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UM NOVO PARADIGMA PARA A ATUAÇÃO CRIMINAL DO
MINISTÉRIO PÚBLICO: O CONTROLE EXTERNO MATERIAL DA
ATIVIDADE POLICIAL E A INVESTIGAÇÃO DIRETA DE
INFRAÇÕES PENAIS COMO FORMAS DE REDUÇÃO DA
DESIGUALDADE NO PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO
SECUNDÁRIA
André Tiago Pasternak Glitz1
RESUMO
O artigo analisa a forma desigual como atualmente é aplicado o Direito Penal
no Brasil e o papel do Ministério Público como agente transformador desta
realidade. A polícia seleciona de modo arbitrário o seu objeto de atuação,
concentrando sua ação em cidadãos pertencentes às classes sociais menos
favorecidas, atividade que não sofre controle adequado por parte do Ministério
Público. Deve o Ministério Público, através de um controle externo material da
atividade policial e da investigação direta de infrações penais, buscar uma
aplicação mais igualitária do Direito Penal, superando os entraves à
criminalização secundária da chamada criminalidade do colarinho-branco, em
busca dos objetivos de um verdadeiro Estado Social e Democrático de Direito.
Palavras-chave: Sistema de justiça criminal. Igualdade. Ministério Público.
Controle externo. Investigação Criminal.
ABSTRACT
This article analyses the unequal application of substantive criminal law in
Brazil and the role of the Public Prosecution Office in order to change this
reality. Today, police arbitrarily selects what to investigate and its actions
frequently are driven towards those citizens from the lowest social classes,
without adequate control from the Public Prosecution Office. It is the criminal
prosecutor’s constitutional function to change this scenario through effective
control of the police activity and direct investigations of certain criminal cases.
By doing that, perhaps, criminal substantive law in Brazil will be applied in a
more balanced manner, reaching also felonies such as white collar crimes, in
pursue of a Democratic and equal society.
1
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, designado pela Procuradoria-Geral de
Justiça para o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) – Núcleo
Regional de Curitiba/PR, desde abril de 2011.
1
Keywords: Criminal justice system. Equal protection. Public prosecutor. Police
control. Criminal investigation.
SUMÁRIO
1. Introdução – 2. A desigualdade do sistema de justiça criminal e algumas de
suas causas – 3. Formas de redução das desigualdades através do
incremento da vulnerabilidade daqueles excluídos do atual sistema de
justiça criminal – 3.1. Necessidades de readequações legislativas – 3.2
Sugestões de intervenção do Ministério Público como protagonista da
busca por um novo paradigma para o sistema de justiça criminal no Brasil –
3.2.1. Controle externo material da atividade policial – 3.2.2. Investigações
diretas de infrações penais pelo Ministério Público - 4. Conclusão – 5.
Referências Bibliográficas.
1. Introdução.
Por anos, o Direito Penal teve seu estudo focado na dogmática sistêmica
da teoria do delito, blindando-se de influências político-criminais tidas para muitos
como indesejáveis.
Consagrados juristas alemães como EDMUND MEZGER e HANS
WELZEL defendiam este distanciamento, assim como o fazia NELSON HUNGRIA, no
Brasil. Na obra de JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fato punível,
o prefácio de NILO BATISTA menciona um discurso de HUNGRIA no ano de 1942
em que apregoa justamente a necessidade da manutenção desta separação2.
Houve, por isso, um descolamento entre o Direito Penal e a sua aplicação
prática, os seus “efeitos reais”. Foi o Professor CLAUS ROXIN o pioneiro na proposta
de fundir dogmática e política criminal, indo além, inclusive, ao sugerir uma teoria do
delito totalmente estruturada em função da política criminal3.
2
BUSATO, Paulo César. Direito Penal e Ação Significativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.63-64.
A obra referência desta proposta é Política criminal e sistema jurídico penal, traduzida para o português
por LUÍS GRECO.
3
2
Porém, este desapego à realidade não é exclusividade das Ciências
Penais. A respeito desta problemática, CONDE e HASSEMER ensinam que:
“(...) não é estranho que o Direito, e não somente o Direito Penal
e seus cultivadores, tenham uma fixação normativa que às vezes
é quase uma obsessão, que faz com a criação, interpretação e
aplicação das normas jurídicas seja sua quase, para não dizer
exclusiva preocupação ou tarefa. Isso em si não seria mal se a
realidade social, a que se referem as normas jurídicas, fosse
imutável e estivesse prévia e claramente delimitada, mas
desgraçadamente esta realidade é mais complexa, rica e
cambiante do que o próprio tecido normativo construído em
torno dela reflita ou cristaliza.”4
Nesta perspectiva, o estudioso e o profissional que tem como objeto de
sua atividade o “sistema de justiça criminal”5 brasileiro não pode se prender a
dogmática do Direito Penal e do Processo Penal sem voltar a sua atenção para a forma
como ele opera e as consequências desta intervenção nas vidas das pessoas.
E ao se dispor a realizar tal reflexão, a constatação é que no Brasil o
Direito Penal material vem sendo aplicado de forma extremamente desigual por este
“sistema de justiça criminal”. Desigualdade que não se encontra na letra fria e distante
da lei e dos manuais, mas nas Delegacias de Polícia, Promotorias de Justiça, Varas
Criminais e Penitenciárias deste país continental.
Sobre esta violação ao princípio constitucional da igualdade em
particular, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR asseveraram:
“O princípio constitucional da isonomia (art.5º CR) é violável
não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando
4
CONDE, Francisco Munoz e HASSEMER, Winfried. Introdução á Criminologia. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008. p.5
5
A expressão “sistema de justiça criminal” será usada no artigo referindo-se ao conjunto de órgãos e
instituições responsáveis pela elaboração, interpretação e aplicação do Direito Penal e do Direito
Processual Penal brasileiro, de maneira interligada e funcional, em que cada uma delas desempenha uma
atribuição definida com antecedência pela Constituição e pelas leis brasileiras.
