construtivismo social

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construtivismo social
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA Gustavo Arja Castañon CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A CIÊNCIA SEM SUJEITO E SEM MUNDO Rio de Janeiro
Agosto de 2009
Gustavo Arja Castañon CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo Um volume Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação Lógica e Metafísica do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia (Lógica e Metafísica). Orientador: Alberto Oliva Rio de Janeiro, 2009. II
Gustavo Arja Castañon CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação Lógica e Metafísica do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia (Lógica e Metafísica). Aprovada por: ________________________ (Alberto Oliva, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) ________________________ (Antonio Augusto Passos Videira, Doutor, Universidade do Estado do Rio de Janeiro) ________________________ (Marco Antonio Caron Ruffino, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2009. III
Dedico esta dissertação a Nathalie, meu amor, que ao viver ao meu lado faz com que eu me sinta em casa neste mundo insano e sem valores. IV
Agradeço aqui, A meu orientador Alberto Oliva, amigo mais antigo do que gostaria de confessar, que nunca se furtou ao trabalho a ele confiado e me ajudou competente e generosamente na pesquisa para esta dissertação; A meu professor Marco Ruffino, que teve sobre mim influência marcante no curso que ora completo, e que por suas ótimas aulas e estilo direto me ajudou decisivamente a desembarcar na filosofia analítica; Ao professor Antonio Augusto Passos Videira, que aceitou o convite para participar desta banca sem qualquer conhecimento prévio de meu trabalho; Ao Programa de Pós‐graduação em Lógica e Metafísica, que me ofereceu todas as condições necessárias para a conclusão de meu curso sem abrir mão do projeto de construção de uma pós‐graduação com padrões de exigência muito superiores aos usualmente encontrados na filosofia brasileira; A meus pais, sem os quais não estaria aqui hoje e com os quais tenho convivido tão pouco nos últimos seis anos de estudos interruptos; E a minha esposa Nathalie, que tem enfrentado a falta de viagens e lazer que minha sucessão de empreitadas acaba também lhe impondo, sempre com compreensão, ajuda e amor. V
Rien n’est plus dangereux qu’une idée, quand on n’a qu’une idée. Alain VI
RESUMO CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo Social: A ciência sem sujeito e sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Esta dissertação avalia o construtivismo social, abordagem filosófica associada ao strong programme da sociologia da ciência. Os problemas específicos investigados são o da validade de sua classificação como forma de construtivismo e de sua pretensão de fazer da sociologia a única metaciência legítima. A investigação é filosófica e baseia‐se em pesquisa bibliográfica. Para a avaliação dos problemas propostos, começa por um sucinto inventário dos principais tipos de construtivismo contemporâneo (kantiano, piagetiano, radical, lógico, construcionismo social e socioconstrutivismo), concluindo por sua definição como tese epistemológica que defende a rejeição ao objetivismo, que a mente impõe formas prévias à experiência e que nossas teorias sobre o mundo são construções hipotético‐dedutivas. Além disso, conclui que não há implicação necessária entre o construtivismo e o idealismo. Em seguida, avalia as teses do construtivismo social começando por idéias de seus principais precursores, Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend. Identifica suas teses ontológicas principais reconhecendo‐as como a maior fonte de dispersão no movimento, que se divide acerca delas em ao menos duas correntes gerais: um ʹconstrutivismo social epistêmicoʹ e um ʹconstrutivismo social ontológicoʹ, este último, uma variante de idealismo. Já suas teses epistemológicas principais são classificadas como variantes de relativismo, objetivismo sociológico e cientificismo anti‐positivista. Com base nesta descrição, o construtivismo social é criticado com alguns argumentos originais em duas linhas principais. Primeiro por tratar‐se, a despeito de seu cientificismo, simplesmente de mais uma abordagem em filosofia da ciência totalmente dependente das teses filosóficas de seus precursores, além de não usar em nenhum momento, como propugna, métodos científicos adequados para o teste de suas hipóteses. Segundo por não ser, apesar do uso do termo, um construtivismo, uma vez que defende um sujeito passivo na relação com o objeto do conhecimento, consistindo num estranho tipo de objetivismo, no qual o mundo físico não tem papel. Conclui‐se que esta abordagem se afastou profundamente da tradição filosófica construtivista, uma vez que renuncia à idéia de sujeito construtor de suas cognições em prol de uma sociedade que as causa. Além disso, o construtivismo social não só não tem qualquer semelhança com a investigação científica, como sequer pode ser considerado uma teoria filosófica consistente, pois reedita antigas auto‐refutações relativistas e cientificistas, usa de forma descuidada a linguagem e beira em alguns momentos ao irracionalismo. DESCRITORES: CONSTRUTIVISMO SOCIAL, CONSTRUTIVISMO, FILOSOFIA DA CIÊNCIA, SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA. VII
ABSTRACT CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo Social: A ciência sem sujeito e sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. This dissertation evaluates the social constructivism, a philosophical approach associated to the strong programme of sociology of science. The specific problems investigated are those about the validity of its classification as a kind of constructivism and of its pretension of making sociology the unique legitimate metascience. This is a philosophical investigation based on a bibliographical research. For the evaluation of the proposed problems, it begins with a succinct inventory of the contemporary constructivism main variants (kantian, piagetian, radical, logical, social constructionism and socioconstructivism), concluding by its definition as a epistemological thesis that defends the rejection to objectivism, that the mind imposes previous forms to the experience and that our theories on the world are hypothetical‐deductive constructions. Moreover, it concludes that there isnʹt necessary implication between constructivism and idealism. Soon after, evaluates the thesis of social constructivism begining with the ideas of its main precursors, Wittgenstein, Kuhn and Feyerabend. The dissertation identifies its main ontologicals thesis recognizing them as the greatest cause of division on the movement, which is divided in at least two general tendencies: a ʹepistemic social constructivismʹ and a ʹontological social constructivismʹ, this one, an variant of idealism. Its main epistemologicals thesis are classified as variants of relativism, sociological objectivism and anti‐positivist scientificism. Based on this description, social constructivism is criticized with some original arguments in two main lines. First for being itself, in spite of its scientificism, just one more approach in philosophy of science totally dependent of the philosophical thesis of its precursors, besides it doesn’t use in any moment, as it proposes, adequate scientific methods for the test of its hypotheses. Second for not being, in spite of its use of the term, a constructivism, once it defends a passive subject in the relation with the object of knowledge, consisting in a strange kind of objectivism, in which the physical world doesnʹt have role. It concludes that this approach has moved itself away from constructivist philosophical tradition, once it renounces to the idea of a building subject of his cognitions in behalf of a society that causes them. Moreover, the social constructivism doesnʹt have any similarity with scientific investigation, as also it cannot be considered a consistent philosophical theory, because re‐edits old relativists and scientificists auto‐refutations, uses language in a neglected way and in some moments comes closer to irrationalism. KEY‐WORDS: SOCIAL CONSTRUCTIVISM, CONSTRUCTIVISM, PHILOSOPHY OF SCIENCE, SOCIOLOGY OF SCIENCE. VIII
SUMÁRIO 1. – Introdução 01 2. – Construtivismo 10 12 2.2. – Construtivismo em Piaget 19 2.3. – Outros Construtivismos contemporâneos 26 2.1. – Construtivismo em Kant 2.3.1 – Construtivismo Radical 27 2.3.2 – Construcionismo Social 34 2.3.3 – Socioconstrutivismo 41 2.3.4 – Construtivismo Lógico 47 54 2.4. – Definição de Construtivismo 3. – Construtivismo Social 62 3.1. – Caracterização geral 63 71 3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência 3.2.1 – Wittgenstein e a dissolução linguística da epistemologia 71 3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia 79 3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia 89 100 3.3.1. – O que existe para o construtivismo social? 100 3.3.2. – Construção social de quê? 107 117 126 127 3.4.2. – O que é e como se legitima o conhecimento? 133 3.4.3. – O problema do relativismo 137 143 3.3. – Construtivismo Social e Ontologia 3.3.3. – O Construtivismo Social Ontológico 3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia 3.4.1. – É possivel conhecer algo sobre o mundo? 3.4.4. – Qual é a relação entre o sujeito e o objeto? 3.4.5. – Qual é o método científico de investigação da ciência? IX
154 4. – Avaliação crítica do Construtivismo Social 161 162 4.1.1. – A circularidade da pretensão cientificista 162 4.1.2. – Não existe descritivismo puro 166 168 4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia 4.1.3. – Mais do mesmo: CS é a Nova Filosofia da Ciência 4.2. – Uma investigação sem método 171 4.3. – Um construtivismo sem sujeito 180 4.4. – Uma ciência sem mundo 185 4.5. – Um conhecimento sem verdade 198 5. – Conclusão 208 Referências Bibliográficas 217 X
Capítulo 1 Introdução O tema abordado aqui é o do construtivismo social contemporâneo, conjunto de teses filosóficas associadas ao strong programme da sociologia da ciência. Os problemas específicos investigados sobre o tema são o da validade de duas teses dessa abordagem. A primeira é sua alegação de que é uma abordagem construtivista, a segunda sua pretensão de fazer da sociologia não só uma disciplina metacientífica, como ainda a única reconstrução metacientífica legítima. Esta investigação é de natureza filosófica e se baseia em fontes primárias e secundárias selecionadas através de pesquisa bibliográfica conduzida principalmente nas bases de dados SSCI e Philosopherʹs Index. Sua necessidade se dá uma vez que nos últimos anos assistimos a uma proliferação da utilização do termo construtivismo, não somente na filosofia, mas também na psicologia, educação, neurociência, lógica, matemática e, particularmente, sociologia. Não há, até hoje, nenhuma pesquisa em larga escala de todas essas alegações de construtivismo (ROCKMORE, 2005), 1
portanto, nenhum consenso sobre a definição do termo pode ser alcançado de forma completa. No entanto, se o tomamos em seu significado tradicional – posição que defende o papel ativo do sujeito na sua relação com o objeto do conhecimento e na construção de suas estruturas cognitivas e representações da realidade – vemos que diversas posições autodenominadas ‘construtivistas’ assumem teses que contrariam o espírito original dessa tradição filosófica. Assistimos hoje, sob o abrigo do termo ‘construtivismo’, uma multiplicação de posições que identificam essa tese com o anti‐
realismo, atacando o pressuposto do realismo ontológico que está na base do pensamento científico moderno. Algumas dessas posições inclusive consideram o sujeito um elemento passivo do processo de “construção” do conhecimento. Esta dissertação realiza uma investigação dos pressupostos filosóficos de uma das mais influentes utilizações contemporâneas do termo, o Construtivismo Social de Barry Barnes e David Bloor, também denominado às vezes socioconstrutivismo ou tese forte da sociologia da ciência, assim como rastrear suas origens filosóficas. Atualmente, outras influentes utilizações do termo são efetuadas pela epistemologia genética de Jean Piaget (o construtivismo piagetiano), pelo construcionismo social (abordagem pós‐moderna da psicologia social), pelo construtivismo radical (tese filosófica que espalha sua influência por setores da educação, psicoterapia e neurociência), pelo socioconstrutivismo (abordagem da psicologia social e do desenvolvimento) e pelo construtivismo lógico. No entanto, estas utilizações só serão abordadas nesta investigação a título de delimitação do conceito geral de construtivismo e diferenciação em relação ao construtivismo social. 2
A visão tradicional do conhecimento científico o concebe como produto de uma atividade de investigação que só aceita dois tipos de veredicto: o da lógica e o da experiência. O construtivismo social representa uma aberta e radical oposição a essa visão, e questiona o pressuposto de que a ciência possui uma racionalidade intrínseca para atribuir‐lhe o estatuto de uma construção social como qualquer outra. Uma vez que esta espécie de relativismo exerce influência cada vez maior nos meios acadêmicos brasileiros, particularmente nos cursos de pedagogia, faz‐se necessária uma investigação pormenorizada de seus pressupostos. O sociologismo e o historicismo característicos do construtivismo social, que é uma variante da filosofia pós‐moderna, disseminam a idéia de que são as relações de poder e os interesses políticos que determinam a aceitação ou a rejeição de teorias científicas. A questão aqui é, portanto, definir se a análise filosófica pode determinar a racionalidade da investigação científica, reconstruindo‐a epistemicamente, ou se este papel caberia aos estudos voltados para a identificação dos aspectos políticos e sociais desta atividade. 1.1 – Delimitação do Problema Os problemas específicos a serem objeto de investigação filosófica dentro do tema escolhido podem ser definidos através de duas perguntas: P1) O construtivismo social é construtivista? P2) O construtivismo social pode ser formulado como uma metaciência consistente? 3
Podem‐se ainda desmembrar os problemas acima com as perguntas: P1a) Como definir construtivismo? P1b) Qual o papel do sujeito no processo de construção do conhecimento para o construtivismo social? P1c) O que, para esta abordagem, se pode conhecer? Em segundo lugar temos que perguntar: P2a) A imagem de ciência oferecida pelo construtivismo social é consistente? P2b) A pretensão de independência em relação à filosofia da ciência que apresenta o construtivismo social é sustentável filosoficamente? Assim, a análise desses problemas passa por três questões intermediárias fundamentais, que determinarão a seqüência lógica do desenvolvimento da dissertação: Primeira, o que é construtivismo e quais são suas raízes filosóficas? Ou seja, qual é a história filosófica da elaboração deste conceito? Aqui, particularmente, se procurará estabelecer o conceito de construtivismo com o qual trabalharemos na dissertação e responder se há uma implicação necessária entre o construtivismo e o idealismo. Segunda, quais são as abordagens filosóficas ou teóricas contemporâneas que usam o termo ‘construtivismo’ para se identificarem? Em que sentido elas se afirmam construtivistas? Que posições assumem frente ao realismo ontológico, à relação com o objeto do conhecimento e à atividade do sujeito? 4
Terceira, quais são as teses adotadas pelo construtivismo social? Quais são suas posições ontológicas e epistemológicas? Como se distingue de outras alegações de construtivismo contemporâneas? Assim, se estabelecerão as condições necessárias para a formulação de uma resposta aos dois problemas investigados pela dissertação, o do caráter construtivista e o da consistência do construtivismo social. 1.2 – Hipóteses As hipóteses que serão investigadas aqui referentes aos problemas primários e secundários acima propostos são, começando pela hipótese geral, as seguintes: O construtivismo social é simplesmente mais uma abordagem em filosofia da ciência derivada de idéias surgidas da obra do segundo Wittgenstein e de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Não pode ser considerada construtivista, pois defende uma imagem de sujeito passiva na relação com o objeto do conhecimento, se constituindo num tipo de objetivismo, e em suas versões mais radicais, num estranho caso de idealismo sem sujeito. A renúncia à concepção construtivista de sujeito construtor de suas cognições em prol de uma sociedade que constrói os sistemas de crenças, caracteriza uma posição que, utilizando‐se do termo construtivismo, se afastou profundamente dessa tradição filosófica. Esta hipótese geral é sustentada por três hipóteses auxiliares: 5
Primeira: Apesar de encontrarmos traços precursores do construtivismo na filosofia socrático‐platônica, assim como em autores como Epicteto ou ainda Vico, o construtivismo é tese característica da filosofia contemporânea, sendo derivado da obra de Kant. É um equívoco grave a construção artificial de supostas polaridades entre realismo e construtivismo e entre objetivismo e relativismo. De fato, as polaridades existentes são as estabelecidas entre objetivismo e construtivismo (em relação à questão da origem do conhecimento), realismo e idealismo (em relação à questão da natureza do objeto), e criticismo e relativismo (em relação à questão da possibilidade do conhecimento). Com base nestas posições, devem ser avaliadas todas as reivindicações de construtivismo filosófico, que se define necessariamente pela rejeição ao objetivismo, mas pode oscilar entre o realismo e o idealismo, e entre o criticismo e o relativismo. Segunda: o construtivismo depende de uma concepção ativa de sujeito do conhecimento, como construtor primeiro de intuições sensíveis e depois de hipóteses causais. Assim, considera‐se o construtivismo social como não‐construtivista, uma vez que dissolve o conceito de sujeito ativo no processo de construção do conhecimento. Assim, tanto a primeira quanto a segunda hipótese auxiliar afirmam que não há vinculação necessária entre construtivismo e idealismo. Terceira: o construtivismo social é inconsistente por tentar colocar no âmbito da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Ainda, em sua vertente mais radical que rejeita o realismo ontológico, o construtivismo social faz das concepções socialmente construídas da realidade a única e própria realidade, 6
afastando‐se assim dos limites da sociologia do conhecimento tradicional e entrando no terreno do pós‐modernismo. Além disso, esta corrente se sustenta flagrantemente em concepções derivadas das obras de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend, sendo, portanto, dependente da filosofia da ciência e incapaz de erigir‐se como a disciplina metacientífica auto‐suficiente. 1.3 – Estrutura da dissertação No capítulo dois, que se segue a esta introdução, serão definidas as teses ontológicas e epistemológicas centrais do construtivismo contemporâneo. Será exposta a origem das teses construtivistas contemporâneas em Kant e na abordagem que introduziu o termo no século XX, a Epistemologia Genética de Jean Piaget. Posteriormente, serão avaliados os usos contemporâneos do termo pelo construtivismo radical, construcionismo social (que não se deve confundir com o construtivismo social), socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Finalmente, com base nas posições investigadas, será estabelecido o que há de comum entre as correntes e que, desse modo, poderia caracterizar de um modo menos controverso o construtivismo como um todo. No capítulo três serão apresentadas as principais teses do construtivismo social, com especial ênfase nas ontológicas e epistemológicas. Começa com uma sumária contextualização e apresentação conceitual do construtivismo social, para 7
logo depois abordar algumas idéias de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend que tiveram influência fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens do capítulo serão dedicados a uma avaliação cuidadosa das teses ontológicas e epistemológicas do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito de consensual e o que há de divergência entre as correntes e principais proponentes do autodenominado “strong programme”. No quarto capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social, das quais duas pretendem ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito ao fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da filosofia, o construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente e praticada sem rigor algum. A segunda diz respeito ao fato de que os métodos usados pelo construtivismo social para investigar cientificamente a ciência não são científicos e são incapazes de testar alegações acerca de relações de causa e efeito, fato este que aparentemente nunca foi abordado na literatura sobre o strong programme. A terceira é a de que o construtivismo social não é estrito senso uma variante de construtivismo, não faz parte dessa tradição do pensamento ocidental, pois não existe, para esta abordagem, um sujeito ativo. A quarta, é que ela defende uma das teses mais descabidas da história da filosofia da ciência, a de que o mundo não faz diferença na obtenção de conhecimento científico. Por fim, abordarei novamente o problema do relativismo e da definição de conhecimento adotada por essa vertente, criticando as consequências de se rejeitar a verdade como ideal normativo. 8
Por fim concluo a dissertação recapitulando os motivos que me levam a acreditar que as hipóteses expostas nesta introdução foram bem fundamentadas, além de chamar a atenção para os potenciais efeitos práticos danosos do construtivismo social. 9
Capítulo 2 Construtivismo Neste capítulo serão definidas as teses centrais do construtivismo contemporâneo, com o objetivo de estabelecer o quanto o Construtivismo Social as assume. Para tal, serão avaliados os principais usos contemporâneos do termo a fim de esclarecer como se posicionam em relação a três questões. A primeira é ontológica: Q1) Existem objetos independentes da mente humana? À posição que dá uma resposta afirmativa a esta questão chamaremos realismo ontológico, e uma resposta negativa, idealismo. A segunda e terceira a se averiguar é como as abordagens construtivistas se posicionam quanto às questões epistemológicas: Q2) É possível conhecer algo sobre os objetos que existem independentemente da mente?; Q3) Qual é a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento? Quanto à Q2, as respostas serão classificadas em três posições: dogmatismo (é possível conhecer o objeto em si mesmo), criticismo (é possível conhecer o modo como os objetos afetam nossas representações sensíveis) e 10
ceticismo (não é possível conhecer nada sobre os objetos reais). As respostas à Q3 serão classificadas como objetivistas (o objeto determina em nós as representações que temos dele) ou construtivistas (nós construímos nossas representações do objeto). Será evitado durante a dissertação, na construção de argumentos próprios, o uso dos termos realismo e idealismo para quaisquer outras posições que não as ontológicas, sejam epistemológicas, semânticas ou axiológicas. Procurarei fundamentar a hipótese de que grande parte da confusão que cerca a utilização do termo ‘construtivismo’ é devida a utilização dos termos ‘realismo’ e ‘idealismo’ em sentido epistemológico (é possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais) e semântico (a verdade é ou não uma relação objetiva entre o mundo e a linguagem). Começaremos pela exposição da origem das teses construtivistas contemporâneas em Kant e pela abordagem que introduziu o termo no século XX, a Epistemologia Genética de Jean Piaget. Posteriormente, avaliaremos os usos contemporâneos do termo sucessivamente na abordagem do construtivismo radical, construcionismo social (que não se deve confundir com a tese forte da sociologia da ciência, o construtivismo social, objeto desta dissertação que não será abordado neste capítulo), socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Finalmente, com base nas posições investigadas, será estabelecido o que há de comum entre as correntes e que portanto poderia caracterizar de um modo menos controverso o construtivismo como um todo. 11
2.1 – Construtivismo em Kant O termo ‘construtivismo’ tem origem no verbo latino struere, que significa organizar, dar estrutura. Assim, desde sua origem esta palavra assume implicitamente a existência de um sujeito que organiza. A diferença é clara quando a comparamos com o verbo ‘formar’, ou quando comparamos o termo ‘construção’ com o termo ‘formação’. Uma estrutura que se forma, não pressupõe um sujeito que a organiza. Uma estrutura que se constrói, pressupõe a atividade de um sujeito. Ainda que muitas vezes encontremos referências ao suposto caráter precursor da filosofia de Sócrates em relação ao construtivismo, ou ainda de Epicteto, de Vico, ou até da teoria platônica da hipótese superior, para uma correta compreensão desta corrente de pensamento na filosofia contemporânea é necessário recorrer à obra de Immanuel Kant. A inversão do sentido da relação entre sujeito e objeto presente na obra de Kant é usualmente (BROUWER, 1983; HACKING, 1999; MAHONEY, 2004; PHILLIPS, 1995; RYCHLAK, 1999; ROCKMORE, 2005; VON GLASERSFELD, 1984;) considerada a raiz do construtivismo contemporâneo. Tradicionalmente, a filosofia ocidental pensava o conhecimento como uma determinação do sujeito cognoscente pelo objeto conhecido. Kant (2001) apresenta o processo de conhecimento como a organização ativa por parte do sujeito do material disperso e fragmentário que nos é fornecido pelos sentidos, impondo a este as formas da sensibilidade e as categorias do entendimento. Ou seja, para o construtivismo, o sujeito constrói suas 12
representações dos objetos, e não recebe passivamente impressões causadas por estes. O sujeito para o construtivismo é proativo, é foco de atividade do universo, e não um recipiente passivo de estímulos do ambiente. O construtivismo só pode ser adequadamente compreendido a partir da idéia que Kant chamou de “grande luz” e que de fato condicionou toda produção filosófica posterior à sua obra. Esta é a distinção entre fenômeno e númeno. Para Kant, o conhecimento sensível não nos revela as coisas como são, e sim, como aparecem para o sujeito. Por isso nos dão acesso a fenômenos. Já o conhecimento intelectivo é faculdade de representar aqueles aspectos das coisas que, por sua própria natureza, não podem ser captados por meio dos sentidos, os númenos. São conceitos do intelecto, por exemplo, os de possibilidade, existência, necessidade e semelhança, que não derivam dos sentidos. Assim, o que conhecemos do mundo são fenômenos, não númenos. Conhecemos o aparecer das coisas para nossa consciência, não a essência daquilo que acreditamos estar fora de nós: ‘fenômeno’, ordinariamente, significa ‘aparição’. Isso não implica, obviamente, que não há um mundo lá fora, mas somente que não temos acesso ao que este mundo é em si mesmo. As classificações corriqueiras de Kant como idealista são equivocadas e foram de resto contestadas pelo próprio. Nos “Prolegômenos” ele reapresenta sua posição sobre a questão do idealismo de forma inequívoca: O idealismo consiste na afirmação de que não existem outros seres excepto os seres pensantes; as restantes coisas, que julgamos perceber na intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes a que não corresponderia, na realidade, nenhum objecto exterior. Eu, pelo 13
contrário, afirmo: são‐nos dadas coisas como objectos dos nossos sentidos e a nós exteriores, mas nada sabemos do que elas possam ser em si mesmas; conhecemos unicamente os seus fenômenos, isto é, as representações que em nós produzem, ao afectarem os nossos sentidos. Por conseguinte, admito que fora de nós há corpos, isto é, coisas que , embora nos sejam totalmente desconhecidas quanto ao que possam ser em si mesmas, conhecemos mediante as representações que o seu efeito sobre a nossa sensibilidade nos procura, coisas a que damos o nome de um corpo, palavra essa que indica apenas o fenômeno deste objecto que nos é desconhecido, mas nem por isso, menos real. Pode a isto chamar‐se idealismo? É precisamente o seu oposto. (KANT, 2003, p.58) Para Kant (2001), nossa mente tem uma estrutura dada, que enquadra os dados da experiência em suas formas e categorias a priori. Desta forma, só podemos conhecer em si mesmos aqueles conceitos que são resultado de uma especulação racional. E é na busca pela condição de possibilidade da ciência matemática que o termo ‘construção’ começa a ser utilizado em Kant. Para ele, a ciência em geral se basearia num tipo de juízo que a um só tempo acrescenta algo de novo ao sujeito (sintético) e também não depende da experiência, ou seja, é universal e necessário (a priori): este é o juízo sintético a priori. Todo Prolegômenos e toda Crítica da Razão Pura gravitam em torno deste problema central. Encontrar o fundamento do conhecimento, para Kant, é explicar como são possíveis juízos sintéticos a priori. Os juízos sintéticos a priori unem a aprioridade, ou seja, universalidade e necessidade, com a fecundidade, ou seja, a sinteticidade. Exemplos seriam as operações aritméticas, os juízos da geometria (como por exemplo, todo triângulo tem sua área calculada em função de sua base multiplicada por sua altura e dividida por 14
dois) e os juízos da física (em todas as mudanças do mundo físico a quantidade de matéria permanece invariada). Nestes conceitos, ultrapassamos o conceito de triângulo ou de matéria para acrescentar‐lhes a priori algo que não pensávamos nele. Assim temos três tipos de juízos, e três fundamentos diferentes para eles. A verdade ou falsidade de um juízo analítico a priori é determinada pelo princípio da identidade e da não‐contradição uma vez que o sujeito e o predicado se equivalem, ou seja, pela lógica. A verdade ou falsidade de um juízo sintético a posteriori é determinada pela experiência sensível. Por fim, temos que responder qual é o fundamento do juízo sintético a priori. Para Kant (2003), é a capacidade de construção que torna possível o juízo sintético a priori, e portanto, a matemática. Esta precisa ter como fundamento uma intuição pura, “na qual ela possa representar todos os seus conceitos in concreto e, no entanto, a priori, ou, como se diz, construí‐los” (KANT, 2003, p. 48). Quando demonstramos um teorema em geometria, compreendemos que não devemos seguir passo a passo aquilo que se vê na figura nem nos apegarmos ao simples conceito desta para apreender suas propriedades. O que devemos fazer é pensar e representar, por nossos próprios conceitos, o objeto geométrico em questão, ou seja, construí‐lo. Construindo este objeto, podemos saber com segurança alguma coisa a priori (independentemente da experiência), pois sabemos não atribuir a este objeto senão aquilo que nós próprios colocamos nele: 15
Aquele que primeiro demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminação; descobriu que não tinha que seguir passo a passo o que via na figura, nem o simples conceito que dela possuía, para conhecer, de certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria produzi‐la, ou construí‐la, mediante o que pensava e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer, com certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir‐lhe senão o que fosse consequência necessária do que nela tinha posto, de acordo com o conceito. (KANT, 2001, 17) Mas e quanto aos objetos presentes no mundo? Afirma Kant (2001) na Crítica que a razão vê só aquilo que ela própria produz segundo seu projeto, e que, com os princípios dos seus juízos ela deve estar à frente e obrigar a natureza a responder às suas perguntas. Caso contrário, se feitas ao acaso e sem um plano prévio, nossas observações não reconheceriam nem se ligariam entre si, portanto, não construiriam relações que unissem estes fenômenos na forma de leis. A razão procura na natureza o que põe nela, e necessita de um plano, ou seja, uma hipótese prévia: ...a razão só entende o que produz segundo seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder suas indagações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a experimentação, que imaginou segundo estes princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta. Assim, a própria Física tem que agradecer a revolução, tão proveitosa, do seu modo de pensar unicamente à idéia de procurar na natureza (e não imaginar), de acordo com o que a razão nela pos, o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber... (KANT, 2001, p.18) 16
Nesta passagem, Kant nos apresenta o que será posteriormente a essência do construtivismo e da revolução que ele provoca. Até então, se havia tentado explicar o conhecimento supondo que era o objeto (quer empírico, quer ideal como idéias inatas) que determinava, num sujeito passivo, uma representação de si mesmo. Kant inverteu estes papéis, afirmando que não é o sujeito que, conhecendo, descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o conhece. Ou seja, é o sujeito, na atividade de representar o objeto, que o enquadra, ativamente, nas formas a priori de sua mente, construindo a representação deste: Até hoje admitia‐se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas, para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse nosso conhecimento, malogravam‐se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados. (...) Se a intuição [dos objetos] tivesse que se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade. (KANT, 2001, p.21‐22) Assim podemos indicar dois sentidos em que o termo ‘construção’ é usado em relação à filosofia kantiana. O primeiro, mais básico e original, é o que ocorre em nossas intuições empíricas e, por exemplo, nos é lembrado por Longuenesse (1998), que indica que nossas representações dos objetos empíricos são construídos de forma automática, pelas estruturas inatas de nossa mente. Neste sentido, a mente consciente 17
é obrigada a construir representações do mundo que obedeçam estas leis. Boghossian (2006) chama este modelo de cookie‐cutter, pois a mente recortaria o material caótico dos sentidos impondo‐o limites de acordo com suas formas inatas. O segundo, mais geral e superficial, indica o processo autônomo de construção de hipóteses sobre a natureza para posterior teste experimental de sua validade, que vimos na última citação de Kant. Novamente Longuenesse (1998) afirma que para Kant os conceitos empíricos são dados a posteriori, pois construídos a partir de representações singulares. A “revolução copernicana na filosofia” de Kant teve vários desdobramentos, gerando interpretações construtivistas idealistas (como as de Fichte, Schelling e Schopenhauer), pragmatistas (como a de Hans Vaihinger) e realistas (como a de Karl Popper). Schopenhauer (1950) afirma na primeira frase de O Mundo como Vontade e Representação: “O mundo é uma representação minha.”. Hans Vaihinger (1924), em A Filosofia do “como‐se”, defende que nossas teorias seriam ficções conscientes cujo objetivo não é alcançar a verdade sobre o mundo, e sim, orientar nossas ações eficientemente, pragmaticamente. Karl Popper, que dá o nome à escola filosófica fundada por ele de Racionalismo Crítico em homenagem ao criticismo kantiano, julga (POPPER, 1977) sua filosofia uma interpretação realista da filosofia kantiana. Resumindo a posição kantiana em relação às questões investigadas aqui, podemos afirmar que ela dá as respostas do realismo, criticismo e construtivismo. 18
2.2 – Construtivismo em Piaget Jean Piaget, através do desenvolvimento de sua Epistemologia Genética, foi aquele que introduziu o termo ‘construtivismo’ no século XX (VON GLASERSFELD, 1998), em sua obra Logique et connaissance scientifique, de 1967. A Epistemologia Genética é a tentativa efetuada por Piaget (1973) de abordar cientificamente algumas questões da teoria do conhecimento através da investigação da gênese das estruturas cognitivas do sujeito, problema central de sua obra. Aceitando a distinção de Leibniz entre verdades de razão e verdades de fato, Piaget distingue conhecimento formal de conhecimento empírico. As afirmações das ciências formais não obtêm seu valor de verdade através de observações empíricas; são verdades necessárias e universais. Já as afirmações das ciências empíricas adquirem seu valor de verdade em função da possibilidade de serem verificadas à luz dos fatos que enunciam. Esses dois tipos de conhecimento são irredutíveis. Assim sendo, as verdades de fato não podem ser alcançadas por algum tipo de dedução lógica a priori já que são contingentes, nem as verdades formais podem ser alcançadas a partir da experiência empírica, pois são necessárias. No entanto, apesar dessa irredutibilidade, os fenômenos físicos podem ser representados e inclusive antecipados por modelos matemáticos. Mas de onde vêm esses dois tipos de conhecimento? As respostas tradicionais a esta pergunta são as empiristas e as racionalistas. Para o empirismo, que defende aquilo a que posições construtivistas se referem geralmente como ‘objetivismo’, a origem do conhecimento estaria na realidade; o 19
objeto “imporia” suas formas de manifestação a uma mente encarada como um receptáculo passivo. Para o racionalismo, o conhecimento é inato e sua evolução seria apenas atualização de estruturas pré‐formadas. Piaget postula a terceira resposta possível, que é a construtivista. Para ele, a construção do conhecimento exige uma interação necessária entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. É o sujeito que, ativo e a partir da ação, constrói suas representações de mundo interagindo com o objeto do conhecimento. A diferença principal do construtivismo piagetiano para o construtivismo kantiano é que para Piaget, além das representações dos objetos, nós construímos também as próprias estruturas da mente através das quais posteriormente construiremos as representações dos objetos. Piaget (1979) desenvolve um modelo de desenvolvimento cognitivo construtivista, ricamente sustentado por dados empíricos, que apresenta o sujeito como artífice principal, através da sua ação no mundo, de suas próprias estruturas cognitivas. Dois dos conceitos principais de Piaget, que esclarecem a forma como ele explicava o processo de construção do conhecimento por parte do sujeito, são os de assimilação e acomodação. Quando uma criança ou qualquer pessoa tem uma experiência que não se coaduna com seus esquemas e teorias, ela primeiramente tenta assimilar essa experiência em seus esquemas existentes. No entanto, se ela percebe que suas explicações e predições são repetidamente desmentidas pela experiência, prevalece a tendência de o esquema se modificar de modo a acomodar‐se a essa nova informação. É fundamental perceber aqui o papel do ambiente no processo de construção do conhecimento. Ao se opor às expectativas do esquema 20
para o funcionamento do mundo, a informação que vem do ambiente se revela como independente da vontade e das crenças do sujeito do conhecimento. Piaget, claramente, é um realista. De forma semelhante a Popper (1975), ele acredita que o mundo vai moldando nossos esquemas quando os desmente seguidamente, exigindo uma nova acomodação. Muitos autores que se consideram ligados à tradição construtivista confundem o construtivismo, que é uma tese epistemológica, com o idealismo, que é uma tese ontológica. O construtivismo nos oferece uma resposta para como obtemos conhecimento. O idealismo e o realismo nos oferecem respostas sobre a natureza daquilo que conhecemos. Como o construtivismo rejeita o objetivismo, tipicamente muitos autores acabam concluindo que essa rejeição equivale a uma rejeição ao realismo, o que é um equívoco. É o que observa Held (1998, p.194) quando afirma que os construcionistas sociais (uma das correntes a serem avaliadas neste capítulo) tipicamente presumem que um processo de conhecimento ativo por parte do sujeito, que está implícito no próprio termo ‘construcionismo’, necessita de uma ontologia anti‐realista para se sustentar. Discordando desta interpretação, ela lembra que a própria epistemologia genética de Piaget é uma forma de construtivismo que se baseia numa ontologia e epistemologia realistas, ao mesmo tempo em que defende a possibilidade de acesso racional do sujeito a uma realidade objetiva e independente. Se por um lado a definição de Piaget como realista é clara e não‐problemática, não podemos dizer o mesmo em relação à definição de sua posição acerca do inatismo. Por mais que para Piaget não devamos falar em estruturas inatas, isto está 21
tão distante quanto possível da crença num sujeito passivo, construído pelo seu ambiente. Para Piaget, somos ativos quando interpretamos a experiência para assimilá‐la aos nossos esquemas e teorias, e também somos ativos quando mudamos nossos esquemas e teorias de forma a acomodarem‐se à realidade. Um sujeito ativo é o centro da teoria piagetiana, o que a opõe totalmente – como veremos adiante – à nova teoria ambientalista contemporânea, o construtivismo social. Mas nesse sujeito não encontraríamos nenhuma estrutura inata: Cinquenta anos de experiências fizeram‐nos saber que não existem conhecimentos resultantes de um registro simples de observações, sem uma estruturação devida às atividades do sujeito. Mas também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por uma organização de ações sucessivas exercidas sobre objetos. Daqui resulta que uma epistemologia conforme os dados da psicogênese não poderia ser empirista nem pré‐formista, mas consiste apenas num construtivismo, com a elaboração contínua de operações e de estruturas novas. O problema central é, então, compreender como se efetuam estas criações e porque, visto resultarem de construções não pré‐determinadas, se podem tornar logicamente necessárias, durante o desenvolvimento. (PIAGET, 1987, p.51) Nesta passagem, Piaget evita a palavra inato, e usa em seu lugar hereditário e pré‐formista, alternando a defesa e o ataque à existência de algo inato no ser humano. Apesar disso, esta passagem mostra que é evidente a necessidade de ao menos se postular algo como “o funcionamento da inteligência” geral como inato. O problema, como enfatizaram Jerry Fodor (1987) e Noam Chomsky (1987), dois dos maiores defensores do inatismo contemporâneo, é que nenhum construtivista define 22
claramente, de forma a tornar falsificável, o que seria tal “mecanismo geral de inteligência”. Piaget o resume aos mecanismos de assimilação e acomodação. Um dos mais conhecidos argumentos de Piaget contra o empirismo é aquele no qual ele mostra que o objetivismo assenta‐se sobre a idéia de cópia. Se para conhecer precisamos copiar, para copiar antes precisamos conhecer o que se copia, o que seria um paradoxo. Como apontei anteriormente (CASTAÑON, 2007), esta crítica poderia ser falsa em relação ao empirismo na medida em que ele defende uma espécie de impressão passiva fixada na mente do sujeito pelo objeto (como se dá, por exemplo, com um filme numa fotografia ou com uma fita magnética cassete numa gravação). Mas provavelmente esta crítica não é falsa em relação ao próprio construtivismo piagetiano. Fodor (1987) afirma que é surpreendente ver Piaget afirmar que alguém pode aprender um novo conceito através da ação motora. Como ele bem lembra ao resgatar um antigo argumento platônico, não podemos aprender um conceito novo a não ser que tenhamos antes a capacidade de aprendê‐lo, seja porque o esquecemos e ao aprender lembramos (e neste caso já o tínhamos), seja porque o hipotetizamos (e neste caso de alguma forma já o tínhamos ao menos em potência). Na verdade, não se pode, em nenhuma forma de construtivismo, prescindir de alguma estrutura ou capacidade inata (CASTAÑON, 2007). Excluindo a posição de Fodor (1975) que é radicalmente inatista, a divergência entre o inatismo cognitivista e o construtivismo piagetiano – como entre Chomsky (1987) e Piaget (1987) – é predominantemente de grau: ambos reconhecem os processos de construção e a 23
existência de instâncias inatas. O problema se torna então determinar qual é o nível de elaboração das estruturas e capacidades com as quais seres humanos nascem, e o quanto das habilidades desenvolvidas é fruto de maturação biológica: estaríamos determinando então o que e o quanto é fruto de construção. Como afirmou Piatelli‐Palmarini (1987), o núcleo duro do programa de pesquisa racionalista ou “chomskyano”, consiste em não atribuir qualquer estrutura intrínseca ao ambiente: “Só existem leis de ordem provindo do interior; quer dizer, toda a estrutura ligada à percepção, quer seja de fonte biológica, cognitiva ou outra, é imposta ao ambiente pelo organismo e não extraída deste. As leis desta ordem são concebidas como relativas à espécie, invariáveis através das épocas, dos indivíduos e das culturas.” (1987: 32) Mas como podemos intuitivamente perceber, o texto acima poderia ser atribuído tanto ao construtivismo piagetiano como ao inatismo, porque o que distingue os dois é uma questão de ênfase, não de natureza. É possível haver inatismo sem construtivismo, sem que isto se revele incoerente (embora pouco verossímil). Mas é impossível haver construtivismo coerente sem algum tipo de inatismo, em relação a um estágio inicial a partir do qual ou contra o qual construímos nosso conhecimento, ou ainda sem pressupor um inatismo potencial, condicional, em relação às capacidades de determinado organismo em obter estruturas e conteúdos. Nosso conhecimento pode ser em parte, ou na maior parte, construído, mas isto implica potencial genético para tal. 24
