Algunas hipótesis comparativas Brasil Argentina siglo XX Vicente

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Algunas hipótesis comparativas Brasil Argentina siglo XX Vicente
Algunas hipótesis comparativas Brasil Argentina siglo XX
Vicente Palermo•
Comparar trajetórias políticas ao longo de um século supõe um esforço
muito maior de esquecimento que de memória. Tentarei aqui converter uma
grande quantidade de matérias analíticas muito heterogêneas, em algumas
conjeturas "popperianas" - elas podem provir de qualquer parte e podem ser
submetidas à corroboração ou à refutação. Ou seja, trata-se de um processo
inverso à tarefa estritamente acadêmica. Em certa medida, estou recomeçando
"desde o zero" meu trabalho.
1. O movimento principal da política no Brasil foi, no século XX, sobre o
eixo regional - entre elites. O poder político flutuou entre o governo
federal e os estados, oscilou no que se denomina atualmente de "eixo
federativo", entre elites centralizadoras e elites descentralizadoras do
poder. O movimento principal do político na Argentina foi no mesmo
século em torno ao eixo social – entre elites e setores sociais
populares. Esta hipótese, acredito, sustenta-se bem se levamos em
conta as periodizações mais convincentes, para cada caso, do século1.
No
que
tange
à
Argentina,
consecutivas
experiências
extraordinariamente significativas de ampliação do sistema político
com patente incorporação de sectores sociais até então não incluídos,
deram passo, não a um amadurecimento acumulativo do sistema
político, mas sim a uma série de contestações reacionárias e reexcludentes - num registro desconhecido no Brasil. Isto é bem claro
até mesmo naquelas experiências políticas que tem dado mais
oportunidade à análise comparativa. O populismo, por exemplo - não
é casual que o conceito de cidadania regulada haja sido elaborado
num brilhante texto brasileiro, não argentino. A própria idéia de
populismo como estado de compromisso, de Francisco Weffort, é
também brasileira. A dimensão de incorporação preventiva e
controlada tem uma predominância no caso brasileiro q ue não tem
no argentino, onde tentar entender o peronismo com esse conceito
seria francamente impossível. O mesmo acontece com nossas comuns
experiências autoritárias. O modelo de O’Donnell de regime
burocrático autoritário é útil para comprender in toto a trajetória do
regime militar brasileiro; porém, no caso argentino somente permite
entender a ditadura implantada em 1966; já a consideração do
“Proceso” obriga-nos a uma conceitualização muito diferente.
2. É verdade que a história democrática argentina no século XX é mais
dilatada que a brasileira; todavia, essa diferença não invalida a
comparação. Minha hipótese concisa é a seguinte: na política
democrática brasileira a dimensão institucional é dominante - as
instituições, de certo, configuraram com efetividade as interações e os
Periodizaciones que me abstendré de hacer aquí no solamente por economía de tiempo sino
también porque no desconozco que estoy ante un auditorio bien informado.
1
atores coletivos - em compensação, a inclusão social tanto como
política tem sido fraca2. No entanto, no caso argentino, a dimensão
inclusiva tem sido dominante com desmedro indubitável da
dimensão institucional. Na política democrática argentina
participaram “todos”. Na política democrática brasileira até 1964 a
estabilidade estava baseada na exclusão – por exemplo, na exclusão
(ou alienação, segundo tenha sido o caso) das massas rurais3. Daí, em
parte, que (paradoxalmente, ou seja, expressando uma contradição só
aparente) a política brasileira aproxima-se muito mais para um
padrão representativo (elitista mas representativo ao final) que a
política argentina. Cujo padrão é decididamente movimientista (uma
análise muito sugestiva e polêmica a respeito é a de Leis e Viola, que
antepõem a "sociedade de corte" brasileira com o mundo social
movimientista argentino). A participação popular no Brasil do século
esteve dominada pelo jogo representativo inter-elite - cooptativo, sim,
mas representativo no senso que confere Manin ao termo. Em
contraste, a participação popular na Argentina, desenvolveu-se na
matriz movimientista - o movimientismo é, a seu jeito, uma forma
representativa, mas contem um potencial de destruição institucional
extremamente poderoso. Entre outras razões porque a representação
movimientista é tendencialmente autoritária e tem um pendor
antidemocrático, e até totalitário (apresenta uma impulsão endógena
a ocupar a "totalidade"). E adota a fórmula populista-antagônica essa mesma que Ernesto Laclau procura prestigiar recentemente pela
América do Sul inteira - como o jeito normal de dar conta dos
problemas políticos e de governo. Agora, problemas existem do
mesmo modo em que chove: a chuva tanto como os problemas são
inevitáveis . Então, o negócio esquisito do movimientismo não é tanto o
exercício da oposição, como o do governo, porque a explosão política
nesse caso é pouco menos que inescapável.