3
a autoridade pública promove uma aplicação distintiva
(arbitrária) dela.” 6
Neste artigo, pretendo pontuar brevemente como se opera este vilipêndio
constitucional na prática e apontar aquelas que, na minha ótica, são as suas principais
causas. Na sequencia, apresentarei algumas estratégias para solucionar o problema.
Como se verá, embora o conjunto destas propostas resolutivas tenha
como protagonistas os responsáveis pela elaboração, interpretação e aplicação das
regras que modulam o “sistema de justiça criminal” brasileiro, o foco central será a
atuação do Ministério Público como agente propulsor desta transformação.
2. A desigualdade do sistema de justiça criminal e algumas de suas
causas.
Cumpre desde logo reconhecer que há enorme identificação dos
postulados da doutrina desenhada pela criminologia na década de 70 do século XX,
denominada de “labeling approach”, à realidade brasileira7.
Muito resumidamente, o “labeling approach” constituiu uma radical
mudança do objeto de pesquisa da criminologia, partindo dos fatores da criminalidade
(etiologia) para a reação social.
Assim, a criminalidade não seria um dado ontológico, mas algo
construído pelo sistema de justiça criminal através de definições e da reação social. O
comportamento criminoso é assim definido por ser rotulado como tal e a estigmatização
social é diretamente responsável pela criação do status de criminoso, conforme explica
BARATTA8.
6
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito
penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.46.
7
De acordo com CONDE e HASSEMER, a base para o desenvolvimento da teoria do “labeling
approach” se deu na criminologia norte-americana dos anos 60, com LEERT, ERICKSON, SHUR e
BERCHER e também com o trabalho de sociólogos e criminólogos europeus como TAYLOR, WALTON
e YOUNG, na Inglaterra; SACK, na Alemanha; BARATTA, na Itália; BERGALLI, na Espanha, op. cit.,
p.93.
8
BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1999, p.85-92.
4
No Brasil, a reação social identificada pela teoria se opera através de uma
tripla seletividade do sistema, resultando na desigualdade da aplicação do direito penal.
Esta seleção ocorre em relação aos autores de crimes, às vítimas e aos tipos penais, e
seu principal protagonista é a polícia (militar e civil), por que é ela que atua na “porta de
entrada” do sistema.
No entanto, há que se destacar que a seleção efetuada num primeiro
momento pela polícia é passivamente absorvida pelo Ministério Público e Poder
Judiciário9 que a reproduz, através de mecanismos próprios, acentuando ainda mais a
desigualdade da filtragem inicial. Esta seletividade sem controle leva à discriminação10
e tem como causas alguns fatores que se destacam.
O alicerce central desta nefasta desigualdade é a enorme disparidade
entre o projeto idealizado pelo Congresso Nacional e Presidente da República e a
capacidade do Estado em concretizar este vasto programa11. Para alguns, como
ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, esta diferença é natural, própria do
sistema criminal, assim como a seleção que dela deriva.
“A criminalização primária é um programa tão imenso que
nunca e em nenhum país se pretendeu levá-la a cabo em toda a
9
Muito embora o Poder Judiciário receba do discurso dos juristas a função de redução do poder punitivo
do Estado, na prática, ele não apenas reproduz a seletividade realizada com antecedência pela polícia e
pelo Ministério Público, mas realiza internamente sua própria seleção, aumentando a desigualdade na
aplicação das leis penais.
10
A maneira como é elaborada a estatística criminal nacional de segurança pública no Brasil já revela,
por si só, este desequilíbrio e seletividade. Realizada desde o ano de 2005, com sua base de dados sendo o
número de ocorrências policiais registradas, não há informações referentes à renda per capta dos
noticiados como sendo autores de infrações penais, somente identificando-os por sexo, faixa etária e raça.
Não há, ainda, dados sobre eventual investigação que tenha sido instaurada com base no registro da
ocorrência, tampouco de seu resultado. No entanto, alguns dados chamam a atenção, como o número total
de registros de crimes contra a administração pública no país no ano de 2012, que é 1.479, contabilizando
0,3% do total e o de crimes praticados por particular contra a administração pública, 1.224, representando
0,2% do todo. Uma leitura destes números nos levaria a concluir que crimes de peculato, concussão,
corrupção ativa e passiva praticamente não acontecem no Brasil, o que parece efetivamente não
corresponder à realidade. Outros delitos de colarinho branco, como a lavagem de dinheiro, sequer são
relacionados estatisticamente. Estes dados se encontram no 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
divulgado em novembro de 2013 e confeccionado com base em informações do Sistema Nacional de
Estatística de Segurança Pública e Justiça Criminal – SINESPJC, a cargo do Instituto Brasileiro de
Geografia Estatística (IBGE). Metodologia, histórico e objetivo do SINESPJC podem ser encontrados
em:
<http://ces.ibge.gov.br/base-de-dados/metadados/ministerio-da-justica-mj/sistema-nacional-deestatistica-de-seguranca-publica-e-justica-criminal-sinespjc> e os dados divulgados em novembro de
2013 estão em: <http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/7aedicao>. Ambos os acessos em 23 de julho de 2014.
11
Importante aqui a noção de criminalização primária como sendo o programa penal de determinado país
através de suas leis criminalizadoras de condutas enquanto que criminalização secundária é entendida
como a forma como o programa é levado a cabo pelas agências do Estado. (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, op. cit. p.43-53.
5
sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é
inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos
criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e
aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do
sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra
ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta. As
agências de criminalização secundária têm limitada capacidade
operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma
utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o
sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária
apenas como realização de uma parte ínfima do programa
primário.” 12
Realmente, parece ser um fenômeno mundial a multiplicação da
legislação penal e mesmo condutas aparentemente normais, que outrora não
desencadeavam a atuação do direito penal, passaram a ser criminalizadas.