Mas Piaget era fortemente construtivista, e rejeitava qualquer posição inatista pré‐formista. Em um argumento célebre, Piaget (1987b) parte dos pressupostos evolucionistas do inatismo para justificar a existência de capacidade de construção de novas estruturas cognitivas. Em resumo, se supusermos que todas as estruturas cognitivas humanas são inatas e em última instância inscritas no programa genético de um indivíduo, como poderemos explicá‐las? O inatismo tem que responder sobre os mecanismos gerais que permitiram a um programa genético de tal ordem ter se reunido. Para Piaget (1987b), o processo de mutação aleatória defendido pelos neodarwinistas além de ineficiente, ainda não possui explicação, e condenaria as estruturas inatas da razão a uma condição contingente, quando seu caráter distintivo é a necessidade. Trabalhando sobre este ponto, Hillary Putnam (1987) afirma que Chomsky deliberadamente afasta a questão posta por Piaget sobre o que poderia ser a evolução de um modelo inato de linguagem. Como ele chegou evolutivamente a ser o que é? Defendendo a posição de Piaget, ele afirma que uma resposta possível é: a linguagem primitiva foi fruto de uma invenção, efetuada por um membro da espécie fora do comum. Como esta trazia vantagens evolutivas óbvias, foi utilizada por todos aqueles membros da espécie que foram capazes de adquirir seus rudimentos, isto fez com que aqueles de lóbulos esquerdos maiores fossem progressivamente selecionados, procriavam, e assim por diante. Qualquer coisa que não existe no programa, lembra Piaget (1987), tornou‐se tal por auto‐organização e auto‐regulação. 25
Ou seja, para Piaget (1987), tem de haver no processo de evolução da vida reunião de características ou auto‐organização sem a ajuda de programas genéticos, senão seríamos forçados a admitir que tudo o que existe no código genético do homem estava presente nos primeiros vírus e protozoários: Se estas [as bases da lógica e da matemática] fossem pré‐formadas, isto significaria, pois, que o bebê, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert, Bourbaki ou MacLane puderam atualizar depois. E como o homenzinho é ele próprio uma resultante, seria preciso remontar aos protozoários e aos vírus para localizar o foco do “conjunto dos possíveis. (PIAGET, 1987, p.53‐54) Piaget, assim como Kant, é essencialmente realista, criticista e construtivista. Mas a despeito da introdução do termo ‘construtivismo’ no século XX (VON GLASERSFELD, 1998) efetuada por ele e de sua herança kantiana, este termo foi apropriado por formas contemporâneas de idealismo e relativismo. É o que passaremos a ver agora. 2.3 – Outros construtivismos contemporâneos O construtivismo contemporâneo teve desdobramentos nas ciências formais, humanas e aplicadas, indo muito além dos limites da epistemologia genética. Da matemática à lógica, da psicologia à sociologia, da educação à psicoterapia e à neurociência. Aqui serão descritas sumariamente as principais correntes 26
contemporâneas que fazem uso do termo, com o objetivo de estabelecer como elas se posicionam em relação às questões levantadas no início do capítulo e identificar, se existirem, características em comum entre elas que permitam definir o construtivismo como um todo, assim como diferenciar o construtivismo social destas outras derivações ou utilizações do termo. 2.3.1. Construtivismo Radical Uma das principais correntes do construtivismo contemporâneo é o Construtivismo Radical, defendido por teóricos como Ernst von Glasersfeld, Paul Watzlawick e Heinz von Foerster. O construtivismo radical é uma abordagem ao problema do conhecimento que parte do pressuposto de que este não é nada mais do que uma construção que fazemos com base nos dados subjetivos de nossa experiência. Nós viveríamos somente no mundo que construímos, e não teríamos nenhuma base objetiva para de nossas próprias construções. Assim, se o sujeito é quem determina absolutamente o objeto dentro da relação de conhecimento; ou seja, se o que nós chamamos de realidade é somente aquilo que construímos como tal, nossas construções acerca do mundo não sofrem a influência de um mundo externo objetivo e independente. Em outras palavras, o construtivismo radical é uma forma contemporânea de solipsismo, sendo um tipo especial de idealismo. Esta avaliação é também compartilhada com Efran e Fauber (1997), que sustentam que esta corrente é idealista, não se preocupando com a natureza última da realidade. Diferentemente dos “construtivismos sociais”, esta abordagem de fato se mantém fiel 27
à tese do sujeito construtor de suas representações, mas como seu próprio nome indica, de forma radicalmente fiel, o que a leva a consequências muito distintas das suas homônimas sociais. Apesar de possuir influência pouco relevante na filosofia da ciência, assim como nas neurociências (MATURANA e VARELA, 1987), e de ter sua influência na psicologia restrita a um pequeno campo da psicoterapia (NEIMEYER, 1997; CASTAÑON, 2005), o construtivismo radical tem incontestável influência na pedagogia contemporânea, na qual o nome de Ernst von Glasersfeld ocupa lugar proeminente. Glasersfeld (1998) pode ser visto como propondo uma interpretação solipsista radical do pensamento de Piaget. Ele afirma que a idéia‐chave de Piaget seria que o “que chamamos de conhecimento” não tem como propósito a produção de representações de uma realidade independente, mas somente uma função de adaptação ao meio‐ambiente. Glasersfeld interpreta o pensamento piagetiano como um “irrevogável rompimento” (1998, p. 19) com a tradição epistemológica da civilização ocidental, e afirma que segundo Piaget não deveríamos mais buscar atingir o que ele chama de “visão do mundo real”. Como tipicamente se vê em autores pós‐modernos, Glasersfeld recorre de forma superficial e equivocada à Física Quântica para “provar” de que tal coisa seria impossível. Ele acredita que quando Piaget fala em interação, “isso não implica um organismo que interage com objetos como eles realmente são, mas antes, um sujeito cognitivo que está lidando com estruturas perceptivas e conceituais anteriormente construídas” (VON GLASERSFELD, 1998, p.21). A tradução desta afirmação é que Glasersfeld parece de 28
fato acreditar que Piaget defende que os sujeitos não têm acesso a uma realidade independente de suas próprias mentes. Em texto anterior, no entanto, ele não demonstra convicção sobre a posição ontológica de Piaget (VON GLASERSFELD, 1984, p. 25), quando afirma que esta é um tanto “ambígua”, e que às vezes Piaget dá a impressão de estar comprometido com o realismo metafísico. Glasersfeld tem obviamente todo o direito de defender a posição que bem entender, mas não parece razoável interpretar a obra de um autor contra suas próprias palavras. Afirmar que a posição piagetiana é construtivista radical consiste em grave equívoco. Pode parecer difícil aceitar que é realmente um idealismo solipsista o que os construtivistas radicais querem afirmar com sua proposta epistemológica. Vamos então seguir os argumentos de Glasersfeld e Foerster expostos em obra de referência da corrente, “The Invented Reality”, editado por Paul Watzlawick, para entender melhor o que os levam a adotar esta tese. Criticando o que chama de ‘realismo metafísico’, que ele identifica com uma de suas conseqüências, a adoção da teoria da verdade como correspondência (que denomino aqui ‘realismo semântico’, seguindo Niiniluoto, 1999), Glasersfeld (1984) usa uma de suas costumeiras metáforas para distinguir a noção de conhecimento ‘match’ da de conhecimento ‘fit’ (que poderíamos respectivamente traduzir neste contexto por algo como “igualar” versus “encaixar” ou “ajustar”). Quando vemos uma declaração de conhecimento como algo que tenta se igualar ao objeto real, teríamos uma adesão ao realismo metafísico (1984, p.21); no entanto, quando com a palavra ‘conhecimento’ pretendemos nos reportar somente a 29
algo que “se ajusta” (“something fits”) ao objeto real temos em mente uma relação diferente entre uma proposição e a realidade: A key fits if it opens the lock. The fit describes a capacity of the key, not of the lock. Thanks to professional burglars we know only too well that there are many keys that are shaped quite differently from our own but which nevertheless unlock our doors. (p. 21) Para Glasersfeld, este é o sentido que a palavra ‘fit’ recebe no darwinismo e neo‐darwinismo. Uma teoria, assim como uma mudança genética aleatória num organismo, sobrevive se servir bem na solução de uma situação que é um obstáculo para alcançar uma meta. Nada disso implicaria uma grande diferença entre o que defende o construtivismo radical e o que defende o racionalismo crítico de Popper. O critério de verdade como correspondência estaria simplesmente sendo trocado por uma concepção pragmática de conhecimento e verdade. O trecho transcrito a seguir da mesma obra poderia ser atribuído inadvertidamente a Campbell ou a Popper sem dificuldades: If we take seriously the evolutionary way of thinking, it could never be that organisms or ideas adapt to reality, but that reality, by limiting what is possible, inexorably annihilates what is not fit to live. In phylogenesis, as in the history of ideas, ‘natural selection’ does not in any positive sense select the fittest, the sturdiest, the best, or the truest, but it functions negatively, in that it simply lets die whatever does not pass the test (VON GLASERSFELD, 1984, p.22) No entanto, o construtivismo radical não fica somente nesta defesa de um pragmatismo evolucionista. Duas posições claras, uma epistemológica, outra ontológica, o distinguem das pressuposições tradicionais do construtivismo filosófico 30
de Kant, Piaget ou Popper. A primeira é a negação de que há progresso no conhecimento ou, particularmente, do conceito popperiano de verossimilhança. Não há como escolher dentre duas teorias que “servem” para abrir uma porta, qual das duas é mais “semelhante” à fechadura. Uma teoria que funciona não nos daria nenhuma pista sobre como o mundo objetivo é, somente daria o conhecimento de um caminho viável para atingir uma meta. O conhecimento ordenaria e organizaria somente o mundo constituído por nossa própria experiência. A diferença para a teoria popperiana da verossimilhança que hoje tem em Ilkka Niiniluoto (1999) seu representante mais sofisticado, é que para o racionalismo crítico a quantidade de previsões bem e mal sucedidas de uma teoria, se comparada com a quantidade das feitas por outra teoria que igualmente serve para atingir uma meta, oferece um critério racional para se escolher a mais verossimilhante. Para o construtivismo radical, não existe meio de estabelecer a melhor entre duas teorias que “servem” para atingir uma meta, o que faz dele uma forma de relativismo, e até de ceticismo, que o afasta do criticismo. A segunda posição distintiva do construtivismo radical, a ontológica, afirma que de fato o objeto do conhecimento é construído por nossa mente. Epistemologicamente, não temos qualquer acesso a um mundo externo à nossa experiência. Apesar de não negar nem afirmar a existência de uma “realidade” independente de nossa mente, o construtivismo radical nega qualquer tipo de acesso hipotético a esta. Mesmo considerando que o mundo “real” dá sinais de sua 31
existência ao não se comportar de acordo com nossos esquemas construídos, nega (contraditoriamente) que ele tenha papel na construção do conhecimento: This means that the ‘real’ world manifests itself exclusively there where our constructions break down. But since we can describe and explain these breakdowns only in the very concepts that we have used to build the failing structures, this process can never yield a picture of a world which we could hold responsible for their failure. (VON GLASERSFELD, 1984, p.39) Von Foerster (1984) tenta defender a mesma posição baseado em alguns resultados selecionados do início da maré neurocientífica, interpretados em termos cibernéticos. Ele propõe interpretar a cognição como um processo recursivo infinito de computação (p.48), uma “infinite recursion” de descrições de descrições, sem referência a uma realidade independente. Interpreta aspectos de fenômenos sensoriais e perceptivos como o ponto cego, o escotoma, a interpretação auditiva de palavras repetidas e a transdução visual como evidências de impenetrabilidade do sistema nervoso central. Um de seus argumentos, derivado de Varela e Maturana (1987), indica que, uma vez que temos muito mais receptores sensoriais voltados para dentro do organismo do que para fora, na razão de 100 para 1, somos em igual medida mais receptivos a mudanças no ambiente interno do que no externo. Mas como sair do solipsismo estéril a que parece estar condenada esta posição? Von Foerster oferece um argumento inconsistente, ancorado no que ele denomina ‘princípio da relatividade’. Por conta de sua estranha formulação, julgo adequada sua transcrição integral: 32
According to the Principle of Relativity which rejects a hypothesis when it does not hold for two instances together, although it holds for each instance separately (Earthlings and Venusians may be consistent in claiming to be in the center of the universe, but their claims fall to pieces if they should, ever get together), the solipsistic claim falls to pieces when besides me I invent another autonomous organism. However, it should be noted that since the Principle of Relativity is not a logical necessity, nor is it a proposition that can be proven to be either true or false, the crucial point to be recognized here is that I am free to choose either to adopt this principle or to reject it. If I reject it, I am the center of the universe, my reality are my dreams and my nightmares, my language is monologue, and my logic monologic. If I adopt it, neither me nor the other can be the center of the universe. As in the heliocentric system, there must be a third that is the central reference. It is the relation between Thou and I, and this relation is IDENTITY: Reality = Community (VON FOERSTER, 1984, p.59‐60) Assim vemos que a suposta saída do solipsismo apontada por Foerster ocorre quando o sujeito do conhecimento “inventa outro organismo autônomo”, o que, acompanhado da adesão ao princípio da relatividade, cria uma “realidade” para além da prisão solipsista (a qual, curiosamente, não é o mundo, inimigo número um do construtivismo radical, mas essa comunidade inventada na mente do sujeito do conhecimento). Aqui percebemos que Foerster preferiria ceder antes ao construtivismo social do que ao realismo crítico, mas de forma alguma consegue fugir ao solipsismo. Como afirmado anteriormente (CASTAÑON, 2005), se vivemos na prisão solipsista de nossas próprias mentes, como os construtivistas radicais poderiam nos tentar convencer a adotar sua própria teoria? Como poderiam defender algo que eles próprios sequer podem dizer que seja verdadeiro para pessoas que não compartilham das mesmas “estruturas cognitivas”? Em outras palavras, se eles não 33
podem defender que sua teoria é melhor que as outras, se ela como as outras somente “se encaixa”, “serve”, porque devem aceitá‐la aqueles que, em seus constructos – tão úteis quanto os deles – acreditam que sua teoria é uma aproximação da verdade melhor do que a deles? Claramente construtivista, idealista ou cético com relação à ontologia e à epistemologia, o construtivismo radical se torna radical justamente quando dá o salto que separa a epistemologia construtivista da metafísica idealista, assumindo crenças extremas sobre o que é nosso objeto de conhecimento e sobre a inacessibilidade de um mundo real que não passa para esta abordagem de uma hipótese sem importância. 2.3.2. Construcionismo Social Construcionismo Social (e não construtivismo social) é o nome que passou a designar o movimento de crítica à Psicologia Social “modernista” que tem sua principal referência teórica em Kenneth Gergen. Em dois artigos que hoje são referências básicas do movimento, “Social Psychology as History” de 1973, e “The Social Constructionist Movement in Modern Psychology”, de 1985, Gergen (1973, 1985) traçou os fundamentos e o panorama dessa abordagem da Psicologia Social, que se baseia em três grandes pressupostos: O primeiro é que a realidade é dinâmica, não possuindo qualquer tipo de essência ou leis imutáveis. A segunda é que o conhecimento é somente uma construção social, baseado em comunidades linguísticas. A terceira é que o conhecimento tem consequências sociais, e que são 34
estas que devem determinar se ele é válido ou não. O construcionismo social ataca todos os pressupostos filosóficos da ciência moderna, como o otimismo epistemológico, o realismo ontológico, o método empírico de investigação da realidade, a regularidade do objeto e o progresso científico (CASTAÑON, 2001). Para os autores que se inserem nesta “virada pós‐moderna” da psicologia social, esses princípios básicos da received view não só são negados como substituídos por seus opostos. Kendall & Michael (1997) avaliam que esse movimento “pós‐
moderno” na psicologia social possui quatro características teóricas básicas. A primeira é a tentativa de dissolver o objeto tradicional da psicologia, substituindo a realidade da mente e do comportamento pelas convenções e recursos linguísticos que “constroem socialmente” o mundo. A segunda é o abandono da busca por propriedades universais na pesquisa psicológica e a adoção da reflexão histórica e contextual na psicologia. A terceira é a marginalização do método e sua classificação como um truque retórico. A quarta seria o abandono da grande narrativa do progresso da ciência rumo a uma verdade objetiva para a adoção de uma concepção de conhecimento como fragmentário e contingente histórica e socialmente. Como afirma Zuriff (1998), a essência da posição ontológica do construcionismo social é a proposição de que não há realidade objetiva a ser descoberta; seres humanos constroem o conhecimento. Held (1998) acrescenta a isso o termo “socialmente”. Para o construcionismo social nós construímos teorias a respeito do funcionamento do mundo através da interação social. 35
Esta posição foi reiteradamente defendida por Kenneth Gergen (1985, 1992, 1994) em seus argumentos anti‐representacionistas. Por representacionismo Gergen (1994) entende a doutrina que defende existir ou poder existir uma relação estável entre as palavras e o mundo que elas representariam. Adotando os argumentos de Wittgenstein (1975) e Richard Rorty (1989), Gergen (1985, 1994) defende que a linguagem nao passa de um conjunto de convenções. O significado não deriva da referência que fazem aos objetos; não se baseia no processo mental ou em entes ideais. O significado é produzido através do contato social com outros habitantes da cultura na qual se está inserido. Fora da linguagem não há ponto de apoio objetivo nem independente do pensamento; portanto, a linguagem não representa nada fora dela mesma, é auto‐referente; estritamente falando, não há linguagem independente de múltiplos jogos de linguagem atrelados a diferentes formas de vida. Assim, para o construtivismo social (SHOTTER, 1992) nossas teorias socialmente construídas não nos aproximam de uma descrição mais acurada do “mundo como ele é”. Isso acarreta em algum grau envolvimento com alguma forma de anti‐realismo, seja no sentido ontológico, seja no sentido epistemológico (ou seja, ceticismo), uma vez que não há ou não se pode atingir a realidade objetiva, independente do sujeito do conhecimento. Held (1998, p.198) classifica duas posições ontológicas dentro do construcionismo social, uma “mais radical” e outra “menos radical”. A versão ontologicamente “mais radical” desse movimento entende que o sujeito constrói o conhecimento através da linguagem e com nada mais que ela; sendo assim, a 36
linguagem se constitui na realidade mesma para o sujeito. Não existe realidade para além da linguagem construída no sujeito em suas interações sociais. Essas manifestações de anti‐realismo ontológico estão presentes basicamente nos autores deste movimento mais influenciados pelo desconstrucionismo de Jacques Derrida; dos quais dois representativos são Paul Richer (1992) e John Shotter (1992). Contrastando com a posição acima, teríamos a tese ontológica “menos radical” de alguns outros autores como Gergen (1985, 1992) e Donald Polkinghorne (1992), que consideram que a teoria construída sobre os objetos do conhecimento através da linguagem, intermedeia a relação entre o sujeito e o mundo de forma impermeável, de modo que a realidade objetiva, independente do sujeito, pode até existir, mas é inacessível. Aqui, apesar de não aderir a um estrito anti‐realismo ontológico, vemos o construcionismo social endossando um ceticismo ontológico e epistemológico. Rom Harré (1989) é um dos construcionistas sociais mais representativos e mais preocupados com a questão ontológica. Ele afirma ter pretendido desenvolver uma ontologia que pudesse escapar do dilema anti‐realista exposto acima. Harré (1989, p.440) assume o pressuposto de que existem duas realidades humanas distintas, ambas investigáveis cientificamente. Uma é fisiológica, a natureza biológica do ser humano e seus “sistemas de interação molecular”. A outra é nossa “natureza social” como elementos de uma rede de “interações simbólicas mediadas”. Para ele, a Psicologia precisa tratar os processos fisiológicos e as interações sociais como 37
ocorrentes em realidades independentes, reconhecendo que sua posição consiste num novo dualismo. Assim, para a natureza biológica do homem, crê Harré (op. cit.), o tratamento das pessoas como indivíduos seria adequado. Mas para a natureza social esse tratamento seria inadequado, pois as pessoas não seriam mais do que “nós numa rede, nódulos numa estrutura, elementos num coletivo” (1989, p.440). Ele defende que, tomados de um ponto de vista biológico, indivíduos podem ter propriedades únicas, como átomos isolados, mas tomados coletivamente, os atributos de uma pessoa somente podem existir em virtude de suas relações com outras. Harré (1989) sabe que esta é uma ontologia radical. Ele pretende, ao adotá‐la, se opor ao que denomina “ontologia cartesiana”, que seria a ontologia das ciências cognitivas. Enquanto a ontologia do construcionismo social de Harré define o objeto da psicologia como sendo as interações sociais, a “ontologia cartesiana” proporia que existe uma substância mental, onde se dão os processos psicológicos. Uma conclusão possível diante dos argumentos expostos é a de que a ontologia proposta por Harré nega a existência da mente humana como entidade real. Isto se pode depreender da estranha afirmação feita por ele em outra obra (1984), de que “devemos começar com o pressuposto de que o local primário dos processos psicológicos (em ambos os sentidos temporal e lógico) é coletivo antes que individual” (1984, p. 4 e 5). Gergen (1989) também defende que o construcionismo social é outra revolução em curso na psicologia, que se contraporia ao cognitivismo e à sua ontologia e 38
epistemologia, que se comprometeria com os princípios de uma metafísica dualista cartesiana, onde a mente deve funcionar como espelho do mundo. Gergen (1989) formula sua versão para uma “revolução epistemológica” na psicologia, o que ele chama de “epistemologia social”, partindo do princípio de que o local do conhecimento não é mais visto como sendo a mente individual, mas sim os padrões das narrativas sociais. Ele procura explicar esta afirmação argumentando que ao abandonarmos o foco de nossa concentração na mente e no mundo e o dirigirmos para o problema da relação entre as palavras e o mundo, mudaríamos também a atenção antes dirigida às “proposições em nossa cabeça” (p.471) para as proposições em nossa linguagem escrita e falada. Partindo do pressuposto de que a linguagem não é privada, mas por definição deve, sendo social, permitir a comunicação, Gergen acredita poder concluir que as proposições de conhecimento não são conquistas da mente individual, mas produtos sociais. Podemos dizer com John Maze (2001), que o construcionismo social é na verdade um desconstrucionismo, incapaz de afirmar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa em virtude de seu anti‐representacionismo e seu argumento de que o “objetivismo” (que ele confunde com o realismo) é inerentemente autoritário. Uma das muitas contradições internas desta abordagem se dá quando, embora aceite que toda teoria epistemológica coerente deva valer para si mesma, o construcionismo social nega que qualquer assertiva possa ser verdadeira, assim como nega existir realidades independentes a serem referidas por essas assertivas. No entanto, trata 39
dos discursos como tendo existência objetiva e assume que sua própria assertiva sobre o discurso é verdadeira. Para uma extensa avaliação das contradições desta abordagem, remeto a meu estudo anterior “Psicologia Pós‐moderna?” (CASTAÑON, 2007b). Se tomamos por posições ontológicas e epistemológicas do construtivismo as vistas em Kant e Piaget, podemos afirmar que o construcionismo social está muito longe de fazer parte desta tradição filosófica. O realismo é por ele rejeitado tanto em termos epistemologicos quanto ontológicos. Mesmo a definição da abordagem como idealista fica comprometida pela estranha posição acerca do sujeito, que a compromete mais ainda em relação ao construtivismo tradicional. No construcionismo social, o sujeito está totalmente dissolvido na rede de relações linguísticas na qual está inserido e que o constrói, e não é construída por ele. Caso considerássemos esta corrente construtivista, estaríamos diante de um caso bizarro de construtivismo sem mundo nem sujeito, onde quem constrói são as redes linguísticas ou jogos de linguagem (Rychlak, 1999), que se tornam assim entidades autônomas de sentido questionável e aspectos quase místicos. Se o que há para conhecer é só a linguagem e a linguagem constrói o sujeito, poderíamos classificar essa abordagem até mesmo como objetivista. Se não há mundo ou não há mundo a conhecer, cética. O caráter construtivista do construcionismo social precisa ser bem clarificado para não dar azo a confusões reconstrutivas. 40
2.3.3. Socioconstrutivismo O Socioconstrutivismo é uma abordagem da psicologia contemporânea, com ênfase na psicologia do desenvolvimento, que tem recebido denominações variadas, algumas vezes ‘Socioculturalismo’, outras ‘Construtivismo Social’. Com o objetivo de diferenciá‐lo da abordagem da sociologia do conhecimento que é objeto desta dissertação, escolhemos aqui para designá‐lo o termo ‘socioconstrutivismo’. James Wertsch (1998) define como objetivo da abordagem socioconstrutivista da Psicologia a explicação das relações entre o funcionamento da mente humana e as situações culturais, institucionais e históricas nas quais este funcionamento ocorre. Esta abordagem rejeita a noção de que o local da obtenção do conhecimento é o indivíduo, adotando uma das reivindicações básicas do strong programme, o construtivismo social, que é a de que o conhecimento é uma construção social. Ainda segundo Wertsch (1998), podemos afirmar os dois conceitos básicos definidores da pesquisa socioconstrutivista são os de ação humana e de mediação. Para ele, o objeto da pesquisa socioconstrutivista é a ação humana. Mas essa ação para Wertsch e os socioconstrutivistas pode ser externa bem como interna, assim como pode ser conduzida por grupos ou indivíduos. Esta abordagem pretende se contrastar com outras unidades que encontramos na psicologia, como atitudes de descrição e interpretação, conceitos, estruturas linguísticas e de conhecimento, entre outras. No entanto, a verdade, como reconhece o próprio Wertsch (1998), é que: “...uma das coisas que se torna clara na categoria da ação é que ela parece ser um tanto ‘incerta’” (1998, p.60). Essa incerteza faria com que muitas vezes aqueles 41
pesquisadores que a adotam como objeto de pesquisa se percam, e acabem adotando outras categorias correlatas. A abordagem socioconstrutivista é desenvolvida basicamente a partir da obra do psicólogo russo Lev Vygotsky, enfatizada em seus aspectos histórico‐culturalistas. Vygotsky, influenciado por Marx e Spinoza, tentou encontrar uma resposta de caráter nuclear para as funções psicológicas superiores humanas que evitasse o dualismo mente‐corpo. Acreditou realizar esta tarefa aplicando o materialismo histórico ao estudo do desenvolvimento do homem, pretendendo explicar a consciência mediante a história da consciência, a conduta mediante a história da conduta, e assim por diante. O modelo de aprendizagem de Lev Vygotsky (1984) representa uma alternativa “marxista” na psicologia à concepção construtivista piagetiana centrada no indivíduo. Para o autor russo, o desenvolvimento biológico e psicológico dos primatas superiores mantém um corte qualitativo com o desenvolvimento humano infantil: as funções psicológicas naturais que caracterizariam aqueles e as funções psicológicas superiores, que apareceriam no ser humano. Para ele, a psicologia havia, até sua época, reduzido os processos psicológicos complexos aos elementares (por exemplo, ao reflexo ou à conexão estímulo‐resposta) e as funções psicológicas superiores às naturais (por exemplo a memória simbólica à memória natural). Isso quando não foram, ao contrário, consideradas espirituais e não‐determinadas pela evolução e pela história. Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores são fruto do desenvolvimento cultural, não do biológico. 42
Coll, Palacios & Marchesi (1996) nos mostram que, partindo do modelo dominante na psicologia soviética, a reflexologia pavloviana, Vygotsky constrói um modelo em que o homem controla estímulo (E) e resposta (R) ativamente, impondo‐
lhes sua “vontade” e criando um sistema complexo. Ele pretende desvelar as características dessas funções psicológicas superiores partindo da investigação do que denomina condutas vestigiais. Estas últimas seriam condutas primitivas, características dos primórdios da espécie, que ainda podemos encontrar na conduta do ser humano atual. Segundo Vygotsky (1984), elas nos explicariam o grande passo que representa a superação das funções psicológicas básicas, sem precisar extrapolar as leis biopsicológicas da conduta animal. A conduta de que Vygotsky se serve para seu argumento é a do mecanismo externo de memória, que pode ser encontrado em culturas com diferentes graus de sofisticação. O nó no lenço ou a troca de anel para outro dedo, com o objetivo de se lembrar posteriormente de alguma tarefa, são exemplos típicos. Um estímulo A, aqui e agora, leva‐me a dar uma resposta apropriada se eu a situo em outro lugar e momento. Uma pessoa a qual desejo fazer o favor me pede emprestando, aqui e agora, um livro que tenho em casa. Dessa forma, para poder realizar o empréstimo, teria antes que me lembrar do pedido em outro contexto, em minha residência. Assim, depois de haver pegado o livro, posso realizá‐lo quando fosse vê‐la em outra ocasião. No exemplo acima, o sujeito cria uma resposta material e psicológica ao mesmo tempo, aqui e agora (X), que se constitui em uma conexão física e mental com 43
outra ocasião, em que a resposta apropriada será possível. Essa conexão pode ser um nó no lenço, trocar o anel de dedo, uma anotação na agenda: qualquer coisa que, percebida na situação apropriada, vai conectá‐la com o que motivou a formação desse sinal. Vygotsky denominou esta conexão física e mental ‘instrumento psicológico’. Este último é todo objeto cujo uso serve para ordenar e reposicionar externamente a informação, de modo que o sujeito possa escapar da prisão do aqui e agora. Falando em termos de psicologia da memória, é toda pista de recuperação deliberadamente associada a uma informação que queremos recuperar no futuro. O instrumento psicológico pode ser tanto o nó no lenço como a moeda corrente, um sinal de trânsito, e, acima de tudo, os sistemas de signos; o conjunto de instrumentos fonéticos, gráficos, táteis que constituímos como grande sistema de mediação instrumental, ou seja, a linguagem. Coll et. al. (1996) afirmam que Vygotsky encontra, com essas idéias sobre as funções psicológicas mais primitivas, algumas características especificas das funções psicológicas superiores humanas. A primeira delas é que essas funções permitem superar o condicionamento do meio e possibilitam a reversibilidade de estímulos e respostas de maneira indefinida. A segunda é que elas supõem o uso de intermediários externos, os instrumentos psicológicos. A terceira é que implicam um processo de mediação, através de instrumentos psicológicos, cujo objetivo é modificar a nós mesmos: assim como instrumentos físicos modificam o meio físico, instrumentos psicológicos alterariam diretamente nossa mente. 44
Assim Vygotsky (1984) afirma que é dessa forma que as funções psicológicas superiores se formam através da atividade prática e instrumental. Para ele a mediação instrumental converge para outro processo de mediação que a torna possível, e sem a qual o homem não haveria desenvolvido a representação externa com instrumentos: a mediação social. Esta última diferiria da instrumental por ser além de instrumental também interpessoal. É este processo de mediação social que o psicólogo russo define em sua lei da dupla formação dos processos psicológicos (VYGOTSKY, 1984): No desenvolvimento cultural da criança, toda função aparece duas vezes: primeiro em nível social e, mais tarde, em âmbito individual: primeiro entre pessoas ‐ interpsicológica ‐ e depois, no interior da própria criança ‐ intrapsicológica. Isto pode ser aplicado igualmente à atenção voluntária, à memória lógica e à formação de conceitos. Todas as funções superiores se originam como relações entre seres humanos. (pp. 93‐94) Vygotsky nega que a atividade interna e externa do homem sejam idênticas ou, ao contrário, totalmente desconectadas. Para ele, sua conexão é genética ou evolutiva: os processos externos são transformados para gerar processos internos. O nome que deu a este processo de transformação foi processo de interiorização. Assim, segundo Vygotsky, as funções psicológicas superiores humanas são transmitidas, dos adultos que já as possuem para os novos indivíduos em desenvolvimento. E essa transmissão é produzida mediante a interatividade da criança com adultos ou outras crianças. 45
Em “Formação Social da Mente”, Vygotsky distingue quatro posições básicas na Psicologia a respeito do relacionamento entre desenvolvimento e aprendizagem. Comparando estas concepções de desenvolvimento e aprendizagem, Vygotsky se distancia da posição de Piaget, que segundo ele atribuiria à maturação papel fundamental no desenvolvimento. Vygotsky concentra sua pesquisa na busca de explicar o desenvolvimento humano como desenvolvimento social da criança. Este desenvolvimento social é a aquisição, por parte dela, dos sistemas e estratégias sociais de mediação‐representação. Esta tese é oposta a de Piaget (1975), que vê o desenvolvimento das estruturas cognitivas como necessário para possibilitar a aprendizagem. Podemos perceber aqui a oposição entre uma concepção individualista e outra sociologista em psicologia, assim como no construtivismo. Para Piaget a transmissão social é necessária para o desenvolvimento das funções cognitivas, mas não suficiente, porque a ação social é ineficaz sem assimilação ativa da criança, o que pressupõe instrumentos operatórios adequados. Podemos perceber aqui que o fulcro da oposição entre os dois teóricos é o papel que cada um deles atribui ao sujeito no processo de construção do conhecimento. Enquanto que em Vygotsky o processo é atribuído à mediação social, em Piaget este é atribuído à ação do sujeito no mundo e sua consequente elaboração e reelaboração de esquemas. A abordagem socioconstrutivista tem em comum com o construtivismo social a convicção de que o conhecimento é uma produção social. No entanto, apesar de suas indefinições ontológicas, não se pode afirmar que essa abordagem não adote um 46
tipo de realismo ontológico e algumas crenças a respeito da regularidade de alguns aspectos do funcionamento psíquico humano. Na verdade, o materialismo implícito nas abordagens socioconstrutivistas impede uma adesão à ontologia pós‐moderna. Além disso, o socioconstrutivismo é epistemologicamente otimista, adotando metodologias experimentais que pretendem ser capazes de estabelecer um conhecimento que, apesar de ser construído socialmente, se refere a realidades que têm existência objetiva, o que permite caracterizá‐lo como criticista. Sua posição como construtivista é que, curiosamente, fica comprometida. Todo conhecimento seria obtido através de interação social, e não de interação com o mundo. Apesar de o sujeito ter um papel ativo na interação social, a natureza desta interação é, talvez até deliberadamente, obscura. Essa obscuridade não foi, no entanto, suficiente para salvar Vygotsky das acusações oficiais de ‘idealismo’ que recebeu do governo soviético, e que o condenaram, junto com sua obra, ao banimento por muitos anos, levando‐o inclusive precocemente à morte. 2.3.4. Construtivismo Lógico O Construtivismo Lógico, mais conhecido como intuicionismo, é uma abordagem da lógica que surgiu dentro da filosofia da matemática, no bojo dos esforços do início do século XX em busca dos fundamentos da disciplina. Seu principal proponente foi Luitzen Brouwer (1881‐1966) e teve como expoentes Arend Heyting e Michael Dummett. Também aqui, Brouwer (1983, p.78) reconhece em Kant 47
a primeira forma de construtivismo matemático, na qual tempo e espaço são tomados por formas de pensamento inerentes à razão humana. O construtivismo matemático ganhou força quando os dois principais programas filosóficos de fundamentação da matemática colapsaram (DUMMETT, 1977, p.2) ao se depararem com demonstrações de sua incompletude. O primeiro, o logicismo de Frege, encontrou seu obstáculo intransponível na descoberta do paradoxo de Russell; o segundo, o formalismo de Hilbert, foi refutado com o segundo teorema da incompletude de Gödel. Em matemática, o construtivismo defende que objetos matemáticos são construções mentais que ocorrem numa forma de pensamento pré‐linguística, o que leva Brouwer (1984b) a recusar qualquer tentativa de limitar a matemática à capacidade expressiva de qualquer linguagem, natural ou formalizada. Afirma que para provar a existência de um objeto matemático é preciso demonstrar que há ao menos uma forma de construí‐lo através de uma sequência finita de operações mentais. Demonstrar que sua inexistência implica contradição, como na matemática tradicional, não seria prova suficiente de sua existência, pois ele não teria sido encontrado com esta operação. Assim, o que define uma posição construtivista em matemática é esta tese epistemológica, acerca da forma de obtenção do conhecimento matemático: Hence the platonistic picture is of a realm of mathematical reality, existing objectively and independently of our knowledge, which renders our statements true or false. On an intuitionistic view, on the other hand, the only thing which can make a mathematical statement 48
true is a proof of the kind we can give: not indeed, a proof in a formal system, but an intuitively acceptable proof, that is, a certain kind of mental construction. (DUMMETT, 1977, p. 7) O construtivismo matemático tem sido correntemente tomado como sinônimo de sua mais famosa corrente, o intuicionismo, que esta sim, defende não só o construtivismo como método de prova, mas também a construção mental como a natureza de todo objeto matemático. É importante destacar que o construtivismo matemático não depende de uma ontologia idealista para ser adotado, e é totalmente compatível também com uma visão realista da matemática. O intuicionismo matemático se destaca como corrente do construtivismo matemático em função principalmente da tese ontológica de que objetos matemáticos não têm realidade transcendente: são construções do pensamento humano. A assunção desta tese ontológica juntamente com a tese epistemológica construtivista da matemática, leva à consequência de que o ato de estabelecimento do conhecimento lógico e matemático é um ato de construção, não de descoberta. Na lógica e matemática clássicas, denominadas pelo programa intuicionista de “platonistas”, se considera que objetos matemáticos existem de forma independente do pensamento humano, o que implica uma forma de realismo lógico e matemático. Se objetos lógicos e matemáticos existem de forma independente da mente humana, seu conhecimento depende de um ato de descoberta. Mas para o intuicionista, objetos matemáticos são construídos pelos seres humanos. A matemática é uma 49
atividade puramente mental, e os objetos matemáticos não existem de maneira independente de atos de pensamento humanos: ...to a platonist, a mathematical theory relates to some external realm of abstract objects, to an intuitionist it relates to our own mental operations: mathematical objects themselves are mental constructions, that is, objects of thought not merely in the sense that they are thought about, but in the sense that, for them, esse est concipi. They exist only in virtue of our mathematical activity, which consists in mental operations, and have only those properties which they can be recognized by us as having. (DUMMETT, 1977, p. 7) Nem sempre, no entanto a opção ontológica intuicionista é afirmada de forma tão clara e inequívoca. Em texto no qual trata dos fundamentos filosóficos do programa, seu principal sistematizador, Arend Heyting, coloca o problema ontológico do intuicionismo desta forma: ...we do not attribute an existence independent of our thought, i.e., a transcendental existence, to the integers or to any other mathematical objects. Even though it might be true that every thought refers to an object conceived to exist independently of it, we can nevertheless let this remains an open question. In any event, such an object need not to be completely independent of human thought. Even if they should be independent of individual acts of thought, mathematical objects are by their very nature dependent of human thought. Their existence is guaranteed only insofar as they can be determined by thought. (HEYTING, 1983, p.53) Este trecho é bem ilustrativo da hesitação ontológica que caracteriza o construtivismo na filosofia da lógica e da matemática, assim como em todas as suas outras áreas de influência. Neste, Heyting tenta suavizar o radicalismo da posição ontológica intuicionista, mas aparentemente não nos sentimos mais esclarecidos com 50
a tentativa. Começa com uma negação categórica da existência transcendente de objetos matemáticos, o que parece determinar uma opção clara pelo idealismo. Na frase seguinte, assume que a existência independente de objetos concebidos deve permanecer uma questão em aberto, o que parece conduzir a um ceticismo regional. Depois defende a posição estranha de que os objetos podem ser independentes de atos individuais de pensamento, mas não de pensamento humano, o que consistiria num estranho caso de idealismo sem sujeito. Por fim, volta ao porto seguro de todo construtivismo lógico, que é a tese epistemológica de que só podemos garantir a existência de um objeto matemático quando podemos determiná‐lo por um número finito de atos de pensamento. Aqui é fundamental destacar aspecto que é muito importante para a estrutura do argumento desta dissertação: é perfeitamente concebível que para um realista lógico e matemático o método de prova seja construtivo porque esta construção poderia levar à descoberta de um objeto matemático com existência independente e real. A tese epistemológica do construtivismo lógico não leva necessariamente à tese ontológica do intuicionismo, assim como a epistemologia construtivista não implica uma ontologia idealista. Stephen Kleene é, por exemplo, um lógico construtivista que adota uma perspectiva realista do intuicionismo. De forma semelhante, Ilkka Niiniluoto (1992), partindo da idéia popperiana de mundo três, apresentou uma outra forma de conciliar o construtivismo e o realismo em matemática.. O construtivismo matemático faz uso do construtivismo lógico ou intuicionismo lógico, que se distingue da lógica tradicional fundamentalmente pela 51
rejeição da lei do terceiro excluído. É sempre importante, no entanto, lembrar que isto significa dizer simplesmente que no construtivismo a lei do terceiro excluído deixa de ser considerada um axioma, mas continua válida para operações com conjuntos finitos. A diferença para a matemática clássica é que nesta se pode demonstrar a existência de um objeto simplesmente demonstrando que a inexistência deste objeto implicaria uma contradição, ou seja, se valendo da lei do terceiro excluído. Brouwer (1984b, p.91) enuncia assim a forma dessa lei na matemática: “Every assignment t of a property to a mathematical entity can be judged, i.e. either proved or reduced to absurdity”. O intuicionismo rejeita essa lei fundamental da lógica e matemática clássica porque o seu uso não oferece um método de construção do objeto “demonstrado” e, uma vez que não acredita numa existência transcendente dos objetos matemáticos, se não temos explicitada uma forma de construí‐lo mentalmente em um número finito de passos, então não temos motivos para assumir sua existência como demonstrada. Também no que diz respeito à lógica, uma das principais diferenças entre a intuicionista e a clássica diz respeito à rejeição deste axioma. Mas outras diferenças importantes são bem gritantes, como a defesa pelo intuicionismo lógico de uma visão oposta ao programa logicista fregeano. O intuicionista nega que a lógica fundamente a matemática, defendendo que primeira simplesmente resume os esquemas de raciocínio utilizados na segunda. Em outras palavras, para o intuicionismo é a matemática que é o fundamento da lógica, não o contrário. 52
