Microsoft Word Viewer 97 - canto_de_bode
Transcrição
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© Mariët Meester (1994) CANTO DE BODE De: Bokkezang. Uma tragédia contemporânea, romance. Tradução de Arie Pos Yolan está sentada diante do seu amigo Jo que não fala há mais de um mês. É uma pessoa, um animal ou uma estátua? Numa tentativa de o reanimar, Yolan conta-lhe a sua história comum. Quando tinha dezoito anos deixou a Holanda para ir atrás dele até França, onde ele vivia no meio de uma manada de animais a que ela chama «nannies» ou «mulheres». Era um mundo para si completamente estranho. (...) No Inverno, diz ela a Jo, tinha de andar todo o santo dia com as botas de borracha da lixeira a que tinhas colado dois pedaços de uma câmara-de-ar. Todos os dias vestia as mesmas calças, e a cada passo um dos canos da bota batia contra o interior oposto da perna das calças, pondo-a ainda mais lamacenta. Um dia as botas agarraram-se de tal maneira à lama absorvente que ficaram presas enquanto eu continuava a andar, e caí redondamente. A roupa sempre fora o meu principal meio de expressão, mas agora servia-me apenas como protecção contra o frio. Tudo quanto vestia ficava sujo e amorfo, eu própria tinha de manter-me muito atenta para não me tornar de um momento para o outro também informe. Em parte alguma a Natureza apresentava separações claras ou planos rasos. Debaixo dos pés, a areia convertia-se lentamente em relva, os muros que dela emergiam encontravam-se cobertos de musgo, a linha de superfície tornara-se ondulada com o passar dos anos, e mesmo na nossa cozinha as portas tinham tendência para empenar e as traves mostravam rachas cada vez maiores. Procurei encontrar um escape, o diário a que dera início não me satisfazia. Tivesse eu tido pincéis, tela e tintas, e talvez tivesse começado a pintar, mas não via maneira de obter bons materiais, faltava-me o dinheiro e, além disso, teria de ir à boleia até à única vila nas redondezas, uma vila com apenas cinco mil habitantes dos quais, sem dúvida, nenhum pintava. Por isso, voltei a atenção para as riquezas da lixeira, com a desvantagem, porém, de estar sempre na insegura expectativa de encontrar qualquer coisa útil. Se algo me seduzisse nunca podia ter a certeza de voltálo a encontrar no dia seguinte. Comecei, pois, a coleccionar caganitas do aprisco. A minha provisão era como uma nogueira que podia abanar pelo ano fora, como um copo do qual podia beber ilimitadamente, pois todos os dias havia novas remessas para apanhar. A ideia de fazer isso com excrementos de qualquer outro tipo de animal que não fossem ruminantes metia-me nojo, mas para mim, naquele lugar, eram as formas que mais pareciam moldadas por mãos humanas. «Que vais fazer delas?», perguntaste imediatamente, um tanto desconfiado. Bom, a isso achava-me incapaz de dar uma resposta clara. Se te tivesse dito que ia triturá-las e comê-las a seguir, provavelmente terias ficado satisfeito. Sentia pura e simplesmente necessidade de estar ocupada, de criar qualquer coisa que me permitisse lidar com os processos naturais que se apresentavam ali mesmo debaixo do meu nariz. Caso contrário, acabaria esmagada pela atmosfera do ambiente onde viera parar. Nunca brigámos, e creio mesmo que pensávamos nunca vir a ter uma briga, mas justamente quando, procedendo a uma experiência, pus a cozer no fogão um punhado de caganitas num tacho, levantaste-te da cadeira de um salto dizendo que estava a portar-me de forma ridícula. Para que nos serviria um tacho de merda cozida? Irado, arrancaste-me o cabo das mãos, abriste a janela, e lançaste fora o tacho, com conteúdo e tudo. Que eu devia começar a cozinhar a sério, gritaste zangado, em vez de deixar para ti essa tarefa diária. Preparar comida era bem mais útil do que cozer esterco. Por que não cultivava eu uma horta, seria outra maneira de aplicar boa parte das minhas energias de sobra, com, pelo menos, algum proveito, pois os legumes vendidos na aldeia eram demasiado