BUSATO identificou com precisão que:
“Pode-se partir de uma simples constatação empírica: estamos
vivendo um momento de orientação global ao recrudescimento
da repressão. (...). A quebra da bipolaridade do poder a nível
mundial, somada á globalização econômica, e por forca desta,
cultural, levou a humanidade a um discurso mais ou menos
hegemônico ditado a partir de uma fonte bem conhecida. Este
discurso é o discurso da insegurança social, do rompimento de
qualquer padrão em prol de uma pretensão de segurança que
nunca chega.” 13
12
Zaffaroni, op. cit., p.44.
CONDE, Francisco Munoz e BUSATO, Paulo César. Crítica ao direito penal do inimigo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.158.
13
6
O fenômeno é sentido, inclusive e, sobretudo, em países desenvolvidos,
como os Estados Unidos da América, onde tem sido apontado como uma das causas
para o “colapso” do sistema de justiça criminal americano14.
Decorrência disso é a natural limitação da estrutura do Estado, em sua
concepção lato sensu, em lidar com este imenso universo de leis penais, o que resulta
em seleção que, por sua vez, não sofre adequado controle, acarretando em
discriminação.
Logo, até mesmo para justificar a sua existência, num primeiro momento,
a polícia escolhe, arbitrariamente, uma pequena parcela das leis penais do país para
concentrar a sua atuação e, posteriormente, esta seleção é acolhida e acentuada pelo
Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
E é nos critérios - ou na ausência deles - que orientam esta seleção que
reside a principal causa do problema aqui tratado.
Como a polícia atua de maneira burocratizada15, acaba substituindo seus
objetivos por reiterações rituais, geralmente fazendo o mais simples e o mais barato.
Não se trata aqui de atribuir uma conotação negativa a forma como
funcionam as nossas polícias, mas de uma constatação natural decorrente de uma das
principais características da burocracia WEBERIANA, o seu caráter de permanência e
repetição:
“O burocrata individual não pode esquivar-se ao aparato ao qual
está atrelado. Em contraste com o notável, que administra ou
governa honorificamente ou á margem, o burocrata profissional
esta preso a sua atividade por toda a sua existência material e
ideal. Na grande maioria dos casos, ele é apenas uma
engrenagem num mecanismo sempre em movimento, que lhe
determina um caminho fixo. O funcionário recebe tarefas
especializadas e normalmente o mecanismo não pode ser posto
14
Neste sentido, as obras de WILLIAM J. STUNTZ, The colapse of american criminal justice e
HARVEY A. SILVERGATE, Three felonies a day.
15
O principal instrumento de investigação da polícia brasileira é o Inquérito Policial, símbolo de poder
dos Delegados de Polícia que se recusam a buscar outras formas mais eficientes para investigar crimes.
Ritualizado, formalista, recheado de atos inúteis, enfim, um exemplo perfeito de atividade burocrática do
Estado.
7
em movimento ou detido por ele, iniciativa esta que tem que
partir do alto. O burocrata individual esta, assim, ligado á
comunidade de todos os funcionários integrados no mecanismo.
Eles têm um interesse comum em fazer com que o mecanismo
continue suas funções e que a autoridade exercida socialmente
continue.”16
É próprio da burocracia, portanto, e dentre os órgãos do “sistema de
justiça criminal” brasileiro, Ministério Público e Poder Judiciário também são ainda de
características eminentemente burocráticas, a extrema conformidade às rotinas e aos
procedimentos, os quais garantem com que as pessoas façam repetidamente aquilo que
delas se espera, centradas nas regras e regulamentos ao invés de trabalhar em função de
objetivos e metas democraticamente estabelecidos.
Portanto, naturalmente, a ação da polícia recai sobre a denominada obra
tosca da criminalidade (ZAFFARONI), cuja detecção e investigação são mais fáceis.
Crimes de baixa complexidade, cometidos por pessoas situadas em
extratos sociais de limitado acesso positivo a educação e que, portanto, terão menos
condições de evitar sua reiteração e de praticá-los de maneira sofisticada, o que
dificultaria a sua percepção, são os clientes preferidos do sistema17.
Consequentemente, são excluídos de seus tentáculos os crimes cuja
autoria, teoricamente, recairia sobre aqueles em posição social de maior destaque. Isso
ocorre não por que não cometam estes aquelas mesmas infrações penais, mas, sim, por
que suas condições pessoais os tornam capazes de evitar a sua reiteração ou de aplicar
sofisticação à execução do delito.
Igualmente, dadas circunstâncias sociais, econômicas e políticas, há uma
inclinação natural de pessoas ricas ou detentoras de alguma forma de parcela de Poder
do Estado à prática de crimes de difícil detecção e investigação, os chamados crimes de
colarinho branco18, havendo, logo, baixa vulnerabilidade destas ao sistema19.
16
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979,
p.265.
17
Zaffaroni, op cit., p.38-59.
18
Escolhi usar a expressão “crime de colarinho branco’” ´por que me parece a mais adequada à amplitude
da ideia passada pelo texto. A expressão, em inglês “white-collar crime”, foi cunhada por Edwin
8
No entanto, há casos excepcionais nos quais pessoas que, a princípio, não
seriam selecionadas pelo sistema, acabam sendo por ele alcançadas.
Aqui, como visitantes indesejados, mesmo sem possuir os predicados
necessários para frequentar a “festa” das Delegacias de Polícia e Fóruns Criminais
brasileiros, a seleção ocorre por que o cidadão se colocou em posição de vulnerabilidade
originariamente não existente ou por que alguma atitude isolada de agentes do Estado
foi capaz de atuar sobre um chamado crime de colarinho branco.
E quando tal anomalia ocorre as desigualdades se acentuam, agora com a
contribuição do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Nestes casos, no âmbito da polícia há interferências externas diretas
(políticas e midiáticas) e dificuldades em investigar fatos mais complexos praticados
por autores não convencionais, seja por falta de treinamento ou por carência de
condições materiais.
Embora um pouco menos sujeitos a interferências externas diretas,
membros e servidores do Ministério Público e do Poder Judiciário também não se
encontram preparados para lidar com esta criminalidade não usual20.