Mas voltemos à questão da rejeição pela lógica intuicionista do axioma do terceiro excluído. Esta rejeição deriva da transformação no intuicionismo do significado dos operadores lógicos (VAN DALEN, 1980, p. 166). Partindo da tese de que o valor de verdade de uma proposição só pode ser estabelecida se temos uma prova para ela, e de que por prova se quer dizer uma construção matemática, não dedução, que estabeleça a verdade da proposição, nesta abordagem os operadores passam a representar diferentes necessidades de processos de provas para os termos que estão relacionados. Assim, uma disjunção nada mais é que uma indicação que a verdade daquela proposição depende de uma prova construtiva da existência de um dos termos, e uma conjunção a indicação de que a verdade da proposição depende de uma prova construtiva da existência de ambos os termos. Assim, se temos determinadas proposições, como a conjectura de Goldbach (todo número par é igual à soma de dois números primos ímpares), para as quais não podemos (até o momento) encontrar provas nem de sua verdade nem de sua falsidade, não poderíamos afirmar nem que g, nem que g. Logo, para o intuicionismo, não poderíamos tampouco afirmar g V g, pois não temos como provar nenhum dos termos. É uma consequência, sem dúvida, bastante contra‐intuitiva de se admitir como válidos os pressupostos epistemológicos do programa intuicionista. Retomando as questões colocadas no início do capítulo, podemos sintetizar a posição ontológica do construtivismo lógico como variável, mas de forma predominante, idealista regional (no caso do intuicionismo). Também regionalmente é dogmático, pois pressupõe que a construção do objeto matemático permite um 53
conhecimento absoluto sobre ele. Por fim, é obviamente construtivista no que diz respeito a relação entre o sujeito e o objeto matemático. 2.4 – Definição de Construtivismo Joseph Rychlak, filósofo da psicologia contemporâneo, declaradamente adepto do construtivismo filosófico, afirma (1999) que, desafortunadamente, o termo construtivismo é usualmente empregado em dois sentidos básicos, o que provoca uma grande confusão em discussões teóricas (p.383). O primeiro é o que considera construção o processo de associação de partes separadas para a formação de algo. Esse processo dispensa a presença de um sujeito que constrói e, para Rychlak, é o sentido com o qual o construtivismo social usa o termo. O segundo sentido do termo, que é aquele por ele aceito, é o da tradição kantiana e piagetiana. Para Piaget, construção indica o processo de criação mental de algo, incluindo conceitos, interpretações, deduções e análises. Esta acepção do termo pressupõe a existência de um sujeito ativo e construtor de suas cognições. Como afirma Sismondo (1993), a metáfora da ‘construção’ vem da geometria, quando matemáticos gregos construíam figuras geométricas a partir de poucos pontos e instrumentos: “we think of constructing as a process involving active rather than passive movements, and often goal‐directed ones” (p.520). Para estabelecer o conceito de construtivismo que será adotado aqui, é preciso responder a alguns problemas fundamentais relacionados a ele. O primeiro é a posição do construtivismo acerca da realidade. Para alguns autores como Von 54
Glasersfeld (1998) ou Watzlavick (1984), na raiz da contenda epistemológica entre o “objetivismo” e o construtivismo está a questão da natureza da realidade. Para posições “modernas” objetivistas a realidade seria concebida como objetiva, externa e independente do sujeito do conhecimento, além de passível de ser descoberta em alguns de seus aspectos pela ciência. Para o que eles chamam de construtivismo a ciência cria, ela própria, a realidade no curso de sua prática. A pergunta então é de se a realidade existe de forma independente dos sujeitos ou os sujeitos criam a realidade. Defendo (CASTAÑON, 2007) que esta é uma falsa questão, fruto da confusão de setores pós‐modernos do construtivismo entre as teorias validadas sobre a realidade (o conhecimento), a verdade e a própria realidade. Defendo também nesta dissertação que a mesma falsa questão é fruto também da confusão entre realismo ontológico e realismo epistemológico (se é que é adequado o uso do termo aqui), que defenderia que podemos conhecer algo sobre as coisas em si mesmas (NIINILUOTO, 1999). O construtivismo filosófico oferece uma resposta nova para a antiga questão da origem do conhecimento e sua relação com a realidade. Para o construtivismo refletido nas obras de Piaget (1973) ou de Popper (1975), nós criamos hipóteses sobre o real, e apesar de nossa relação com o real se dar através destas hipóteses, esta relação existe, pois através da resistência de nossas sensações em se comportarem como nossas hipóteses preveem, a realidade se mostra independente destas últimas influenciando aquelas. As hipóteses que são justificadas por uma metodologia aceita passamos a considerar conhecimento, porém, conhecimento provisório. Assim, para 55
o construtivismo derivado da tradição kantiana o sujeito não constrói a realidade, constrói suas representações da realidade. O construtivismo tradicional é realista e defende o sujeito epistêmico como a fonte de todas as representações da realidade. Mas o realismo ontológico não define o construtivismo, pois é comum a praticamente todas as doutrinas sobre o conhecimento. O que define o construtivismo é a tese original de Kant de que é o objeto que se adapta à mente do sujeito, e não o contrário. Num sentido mais geral e de segunda ordem, é a tese epistemológica de que construímos hipóteses sobre o funcionamento da realidade e as testamos através das predições de como vão se suceder nossas sensações. Os dois sentidos de construtivismo, de primeira e de segunda ordem, assumidos como essenciais à sua definição, eliminam de seu campo tanto o construcionismo social como o construtivismo social, que, como exporei nesta dissertação, defende uma estranha espécie de anti‐objetivismo sem sujeito e, em sua versão mais radical, também sem objeto, no qual tudo o que existe são as formas culturais estruturadas pela linguagem. De forma complementar podemos também definir construtivismo através de sua oposição conceitual ao objetivismo. Se podemos encontrar algo comum a todas as correntes que se autodenominam construtivistas é a rejeição ao que denominam ‘objetivismo’. As formas “sociais” do construtivismo, no entanto, rejeitam o objetivismo através de sua rejeição tanto da “natureza” quanto do “sujeito”, 56
parecendo implicitamente assumir que a rejeição ao objetivismo é suficiente para se caracterizarem como construtivistas. Podemos definir ‘objetivismo’ como a posição filosófica que defende que o objeto determina no sujeito a representação que este tem dele. Ou seja, para o objetivismo, o objeto é algo dado, com uma estrutura que é de alguma forma imposta ao sujeito na relação de conhecimento, e as representações que temos do mundo, mesmo que não idênticas ao objeto, são determinadas em nós por ele. Não se pode, portanto, como fazem muitos autodenominados construtivistas, confundir objetivismo com a solução pré‐epistemológica para o problema da relação sujeito‐
objeto, que considera as representações mentais cópias perfeitas do mundo externo (CASTAÑON, 2007). Nem o empirismo filosófico defendia esta tese. Mesmo Locke (1952) já distinguia nas qualidades dos objetos que nos eram dados pelos sentidos o que seriam suas qualidades primárias de suas qualidades secundárias. Só as primeiras (como a extensão, solidez ou movimento) pertenceriam ao objeto, enquanto as segundas (como a cor, sabor ou cheiro) pertenceriam à mente do sujeito, não tendo existência objetiva (só subjetiva). Assim, esta existência subjetiva não se assemelharia às propriedades que estão nos corpos e que as produziram. Da mesma forma, não podemos confundir o objetivismo com o realismo. O objetivismo é uma das possíveis posições epistemológicas derivadas do realismo ontológico. Outra é o criticismo, que defende que nossas representações se referem a objetos que têm existência independente de nossa mente, e que de alguma forma influenciam as nossas teorias sobre eles. Com o progressivo abandono do objetivismo 57
observado na filosofia pós‐kantiana, o tipo de realismo defendido na filosofia contemporânea é geralmente comprometido com uma posição epistemológica crítica, e paga de uma forma ou de outra seu tributo a Kant. Referirei‐me nesta dissertação a esta espécie de realismo como ‘realismo crítico’, deixando claro, no entanto, não me referir ao tipo de posição que também reivindicou esta denominação e que foi defendida no volume coletivo “Essays in Critical Realism” (DRAKE et alli, 1920). Como exemplo de posição simultaneamente realista, criticista e construtivista temos o tipo de realismo crítico defendido por Popper e desenvolvido por Ilkka Niiniluoto, que defende (NIINILUOTO, 1999) a teoria do realismo crítico científico. Para Popper (1975b), nossas teorias sobre a realidade são construídas por nós, e condicionam nosso olhar e interpretação sobre ela. Condicionam, porém, não determinam. Quando nos deparamos com um erro, ou seja, quando nossas teorias sobre a realidade são seguidamente contraditadas por observações que não se adaptam a elas, acabamos por modificar nossas teorias e representações do mundo de forma a adaptá‐las à experiência. Assim, nossas teorias, apesar de condicionarem nossa experiência da realidade, não a determinam. É ao falharem em predizer a sucessão de sensações que teremos, que nossas teorias provam que não são a realidade mesma. Já para Niiniluoto (1999), que elabora vigorosa defesa do realismo em sua obra Critical Scientific Realism, o realismo crítico se posiciona ontológica, semântica, epistemológica e axiologicamente, e pode‐se definir pelas teses: 58
‐ At least part of reality is ontologically independent of human minds. ‐ Truth is a semantical relation between language and reality. Its meaning is given by a modern (Tarskian) version of the correspondence theory, and its best indicator is given by systematic enquiry using the methods of science. ‐ The concepts of truth and falsity are in principle applicable to all linguistic products of scientific enquiry, including observation reports, laws and theories. In particular, claims about the existence of theoretical entities have a truth value. ‐ Truth (together with some other epistemic utilities) is an essential aim of science. ‐ Truth is not easily accessible or recognizable, and even our best theories can fail to be true. Nevertheless, it is possible to approach the truth, and to make rational assessments of such cognitive progress (NIINILUOTO, 1999, p.10). O racionalismo crítico (POPPER, 1975; WATKINS, 1984; ANDERSON, 1994; NIINILUOTO, 1999) é um exemplo típico de filosofia construtivista – pois acredita que o processo de conhecimento parte da atividade do indivíduo, do sujeito, que constrói, não a realidade mesma, mas suas teorias e hipóteses sobre ela – e realista, pois considera que é a realidade, estável e independente do sujeito, que constrange e julga as hipóteses e teorias deste último sobre ela. Evidentemente, o racionalismo crítico de forma alguma é objetivista, pois considera que nossas crenças e teorias não são cópias fiéis da realidade nem provocadas por ela, mas somente modelos simplificados daquela que de tempos em tempos são falsificados e exigem a construção de um novo modelo por parte do sujeito. Ao recapitular as posições construtivistas apresentadas aqui, podemos estabelecer que, em relação à Q1, sobre a existência ou não de objetos independentes da mente, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo e o racionalismo crítico se posicionam 59
com o realismo; enquanto o construcionismo social, o construtivismo radical e o intuicionismo se posicionam com formas de idealismo. Em relação à Q2, sobre a possibilidade do conhecimento de aspectos dos objetos do mundo, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo e o racionalismo crítico se posicionam com o criticismo, o intuicionismo e o construtivismo lógico não se aplicam ao problema, e o construtivismo radical e o construcionismo social são claramente céticos. Em relação à Q3, sobre a origem do conhecimento, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo, o racionalismo crítico, o intuicionismo, o construtivismo lógico em geral e o construtivismo radical são claramente construtivistas no sentido limitado e prévio em que usamos o termo, como a posição que defende o papel ativo do sujeito na construção de suas representações do objeto. Já o construcionismo social em hipótese nenhuma é claro em relação ao que é o sujeito, o objeto e a relação entre eles. Assim, mesmo com a indefinição do construcionismo social (que de resto não adota o termo ‘construtivismo’ mas sim ‘construcionismo’) podemos definir o construtivismo como uma tese epistemológica, e não ontológica, pois o que o caracteriza não é a posição acerca da natureza do objeto do conhecimento, e sim a posição acerca do processo de obtenção do conhecimento. Sintetizando, define‐se aqui construtivismo pelas teses: a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; 60
b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e portanto as hipóteses em questão se revelem inadaptadas ao objeto; c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem dele; Assim, podemos concluir destas teses que, se tratando de tese epistemológica, o construtivismo se divide em vertentes ontológicas realistas e idealistas, pois não assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento. A partir desta definição de construtivismo, vamos agora avaliar o quanto o construtivismo social se encontra aderido a ela. 61
Capítulo 3 Construtivismo Social Neste capítulo serão apresentadas as principais teses do construtivismo social, com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas. Os resultados alegadamente empíricos desta abordagem não são objeto desta dissertação, portanto, quando mencionados, só o serão como ilustração de conseqüências ou fundamentos filosóficos. Começaremos com uma sumária contextualização e apresentação conceitual do construtivismo social, para logo depois abordarmos algumas idéias de Ludwig Wittgenstein, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend que tiveram influência fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens do capítulo serão dedicados a uma avaliação cuidadosa das teses ontológicas e epistemológicas do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito de consensual e o que há de divergência entre as correntes e principais proponentes do autodenominado “strong programme”. 62
3.1. – Caracterização geral do Construtivismo Social O construtivismo social é uma abordagem da sociologia que se resume essencialmente em um conjunto de pressupostos filosóficos e diretrizes políticas a serem aplicadas à disciplina da sociologia do conhecimento. Seu ancestral sociológico é Karl Mannheim, pioneiro da disciplina que defendia a tese de que a distinção entre conhecimento e crença pessoal é meramente o endosso coletivo dado as crenças do primeiro tipo. No entanto, Mannheim não cedeu à tentação do sociologismo, uma vez que acreditava que forças sociais determinavam toda ideação humana, exceto os conceitos físico‐matemáticos (MANNHEIM, 1971). Esta restrição rendeu duras críticas por parte de David Bloor, que acusou Mannheim abertamente de falta de “nervos” (1991, p.11) para assumir o que Bloor acha inevitável, ou seja, que toda ideação humana é causada socialmente, portanto, deve ser objeto da sociologia. A expressão ‘construção social’, surge da obra de Peter Berger e Thomas Luckmann (1973), The Social Construction of Reality, de 1966. Este auto denominado tratado sobre sociologia do conhecimento exerceu grande influência sobre a psicologia social e a sociologia contemporânea. Um de seus pontos principais hoje é considerado senso comum: o fato de instituições serem construídas socialmente e terem realidade independente de nossa vontade particular (ver Searle, 1995). Instituições existem porque uma parcela significativa da sociedade acredita que elas existem, e age de acordo com sua existência. Isso não faz delas entes menos reais: não 63
podemos individualmente fazê‐las desaparecer não acreditando nelas ou não desejando sua existência, porque muitas outras pessoas acreditam nelas e agem como se elas existissem. Assim, precisamos agir como se elas existissem, o que reforça a existência destas instituições. Esta lição fundamental desse livro clássico forneceu o modelo de construção social que posteriormente o construtivismo social aplicaria a praticamente tudo, não apenas às instituições. A reivindicação principal de Berger e Luckmann (1973) é a de que a “realidade” é construída socialmente. Definem ‘realidade’ como a qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos ter um ser independente de nossa própria volição, e o conhecimento como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas. Eles esclarecem que usam esses termos fora de seu significado estrito. Eles o usam com o sentido do que o homem comum julga como real e como conhecimento. É uma análise, portanto, não do conhecimento, mas de suas representações sociais, das concepções de conhecimento construídas pelo homem comum, independentemente de sua adequação à realidade. Afirmam claramente Berger & Luckmann: “incluir as questões epistemológicas concernentes à validade do conhecimento sociológico na sociologia do conhecimento é de certo modo o mesmo que procurar empurrar o ônibus em que estamos viajando” (1973, p.27). Com isso, eles não se afastam do princípio tradicional que afirma não estar a sociologia habilitada a definir a natureza da ciência ou do conhecimento, mas somente a investigar como estes conceitos são aceitos, concebidos ou operados. 64
No entanto, é precisamente isso o que faz o construtivismo social ao crer ter colocado no âmbito da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Esta abordagem surge de um grupo de sociólogos da universidade de Edimburgo, em meados dos anos setenta, que liderados por Barry Barnes e David Bloor lançam o programa forte da sociologia da ciência. São marcos fundadores deste programa as obras Scientific Knowledge and Sociological Theory, de 1974, e Knowledge and Social Imagery, de 1976 (BLOOR, 1991). Entre as principais diferenças do “strong programme” em relação ao trabalho que era efetuado em sociologia do conhecimento antes de seu surgimento está a convicção de que pertencem ao âmbito da própria sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade como ciência, além da concentração do foco de estudo no conhecimento científico, em detrimento de todas as outras alegações de conhecimento. Como afirma Oliva (2003), enquanto as filosofias da ciência tradicionais se comprometiam com a universalização dos métodos das ciências naturais, as epistemologias “heterodoxas” passaram a acalentar a pretensão que os próprios Berger e Luckmann consideraram contraditória: a de explicar a racionalidade das ciências, incluindo as naturais, recorrendo às ciências sociais, em especial à sociologia. Isso constitui uma grande inversão: uma disciplina altamente questionada em sua cientificidade passa a querer explicar a condição de cientificidade de disciplinas como a física. Oliva (2003, 2005) defende que essa mudança radical nas pretensões da sociologia não decorre de nenhuma mudança causada pelo 65
desenvolvimento interno da disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas surgidas da “Nova Filosofia da Ciência”, particularmente, das idéias de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Para Bloor (1991), o programa forte é essencialmente um conjunto de quatro requerimentos metodológicos desenvolvidos para os sociólogos do conhecimento científico: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade. Talvez a tese mais característica do construtivismo social seja a da simetria. Esta consiste na crença, expressa originalmente na obra referência de Barry Barnes (1974), de que os sociólogos devem tratar e investigar todas as crenças sobre a natureza e a sociedade da mesma forma, considerando que tanto as crenças alegadamente “corretas” ou “científicas” quanto as “incorretas” ou “não‐científicas” são derivadas das mesmas fontes, estão sujeitas às mesmas causas, e, portanto, submetidas às mesmas formas de explicação sociológica. Como crenças verdadeiras não teriam uma credibilidade intrínseca maior que crenças falsas, sua aceitação depende das mesmas espécies de forças sociais que produzem a eventual aceitação de crenças falsas. Isto leva ao princípio complementar de imparcialidade, que prega a necessidade de o investigador colocar em suspenso suas crenças pessoais quanto à falsidade ou veracidade última das crenças que ele está investigando. A terceira diretriz que caracteriza o construtivismo social é sua demanda por explicações sociológicas causais, não meramente descritivas, a qual Bloor (1991) denomina ‘causalidade’. Assim o “strong programme” não aceita uma produção descritiva ou interpretativa, sua meta é produzir explicações sociológicas de caráter 66
causal sobre o que provoca e sustenta uma disciplina científica e seu alegado corpo de conhecimento. Isso não significa para Bloor (1991) que somente causas de natureza social determinam a construção do conhecimento. Para ele um dos pressupostos básicos do construtivismo social é o de que sistemas de crenças são propriedades de entidades biológicas que interagem umas com as outras e com seu ambiente natural. Como veremos neste trabalho, este é um ponto de divisão no construtivismo social, que se expandiu para além do programa forte da escola de Edimburgo. Ele varia desde a posição supostamente moderada, mas imprecisa, do strong programme de Bloor ou Barnes sobre o papel do sujeito e do mundo natural no processo de construção do conhecimento até as posições mais extremas de Steve Woolgar (1988), Harry Collins (1981), Lynn Nelson (1993) ou do primeiro Bruno Latour (LATOUR & WOOLGAR, 1986), que defendem abertamente que o conhecimento é totalmente construído socialmente e que aquilo que chamamos de fatos naturais são na verdade produtos da atividade científica. As declarações de Barnes e Bloor em defesa do realismo de sua posição, que geralmente surgem como respostas a críticos do strong programme, são na verdade postas em dúvida por outras ao longo de sua obra, como veremos nesta dissertação. Mesmo depois de mais de trinta anos da publicação de suas obras fundamentais, literalmente dezenas de críticos de peso como Thomas Kuhn (2003), Larry Laudan (1981), Mário Bunge (1991, 1992), Ilkka Niiniluoto (1999), Alan Sokal (2001), André Kukla (2000) entre muitos outros continuam, apesar das respostas e replicações de 67
ambos, ininterruptamente a acusar sua posição de idealismo, ainda que geralmente de um “idealismo epistemológico” (ceticismo). No mínimo, tal nível de possível incompreensão, que se estenderia até a colegas da Universidade de Edimburgo simpáticos ao projeto geral do strong programme como o sociólogo Stephen Kemp (2005), indica um alto grau de imprecisão ontológica de sua posição, mesmo mais de trinta anos depois de sua primeira formulação. Por fim, temos a proclamação do princípio de reflexividade, que segundo Bloor (1991) indica a necessidade de sociólogos do conhecimento não reivindicarem uma posição de segunda ordem em relação ao conhecimento científico, ou dito com suas palavras, um ponto de vista transcendente para justificar suas alegações. Bloor (1991) afirma que nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja aplicável a si mesma, assim, as crenças do construtivismo social são também elas causadas socialmente. Acreditam os construtivistas sociais que a mera proclamação deste princípio pode livrá‐los do problema da auto‐refutação. Abordaremos de novo este problema no subitem dedicado à epistemologia do strong programme. Podemos neste momento ampliar a definição provisória dada no início do capítulo sintetizando fundamentalmente o construtivismo social como uma abordagem filosófica sobre a sociologia que se apresenta como programa de pesquisa empírica, tendo como essência a tese de que as crenças científicas têm causas sociais. Nascida do programa forte em sociologia da ciência, ela se expandiu para além das fronteiras da Escócia, gerando abordagens mais radicais ontologicamente, como o que denominaremos aqui “construtivismo social ontológico”, de Woolgar, Collins e 68
Nelson, o programa do construtivismo social material, de Karin Knorr‐Cetina (1981), e também o campo de estudos sociológicos da construção social de sistemas tecnológicos, começado por Trevor Pinch e Wiebe Bijker (1987). Além destes, num “capítulo” à parte, ainda podemos citar as abordagens mutantes e hesitantes de Bruno Latour, que começando no programa forte, se tornou famoso lançando com Woolgar o construtivismo social ontológico (LATOUR & WOOLGAR, 1986 [1979]), transitou por uma posição que pretendia investigar antropologicamente a ciência interpretando cientistas como maquiavélicos atores de redes sociais lutando para acumular recursos financeiros de pesquisa (LATOUR, 1987, 1992), e por fim voltou à cena com uma estranha posição ontológica que pretende refundar todo o pensamento ocidental abolindo a oposição sujeito‐objeto e afirmando que natureza e sociedade são ambas causa e efeito uma da outra (LATOUR, 1999, 2000). Deixando de lado as posições menos compreensíveis e mais instáveis do movimento, podemos apresentar o construtivismo social como defensor das teses assim sintetizadas por Oliva (2003): primeira, a renúncia à enunciação de um critério de cientificidade, de demarcação entre ciência e não‐ciência. A segunda, a rejeição da subordinação do teórico ao observacional, sustentada pela crença de que é impossível separar minimamente o componente teórico do observacional. A terceira é a rejeição do “objetivismo”, que segundo esta abordagem seria a crença de que os resultados da ciência são determinados pela natureza, para substituí‐lo pela crença de que os resultados da ciência são predominantemente fruto de “interação social”. 69
A quarta é a concessão de primazia à história da ciência para julgar a ciência e suas pretensões de conhecimento, que não poderiam ser a‐históricas. A quinta é a inversão do naturalismo: em vez de a ciência natural ser modelo de ciência, é à sociologia que é dado o poder de explicar ciências maduras como a física, que são tradicionalmente vistas como modelos de cientificidade. A sexta é a adoção da tese kuhniana da incomensurabilidade dos paradigmas, que abordaremos no próximo subitem. A sétima, por fim, é a rejeição da idéia de progresso científico e de superioridade epistêmica da pesquisa científica em comparação com outras modalidades de saber. O construtivismo social afirma que a ciência não é um modo de produção de conhecimento superior aos outros, e que a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta é artificial. A posição epistemológica tradicional afirma que a produção da pesquisa (contexto de descoberta) pode ser explicada em termos do ambiente sócio‐cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a aferição do valor epistêmico dela (contexto de justificação), é determinada por critérios lógicos e empíricos que em nada dependem do contexto social. Esses critérios é são questionados por sua suposta a‐historicidade e falha universalidade por Kuhn e Feyerabend, cujos argumentos são endossados e reescritos pelo construtivismo social. Este último julga tais critérios tão condicionados pelo ambiente sócio‐cultural como as teorias científicas, já que no fim das contas, estes critérios também seriam teorias. Para abordarmos adequadamente este debate nos próximos itens, vamos 70
então antes avaliar a fonte filosófica de onde, realmente, brotou esta abordagem sociológica (ou filosófica sociologista) do problema do conhecimento científico. 3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência 3.2.1 –Wittgenstein e a dissolução lingüística da epistemologia Ludwig Wittgenstein foi um filósofo efetivamente profundo e peculiar. A peculiaridade a que me refiro aqui é bastante conhecida: encontramos em sua obra duas fases nas quais seu pensamento se divide de forma radical. O “primeiro Wittgenstein”, como se tornou conhecida a primeira fase de sua obra, se apresenta como um filósofo que defende a existência de uma realidade plenamente significativa independente dos sujeitos cognoscentes, e que julga ser tarefa daqueles que buscam conhecimento dessa realidade descrevê‐la da forma mais lógica e semanticamente rigorosa possível. Para Richard Rorty (1989) sua teoria figurativa sobre a realidade é um exemplo de filosofia fundacional “modernista” que defende que a mente reflete a natureza. É o mesmo Rorty (1989), confessadamente profundo devedor de Wittgenstein, que credita à segunda metade da obra deste pensador a maior responsabilidade pelo enfraquecimento da estrutura epistemológica da modernidade. O “segundo 71
Wittgenstein” rechaça completamente os pressupostos “modernistas” assumidos na primeira fase de seu pensamento. Sua obra “Investigações Filosóficas” talvez seja a mais importante precursora do pensamento pós‐moderno. Wittgenstein (1975) se dedica na segunda fase de sua obra a desmantelar seus primeiros conceitos de atomismo lógico e da teoria como representação da realidade. Rechaça as noções de que os elementos referenciais da linguagem devam se reportar a objetos, de que as proposições atômicas devam se constituir de maneira tal que sua verdade ou falsidade determina o valor de verdade do enunciado composto, de que a estrutura da linguagem logicamente perfeita espelha a estrutura da realidade e de que todas as linguagens são intertraduzíveis quando presas ao uso referencial. Wittgenstein (1975) defende que o pensamento não se separa das palavras que são usadas para expressá‐lo. Ele chega a essa conclusão através de sua teoria social da mente que por sua vez se deriva de sua teoria social do significado. Esta afirma que não existe nada parecido com uma linguagem privada. Para ele, a idéia de que a linguagem e o pensamento começam por experiências privadas é um dos erros filosóficos mais fundamentais. A linguagem é produto de convenções. O significado não se baseia nos objetos, no processo mental ou em entes ideais. Adquire‐se através do contato social com outros habitantes da cultura em questão. À experiência comum a todos os seres humanos de um momento no qual parece que os pensamentos se desenvolvem com uma rapidez muito além de nossa capacidade de expressá‐los, Wittgenstein (1975) opõe o argumento de que compreendemos de golpe um pensamento da mesma forma que podemos tomar 72
nota dele e resumi‐lo em poucas palavras. Ele insiste que fora da linguagem não há ponto de apoio objetivo nem independente. O pensamento não seria nada mais que uma atividade que usa signos adquiridos durante o processo de socialização. Outra idéia básica do pensamento do segundo Wittgenstein (1975) é a de que realidades significantes são criações humanas sem nenhuma preocupação formal primária com o que a natureza dessas criações possa ser. As realidades particulares que qualquer sujeito cria dependem da participação do sujeito nos processos sociais de experiências que efetivamente abranjam um ou mais “jogos de linguagem”. Esse é um conceito que Wittgenstein (1975) usa para abranger em uma determinada cultura “o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (p.16). Com a linguagem, podemos fazer as coisas mais variadas, as funções que as palavras podem assumir não se reduzem à referencial. Os jogos de linguagem são inúmeros, porque são inúmeros os tipos diferentes de emprego de tudo o que chamamos sinais, palavras, proposições. E essa multiplicidade não é algo fixo ou dado de uma vez por todas: novos tipos de linguagem, novos jogos lingüísticos surgem continuamente, enquanto outros envelhecem e são esquecidos. Falar uma língua faz parte necessariamente de uma forma de vida: “Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”, “palavras”, “frases”. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e 73
são esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar as modificações da matemática.) O termo “jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”. (WITTGENSTEIN, 1975, §23) Para Wittgenstein, esses jogos de linguagem determinam essencialmente a realidade experimentada pelos sujeitos. Perguntar qual é a verdadeira natureza da realidade é efetuar uma falsa questão, pois descrições da realidade só são possíveis mediantes um dado jogo de linguagem. Assim, para o que nos interessa particularmente nesta dissertação, a atividade científica tal qual é concebida tradicionalmente é diretamente atingida. Não existe observação experimental ou mensurada que não seja ela própria uma sensação, um estado privado de consciência do cientista. Diz Wittgenstein sobre este problema: Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – Não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – Acho que não. As palavras desta linguagem devem referir‐se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro pois, não pode compreender esta linguagem. (WITTGENSTEIN, 1975, §243) Wittgenstein ilustra a tese da incomunicabilidade do estado mental e da natureza essencialmente social da linguagem através do seu famoso dilema do inseto na caixa. O significado dos termos não é dado, diz Wittgenstein, por estados mentais referentes a sensações, mas por “jogos de linguagem” que emergem das relações sociais. Não podemos saber se o ‘vermelho’ que aparece para mim é o ‘vermelho’ que aparece para outrem. Portanto, convencionaríamos dentro de determinado jogo de 74
linguagem que tipos de ações são eficientemente coordenadas pelo uso da palavra ‘vermelho’, e nada mais. É também famosa a exortação que Wittgenstein fazia a seus alunos em Cambridge, quando dizia que não devemos nos perguntar sobre o significado de uma palavra, e sim sobre o seu uso. O ‘inseto’ de Wittgenstein são nossos estados mentais (o termo é ‘beetle’): Ora, alguém me diz, a seu respeito, saber apenas a partir de seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de ‘besouro’. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro – Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Sim, poderíamos imaginar que uma tal coisa se modificasse continuamente. – Mas, e se a palavra ‘besouro’ tivesse um uso para estas pessoas? – Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa também poderia estar vazia. – Não, por meio desta coisa na caixa, pode‐se ‘abreviar’; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de ‘objeto e designação’ então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante. (WITTGENSTEIN, 1975, §293) O referente, portanto, é irrelevante. Ele é uma ficção, como diz Daniel Robinson (1985) sobre Wittgenstein, não ontológica, mas gramatical. É claro que Wittgenstein acredita na existência das sensações que seriam os referentes das palavras. Mas o problema aqui não é o da existência do objeto, e sim o de sua referência. Se um termo é inteligível, seu referente deve ser público. Assim, termos que descrevem sensações privadas têm seu significado estabelecido pelos padrões de comportamento associados inicialmente a eles (como gritos e choro à ‘dor’), aos 75
quais, com o tempo, eles virão a substituir. O problema é que essa posição elimina o aspecto especificamente psicológico de todos os comportamentos humanos, da mesma forma como o behaviorismo o faz. Porque a questão psicológica continua a ser se determinadas palavras que buscam expressar estados psicológicos efetivamente o expressam, ou seja, a questão é sobre o que de fato existe psicologicamente. Outro problema é que a posição de Wittgenstein acaba resultando em reducionismo lingüístico, uma vez que ao insistir na tese de que devemos basear os modelos psicológicos e sua linguagem estritamente nos comportamentos inicialmente associados às palavras, ele ainda assim está falando de experiências internas. Ora, não existe observação de um comportamento que não seja ele próprio uma sensação, e como tal, um estado privado de consciência do cientista, um besouro na caixa. Quando se soma a estes problemas o da radicalização das insinuações de Wittgenstein, efetuada por autores construtivistas sociais, de que o pensamento se resume à linguagem, entramos numa infinita casa de espelhos onde cada palavra reflete outras palavras sem nunca se referir diretamente a um significado percebido como estado subjetivo. Desta forma, o conhecimento se tornaria impermeável às experiências sensoriais puras, às intuições sensíveis, pois estas sempre seriam experimentadas através dos óculos da linguagem socialmente construída. Não parece um quadro nada verossímil da experiência humana. 76
Seguindo as teses de Wittgenstein, não temos como obter definições de termos teóricos através de termos observacionais. Os termos teóricos têm seu significado determinado pelo uso que têm no enunciado em que ocorrem e pela estrutura da teoria como um todo. O próprio processo de teste de hipóteses não se referiria jamais a uma asserção individual, mas a teorias vistas como totalidades, e em última análise a todo conhecimento científico, o que faz o holismo semântico se transformar em holismo metodológico: não são hipóteses isoladas que são testadas em experimentos, mas sim redes inteiras de suposições. Se uma bactéria não se comportou como era esperado depois de entrar em contato com uma substância química, não é só a hipótese de influência bacteriológica da substância que está sendo testada, mas toda a rede de suposições químicas, biológicas, ópticas (do microscópio utilizado) que não funcionou como o esperado. Dessa forma, o mundo não daria a palavra final sobre a teoria que iria prevalecer. E foi assim que a tese da construção lingüística dos fatos abriu caminho para que o construtivismo social defendesse a tese de que tudo na ciência, inclusive o conteúdo de suas teorias, é construção social. A filosofia da linguagem se tornou no século XX uma disciplina central para a elucidação da racionalidade científica. O atomismo referencialista do primeiro Wittgenstein está na base de muitas das mais importantes teses defendidas pelo positivismo lógico, enquanto que o holismo semântico de autores como Quine e o segundo Wittgenstein dá sustentação às teses de autores como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, e diretamente ao construtivismo social (Bloor, 1983, 1997a). A adoção da 77
teoria do significado como uso por esses autores leva, necessariamente, à tese da incomensurabilidade dos paradigmas. Para o holismo semântico as partes de um discurso não têm em si mesmas significado. Quine, seguindo a tese de Pierre Duhem, sintetiza esta perspectiva na sentença: “o todo da ciência é a unidade de significância empírica”. A implicação epistemológica dessa tese é a de que diante de qualquer evidência empírica desfavorável, qualquer teoria pode ser salva de refutação através de uma hipótese ad hoc. Filosofias da ciência que adotam essa tese costumam, como aponta Oliva (2005), negligenciar a especificação dos mecanismos por meio dos quais se atribui ao todo a capacidade de gerar e reproduzir significados, sustentando que todo sistema explicativo é indecomponível e as crenças científicas, formando um todo, evoluem juntas e se reforçam mutuamente. Isso acaba implicando a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, pois, ao considerar que o significado de uma lei ou conceito depende do uso que têm no interior da totalidade do conhecimento científico, se fazem altamente problemáticas as comparações entre sistemas explicativos gerados por formas de vida totalmente diversas. Mesmo quando empregam o mesmo vocabulário básico, não haveria compartilhamento do mesmo significado na mecânica clássica e na teoria da relatividade. Os significados dos termos derivam do papel que têm no enunciado e os significados dos enunciados da função que desempenham no interior das teorias concebidas como totalidades irredutíveis às partes. As teses de Wittgenstein de que “o significado de uma palavra é seu uso” e “sentenças têm o mesmo sentido quando 78
têm o mesmo uso” irão propiciar o surgimento dos pensamentos que veremos a partir de agora. 3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia Talvez o autor mais fundamental para entendermos as teses do construtivismo social seja Thomas Kuhn. Sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, publicada pela primeira vez em 1963, é a mais importante precursora do “strong programme”, muito embora o próprio Kuhn tenha rechaçado este programa classificando‐o de relativista e desconstrucionista (KUHN, 2003). O importante para entendermos a influência do pensamento de Kuhn sobre o construtivismo social como um todo é a sua idéia de que diferentes teorias gerais aceitas generalizadamente sobre o universo e o método científico, os paradigmas, são incomparáveis entre si, irredutíveis a qualquer elemento em comum (pois não o teriam), são incomensuráveis. Assim, vamos definir os termos da questão. Na primeira versão surgida do conceito, na introdução de sua obra, Kuhn define paradigmas como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (1991, p.13). Poderíamos dizer que o sentido predominante do termo ‘paradigma’ na Estrutura das Revoluções Científicas é o de uma espécie de teoria ampliada formada por leis universalmente aceitas, métodos compartilhados pela grande maioria da comunidade científica, regras para avaliação de teorias e formulações de problemas e 79
idéias metafísicas universalmente compartilhadas das quais não se tem consciência. Como vemos, num sentido estrito, o termo paradigma pode ser usado para se referir a uma quantidade muito restrita de teorias gerais. Talvez mesmo só o aristotelismo e o modelo newtoniano de ciência e universo tenham um dia se encaixado nesta descrição. No entanto Kuhn na mesma obra às vezes parece usar o conceito de paradigma num sentido mais restrito, direcionado a um único campo da ciência. Neste caso, poderíamos considerar a teoria copernicana como exemplo de um antigo paradigma da astronomia, assim como a teoria newtoniana como um antigo paradigma da Física. Kuhn foi muito criticado por pensadores como Margareth Masterman (1974) por ter usado o termo paradigma de modo vago e um tanto confuso (Masterman contou vinte e dois sentidos diferentes para o termo na obra A Estrutura das Revoluções Científicas). Em obra de 1977, Kuhn aceita as críticas de Mastermann e de outros autores e torna explícito os dois únicos sentidos nos quais gostaria que o termo ‘paradigma’ fosse utilizado: o de matriz disciplinar e o de exemplar. Matriz disciplinar seria o conjunto de crenças compartilhadas por um grupo de praticantes especialistas de uma disciplina específica que inclui: generalizações simbólicas, modelos metafísicos, valores epistemológicos, metodologia e exemplos‐padrão de problemas resolvidos. Já o exemplar seria um sentido mais estrito do termo paradigma, é um subconjunto da matriz disciplinar e refere‐se aos exemplos‐padrão de problemas resolvidos que os cientistas encontram nos laboratórios de estudantes e livros‐texto. Podemos definir 80
que a partir daqui usarei o termo ‘paradigma’ no sentido do que Kuhn (1977) denominou matriz disciplinar. Para compreender adequadamente a tese da incomensurabilidade dos paradigmas é ainda importante compreender a visão de Kuhn sobre o desenvolvimento científico. O empreendimento científico para Kuhn é constituído de duas fases gerais. A ciência normal e a ciência extraordinária. Por ciência normal, Kuhn entende uma fase homogênea da ciência, onde o crescimento do saber é cumulativo. A ciência é neste período uma atividade baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo; é um empreendimento que: Parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar‐se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos. (KUHN, 1991, p. 45) Na fase da ciência normal, as práticas teóricas e experimentais são regidas pelas regras ou princípios do paradigma vigente, e não os podem contradizer. Vista dessa maneira, a ciência normal assemelha‐se a uma resolução de quebra‐cabeças: as soluções admissíveis para os problemas científicos (que são estes mesmos também definidos pelo paradigma) estão restringidas como numa palavra‐cruzada ou num puzzle. Para Kuhn (1991), os princípios do paradigma vigente são semelhantes às regras de um jogo, com a diferença de que em um jogo as regras são todas explícitas, e seu caráter meramente convencional e arbitrário é óbvio. Já nos paradigmas, 81
embora as regras sejam convencionais e arbitrárias, esse caráter não é explícito e, portanto, muitas vezes não é consciente. O sucesso e a longevidade desse tipo de fase do empreendimento científico dependem da habilidade e perseverança da comunidade científica para defender que seus pressupostos sobre o universo estão corretos. Quando surgem novidades no campo experimental que não são explicáveis pela estrutura conceitual e axiomática em vigor, elas são num primeiro momento alvo do obsessivo e sistemático exame e investigação dos mais hábeis membros dessa comunidade, e num segundo momento, simplesmente postas de lado à espera de novos instrumentos de medida ou teorias paralelas e integradas que possam explicá‐las. Para ele, quando esses novos fatos – que subvertem pressupostos básicos do sistema conceitual em vigor – sobrevivem ao ataque sistemático da comunidade científica, à criação de novos e mais refinados aparelhos, e começam a se cercar de outros fatos empíricos que as corroboram, é reconhecida uma anomalia no sistema. Estas aparecem depois de uma exploração extensa das possibilidades das teorias e práticas experimentais delimitadas pelos princípios e regras do paradigma vigente. É assim que a ciência normal, que não seria um empreendimento dirigido para novidades, se torna eficaz em provocá‐las. Quanto mais aumenta o conteúdo informativo de uma teoria, mais ela se arrisca a ser falseada. Com efeito, quanto mais se diz, mais se está arriscado a errar. Essas anomalias a princípio são marginalizadas, e só abalam a solidez dos paradigmas que não estão dando conta de sua existência quando aparece uma nova teoria geral, candidata a paradigma, capaz de explicá‐las. 82
