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RICARDO CAMARANO
MOTIVO PARA EXISTIR
DESGASTAR À EXAUSTÃO
MEMÓRIA EM FRAGMENTOS
SONHO IMAGINÁRIO
UM NOVO CONTINENTE
O ARTISTA
Nascido em 1957 no Brasil, em Araguari - Minas Gerais, Ricardo Camarano inicia seu
processo artístico ainda muito jovem, experimentando várias manifestações: desenho,
vitrais, pintura, dança e moda.
Como autodidata, pesquisa e realiza esculturas com diversos materiais: argila e madeira entre outros.
Muda-se para Paris em 1990 e aprofunda sua formação em História da Arte no Instituto
de Formação de Carreiras Artísticas (ICART - Paris, França).
Em visitas à museus e galerias, se confronta com as diversas técnicas de pintura
desenvolvidas ao longo da história.
A evolução do processo da criação das formas e da matéria da cor exerce sobre si uma
total fonte de observação e estudos.
Apaixona-se a principio pela técnica desenvolvida pela renascença flamenca, e passa a
estudar também as técnicas de têmpera muito utilizadas na feitura dos antigos ícones
russos.
É na França que o artista afirma sua antiga busca, não pelo simples registro das imagens em si, mas pela árdua tentativa de processar a pintura com ações semelhantes às
da natureza em seu eterno processo de construção e desconstrução.
Após 15 anos de experimentações utilizando a pintura à óleo, revela sua própria poética por meio de uma técnica de acúmulo e desgaste de matéria e cor, numa infindável e
repetitiva ação de sedimentar e extrair camadas de pigmento, suscitando uma pintura
pura, de aparência bruta mas que, ao tato, é percebido como uma fina camada de pele.
Começa a busca pela palavra que possa traduzir seu processo e sua emoção. Era chegada
a hora de trocar experiências. Encontra-se em Paris com a escritora francesa Nicole
Vitrier, que o ajuda a escrever seus próprios passos na procura desta sua expressão
plástica e poética.
Exposições
2001 - 2006 Virginie Boissiere (marchand), Paris - França
2007 - 2008 ICART Fiac, Paris - França
2009 SP ARTE (Galerie Sycomore), São Paulo - Brasil
2009 - 2010 Galerie Lavigne Bastille, Paris - França
2010 Espaço Cultural Contraponto, São Paulo - Brasil
2012 Galerie Samuel Lalouz, Montréal - Canadá
2013 Galeria Edu Fernandes, São Paulo - Brasil
Suas obras encontram-se em numerosas coleções privadas no Brasil, Canadá, Estados
Unidos, França, Alemanha e Suíça.
2000-2007
ARQUEÓLOGO DE SUA PINTURA
por Nicole Vitrier
A tela é lisa, como se fosse lustrada. Ela irradia, mas não brilha. Ao contrário. Ela
é doce tanto ao olhar quanto ao toque. É uma rocha polida pelo tempo, erodida pelo
vento, mar e chuva. É a natureza que empresta estas cores. Tudo começa com o depósito
dos sedimentos, camadas sucessivas, imperfeitas, aparentemente imperfeitas. O processo na realidade é tão lento e complexo que desafia a análise. E, aliás, quem realmente
deseja compreender? A matéria se agregou com a matéria, enquanto que ao mesmo tempo
a erosão interage em um movimento não contrario, mas complementar.
E é deste processo natural que Ricardo Camarano se inspira e constrói sua técnica
quando realiza estas telas sobre as quais ele representa “as imagens que vemos sobre
as coisas”, como diz ele mesmo tão simplesmente. Ele também cobre sua tela de uma
camada que deverá em seguida desaparecer para deixar somente o rastro de sua passagem. É um trabalho, sobre o tempo, um diálogo entre a matéria espessa e a memória
lisa, que já existiam antes, profundamente entranhadas e que farão parte novamente,
logo reconhecidas sem nunca haverem sido, não verdadeiramente, se não sob forma de
intuições fugitivas ao limite da consciência.
Cores que escondem cores. O pintor se faz arqueólogo. Ele escava, ele revela , como a
procura de uma antiga cidade. Ele retira sua obra da matéria, repetidamente subtraída
de sua própria tela, começando por um depósito sucessivo de camadas colocadas e retiradas... e enquanto ele escava sua tela, ele recupera a matéria que, na natureza não
saberia se perder, mas transformar-se em uma outra.
A pintura se faz então escultura, ela toma vida sob uma nova forma e com ela, ao lado,
a margem continua a participar de toda a obra.
Agora o que resta ao artista é simplesmente desaparecer. Ele apaga cuidadosamente
todo rastro de sua passagem, para deixar uma pintura à flor da tela. Obra de ninguém.
Suprema ambição.
A escultura dos fragmentos
Ao longo das costas rochosas nascem ao fio dos tempos, sob a ação conjugada das ondas,
do vento e da chuva, formas, frutos de um acaso improvável. Dentro de um fluxo incessante, novas figuras aparecem segundo um processo infinitamente lento de degradações
dos relevos, enquanto que, ao mesmo tempo, se opera a fundição das matérias arrancadas, pouco a pouco transportadas e acumulada s dentro de uma outra dimensão.