Além disso, a grande quantidade de trabalho e a rotina de lidar com casos
de menor complexidade acabam fazendo com que estes profissionais tentem evitar o
Sutherland em 1939, que definiu o termo como sendo um “crime cometido por uma pessoa de alta e
respeitável posição social praticado no exercício de seu trabalho”. No original, "a crime committed by a
person of respectability and high social status in the course of his occupation", em
<http://www.law.cornell.edu/wex/white-collar_crime>. Acesso em 23 de julho de 2014. Para saber mais,
especialmente sobre as estratégias de atuação do Federal Bureau of Investigation (FBI) no combate a esta
criminalidade
nos
Estados
Unidos
da
América
<http://www.fbi.gov/aboutus/investigate/white_collar/whitecollarcrime>. Ambos os acessos em 23 de julho de 2014.
19
O Brasil já possui a terceira maior população carcerária do mundo. Dados divulgados no dia 30 de
novembro de 2013 revelam que dos 548.168 presos brasileiros somente 2.703 (0,49%) se encontravam
detidos pela prática de crimes contra a administração pública, como peculato e corrupção. Por outro lado,
267.975 (49%) da população carcerária era formada por presos acusados de praticar crimes contra o
patrimônio, como o furto. Dados disponíveis em <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/por-quaiscrimes-as-pessoas-estao-presas-no-brasil/>. Acesso em 23 de julho de 2014.
20
Vários fatores parecem ser decisivos para isso, como a formação jurídica dos profissionais,
circunstâncias sociais (os acusados são da mesma posição social de seus acusadores e julgadores) e
psicológicas (empatia com o acusado). Outrossim, o Estado não é estruturado para lidar com esta
criminalidade. É fato a inexistência de órgãos especializados para o combate aos crimes de colarinho
branco (corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo) na estrutura da polícia, Ministério Público e
Poder Judiciário dos Estados brasileiros. No Estado do Paraná, em particular, não existem Varas
Criminais especializadas em processar crimes de colarinho branco. No Ministério Público há os Grupos
de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECOs) e na estrutura da Polícia Civil os
Núcleos de Repressão aos Crimes Econômicos (NURCEs).
9
desconhecido, afastando-se de investigações e ações penais aparentemente mais difíceis,
em que a dedicação deverá ser maior e os critérios de análise distintos dos comumente
aplicados21.
Ao atuarem desta maneira, condicionados, Promotores de Justiça e Juízes
de Direito agem como seres humanos que são, tendendo a fazê-lo automaticamente, de
forma acrítica, como aponta ALEXANDRE MORAIS ROSA:
“As descobertas da neurociência demonstram que a maneira
como aprendemos a pensar e a explicar o modo como decidimos
depende de um complexo sistema de variáveis. (...) e o cérebro,
assinala Daniel Kahneman, por seus sistemas — S1 (implícito,
rápido, direto, automático, emotivo e desprovido de esforço) e
S2 (explícito, consciente, demorado, racional, desgastante e
lógico) — busca reduzir a complexidade da decisão.
Basta lembrar da primeira vez em que dirigimos um carro. O
que era uma atividade do S2 nas primeiras vezes, com o tempo,
passa a ser uma atividade realizada pelo piloto automático. E
dirigimos sem pensar. Ainda que os sistemas (S1 e S2)
trabalhem em sequência, por sermos humanos, não se
problematiza muito, justamente porque a resposta pronta está
dada. Modificar exige tempo e esforço mental. No campo do
processo penal esse modo de pensar leva muitas vezes a erros
(vieses), dado que a reflexão não é acionada. Isso porque a
atenção é cara e escassa.”22
21
Como exemplo, é fácil constatar que os critérios de avaliação do conjunto de provas de casos penais da
criminalidade não convencional são geralmente os mesmos utilizados em casos mais simples, rotineiros, o
que pode ser interpretado como ofensa ao principio da isonomia material. Parece ser razoável afirmar que
Promotores de Justiça e Juízes de Direito não deveriam buscar encontrar os mesmos meios de prova que
comumente estão disponíveis em casos de baixa complexidade, como a confissão, por exemplo, nos
chamados crimes de colarinho branco, em que são mais raras tais hipóteses.
22
ROSA, Alexandre Morais. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de
amor.
Disponível
em:
<http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavelcontrapartida-igual-prometer-amor>. Acesso em 18 de julho de 2014.
10
Outro fator que contribui para esta desigualdade é que a legislação
brasileira não prevê instrumentos necessários para lidar com esta criminalidade,
tampouco regras processuais condizentes com as suas particularidades23.
O processo penal brasileiro é voltado àquela criminalidade habitual ao
sistema. Podem ser mencionadas aqui as tantas formas de revisão das decisões judiciais
que na prática acaba beneficiando somente uma minoria de acusados com condições
econômicas para pagar um bom e influente advogado.
Enfim, mesmo quando o primeiro filtro do sistema de justiça criminal
deixa escapar alguém que a princípio não se encontrava em situação de vulnerabilidade,
o sistema apresenta uma série de outros filtros, que se multiplicam ao longo do
caminho, sendo raras as sentenças condenatórias com imposição de pena de prisão para
estas pessoas.
Este panorama foi identificado com precisão por BUSATO e
HUAPAYA:
“Na América Latina, são mais que evidentes os obstáculos que
se apresentam para levar a cabo a criminalização secundária
para a delinquência do colarinho-branco. Os índices não são
mais do que vergonhosos. As razões são muitas: o poder
econômico e político de seus autores e também o seu prestígio.
Muitos destes processos de criminalização terminam tãosomente em uma triste folha de expediente perdida em uma
gaveta de alguma Delegacia de polícia, ou nem mesmo isso.
O Direito Penal, por isso, sempre deve permanecer em constante
crítica. Dentro de um Estado Social e Democrático de Direito é
necessário, para afirmar a legitimidade do próprio Estado, que
23
Exemplo disso é que somente através da Lei nº 12.850/2013 se definiu Organização Criminosa na
legislação brasileira e, ainda timidamente, foram aperfeiçoados alguns instrumentos processuais próprios
ao combate desta espécie de criminalidade como a colaboração premiada, a ação controlada e a infiltração
de agentes.