Abre‐se então o período da ciência extraordinária. O paradigma dominante e seus pressupostos são postos em dúvida, surgem outras propostas de paradigma investindo sobre o dominante, e então se suavizam as normas que governam a pesquisa normal. O acúmulo de anomalias provoca uma perda de confiança dos cientistas na teoria que haviam abraçado. A busca agora é por um novo paradigma, e a crise resultante disso só findará quando conseguir erguer‐se esse novo paradigma, onde as anomalias antes encontradas sejam resolvidas e os dados obtidos através do paradigma anterior reintegrados em uma nova rede de relações, abrindo‐se um novo período de ciência normal, ad infinitum. Revolução científica para Kuhn (1991) é, portanto, a substituição de um paradigma que, tendo acumulado um número de anomalias suficientes, gerou as condições necessárias para o surgimento de um novo paradigma que dê conta destas. É um momento de evolução não‐linear da história de uma ciência. Para Kuhn, quando entramos num período de crise científica, ou seja, de crise da ciência normal, só o podemos superar de três maneiras. A primeira é incorporar as anomalias ao paradigma com pequenas alterações em suas teorias. A segunda é deixar a anomalia de lado, desde que ela não esteja interferindo na resolução de outros problemas ou de objetivos tecnológicos. A terceira é a revolução científica, ou seja, a mudança de paradigma. Segundo Kuhn, no momento do conflito de paradigmas, seus respectivos partidários os defendem com base em argumentos extraídos dos próprios paradigmas. Cai‐se assim inevitavelmente numa circularidade, pois se toma como 83
pressuposto os princípios do próprio paradigma em sua defesa. Para Kuhn, paradigmas sucessivos dizem coisas diferentes acerca do universo e de seus objetos, eles são ontologicamente irredutíveis um ao outro, eles são incomensuráveis. Isso quer dizer que para Kuhn, nas revoluções científicas as mudanças de paradigma não são realizadas a partir de regras metodológicas com fundamento na racionalidade interna do sistema científico: Existem razões intrínsecas pelas quais a assimilação, seja de um novo tipo de fenômeno, seja de uma nova teoria científica, devam exigir a rejeição de um paradigma mais antigo? Observe‐se primeiramente que se existem tais razões elas não derivam da estrutura lógica do empreendimento científico. (KUHN, 1991, p. 129) Uma vez que Kuhn altera todo conjunto fundamental de termos para descrição do empreendimento científico, caracterizando‐os de forma vaga, ele acaba por enfraquecer logicamente o método hipotético‐dedutivo da ciência moderna, o que faz David Stove acusá‐lo de tornar impossível uma tradução lógica estrita do processo de investigação científica: Once you mix the history with the logic of science, the possibilities of such sabotage [of logical expressions] are limitless; and almost every possibility has been realized. Recall for example Kuhn’s willingness to dissolve even the strongest logical expressions into sociology about what scientists regard as decisive arguments; recall that the logical expressions most important to him (namely the positive “solves the problem of”, and the negative “is an anomaly for”) are weak ones, and are therefore easily sabotaged; recall his express and repeated assertion that what constitutes solution of a problem is paradigm‐
relative; and you will see that his entire philosophy of science is actually an engine for the mass‐destruction of all logical expressions 84
whatever: a ‘final solution’ to the problem of the logic of science. (Stove, 2001, p.72‐73) Embora Kuhn alegue que defende a racionalidade como característica do empreendimento científico, ele o faz somente em sua forma instrumental em relação aos pressupostos do paradigma vigente, interna ao sistema, no contexto de uma ciência normal. Mas mesmo essa racionalidade interna é minada pelo enfraquecimento lógico que suas teses causam. Além disso, enumera vários motivos que levam cientistas a adotar um novo paradigma, como reorganização gestáltica do quadro conceitual e factual, interesse e pressão política ou mesmo fé, no sentido de acreditar que o novo paradigma será capaz de responder, no futuro, a uma série de perguntas e problemas, sabendo somente que o paradigma antigo não conseguiu responder a algumas. Assim, podemos dizer que Kuhn é anti‐racionalista porque nega que a razão tenha jurisdição sobre aquilo que é a questão mais importante do empreendimento científico: a revolução científica e suas mudanças estruturais. Ele não reconhece o empreendimento científico como uma empreitada teleológica em direção à verdade. Para ele o desenvolvimento científico se dá a partir de algo (os estágios primitivos de desenvolvimento), e não em direção a algo (a verdade). É aqui que Kuhn sai do campo da descrição sociológica e se aventura no campo da filosofia propriamente dita, estabelecendo a grande fissura da filosofia da ciência contemporânea: a tese da incomensurabilidade dos paradigmas. O que Kuhn quer dizer quando defende que dois paradigmas são incomensuráveis, é que é impossível justificar racionalmente nossa preferência por uma teoria em relação a 85
outras teorias de paradigmas rivais. Não temos como comparar teorias de diferentes paradigmas de um mesmo ponto de vista, como medi‐las com a mesma escala. Esta impossibilidade de comparação racional entre duas teorias viria do fato de que entre dois paradigmas diferentes existiriam distinções radicais, os conceitos não seriam os mesmos: massa, por exemplo, para Newton significaria uma coisa e para Einstein outra diferente. Isso requereria portanto um sistema de tradução dos termos de uma teoria para a outra, como meio para efetuar uma comparação. Mas como não existe uma linguagem neutra para além de paradigmas particulares, esta tradução seria impossível. A forma de interpretar os fenômenos e o que é um fato relevante ou não também muda, e, principalmente, mudariam os métodos para avaliação das teorias. É como se a comunidade científica estivesse jogando um jogo, com suas próprias regras, e parte desta comunidade resolvesse mudar de jogo, com novas regras. Sendo as regras de cada jogo diferentes, como podemos julgar a pontuação de um jogador de basquete com as regras do tênis, e vice‐versa? Não dá para comparar as performances, porque os diferentes grupos não concordam com uma regra de comparação. Teria sido mais ou menos o que aconteceu quando Galileu acreditava ter provado através de observações pelo telescópio que havia luas em Júpiter. A observação empírica não foi aceita como prova contra a demonstração dedutiva especulativa, porque nas regras do jogo aristotélico, demonstrações racionais valiam mais que evidências empíricas. Para Galileu ao contrário, especulações racionais acerca do mundo jamais poderiam se sobrepor a dados empíricos sobre este. Assim, 86
não teríamos como comparar racionalmente as duas teorias, porquanto o julgamento de qual seguir se tornaria uma questão a ser decidida por critérios extra‐racionais. Outro problema para Kuhn (1991) é que quando ocorre uma mudança de paradigma, há sempre ganhos e perdas na capacidade de explicação e previsão. Contra o princípio da verossimilhança do racionalismo crítico, Kuhn afirma que uma nova teoria explica alguns fatos novos que a teoria antiga não explica, mas esta geralmente continua a explicar fatos que a nova não teria como explicar. Assim, não se justificaria afirmar que uma teoria é como projeto explicativo superior à outra. Por fim, diante de toda esta gama de dificuldades, os cientistas acabariam recorrendo a critérios particulares para comparar teorias e paradigmas concorrentes, entre os quais estariam a simplicidade, o poder preditivo, a abrangência, a abordagem de problemas considerados importantes ou solução de problemas tecnológicos candentes. Mas como cada cientista confere pesos diferentes para cada um destes critérios, a babel estaria definitivamente instalada. É por isso que Kuhn acredita que fatores políticos e ou propagandísticos importam muito mais na hora da escolha entre dois paradigmas concorrentes do que critérios lógico‐empíricos. Alguns anos depois, em “Reflections on my critics”, Kuhn (1974) revê o radicalismo desta posição, aceitando as críticas feitas a sua tese por alguns racionalistas críticos. Neste artigo Kuhn admite que nem todos os conceitos mudam de significado de um paradigma para outro, e que como restam intersecções conceituais e empíricas entre teorias, no fim das contas, elas poderiam ser 87
comparadas à luz de uma base comum, elas poderiam ser co‐mensuradas. Mas esta revisão de sua teoria veio tarde. Em O Caminho desde a Estrutura, Kuhn (2003) tentou pela derradeira vez se desvencilhar dos indesejados seguidores afirmando a necessidade de se defenderem os conceitos de verdade e conhecimento do relativismo pós‐moderno que ele atribuía ao construtivismo social. Chegou a declarar (p.139) que se incluía “entre aqueles que consideram absurdas as alegações do programa forte: um exemplo de desconstrução desvairada”: Interesses, política, poder e autoridade sem dúvida desempenham um papel significativo na vida científica e em seu desenvolvimento. Mas a forma que os estudos da ‘negociação’ tomaram, como indiquei, tornou difícil perceber o que mais também pode desempenhar papel relevante. De fato, a forma mais extrema desse movimento, denominada por seus proponentes o ‘programa forte’, tem sido geralmente entendida como a defesa de que poder e interesses são tudo que há. A própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel algum no desenvolvimento das crenças a seu respeito. O falar de evidência, da racionalidade das asserções extraídas dela e da verdade ou probabilidade dessas asserções foi visto como simplesmente a retórica atrás da qual a parte vitoriosa esconde seu poder. O que passa por conhecimento científico torna‐se, então, apenas, a crença dos vitoriosos. (KUHN, 2003, p. 139) Mas nada disso mudou o fato de que suas idéias, particularmente a da incomensurabilidade (que ele de fato abandonou em grande parte em seus últimos escritos), se tornaram, como havia previsto Popper (1974, p. 56), o baluarte do irracionalismo de nossa época. Isto aconteceu porque os paradigmas no contexto do pensamento kuhniano referem‐se a modelos de mundo construídos de uma forma que impede que, em última análise, sejam julgados por uma realidade objetiva. 88
Assim, a considerável aceitação das teses heterodoxas de Kuhn foi fundamental para a propagação de enfoques cada vez mais externalistas no pensamento epistemológico (OLIVA, 2005), que advogam a tese da determinação da cientificidade de teorias por critérios externos à lógica da investigação científica. O construtivismo social, ao considerar esta filosofia “pós‐positivista” como a grande vencedora do debate epistemológico, passou a invocá‐la como a fonte decisiva de argumentos a favor do relativismo epistêmico, e a interpretou de forma bem mais radical do que Kuhn desejaria. Ela foi recebida por autores como Barry Barnes (1982) como o ponto de partida de um novo enfoque sociológico sobre a ciência, já que provia o indispensável fundamento epistemológico a uma abordagem sociológica que pretendia explicar a ciência no que tem de essencial: sua cognitividade. Apesar de ter lutado a vida inteira contra o rótulo de relativista, Thomas Kuhn foi mal‐sucedido nesta luta. Sua situação piorou quando seguidores da sua versão original da incomensurabilidade dos paradigmas resolveram levar esta tese às últimas conseqüências. Este foi o caso de Paul Feyerabend (1989), criador do auto‐
denominado “anarquismo epistemológico” que marcou o lance mais radical do jogo irracionalista na filosofia da ciência. 3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia Antes de tudo é importante pontuar que não se pretende aqui examinar o conjunto da obra de Paul Feyerabend, mas somente analisar aquele seu texto que ilustra melhor as teses relativistas que foram incorporadas pelo construtivismo 89
social. Em Contra o Método, de 1975, ele lança seu anarquismo epistemológico, defendendo que a metodologia científica é na verdade o grande fator de entrave ao progresso da ciência e levando o movimento de revisão da filosofia da ciência tradicional ao seu ponto mais radical. Esta obra pretende ser a defesa de uma revolução permanente em ciência, que implica na visão da regra metodológica como sendo sempre reacionária. Seu ataque às regras, como sintetiza Oliva (1990), se dá com base em três teses. Primeira, a de que a história demonstra que os mais autênticos progressos do conhecimento contrariam de uma ou de outra maneira todas as metodologias até hoje propostas. Não haveria uma só regra que embora plausível e bem fundada deixasse de ser violada em algum momento. Segunda, a de que há um grande descompasso entre o que propõem as regras e o que efetivamente fazem os cientistas. Terceira, a de que todas as metodologias teriam deficiências de fundamentação, daí inferindo que só o vale‐tudo é capaz de manter‐se. Sustenta estas teses com interpretações de exemplos históricos que indicariam que as regras se constituem, em momentos decisivos da ciência, em autênticos entraves à marcha do conhecimento. Feyerabend (1989) afirma em outro ponto de sua obra que seu objetivo não é o de substituir um conjunto de regras por outro com o mesmo perfil dos cânones tradicionais. Seu objetivo seria, antes, o de convencer o leitor de que todas as metodologias, inclusive as mais óbvias, têm limitações. No entanto, esta segunda formulação é um truísmo. Neste movimento vemos uma característica típica da filosofia pós‐moderna: afirmações grandiloqüentes e propagandísticas, que levam a 90
conseqüências absurdas, lançam seu autor na moda filosófica do momento; assim que refutadas, são geralmente seguidas de retificações em obscuros artigos‐resposta, retificações estas que no entanto levam a posições comuns e sem interesse filosófico algum. Este é um movimento parecido com o que André Kukla (2000, p.X) denomina o pecado filosófico do “reverse switcheroos”: difundir a versão forte de uma tese, e assim que seus problemas forem apontados de forma cabal, recuar para uma versão fraca da mesma tese, fingindo que era essa versão fraca que se tinha em mente o tempo todo. Feyerabend (1989) afirma que há circunstâncias em que é aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses ad hoc, hipóteses que se colocam em contradição com resultados experimentais aceitos e estabelecidos, hipóteses de conteúdo explicativo mais reduzido que o da hipótese existente e até hipóteses contraditórias porque: Os que tomam do rico material da história, sem a preocupação de empobrecê‐lo para agradar aos seus baixos instintos, a seu anseio de segurança intelectual (que se manifesta como desejo de clareza, precisão, ‘objetividade’, ‘verdade’), esses vêem claro que só há um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e todos os estágios do desenvolvimento humano: É o princípio: tudo vale. (FEYERABEND, 1989, P.34) Para ele, só tem chance de sucesso na dura empreitada científica o pesquisador que esteja disposto a se comportar como um “oportunista brutal” (1989, p. 19) que não se prenda à filosofia nenhuma e adote a diretriz mais profícua para a qual a ocasião aponte. A adesão a novas idéias tem de ser conseguida por meios não‐
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racionais, como a propaganda, a emoção, as hipóteses ad hoc e os preconceitos de toda a espécie. Isso tudo é necessário até que se disponha de ciências auxiliares, fatos e argumentos que transformem a fé em conhecimento bem fundado. Teorias só se tornariam claras depois de terem sido usadas por longo tempo várias das partes incoerentes que as compõem. Nesse contexto se torna importante o aparecimento de uma nova classe secular dotada de nova visão e acentuado desprezo pela ciência das escolas. Mesmo porque, segundo Feyerabend, não é na razão que reside a força argumentativa máxima de uma teoria nem seu valor intrínseco, mas sim na sua capacidade de influenciar pessoas. Só recorrer a teorias alternativas quando a teoria ortodoxa já foi refutada seria botar o carro adiante dos bois: para ele a evidência capaz de refutar uma teoria muitas vezes só é revelada por uma teoria alternativa incompatível. Por isso o princípio da proliferação de Feyerabend (1989) defende que o cientista deve adotar metodologia pluralista. Já que a construção teórica é criação explicativa e os fatos são especificados pelos próprios pressupostos interpretativos, só sairíamos dessa circularidade através da confecção do maior número possível de teorizações, já que a multiplicação de diferentes óticas teóricas ampliaria o universo de fatos testadores da teoria por nós patrocinada. Além do mais, certos “fatos” refutadores só se identificariam a partir da elaboração de alteridades explicativas, não sendo possível sequer percebê‐los como fatos, segundo ele, a partir do referencial teórico dominante. Assim sendo, tudo é justificável para conseguir a diversificação, a proliferação de 92
teorias, até mesmo a força e a intervenção política nas ciências que se tornaram “rígidas e intolerantes” (p.69), como foi feito na China de Mao Tsé Tung (p.464). Esse ataque ao ideal empirista de ciência equipara epistemologicamente todas as modalidades de alegação de conhecimento, incluido o mito. Feyerabend (1989) centra sua análise na rejeição às distinções clássicas entre contexto da descoberta e contexto da justificação, entre linguagem observacional e linguagem teórica, e entre ciência e metafísica/mito. Essa postura parte do fato de que a ciência não conhece fatos nus: os fatos de que tomamos conhecimento são vistos como fatos porque uma série de pressupostos observacionais recortou a massa de percepções de determinada forma, e não de outra. Bem até aí, nada de novo. Mas partindo da tese de que não há fatos que possam ser descritos independentemente de uma teoria, Feyerabend (1989) postula não haver domínio observacional autônomo. Assim, se não há verdade objetiva a alcançar, sequer verossimilhança, não há como comparar duas teorias na busca de uma mais próxima da verdade, pois são esquemas conceituais e factuais incomensuráveis. Aqui Feyerabend pretende demonstrar a insustentabilidade da velha distinção entre linguagem teórica e linguagem observacional. Assim como Feyerabend (1989) quer abolir a distinção entre termos teóricos e termos observacionais, quer também abolir a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta. Diz que nenhuma dessas distinções tem papel na prática científica, uma vez que o contexto da justificação também pertenceria ao domínio da construção, da criatividade, que pode validar uma teoria com critérios que venha a 93
desenvolver. Dessa forma, a fronteira entre a criação e descoberta e o contexto de sua prova e validação perante os fatos ficaria dissolvida. Com base nestes argumentos, uma vez que “a ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor” (1989, p. 447), ele introduz uma questão que parece se revelar a maior de suas motivações teóricas (assim como parece ser também a da maioria dos autores construtivistas sociais): a crítica ao poder social especial do discurso científico. Tenta fazer de sua obra um libelo pela separação entre Estado e ciência: Como a aceitação e a rejeição de ideologias devem caber ao indivíduo, segue‐se que a separação entre Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, a mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a humanidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.” (FEYERABEND, 1989, p.454) Feyerabend (1989) afirma que não há porque os objetivos da ciência devam restringir as vidas, os pensamentos e a educação dos integrantes de uma sociedade livre, uma vez que a ciência não tem autoridade maior que qualquer outra forma cultural. Ataca a atitude de conferir à ciência uma “lógica” própria que lhe concede um poder especial, socialmente exorbitante. Deve‐se separar estado e ciência. Além do mais, afirma Feyerabend, a ciência moderna se impôs a seus oponentes, não os convenceu. A ciência dominou os mais ignorantes pela força, e não através de argumentos racionais (p.450). Afirma com revolta que apesar dos esforços da desrazão a ciência continua a reinar soberana, porque seus praticantes são incapazes 94
de tolerar ideologias diferentes e usam a força para impor seus desejos. Reclama que a maneira como aceitamos ou rejeitamos teorias científicas não é democrática. Não há votação sobre as teorias científicas que são ensinadas a nossos filhos, porque os cientistas não as submetem à votação (p. 456). Por isso e por tudo o que ele crê ter demonstrado sobre o discurso científico, a ciência se equipara ao mito. As conquistas tecnológicas da ciência moderna (como a ida à Lua) são exageradas pela ideologia cientificista, tribos primitivas possuíam um sistema de saber próprio, capazes às vezes de coisas de que a ciência é incapaz: Por certo que [na idade da pedra] não houve excursões coletivas à Lua, mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram‐se de esfera a esfera e finalmente encararam Deus em todo Seu esplendor, enquanto outros homens se transformavam em animais para depois readquirir a figura humana. (FEYERABEND, 1989, P.463) Afirma que a ciência é a “mais desprezível forma de escravidão intelectual e institucional” (p.454), e que deveríamos numa sociedade ideal contar com cientistas escravos voluntários que seriam bem tratados para nos dar pílulas, gás, bombas atômicas e refeições congeladas (p.454). Por fim classifica a filosofia da ciência de “disciplina espúria” (p. 455). Crê que devemos lutar politicamente para evitar que a identificação de eventuais superioridades da explicação científica acabe por dotá‐la de poderes sociais especiais, nos conclamando ao final de sua obra: Cabe aos cidadãos da sociedade livre aceitar o chauvinismo da ciência sem contraditá‐la ou subjugá‐la pela força oposta da ação geral. Ação geral foi utilizada contra a ciência pelos comunistas chineses na década de 1950 e voltou a ser usada, em circunstâncias 95
muito diversas, por algumas pessoas que se opunham à teoria da evolução, na Califórnia da década de 1970. Acompanhemos esses exemplos e livremos a sociedade do aperto estrangulador da Religião verdadeira e Única. (FEYERABEND, 1989, p. 464) O estudante da “espúria disciplina” da filosofia da ciência que se depara com a obra de filosofia da ciência de Feyerabend percebe imediatamente que está diante de uma provocação filosófica, não de uma teoria filosófica. Mas mesmo entendida como uma provocação, sua obra é excessivamente confusa e incongruente. A debilidade básica dessa “epistemologia”, da qual decorre a maioria das outras incongruências, parte do dilema, apresentado por Oliva (1990), entre propor alternativas epistemológicas superiores às regras metodológicas já formuladas ou se opor a toda e qualquer epistemologia. Essa contradição é dissimulada com uma alternância confusa, durante toda a obra, entre essas duas posições, aparentemente com o objetivo de evitar as conclusões desagradáveis deriváveis de qualquer uma delas, se consideradas em separado. Existem outras incongruências sérias em sua obra. A rejeição de Feyerabend à metodologia em si, é uma delas. Ao formulá‐la, como observou Oliva (1990), ele a justifica recorrendo ao método de indução que diz incompetente, apoiando‐se pobremente em uns poucos exemplos históricos. Como ele pode afirmar que o fato de que seriam falhas todas as metodologias que a epistemologia tenha formulado até hoje pode determinar que todas as metodologias que venham a ser criadas tenham que apresentar falhas? Em outra incoerência, vemos que enquanto algumas vezes acusa a razão e o método como travadores do progresso, em outras afirma que o 96
progresso não existe porque as teorias científicas são incomensuráveis. Feyerabend não se decide, durante toda a sua argumentação, entre acusar a razão de obstáculo ao progresso humano apresentando‐se como seu defensor, ou acusá‐la de criadora do mito do progresso, apresentando‐se como seu desmascarador. O que importa o tempo todo, ao que parece, é acusar a razão de alguma coisa. Uma última crítica (em virtude do espaço aqui dedicado) pretendo dirigir ao princípio da proliferação. Uma vez que a construção teórica é criação explicativa e o ponto de vista cria o objeto, Feyerabend (1989) afirma que o ideal a perseguir é o do confronto entre perspectivas diferentes e não o modelo tradicional que testa a teoria com base nos “fatos pertinentes”. Se os fatos são especificados pelos próprios pressupostos interpretativos, só saímos dessa circularidade através da confecção do maior número possível de teorizações, já que a multiplicação de diferentes óticas teóricas vai ampliar o universo de fatos testadores da teoria por nós patrocinada. Mas de que valem novas teorias se os sistemas interpretativos serão outros e, portanto, outros serão os objetos abordados? O princípio da proliferação só seria defensável segundo Oliva (1990), na hipótese de uma ordem epistêmica superior às duas versões alternativas, onde elas pudessem ser confrontadas. Pois se as teorias são incomensuráveis, o princípio de proliferação não serve para nada. Em suma: o anarquismo epistemológico de Feyerabend é tão cheio de incongruências e aporias, que leva quem sobre ele se debruça com olhar benevolente a pensar que toda sua obra pode não passar de uma mera peça de publicidade, um trabalho de animação cultural, concluindo que suas confusões e contradições podem 97
ser uma brincadeira com vistas a provocar as convicções racionalistas do leitor ao martelar teses manifestamente irracionalistas. Uma disposição menos favorável, no entanto, pode levar o leitor a concluir simplesmente que a obra é um exercício de mera desonestidade intelectual, como ele próprio insinua (1989): Tenha‐se sempre em mente que as demonstrações e a retórica usada não expressam profundas convicções minhas. Apenas mostram como é fácil, através de um recurso ao racional, iludir as pessoas e conduzi‐
las ao nosso bel‐prazer. Um anarquista é como um agente secreto que participa do jogo da Razão para solapar a autoridade da Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante) (p. 43) Rejeitando o critério de demarcação, recusando a legitimidade de toda e qualquer regra metodológica, a distinção entre linguagem teórica e observacional (tese da imbricação entre ambas), a distinção entre contexto da descoberta e contexto da justificação e a noção de progresso dada a incomensurabilidade das teorias, Feyerabend se tornou um autor influente. Todas essas radicalizações, algumas de teses defendidas por Thomas Kuhn, foram incorporadas, como veremos, pelo construtivismo social em seu ataque à epistemologia tradicional. No entanto, o nome de Feyerabend, desgastado pela forma pouco coerente como expõe suas idéias, é muito pouco citado pelos autores do strong programme. Nas páginas que nos levaram até aqui foi apresentada boa parte dos mais importantes ataques que o século XX testemunhou contra a epistemologia tradicional 98
antes do construtivismo social. Larry Laudan (1990) define desta forma os objetivos do tipo de epistemologia que se tornou o alvo do irracionalismo contemporâneo: A search for incorrigible givens from each the rest of knowledge could be derived; A commitment to given advice about how to improve knowledge; and the identification of criteria for recognizing when one had a bona fide knowledge claim. (LAUDAN, p.134) De fato a maioria de nós, afirma Laudan, concorda que o primeiro objetivo deve ser abandonado. O problema é que construtivistas sociais como Barnes e Bloor, e epistemólogos naturalistas como Quine defendem a questionável tese de que o descarte do programa fundacionalista implica também o abandono dos outros dois objetivos, o que de fato caracterizaria o fim da busca dos meios pelos quais se dá a validação do conhecimento. O próprio Quine (1969, p.87) reconhece que a perda do status de filosofia primeira pela epistemologia desencadeou uma onda de niilismo epistemológico. Vistas as mais importantes teses filosóficas nas quais se baseia, e que são anteriores historicamente ao seu surgimento, a partir dos dois próximos capítulos, vamos investigar em mais detalhes o tipo de atividade que o construtivismo social pretende estabelecer em lugar da epistemologia tradicional. 99
3.3. – Construtivismo Social e Ontologia Neste item abordarei fundamentalmente as teses e posições ontológicas do construtivismo social. Digo ‘fundamentalmente’ porque no interior desta corrente é pouco natural a distinção entre teses ontológicas e epistemológicas. Começaremos por investigar como o construtivismo social se posiciona sobre a mais básica das questões, a Q1 da caracterização geral do segundo capítulo: existem objetos independentes da mente humana? Em seguida, abordaremos uma complexa questão que se coloca ao construtivismo social: do que existe, o que é fruto de construção social e o que não é? Que tipos de objetos são construídos? Por fim, veremos que quando a resposta dada à questão acima é a de que os próprios fatos são construídos, estamos diante de uma cisão irremediável no movimento. É em virtude destas questões ontológicas e de suas várias e confusas teses, que o construtivismo social se fragmentou, restando somente como identidade comum algumas posições epistemológicas fortemente heterodoxas. 3.3.1. O que existe para o construtivismo social? Grande parte da dificuldade em se separar teses ontológicas e epistemológicas no construtivismo social vem do uso da própria palavra ‘construção’. Palavras terminadas com o morfema ‘ção’ na nossa língua carregam grande ambiguidade, podendo denotar tanto o processo de chegar a algo como o produto desse processo (produção pode se referir ao processo de produzir ou ao produto, inflexão ao 100
processo de inverter uma tendência ou ao resultado dessa inversão e assim por diante). Assim, quando alguém fala na ‘construção social’ da moeda, pode estar se referindo a um estudo tanto do processo de construir uma moeda nacional (e nesse caso o estudo tem um caráter mais histórico) quanto de um produto final, uma moeda (e nesse caso o estudo tem um caráter mais sistêmico). Para tornar o quadro ainda mais complexo, quando um construtivista social afirma que um objeto (como quarks) é construído socialmente, ele pode estar afirmando que a) as crenças generalizadas socialmente sobre quarks são socialmente construídas; b) as crenças científicas sobre quarks são socialmente construídas, inclusive o conceito de quark; c) os fatos sobre quarks são socialmente construídos; ou ainda d) os quarks mesmos são socialmente construídos. Claro que podemos esperar também que, às vezes, surja alguma opção diversa e mais estranha que alguma das quatro acima. No entanto há algo comum a todas essas abordagens ontológicas, e é uma tese epistêmica: o tipo de dados empíricos que pode fundamentalmente ser alcançado quando falamos de (a) crenças, são suas expressões verbais, quando falamos de (b) conhecimento científico, são o conjunto de proposições publicadas que expressam as observações e leis admitidas como reais, quando falamos de (c) fatos, são somente as descrições linguísticas de observações. Assim, temos aqui mais um ponto de dispersão do construtivismo social, pois da versão social da tese kantiana de inacessibilidade da coisa‐em‐si que está na origem do relativismo e ceticismo epistemológicos presentes em todo o campo pode‐se avançar, e autores como Latour, 101
Woolgar e Collins o fazem, para a tese ontológica de que tudo o que existe é o discurso (ou como diziam Latour e Woolgar (1986) em “Laboratory Life” sob a influência de Jacques Derrida: inscriptions). É curioso ver que em seu limite extremo, estas posições autodenominadas construtivistas chegam às mesmas teses desconstrucionistas de Derrida: There is no sense in which we can claim that the phenomenon (...) has an existence independent of its means of expression (…) There is no object beyond discourse (…) the organization of discourse is the object. Facts and objects in the world are inescapably textual constructions. (WOOLGAR, 1988, p. 73) Como vemos, o construtivismo social neste ponto faz uso das teses de autores como Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend contra as bases atomistas e referencialistas que a filosofia da ciência tradicional identificava na ciência moderna, o que é crucial para o estabelecimento de sua versão social da ciência. Ao adotar como o faz Bloor (1983, 1997a) a tese wittgensteiniana do significado como uso no interior de um jogo de linguagem particular, termos científicos passam a ser considerados fruto do jogo de linguagem específico à ciência e de suas negociações sociais; e os termos observacionais, que não teriam como prescindir desses óculos lingüísticos sociais, não são capazes de sair dessa redoma pois afinal de contas também são entidades linguísticas cujo significado será dado pelo uso naquele contexto social. Há algo implícito nas teses construtivistas sociais que é plenamente assumido pelo seu congênere psicológico, o construcionismo social: a tese da relatividade linguística de Benjamin Whorf (1979), que afirma que o pensamento se resume à 102
linguagem e que portanto diferentes linguagens constrangem diferentemente o que podemos ou não podemos perceber. Tal tese não é somente filosófica, ela tem consequências testáveis muito simples e já foi refutada experimentalmente de forma extensa e diversificada (Cf. CASTAÑON, 2001). Esta visão da linguagem é dependente da tradição do behaviorismo linguístico impulsionada a partir da obra de Wittgenstein e implica uma visão passiva de sujeito e empobrecida dos processos cognitivos humanos, além de se mostrar alienada dos resultados da neurociência contemporânea. É necessário no entanto dizer que, apesar de Bloor (1983) assumir esta tese em sua obra, ele recentemente começou a apresentar a disposição de se afastar da relatividade linguística (BARNES, BLOOR E HENRY, 1996), ao admitir que a percepção sensorial pode ser um processo mental humano altamente modular e relativamente independente dos filtros lingüísticos. Exploraremos este problema no item seguinte, dedicado a questões epistemológicas. Por hora, o que importa é lembrar que Kuhn e Feyerabend assumem implicitamente esta tese ao se comprometerem com o pressuposto de que no processo de construção de conhecimento fazemos uso de uma linguagem particular que carrega consigo os constrangimentos e hipóteses ontológicas implícitas de uma visão particular de mundo, de uma forma de vida. Partindo disso, o construtivismo social ontológico dá o passo que decreta que se a linguagem é um produto social, e tudo o que chamamos de fatos, observações, teorias e leis científicas são comunicados 103
e negociados unicamente através de uma linguagem, então fatos, observações, teorias e leis científicas são construções meramente linguísticas de natureza social. Quando Berger & Luckmann (1973) cunharam o termo ‘construção social’, eles tinham em mente um objeto do tipo a acima mencionado, isto é, crenças compartilhadas sobre a realidade. Na verdade, não pretendiam sequer estudar sociologicamente o processo de obtenção de conhecimento científico, mas somente as crenças compartilhadas por setores da sociedade sobre o que é e como funciona a realidade, ou seja, o que é tido como conhecimento. Barnes e Bloor, ao lançarem o programa forte em sociologia da ciência tinham pretensões do tipo b. Eles queriam investigar e estabelecer quais são os processos sociais que levam ao estabelecimento de uma crença científica compartilhada pela comunidade científica relevante, e esses processos seriam seu objeto primário de estudo. A ambição última do strong programme é o estabelecimento de leis causais de formação das crenças científicas, assim, suas proposições sobre o tema serão avaliadas no subitem dedicado às suas teses epistemológicas. Mas essa ambição não altera a crença básica sobre o que são seus dados primários e o que sustenta a estabilidade das observações, e não é o “mundo” do realismo ontológico tradicional: There is indeed truth in the conviction that knowledge and science depends on something outside of mere belief. But that outside force which sustains it is not transcendent. There is indeed something in which sustains it is not transcendent. (…) What is ‘outside’ knowledge; what is greater than it; what sustains it, is of course, society itself. (BLOOR, 1991, p. 82) 104
Por mais que Bloor se explique, e o tem feito seguidamente desde a publicação de Knowledge and Social Imagery, é muito difícil ver onde sua posição difere da de Harry Collins, que argumentando em prol da tese da ilimitada flexibilidade interpretativa dos dados empíricos declara que “the natural world has a small or non‐
existent role in the construction of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05) Apesar de declarações de efeito como a de Collins, poucos membros do construtivismo social aceitam a qualificação de idealistas. Estes protestos, em virtude de seu caráter conflitante em relação a outras teses importantes da abordagem, não são muito levados em consideração por seus principais críticos, como Mário Bunge (1992), que considera que para o construtivismo social construtivismo é a rejeição da visão de que os fatos naturais são independentes da atividade humana, dos processos sociais, e de que a realidade que as teorias científicas descrevem é independente de nossos pensamentos e compromissos teóricos. As comunidades científicas, imersas em uma rede lingüística e cultural, construiriam não apenas suas explicações dos fatos, mas os próprios fatos. Mas como afirma Niiniluoto (1999, p.261), a posição do construtivismo social não é idealista em sentido estrito, ontológico: poderíamos falar no máximo de um “idealismo metodológico”. Seguidamente Bloor (1983, 1991, 1999, 2007) declara ser o strong programme aderido a um monismo materialista, sendo assim, não existe natureza e sociedade, mas uma sociedade que faz parte da natureza: 105
The Strong Program is part of a naturalistic and causal enterprise. From the standpoint of the Strong Program, society itself is part of nature. The word ‘natureʹ refers to the all‐encompassing, material system in which human animals and the entire pattern of their interactions, and all the products and consequences of these interactions, have their allotted place. To talk about society explaining nature, when it is but one part of nature, is incoherent. Knowledge itself is just one more natural phenomenon. (BLOOR, 1999, p.87) De fato, não se pode dizer que o programa forte é idealista, mesmo porque sequer considera o papel da mente individual na construção do social, antes, considera que a linguagem é que constrói a ilusão da mente individual (Bloor, 1983). Não é a subjetividade o que existe, é o mundo físico e nele os sistemas de sinais físicos que constituem os jogos de linguagem. Mas apesar de não ser idealista estrito senso, a abordagem é francamente oposta àquilo que Niiniluoto (1999) classifica de realismo epistemológico, seja ele dogmático ou crítico. Por considerar nula ou próxima de nula, e de nenhuma forma direta, a influência do mundo na formação das crenças científicas, o construtivismo social decreta que, por uma questão metodológica, na hora de procurarmos explicar a causa de crenças científicas, deveríamos desconsiderar metodologicamente o mundo e nos concentrarmos nas determinantes sociais da crença. Ou seja, o programa forte é cético acerca da obtenção de conhecimento aproximadamente verdadeiro sobre o mundo. Em sua última tentativa de dar uma forma canônica ao strong programme, Barnes, Bloor & Henry (1996) publicaram Scientific Knowledge: a sociological analysis, onde entre outras coisas, voltam a tentar defender a tese forte das reiteradas acusações de esposar um idealismo que contraria o espírito empirista e realista da 106
ciência moderna. De maneira inequívoca, se colocam contra a abordagem sociológica idealista do conhecimento científico, que “denies the existence of an external world and gives no role to experience in the generation of knowledge and belief” (p.76, 202). O problema é que não indicam claramente, como veremos no próximo item do capítulo, a forma como o mundo interferiria na formação de nossas crenças. Além disso, raros são os autores construtivistas sociais que em algum momento de suas carreiras afirmaram diretamente a inexistência do mundo físico, e dos que o fizeram houve quem não tardasse a retificar suas afirmações (LATOUR, 2000). Assim podemos dizer que, de maneira geral, autores construtivistas sociais se alternam entre o realismo ontológico e o ceticismo ontológico, mas dificilmente se declaram idealistas, qualificação que costuma a ser a eles atribuída por seus muitos críticos. No entanto, são céticos quanto à possibilidade de se estabelecer conhecimento de aspectos da realidade, e relativistas quanto aos critérios de avaliação de crenças científicas. Logo, não é muito significativo declararem benevolentemente que acreditam na existência do mundo, quando sua existência não faz, para eles, a menor diferença epistêmica. 3.3.2. Construção social de quê? Ok, há um mundo lá fora, pelo menos nos concedem os principais proponentes do strong programme. Mas o que está lá fora? Se a ciência moderna é tão interpretativa quanto a filosofia e se todo pensamento depende da linguagem, então não temos acesso ao objeto do conhecimento nem mesmo indiretamente. Então, a 107
ciência não descobre. Mas se ela não é capaz de descobrir aspectos do objeto independentes da consciência, que tipo de conhecimento temos sobre ele? O construtivismo social dá a este beco sem saída epistemológico uma resposta ontológica: conhecemos o objeto que é construído socialmente. Mas o que afinal de contas isso quer dizer? Ele não existe de forma independente? Da mente individual, sim. Tudo hoje em dia parece ser construído socialmente, a julgar pelos títulos dos artigos e livros de sociologia. Há dez anos Ian Hacking, filósofo originalmente simpático às teses do strong programme, publicou um dos livros atualmente mais influentes e citados no debate sobre o construtivismo social: o The Social Construction of What?. Diz nas linhas iniciais de seu prefácio que a expressão ‘construção social’ teve seu uso tão difundido, generalizado e confundido, que hoje é pouco mais que um código. Se você usa a expressão favoravelmente é porque se considera um radical, se usa desfavoravelmente, se declara alguém racional, razoável e respeitável (HACKING, 1999, p.VII). Em uma pesquisa informal no sistema de busca da biblioteca de sua instituição, Hacking (1999) encontra e lista mais de trinta obras com título contendo “Social construction of X”ou “Constructing X” nos vinte anos anteriores a 1999. Isto sem levar em consideração as obras encontradas sob o título “Inventing X”, também geralmente associadas ao movimento. Do óbvio ao surpreendente, tudo é tido como socialmente construído pela abordagem majoritária da sociologia contemporânea: da 108
autoria à doença, do nacionalismo Zulu à realidade, da natureza às mulheres refugiadas. A expressão ‘construção social’, à qual Hacking (1999, p.3) reputa atualmente a condição de “células cancerosas” que se replicam sem controle, começou a ser usada num contexto muito específico da construção social do conhecimento (Berger & Luckmann, 1973) e se generalizou após ser aplicada à investigação do que seria a construção social do conhecimento científico, no âmbito do programa forte da sociologia da ciência. Hoje, Hacking defende que seu uso vem acompanhado de uma atitude de revolta ou inconformidade com a realidade, ou ao menos com a forma determinista, naturalista ou inevitável com que determinados objetos são apresentados pela ciência ou pela cultura em geral. Ao escrever sobre a “construção social de X”, um autor tende a sustentar que: (1) X need not have existed, or need not be at all as it is. X, or X as it is at present, is not determined by the nature of things; it is not inevitable. Very often they go further, and urge that: (2) X is quite bad as it is. (3) We would be much better off if X were done away with, or at least radically transformed. (HACKING, 1999, p.6) Assim, por exemplo, se um sociólogo ou historiador resolve investigar o que ele alega ser a construção social do gênero (como fizeram Lorber e Farrell (1991)), o objetivo da investigação provavelmente é demonstrar que (1) o gênero sexual não é algo determinado pela natureza das coisas, a existência de gêneros sexuais não é 109