caros. «Não percebo nada de horticultura!», exclamei, indignada. «Nem quero perceber.» Há muito me tinha dado conta de que não devia prosseguir assim, caganitas cozidas não tinham qualquer interesse, queria era tentar conservar formas em vez de perdê-las. Mas tratar de uma horta ainda menos me atraía. «Outros, melhor qualificados, podem cultivar a minha comida. Se tivesse dinheiro suficiente não me importaria com quanto teria de desembolsar a pagá-la.» «Que ideia decadente», foi a tua resposta sarcástica. «É tudo culpa da tua mãe!», atirei-te então de chofre, saindo porta fora à procura do tacho. Durante as jornadas diárias com as mulheres, tinhas-me transmitido, pouco a pouco, certa imagem da tua juventude, uma história repleta de jaquetões azuis, passeios domingueiros, «o que hão-de pensar os outros», e sempre aquele desejo de sair, de fugir, de ceder à tua verdadeira natureza. Nessa tua história, surgiam de vez em quando uma viagem secreta de trotineta, uma bateria feita de alguidares e potes, ou uma panela cheia de pirâmides de batata, mas com muita autodisciplina e grande sentido de responsabilidade tinhas conseguido, quase sempre, reprimir aquelas tendências. Até renunciaste conscientemente à puberdade. Quer dizer, renunciaste a ela em casa, no prédio onde vivias, mas manifestando-se a dobrar na escola. Dei com o tacho, colhi a pasta húmida de entre os pés de relva. Esforcei-me por fazer deslizar a maior parte da papa de novo para dentro do recipiente. Quando regressei à cozinha com os restos recuperados, encontravas-te lá, com as mãos na anca, diante da janela aberta. «Recuso-me agradar seja a quem for», disse-te rispidamente, «só quero experimentar o mais possível, quero investigar. Tu estás sempre a agradar, a cuidar e a tratar, a lidar e a labutar, assim foste educado, é o que te ficou metido na cabeça, mesmo agora, a novecentos quilómetros dela não consegues escapar àquilo.» «Não tenho nada a ver com a minha mãe», gritaste, fora de ti. «Até tu andas sempre a seringar-me os ouvidos porque as minhas roupas não estão limpas, igualzinha a ela.» «Se não tens nada a ver com a tua mãe», gritei, «por que achas tão difícil telefonar-lhe, por que andas sempre a adiar?» Num gesto provocador, entrei de novo na cozinha com o tacho em frente da barriga. «Então, diz lá, porquê? Desde há meses que estou a tentar convencer-te a fazê-lo, mas não o fazes. A pobre mulher deve estar inquietíssima.» Para isto não tinhas resposta, cabisbaixo desapareceste lá para fora, passando por mim. Assustada com as minhas próprias palavras, segui-te. «Jo, desculpa», tentei, humilde. «Foi sem intenção.» Viraste-te e murmuraste que também pedias desculpa, que também fora sem intenção. Que eu devia fazer o que entendesse ser melhor. Para celebrar a reconciliação, fomos os dois à lixeira, pois, aí, ambos nos sentíamos em casa, os objectos que por lá havia espalhados tanto podiam ser úteis como estéticos. Tu animaste-te com um batedor de natas enferrujado, com duas rodinhas que moviam a hélice, eu fui atraída por uma tina oval esmaltada. No regresso, parámos na única cabina telefónica da aldeia. Com a moeda especial, que sempre usava para telefonar aos pais, pescavas dentro da ranhura mas, pela primeira vez, o truque não resultou, a linha de costura atada à moeda partiu-se. Por mais que tentássemos, a ranhura continuava bloqueada. Por enquanto, não precisarias de tentar novamente. No dia seguinte, lá estava eu uma vez mais a apanhar caganitas frescas no aprisco. As meninas murmurantes davam-me ternas turras, tentando meter o focinho atrevido no saco de plástico, porque queriam saber que tinha eu ali dentro. Gostava dos seus corpos maciços, do cheiro a feno e palha, do som matraqueado que os rebuçados castanho-escuros faziam ao serem metralhados para fora dos seus orifícios, que preferia não ver. Ainda estavam quentes quando os apanhava, de vez em quando tinha de reprimir o impulso de pôr um na boca. Só me interessavam os