11
estes obstáculos que impedem a criminalização secundária de
altos setores da população se extingam.”24
Trata-se, evidentemente, de um lento e gradual processo a superação
destes obstáculos, porém, é preciso “dar o primeiro passo”, e este pode e deve ser de
iniciativa do Ministério Público brasileiro.
3. Formas de redução das desigualdades através do incremento da
vulnerabilidade daqueles excluídos do atual sistema de justiça
criminal.
Embora um efetivo reequilíbrio da balança necessariamente passe pela
forma de atuar de todos aqueles que integram o “sistema de justiça criminal”, os parcos
apontamentos que se pretende colocar referem-se a algumas necessárias modificações
legislativas e às possíveis intervenções do Ministério Público brasileiro, como órgão
independente dos demais Poderes da República Federativa do Brasil, incumbido pela
Constituição de promover “(...) a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis”25 e na posição de exclusivo titular da
ação penal pública (artigo 129, I, da CF).
Ou seja, o foco da criminalização secundária deve passar a ser a
criminalidade não usual e para tanto ao Ministério Público foi destinado instrumental
capaz de realizar esta mudança de rota já pelo Constituinte Originário.
O que se pretende não é uma “caça às bruxas”, mas cumprir, através da
aplicação do Direito Penal, os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, expressados no artigo 3º, da Constituição Federal, tão somente.
Neste sentido, novamente BUSTATO e HUAPAYA:
“Deve-se ter em conta, entretanto, que isto não significa, de qualquer
modo, uma pretensão de “vingança proletária” à custa de una ampliação
do Direito Penal, mas sim uma “correção de rumos” em direção a um
24
BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal: fundamentos para
um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.88.
25
Artigo 127, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
12
Direito Penal mais adequado às propostas humanitárias e aos princípios
do Estado Social e Democrático de Direito.”26
3.1.
Necessidade de readequações legislativas.
Em primeiro lugar, é preciso que seja respeitado o princípio penal da
intervenção mínima. O direito penal deve ter reduzido o seu âmbito de incidência
àquelas situações de extrema necessidade, limitado sempre pela sua própria finalidade
de proteção dos bens jurídicos.
Somente assim poderá ser encurtada a distância entre o programa penal
do Estado e a capacidade de torná-lo efetivo. É certo que quanto menor for esta
disparidade maior será a capacidade de dar concretude à lei penal, reduzindo o campo
de discricionariedade daqueles responsáveis pela sua execução e, consequentemente, de
discriminação.
Também de lege ferenda se encontra a possibilidade de ampliar as
hipóteses legais de acordo entre as partes nos crimes de ação penal pública, como o
Projeto de Lei nº 8045/2010 (atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados), que
institui o novo Código de Processo Penal e prevê regras que possibilitam acordos entre
Ministério Público e acusado para verdadeira imposição antecipada de pena, mediante
atendimento de determinados requisitos legais.
De fato, desde que estabelecidos previamente os limites legais (legal
standards) e respeitada a possibilidade de controle posterior por parte do Poder
Judiciário, trata-se de um campo em que o Ministério Público e o Poder Judiciário
podem: I) filtrar a seletividade discriminatória efetuada pela polícia de maneira
arbitrária na fase de investigação; b) desafogar as Promotorias de Justiça e Varas
Criminais para que ambas as instituições possam planejar sua atuação criminal com
base em um novo paradigma, voltado à criminalidade do colarinho branco.
Além de se tratar de uma necessidade do sistema de justiça criminal
brasileiro, teoricamente, a ampliação dos acordos penais já encontra sustentação na
corrente doutrinária flexibilizadora do princípio da obrigatoriedade da ação penal
pública e a garantia contra eventuais abusos repousam na teoria constitucional dos freios
26
Op. cit. p.89.
13
e contra pesos (checks and balances) e na inafastabilidade do controle ulterior por parte
do Poder Judiciário27.
Por fim, ainda no campo das possíveis mudanças legislativas, é
imprescindível que o processo penal brasileiro se modernize e se adeque às novas
espécies de criminalidade, talvez buscando inspiração em modelos estrangeiros que
tenham apresentado algum êxito neste sentido e possam ser adaptados à nossa
realidade28.
3.2.
Sugestões de intervenção do Ministério Público como
protagonista da busca por um novo paradigma para o sistema de
justiça criminal no Brasil.
No entanto, as alterações legislativas sugeridas não são novidade. Aliás,
apesar de possíveis, realisticamente falando, são elas pouco prováveis. Tanto já se falou
de suas necessidades que qualquer mudança dentre as apontadas acima, em curto ou
médio prazo, seria uma enorme e agradável surpresa.
Como são o Congresso Nacional e a Presidência da República os
detentores do “poder político constitucional” para a promoção dessas modificações,
cabe ao Ministério Público, na condição de titular exclusivo da ação penal pública e
como sendo o órgão a quem a Constituição confiou a missão de zelar pela paz social,
interesses sociais - como a segurança pública - e eficiência das ações policiais, elaborar
e colocar em prática o que se pode chamar de projeto de redução da desigualdade na
aplicação do direito penal no Brasil.
27
Embora o tema seja de grande densidade para ser tratado aqui, pode-se afirmar que seriam assim
evitados os principais problemas que hoje se apresentam, por exemplo, no sistema de justiça criminal dos
Estados Unidos da América, aonde a prosecutorial discretion é alvo de devastadoras críticas pelos
doutrinadores, diante os poderes conferidos aos prosecutors para arbitrariamente decidir quais casos
processar, como processá-los e numa ampla liberdade para celebração de acordos com imposições
antecipadas de penas privativas de liberdade (plea bargaining), sem nenhuma possibilidade de controle
pelo Poder Judiciário.
28
Neste sentido, é urgente a necessidade de repensar o Inquérito Policial como instrumento eficaz à
investigação criminal e valorizar as decisões dos juízes de primeiro grau, limitando a possibilidade de
recursos às instâncias superiores, dentre outras medidas que fogem do escopo deste trabalho.