inevitável. A categorização de seres humanos em dois únicos tipos foi trazida à existência pela confluência de forças sociais, interesses, eventos históricos e sociais que poderiam, todos eles, terem sido diferentes, pois são contingentes. Por exemplo, o que parece natural, poderia ter sido gerado por interesses moralizantes e repressores de alguma espécie. Geralmente quem despende muito tempo e esforço para justificar a afirmação de que ‘gênero’ é uma construção social, é porque julga que o conceito, a idéia de gênero, não só é de natureza puramente social sem necessária base biológica como (2) é de alguma forma nefasta para um determinado grupo (as mulheres, os homossexuais, os transexuais) e que (3) deveria ser eliminado ou radicalmente transformado, pois estaríamos melhores sem este tipo de conceito ao menos da forma como ele está posto atualmente. Mais do que isso, Hacking (1999) identifica uma precondição de interesse (não pressuposto) para a eleição de um tema como objeto de análise construtivista social: “(0) In the present state of affairs, X is taken for granted; appears to be inevitable” (p.12). Ou seja, não é alvo de interesse de um sociólogo a construção social de algo que é evidentemente uma construção social. Provavelmente não nos depararemos numa bancada de sociologia com o livro “A Construção Social do Partido dos Trabalhadores” ou ainda sobre “A Construção Social do Plano Real”. Esses seriam objetos desinteressantes de análise. O que interessa a um construtivista social é eleger algo consensualmente tido como inevitável e natural, como quarks (Pickering, 1984), fatos (Latour & Woolgar, 1979) ou natureza (Eder, 1996), e mostrar através de 110
interpretações de dados empíricos como este algo é, na verdade, resultado de uma construção contingente de natureza social. John Searle, diante da proliferação descontrolada da expressão ‘construção social’, resolveu entrar no debate e produziu um dos livros mais esclarecedores sobre o tema, o The Construction of Social Reality, de 1995. Nesta obra, Searle trata da “construção da realidade social” ao invés da “construção social da realidade”. Reafirmando enfaticamente o realismo ontológico e a teoria da verdade como correspondência, Searle procura discriminar as características de todo um domínio de fatos objetivos que são, efetivamente, construídos socialmente, particularmente as instituições. Searle (1995) argumenta pela completa inadequação de se atribuir a objetos do mundo físico a mesma natureza de objetos institucionais e contratuais (como uma moeda, um congresso, um estado nacional) estes últimos se mostram claramente dependentes dos processos históricos e sociais que os criaram e os sustentam. Por tudo isso, obviamente o livro de Searle não se filia ao construtivismo social, pois o que este último pretende é estender os domínios da sociologia para objetos ou aspectos de objetos generalizadamente considerados independentes de processos sociais. Assim, a preocupação original do construtivismo social é com o conjunto de crenças justificadas socialmente como conhecimento científico, particularmente, das ciências naturais. O projeto original de Barry Barnes e David Bloor tinha o objetivo de aplicar a sociologia à explicação da formação de crenças científicas, mas o discurso baseado em abordagem empírica de estudos de casos para justificar alegações de 111
construções que eles estabeleceram se generalizou para temas muito diversos dos originalmente eleitos pela escola de Edimburgo. Hoje, segundo Hacking, temos três espécies de coisas que encontramos socialmente construídas nas obras contrutivistas sociais: objetos, idéias e o que Hacking (1999, p.21) denomina elevator words. Objetos são coisas que estão no mundo, como pessoas, estados, condições, práticas, ações, comportamentos, classes, experiências, relações, objetos materiais, substâncias e partículas fundamentais. Seguindo a terminologia de Searle (1995), podemos dizer que alguns desses objetos são ontologicamente subjetivos mas epistemologicamente objetivos. Uma prática como o salário, por exemplo, é ontologicamente subjetiva porque depende da existência de seres humanos e de suas instituições para existir, mas é epistemologicamente objetiva porque você pode saber de forma nada subjetiva se seu dinheiro foi depositado no dia do pagamento. O segundo tipo de coisa alegadamente construída socialmente pela abordagem são idéias: conceitos, crenças, atitudes e teorias. Elas obviamente não são abordadas pelo construtivismo social como idéias privadas, mas somente como idéias compartilhadas por algum grupo social. Por fim, temos as “elevator words”, denominadas assim por mudarem a ordem do discurso filosófico (levar a questões de segunda ordem o problema discutido) e implicar questões de reflexividade (como ‘verdade’, ‘fatos’, ‘realidade’ ou ‘conhecimento’). Estas palavras são usadas para dizer coisas acerca de objetos e idéias, portanto, são classificadas à parte, mas obviamente não escapam de ser atacadas pela abordagem. 112
Sergio Sismondo (1993) procurou responder uma pergunta parecida com a de Hacking em seu artigo “Some Social Constructions”, que se tornou o mais citado no Social Sciences Citation Index sobre construtivismo social. Este ótimo trabalho procura, através de uma disposição positiva em relação aos social studies, classificar os tipos de construtivismo social em função do que significa para cada um deles a metáfora da construção. Assim, ele identifica quatro usos diferentes da metáfora: (a) the construction, through the interplay of actors, of institutions, including knowledge, methodologies, fields, habits, and regulative ideals; (b) the construction by scientists of theories and accounts, in the sense that these are structures that rest upon bases of data and observations; (c) the construction, through material intervention, of artifacts in the laboratory; and (d) the construction, in the neo‐
Kantian sense, of the objects of thought and representation (SISMONDO, 1993, p.516) O primeiro uso como já vimos, foi o dado por Berger & Luckmann (1973), o segundo, o dado pelo strong programme. Mas dois novos usos do termo construção surgem aqui. O terceiro uso é na verdade um uso bem concreto do termo, e se refere ao que chamaremos construtivismo social material, formulado principalmente por Karin Knorr‐Cetina. Knorr‐Cetina (1981) chama nossa atenção para o fato de que laboratórios científicos costumam a ser vistos como lugares onde idéias são testadas e algumas vezes geradas. Mas em sua opinião eles na verdade são, predominantemente, lugares onde coisas são feitas (construídas) e feitas para funcionar. Em sua visão pragmática do que realmente aconteceria em um laboratório, ela nos apresenta o que seria uma progressiva seleção do que funciona através do uso daquilo que funcionou no passado e parece que funciona no presente. 113
Ou seja, o laboratório não é um lugar onde se testa a natureza, a ‘natureza’ estaria altamente excluída deste ambiente pré‐fabricado (construído) de aparelhos, substâncias purificadas, bactérias isoladas e condições ambientais artificialmente controladas. Assim Cetina usa o termo ‘construção’ em dois sentidos. Primeiro o material visto acima, e ilustrado pela passagem: In the laboratory scientists operate upon (and within) a highly preconstructed artificial reality (…) but the source materials with which scientists work are also preconstructed. Plant and assay rats are specially grown and selectively bred. Most of the substances and chemicals used are purified and are obtained from the industry which serves the science or from other laboratories (…) In short, nowhere in the laboratory we find the ‘nature’ or ‘reality’ which is so crucial to the descriptivist interpretation of inquiry: To the observer from the outside world, the laboratory displays itself as a site of action from which ‘nature’ is as much as possible excluded rather than included. (KNORR‐CETINA, 1981, p.119). O segundo sentido no qual ela usa o termo construção é em relação à segunda categoria de Sismondo (e de Hacking): o que nós construímos em ciência são modelos científicos, modelos que precisam ser adequados ao fenômeno. Ela discorda que a atividade científica é uma atividade de descoberta da verdade, e o que o sociólogo estuda é o processo de construção de modelos que funcionam: “theories are like the cocoons left behind when practice is abstracted from the conduct of inquiry” (KNORR‐CETINA, 1979, p.370). Assim, Cetina está interessada em investigar não somente estes produtos subjetivos da atividade científica (as teorias), mas também seus produtos (ou 114
construções) materiais: as técnicas, os ambientes materiais, os aparelhos, as substâncias sintetizadas, enfim, toda uma categoria de objetos “artificiais” e construídos. Ela se interessa particularmente em descrever cientistas atuando em um mundo que eles próprios construíram: o do laboratório, não a natureza. Parecem teses e objetivos razoáveis. O problema começa quando entendemos que para Knorr‐Cetina essa construção material dos ambientes, objetos e aparelhos com os quais a ciência trabalha, constrói os fatos científicos, que para ela, nada tem a ver com a realidade não construída. Não é razoável ignorar o fato óbvio de que a matéria prima de que são feitos todos os objetos construídos pela atividade científica vem de uma natureza não‐construída, e que o laboratório onde eles são testados faz parte da natureza não‐construída, que enfim, tudo o que existe materialmente é natureza e continua nela. No entanto esta não é razão suficiente para considerar, como o faz Kukla (2000, veremos adiante), Knorr‐Cetina aderida a um construtivismo social metafísico. O próprio Kukla no primeiro capítulo de sua obra reconhece que Knorr‐Cetina é realista no mesmo sentido em que Kant é realista, e que Michael Devitt (1991) denomina ironicamente “fig‐leaf realism”: onde se admite que existe a coisa independentemente da mente humana mas se nega a possibilidade de obter conhecimento absoluto de qualquer de suas propriedades. É Karin quem se pronuncia: “a constructivist interpretation of knowledge is not to be confused with an idealist ontology” (KNORR‐CETINA, 1979, p.369) 115
Mas a abordagem construtivista social de Knorr‐Cetina é cética quanto à obtenção de conhecimento da natureza. Os objetos alegadamente “construídos” são objetos materiais construídos de fato, e não metaforicamente. Os fatos a respeito deles que são provocados (a manipulação experimental) pelos cientistas em seus laboratórios são também, neste sentido, não naturais. É isso que ela quer dizer quando afirma, ai sim metaforicamente, que os cientistas constroem a realidade sobre a qual constroem teorias. Neste sentido podemos conceder que fatos científicos são construídos sem cair num idealismo ontológico. Já Paul Boghossian (2006) considera que existem três teses básicas no construtivismo social sobre o que é construído socialmente. Uma delas é a da construção social da justificação, que defende que fatos da forma “informação x justifica crença y” não são independentes de nós e de nosso contexto social, antes, tais fatos são construídos de forma a refletir nossos interesses e necessidades contingentes. Outra é a da construção social da explicação racional, que defende nunca ser possível explicar porque nós acreditamos no que acreditamos somente em virtude de termos tomado conhecimento de uma evidência relevante, nossas necessidades contingentes e interesses sempre contam entre as causas de uma crença. Estas duas teses, o relativismo epistêmico e a causalidade social da crença serão abordadas no próximo item dedicado às posições epistemológicas do construtivismo social. Mas há para Boghossian uma terceira alegação geral de construção social, a construção social dos fatos, que postula que o mundo que procuramos entender e conhecer não é o que é de forma independente de nós e de nosso contexto social, todos os fatos são construídos 116
socialmente de uma forma que reflete nossos interesses e necessidades contingentes. É esta alegação ontológica radical que avaliaremos agora. 3.3.3. O Construtivismo Social Ontológico O que dizer da tese da construção social dos fatos? Ela é o mesmo que o uso metafórico ‘d’ de Sismondo (1993)? Existem autores no construtivismo social que realmente esposam alguma forma de idealismo neo‐kantiano e consideram que o objeto do conhecimento, o objeto real e independente, é construído socialmente? Consideremos esta passagem famosa: Like scientists themselves, we do not use the notion of reality to account for the stabilization of a statement, because this reality is formed as consequence of this stabilization. We do not wish to say that facts do not exist nor that there is no such thing as reality. In this simple sense our position is not relativist. Our point is that “out‐there‐ness” is a consequence of scientific work rather than its cause. (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.180) O que será que Latour e Woolgar querem dizer aqui por ‘fato’? Em sua obra marco “Laboratory Life”, de 1979, encontramos a vaga descrição de uma contradição entre sentidos atribuídos à palavra. O primeiro sentido, derivado de breve análise etimológica, lembra a origem latina da palavra em factum, que por sua vez deriva do particípio passado de facere, ou fazer. Ou seja, isso é suficiente para que eles afirmem que fatos são feitos. O segundo sentido é o de que ‘fato’ se refere a uma entidade independentemente objetiva que “by reason of its ‘out there‐ness’ cannot be modified at will and is not susceptible to change under any circumstances” (LATOUR & WOOLGAR, 117
1986, p.174). Poderíamos portanto pensar que os autores acreditam que há dois tipos de significados para ‘fatos’ e estão se referindo somente ao primeiro. Mas não é esse o caso. O caso é que eles acham que só existe o primeiro tipo de fato. Ordinariamente, entendemos por fato algo que é o caso, um determinado estado de coisas que é relatado por uma proposição verdadeira. Fato portanto é aquilo que torna verdadeira uma sentença, e não a sentença que corresponde adequadamente à realidade: esta última é uma verdade, que se refere a um fato. Se afirmo que a cor desta folha é branco, não é a afirmação que é o fato em questão (ela é um outro fato), mas esta afirmação se faz verdadeira por causa do fato de que percebemos as ondas eletromagnéticas refletidas pela folha como branco. Poderíamos dizer que fato é uma parcela da realidade. Em filosofia da ciência e metodologia científica, o termo ‘fato’ se reveste de uma centralidade ainda maior. Quando nos referimos a um “fato científico”, estamos na verdade nos referindo àquilo que gera uma objetiva, verificável e reproduzível observação, que pode confirmar e refutar teorias e hipóteses, criadas para explicar uma coleção de fatos. Assim, apesar do uso imprudente e impreciso da palavra, temos que lembrar que um fato científico é um estado de coisas no mundo externo, independente de mentes individuais. No entanto, muitas vezes encontramos o termo ‘fato’ usado para referir‐se às assertivas que descrevem fatos. Boghossian (2006) acredita que é aqui que o que ele chama de fact‐
constructivism se confunde com uma tese bem menos controversa, a da relatividade social das descrições. Isto segundo Boghossian “a faz parecer a seus proponentes 118
bem menos implausível” (p.29). Para esta tese, o esquema que adotamos para descrever o mundo depende do esquema que achamos útil adotar, e o esquema que achamos útil adotar depende de nossas necessidades contingentes e interesses sociais. É portanto o sentido de “assertivas que descrevem fatos” que geralmente é assumido pelo construtivismo social quando afirma que “fatos” são construídos socialmente. Uma vez que este não acredita na nossa capacidade de ter acesso independente da linguagem a qualquer aspecto da realidade objetiva, não é surpreendente que autores como Latour, Woolgar e ainda Andy Pickering acabem em algum momento assumindo a consequência necessária dessa tese: “fatos” (no caso, as assertivas sobre observações objetivas e verificáveis), seriam socialmente construídos, e uma vez construídos, determinariam o que observamos e percebemos na natureza. A passagem a seguir sustenta minha interpretação: While the agonistic process [de estabilização dos fatos] is raging, modalities are constantly added, dropped, inverted, or modified. Once the statement begins to stabilize, however, an important change takes place. The statement becomes a split entity. On the one hand, it is a set of words which represents a statement about an object. On the other hand, it corresponds to an object in itself which takes on a life of its own. Before long, more and more reality is attributed to the object and less and less to the statement about the object. Consequently, an inversion takes place: the object becomes the reason why the statement was formulated in the first place. At the onset of stabilization, the object was the virtual image of the statement; subsequently, the statement becomes the mirror image of the reality ‘out there’. (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.176‐177) 119
Podemos explicar esta posição melhor através do conceito dos autores de “inscription device”, ou aparelhos produtores de inscrições (no sentido de Derrida (1973) de sinais físicos gráficos linguísticos): An inscription device is any item of apparatus or particular configuration of such items which can transform a material substance into a figure or diagram which is directly usable by one of the members of the office space (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.51) Dando um passo além de Knorr‐Cetina, Latour e Woolgar chamam a atenção para o fato de que no ambiente pré‐construído de um laboratório contemporâneo, as conversas e “negociações” giram principalmente em torno das “inscrições” (tabelas, gráficos, números, imagens) geradas pelos inscription devices (predominantemente computadores de todo tipo), e cada vez menos em torno das substâncias materiais reais que tiveram algo a ver com sua geração. Usando o conceito de Bachelard de “phenomenotechnique”, afirmam que a realidade com a qual a ciência lida é totalmente construída artificialmente pelo uso destes aparelhos, e somente tem a aparência de fenômeno real porque foi construída através de técnicas materiais. Mas afirmar isso não é tão simples. O mesmo Ian Hacking que consideramos acima era, em 1988, um entusiasta do construtivismo social ontológico proposto por Latour e Woolgar, e escreveu um artigo apologético de “Laboratory Life” quase tão citado quanto o mesmo: “The participant irrealist at large in the laboratory”. Nele, oferece uma boa descrição da confusão ontológica de Latour e Woolgar: 120
There seems to be an air of trivial paradox here. Has not the hypothalamus of the higher vertebrates been secreting this substance ever since the animals came into being? Has it not always been a fact that this substance has a certain structure, a structure that became known in the laboratories of Texas and Louisiana? Latour and Woolgar do not say that something in the hypothalamus changed in 1969. But they think that what logicians would call the modality and tense structure of assertions of fact is misunderstood. Let F be a relatively timeless fact, say the fact that TRH has such and such a chemical structure. The official view would be: before 1969 one was not entitled to assert, categorically, that F is a fact, nor that F has always been a fact. But since then we know enough to be justified in asserting that F is a fact and has always been so. Latour and Woolgar say no: Only after 1969 and a particular series of laboratory events, exchanges and negotiations did F become a fact, and only after 1969 did it become true that F was always a fact. The grammar of our language prevents us from saying this. Our very grammar has conditioned us toward the timeless view or facts. (HACKING, 1988, p.281‐82) Tal posição implica uma contradição, e não se trata de uma incapacidade expressiva de nossa gramática. A contradição é que, dado que a produção de fatos pela ciência é contingente, podemos produzir no ponto do tempo T1 o fato X0, pretendendo que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2, posterior a T1, a contingência da produção científica pode nos levar a construir o fato ¬X0, e isso implicaria que ele também sempre existiu. Mas como X0 e ¬X0 podem ser verdadeiros ao mesmo tempo? Como pergunta André Kukla (2000, p.111), autor do argumento acima, não seria mais simples postular que diferentes gerações de cientistas em diferentes sociedades simplesmente tinham crenças e perspectivas diferentes acerca do mesmo e único mundo independente? Porque alguém precisa defender as teses ontológicas que Latour e Woolgar defendem? O construtivismo social certamente não precisa. 121
Steve Woolgar, depois da colaboração com Latour, seguiu caminho solo e assumiu plenamente seu idealismo em “Science: The Very Idea”, de 1988. As teses de Woolgar expostas nesta obra serão consideradas mais amiúde no próximo item, por tratarem predominantemente de questões relativas a reflexividade da sociologia da ciência (ciência aplicada à ciência precisa ser aplicada à ela própria), e à relação entre sujeito e objeto de conhecimento. Mas sobre este último tópico é necessário dizer aqui que Woolgar considera que existe uma direção tradicional em que é considerado o processo de conhecimento, que parte do objeto para a representação dele, e do mundo natural para o conhecimento científico. O que ele propõe é a resolução do dilema típico da sociologia da ciência, que é o de considerar que o mundo existe mas que o conhecimento é causado socialmente, invertendo a direção do processo do conhecimento. Ou seja, solução para Woolgar é afirmar que as representações é que constroem os objetos. Era de se esperar que Woolgar classificasse toda epistemologia tradicional como objetivista, no sentido que o objeto altera as representações que fazemos dele. Para Woolgar, isso é falso porque os objetos são inacessíveis para nós sem representações, não temos acesso independente a eles. Mas no que isso implica sua “reversão de direção”, ficamos sem saber. Mais sofrível é seu segundo “argumento”, ou justificativa, ou interpretação para sustentar seu idealismo. Ele é baseado em sua interpretação de dois estudos de caso, um deles sobre o descobrimento das Américas. Sua interpretação é que a variação de interpretações sobre o que foi descoberto em 122
diferentes redes sociais mina a tese da existência objetiva de características no objeto descrito. É o que lemos por exemplo nesta passagem: Crucially, this variation undermines the standard presumption about the existence of the object prior to its discovery. The argument is not just that social networks mediate between the object and observational work done by participants. Rather, the social network constitutes the object (or lack of it). The implication for our main argument is the inversion of the presumed relationship between representation and object; the representation gives rise to the object. (WOOLGAR, 1988, p.65) Steven Weinberg faz uma interessante observação sobre essas estranhas posições. Ele suspeita que o alvo do construtivismo social não é o mundo lá fora, mas algo um pouco diferente: “the issue is not the belief in objective reality itself, but the belief in the reality of the laws of nature” (op. cit. HACKING, 1999, p.88). A questão seria não a realidade ontológica dos objetos, mas das leis que os governam. Para o construtivismo, e digo construtivismo em geral, seria sempre possível haver uma multiplicidade de teorias e leis que governariam determinado fenômeno, ou fato. Mas Weinberg constata que não existe nenhuma teoria alternativa, ou qualquer multiplicidade de leis, e que não parece que seja possível criar essas leis alternativas que dêem conta dos mesmos fenômenos que as equações de Maxwell dão. E isso, mesmo depois de tanto tempo do aparecimento dessas leis. Tal fato dá a ele a forte convicção de que as equações de Maxwell são objetivamente verdadeiras. Atacar essa convicção não é possível pela criação de novas teorias que dêem conta dos mesmos fatos (se nem os físicos são criativos a este ponto, não seria sensato esperar tamanha 123
criatividade naturalista de construtivistas sociais), logo, a estratégia deles para manter a crença de que o mundo é instável é afirmar que os fatos são construções e poderiam ser outros (claro, eles não oferecem outros). Ou seja, o alvo é o determinismo natural, que quer se substituir por um determinismo social. Mario Bunge (1994, p.39) acredita que os praticantes da nova sociologia da ciência têm revivido a velha tese idealista de que o sujeito constrói a realidade em vez de explorá‐la e descobri‐la, com a única diferença que em vez do sujeito agora é o grupo, é a sociedade a responsável por essa construção. Para ele, os construtivistas sociais são incapazes de distinguir os fatos dos enunciados e teorias que criamos sobre os fatos. Como consequência necessária disso, o conceito de verdade objetiva é descartado, a sociedade constrói suas verdades enquanto negocia seu discurso sobre o mundo. Assim uma instituição que quer “impor” seu discurso sobre o mundo como melhor que os outros, a ciência, torna‐se uma ideologia autoritária e instrumento de poder político para os cientistas e aqueles que se interessam por seu discurso. Em suma, para Bunge não resta dúvida: o construtivismo social é idealista e relativista. Mas como vimos, esta avaliação de idealismo não pode se aplicar ao movimento como um todo. Vimos várias posições do construtivismo social, através de autores‐chave do movimento que são legítimos representantes destas diferentes concepções de construção. Estas posições ontológicas variam desde um realismo sem consequência epistêmica até o mais estranho tipo de idealismo social. 124
Diante dessa cisão, a partir deste momento da dissertação passarei a me referir a duas correntes gerais, mesmo que com várias nuances internas, do construtivismo social. Esta diferença geral é baseada na resposta dada a Q1 sobre o construtivismo. A primeira denominarei construtivismo social epistêmico (CSE), tanto do programa forte, de Barry Barnes, David Bloor e John Henry, como do construtivismo social material de Karin Knorr‐Cetina. É epistêmico porque nesta corrente o que é construído são modelos e crenças científicas, e o mundo lá fora é assumido como independente. A segunda denominarei construtivismo social ontológico (CSO), professada por, entre outros, o primeiro Latour, Steve Woolgar, Andy Pickering e Henry Collins. É ontológico porque de formas diferentes, este autores afirmam que o que é construído é o mundo, não representações. Quando quiser me referir à abordagem como um todo, usarei simplesmente o termo ‘construtivismo social’. Eis o que André Kukla (2000) diz sobre o CSO, diferenciando‐a do relativismo epistemológico que é comum a todo construtivismo social (ressalva feita à minha exclusão de Knorr‐Cetina da posição, já justificada): There’s no contradiction in saying that belief in X is warranted relative to the methods and assumptions of S1 [society one], and that belief in not‐X is warranted relative to the methods and assumptions of S2. But (metaphysical) constructivism isn’t merely an epistemic thesis. Latour, Woolgar, Collins, Pinch, Knorr‐Cetina, Ashmore, Pickering, etc., don’t regard the social negotiations relating to a scientific hypothesis as merely providing epistemic warrants for certain beliefs. The negotiations supposedly turn the hypothesis (or its negation) into a fact. But then the problem of the two societies needs an answer. We can’t simply say that negotiations in S1 turn X into a fact and that negotiations in S2 turn not‐X into a fact, and leave it at that – for how can X and not‐X both be facts? (KUKLA, p.91) 125
Uma explicação possível para essa posição é a confusão entre fatos e assertivas sobre fatos. O CSO estaria somente afirmando que fatos científicos (para eles assertivas sobre observações controladas) seriam socialmente construídos. Embora seja uma tese altamente questionável e dependente de outras teses altamente questionáveis, não leva ao absurdo da conclusão de que o mundo físico lá fora é construído socialmente. Mas quero concluir este item chamando a atenção para o fato de que minha definição de construtivismo como tese epistemológica e não ontológica mais uma vez se mostrou consistente com outra abordagem auto‐alegada construtivista. Como vimos, tanto posições realistas como idealistas podem ser encontradas em alegações de construtivismo social, o que portanto, não o define como movimento. São as teses epistemológicas que veremos no próximo item que determinam sua identidade. 3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia Neste item descreveremos as teses epistemológicas do construtivismo social como um todo, tendo por base as duas questões epistemológicas das três questões formuladas no segundo capítulo que tem guiado nossa comparação entre as diferentes alegações de construtivismo: Q2) É possível conhecer algo sobre os objetos que existem independentemente da mente? E Q3) Qual é a relação entre o sujeito e o 126
objeto do conhecimento? No primeiro sub‐item, investigaremos a resposta cética da abordagem à questão dois. No segundo subitem, analisaremos o tipo de conhecimento e epistemologia que o construtivismo social pretende afirmar contra a concepção tradicional de epistemologia. No terceiro, examinaremos o problema do relativismo típico da abordagem. No quarto subitem, avaliaremos sua posição quanto à Q3, defendendo tese de que não há praticamente papel algum reservado ao sujeito no processo de construção do conhecimento de acordo com o construtivismo social, o que fundamenta uma das hipóteses deste trabalho de que a abordagem não é, estrito senso, construtivista. Por fim, uma vez que esta abordagem alega ser um programa de pesquisa empírica científico, descreveremos o que ela alega serem os procedimentos metodológicos científicos que usa para investigar a ciência. 3.4.1. É possivel conhecer algo sobre o mundo? Bruno Latour tem razão quando afirma (1999) que o construtivismo social trabalha sob a tese kantiana da inacessibilidade da coisa‐em‐si. Mas para Kant, o mundo constrangia nossas crenças sobre ele na medida em que nossas intuições sensíveis nem sempre se sucediam de acordo com nossas previsões ou expectativas. Essa posição, que classificamos aqui de criticismo, confere ao mundo um papel determinante na construção e escolha de nossas crenças sobre ele. Quando avaliamos a posição do construtivismo social acerca da crença na possibilidade de obtenção de conhecimento de algum aspecto de um mundo 127
independente de nossas mentes, temos que dar duas respostas, em virtude das diferentes posições ontológicas vistas no item anterior. No que tange ao construtivismo social ontológico, a resposta é clara: evidentemente não. Para autores como Steve Woolgar (1988) e Lynn Nelson (1993), o “mundo” que conhecemos é o mundo que construímos, e nesse sentido não temos qualquer acesso a um mundo independente. Kukla (2000) apresenta o conjunto de crenças que leva o CSO ao ceticismo. Começam por proclamar que a natureza não cumpre nenhum papel em nossas decisões epistêmicas. Depois, repetem o slogan de que não há fatos naturais não‐construídos, o que quer dizer na verdade a tese de origem wittgensteiniana de que as sentenças não têm conteúdo empírico determinado. Assim, a natureza não pode de fato constranger ninguém a aceitar ou rejeitar determinada asserção. Como afirma Oliva (2005), nessa visão a própria natureza da linguagem impediria que o “mundo independente” fosse invocado, como árbitro, em nossas práticas epistêmicas. Logo, ceticismo. Mas e o construtivismo social epistêmico, é de alguma forma diferente nesta questão? Na verdade, a única diferença é a falta do slogan de que não há fatos naturais não‐construídos, e a presença de declarações de que “a natureza importa”. Essas declarações são no entanto incoerentes com a tese da subdeterminação dos fatos e do auto‐referencialismo. Em uma das muitas vezes que tentou defender o strong programme da acusação (desta vez de Latour, 1999, em fase de ataque ao idealismo) de que o mundo não tem papel em seu modelo de conhecimento, Bloor 128
(1999) oferece o argumento que, por ser um dos mais claros que ele produziu sobre este aspecto obscuro da posição da corrente, merece ser transcrito: Imagine some prominent macroobject that is a salient feature of the environment of two observers. Call the object X and the observers O1 and O2. After inspection, O1 declares that X belongs to class C1, while after the same kind of inspection O2 puts it in class C2. They agree it cannot truly be both, so each thinks the other is wrong. Why do they classify differently? The underdetermination thesis says that in these circumstances their encounters with X are insufficient to explain this difference. Something else, something about O1 and O2 themselves, is needed for the explanation. Now, is this the thesis that the observation of X ‘makes no difference’? (…) Clearly not. The general difference made by the presence of X is that, in appropriate circumstances, it is capable of prompting acts of classification and, in this case, giving rise to the disagreement between O1 and O2. If the object were absent there would be no occasion for disagreement or, if there were a disagreement, it would be precipitated by other causes and would arise by another route. We can at least say that it would not be this dispute between them. So the object makes a difference even though, in the above scenario, it cannot explain the other difference about divergent classification. (BLOOR, 1999, p.133‐34) A tradução da explicação acima é que o objeto X faz diferença para o conhecimento porque se ele não tivesse surgido não haveria versões sobre ele! Ou seja, a diferença que importa, epistêmica, X não pode ajudar a resolver: ele não pode oferecer subsídios independentes sequer para resolver uma divergência sobre como classificá‐lo. Razões epistemicas isoladamente não causariam nunca crenças sobre o mundo, tudo o que acreditamos seria causado ao menos em parte por interesses e processos sociais. É uma tese estranha, que realmente parece motivada por interesses de natureza social. Como pergunta Boghossian (2006, p.113), “Couldn’t my seeming to see the cat on the roof fully explain why I believe that the cat is on the roof on some occasion?” 129
O fato é que Bloor não pode reservar outro papel para o mundo que não o de ocasião de controvérsia. Se ele diz que X pode resolver a diferença, então o social perde a condição causal exclusiva e o programa forte vira fraco. Se ele aponta os diferentes sujeitos como a origem da diferença, por sua atividade interpretativa particular livre, então da mesma forma o social perde o caráter determinante na aceitação da crença. Se o sujeito é passivo e o objeto não determina a crença, ele tem que explicar com base na sociedade a diferença de interpretação do dado empírico, que sim, faz diferença porque provoca a ocasião de interpretação, mas não determina o resultado, o conteúdo dela. Até Bruno Latour ironiza, com sagacidade, a posição de Bloor: I agree: we are interested in differences. Now, I want someone to explain to me what it is for an object to play a role if it makes no difference. On a stage, when someone or something is said to play a role, and even an ‘important’, a ‘crucial’, a ‘decisive’ role—which would be necessary to counteract the charge of idealism—it has to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117) Claro, a diferença que o objeto tem que produzir é entre diferentes interpretações dele, não entre o nada e o seu aparecimento. Diante de tudo isso, pode parecer óbvio que Bloor se coloca contra a objetividade do conhecimento científico, mas... Does it say that truly objective knowledge is impossible? Emphatically it does not. What was proposed (…) was a sociological theory of objectivity. If objectivity had been held to be non‐existent there would have been no need to develop a theory to account for it. Nor is this a way of saying that objectivity is an illusion. It is real but 130
its nature is totally different from what may have been expected. (BLOOR, 1991, p.160) Essa é uma estrutura de evasiva tipicamente pós‐moderna. Ao ser acusado de defender que X não existe, nega defender esta posição com retórica enfática, depois declara que sim, acredita em ‘X’, o termo, mas com um significado novo, totalmente diferente do original. Essas afirmações e desmentidos podem exasperar mesmo o leitor mais paciente da literatura construtivista social, caso ele não seja um membro do clube social em questão. O que intriga nisso não é a posição de Bloor, mas como ele pode querer nos fazer acreditar que o mundo importa para o CSE, e continuar durante anos a replicar com argumentos como estes apresentados acima aqueles que acusam o programa forte de não deixar lugar pro mundo na explicação científica. Para todo o construtivismo social os conceitos e os esquemas de classificação são artifícios humanos que não espelham espécies naturais, e as teorias e hipóteses sobre o funcionamento das coisas nada mais são que o fruto de processos de negociação e intercâmbio linguístico no contexto de determinadas formas de vida. Não faz sentido portanto a atividade epistêmica de distinguir entre conceitos construídos que representam adequadamente a realidade dos igualmente construídos que se revelam ineptos. Essa inaptidão é na verdade também construída pelo fracasso do conceito ou teoria nos processos de negociação social que estabeleceram os conceitos e teorias aceitos. A inaptidão de uma teoria ou conceito é a consequência, e não a causa do resultado de uma investigação científica. O 131
problema pragmático desta tese é simples. Como observa Oliva (2005), isso não esclarece por que determinadas teorias são acolhidas sob a alegação de que são mais bem‐sucedidas que outras no enfrentamento de certos problemas. Steven Kemp é outro com o qual Bloor se envolveu em um de seus longos debates sobre a natureza do strong programme. Mas Kemp (2005, 2007) ofereceu três argumentos pelos quais o construtivismo social deva ser considerado um programa cético (ou idealista epistemológico) que considero de fato uma resposta definitiva à questão. No primeiro, (KEMP, 2005) ele lembra que de acordo com o construtivismo social, conceitos que são auto‐referentes em caráter são definidos como fazendo referência somente a outros usos de conceitos (BLOOR, 1997b). Essa limitação na auto‐referência implica que se conceitos são auto‐referentes em caráter, eles não podem ser referentes externamente. Logo, não pode haver conexão genuína entre conceitos científicos e realidade. Em segundo lugar (KEMP, 2007), a defesa de uma versão radical da tese da subdeterminação da teoria pela observação significa que qualquer teoria pode ser reivindicada como instrumentalmente bem sucedida, não importa que tipo de evidência empírica surja. Logo, o mundo não decide nossas crenças. A passagem de Barnes abaixo ilustra este tipo de defesa radical generalizada na abordagem: It had long been recognized that theories constituted an important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs which go beyond the facts, and any specific body of accepted facts is formally compatible with any number of theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66) 132
Em terceiro lugar, a missão de explicar a credibilidade de teorias científicas sem referência à racionalidade científica que o programa forte se atribui, ou seja, a crença de que não há critérios racionais universais que possam guiar a obtenção de conhecimento, significa que não há como se obter conhecimento válido, teorias são escolhidas por questões políticas e sociológicas: ceticismo. 3.4.2. O que é e como se legitima o conhecimento? Como afirma Oliva (2005), a crise contemporânea do observacionalismo gerada por teses como as de Wittgenstein e Kuhn minou a crença central da ciência moderna de que a experiência é a única fonte capaz de prover os conteúdos, a estabilidade referencial, com base nos quais se produz significado cognitivo. O construtivismo social, ao esposar a tese feyerabendiana extremada de que não há como distinguir minimamente a dimensão teórica da observacional, faz da ciência uma atividade interpretativa de natureza social. Se o significado de uma observação é função de sua localização numa rede de hipóteses e de inferências não é a observação que leva à teoria, e sim o inverso. Se a teoria é vista como subdeterminada pelos fatos, então várias teorias igualmente plausíveis são possíveis, toda eventual falsificação é protegida com hipóteses ad hoc, e a escolha entre elas é feita com base em interesses políticos, econômicos, religiosos... relativismo. Então, o que é conhecimento? Por certo o conceito platônico de crença verdadeira justificada tem que ser descartado, porque verdades sobre o mundo 133
seriam inalcançáveis e justificativa universal não existe, tudo é doxa. O trecho abaixo de Bloor é representativo do que encontramos por todo o movimento: The appropriate definition of knowledge will therefore be rather different from that of either the layman or the philosopher. Instead of defining it as true belief – or perhaps, justified true belief – knowledge for the sociologist is whatever people confidently hold to and live by. In particular the sociologist will be concerned with beliefs which are taken for granted or institutionalized, or invested with authority by groups of people. (BLOOR, 1991, p.5) Ou seja, a diferença do conhecimento para a mera crença não é a adequação ao real ou um critério racional e empírico de validação, mas o endosso coletivo: a crença é individual, conhecimento é crença coletivamente compartilhada. É conveniente e interessante para sociólogos: eliminam‐se os aspectos físicos, psicológicos e lógicos do conhecimento e tudo o que sobra é sociologia. Se o sujeito não cria, o mundo não constrange e a lógica não elimina, então o trabalho epistemológico se resume a explicar que fatores sociais causaram o abandono ou insucesso coletivo de algumas crenças e o endosso coletivo de outras: epistemologia é sociologia. A sociologia do conhecimento científico tem como projeto explicar com base em investigações empíricas o conhecimento como um fenômeno natural causado, particularmente o conhecimento aceito socialmente como cientifico. Como ele alcança esse status? Tudo o que resta é mapear como ele é transmitido, como se estabiliza, como é criado, como se generaliza, como se mantém, como é organizado e dividido em disciplinas, e assim por diante. Barnes & Edge acreditam que, mesmo antes de 134
toda a investigação empírica do campo começar a ser levada à cabo, já sabiam a resposta sobre o motivo real da autoridade social da ciência: Cognitive authority and political authority are inextricably intertwined: the recognition of technical expertise, of whatever kind, is fraught with political significance. Needless to say, this has much to do with why strict hierarchies of cognitive authority are maintained in all societies, and why heavily idealized conceptions of science are insistently propagated in ours. (BARNES & EDGE, 1982, p. 9) Assim, para o construtivismo social, a superioridade explicativa que se atribui à ciência nada mais seria, como afirma Oliva (2005), “que uma forma ilusória de racionalizar seu poder instrumental: apregoa‐se ser obra da razão o que nela é socialmente construído” (p.114). Uma vez que não é possível o estabelecimento absoluto de métodos epistemicamente superiores que façam a ciência superior, a sociologia assume a tarefa de identificar as causas que a fazem parecer superior. Hacking (1999) enumera algumas destas “fontes externas de estabilização das explicações científicas” (p.90) tais como a adequação política, a inserção numa rede de agentes de reputação, a reputação estabelecida de seus proponentes, a quantidade de experts e resultados citados na publicação da pesquisa e interesses econômicos. As várias correntes do construtivismo social acreditam que se conhecimento não é o que se justifica, mas sim o que se aceita coletivamente, a filosofia da ciência não tem utilidade. O trabalho é descrever a investigação científica real e explicar a (determinar as causas da) crença, não justificá‐la: o erro do filósofo é se dedicar a determinar o estatuto epistemológico da crença: 135
Nearly all of these accounts of science are very heavily idealized, and represent the various utopias o four philosophers and epistemologists rather than what actually goes on in those places which we customarily call science laboratories. In contrast, the present need is for a general description which treats the beliefs and practices of scientists in a completely down‐to‐earth, matter‐of‐fact way, simply as a set of visible phenomena. (BARNES & EDGE, 1982, p. 3) Todas as crenças têm que ser igualmente explicadas com base em suas causas sociais, independentemente de sua adequação última à realidade, pois todas as crenças, verdadeiras ou não, têm os mesmo tipos de causas, e por tudo o que vimos no primeiro subitem, são igualmente verossímeis. Crenças verdadeiras não têm uma credibilidade intrínseca maior que crenças falsas. Barnes e Bloor (1982, p. 27) afimam que “for the relativist there is no sense attached to the idea that some standards or beliefs are really rational as distinct from being locally accepted as such”. Esse é o conceito de simetria proposto pelo programa forte, que postula que sociólogos têm que se dedicar tanto ao estudo e explicação das crenças aceitas quanto das rejeitadas, de forma a adquirir um entendimento adequado do problema geral da diferença na credibilidade social das duas. Ele é complementado pelo de imparcialidade, que simplesmente recomenda que se mantenham em suspenso suas próprias crenças acerca de quais das crenças em estudo correspondem e quais não correspondem à realidade. Justificar uma crença como racional seria uma forma subrreptícia de tentar livrá‐la da determinação causal, como se crenças racionais tivessem uma origem diferente das outras, não causadas: seria anti‐naturalismo. Bloor (1991) chama este 136