O artista não procede de outra forma, ele mesmo erode sua tela e com os fragmentos
desta matéria produzida e acumulada ele faz nascer uma forma coerente, passando de
uma obra lisa a uma obra em relevo.
2008-2010
AS PELES DA COR
por Kátia Canton
“Mas para cada epiderme seria preciso uma tatuagem diferente, seria preciso que ela evoluísse
com o tempo... A um desenho colorido ou abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e sincera,
onde se
exprimiria o sensível. A pele vira porta-bandeira, quando porta impressões.”
Michel Serres
Eis que a produção de Ricardo Camarano virou uma espécie de pele. Uma pele colorida
e viva, que se desgasta pela ação da mão. Uma pele que engrossa e que depois sofre
feridas, de cortes e raspagens, e que se acumula em sobras. Uma pele, ainda, que se
desdobra e se abre para fora, por sobre a superfície da tela e que também se redobra
e se curva para dentro, virando pequenas esculturas, que são como pequenas pedras ou
órgãos.
Esse jeito singular de trabalhar tomou corpo lentamente.
Há muito tempo que o artista buscava na natureza a grande referência para a criação
de sua obra. Primeiramente ela era desenhada, pintada e se materializava através da
representação. A operação da arte, assim, acontecia de fora para dentro, a partir da
observação.
Na passagem do tempo, demarcada pelo confronto com paisagens magníficas e a constatação de que a própria natureza seria a obra de arte suprema, a representação tornou-se para ele uma forma de redundância.
Afinal, na percepção do artista, nenhuma construção estética poderia dar conta de
reproduzir aquela grandeza de expressão do sensível.
A construção voluntariosa da forma finalmente cedeu a um outro procedimento plástico e
a uma outra relação de afetividade com a matéria da arte. O artista passou a utilizar
então um concentrado, disciplinado e terno “deixar acontecer”.
Não que este artista brasileiro, radicado em Paris, tenha optado por uma arte que se
traduz num simples jogo com o acaso. Na verdade, Camarano faz uso de um “deixar acontecer” apenas na maneira como atribui densidade às suas peles, isto é, no modo como
envolve as superfícies de suas telas de linho com camadas e mais camadas de cores.
As cores se acumulam na ação do trabalho constante das mãos que deslizam os bastões,
um sobre outro. Assim elas escorregam, se somam, se escondem umas sobre as outras.
A partir daí, a grande pele densa, repleta de dermes de diferentes cores, escondidas
sobre a superfície mais recente está pronta para responder a um trabalho de rotina,
paciência e, sobretudo, precisão de uma ação cirúrgica, feita de cortes e raspagens.
Trata-se, mais do que isso, de uma forma de prece.
Explico: Ricardo Camarano se equipa de facas e goivas e, aos poucos, num mecanismo
repetitivo e constante, vai desgastando, erodindo suas peles de cor em gestos circulares constantes.
Essa circularidade parece emprestar o tom hipnótico dos rituais religiosos, que buscam chegar a uma pureza de sentidos, a um esvaziamento de pensamentos pré-determinados, a um silêncio pleno de encantamento.
As mãos do artista trabalham e rezam essa reza feita de um ritmo orgânico, disciplinado,
constante.
Todo o passado, constituido de um acumulo de cores e textura do bastão a oleo, vai
sendo
revelado nas crostas, nos pedaços, nas texturas que caem. São como as feridas
que cicatrizaram. Sobra a grande pele, marcada por tantas camadas e cores, e sobram as
peles dos restos e das cicatrizes, que se aglomeram agora em acumulos escultóricos.
Há ai uma junção de tempos. Mescla-se um passado-presente que se transforma então num
devir-natureza muito própria desse artista, que sempre a perseguiu.
Camarano, assim, produz um tempo fora do tempo, expressão criada pela pensadora Jeanne
Marie Gagnebin, ao referir-se ao Tempo Reencontrado, último volume da obra de Marcel
Proust, Em Busca do Tempo Perdido:
“...o presente não é somente ponto de inflexão indiferente entre o antes e o depois; e o passado não é simplesmente algo encerrado e morto. Em seu encontro recíproco, ambos, passado e
presente, assumem uma intensidade sensível que lhes outorga novamente aquilo que parecia perdido: a abertura sobre uma dimensão desconhecida, a abertura sobre o possível...”
Com seu mecanismo pictórico, Camarano inaugura a dimensão de uma natureza inventada,
feita de peles, pedras, órgãos, cascas, tudo estranha e magicamente colorido, repleto
de veios e desenhos.
Em seu procedimento artístico, o que ele almeja não é pouco. O que o artista deseja
é uma junção entre passado e presente, entre natureza e cultura, entre matéria e espiritualidade, entre a carne da pele e a alma da síntese.
Ao mesmo tempo, o que ele procura é um processo de simplicidade extrema, que busca ir
ao encontro do início da arte, de seu mecanismo primordial de existência.
Algo como o que diz o poema, que Manoel de Barros escreve em seu Livro sobre Nada:
“Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.”
(p.47)

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