14
Minha sugestão é que este plano seja centrado em dois eixos que se
complementam, na busca pela mudança do enfoque de atuação das agências de
criminalização secundária: um controle externo material da atividade policial e a
investigação direta de infrações penais pelo Ministério Público.
3.2.1. Controle externo material da atividade policial.
A Constituição do Brasil estabelece como uma das funções institucionais
do Ministério Público o exercício do “controle externo da atividade policial, na forma
de lei complementar”.
Referida Lei Complementar é a Lei nº 75/93, a qual, de maneira bastante
aberta, estabelece os princípios que devem orientar o exercício desta atividade, dentre
eles devendo aqui ser apontado o de buscar respeitar os direitos assegurados na
Constituição Federal e na lei (artigo 3º, “a”).
No entanto, em seu Capítulo II, ao elencar as medidas judiciais e
extrajudiciais referentes ao controle externo da atividade policial a lei parece de uma
obviedade gritante, dando a clara impressão de se tratarem de repetições de outras
atribuições já conferidas por lei ao Ministério Público, em sua essência29.
Como o legislador complementar deixou a desejar ao apresentar
genéricas e já conhecidas ações de controle externo da atividade policial, cabe ao
Ministério Público nortear a sua atuação nesta atividade interpretando a própria
Constituição Federal de 1988.
O Ministério Público brasileiro deve, assim, neste particular, exercer o
controle externo da atividade policial procurando corrigir as distorções ao princípio
constitucional da igualdade (artigos 5º e 6º da CF), assegurando o direito social à efetiva
segurança pública (artigo 6º da CF) de todo o cidadão e buscando legitimar a sua
condição institucional de titular exclusivo da ação penal pública (artigo 129, I da CF).
29
SALGADO, Daniel de Resende. “O controle externo, a seletividade e a ineficiência da investigação
criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Coordenadores: Daniel, Dentan e Monique Cheker, Editora Jurispodvm, Salvador, 2013, p.166.
15
Como premissa básica é preciso reconhecer a necessidade de seleção na
atividade policial de prevenção e investigação30. Enquanto houver um número de leis
penais que torne impossível uma atuação policial capaz de aplicá-las uniformemente é
imprescindível selecionar e superar, assim, o mito do princípio da obrigatoriedade da
investigação e da ação penal pública31.
Num segundo momento, é imprescindível que o Ministério Público se
torne parte ativa desta seleção. Ou seja, possa ser efetivamente capaz de influenciar e,
em conjunto com as polícias, fazer escolhas32 e definir pautas de atuação de acordo com
uma política de segurança pública com metas e objetivos democraticamente
estabelecidos.
A atual passividade com que age o Ministério Público torna-o
corresponsável pelas inúmeras distorções que se operam na realidade do “sistema de
justiça criminal”. É preciso estabelecer uma postura proativa, superando preconceitos e
reconhecendo a necessidade de se fazer um verdadeiro planejamento interinstitucional
entre as polícias e o parquet.
Não se propõe aqui uma relação verticalizada entre as polícias e o
Ministério Público, mas de interação horizontal, através da qual se permita o
desnudamento e o debate dos critérios que são hoje usados para a seletividade da
atuação policial.
Aliás, a interpretação literal da palavra controle parece ter feito com que
o Ministério Público se sinta apenas um fiscal da polícia, numa relação quase que
hierarquizada. Não quero dizer que a fiscalização da atividade policial seja prescindível.
Longe disso, faz ela parte importante dos deveres institucionais do parquet,
especialmente quando a atuação policial é ilegal.
30
DALLAGNOL, Deltan Martinazzo compartilha deste pensamento em seu artigo “Controle externo da
atividade
policial:
panorama,
problemas
e
perspectivas”.
Disponível
em:
<http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-e
publicacoes/artigos/artigo_problemas_perspectivas_controle_externo_atividade_policial.pdf>. Acesso em
23 de julho de 2014.
31
São várias as referências sobre esta nova perspectiva de roupagem ao princípio da obrigatoriedade da
ação penal pública, merecendo ser citada a tese de mestrado do Procurador da República LUIS
WANDERLEI GAZOTO, O Princípio da Não-Obrigatoriedade da Ação Penal Pública. Disponível em:
<https://sites.google.com/site/luiswanderleygazoto/meus-textos/o-princpio-da-no-obrigatoriedade-da-aopenal>. Acesso em 23 de julho de 2014.
32
Poderiam ser fixados critérios objetivos para tais escolhas, com base em dados estatísticos, sempre
visando reduzir ao máximo a discricionariedade arbitrária que hoje impera.
16
No entanto, não se pode olvidar que a polícia é uma instituição vinculada
e subordinada ao Poder Executivo, não sujeita, portanto, hierarquicamente ao Ministério
Público. De outro lado, este é o titular exclusivo da ação penal pública, destinatário
único das investigações policiais.
Estas posições e atribuições constitucionais forçam o intérprete a,
interpretando a Constituição de maneira textual (não confundir com literal),
contextualizar a palavra controle para emprestá-la um sentido de atuação conjunta entre
polícia e Ministério Público, em cooperação, unidade, obrigando este a se aproximar
irremediavelmente das polícias para fielmente desempenhar o seu papel.
Antes disso, contudo, parece imprescindível que cada Ministério Público
deva estabelecer uma verdadeira política institucional de atuação no controle externo
material da atividade policial, superando o voluntarismo de alguns poucos que têm se
dedicado a enfrentar o tema de maneira isolada33.
Como resultado, se espera que o Ministério Público deixe de se
apresentar como mero ratificador ou expectador passivo do trabalho policial ou, nas
palavras de RENÉ ARIEL DOTTI, um mero “repassador da prova colhida34”.
Além disso, a formação de uma pauta de atuação comum e a inserção do
Ministério Público no âmago do trabalho investigativo pode ser uma solução para
reduzir as diligências inúteis e definir estratégias iniciais de preservação formal e
material das provas produzidas na investigação em eventual futura ação penal35.