princípio de ‘causalidade’, mais um dos quatro princípios filosóficos (que ele chama de requerimentos metodológicos) do programa forte. Ou seja, para esta abordagem, justificar uma crença com base em sua intrínseca adequação aos padrões lógicos e empíricos da ciência moderna seria contra o espírito da ciência naturalista. Esse tipo de justificação seria psicologista, o que quer dizer para Bloor que a tese de que um sujeito pode aderir a uma crença por razões, contraria a imagem de um mundo onde só operam causas. A questão aqui é o determinismo radical, não o naturalismo. 3.4.3. O problema do relativismo Os princípios acima evidenciam o relativismo da abordagem e levantam automaticamente a questão da auto‐refutação que está implicada em qualquer versão desta milenar tese filosófica. Bloor estava ciente disso desde os primeiros passos do strong programme, e deu uma solução retórica ao problema: enunciou a contradição como um novo princípio filosófico, a chamou de requerimento metodológico e passou trinta anos a repetindo como se fosse uma vantagem a todas as críticas de auto‐refutação que se dirigiram contra o programa. O princípio em questão, o quarto de seus requerimentos originais, é o da reflexividade. Bloor (1991) chama de reflexividade a crença de que sociólogos do conhecimento não podem reivindicar para si nenhum acesso a um ponto de vista transcendental, de segunda ordem, nem se colocar em posição especial ou privilegiada epistemologicamente para justificar suas próprias crenças. Ou seja, 137
nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja aplicável a si mesma. Ele reconhece que tal requerimento rende acusações de auto‐refutação, pois se as próprias proposições supostamente científicas dos sociólogos não têm qualquer privilégio epistemológico sobre outras e são socialmente determinadas e justificadas, porque alguém precisaria adotá‐las? Bloor (1991) acredita que o relativismo do programa é uma força, não uma fraqueza. Para ele, relativismo é o oposto do absolutismo, e seria a crença de que não existem justificações absolutas para nenhuma alegação de conhecimento. O fato de que todas as justificações acabam por se sustentar em algo injustificável tomado como certo é o suficiente para sua conclusão de que o relativismo é a única posição epistemológica possível. É claro que ele não considera que exista algo diferente do que os extremos da dicotomia relativismo‐absolutismo. Deve ser por isso que evoca a autoridade de Popper para se defender da acusação de relativismo (que ele diz em outros momentos que é uma força): Who charges Popper’s theory with relativism? Indeed, when this charge is pressed against the sociology of knowledge doesn’t it frequently come from those who are impressed by that philosophy? And yet the sociology of science can easily formulate the essentials of its own standpoint in the terms of that philosophy. All knowledge, the sociologist could say, is conjectural and theoretical. Nothing is absolute and final. Therefore all knowledge is relative to the local situation of the thinkers who produce it (…) What are all those factors other than naturalistic determinants of belief which can be studied sociologically and psychologically? (BLOOR, 1991, p.159) Não é surpreendente que Bloor não compreenda o fato de o programa forte ser atacado por popperianos e pelo próprio Popper, já que ele parece não 138
compreender a teoria da ciência popperiana. Para esta, o conhecimento científico pode ser relativo à situação dos “pensadores” que o produzem, mas porque ele é relativo às evidências empíricas a que eles têm acesso. No entanto, a teoria da verossimilhança (Popper, 1975b), em qualquer lugar e época, permite aos cientistas locais a escolha da melhor teoria entre as concorrentes em face das evidências empíricas disponíveis e refutações tentadas. Ela postula que devemos optar pela teoria que, em face das evidências reproduzíveis, prevê mais e erra menos, e seria um critério racional universal, prescritivo, independente do que a sociedade aceite ou não. Além disso, novas teorias e hipóteses para Popper não são causadas socialmente, elas são criações de mentes individuais que trazem elementos inéditos à cultura. O que isso pode ter a ver com o strong programme? Bloor acha que tudo (1991, p.159): “To see all knowledge as conjectural and fallible is really the most extreme form of philosophical relativism”. O problema é que a afirmação acima não reflete o pensamento de Popper. Ele não vê todo conhecimento como conjectural e falível, só o conhecimento acerca do mundo empírico. Isso não se estende à lógica, que permite estabelecer um critério racional para decidir entre duas teorias dado um conjunto de crenças acerca de dados empíricos tomados como verdadeiros. A crença científica pode ser relativa. A proposição observacional considerada também. Mas a racionalidade da escolha naquele momento histórico, depois de o conjunto de observações X ser tomado como verdadeiro, não é. 139
Afirma ainda Bloor (1991, p.159) que um sociólogo pode referendar a tese popperiana de que o que torna científico o conhecimento não é a verdade de suas conclusões e sim as regras procedurais, os padrões e as convenções intelectuais aos quais ele se conforma. Mais uma vez isso não é verdade. A regra procedural geral em questão é para Popper universal e nada tem a ver com convenções intelectuais ou normas arbitrárias geradas no seio de um “jogo de linguagem” ou de uma “forma de vida”. Popper, definitivamente, não é um relativista, não é ele a fonte de suas teses, não é a ele que Bloor pode recorrer. Mas é claro que não há solução fácil para este problema, nem a posição popperiana é imune a críticas. Essa passagem de Bloor, depois de mais de 30 anos de respostas às críticas ilustra o amadurecimento de sua posição e alguns problemas reais que surgem quando se abandona uma postura prescritiva acerca da ciência e se tenta descrever como de fato ela funciona: To understand the historian’s procedure, consider the reasoning that might take place in the context of a scientific dispute. All the opposing scientists would typically advance evidence and reasons but: (a) the opposed parties would frequently make different selections from the range of facts that might have been cited, and (b) they often put different interpretations on the same experimental or observational outcomes and often attached different degrees of significance to facts even when their interpretation was the same. Furthermore (c) the terms of the debate could themselves be seen as historically contingent and neither compelling nor necessary. For the historians, then, the deployment of reason by the scientists posed a problem, and the answer to the problem was neither obvious nor provided by the scientists themselves. The problem was: why do the proffered reasons typically convince some scientist but not other scientists? (BLOOR, 2007, p.218) 140
Para o relativismo, ao contrário de Popper, não existem critérios universais de racionalidade que determinem o que deva ser a metodologia científica. Como afirma Oliva (2005, p.111), “Não há Tribunal Epistêmico Superior que se sobreponha às rotinas das práticas e dos praticantes”. Esse tipo de argumento não pode ser sustentado pela filosofia popperiana, mas sim pela kuhniana, como já indiquei nesta dissertação. É para Kuhn que não há padrão acima do assentimento da comunidade relevante, que todas as justificações só o são relativamente a um paradigma. Bloor (1991) argumenta que o relativismo não implica que nunca há razões para se aceitar o que alguém diz, mas que todas as razões são locais e contingentes. Ele acredita que sua posição não é auto‐refutada, pois o argumento de que suas próprias razões seriam locais e contingentes é consistente com sua crença básica. Ao contrário, a acusação de auto‐refutação decorreria do pressuposto absolutista de que as únicas razões adequadas são as absolutas, o que implicaria uma petição de princípio para o que ele denomina absolutismo. Devemos aqui ainda chamar a atenção para o fato de que o construtivismo social não é relativista somente em virtude da tese da causação social das crenças. Este é somente o segundo dos dois sentidos apontados por Alan Nelson (1994). Pelo menos no que tange ao CSO e sua tese da construção social dos fatos científicos que vimos no item anterior, ele é relativista em ao menos mais um sentido: The philosophical constructivism defended in these works is relativistic in two senses. First, there is an ontological relativism about entities and processes. We are not to think of the phenomena studied by scientists as the inevitable manifestations of objectively 141
existing entities and processes; instead, theoretical entities and processes are constituted or constructed by scientists post hoc. After scientists agree on a theoretical description of what the facts are, they might adopt a realistic attitude toward what that theory talks about, but the reality of these things is no part of the explanation of why they end up with the beliefs and the theory that they do. (NELSON, 1994, p. 535) Bem, a posição do CSO tem problemas maiores que seu relativismo. Collins (1983, p. 99), um de seus principais proponentes, defende que mesmo na mais pura ciência, os debates só chegam ao fim quando são empregados meios que não costumam ser caracterizados como estritamente científicos. É claro que essa é uma posição irracionalista. Mas como é comum no campo, depois de criticado Collins se apressa em afirmar que não queria dizer o que disse, ou que não quer a consequência necessária de sua tese: A loss of confidence in the scientific enterprise is a disaster that we cannot afford. For all its fallibility, science is the best institution for generating knowledge about the natural world that we have. (COLLINS, 1985, p. 165) É a melhor? Sob que critérios? E se todo o trabalho do strong programme visa enfraquecer a posição privilegiada do discurso científico na sociedade e sua própria racionalidade, como se pode esperar que um eventual sucesso deste projeto não acarrete a perda de confiança no empreendimento científico? Ou será que a equiparação do valor epistêmico da ciência às teorias aborígenes sobre o universo ou às teses integralistas de organização social não acarretaria perda de confiança em suas explicações? Consideremos estas duas incríveis passagens de Latour (1983), 142
onde ele sintetiza o que “aprendeu” depois de sua estada de dois anos em um laboratório assistindo e descrevendo uma pesquisa cujo resultado deu o Nobel a seus dois autores: Now that field studies of laboratory practice are starting to pour in, we are beginning to have a better picture of what scientists do inside the walls of these strange places called “laboratories”. (…) The result, to summarize it in one sentence, was that nothing extraordinary and nothing “scientific” was happening inside the sacred walls of these temples. (LATOUR, 1983, p.141) …the moment sociologists walked into laboratories and started checking all these theories about the strength of science, they just disappeared. Nothing special, nothing extraordinary, in fact nothing of any cognitive quality was occurring there. (LATOUR, 1983, p.160) O artigo onde estes trechos foram publicados, tem o título de “Give Me a Laboratory and I Will Raise the World”. Bem, a sorte para (o segundo) Collins é não só que ninguém dará um laboratório a Latour, mas também que a abordagem do construtivismo social ontológico à sociologia do conhecimento parece, como irei apresentar aqui, estar condenada a uma retumbante irrelevância científica. 3.4.4. Qual é a relação entre o sujeito e o objeto? Neste subitem avaliaremos uma questão fundamental para os objetivos da dissertação. É o problema do posicionamento do construtivismo social quanto à relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Por tudo o que vimos até aqui sobre as teses ontológicas e epistemológicas desta abordagem, seria perfeitamente justificável afirmar que, dados seus princípios de causalidade e simetria, assim como 143
seu estrito determinismo e sociologismo, não há praticamente papel algum reservado ao sujeito no processo de construção do conhecimento de acordo com o construtivismo social. Ou seja, o construtivismo social não é um construtivismo, pelo menos em função da definição a que chegamos no segundo capítulo. Mas muito mais ainda pode ser esclarecido sobre como esta abordagem entende a relação sujeito‐
objeto do conhecimento. Há um silêncio ensurdecedor na retórica construtivista social. Fala‐se o tempo todo de crenças, às vezes como se elas fossem só o que existe, algumas vezes se fala até de um mundo que seria construído na atividade científica: mas nunca se fala sobre o sujeito da crença nem sobre o sujeito da ação científica. Ao contrário, se falam em crenças sociais e construção social da ciência, como se houvesse sociedade sem sujeitos, ou no mínimo, sem entidades biológicas individualizadas. Slezak (1994) identifica a origem deste silêncio na tese de Bloor de que há um conflito entre dois modelos de explicação para o comportamento humano: o que o último chama de ‘teleológico’ e o causal. ‘Teleológico’ para Bloor não é simplesmente o comportamento movido por razões e direcionado à metas, mas também a evocação de razões, da racionalidade, da lógica e da evidência empírica como razões de uma crença científica ou de uma decisão científica. Em contraste, o modelo “naturalista”, verdadeiramente científico, seria o causal, que para ele é sinônimo de sociológico, já que em última análise não haveria outra fonte determinante de causalidade no que tange o comportamento individual. Isso é o máximo das considerações psicológicas que Bloor realiza na sua primeira versão do strong programme: 144
Does not individual experience, as a matter of fact, take place within a framework of assumptions, standards, purposes and meanings which are shared? Society furnishes the mind of the individual with these things and also provides the conditions whereby they can be sustained and reinforced. (BLOOR, 1991, p.15) A meta do construtivismo social é identificar as condições que causam estados de crença considerados conhecimento científico em grupos sociais. Seus estudos de caso sempre levam à interpretação de que crenças têm causas sociais, não causas psicológicas, como se isso não estivesse implicado desde o início em suas “diretrizes metolológicas”. Mas como observa Oliva (2005, p.268), “para dar plausibilidade à tese de que as razões não determinam a aceitação ou rejeição das teorias científicas é preciso recorrer a razões”. É isso o que o construtivismo social faz para tentar modificar nossas crenças, mas com isso se põe em conflito com a ciência contemporânea. A moderna ciência cognitiva indica claramente, por resultados acumulados em uma série de campos de aderência metodológica inquestionável à ciência moderna (inteligência artificial, psicologia cognitiva, neurociência) e aos padrões tradicionais da racionalidade ocidental, que a psicologia desponta, preservada a condição fundante da epistemologia, como mais elucidativa acerca da obtenção de crenças científicas (e quaisquer outras), que a sociologia. Processos cognitivos individuais surgem para a própria ciência como mais importantes que os condicionamentos ou determinantes sociais. Bloor, nos afterwords escritos para a segunda edição de sua obra fundadora, quebra o silêncio sobre a questão da ciência cognitiva para responder à críticas, como 145
as de Laudan (1981) e Slezak (1989), sobre este problema. O resultado são declarações superficiais onde eventualmente concede algum papel às entidades biológicas no processo de obtenção do conhecimento: The only sociologists to be upset by it would be those foolish enough to deny the need for a background theory about individual cognitive process. I take it as evident that you could have no social structures without neural structures. Cognitive science, of the type described, is a study of just that background of ‘natural rationality’ that advocates of the strong programme take for granted. (…)The correct position for the sociologist to take is that, while a theory of our individual reasoning capacities is necessary to an account of knowledge, it is not sufficient (BLOOR, 1991, p. 168) Essa alegação é suficientemente menos forte do que a formulação original, que lançou o strong programme na moda sociológica. Estamos aqui diante de mais um caso de “reverse switcheroos” (Kukla, 2000). Como ressalva Slezak (1994), a atual versão de Bloor de que simplesmente existem “social aspects of knowledge” é um truísmo sobre o qual ninguém prestaria atenção, muito menos criticaria com tanta veemência, e mal lembra a tese forte original. Mas logo no mesmo texto Bloor volta a sua real preocupação, que é garantir um espaço político central para a sociologia. Ressalta que a sociedade teria prioridade ontológica sobre as entidades biológicas que a constituem, e a sociologia prioridade epistemológica sobre a ciência cognitiva: The sociologists thus have a subject matter that exists over and above that of the cognitive scientists whose work has been cited against them. The former, but not the latter, study how a collective representation of the world is constituted out of individual representations (BLOOR, 1991, p. 169) 146
Como poderia uma “representação coletiva” existir que não em várias mentes individuais? Está óbvio que o que quer que seja o sujeito, ou a entidade biológica que compõe grupos sociais, para o construtivismo social este é concebido como uma entidade passiva e meramente respondente. Como ironiza Latour: I have never said that Bloor was an idealist but that his position was an elaboration on that of Kant with the only difference—due to Durkheim’s emendation—being that the Ego had been replaced by a sui generis society (LATOUR, 1999, p.116) Esta é também a opinião de Phillips (1995), que em artigo que analisa as várias formas de construtivismo afirma: Members of the ʺstrong programʺ in sociology of knowledge (…) – who are working on the origin of the public bodies of knowledge known as the disciplines, especially the sciences – can be read as being far from the ʺnature as templateʺ view, but also as being far from the ʺindividual creation of knowledgeʺ view; when in their least compromising mood, they hold the view that sociopolitical processes can account fully for the form taken by the bodies of knowledge codified as the various disciplines. (PHILLIPS, 1995, p.08) Mas de onde vem o modelo implícito de ser humano assumido aqui? Ele não é, na verdade, tão implícito assim. Barry Barnes foi o primeiro a identificar a negligência da sociologia em fornecer um modelo do papel do sujeito no processo de construção do conhecimento. Em artigo de 1976, ele postula uma disposição indutiva natural no ser humano, semelhante ao condicionamento operante skinneriano, baseado na autoridade psicológica de Mary Hesse. Ele afirma explicitamente (p.116) 147
que sua posição se alinha a uma orientação estritamente materialista e mecanicista, caracterizando o ser humano como uma máquina de aprender. Anos depois, Barnes (1983) desenvolve sua posição no artigo intitulado caracteristicamente “Social life as bootstrapped induction”. O termo ‘bootstrapp’, literalmente tira ou correia de bota, aqui é usado no sentido da característica expressão idiomática americana: “to raise oneself by one’s own bootstrapps”, e pretende ilustrar sua posição de que a sociedade não é construída por agentes, mas em algo como o famoso vôo do Barão de Munchausen, se constrói a si mesma. A vida psicológica é retratada neste artigo como sendo nada além de uma construção hipotética para retratar o funcionamento de uma máquina simples de associação de padrões. Nele, é defendida uma visão, já anacrônica na época, de percepção humana como sendo um processo de associação automática entre um “input” sensorial e uma forma, um padrão armazenado internamente. Esse foi o grande esforço de Barnes em tornar a sociologia do conhecimento compatível com a nova ciência cognitiva. Bloor (1983) trata desta questão em considerável maior profundidade em uma obra importante para a configuração teórica do construtivismo social, “Wittgenstein: A Social Theory of Knowledge”. Como é óbvio, ele recorre novamente à filosofia para tentar sustentar melhor seus pressupostos problemáticos, e novamente a Wittgenstein. Faz suas as palavras deste (BLOOR, 1983, p.6) de que explicações que postulam a existência de estados mentais estão infectadas pela doença do psicologismo, e que nada é mais equivocado do que dizer que significado é uma atividade mental (p.7). Para o naturalismo que ele postula, isso seria absurdo: 148
From a naturalistic standpoint our social life and higher mental processes are the outgrowth of simpler patterns of animal interaction and response. Any satisfactory theory must do justice to the new orders of fact that emerge without losing sight of the matrix of connections and continuities. (BLOOR, 1983, p. 172) Assim como as idéias de Wittgenstein resultaram no behaviorismo lingüístico (Ryle, 1968), as idéias sobre o sujeito de Bloor, ao seguir Wittgenstein chegaram ao behaviorismo de Skinner. Bloor recorre ao abandonado projeto behaviorista de explicação da aquisição da linguagem como exemplo da materialização científica da visão de Wittgenstein. Para ele, Skinner (1975) desenvolveu no Verbal Behavior uma teoria científica da linguagem similar a que Wittgenstein teria desenvolvido se tivesse a isso se dedicado (BLOOR, 1983, p.52). Bloor acredita que pode explicar todo o processo humano de aquisição de crenças e linguagem em termos de condicionamento operante, e para entender o processo precisamos somente entender como uma comunidade verbal maneja e constrói uma agenda de reforçamento. Chega a endossar a opinião de Skinner de que aquilo que chamamos consciência é simplesmente uma forma de reagir ao próprio comportamento, um produto social (BLOOR, 1983, p.53‐54). Ian Hacking (1999) observa que o self (que é diferente de consciência) é um dos objetos prediletos pelos estudos construtivistas sociais, que procuram apresentá‐lo como um produto social, e não construção individual ou menos ainda objeto natural. Bloor ainda tem outros nomes para este alvo prioritário de desconstrução, adversário natural de uma visão sociologista de mundo: ‘ego’ ou ainda ‘mente’. 149
This is the part of ourselves that is often assumed to be known most intimately. It seems to be the location and source of our identity and individuality. There is therefore a sense in which this is the keep of the individualist’s castle. (BLOOR, 1983, p.50) Slezak (2000) apelida o construtivismo social de “behaviorismo renascido” (p.20). Para ele, a conexão causal entre idéias e contexto social proposta por ele não é nada mais que uma versão sociológica da teoria estímulo‐resposta do behaviorismo skinneriano. Slezak vê o ataque frontal de Bloor ao poder explanatório de estados mentais como uma parte fundamental da sua defesa de uma alternativa sociológica radical à explicação da ciência. O problema é que isso deixa seu programa muito dependente das teses wittgensteinianas, e quando elas entram em conflito com resultados da ciência cognitiva, a sociologia da ciência entra por tabela. Como exemplo, Slezak (2000) cita a tese psicologicamente anacrônica da rejeição da existência de estados mentais como imagens, como estando trinta anos atrasada em relação à ciência, e ele está certo. Desde o estudo clássico de Roger Shepard (Shepard & Metzler, 1971), uma enorme quantidade de evidências (experimentais, não de estudos de caso) se acumularam de que seres humanos pensam também através de imagens, ao ponto de hoje termos inclusive algumas leis (do tipo das que o construtivismo social não possui nenhuma) de imagética que conseguem prever com exatidão a diferença de tempo entre respostas que o mesmo sujeito dá a diferentes problemas visuais (Sternberg, 2008; Eysenck & Keane, 2007). Eu mesmo tenho conduzido uma pesquisa que construiu um programa para replicar 150
o experimento original de Shepard com alunos como sujeitos experimentais, porque ele é hoje um clássico da psicologia cognitiva. Mas este não é o único anacronismo de Bloor, como aponta Slezak (2000). Ele ignora o fato de que a tese de aprendizagem verbal de Skinner (1975) é uma tese filosoficamente frágil e cientificamente refutada, e tenta fundamentar o strong programme com esta. Ignora as críticas dirigidas a ela pela importante resenha de Chomsky (1967) que nunca foi sequer respondida por Skinner, mesmo tendo se tornado generalizadamente reconhecida como um dos maiores motivos da rápida decadência do movimento behaviorista e ascensão das ciências cognitivas. Se dirige (BLOOR, 1983, p.191) às referidas teses de Chomsky como sendo simplesmente a crítica “padrão” ao behaviorismo, numa nota de rodapé de duas linhas. Tudo isso leva Slezak a afirmar que: Bloor’s failure to indicate the magnitude and import of these developments is comparable to defending Creationism today by dismissing the Origin of Species as merely “fashionable” and failing to let one’s readers know anything of modern biology founded on Darwin’s theory. (SLEZAK, 2000, p.20) Como afirma Slezak (2000), não deveria constituir surpresa o recrutamento da teoria psicológica behaviorista para defender o sociologismo do programa forte, uma vez que o behaviorismo nega um papel explicativo aos estados mentais internos e portanto está em oposição diametral ao que Bloor chama de ponto de vista teleológico: 151
If scientific beliefs are to be construed as the causal effects of an external stimulus, they are precisely analogous to Skinnerian “respondents” or “operants” and, therefore, science is the result of conditioning. In short, the deep insight of radical social constructivism is that Isaac Newton’s Principia is to be explained just like a rat’s bar‐pressing in response to food pellets. Bloor’s recent protest that his views are entirely consistent with cognitive science cannot be taken seriously (…). (SLEZAK, 2000, p. 21) Slezak está certo. Na verdade, nada substancial mudou em trinta anos nas teses de Barnes e Bloor à respeito do papel do sujeito na construção do conhecimento. E o motivo é simples, como Barnes explica em outro artigo com título anedótico sobre o problema do sujeito na sociologia, “Agency as red hering in social theory”: “Agency” stands for the freedom of the contingently acting subject over and against the constraints that are thought to derive from enduring social structures. To the extent that human beings have agency, they may act independently of and in opposition to structural constraints, and/or may (re)constitute social structures through their freely chosen actions. To the extent that they lack agency, human beings are conceived of as automata, following the dictates of social structures and exercising no choice in what they do. (LOYAL & BARNES, 2001, p.507) E novamente Bloor: An alternative strategy, more in keeping with the Strong Program, would be to adopt an approach loosely derived from the empiricist tradition. The sociologist needs to have a grasp of what the agents under study are responding to, that is, what aspects of the world have been disclosed to them in their experience, and what predicament they take themselves to be in. If we can isolate the ‘stimulusʹ then perhaps we can begin the task of explaining the ‘responseʹ. Of course, the real concern will not be with individual, psychological responses as such, but with those responses as mediated by a collective understanding, with its shared traditions and conventions. (BLOOR, 1999, p.90) 152
E ainda ambos, em tentativa conjunta de responder aos problemas acumulados em trinta anos de strong programme, ainda recorrendo ao behaviorismo: Sociologists should be willing to acknowledge the existence and the causal relevance of the physical environment when they study the growth of knowledge. And having acknowledged this, they should acknowledge also the ability of individual human beings to monitor the physical environment and learn about it. Individual animals learn directly from experience. The psychologist’s rat pushes the lever and looks to the arrival of a food pellet. (BARNES, BLOOR & HENRY, 1996, p.76) A crença na nulidade do papel do sujeito na obtenção do conhecimento é generalizada no construtivismo social, até no ontológico, que não defende que indivíduos constroem o mundo, mas que a sociedade o constrói. Veja o que diz sobre isso a “epistemóloga feminista” Lynn Nelson: In suggesting that it is communities that construct and acquire knowledge, I do not mean (or ʺmerelyʺ mean) that what comes to be recognized or ʺcertifiedʺ as knowledge is the result of collaboration between, consensus achieved by, political struggles engaged in, negotiations undertaken among, or other activities engaged in by individuals who, as individuals, know in some logically or empirically ʺpriorʺ sense. (…) My arguments suggest that the collaborators, the consensus achievers, and, in more general terms, the agents who generate knowledge are communities and subcommunities, not individuals. (NELSON, 1993, p. 124) Creio que está suficientemente fundamentada acima a principal parte do argumento que demonstra uma das hipóteses defendidas nesta dissertação, qual seja, a de que o construtivismo social não é construtivista, sendo uma forma de objetivismo. Em qualquer autor auto‐denominado construtivista social, nós 153
encontramos a mesma resposta à Q3 desta dissertação, sobre a relação entre sujeito e objeto do conhecimento. E essa relação é de absoluta passividade. O sujeito não é nada mais que um histórico de reforçamento, um conjunto de associações estímulo‐
resposta verbais. O sujeito é construído pelo conhecimento, não o constrói: Everyone has been assuming that knowledge is to be analyzed into two ingredients: one furnished by the object, the other by the knowing subject. Theories of knowledge are just the stories we tell about how these two supposed ingredients are to be identified, how they interact, and in what proportions. Some will lay great stress on the complexity of the knowing subjectʹs contributions; others will see it as a passive receptacle, or like a blank sheet waiting to be written on. Some accounts of knowledge will treat the subject as an individual mind; others will identify it as a group or a culture. Obviously, for a committed sociologist, the ultimate knowing subject will be social in character, in short, ‘societyʹ. (BLOOR, 1999, p.83) 3.4.5. Qual é o método científico de investigação da ciência? Enfim chegamos ao último item de nossa caracterização do construtivismo social, e ele diz respeito à questão metodológica. Já que esta abordagem da sociologia do conhecimento se apresenta como um programa de pesquisa empírica, destinado a aplicar a ciência ao estudo da ciência e descartar o anacronismo apriorista da epistemologia, é fundamental que se defina o que esta abordagem entende por metodologia científica capaz de estabelecer as relações causais que constituem, afinal de contas, a diretriz programática número um do strong programme. Quando Bloor fala em metodologia, ele na verdade apresenta um conjunto de pressupostos filosóficos que chama de requerimentos metodológicos para o estudo 154
sociológico da ciência, são os princípios já vistos da causalidade, simetria, imparcialidade e reflexividade. Alguns destes têm remotamente o formato de sugestões metodológicas, mas são na verdade um conjunto de petições de princípio. O sociólogo deve pressupor que toda crença tem uma causa e não razões, deve estudar ambas as crenças tanto aceitas quanto rejeitadas, levantar o juízo acerca da verdade ou falsidade última das crenças, e considerar que tudo isso também se aplica a suas próprias crenças e sua própria disciplina. Mas nada disso diz como o sociólogo deve investigar seu objeto, que padrões ele deve seguir na observação e tratamento dos dados e muito menos como ele poderia testar hipóteses causais (cujo estabelecimento o programa forte diz que em última análise é o seu objetivo). Não é só Bloor que parece considerar metodologia somente como análise de pressupostos filosóficos e diretrizes gerais de uma disciplina. Bruno Latour em “Science in action”, seu livro declaradamente dedicado à metodologia, resume toda sua obra em um quadro sinótico na seção de apêndices, que tem como título “Latour’s Rules of Method”. Peço ao leitor a permissão para a transcrição integral do quadro, para que não reste dúvida de que não houve uma seleção tendenciosa. Eis o que são as regras do método científico com o qual Latour espera elucidar as verdadeiras causas do surgimento e aceitação da teoria da relatividade de Einstein ou a da descoberta do hormônio TRH: Rule 1 We study science in action and not ready made science or technology; to do so, we either arrive before the facts and machines are blackboxed or we follow the controversies that reopen then. (Introduction) 155
Rule 2 To determine the objectivity or subjectivity of a claim the efficiency or perfection of a mechanism, we do not look for their intrinsic qualities but at all the transformations they undergo later in the hands of others. (Chapter 1) Rule 3 Since the settlement of a controversy is the cause of Nature’s representation, not its consequence; we can never use this consequence, Nature, to explain how and why a controversy has been settled. (Chapter 2) Rule 4 Since the settlement of a controversy is the cause of Society’s stability, we cannot use Society to explain how and why a controversy has been settled. We should consider symmetrically the efforts to enroll human and non‐human resources. (Chapter 3) Rule 5 We have to be as undecided as the various actors we follow as to what technoscience is made of; every time an inside/outside divide is built, we should study the two sides simultaneously and make the list, no matter how long and heterogeneous, of those who do work. (Chapter 4) Rule 6 Confronted with the accusation of irrationality, we look neither at what rule of logic has been broken, nor at what structure of society could explain the distortion, but to the angle and direction of the observer’s displacement, and to the length of the network thus being built (Chapter 5) Rule 7 Before attributing any special quality to the mind or to the method of people, let us examine first the many ways through which inscriptions are gathered, combined, tied together and sent back. Only if there is something unexplained once the networks have been studied shall we start to speak of cognitive factors. (Chapter 6) (LATOUR, 1987, p.258) O leitor mais familiarizado com os métodos quantitativos de investigação que são a essência mesmo da ciência moderna, e que tem uma vaga noção dos inúmeros procedimentos‐padrão que são usados para controlar variáveis, recolher dados, eliminar interferências e tratar estatisticamente os resultados pode não estar entendendo bem o que está acontecendo aqui. Mas é simples. A sociologia nunca usa o método experimental, e usa muito raramente qualquer método descritivo típico da ciência moderna, geralmente, quando usa, executa levantamentos de dados seguidos de estudos estatísticos de correlação. Isto porque diante da impossibilidade de 156
conduzir experimentos sociológicos, tudo o que resta é estabelecer empiricamente correlações entre fatores sociológicos (como no famoso estudo de Durkheim sobre o suicídio). Mas o método de levantamento de dados, até onde eu pude investigar para esta dissertação, jamais foi aplicado ao estudo sociológico do conhecimento científico no âmbito do construtivismo social. Ao contrário, para estudar a aplicação dos métodos nomotéticos da ciência moderna, a sociologia do conhecimento lança mão de métodos idiográficos de dois campos não‐científicos: a história e a antropologia. Da história, utiliza o estudo de caso baseado em recolhimento de documentos e testemunhos, da antropologia, utiliza o método da observação participante, nos termos de Knorr‐Cetina (1983), estudos etnográficos do trabalho científico. Esta é a ciência que estuda a ciência para o strong programme. Levantamento de dados históricos e sua interpretação hermenêutica, e participação em laboratórios durante a produção real de conhecimento científico, levantando todo tipo de dados supostamente sem prévia interpretação ou pré‐concepção, ‘outsiders’ fazendo observação participante na estranha tribo dos cientistas e testemunhando seu comportamento bizarro. Trinta anos de estudos de casos e observações participantes realmente geraram uma grande massa de dados empíricos e suas interpretações. Algumas das mais célebres são os estudos históricos de Steve Shapin (1994) sobre a Frenologia, de Elisabeth Potter (1993) sobre a lei dos gases de Boyle, e de Latour (1988) sobre a teoria da relatividade de Einstein. Entre as mais célebres observações participantes do 157
construtivismo social estão as de Latour & Woolgar (1986) sobre a descoberta do TRH e de Andy Pickering (1984) sobre quarks. Alguns dos resultados “científicos” destes estudos. Elisabeth Potter (1993) concluiu através de seu estudo histórico da lei dos gases de Boyle que o conhecimento de que o gás tem peso foi determinado por considerações de gênero e classe social. Robert Boyle era um puritano, e portanto contra a liberação das mulheres de seu papel doméstico convencional, e sua consciência de classe era sustentada pelo mecanicismo. Portanto partiu para derrotar a posição holista e organicista de Hermes, Paracelsus e Campanella, pois esta era advogada pela plebe e predominantemente por mulheres. Potter conclui que o trabalho de Boyle teve implicações diretas para as mulheres daquele período histórico. Foi mais um caso de chauvinismo da ciência patriarcalista ocidental. Já Steve Shapin (1994) demonstrou que a disputa sobre a frenologia na Escócia do século XIX foi uma questão de disputa de classe. Os defensores da frenologia vinham da classe média, portanto interessados em encontrar conhecimento prático capaz de orientar e legitimar os propósitos de reformas sociais igualitárias, enquanto seus oponentes vinham de círculos acadêmicos da elite escocesa. A estrutura da explicação de Shapin é apresentada assim por Niiniluoto (1999): The members of the community C belong to social class S. The members of S have the social interest I. The members of C believed that theory T would promote interest I. Therefore, the members of C believed in theory T. (NIINILUOTO, 1999, p.255) 158
E é claro, temos a celebre explicação de Latour sobre o que realmente está por trás de teoria da relatividade, avaliada pelos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (2001) no já clássico “Fashionable Nonsense”: a busca obsessiva de poder e controle por parte de Einstein. Mas como estamos falando de Latour, o mais apropriado é sempre a transcrição literal: However, it is only when the enunciator’s gain is taken into account that the difference between relativism and relativity reveals its deeper meaning. (…) It is the enunciator that has the privilege of accumulating all the descriptions of all the scenes he has delegated observers to. The above dilemma boils down to a struggle for the control of privileges, for the disciplining of docile bodies, as Foucault would have said. (LATOUR, 1988, p.15) Who is going to benefit from sending all these delegated observers to the embankment, trains, rays of light, sun, nearby stars, accelerated lifts, the confines of cosmos? If relativity is right, only one of them (that is, the enunciator, Einstein or some other physicist) will be able to accumulate in one place (his laboratory, his office) the documents, reports and measurements sent back by all his delegates. (LATOUR, 1988, p.23) Estes são alguns de muitos resultados dos estudos sociológicos sobre a ciência. Talvez, diante de alguns destes, alguns pesquisadores do strong programme devessem cogitar que há algo errado com a metodologia que produz semelhantes conclusões. Veremos isso no próximo capítulo. Mas é claro que entre os reticentes não poderia estar Bruno Latour. De fato, ele está muito convencido do valor das suas, como podemos inferir desta afirmação: Did we teach Einstein anything? No matter how presumptuous the question seems to be, it is the necessary counterpart of this more equal status the method requests. My claim would be that, without the enunciator’s position (hidden in Einstein’s account), and without 159
the notion of centers of calculation, Einstein’s own technical argument is ununderstandable. (LATOUR, 1988, p.35) É por estas e muitas outras que afirma Slezak (2000): Based on their own experience, it is not difficult to see why Latour and Woolgar might arrive at the conclusion that science is a more or less arbitrary construction and negotiation with fictions and that “nothing of any cognitive quality was occurring” in scientific laboratories. (SLEZAK, 2000, p.26) Concluímos portanto este capítulo atribuindo ao construtivismo social a defesa de teses realistas e idealistas em ontologia, e céticas e objetivistas em epistemologia. Em vista das várias teses apresentadas neste capítulo, vamos finalmente apresentar detalhadamente as críticas a esta abordagem indicadas desde a introdução desta dissertação. 160
Capítulo 4 Avaliação crítica do Construtivismo Social Neste capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social, das quais duas pretendem ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito ao fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da filosofia, o construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente e praticada sem rigor. A segunda diz respeito ao fato de que os métodos usados pelo construtivismo social para investigar cientificamente a ciência não são científicos, são incapazes de testar alegações acerca de relações de causa e efeito, fato este que aparentemente nunca foi abordado na literatura sobre o strong programme. A terceira, alegada aqui desde o início da dissertação, é a de que o construtivismo social não é estrito senso uma variante de construtivismo, não faz parte dessa tradição do pensamento ocidental, pois não existe, para esta abordagem, um sujeito ativo. A quarta, é que ela defende uma das teses mais descabidas da história da filosofia da ciência, a de que o mundo não faz diferença na obtenção de conhecimento científico. 161
Por fim, abordarei novamente o problema do relativismo e da definição de conhecimento adotada por essa vertente, criticando as consequências de se rejeitar a verdade como ideal normativo. 4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia Apesar de se apresentar como uma disciplina científica, o programa forte da sociologia da ciência é fundamentalmente um manifesto metacientífico. Ao rejeitar a filosofia como campo legítimo de inquérito sobre a natureza da ciência, acaba apresentando suas alegações de maneira inconsistente, alegando serem fruto de investigação empírica. Esta característica faz do conjunto de idéias que professa uma filosofia da ciência praticada sem o rigor da filosofia. 4.1.1. A circularidade da pretensão cientificista O strong programme é só um caso particular de uma patologia que acomete a filosofia desde a ascensão cultural irresistível da ciência moderna: o cientificismo. De tempos em tempos a cultura antifilosófica se manifesta proclamando a caducidade da filosofia e a necessidade de eliminá‐la em prol de uma vigência universal do modelo científico de investigação. É comum se propor sua substituição por alguma disciplina específica como mostram os casos do psicologismo e fisicalismo. Os 162
reducionismos capitaneados por um ‘ismo’ são uma das marcas da tradição genericamente rotulável de (neo)positivista. O novo aqui é que uma corrente que se declara antipositivista tenha incorrido no mesmo tipo de ingenuidade filosófica que já malogrou tantas vezes. A ingenuidade é não perceber que qualquer discurso que visa a obter conhecimento sobre uma forma de obter conhecimento é um discurso de segunda ordem, e como tal, dependente de pressupostos filosóficos acerca de conceitos como ‘verdade’, ‘conhecimento’, ‘realidade’, ‘justificação’. Alguma coisa deve estar errada em uma disciplina altamente questionada em sua cientificidade, que não apresentou até hoje uma única lei geral aplicável a processos sociológicos, declarar a prioridade epistemológica da ciência, principalmente quando a ciência em questão é a sociologia. E há. Como veremos no próximo item, aquilo que eles chamam de ciência (1) que investiga a ciência (2) é na verdade um conjunto de métodos históricos e antropológicos (1) estudando experimentos (2). Mas, a história é ciência moderna? Como não é, não temos ciência estudando a ciência. Pelo menos, não temos a ciência moderna, que é o suposto objeto de interesse do construtivismo social, estudando a ciência moderna. É banal que em qualquer investigação científica tenhamos de partir, no mínimo de forma implícita e irrefletida, de alguma concepção de ciência, e que esta última não tenha sido estabelecida cientificamente. O próprio Bloor parece ter perfeita consciência disso quando afirma: “Of one thing we can be sure: nobody can
develop any position in a wholly presuppositionless way” (BLOOR, 1999, p.91). 163
