderão ser utilizadas em outros campos
de investigação. Agora, apresentarei as técnicas de pesquisa que pretendo utilizar na
investigação desse fenômeno.
O mecanismo de investigação: empreguei como instrumento adequado para
a coleta de dados dessa investigação o uso de entrevistas, mais especificamente, a
entrevista semiestruturada. De modo que fiz a escolha de tal instrumento por
considerar que ele possui as seguintes características:
As entrevistas semi estruturadas são projetadas para ter um número
de questões de entrevista preparadas antecipadamente mas tais
questões preparadas são projetadas para serem suficientemente
abertas de modo que as questões subsequentes do entrevistador não
possam ser planejadas antecipadamente mas devem ser
improvisadas de um modo teorizado e com cuidados. (WENGRAF,
2004, p. 5).
Pretendo elaborar algumas perguntas que possam obter dados sobre o meu
objeto de estudo e que permitam a formulação de novas questões diante das
respostas fornecidas pelo entrevistado; no entanto, com o cuidado de evitar a inserção
das questões de pesquisa nas questões da entrevista, isso porque, seguindo as
considerações de Wengraf, concordo com esse autor, quando ele afirma que:
As questões de pesquisa devem ser distinguidas das respostas da
pesquisa, e o quadro conceitual nos termos no qual as questões da
pesquisa e respostas pois são tantas as necessidades redigidas a ser
identificadas separadamente [...] Em adição, questões de pesquisa (o
qual eu chamo "questões de teoria") necessitam ser claramente
distinguidas de alguma questão-entrevista/termos que você deve
designar ou usar. Questões-Teoria não são questões-entrevistas. A
regra geral que eu gostaria de sugerir – do qual há excessões – é que
você não pergunte normalmente suas questões-teoria para seus
entrevistados. (WENGRAF, 2006, p. 61).
Para que isso ocorra, formularei questões que instiguem os investigados a
fornecerem informações sobre meu objeto de estudo e, dentre estas questões, cito as
que se seguem:

Quais os motivos ques os levam a produzir suas camisetas de formatura?

Qual o critério que usam para a escolha de imagens e textos que serão
inseridos na camiseta?

Como vocês analisam a função do diretor nesse processo e como lidariam
com a possibilidade de que sua camiseta não fosse aprovada pelo diretor
de sua escola?
Embora seja algo previsível, convém que reitere que, em nenhum momento,
lidarei com as questões de pesquisa em minha entrevista e procurarei, por meio das
respostas obtidas nas questões da entrevista, obter dados que me permitam analisar o
fenômeno baseado em meus referenciais investigativos, evitando, com isso, qualquer
indução dos sujeitos pesquisados.
Posso afirmar também que considero a possibilidade de realizar uma entrevista
com o diretor da escola, pois, caso isso ocorra, poderia apresentar dados de como um
outro participante do processo educativo, que exercita uma função de poder e
autoridade no processo de seleção da camiseta, avalia esse fenômeno. Além disso,
essa opção poderá produzir eventuais dados relevantes sobre os aspectos políticos
presentes nessa pesquisa e já citados anteriormente.
Como a produção dessas camisetas se tornou um hábito arraigado em todas as
escolas presentes no município onde realizarei essa pesquisa, pretendo efetuar essas
entrevistas com um representante de classe da oitava série do Ensino Fundamental e
um representante de classe do terceiro ano do Ensino Médio em 50% das escolas da
cidade, o que representará um total de 5 escolas.
Acrescento que o citado município se encontra no interior do estado de São
Paulo, possui uma população de aproximadamente 50 mil habitantes e um índice de
desenvolvimento humano (IDH-M) de 0,825.
Em razão do que foi exposto, considero-me em condições de encerrar este relato
de pesquisa em andamento, informando que me encontro neste momento redigindo as
bases epistemológicas que vão amparar os meus estudos e iniciando os contatos
formais nas escolas que serão investigadas, para a coleta dos dados.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. Indústria cultural e sociedade. Seleção de textos Jorge Mattos Brito de
Almeida. Traduzido por Juba Elisabeth Levy et al.. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BERLO, Janet C. DWYER, Edward B. SCHEVILL, Margot B. Textile traditions of
mesoamerica and the andes. Austin: University of Texas Press, 1996.
BIETTI, Federico. La industria cultural del vestir, hacia una fenomenología de la moda
VII Jornadas de Sociología de la Universidad Nacional de La Plata. “Argentina en
el escenario latinoamericano actual: debates desde las ciencias sociales”. La Plata, 5
al 7 de diciembre de 2012. Disponível em:
<http://jornadassociologia.fahce.unlp.edu.ar>. Acesso em: 10 abr. 2014.
BOSKO, Dan. Why Basotho wear blankets. African Studies, v. 40, n.1, p. 23-32, 1981.
CHRISTOPHER, Nancy G; MAHDI, Louise C; MEADE, Michael. Crossroads: the
quest for contemporary rites of passage. Peru: Open Court Publishing Company,
1998.
COX, Jason. DITTMAR, Helga. The functions of clothes and clothing (dis)satisfactio: a
gender analysis among british students. Journal of Consumer Policy, [s.l.], n. 18,
1995.
DÁVILA, Jorge. Foucault´s interpretative analytics of power. Systems Practice, v. 6, n.
4, 1993.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. et al. A cultura escolar como categoria de análise e
como campo de investigação na história da educação brasileira. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 139-159, jan/abr. 2004
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
GENNEP, Arnold Van. Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 2011.
RUSSEL, Bertrand. A filosofia entre a ciência e a religião. Disponível em:
<http://www.adelinotorres.com/filosofia/Bertrand%20Russel_Filosofia.pdf>. Acesso em
01 jan. 2012.
VIÑAO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares y reformas. Madrid:
Ediciones Morata, 2006. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=64dfkXHPWbIC&oi=fnd&pg=PA8&dq=antonio+vi%C3%B1ao&ots=8TatPinAi&sig=t8y1xsacrb5nxXcEYujm8hqxvas#v=onepage&q=antonio%20vi%C3%B1ao&f
=false>. Acesso em 12 abr. 2014.
WENGRAF. Tom. Qualitative Research Interviewing. Londres: Sage Publications,
2006.