O Ministério Público precisa definitivamente tornar efetiva a sua
condição de titular exclusivo da ação penal pública, garantida pelo artigo 129, I, da
33
Como algumas iniciativas neste sentido, ainda que com o foco no aspecto formal do controle, pode-se
mencionar a Resolução nº 20, do Conselho Nacional do Ministério Público, que busca disciplinar e
definir formas de atuação no controle externo da atividade policial e o Manual Nacional do Controle
Externo da Atividade Policial, elaborado pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos
Ministérios
Públicos
dos
Estados
e
da
União,
disponível
em:
<https://www.mprr.mp.br/app/webroot/uploads/Manual_do_Controle_Externo.pdf>. Acesso em 23 de
julho de 2014.
34
DOTTI, René Ariel. O Ministério Público e a Polícia Judiciária: relações formais e desencontros
materiais. In: MORAES, Voltaire de L. (Org.). Ministério Público, Direito e Sociedade. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1996.
35
Acerca deste particular aspecto no que tange à intervenção efetiva do Ministério Público coleta da
prova na fase investigatória vide SALGADO, Daniel de Resende. “O controle externo, a seletividade e a
ineficiência da investigação criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO. Coordenadores: Daniel, Dental e Monique Cheker, Editora Jurispodvm,
Salvador, 2013.
17
Constituição Federal. Ao titular da ação penal caberia, em tese, decidir com
exclusividade os casos penais a serem apreciados pelo Poder Judiciário.
Esta parcela de poder do Estado foi atribuída pela Carta Magna tão e
somente ao Ministério Público, porém, não passa hoje de um discurso retórico e distante
da realidade.
É imprescindível reconhecer que quem decide hoje, de fato, quais casos
penais serão submetidos ao Poder Judiciário é a polícia e dela, por sua omissão, fez-se
refém o parquet!
Eis, portanto, talvez um dos caminhos para se fiscalizar os critérios
arbitrários de seletividade que causam distorções graves no nascedouro do “sistema de
justiça criminal”, ao mesmo tempo em que se pode pensar numa investigação criminal
eficiente e produtiva, com a colheita somente de provas necessárias e voltadas desde
logo à segunda fase da persecução penal.
3.2.2. Investigações diretas de infrações penais pelo Ministério
Público.
A execução de uma política institucional de controle externo material da
atividade policial, que contemple atuação no viés acima indicado, certamente não é a
única forma através da qual pode o Ministério Público servir de agente transformador da
realidade do sistema de justiça criminal brasileiro.
As policiais são órgãos do Poder Executivo e, portanto, sujeitas a uma
série de circunstâncias que limitam por natureza a sua capacidade de ação. Estas
limitações devem ser reconhecidas como próprias da posição na qual o Constituinte
Originário situou as polícias brasileiras.
Portanto, além de atuar em parceria com os órgãos de segurança na
seleção de prioridades que podem ser denominadas de “comuns”, o Ministério Público
18
deve, internamente, fixar as suas próprias diretrizes para o exercício da atividade de
investigação direta de uma parcela de infrações penais, em casos “excepcionais”36.
O critério a pautar esta seleção interna não pode ser outro que não seja o
de identificar aquela criminalidade cuja tendência é de ainda resistir a uma ação
integrada entre o Ministério Público e as polícias, dadas as peculiaridades próprias do
espaço em que estas se situam na estrutura do Estado brasileiro, já referido.
Além disso, esta seleção deve também ser realizada de acordo com metas
e objetivos de uma política estadual de segurança pública previamente discutida
democraticamente.
Outro ponto de fundamental importância neste tema é que a atividade de
investigação direta pelo Ministério Público acarreta naturalmente em algum desgaste
pessoal - dos agentes ministeriais responsáveis pela sua execução - e institucional.
Este impacto negativo deve ser administrado pela instituição de modo a
conferir um equilíbrio entre a necessidade de estreitamento e fortalecimento das
relações com as polícias (no campo do controle externo, sobretudo material) sem que
isso importe em obstaculizar um combativo trabalho de investigação direta do parquet,
que invariavelmente tem por objeto infrações penais praticadas pelos próprios agentes
policiais.
Duas formas de facilitar o balanceamento deste delicado cenário são: a) a
já referida seleção, com base em critérios previamente discutidos, da seara em que se
dará a apuração direta de infrações penais pelo Ministério Público; b) a cisão de
atribuições entre as atividades de execução do controle externo da atividade policial e
da investigação37.
36
A investigação direta pelo Ministério Público não deveria, teoricamente, abarcar todos aqueles
chamados crimes de colarinho-branco, podendo o seu objeto ficar restrito a uma criminalidade organizada
que logrou êxito em se expandir para dentro da própria estrutura do Estado, por exemplo. Nestes casos,
parece-me que as polícias, na sua atual conformação constitucional, mostrar-se-iam incapazes de agir
eficientemente na atividade investigatória, mesmo se “amparadas” pelo parquet através de uma execução
da atividade do controle externo material, já colocada. Não obstante, no estado atual de coisas, a
investigação direta pelo Ministério Público é definida de maneira muito mais ampla, haja vista a completa
inoperância do “Estado policial”. Um bom exemplo desta amplitude é a Resolução nº 1.801/2007, que
regulamente os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), no Ministério
do Estado do estado do Paraná. e define seu vasto campo de atuação no artigo 5º.
37
Embora situadas as atribuições em órgãos distintos, a proximidade e a troca de informações entre eles é
de fundamental importância, inclusive podendo haver, por exemplo, um mesmo setor de operações e/ou
de serviço de inteligência.
19
Não obstante, é altamente recomendável que cada Ministério Público
reflita e discuta suas próprias peculiaridades, estruturando-se de acordo com as
demandas locais, sendo as ideias acima apenas propositivas diante de um quadro
hipotético que considero ideal38.
Definidas as estratégias de cada Ministério Público é preciso concentrar
investimentos para treinamento de membros e servidores, bem como, aquisição de
equipamentos de vanguarda que permitam à instituição atuar com eficiência frente à
criminalidade que tem o dever de atingir: a do colarinho branco, detentora do poder
econômico e político.