O construtivismo social, ao negar à filosofia da ciência o papel de reconstruir a atividade científica, assume de forma tácita uma teoria geral da cientificidade. Na verdade, como toda forma de cientificismo, o que temos aqui é a desconfiança ou mesmo ódio em relação à razão e à racionalidade transferida à filosofia, através do discurso filosófico de descrença na capacidade da filosofia de produzir conhecimento. A partir daí, se propõe que estudos sobre a ciência sejam conduzidos de forma científica, pressupondo‐se filosoficamente que só a ciência produz conhecimento: To think about the nature of knowledge is at once to immerse oneself in an abstract and obscure enterprise. To ask questions of the sort which philosophers address to themselves is usually to paralyze the mind (BLOOR, 1991, p.52) Talvez Bloor não tenha suportado o peso de se fazer perguntas sobre a natureza do conhecimento, pois tudo o que ele apresenta é uma filosofia descuidada, uma vez que não conduz estudos de campo. Não é para menos. Tudo o que de mais importante se tem dito sobre a ciência, o tem dito a filosofia. Invariavelmente, e isso já inclui o programa forte da sociologia da ciência, as diferentes versões de cientificismo se revelaram com o tempo superficiais e alienadas da ciência real, como foi o caso do psicologismo do fim do século XIX e do fisicalismo do positivismo lógico. Em todas elas, se provaram facilmente a presença implícita de uma filosofia da ciência rústica (como mostraremos aqui) e ingênua, geralmente similar a um empirismo simplista como o professado por Newton, que repetia que não elaborava 164
hipóteses. É por isso que Niiniluoto (1991) acredita que devamos tratar os construtivistas sociais como colegas filósofos. Qualquer teoria que se volte ao objeto da própria ciência ou conhecimento faz um discurso de segunda ordem, que não pode extrair sua fundamentação de lugar nenhum que não a filosofia. É claro que a este discurso de segunda ordem, que define o que é ciência, não pode se atribuir o estatuto de ciência. Como afirma Oliva: Estudar a ciência demanda o uso de conceitos e categorias que não se localizam no mesmo plano do discurso de primeira ordem da pesquisa científica. Tarefas como a de definir a cientificidade, identificar as formas de interação entre fatos e teoria e buscar fundamentação para os modelos explicativos não têm como ser realizadas de modo científico. (OLIVA, 2005, p.45) Bloor reclama deste tipo de crítica. Afirma que “if sociology could not be applied in a thorough‐going way to scientific knowledge it would mean that science could not scientifically know itself” (BLOOR, 1991, p.46). Mas é óbvio que não pode. E se pudesse, a sociologia não seria a disciplina científica mais adequada para isso. Esta disputa entre sociologia e filosofia não é nada mais que o reflexo sociológico de polêmicas internas da filosofia da ciência. Oliva (2005) argumenta que este confronto não se dá, como nos tentam fazer crer os sociólogos, entre o apriorismo e a ciência empírica. É, na verdade uma luta entre epistemologias internalistas e externalistas. Epistemologia internalista é aquela que acredita que a decisão entre teorias científicas é totalmente interna à lógica de investigação científica, se concentrando na identificação dos atributos lógicos e empíricos das 165
teorias. Epistemologia externalista é aquela que atribui a escolha de teorias científicas a causas externas à lógica e às evidências empíricas, como interesses de grupos ou classes e mecanismos sociais gerais 4.1.2. Não existe descritivismo puro Isto nos leva à problemática da contraposição entre descritivismo e prescritivismo. Na verdade, toda a argumentação do strong programme parte da admissão implícita da tese de que a pergunta que deve ser feita sobre a ciência é sobre o que é, de fato, a ciência. Esta não é, no entanto, a questão da filosofia. A filosofia não se dirige a questões de fato, contingentes, estas são realmente tarefas da ciência. A filosofia se dirige a questões de razão. A tarefa da filosofia é apresentar o que deveria ser a investigação científica para se conseguir teorias com a melhor qualidade possível sobre o mundo, não investigar o que anda sendo feito de fato nos laboratórios. Não é que questões de fato não interessem ao filósofo, é que elas não são o que distingue seu objeto de investigação. Ele pode prescindir de questões de fato. O mesmo não acontece com uma abordagem descritiva da ciência. Ela se dedica a descrever questões de fato sobre a ciência, mas não pode, como acreditam alguns ingênuos descritivistas, prescindir de questões de razão e pressupostos apriorísticos acerca da ciência. Afinal de contas, de que forma a) abordariam adequadamente seu objeto e b) saberiam o que procuram? O descritivismo que ingenuamente acredita não partir de posições aprioristas, fica na verdade escravo da racionalidade ou da 166
prática em uso, do que é nomeado científico por determinada sociedade, que pode ser desde investigações em aceleradores de partículas até rituais vodoos. O construtivismo social não é nada além de uma abordagem da ciência que se assume como descritivista, mas que sequer logra mostrar como a ciência de fato é, como é realmente praticada. Tacitamente estipula o que a ciência é para justificar suas próprias teses com fatos escolhidos de acordo com suas próprias necessidades metacientíficas. O construtivismo social acusa indevidamente a filosofia da ciência de, ao recorrer a uma lógica da ciência, desconsiderar a ciência real. Mas não se pode acusar uma disciplina de não abordar algo para o qual não é feita, e para o qual não tem competência metodológica. Filosofia da ciência não é história da ciência, não é psicologia da ciência e também não é, não pode ser, e não tem como ser substituída por uma sociologia da ciência. Propor que a história da ciência substitua a filosofia da ciência é propor que ciência é aquilo que foi chamado de ciência ao longo da história. Propor que a sociologia da ciência substitua a filosofia da ciência é propor que ciência é aquilo que se assume como ciência hoje. Nenhuma das duas abordagens pode substituir o papel da filosofia de apontar como a ciência pode ser melhor praticada. Mas como aponta Stove (2001, p.22), o que origina o irracionalismo epistêmico característico do construtivismo social é a recusa em distinguir o descritivo do prescritivo, que tem sua origem na recusa da distinção entre contexto de descoberta e de justificação. Como não há critérios de justificação a prescrever, os que são usados têm de ser descritos como qualquer outro fator de tipo contingente. Esta abordagem herda e usa, neste ponto, todas as teses da Nova Filosofia da Ciência como se 167
tivessem sido provadas, mas não reconhece que parte, como uma espécie de a priori, desta base epistemológica. 4.1.3. Mais do mesmo: construtivismo social é a Nova Filosofia da Ciência Este argumento é o centro da obra de Oliva (2005), que defende que a nova sociologia da ciência só se tornou possível pela disseminação nas ciências sociais das teses da Nova Filosofia da Ciência que expusemos nesta dissertação, notadamente as de Kuhn e Feyerabend. Para ele, “toda argumentação do Programa Forte nada mais faz que traduzir para a linguagem sociológica as conclusões a que chegaram as filosofias da ciência autoproclamadas pós‐positivistas”. (OLIVA, 2005, p.251): ...as profundas diferenças subsistentes entre os Programas Fraco e Forte em sociologia da ciência não devem ser creditadas a mudanças de enfoque causadas por transformações na dinâmica interna – inovações teóricas ou introdução de novas técnicas de pesquisa – de produção do conhecimento sociológico. Mesmo porque despontam como totalmente dependentes da adoção de divergentes modelos epistemológicos. A sociologia só deixa de adstringir seus estudos à gênese dos produtos científicos quando passa a ser municiada por argumentos epistemológicos heterodoxos que desqualificam distinções entre, por exemplo, contexto da descoberta e contexto da justificação, observação e teoria. (OLIVA, 2005, p.225) É a repetição de um movimento antigo e conhecido, céticos geralmente negam que exista epistemologia ou que ela diga algo relevante, e recorrem a ela em seus debates o tempo todo para defender suas teses, como observaram Nola & Sankey (2000). O truque do construtivismo social é negligenciar questões relativas à metodologia e sua fundamentação acusando‐as de falsas questões, com base na 168
suposição de que todo e qualquer pensamento é socialmente determinado. Ao mesmo tempo, usa métodos primitivos e ingênuos como se fossem procedimentos naturais da racionalidade que julga não‐natural. Mas se procedimentos metodológicos não são mais que convenções de determinado grupo social, não há razão para outros grupos sociais que não possuem as mesmas convenções levarem em consideração seus resultados. Se, como quer o neo‐wittgensteinismo presente no construtivismo social, toda e qualquer regra científica é expressão de uma forma de vida, o que cabe fazer é procurar identificar as causas que levam os cientistas a escolher uma teoria em detrimento de outra. Mas isso se aplica também, até pelo princípio da reflexividade, ao próprio construtivismo social: quais são os interesses que determinam a escolha de suas teorias? Eles parecem óbvios, mas abordaremos isto no último item do capítulo. O projeto de estabelecer cientificamente os eventuais determinantes sociais das crenças científicas se revela extremamente frágil tão logo percebamos que as supostas teorias sociológicas causais do conhecimento não têm nem a mais remota semelhança na aparência e desempenho com as poderosas teorias físicas, químicas e biológicas que este projeto tenta sociologizar: Como pode a sociologia com sua cientificidade questionada ‐ a ponto de Poincaré (1912, p. 12‐3) afirmar que “cada tese sociológica propõe um método novo (...) o que faz com que a sociologia seja a ciência com o maior número de métodos e o menor número de resultados” ‐ ambicionar explicar as outras ciências? (OLIVA, 2005, p.17) 169
Para contornar este fato duro, o construtivismo social como sempre apela à retórica proclamando a tese feyerabendiana de que todas as formas de teorização e metodologias se equivalem; desse modo, se exime das necessárias demonstrações de adequação aos fatos que tanto cobra da filosofia. O problema é que a ciência vive do negócio da explicação e previsão acurada dos fatos, e que a evidência histórica a qual a sociologia do conhecimento alega recorrer demonstra reiteradamente que o método experimental é o melhor para se alcançar esse fim. Se o projeto da sociologia da ciência é o de ser a ciência da ciência, precisa testar empiricamente suas hipóteses causais, e não interpretar retroativamente dados históricos selecionados ad hoc nem proclamar, aberta ou tacitamente, princípios epistemológicos professados por Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend como se fossem resultados empíricos. Mas como mostra Larry Laudan (1981) o programa forte foi mal‐sucedido – e continua assim até hoje – na determinação de qualquer mecanismo causal ou lei para sustentar as pretensões científicas de suas teses. No fundo o programa forte: is not a sociological theory, in any costumary sense of that term. It specifies no detailed causal or functional mechanisms and no laws. It is, rather, a meta‐sociological manifesto. It lays down certain very general characteristics which any adequate sociology of knowledge should possess. (LAUDAN, 1981, p.174) Enfim, o programa forte nada mais é que uma filosofia praticada em versão sociológica de maneira descuidada, cheia de teses controversas que tentam passar por científicas, isto é, portadoras da condição de ciência da ciência. É, para tomarmos 170
a expressão de Laudan (1981), “a pseudociência da ciência”. Uma filosofia da ciência, afinal de contas, mas sem o rigor analítico e linguístico que a boa filosofia exige. 4.2. – Uma investigação sem método A pretensão de ser uma ciência que explica o que é essencialmente a ciência é, portanto, inconsistente, num nível muito primário. Mas há outra questão que ainda não foi levantada quanto a esta pretensão, e que merece ser apresentada aqui. Como apontou Laudan (1981), Bloor (e isso se estende a todo construtivismo social) não nos fornece uma definição do que distinguiria a investigação científica da não‐científica, mesmo porque isso explicitaria uma de suas incoerências (a de querer estabelecer cientificamente que a ciência não tem valor epistêmico superior). Para Laudan (1981), isto nos tiraria a condição de avaliar a alegação de que o programa forte é científico. Creio, no entanto, que Laudan se equivoca neste ponto. Na falta de uma definição explícita, resta‐nos uma forma objetiva de avaliar esta alegação. Se Bloor, como vimos, reiteradamente afirma que o método da sociologia da ciência é o mesmo que o das ciências naturais, e que sua inovação é aplicar a ciência ao estudo de si mesma, temos que avaliar esta alegação à luz dos padrões metodológicos das disciplinas que o strong programme investiga. 171
O construtivismo social afirma que se deve produzir um conhecimento científico sobre a ciência. Mas o que esta abordagem da sociologia faz é aplicar métodos idiográficos, estranhos à ciência moderna, ao estudo de procedimentos conduzidos por métodos nomotéticos, tipicamente empregados pela ciência moderna. Utiliza métodos qualitativos para estudar métodos quantitativos. Estuda casos únicos para extrair conclusões universais. Ou seja, não aplica métodos científicos à ciência, ou dito mais especificamente, não aplica a ciência moderna, que é a fonte da reputação do termo ‘ciência’, ao estudo da ciência moderna, que é o objeto de seu interesse. O programa forte quer estabelecer, através de investigação científica, as leis causais que regem a construção social do conhecimento científico. Mas aquela ciência que ele afirma estudar, como a física dos estudos de Latour (1988) e Pickering (1984) ou a bioquímica do estudo de Latour & Woolgar (1986), só aceita como método capaz de estabelecer uma relação causal o experimento, por causa da rigorosa estrutura dedutiva de seu inquérito. Evidentemente, o strong programme nunca produziu um experimento sociológico. Como então pretendem estabelecer cientificamente uma relação de causa e efeito? A sociologia da ciência, que alega descrever a ciência real, deve saber que o processo geral de investigação científica tradicional – praticado na física, química, biologia e psicologia – tem quatro etapas. A primeira é a do problema, cujo objetivo é a descrição do fenômeno investigado da melhor e mais precisa maneira possível. Nesta etapa entram em cena os métodos descritivos, como os estudos de casos (no plural), as 172
observações naturalistas e os levantamentos de dados. A segunda ordem é a da hipótese; aqui o objetivo é a construção de um modelo ou elaboração de uma hipótese causal. Tradicionalmente, nesta etapa da investigação científica, principalmente nas ciências sociais, os procedimentos adotados são de natureza lógico‐matemática, e tomam a forma de estudos de correlação. Estes só podem ser aplicados a uma massa de dados quantitativos padronizados recolhidos por levantamentos de dados ou estudos ex post facto. Na etapa da investigação científica em que o objetivo da pesquisa é o teste de uma hipótese ou modelo, a ciência moderna conta com dois métodos de validade diferenciada: o provisório estudo quase‐experimental e o método experimental, “supremo tribunal” da investigação científica. Neste, uma previsão sobre o comportamento de um fenômeno é feita e o mesmo é provocado de forma controlada de forma a testar a previsão. A última ordem de objetivos dos métodos de pesquisa é a crítica; nesta etapa final da investigação, busca‐se a análise do alcance, validade e significância dos resultados obtidos no teste. Os procedimentos aqui podem ser de dois tipos. Um concerne aos instrumentos de análise estatística, notadamente o teste de hipótese, que possibilitam o estabelecimento da significância estatística dos resultados do experimento. O outro tipo é a análise do metodologista quanto à adequação do desenho, execução do experimento e alcance da conclusão. O Estudo de casos é geralmente confundido com o estudo de caso único e às vezes tomado mesmo por seu sinônimo. No entanto, duas características marcantes podem distinguir estes dois procedimentos de pesquisa. O primeiro é o objetivo de cada um. O segundo a quantidade de técnicas e procedimentos que cada método está 173
autorizado a lançar mão. O estudo de caso único é um estudo idiográfico e qualitativo. Seu objetivo é a descrição minuciosa e completa de um fenômeno único qualquer, geralmente um fenômeno social ou quadro psicopatológico. Este fenômeno é geralmente de especial relevância, como uma patologia desconhecida ou evento histórico de grandes implicações. Já o estudo de casos, que geralmente é baseado em vários estudos de caso único diferentes (mas não necessariamente), tem como objetivo a identificação de padrões presentes em vários casos particulares de um determinado fenômeno. Ele se insere, portanto, em um processo mais amplo de investigação que tem como objetivo final o estabelecimento da frequência e quantidade da presença de determinadas variáveis associadas ao fenômeno investigado. Em última análise, seu objetivo não é o registro de um caso único, mas ser uma etapa da busca de leis científicas que sejam válidas universalmente; um processo nomotético de investigação. O estudo de casos pode lançar mão de uma série de procedimentos de coleta de dados, como documentação, pesquisa histórica, observação naturalista, entrevistas e assim por diante, mas seja como for a coleta, ela precisa ser padronizada. Portanto, podemos perceber que estudos de casos são sempre feitos com objetivos gerais. Apesar da evidente fragilidade das conclusões que podemos alcançar com tais pesquisas, não podemos esquecer que estas possuem elevada validade ecológica (relativa ao contexto real onde de fato se dão os fenômenos investigados) e são fonte riquíssima de informações para elaborarmos hipóteses de pesquisa. Mas elas não têm uma estrutura que permita sequer estabelecer 174
matematicamente a probabilidade da existência de uma relação qualquer entre duas variáveis. Que dirá uma relação causal. São os estudos de correlação que permitem estabelecer, ao menos, a probabilidade da existência de uma relação real entre duas variáveis. A análise correlacional não tem como objetivo a descrição pura e simples do problema (como nos métodos descritivos) nem o teste de uma hipótese (como no caso do método experimental). Seu objetivo final não é o estabelecimento de uma relação causal, mas a construção de um modelo ou hipótese causal. São mais bem compreendidos como fazendo parte do esforço de criação de hipóteses que ocorre na segunda etapa do processo geral de investigação científica, através da aplicação de análises estatísticas a uma massa de dados recolhida de maneira quantitativa e padronizada. Estabelecer estatisticamente a correlação entre duas variáveis (como interesse econômico definido operacionalmente e crença científica definida operacionalmente) significa somente provar que, se os dados padronizados recolhidos são reais, então a variável 1 (interesse econômico x) está co‐relacionada com a variável 2 (crença científica y), num determinado nível de significância (tem w de probabilidade de a co‐incidência das alterações nos valores das variáveis ter ocorrido ao acaso): elas variam conjuntamente. Não podemos no entanto, com base nestes dados, apontar qual a direção desta relação: se x causa y, se y causa x ou se um terceiro fator z causa ambos x e y. Ainda temos uma quarta possibilidade de relação, que é a retroalimentativa, onde x varia y e a variação de y provoca mais variação de x. Podemos chamar metaforicamente esta característica do estudo de correlação de 175
“efeito Tostines”. Ser mais fresquinho pode causar vender mais, vender mais pode causar ser mais fresquinho, ser mais barato pode causar ser mais fresquinho e vender mais ou, ainda, pode haver uma relação retroalimentativa onde ser mais fresquinho causa vender mais que causa ser mais fresquinho que causa vender mais ad infinitum. Assim, ao determinar a relação entre um interesse x e uma crença y (como construtivistas sociais presumem que exista), poderiam ser formuladas quatro hipóteses de relação causal (por exemplo, é perfeitamente concebível, diga‐se de passagem mais verossímil, que uma crença y cause o interesse x do que o contrário, alegado pelo construtivismo social). Estas hipóteses, no entanto, precisam ser testadas por um delineamento de pesquisa experimental, o que, caso não seja possível por limitações éticas ou metodológicas, deixa ao menos as hipóteses surgidas desta maneira em melhores condições que as surgidas da pura especulação sobre resultados de estudos de caso único meramente descritivos. Mas em hipótese nenhuma um cientista estaria autorizado metodologicamente a afirmar que estabeleceu a probabilidade de uma destas relações ser verdadeira. A ciência que o strong programme alega fazer e que de fato é o seu objeto de estudo, só reconhece como teste de uma hipótese causal e, portanto motivo suficiente para afirmação de que a crença em sua existência é uma crença científica, o método experimental. Este é dependente de três fatores fundamentais: o controle das variáveis relevantes para o problema investigado, a livre manipulação da variável independente (a que se supõe ser a causa do efeito investigado) e o uso de amostras representativas e aleatoriamente distribuídas. Ou seja, um experimento controla as 176
variáveis que não estão envolvidas na relação, manipula o fator que supõe ser a causa de um efeito provocando seu surgimento ou variação de intensidade, e mede o efeito dessa manipulação na variável que chamamos de dependente. Controlar, provocar e medir a consequência. É isso o que faz a ciência moderna, aquela que Woolgar e Latour (1986) viram em ação na bioquímica e que Pickering (1984) viu em ação na física. Logo, não temos esta ciência que está sendo estudada pelo construtivismo social investigando ela própria. Se o construtivismo social ainda se valesse de estudos de correlação, poderíamos dizer que ele poderia vir a estabelecer a probabilidade de uma determinada crença y estar relacionada a determinado interesse x. Isso, no entanto, não o autorizaria a concluir que o interesse x causa a crença y, pois possuir crenças y poderiam causar o interesse x. Mas sabemos que nem isso faz a sociologia da ciência. Na verdade, ela não promove nem estudos de casos, somente estudos de caso único, que, estrito senso, é um método qualitativo idiográfico que quando vemos associado à ciência moderna tem um caráter puramente exploratório, do começo da primeira fase geral que tem o objetivo de descrever o fenômeno. Mesmo como estudo idiográfico, a sociologia da ciência oferece interpretações retroativas de esparsos estudos históricos, diga‐se de passagem, interpretações muitas vezes bizarras. Para cada uma destas interpretações retroativas, podemos apresentar inumeráveis interpretações diferentes, e com certeza, algumas bem mais convincentes. Na ânsia de relativizar os resultados da ciência moderna, Barnes & Edge afirmam: 177
It had long been recognized that theories constituted an important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs which go beyond the facts, and any specific body of accepted facts is formally compatible with any number of theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66) A diferença é que na ciência moderna, uma teoria tem que prever os fatos antes de seu acontecimento. No construtivismo social ela é retroativa. Mas se podemos criar em tese (o que é raríssimo na história da ciência) duas teorias que aparentemente prevêem a mesma quantidade de fatos, podemos criar de fato infinitas teorias que expliquem fatos que já aconteceram. Porque então teríamos que aceitar as que são produzidas pelo strong programme? É o que afirma Nelson: The RCA [Rationalist Counterfactual Argument] is similarly capable of supporting rationalist accounts; in fact, it is virtually impossible that there not be a retrospective account that renders scientific decisions uniquely rational. The failure of constructivism to overcome rationalism on its own terms is a result of its inability to elicit uncontroversial empirical, inductive arguments from case studies. (NELSON, 1994, p.546). Mas não é só. Uma vez que a “metodologia” do strong programme tem a maioria das vezes como resultado conclusões polêmicas e inverossímeis como as que vimos em Latour (1988), Potter (1993) e Shapin (1994), não seria o caso de questionar a validade da “metodologia” empregada? And if this ‘result’ were correct – e.g. there are only sociological differences between modern medical laboratories, Zande magic and Renaissance astrology – would not that undermine the credibility of the empirical studies of science as well? (NIINILUOTO, 1999, p.270) 178
O que quer que seja o construtivismo social, não se justifica encará‐lo como resultado da investigação científica, em nenhum de seus aspectos e teses. Na verdade, ele é completamente estranho ao espírito de controle, manipulação e medição da ciência moderna. Tampouco oferece a seus praticantes qualquer tipo de orientação especificamente metodológica de pesquisa para proporcionar a padronização e análise estatística dos dados própria da ciência moderna. Poderia se objetar à argumentação acima com a alegação de que a ciência moderna é uma realização social e histórica e como tal seus princípios são construídos socialmente, enquanto a sociologia da ciência parte de outro modelo de ciência. Mas esta objeção tem dois problemas. Primeiro, não é isso que afirma Bloor (1991), nem que ambiciona o strong programme. Para ele, a sociologia da ciência é um empreendimento científico do mesmo tipo que a física: “The search for laws and theories in the sociology of science is absolutely identical in its procedure with that of any other science” (BLOOR, 1991, p.21). Segundo, se não se trata da mesma concepção de ciência, não se pode afirmar como o faz o construtivismo social que nele temos a ciência investigando a ciência. O que temos é a concepção de ciência x investigando a concepção de ciência y. Assim, a relação de causa e efeito entre fatores sociais e crenças científicas, ou crenças de qualquer espécie, nunca poderia ter sido respaldada cientificamente com o tipo de pesquisa que faz a sociologia da ciência, ou seja, o estudo de caso histórico ou com observação participante. É claro que, desta forma, nunca foi e nunca será estabelecida qualquer lei com capacidade preditiva (o que distingue leis científicas de 179
formulações meramente especulativas) sobre o surgimento ou desaparecimento de crenças científicas como resultado de tal ou qual fator social. Nem sequer poderiam ter estabelecido quaisquer leis que prevejam uma correlação entre determinados fatores sociais e o conteúdo das explicações científicas. Assim sendo o projeto científico do programa forte, podemos dizer trinta e cinco anos depois de sua formulação, era muito fraco, e redundou em um completo fracasso científico, apesar de seu sucesso social disciplinar. Mas talvez para seus defensores e praticantes, esta última realização seja tudo o que conta. 4.3. – Um construtivismo sem sujeito É sempre importante lembrar que o ‘sujeito’ ao qual estamos nos referindo aqui é o sujeito do conhecimento. Quando o construtivismo afirma que a ciência é uma construção, é necessário determinar quem é o sujeito da construção. Quem constrói. Pois se algo simplesmente é formado, sem um agente que organiza e estrutura os elementos que estão se combinando, temos que chamar tal coisa de ‘formação’ e não de ‘construção’. É por isso que nos referimos a uma formação geológica e a uma construção egípcia. A primeira, se formou. A segunda, foi construída por sujeitos ativos orientados a metas. Não falamos da “construção do Pão de Açucar” (a não ser que seja sobre um supermercado da rede) nem da 180
“formação da Torre Eifel”. Como afirma Boghossian (2006), dizer que algo foi construido é dizer simplesmente que isto não estava ali para ser descoberto, mas antes que precisou ser feito, trazido à existência pela atividade intencional de alguém em dado ponto no tempo. Não importa determinar se a construção é uma atividade individual ou um empreendimento coletivo. Afirmar que a Torre Eifel é uma construção social não é nada mais que afirmar que ela foi construída por um conjunto determinado de sujeitos individuais. Cada parafuso daquela torre foi colocado ali por um operário, que organizou ou montou as partes daquela construção segundo um plano e uma meta. Quanto ao conhecimento científico, o mesmo se aplica. Afirmar que o conhecimento científico é uma construção social não deveria significar nada mais do que dizer que ele é o conjunto de dados recolhidos por muitos, e idéias criadas em mentes individuais ou articuladas em mentes individuais. Esse mau uso da metáfora da construção, aplicada a alegações de formações sem sujeito, é que leva Hacking a afirmar (1999, p.49‐50) que a metáfora da construção é uma metáfora morta. Não há uma entidade mística chamada sociedade, para além do conjunto de sujeitos individuais e suas crenças que a construíram e a mantém. Parafraseando o psicólogo Floyd Allport, podemos dizer que é ocioso falar em crenças sociais, pois sociedades não possuem sistema nervoso central. Bloor (1991, p. 168) reconhece isso (como vimos no item 3.4.4 desta dissertação), ao afirmar que não pode haver estruturas sociais sem estruturas neurais. 181
Mas assim sendo, seria a psicologia, e não a sociologia, a disciplina mais adequada para o entendimento do processo de aquisição de crenças científicas. Mas isso a ciência cognitiva já sabe e faz há mais de cinqüenta anos. A diferença é que faz sem as ingênuas pretensões cientificistas do construtivismo social. O que é difícil aqui é entender exatamente qual poderia ser o objeto de investigação da sociologia do conhecimento, uma vez que conhecimento científico nada mais é que um conjunto de crenças possuídas por várias mentes individuais. A crença de que a sociedade constrói o conhecimento, adotada pelo construtivismo social, é baseada na tese de que a linguagem é um produto social. Se ela é um produto social, passa a ser responsável por ela mesma e por tudo o que nela se constrói: sociologismo. Todos os padrões de existência e conhecimento são sociais. Só a sociedade existe em si, é a nova causa sem causa, é o novo Deus desse bizarro tipo de idealismo marxista, desse círculo vicioso de uma “matrix” sem “programador”, dessa casa de espelhos sem ninguém para olhar para eles. Como o conhecimento é expresso através da linguagem e transmitido através dela, se conclui que ele se reduz a linguagem. Mas estas consequências só seriam necessárias se o pensamento humano se reduzisse à linguagem. Se as classificações de objetos e as crenças sobre seu funcionamento sofrem influência direta das interações entre o sujeito e o objeto do conhecimento, sem intermediação da linguagem, então a linguagem não poderia ser totalmente auto‐referencial. É claro que, como vimos no subitem 3.4.4, a tese de que a linguagem determina o pensamento e condiciona a sensação e a percepção é uma tese 182
anacrônica cientificamente e filosoficamente insustentável. Caso se concedesse que fosse possível que nossas crenças sejam diretamente afetadas por estímulos sensoriais, e que só posteriormente usemos a linguagem para expressar aspectos dessas experiências sensoriais e mudanças em nossas crenças, então não haveria sustentação para a tese do construtivismo social, pois fontes externas à linguagem estariam impondo mudanças em mentes individuais. É aqui que o construtivismo social se agarra com força às teses de Wittgenstein, ou ainda às suas radicalizações em Ryle (1968), que defende não haver conteúdo mental ou representação mental. Mas como se relaciona esta mente individual com seus objetos de conhecimento? Como vimos no segundo capítulo, podemos classificar as respostas à essa pergunta, a despeito de suas variações, em duas grandes categorias: o construtivismo e o objetismo. Para o primeiro, a representação do objeto do conhecimento é predominantemente construção da mente individual, uma idéia construida de acordo com a estrutura prévia da mente. Para o segundo, a representação não é construída pelo sujeito, mas produzida pelo objeto através dos órgãos sensoriais numa mente predominantemente passiva. Como quer o construtivismo social, há dois modelos de explicação das crenças, os racionais e os causais. A questão é que como observa Oliva (2005), a justificação epistêmica de uma crença científica pode ser também a explicação causal de por que é aceita; mas o inverso não se sustenta. O estabelecimento da causa de uma crença não a justifica como conhecimento, nunca. Pois o que justifica um conhecimento é uma evidência reproduzível da adequação de uma crença a parcela 183
do mundo ao qual ela se refere. A dicotomia razão‐causa equivale à dicotomia construtivismo‐objetivismo. A alegação de que adquirimos conhecimento em função de uma decisão pela adoção de uma crença em virtude de razões apresentadas a seu favor é um processo ativo, só sustentado por uma visão epistemológica construtivista. Já a alegação de que adquirir conhecimento equivale ao surgimento de uma crença causada por um fator externo ao sujeito, seja físico ou social, é sustentada por uma visão epistemológica objetivista. Por todo o exposto acima, e por todo o argumento apresentado no subitem 3.4.4, podemos concluir que, tomando por construtivismo a definição dada no segundo capítulo desta dissertação, o construtivismo social não é um construtivismo. A estrutura do argumento pode ser resumida como se segue: Se por construtivismo entendermos o conjunto das teses definidas no capítulo dois: a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em questão se revelem inadaptadas ao objeto; c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem dele; 184
E como, de acordo com o subitem 3.4.4., podemos afirmar que o construtivismo social defende que: aʹ) As representações que temos da realidade são causadas por processos sociais e estímulos sensoriais; bʹ) num segundo nível, as hipóteses que temos sobre como o objeto funciona são condicionadas pela linguagem e causadas socialmente; cʹ) O sujeito individual não é o agente do conhecimento, mas sim a sociedade ou algo indefinido como o “sujeito social”; Então o construtivismo social não é um construtivismo. Não é aceitável, nem para a mais simples análise etimológica, conceber um construtivismo sem sujeito. A apropriação do termo ‘construtivismo’ e adoção da denominação ‘construtivismo social’ (que não se deve a Barnes nem a Bloor), assim como a utilização da metáfora da construção, comum a todo o campo, é só mais um indício da verdadeira tendência desconstrucionista à la Derrida desta abordagem, e de seu descompromisso com a clareza e o rigor. 4.4. – Uma ciência sem mundo Como mostrado no item 3.3 desta dissertação, a posição do construtivismo social quanto ao papel do mundo na investigação científica varia. A proclamação de 185
sua existência se faz acompanhar, como ocorre no programa forte tradicional, da ressalva de que é incapaz de determinar a escolha de uma das teorias formuláveis sobre o que é o caso. E, chega ao extremo da proclamação de que ele próprio é uma construção social (no construtivismo social ontológico). É como resume a frase de Collins: “the natural world has a small [CSE] or non‐existent [CSO] role in the construction of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05) Como citado no mesmo item desta dissertação, Bloor declara (1991, p.160) que existe algo objetivo que garante certa estabilidade no conhecimento científico, mas esse algo não é o mundo físico como se costumava pensar: é a sociedade. Ele, no entanto, reiteradamente afirma que não está com querendo dizer que não há algo independente como o mundo físico lá fora. O problema é que segundo Bloor (1999), essa realidade independente não garante a uniformidade das crenças científicas sobre o mundo, uma vez que dois cientistas diferentes podem chegar a crenças diferentes a partir das mesmas observações, das mesmas evidências empíricas. Com isso, apesar de reiteradamente afirmar que o mundo conta para a causação das crenças científicas, nos poucos textos em que, diretamente acuado pelos críticos, Bloor formula qual seria esse papel, ele se revela pífio: “The general difference made by the presence of X is that, in appropriate circumstances, it is capable of prompting acts of classification“ (BLOOR, 1999b, p. 134) Isso significa que, para Bloor, tudo o que um objeto faz quando de alguma forma afeta nossos órgãos dos sentidos, é provocar o ato de seu enquadramento linguístico em alguma categoria. Ele nada tem a dizer de decisivo sobre as diferentes 186
interpretações e teorias sobre seu comportamento. Em outras palavras, todo papel do objeto para o programa forte é o de ser ocasião para se tornar objeto de disputa. Até Latour, em sua última fase, ironiza a falta de coragem de Bloor para admitir seu ceticismo ou, como classifica Niiniluoto (1999), “idealismo epistemológico”: When David gives the example of the electron, we clearly see where the problem resides: Once we realize this [that Millikan believes in the electron and that Ehrenhaft does not believe in it] the electron ‘itself’ drops out of the story because it is a common factor behind two different responses, and it is the cause of the difference that interests us. I agree: we are interested in differences. Now, I want someone to explain to me what it is for an object to play a role if it makes no difference. On a stage, when someone or something is said to play a role, and even an ‘important’, a ‘crucial’, a ‘decisive’ role—
which would be necessary to counteract the charge of idealism— it has to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117) São de fato inócuas as reiteradas tentativas de Bloor de defender o strong programme das acusações de que este último desconecta os conceitos da realidade, quando a única influência que Bloor concede aos objetos é a de estimular os sentidos dos cientistas provocando processos automáticos de classificação que, diga‐se de passagem, foram também construídos socialmente e são auto‐referentes. Como afirma Kemp (2005), ao conceber os conceitos das ciências naturais como auto‐referenciais em caráter, Bloor elimina a ligação entre os conceitos e a realidade. É fato que Bloor (1997b) defende que para o strong programme conceitos de caráter auto‐referencial são definidos como fazendo referência apenas a outros usos de conceitos. Assim, Kemp conclui que se conceitos auto‐referenciais em caráter não 187
podem ser externamente referentes, então não pode haver qualquer conexão genuína entre os conceitos e a realidade. Em outro texto, Kemp (2007) lembra que Bloor não pode conceder nenhum papel mais substancial à influência que a interação direta com os objetos físicos tem em suas classificações porque, ao fazê‐lo, comprometeria a tese de que a adequação de conceitos científicos é totalmente derivada de processos sociais auto‐referenciais: “If concept–reality interactions had some important role in determining the validity of classifications, then the rightness of these classifications would not be self‐referential” (KEMP, 2007, p.245). Com isso, concluo eu, comprometeria uma de suas principais metas desde o lançamento do strong programme: a de dar à sociologia um papel relevante entre as ciências. Vários problemas graves são gerados uma vez que adotemos a tese da auto‐
referência dos conceitos científicos. Bloor (1991) sempre reconheceu, como se isso eliminasse o problema da auto‐refutação, que o princípio da reflexividade implica que a crença na causação social deve ser ela mesma socialmente causada, e que seu significado se refere somente a usos de outros conceitos. Mas como demonstra Kukla (2000), num argumento que pretende ser uma refutação do strong programme, se toda crença é socialmente causada, então a crença C’ de que toda crença C é socialmente causada deve ter sido ela mesma socialmente causada, e a crença C’’ de que C’ foi socialmente causada deve ter sido causada socialmente e assim sucessivamente, gerando o problema da regressão infinita. Como lembra Kukla, o que faz a regressão infinita ser um problema insolúvel é que ela requer para a criação de alguma coisa 188
um montante infinito de trabalho. Ou seja, para que C fosse socialmente causada, seria necessária a causação de um número infinito de crenças. Logo, C não seria possível. Mas se já é fato que C existe, então a tese de que ela requer uma quantidade infinita de trabalho para ser feita tem que ser falsa. Logo, a tese de que todas as crenças são causadas socialmente é falsa. Kukla dá um exemplo bem concreto da questão: There are no tricky logical steps or exotic metaphysical claims about the infinite involved. It’s really a very down‐to‐earth dilemma. Suppose, for instance, that someone claims that he has always rung a bell before performing any action. If this were true, then he would have had to ring a bell before imparting this information to us. Moreover, since the ringing of the bell was itself an action, he would have had to ring a bell before the last ring, and so on. (…) this is the mundane fact that establishes that what he told us can’t have been the truth: he didn’t ring the bell infinitely many times; therefore it’s not the case that he has rung a bell before performing any action. (KUKLA, 2000, p.72‐73). Talvez seja desnecessário lembrar que isso acaba atingindo duplamente o construtivismo social ontológico, pois além de ele defender a tese epistemológica da causação social das crenças, defende a tese ontológica da construção social dos fatos. Mas se todo fato é construído, então o fato F’ de que o fato F foi construído deve ter sido ele mesmo construído socialmente, o fato F’’ de que F’ foi construído deve ter sido construído socialmente e assim sucessivamente. Não é só isso. A defesa da subdeterminação radical das teorias pelas observações significa a defesa de que qualquer teoria pode ser declarada instrumentalmente bem sucedida, não importa o que o mundo diga sobre ela, ou dito 189
mais precisamente, não importando que tipo de evidência apareça. Ou seja, mesmo que abandonássemos a questão da auto‐referência, a tese da subdeterminação das teorias implica a crença de que uma teoria nunca é abandonada por causa de evidências empíricas, mas somente por causa de interesses políticos, sociais, econômicos ou religiosos. É claro que isso não explica porque nos curvamos a crenças que não gostaríamos que fossem verdadeiras. Não foram as evidências que, a despeito da oposição de todo poder temporal e religioso do ocidente, fizeram com que a comunidade científica acabasse adotando a teoria copernicana contra a teoria ptolomaica? Não é mais fácil se atribuir a relativa estabilidade do uso das palavras referentes ao mundo físico, em vez de a longos processos de negociação e interação social, às características relativamente estáveis que o objeto físico traz para os encontros com o sujeito? Além disso, se o processo de inquérito científico não é ele mesmo nada mais do que o produto de processos sociais sem referência externa à natureza do mundo e à de nossa mente além de sem submissão a crivos lógicos, suas conclusões têm o mesmo valor que as obtidas em qualquer outro domínio. A sociologia da ciência se apresenta como a disciplina científica adequada para determinar o que a ciência é. Mas sendo, ela própria, uma construção social, assim como também sua pretensão de ser ciência, e aquilo que ela afirma que é ciência, a sua postulação de validade científica ou de sua condição especial de investigação em relação à ciência fica fragilizada. Assim, tudo o que defende tem o mesmo valor que as alegações 190
contrárias de seus adversários, ou ainda que qualquer outra. Porque então deveríamos aceitar esta pretensão do strong programme, já que a maioria da comunidade científica não a aceita? Por fim, o problema mais óbvio com abordagens relativistas como o construtivismo social, não é, de fato, fruto de inconsistência interna. É um singelo fato empírico. Se todas as modalidades de crença têm as mesmas fontes de causalidade, como podemos explicar o variado sucesso explicativo e prático delas? Dito objetivamente, se todas as crenças científicas são fruto de mera construção social, o que pode ser responsável pelo incrível sucesso empírico delas comparado ao sucesso mais modesto (ou fracasso completo) de outras modalidades de crença? Como diz Putnam, o sucesso da ciência seria um milagre se nossas teorias não fossem ao menos aproximadamente verdadeiras. Sem que a natureza constranja nossas crenças, como elas podem tornar‐se bem‐sucedidas em antecipar o que ocorrerá nela? É importante pontuar que não se trata aqui de explicar a estabilidade das crenças científicas, mas sim sua eficácia preditiva. Como afirma Oliva (2005), “o sucesso em persuadir pessoas pode ter uma base exclusivamente social, mas a capacidade de antecipar e controlar fenômenos, não”. É claro, a não ser que se considere que a suposta prisão linguística da mente é impermeável a estímulos provocados pelo objeto. A crença de que estamos nos curando de um câncer, ou que estamos voando a 12000 metros sobre o oceano em direção à Europa pode ser, não fruto da ação real do conhecimento científico, mas fruto de construção social... 191
O tipo de crença acima expressa fica de fato abonado tão logo passemos do “idealismo” epistemológico (ceticismo) do CSE para o idealismo ontológico do CSO.