espécimes mais duros, a consistência e o cheiro dependiam do estado de saúde da produtora. Se esta não se sentisse bem, podia produzir formas que variavam entre uma tira de bolinhas pegadas e um torrão cujas bolinhas apareciam irreconhecíveis. Se fosse uma papa do tipo molho ou sopa, era porque o animal se encontrava gravemente doente. (...) Trinta páginas mais adiante no livro, Yolan recorda-se como, em França, continuava as tentativas de perceber e subjugar a Natureza. (...) Fui a uma mercearia, diz ela a Jo, que continua sem falar, porque pensava cozer ou secar bolinhas de barro, e depois pintá-las de castanho, de modo a não se distinguirem de esterco. Infelizmente, não havia à venda barro de nenhuma espécie, a única coisa que consegui foi um saco de papel com uns enfarinhados pedaços verde-cinza que era preciso regar com água e que absorviam o líquido efervescendo. Informaram-me que eram muito utilizados como medicamento e que também podia colocá-los no rosto como uma máscara. De regresso a casa, experimentei logo. A camada pastosa transformava-se numa couraça, parecia uma pessoa cujos ossos estão do lado de fora. Sentia-me como uma noz, ou uma tartaruga, ou uma ostra. Os meus olhos ficaram escancarados à força, e só fui capaz de voltar a falar ou rir após ter retirado a massa da cara, enxaguando-a com bastante água. Com infinita paciência consegui criar caganitas culturais com esta argila. Era quase impossível distingui-las das verdadeiras. A algumas fazia-lhes uma pequena amolgadela de um lado e um biquinho do outro. No fundo, apenas o peso não correspondia, estas eram muito mais pesadas. No espaço de uma hora fazia aproximadamente a mesma quantidade que uma mulher conseguia produzir em dez segundos. Gostaria de falar com alguém que percebesse o que eu fazia, de preferência um artista. Entretanto, continuava a moldar caganitas, e já estava há vários dias ocupada nisso quando vieste ter comigo para te ajudar no aprisco. Tinhas, dizias abatido, encontrado Jane com uma enorme barriga inchada, as patas para o ar como paus rígidos. «Estará morta?», perguntei, arregalando os olhos. «Sim, está morta. Jane morreu.» Tinha de ajudar-te a içá-la para dentro do carrinho-de-mão, dizias, para poderes colocá-la fora da vedação, até o serviço de cadáveres vir buscá-la, era demasiado grande para ser enterrada. Segui-te até ao aprisco. Bem sabia que Jane era idosa, mas, não obstante, tive de virar a cara ao puxar-lhe pela cabeça e pelos cornos enquanto tu erguias a parte posterior do seu pesado corpo. Transportaste-a para a rua no carrinho, e pela enésima vez ouvi o chiar daquele portão horrível. Refugiei-me de novo na casa grande e lavei as mãos. Depois, fui para o quarto e fechei a porta à chave. Talvez durante uma hora, continuei a mexer num recipiente de argila com um pau, escutando os sons efervescentes familiares. Pus o nariz por cima e inalava de perto o cheiro velho e poeirento, isto consolava-me. Enquanto estava debruçada ouvi-te subir as escadas. Tentavas empurrar a porta do atelier, mas como não conseguiste, bateste discretamente. «Yolan, estás aí?», ouvi, e a tua voz tinha um som tão inseguro que pude adivinhar ter acontecido qualquer coisa mais. «O que é que se passa?» «Morreu outra», disseste a meia voz, e quando te deixei entrar, sem dizer palavra, quase não ousavas levantar os olhos para mim. «Foi a Marlene.» Desconsolados, deixámo-nos cair na cama, um ao lado do outro. Ainda com o recipiente de argila na mão, levantei-o até ao nariz. «Já não sei», disse, desalentada. «Já não aguento mais. Não compreendo isto e não quero isto.» Marlene era uma criança de seis meses. Faltava pouco tempo para o próximo período de acasalamento, dentro em breve haveria novos mortos a caminho. Tentei suspirar. O ar saía entrecortado. «Se não fosse aqui para cima, podias trazê-la no carrinho-de-mão. Isto dá cabo de mim, tenho de fazer algo com isto. Só compondo imagens consigo controlar tamanho sem sentido.» «Acho que posso