4. Conclusão.
Mostra-se imprescindível que se inicie um processo de transformação de
atuação das agências de criminalização secundária no Brasil, sendo que o Ministério
Público possui todas as condições para assumir tal papel e resgatar de fato o seu
protagonismo na interpretação e aplicação do Direito Penal e do Processo Penal.
Já é tardio o início deste Movimento de superação dos entraves à atuação
do Estado sobre a criminalidade de colarinho-branco, não havendo qualquer expectativa
de que as mudanças se operem de forma repentina, até por que dependem também, e
principalmente, de uma verdadeira transformação da cultura de atuação profissional de
advogados, promotores, juízes e policiais.
É a posição compartilhada por ZUGALDIA ESPINAR:
“(...) a legitimidade do Direito Penal de um Estado Social e Democrático
de Direito passa por remover os obstáculos que impedem a
criminalização secundária dos setores sociais altos e por tomar
consciência da ´armadilha` que pode supor a carência por parte do Estado
de um interesse sério em prevenir a delinquência marginal para poder
seguir utilizando o despossuído criminalizado como ´bode expoatório`
(as prisões, queiramos ou não, estão cheias, ainda que sempre com os
mesmos), isto é, como expressão simbólica do bom funcionamento de
38
No Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e no Ministério Público do Rio Grande do Sul
as atribuições de controle externo da atividade policial e dos GAECOs são situadas em órgãos distintos,
enquanto que no Estado do Paraná há uma recente tendência de seguir estes modelos de separação, já que,
nos termos da Resolução n. 1.801/2007, as atribuições de controle externo competem também aos
GAECOs.
20
um sistema que lava as mãos criminalizando (ainda que só em nível
primário) a delinquência dos setores sociais mais favorecidos.”39
Finalizo com as palavras magistralmente ditas por CONDE e
HASSEMER, tão pertinentes e, acima de tudo, tão reais:
“É evidente que existem determinadas anomalias psíquicas, genéticas etc.
que levam à predisposição de determinados delitos. Também é certo que
alguns
defeitos
na
socialização
favorecem
certas
formas
de
criminalidade. Mas isso não justifica que a imagem da criminalidade, que
aparece quase sempre nos livros e obras gerais, Tratados e Manuais de
Criminologia, seja aquela levada a cabo por sujeitos patológicos e
marginalizados sociais. Nos Manuais de Criminologia, muito se fala de
psicopatas, de assassinos em série, estupradores de crianças; de brigas de
jovens que alteram a ordem pública nos estádios de futebol, que cometem
atos de vandalismo, que consomem ou traficam drogas, ou roubam em
supermercados; mas pouco, para não dizer nada, se fala da criminalidade
dos poderosos; da personalidade egoísta, da insensibilidade social e
desumana
do
empresário
ou
dos
membros
do
Conselho
de
Administração, que decidem não pagar o salário digno ou não fazer
determinadas inversões sociais em beneficio dos trabalhadores, que
cometem fraudes fiscais, que provocam a insolvência fraudulenta da
empresa, deixando na rua milhares de trabalhadores, que não adotam
medidas que evitem a poluição do meio ambiente ou a fabricação de
produtos defeituosos; como tampouco se fala do banqueiro frio,
calculista e ambicioso que administra especulativamente as economias
alheias, que cria sociedades de fachada em paraísos fiscais, que se presta
a interesses muito mais elevados, lavagem de dinheiro procedente de
atividades ilegais; ou de políticos corruptos, dos intermediários entre
estes e os empresários ambiciosos que esperam conseguir subvenções ou
concessões de obras públicas; do financiamento ilegal de partidos
políticos; dos grandes lideres da máfia e do narcotráfico, de seus
assessores jurídicos. Será que isso não é criminalidade? Será que uma
39
In BUSATO e HUAPAYA, op. cit. p.88-89.
21
fraude financeira de grande volume não produz maior dano social que
todos os furtos e roubos cometidos em uma década em um país? Talvez
possa parecer exagerado ou demagógico, mas aos olhos do tipo de
criminalidade julgada diariamente pelos Tribunais, e da criminalidade
que também é raramente objeto de sanção penal, muitas vezes vem à
mente a oportuna e irônica frase de Bertold Brecht: “O que é mais grave,
assaltar um banco ou fundar um?.”40
5. Referências bibliográficas.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal. 2 ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
BUSATO, Paulo César. Direito Penal e Ação Significativa. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005.
BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal:
fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
CONDE, Francisco Munoz e BUSATO, Paulo César. Crítica ao direito penal do
inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
CONDE, Francisco Munoz e HASSEMER, Winfried. Introdução á Criminologia. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
DALLAGNOL, Deltan Martinazzo “Controle externo da atividade policial: panorama,
problemas e perspectivas” Disponível em: <http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-e
publicacoes/artigos/artigo_problemas_perspectivas_controle_externo_atividade_policial
.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2014.
DOTTI, René Ariel. O Ministério Público e a Polícia Judiciária: relações formais e
desencontros materiais. In: MORAES, Voltaire de L. (Org.). Ministério Público,
Direito e Sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.
GAZOTO, Luiz Wanderlei. O Princípio da Não-Obrigatoriedade da Ação Penal
Pública.
Disponível
em:
<https://sites.google.com/site/luiswanderleygazoto/meus-
textos/o-princpio-da-no-obrigatoriedade-da-ao-penal>. Acesso em 23 de julho de 2014.
ROSA, Alexandre Morais. Duração razoável do processo sem contrapartida é como
promessa de amor. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite40
Op. cit. p.123-124.
22
penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor>. Acesso em 18 de julho de
2014.
SALGADO, Daniel de Resende. “O controle externo, a seletividade e a ineficiência da
investigação criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL
PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. Coordenadores: Daniel, Dental e Monique Cheker,
Editora Jurispodvm, Salvador, 2013.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979, p.265.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,
Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.46.
23

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