Invertendo o pressuposto básico da ciência moderna de que todo conhecimento científico é fruto da descoberta de fatos e invenção de teorias, o CSO postula a tese de que não há descoberta, tudo é construído. Por algum momento, é conveniente deixar de lado a necessidade de análise interna das teses, para lembrarmos o nível do absurdo com o qual estamos lidando aqui. Autores como Woolgar, Collins, Lynn Nelson ou o primeiro Latour afirmam que o mundo que é objeto da ciência, é construído por ela. Para eles (WOOLGAR, 1988, p.65‐67) objetos como pulsares não existem antes de sua “descoberta” (ou estabelecimento científico), mas são construídos ou “constituídos” por práticas representacionais e “redes sociais”. Este tipo de afirmação é equivalente a declarações que, em outro contexto, como uma entrevista inicial em hospital psiquiátrico, são tomadas como fortes indícios de esquizofrenia. Não podemos negar que, filosoficamente, o CSO oferece uma solução para o problema que o CSE enfrenta em explicar o sucesso das teorias científicas em prever e controlar eventos empíricos: as teorias constroem os eventos. O singelo problema com esta tese é que se trata de uma tese absurda e completamente inverossímil. Como afirma Kukla (2000, p.105), de acordo com o CSO, a construção de fatos sobre o mundo natural segue o mesmo modelo de construção dos fatos sociais, tais como o dinheiro, as convenções sociais, os significados das palavras, e assim por diante. Há, porém, uma diferença radical entre a construção do dinheiro e a construção do TRH do estudo de Woolgar & Latour (1986). No primeiro caso, o 192
construtor e a construção são contemporâneos. O dinheiro não existia antes da atividade social que o constituiu e se deixássemos de acreditar em seu valor para trocas e parássemos de usá‐lo (como na República de Weimar), o dinheiro deixaria de existir. Mas em relação à construção do TRH, Latour e Woolgar não podem dizer que uma nova substância começou a existir no hipotálamo no ano em que foi descoberta (construída). O que se tornou “verdadeiro” (conhecido) em 1969 é o fato de que TRH existia pelo menos há tanto tempo quanto hipotálamos. Nesse caso, o construtor e o construído têm datas diferentes. Este fenômeno não ocorre nos casos de construção dos fatos sociais. Como já apontamos no capítulo três, esta tese é contraditória. Kukla (2000, p.111) mostra que podemos construir no ponto T1 do tempo o fato X0, pretendendo que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2, posterior a T1, a contingência da produção científica pode nos levar a construir o fato ¬X0, e isso implicaria que ele também sempre existiu. Mas como X0 e ¬X0 podem ser verdadeiros ao mesmo tempo? Contradição. Como afirma Kukla, se você concluir que um dos dois fatos não pode ser construído, então existem fatos independentes. Além desta violação do princípio da não‐contradição, que também identifica, Boghossian (2006) aponta dois problemas. O primeiro é o que posso aqui denominar “causação retroativa”. É um truísmo sobre a maioria dos objetos e fatos de que falamos (como montanhas, girafas e lagos) que sua existência antecede a nossa. A tese da construção social dos fatos implica numa bizarra forma de causalidade para trás, onde a causa (nossa atividade) vem depois do efeito (montanhas). 193
O segundo problema ele chama de conceptual competence, e é analítico. Para Boghossian (2006, p.39), mesmo que supuséssemos que o universo só existe enquanto existirmos, ainda é parte do conceito mesmo de “elétron” que estas coisas que caem sob este conceito não foram construídas por nós. De acordo com a posição padrão da física de partículas, elétrons estão entre os blocos fundamentais da matéria. Eles constituem os objetos que vemos e com os quais interagimos, inclusive nossos próprios corpos, portanto não poderiam ser construídos por nós. Se nós insistimos em afirmar que eles são construídos por nossas descrições deles, estamos não somente afirmando algo falso, mas conceitualmente incoerente, como se não tivéssemos compreendido o que um elétron deveria ser. Como afirma Searle (2000), os ataques ao realismo no construtivismo social não são motivados por argumentos, porque todos estes são “obviamente débeis”. Para ele, estes ataques são motivados por uma vontade de potência: Nas universidades, principalmente em várias disciplinas das ciências humanas, parte‐se do princípio de que, se um mundo real não existe, então a ciência natural repousa sobre a mesma base das ciências humanas. Ambas lidam com interpretações sociais, não com realidades independentes. Partindo desse princípio, formas de pós‐
modernismo, desconstrucionismo e assim por diante são desenvolvidas com facilidade, já que foram completamente desvinculadas das enfadonhas amarras e limites de ter de enfrentar o mundo real. Se o mundo real é apenas uma invenção – uma interpretação social destinada a oprimir os elementos marginalizados da sociedade – então vamos nos livrar do mundo real e construir o mundo que queremos. Esta, acredito, é a verdadeira força psicológica em ação por trás do anti‐realismo no final do século XX. (SEARLE, 2000, p.27) Ou ainda: 194
Se toda realidade é uma ‘construção social’, então somos nós que estamos no poder, e não o mundo. A motivação profunda para a negação do realismo não é este ou aquele argumento, mas uma vontade de potência, um desejo de controle, e um ressentimento profundo e duradouro. Esse ressentimento tem uma longa história e aumentou no final do século XX devido a um grande ressentimento e ódio em relação às ciências naturais. (SEARLE, 2000, p. 39) Gostaria, no entanto, de me concentrar em várias consequências absurdas de ordem prática desse disparate. Uma delas é apontada por Niiniluoto (1999, p.274). Se é literalmente verdadeiro que os cientistas constroem os fatos que investigam e estabelecem após longos processos de negociação social, então podemos afirmar que o Doutor Robert Gallo é o responsável por todas as infecções causadas pelo vírus HIV antes (já que sua existência passou a ser verdadeira somente depois de usa construção) e depois de sua construção social (não descoberta). Também é fácil concluirmos a partir daí que cientistas não deviam mais se dedicar a descobrir (construir) novos vírus e bactérias, ou procurar prever terremotos, nem rastrear asteróides candidatos a se chocar contra a Terra. Da mesma forma, a educação se transforma em um processo de arruinar mentes infantis. Considere‐se esta afirmação feita em livro de pedagogia brasileiro caracteristicamente intitulado A produção do conhecimento em aula: “Um indivíduo que vem ao mundo encontra uma realidade já construída, isto é, um conjunto de conhecimentos estabelecidos, estruturados, institucionalizados e legitimados” (MORETO, 2002, p.18). Não é difícil perceber porque professores atualmente tem 195
tanta dificuldade em distinguir conhecimento de realidade, assim como crença compartilhada de verdade. Como podemos depreender do título do livro, o conhecimento sobre a órbita de Vênus ou a estrutura química do dióxido de sódio deve ser produzida nas salas de aulas brasileiras, sem telescópio ou laboratório químico disponíveis. Mas provavelmente Moreto não estava pensando nisso quando deu o título em questão. Ele estava pensando numa produção (variante de construção) social do conhecimento, algum tipo de assembléia democrática onde os alunos decidiriam pelo voto se a órbita de Vênus está mais próxima do sol que a órbita de Marte. Como Catherine Fosnot, que declara que numa sala de aula regida pela concepção construtivista (a dela): “as idéias são aceitas como verdade apenas à medida que fazem sentido para a comunidade e, assim, alcançam o nível de ‘tidas‐
como‐partilhadas’” (FOSNOT, 1998, p.47). Podemos concluir com isso que se para seus alunos não faz sentido que dois corpos se atraiam a distância então está construído socialmente que isto é falso, ao menos para aquela comunidade, que então teria sido deixada na Idade Média. Que tipo de educação é essa que não pretende preparar o aluno para compreender e lidar melhor com uma realidade que existe e possui uma estrutura independente de suas crenças e desejos? Não é coincidência a educação brasileira ser, em termos relativos às verbas despendidas, a pior do mundo, uma verdadeira fábrica de analfabetos funcionais, indigentes matemáticos e pessoas sem traço de pensamento crítico ou abstrato. Em pior situação fica a política. Nossos deputados e senadores parecem bem inclinados a defender a construção social da realidade no congresso nacional. Se o 196
resultado da negociação de uma CPI for a de que nunca houve atos secretos no senado, então eles nunca terão existido. Sokal & Bricmont (2001) narram uma história passada na Índia, onde a “ultrapassada e autoritária” obra do Iluminismo nunca se completou. Nela, um político foi aconselhado a entrar em seu escritório pelo portão voltado para o leste, de forma a acabar com seus problemas. Mas um outro problema foi gerado por esse conselho: a entrada leste estava bloqueada por uma favela. Ele, então, mandou demolir a favela. A diferença é que nestes tempos, a esquerda não apareceu para protestar contra a demolição, muito menos contra a superstição na qual se baseou a ação, pois ela está infestada com este tipo de relativismo. Como protestar contra um conhecimento, ou seja, uma crença amplamente partilhada naquela cultura? No terceiro mundo, os políticos não hesitam em recorrer ao conhecimento científico diante de um problema sério, afirmam Sokal & Bricmont (2001), como uma doença potencialmente fatal, e ao mesmo tempo simulam acreditar em superstições locais, estimulando a população a ficar presa à sua ignorância. Mas os absurdos não param aí. Como afirma Newton (1997), se os fatos são construídos através e durante sua investigação, podemos concluir que quando detetives se dedicam a estabelecer a autoria de um assassinato, eles constroem a autoria através da investigação. Assim, ao encontrar DNA de um criminoso debaixo das unhas da vítima eles estariam construindo a autoria do crime. Ou seja, o assassino é um constructo social, o acusado é culpado por definição da investigação e do julgamento. Por mais cínico e desonesto intelectualmente que alguém seja, se fosse confrontado com o problema de um assassinato do qual estivesse sendo 197
injustamente acusado, não se curvaria ao fato de que simplesmente perdeu a negociação social em torno da questão da autoria do crime e, portanto, a partir deste momento, passou a ser verdade que é o assassino. Desonesto intelectualmente talvez, por simular acreditar nisso, mas assassino não: mesmo um construtivista social ontológico não negaria nesta situação a existência de uma realidade independente e subjacente ao ato cometido por alguém cuja identidade a polícia deveria tentar descobrir, não construir. Não é muito mais simples assumir que as crenças compartilhadas acerca da autoria do assassinato são construídas socialmente e em interação com o mundo, mas a realidade da ação criminosa não? 4.5. – Um conhecimento sem verdade A estória acima pode parecer somente um exemplo hipotético radical, mas não é tanto assim. Sokal & Bricmont (2001, p.103‐4) narram um caso ocorrido na Bélgica onde uma série de assassinatos de crianças causou comoção nacional e revolta pela inépcia da polícia. Uma sessão pública, transmitida ao vivo em rede nacional, foi convocada para examinar os erros cometidos pela investigação policial. Nela, um policial e uma juíza foram acareados e interrogados sobre a entrega de um arquivo‐
chave, com o policial jurando ter feito a entrega à juíza e a juíza jurando jamais a ter recebido. No dia seguinte, entrevistado por um jornal, um antropólogo afirmou que 198
não existia uma verdade única sobre o caso, apenas verdades relativas a grupos maiores ou menores de pessoas. Portanto, concluiu ele, ambos estariam contando a sua verdade. Afirmar que existem “várias verdades”, por definição, implica que devem existir “várias realidades”, o que é racionalmente inaceitável. Enquanto somente alguns antropólogos, sociólogos e filósofos (além dos psicopatas) professarem este tipo de relativismo selvagem, não estaremos em perigo. Mas o que aconteceria a uma sociedade se o carteiro que entrega sua correspondência, o bancário que recebe seu depósito e a babá que toma conta dos seus filhos passassem a acreditar, de fato, que “verdade” é nada mais que uma crença compartilhada por um grupo maior ou menor de pessoas? Esta crença, tomada ao pé da letra e generalizada, só poderia conduzir ao caos e à selvageria, com grupos sociais diversos afirmando “verdades” opostas sobre os mesmos fatos sem critério algum para decidir entre eles. Mas a verdade, a verdade em sentido bem tradicional, é que não há ninguém que acredite de fato nisso fora dos hospitais psiquiátricos. Não conhecemos grupos sociais que se reúnam para construir coletivamente o fato de que voam ao se jogar do nono andar. Isto nos leva à última crítica que pretendo aqui formular ao construtivismo social, e que diz respeito à completa desconstrução do significado tradicional do termo ‘conhecimento’. Desde o Teeteto até Russell, a filosofia ocidental aceitou a definição platônica de conhecimento como “crença verdadeira justificada”. Mas o construtivismo social ao utilizar o termo ‘conhecimento’, na verdade está se referindo a outra coisa. Como vimos no item 3.4 desta dissertação, para o construtivismo social 199
conhecimento é “crença socialmente aceita”, uma crença tomada por certa ou institucionalizada, ou ainda investida de autoridade por grupos de pessoas (BLOOR, 1991, p.5). Prestando atenção nesta nova definição de conhecimento, percebemos o que mais, além do mundo e do sujeito, foi sacrificado no altar da sociologia: a verdade. A justificação de conhecimento não vem do crivo da lógica ou de um método especial, mas do crivo político de um grupamento social. Que tipo de conhecimento é esse onde o ser humano constrói suas representações unicamente através de suas interações sociais, sem nenhuma influência diferencial vinda do contato com uma realidade objetiva que independe tanto dele quanto dessas interações? Este conhecimento é conhecimento de que? A adoção do conceito de verdade como ideal regulador é uma das fronteiras que colocam a ciência moderna e a filosofia de um lado e a sociologia construtivista social de outro. A epistemologia tradicional faz deste conceito sua meta, seu ideal, enquanto o programa forte da sociologia da ciência o encara como mera ficção ou ideologia. Ao fazê‐lo, evidentemente, desemboca no relativismo, que nada mais é que a crença de que não há verdades objetivas e universais. É o que defendem Barnes & Bloor (1982, p. 27) em passagem já citada neste trabalho, ao afirmarem que as crenças não se diferenciam quanto às causas de sua credibilidade, e que para o relativista (título reivindicado por eles) a idéia de que alguns padrões ou crenças são realmente racionais e vão além da aceitação local não tem sentido. 200
Do truísmo de que os sistemas de crenças variam de época para época, de contexto para contexto, de um grupo social para outro, eles passam em seu argumento non sequitur à conclusão de que nada é transcontextual, tudo se explica pela posição de quem pensa e age. Bloor também afirma em outra obra: It [science] does not need any ultimate metaphysical sanction to support it or make it possible. There need be no such thing as Truth, other then conjectural, relative truth, any more than there need be absolute moral standards rather than locally accepted ones. If we can live with moral relativism, we can live with cognitive relativism. (BLOOR, 1991, p. 159) A passagem acima ilustra um erro bem comum. Relativistas costumam confundir conhecimento e verdade. Não existe verdade conjectural, verdade é a adequação de uma proposição a um aspecto da realidade. O que existe é conhecimento conjectural. Mas este não é simplesmente um problema abstrato. Bloor afirma que podemos viver tanto com o relativismo moral quanto com o relativismo epistêmico. O problema é que não podemos viver nem com uma coisa nem com outra, a não ser quando estas crenças são professadas por um grupo muito restrito da sociedade. Conviver com o relativismo epistêmico e moral é fácil quando só meia dúzia de antropólogos, sociólogos e filósofos defendem que quarks são construções sociais, que a medicina voodoo e a ocidental tem o mesmo valor epistêmico ou que é moralmente aceitável o apedrejamento de homossexuais e a amputação de clitóris em alguns países mulçulmanos. Mas como já expus aqui, se este tipo de crença, 201
realmente, se espalhasse por todos os estratos da sociedade, nada poderia advir disto que não a completa dissolução social. É claro que os construtivistas sociais não se vêem desta forma. Eles não pensam no princípio da reflexividade quando querem nos convencer de que, de fato, seu empreendimento epistemológico é superior aos outros, e sua descrição da ciência é mais próxima da realidade que as “descrições idealizadas” da filosofia da ciência. Enquanto os construtivistas sociais negam qualquer privilégio epistemológico especial à ciência se comparada à intuição metafísica ou à narrativa do mito, eles reclamam implicitamente para si próprios um plano epistemológico superior a partir do qual julgam a ciência. Mas quando isto é apontado como inconsistente, eles se escondem atrás da mera enunciação do princípio da reflexividade. Como afirma Niiniluoto (1999), há aqui uma dramática diferença em suas descrições da ciência em dois níveis. Como método do sociólogo da ciência, a última é um empreendimento implicitamente tomado como expressão de uma racionalidade natural, capaz de obter conhecimento de nível superior (por exemplo em relação à filosofia da ciência), à moda do velho empirismo indutivista. Mas como objeto de estudo, a ciência é um fenômeno social, cujos métodos e conclusões sobre o mundo são relativos a interesses sociais e causados por fatores sociais: “It seems as if Bloor is assuming the objectivity of science in order to prove that science is not objective” (NIINILUOTO, 1999, p.254). É a velha e banal contradição do relativismo. A ela estão condenados todos aqueles que abandonam o conceito de verdade como ideal regulador desde Protágoras, a quem, diga‐se de passagem, o construtivismo social não agregou muita 202
coisa nova. Afirma‐se que a verdade (não o conhecimento) tem validade limitada a um grupamento sócio‐histórico, ou seja, que não há verdade universalmente válida, mas esta própria afirmação é falsa analiticamente. Se definimos como verdadeira uma asserção sobre a realidade objetiva que em sua estrutura e conteúdo reflete a parcela da realidade à qual busca se referir, então uma verdade só existe se existe universalmente para todos os indivíduos, uma vez que a realidade objetiva é a mesma para todos os indivíduos. Mas outras contradições decorrem desta curta declaração. Se a verdade tem validade limitada a um grupamento sócio‐histórico, ou seja, se não há verdade universalmente válida, então esta própria declaração tem sua validade limitada a um grupo sócio‐histórico. Mas ela se pretende universal e pretende referir‐se a uma realidade objetiva: em todos os lugares, grupos e tempos a verdade é que a verdade é relativa a um lugar, grupo e tempo. Como coloca Thomas Nagel: Suponhamos, para tomar um exemplo extremo, que fôssemos convidados a acreditar que nossos raciocínios lógicos, matemáticos e empíricos, constituem a manifestação de hábitos de pensamento historicamente contingentes e culturalmente localizados e que não têm maior validade para além disso. De um lado, isso aparenta ser um pensamento a respeito de como as coisas realmente são e, de outro, nega que sejamos capazes de tais pensamentos. Qualquer reivindicação radical e universal desse tipo precisaria estar apoiada num argumento poderoso, mas a própria reivindicação parece privar‐
nos da capacidade para esse tipo de argumento. (NAGEL, 1998, p. 22‐
23) Ainda podemos extrair uma terceira contradição que decorre da curta sentença que estamos considerando aqui. Se a verdade é válida somente para 203
determinado grupamento social, para o grupo R, do relativista, é fato que ¬v (não há verdade universal). Mas eu poderia, pertencendo à mesma realidade que o grupo R, ser membro de um grupamento social diverso do relativista, o grupo D (dogmático), onde é fato que v (há verdade universal). Assim, se a verdade para o grupo R é que cada grupo tem sua verdade, e se ambas as proposições sendo verdadeiras se referem à mesma realidade, eles tem que aceitar como igualmente verdadeiro o que é verdade para R e o que é verdade para D sobre o mesmo aspecto do mundo. Logo, R teria que aceitar como verdadeiras as proposições ¬v (não há verdade universal) e v (há verdade universal para aqueles que acreditam em verdade universal). O dilema real, pragmático (além de lógico), em que um relativista está mergulhado é resumido por Boghossian (2006) da seguinte forma: se ele afirma que sua tese é válida universalmente, ele se auto‐refuta, e ninguém o leva a sério; se afirma que sua tese é válida relativamente a seu grupo social, os outros não tem motivos para considerar o que ele diz, pois não fazem parte de seu grupo social. É claro que nenhuma destas formas de argumento é nova. De fato, elas vêm sendo repetidos com variações desde Platão. Isso indica que há algo errado aqui, pois é também desde Platão que os relativistas continuam as ignorando. Como observa Kukla (2000, p.127), alguém, certamente, está sofrendo algum distúrbio psíquico. O problema é que não sabemos quem, se os “dogmáticos” ou os relativistas. Será que nenhum destes argumentos demonstra uma contradição? Se não, não sei mais qual é o significado do termo. Ou talvez eles demonstrem contradições, mas como para os construtivistas sociais a própria lógica é uma construção relativa, 204
minha preocupação com a consistência deve ser resultado da reacionária ortodoxia coercitiva autoritária que esta disciplina (a lógica) exerce sobre a livre expressão do pensamento (ou da falta dele). O que está acima obviamente deveria ser uma piada. Mas não é. Kukla (2000) denomina esta consequência do construtivismo social ‘construtivismo lógico’ (o que é bastante inadequado por gerar confusão com o intuicionismo). Se você responde a demonstração de uma contradição afirmando que a lógica que usei no argumento é ela própria uma construção social, o resultado está além do relativismo. O resultado é irracionalismo. Como lembra Kukla, um irracionalista acha que as próprias regras da argumentação são negociáveis, então quando ele está perdendo o jogo, simplesmente muda as regras. É como se ele estivesse jogando uma partida de xadrez na qual, quando as coisas começam a ir mal, ele pudesse, a seu turno, mudar as regras de movimento das peças: “What are you going to acuse irrationalists of? Irrationality? The only way to defeat logical constructivists is to shoot them.” (KUKLA, 2000, p.123) Porque estes argumentos não parecem oferecer grandes conflitos psicológicos para o relativista? Não é porque a maioria deles se considere irracionalista. Em meu julgamento, é porque a maioria confunde conhecimento e verdade. Não distinguem claramente, ao menos em seu discurso, uma crença justificada da proposição ideal que reflete adequadamente um aspecto da realidade. Na verdade, na maioria das vezes não acreditam nem na capacidade representativa da linguagem. Mas neste caso, não poderiam falar em verdade. Podemos dizer que R conhece que ¬v e que D conhece que v, sem problema aparente nenhum (embora continue a haver problema, 205
se conhecimento se define como crença verdadeira justificada); e dizer que R crê que ¬v é verdadeiro e que D crê que v é verdadeiro, finalmente, sem problema real algum. Mas um relativista não está interessado em proposições moderadas. O fato é que, para além da consequência lógica, o relativista acredita que sua posição reflete uma situação objetiva, e, portanto, válida para todos os sujeitos pensantes. A consequência prática e política é que quem não aceita sua posição é qualificado como autoritário e reacionário, e a organização política da sociedade sofre efeitos altamente nefastos. Uma sociedade livre e uma ciência livre, só podem florescer onde o conceito de verdade é adotado como ideal regulador tanto em termos morais quanto epistêmicos. A alternativa a isso é necessariamente conhecimento baseado em tradições, onde prevalece a “verdade” do mais forte. O construtivismo social rejeita a tese de que as teorias deveriam ser avaliadas em termos de consistência lógica e evidência empírica. Em seu lugar, quer instaurar uma alternativa “epistemológica” que reivindica que a cientificidade de uma teoria é função única e exclusiva de negociações sociais entre interesses de toda ordem. No entanto, abandonando a evidência empírica e a consistência lógica como critérios de escolha entre teorias, o construtivismo social abre a porta para a aceitação de jogos de poder e intimidação política como mecanismos inerentes à ciência, como, aliás, já o tinha feito Feyerabend. Ao rejeitar os conceitos tradicionais de conhecimento e verdade, o construtivismo social converte a ciência em política, inaugurando uma forma de justificação de crenças muito mais autoritária do que qualquer coisa que pudessem denominar ‘objetivismo’. É evidente que quando 206
adotamos uma teoria o fazemos porque a julgamos preferível à outra. À que, no entanto, podem os construtivistas sociais recorrer para alegar a superioridade intelectual de sua abordagem? À política? Ao poder? À propaganda? À força bruta? Para esta “epistemologia social” uma teoria não precisa ser sequer internamente consistente, precisa somente ser aceita por uma comunidade científica. Assim, uma comunidade científica que sirva a certos interesses políticos pode afirmar como proposições científicas teorias sem nenhum compromisso com a lógica ou a validade empírica. Mas nada disso importa, para eles, não há verdade, e para alguns, até a realidade é construção social. Como coloca Slezak sobre o livro de Latour & Woolgar: A measure of the perversity of this work is the fact that in the new edition of their book, Latour and Woolgar tell us that laboratory studies such as their own should, after all, not be understood as providing a closer look at the actual production of science at the workbench, as everyone had thought. This view would be “both arrogant and misleading”, and would presume they had some “privileged access to the ‘real truth’ about science” which emerged from a more detailed observation of the technical practices. Instead, Latour and Woolgar explain that their work “recognizes itself as the construction of fictions about fiction constructions”. (SLEZAK, 2000, p.26‐27) 207
Conclusão As conclusões a que esta investigação chegou quanto aos dois problemas principais investigados foram que o construtivismo social não é parte da tradição construtivista da filosofia ocidental, e que também não é formulado, nem como metaciência consistente, nem sequer como ciência consistente. A tese de que o construtivismo social não é um construtivismo foi sustentada em primeiro lugar por um trabalho de definição das teses centrais desta abordagem filosófica. No segundo capítulo foram avaliados os principais usos contemporâneos do termo, através da apresentação das teses centrais do construtivismo kantiano, construtivismo piagetiano, construtivismo radical, construcionismo social, socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Foram estabelecidas as posições destas abordagens em relação a três questões. Uma ontológica: Q1) Existem objetos independentes da mente humana? E duas epistemológicas: Q2) É possível conhecer algo sobre os objetos que existem independentemente da mente?; e Q3) Qual é a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento? 208
Assim os diferentes construtivismos foram classificados em relação a suas respostas às questões Q1 (realistas ou idealistas), Q2 (dogmáticos, criticistas ou céticos) e Q3 (objetivistas e construtivistas). Buscou‐se fundamentar a hipótese de que grande parte da confusão que cerca a utilização do termo ‘construtivismo’ é devida à utilização dos termos ‘realismo’ e ‘idealismo’ em sentido epistemológico (é possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais). Ao recapitular as posições construtivistas apresentadas, estabeleci que se pode definir o construtivismo como uma abordagem epistemológica, e não ontológica, pois o que o caracteriza não é a posição acerca da natureza do objeto do conhecimento, e sim a posição acerca do processo de obtenção do conhecimento. Esta abordagem epistemológica é resumida essencialmente pelas teses: a) As representações (intuições sensíveis) que temos da realidade são condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; b) num segundo nível, as hipóteses que construímos sobre como o objeto funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em questão se revelem inadaptadas ao objeto; c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem dele; Conclui também a dissertação que, em se tratando de tese epistemológica, o construtivismo se divide em vertentes ontológicas realistas e idealistas, pois não assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento. 209
No terceiro capítulo, foram apresentadas as principais teses do construtivismo social, com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas, e ficou estabelecido o que pode ser dito de consensual e o que há de divergência entre as correntes e principais proponentes deste movimento. Foram apresentadas igualmente algumas idéias de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend que julgo terem tido influência fundamental na configuração filosófica da abordagem aqui criticamente analisada. Em relação à Q1 do segundo capítulo, concluímos que quando a resposta dada por alguns membros da abordagem é a de que os próprios fatos são construídos, se está diante de uma cisão irremediável no movimento, só restando como identidade comum algumas posições epistemológicas fortemente heterodoxas. Podemos pragmaticamente dividir a abordagem em duas grandes linhas, que denominei construtivismo social epistemológico e construtivismo social ontológico. A primeira é cética em relação ao conhecimento do mundo empírico. A segunda é de fato idealista, muito embora, trate‐se de um caso muito especial e inconsistente de idealismo sem sujeito. Aqui também, a hipótese defendida no capítulo dois se mostrou coerente com o resultado da pesquisa: a definição de construtivismo como tese epistemológica e não ontológica também se estende a esta abordagem auto‐alegada construtivista. Tanto posições realistas quanto idealistas podem ser encontradas em alegações de construtivismo social, o que, portanto, não o define como movimento. O que define o construtivismo social são suas teses epistemológicas, como vimos no item 3.4. Neste item foi estabelecido que o construtivismo social como um 210
todo dá a resposta cética à Q2, e que defende tese de que não há praticamente papel algum reservado ao sujeito no processo de construção do conhecimento, o que fundamenta uma das hipóteses deste trabalho de que a abordagem não é, estrito senso, construtivista. Como apresentado, o construtivismo social pode se apresentar em sua forma realista (CSE) ou idealista (CSO) em ontologia, mas como um todo é cético e objetivista em suas teses epistemológicas. Só que seu ceticismo toma a forma de relativismo, e seu objetivismo é uma bizarra variante de objetivismo sem mundo natural, onde o objeto em questão é a sociedade. Com base nisso, o construtivismo social foi criticado seguindo‐se cinco linhas de argumento. As duas primeiras fundamentam a resposta dada por este trabalho quanto à consistência do projeto do strong programme (projeto sociológico berço da abordagem filosófica do construtivismo social) de ser a metaciência fundamental. A primeira crítica é a de que ele não é nada além de uma versão sociológica da Nova Filosofia da Ciência e de algumas idéias de Wittgenstein, totalmente dependente de teses heterodoxas geradas em debates internos à filosofia da ciência que ele afirma substituir, apesar de apresentar‐se como uma metaciência proposta como uma ciência empírica da ciência. Pode, nesse particular, ser visto como uma versão pós‐moderna do velho cientificismo positivista. A segunda crítica, que pretendo original e complementa o argumento da inconsistência deste projeto sociologista, é a de que a afirmação do construtivismo social de que sua abordagem é uma investigação científica da ciência é falsa, uma vez 211
que não usa os métodos da ciência que estuda para investigá‐la. A utilização de métodos idiográficos é estranha às ciências naturais, e não habilita cientificamente o investigador a estabelecer relações de causa e efeito com poder preditivo. O método que garante à ciência moderna seu elevado poder para estabelecer relações causais é o experimental, e qualquer alegação de estabelecimento científico de leis causais com poder preditivo não pode prescindir do teste com base em experimentos. A terceira linha de argumentação, também com pretensões de originalidade, é a de que o construtivismo social em hipótese nenhuma é um construtivismo, uma vez que reserva à mente humana um papel passivo em relação à sociedade, que a constrói e constitui. O construtivismo social rejeita todas as três teses filosóficas que caracterizam o construtivismo, e usa a metáfora da construção fora do sentido tradicional do termo que pede por um sujeito que constrói e não que é formado. A quarta crítica geral chama a atenção para o absurdo de se considerar que o mundo empírico não faz diferença para a escolha das crenças científicas, assim como para as consequências inusitadas de se sustentar tal tese. Fundamentalmente, o problema fundamental com ela é explicar como a ciência pode ser tão eficiente em prever a sucessão de nossas experiências em determinadas situações. Por fim, a dissertação alerta sobre a ressurreição do relativismo e o abandono da verdade como ideal regulador, apesar das banais contradições desta tese e de sua evidente e inevitável ligação com a dissolução de padrões éticos e epistemológicos na sociedade. 212
Diante de tantas inconsistências, o leitor poderia estar se perguntando justamente porque alguém deveria perder tempo estudando e dissertando sobre o construtivismo social. Eu particularmente apresento quatro motivos. O primeiro é que, a despeito da severidade das críticas que se possa fazer a suas teses filosóficas, vários dos estudos de casos promovidos pela sociologia da ciência são relevantes, e ajudam a lançar luz sobre os fatores extra‐racionais que influem de fato (e não deveriam influir) na disputa entre teorias científicas. O segundo é que inconsistências têm que ser expostas, caso contrário continuam despercebidas por incautos. O terceiro é que o construtivismo, como um todo, é uma das abordagens filosóficas mais importantes e influentes de nosso tempo, e está sendo confundido e denegrido com a falsa alegação do construtivismo social de fazer parte dessa tradição filosófica. Por fim, é que nossas escolas e faculdades de pedagogia estão infestadas com essas teses algumas vezes confusas, outras absurdas e em certos casos, irracionais. O esclarecimento desta confusão entre as várias alegações de construtivismo é vital para a distinção de teses piagetianas e vygotskyanas das concepções sociologistas que (des)norteiam várias das teorias pedagógicas populares no terceiro mundo. É claro que a preocupação não é defender a ciência moderna. O impacto do construtivismo social no prestígio social e nas práticas metodológicas reais da física, química e biologia é equivalente ao impacto de uma mosca contra uma parede de concreto: devastador, para a mosca. O físico Alan Sokal (1996) ficou mundialmente famoso por humilhar o construtivismo social e boa parte da filosofia francesa contemporânea através de uma paródia de artigo, intitulado Transgressing the 213
boundaries: Toward a transformative hermeneutics of quantum gravity, submetido ao periódico Social Text, bíblia dos social studies. Se o título é ridículo, o artigo é um aglomerado de frases sem sentido, argumentos non sequitur e citações de “autoridades” pós‐modernas. É uma peça humorística cínica e refinada, misturando física contemporânea e matemática com as afirmações absurdas que construtivistas sociais e filósofos, geralmente franceses, fazem utilizando os termos destas ciências. Mas apesar disso, o artigo não só foi aceito como publicado numa edição especial da revista, acompanhado de loas dos editores à entrada da física na era pós‐moderna. Publicado, Sokal revelou a piada. Este evento não marcou a refutação do construtivismo social ou o descarte da filosofia francesa contemporânea. Ele só mostrou a todos o nível de impostura linguística, filosófica e científica ao qual chegamos. Ele mostrou que o rei estava nu, há muito tempo. Da mesma forma, nenhuma obra que possa ser escrita será capaz de fazer a maioria dos construtivistas sociais mudarem de opinião, pelo menos, publicamente. A questão não é racional, é política. A maioria sofre de um distúrbio comportamental que Kukla (2000, p.123) denominou ‘Montypythonesque logic’, que consiste na única regra de negar o que quer que seu oponente diga. Se alguém diz que eles afirmaram que x é ¬x, eles afirmam “não, não afirmei”. Mostrando‐se o texto, eles dizem “não era isso que quis dizer, era y”. Se alguém afirma então “mas y é contraditório”, eles afirmam “não, não é”, e assim indefinidamente. A caravana da ciência moderna vai continuar a passar porque, a despeito do avanço do relativismo e do irracionalismo em alguns círculos, ela é a cada dia 214
praticada com um otimismo epistemológico maior, ancorada em resultados espetaculares acumulados nos últimos trezentos anos. A diferença abissal entre o otimismo e a reputação epistêmica da ciência entre a população e os próprios cientistas, e o pessimismo epistemológico dos sociólogos e de certos filósofos, só serve para ilustrar mais uma vez a enorme alienação destes últimos. No negócio científico das explicações causais, seu fracasso é completo. O sucesso da dessa nova sociologia da ciência é político‐acadêmico, não científico. Isto se dá como apontou Searle (2000) porque a idéia de que tudo é uma construção social, de que não existe mundo real, é libertadora para muitos, fornecendo um discurso para a racionalização do ódio e rancor em relação às ciências naturais. Entre estes se encontram todo um conjunto de praticantes de disciplinas imaturas cientificamente e relegadas a um segundo plano acadêmico e social, como a antropologia, a sociologia e a análise literária. Cavalgando os instrumentos retóricos do construtivismo social muitos se lançam numa cruzada para minar o poder social dos cientistas naturais e fortalecer o próprio. Mas não só setores da academia bebem desta fonte. Boghossian (2006) lembra que o medo do conhecimento é natural em culturas minoritárias que defendem teses ou crenças míticas que a ciência revela falsas. Movimentos políticos pós‐colonialistas, nacionalistas e fundamentalistas, assim como o multiculturalismo, encontram no construtivismo social recursos para proteger culturas “oprimidas” pela razão e a ciência. Como afirmou Hacking (1999, p.67), “What is true is that many science‐haters 215
and know‐nothings latch on to constructionism as vindicating their impotent hostility to the sciences. Constructivism provides a voice for that rage against reason”. Além disso, um tipo de desejo muito ancestral se manifesta de novo através das teses do construtivismo social. É o desejo de não ser responsável sequer pela própria mente e pelas próprias crenças. É o desejo de se livrar daquilo que para alguns é um verdadeiro flagelo: a responsabilidade pessoal. Isso é buscado através da adesão ao mesmo tipo de crença defendida por Trasímaco na República, com a diferença que o valor em questão agora não é só o da justiça, mas o da verdade. E verdade, para estas pessoas, é o que aqueles que interessam dizem que é verdade. O relativismo é um dogmatismo de um dogma só. Mais ainda, ele é o mais primário e estreito dos dogmatismos, pois elimina até a possibilidade de se aderir a novos dogmas. Como disse Alain, nada é mais perigoso que uma idéia, quando só se tem uma idéia. Quando aqueles que só têm uma idéia, falsa, repetida para tudo, são acadêmicos, professores e pedagogos, o perigo para o futuro de uma sociedade aumenta exponencialmente. Minha esperança é que este trabalho e os frutos que dele ainda possa vir a espalhar dêem uma pequena contribuição para o esclarecimento e o resgate da respeitabilidade do termo ‘construtivismo’, assim como para a evidenciação de inconsistências nas teses defendidas por esta forma pós‐moderna de objetivismo e cientificismo, que usa a denominação de ‘construtivismo social’. 216
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