com ela.» «Achas? Então, podias ir buscá-la? Talvez devas pôr primeiro um pano velho nos braços.» «Não Yolan», respondeste, e houve um breve silêncio. «Não a trago nos braços, pois já não está viva. Agarro-a pelas patas, duas em cada mão.» Desapareceste escada abaixo, coloquei o recipiente de argila na secretária. Felizmente tinha plástico usado guardado. Espalhei alguns pedaços pelo chão de madeira num dos lados do atelier. A criança veio carregada para ali como gado. Tal como Jane, tinha a barriga inchada. Podiam ser lombrigas, talvez estivesse cheia de lombrigas, a formigar-lhe na barriga inchada. De qualquer maneira, tinha cheiro, embora fosse exagero dizer que fedia, era mais como se uma pessoa com mau hálito tivesse entrado no quarto. Deitaste Marlene de lado no plástico, mesmo debaixo da janela que dava para a frente da casa, numa das pequenas torres. Não tinha muito ar de morta, talvez estivesse apenas a dormir, mas, na tua opinião, devia-se isso ao facto de ela estar coberta de pêlos, as nannies mortas nunca tinham o aspecto de um invólucro vazio. Quase de imediato, apareceram por cima dela duas carraças castanho-alaranjadas que apanhaste num gesto rápido, esmagando-as entre as unhas. O sangue saía aos salpicos. Pouco tempo depois, vi também outros insectos, pequenos, a mexer, no chão. Senti comichões por toda a parte, no nariz, na cabeça, e também tive de coçar as pernas. Olhávamos para a morta sem dizer palavra. Eu estava nervosa. Com o corpo a tremer, peguei no recipiente de argila da secretária e tirei um pedaço com os dedos. Depois, curvei-me e apliquei a argila na cabeça da morta. Protestaste um momento, mas deixaste-me continuar após o meu gesto imperativo. Quando ambos os olhos entreabertos desapareceram sob a camada verde, fiquei um pouco mais calma. Agora, já não era quase uma mulher nova, mas uma coisa. A seguir aos olhos, cobri toda a cabeça e as duas orelhas, uma das quais estava vermelha de sangue. Depois, o pescoço, e em seguida quase toda a carcaça desapareceram cobertos por uma camada de barro. Emergia uma forma bela, quase abstracta, um objecto moldado tão ao natural que parecia ganhar vida. «Deita-te ao lado dela», disse-te com secura. «Aí, com a cabeça junto à dela». «Tens alguma razão especial para isso?» «Tenho.» Hesitavas. «Por favor, Jo. Fá-lo por mim.» Deitaste-te sobre o plástico, com a cabeça a uma distância segura da forma húmida. «Não te assustes, também vou fazer uma coisa a ti.» Numa rendição absoluta permitias que cobrisse também a tua cabeça de barro, até nas pálpebras apliquei uma camada fina. A boca, os ouvidos, de todos os teus orifícios deixei apenas livres as narinas. Encontravas-te deitado imóvel, «virado para ti», pensava eu, e assim continuavas quando arrastei a pequena imagem um pouco para a frente e levantei a cabeça, para que pudesse pousar o focinho cuidadosamente na tua testa de argila. A seguir, besuntei o teu cabelo comprido. Ganhava consistência, agora podia utiliza-lo para encher o espaço vazio entre a tua nuca e o peito dela. Teria preferido cobrir o teu corpo completamente, por cima da roupa, se preciso fosse, mas o barro estava a acabar, no recipiente já não havia o suficiente para prosseguir. Por isso, fechei o olho direito e coloquei a mão, com os dedos esticados, entre mim e o objecto bicéfalo, cobrindo a parte vestida do teu corpo para me dar a sugestão de te ter mumificado da cabeça até aos pés. Agora era impossível ver onde o ser humano começava e acabava o animal. Finalmente, tinha poder sobre a vida e a morte, deixara de existir diferença entre o que respirava ainda e aquele cujo coração se silenciou. Qual dos dois se encontrava numa ou noutra fase, não era claro. Tu podias ter morrido, a ela tinha-a reanimado. Ambos eram feitos da mesma matériaprima, ambos se encontravam entre imagem e organismo. Quem me dera estar deitada junto de vocês, fundir-me com o homem, o animal e a morte, debaixo dessa consoladora camada de barro. (...)