3. Um ângulo complementário de observação permite dizer, estimo,
que a dinâmica política brasileira é uma de composição - uma
“gramática de conciliação” – enquanto que a dinâmica política
argentina é de contraposição (se recuperamos a distinção de raiz
clássica de Norberto Bobbio e Michelángelo Bovero entre política
como composição e política como contraposição). Acredito que este
ângulo seja complementário porque a composição é eficaz, porém é,
por definição, excludente - não há composição se não ficam de fora
terceiros excluídos. Isto tem um correlativo social, na diferente
dinâmica do conflito social ou especificamente de classes, em cada
país, questão que não vou acometer agora salvo para dizer que, na
Estoy hablando de todo el siglo y en perspectiva comparada. Esto no resta valor al proceso de
ampliación de la participación electoral que analiza Wanderley Guilherme dos Santos para el
último cuarto del siglo (que arranca de hecho con el régimen militar).
3 De hecho, no fue la incorporación de las masas rurales, sino un intento, desde arriba, de
llevarla a cabo, lo que catalizó la reacción preventiva militar.
2
perspectiva comparada, dá para ver que a conflitividade social tem
sido, ao longo do século XX, bem menor no Brasil que nos outros
países do Cone Sul com os quais a comparação poderia fazer algum
sentido. Embora o Brasil tenha fundado um partido trabalhista de
novo cunho, o componente de luta social inter-classes tem relevância
explicativa maior na história argentina, chilena ou uruguaia. Deixo
para o leitor tirar suas conclusões no que tange à positividade ou
negatividade deste traço social, mas parece-me claro que o imaginário
social brasileiro, mais hierárquico e menos plebeu que, por exemplo,
o argentino, continua sendo de integração mais que de contraposição.
4. Todo o dito até agora pode se projetar na arena da cultura política.
Um importante pensador conservador mexicano, Escalante Gonzalbo,
estabelece a distinção, de cunho aristotélico, entre repúblicas
burocráticas e repúblicas mafiosas. Escalante argumenta que num
mundo de repúblicas, como é de fato o mundo contemporâneo,
existem duas grandes categorias delas. As repúblicas burocráticas são
aquelas nas quais os governantes são escravos da lei, ajustam seus
comportamentos às leis - aproximam-se ao que, num enfoque menos
cínico, podemos entender como governo (republicano) da lei (rule of
law). Já nas repúblicas mafiosas os governantes servem-se da lei para
tocar adiante seus interesses. Os governantes não são, neste caso,
escravos da lei, mas a lei é um instrumento, apropriadamente
maleável, ao que lançam mão quando necessitam dele4. Seja como for,
se vocês não julgam isto como uma afronta, mas somente como uma
cutucada de um argentino metido, o Brasil do século XX aproximou-se
bem mais ao tipo ideal de república mafiosa. ¿E a Argentina? Bom, a
Argentina tem sido no século XX uma república mal e porcamente.
Tenho dito muitas vezes em ambos os países que, com a corda no
pescoço, perante a obrigação de perfazer uma distinção central com
menos de 15 palavras entre nossas culturas políticas, tentaria salvar o
pescoço dizendo: “enquanto o Brasil é ao inimigo, a lei, a Argentina é
al enemigo, ni justicia.”. Aliás, “ao inimigo, nem justiça” não é uma
expressão que eu tenha imaginado em pesadelos, senão que foi
concebida (ou recuperada) por Juan Perón, mas, gostaria de enfatizar,
fez escola, não somente entre os peronistas, mas também entre os
“gorilas”. É claro que isso tem uma justificativa movimientista, tanto
em uns como em outros: se os inimigos são inimigos da pátria, do
povo, da liberdade, da razão, da justiça, então, ¿por que haveriam de
merecer, pergunta-nos este dictum, nossa justiça? E a validade do
dictum torna-se rotineira, porque todo adversário é “inimigo de”, e
todo conflito de interesses se transforma em “política” de inimizade).
Na Argentina dos extremos tem-se apagado a lei, enquanto que no
Brasil dos extremos tem-se utilizado a lei como instrumento ao
serviço de quem está por condição social-estatal por cima dela. Ainda
Deixo que cada um de vocês decida qual é o seu modelo ideal, sendo que eu não estou tão
certo de qual seria.
4
estamos longe, em ambos os casos, do rule of law (disponho aqui de
pouco tempo para diferenciar este concepto genuinamente
republicano, do conceito conservador de imperio de la ley - y el orden –
na Argentina, Sofia Tiscornia descute recentemente este conceito
conservador e seu utilização atual). Mas, seja como for, aproximamonos de pontos de partida muito distintos. Quando uma pessoa
pretende fazer calar a outra dizendo-lhe "Você está falando com uma
autoridade da República", é quase impossível que a outra não sinta
que a "república" é apenas a garantia que a primeira tem para impor
sua vontade injusta e perpetuar a desigualdade que o favorece. Como
discute um imperdível ensaio de Guillermo O'Donnell (que parte do
pequeno clássico do antropólogo brasileiro Roberto Da Matta,
Carnavais, heróis e malandros), lá onde os setores subalternos podiam
“escolher” apenas entre fazer caso ou morrer de fome, prosseguiu
imperando a deferença. A legitimidade das instituições republicanas
talvez não fosse maior, mas os pobres e os trabalhadores baixaram a
cabeça ante a pergunta ominosa: "você sabe com quem está falando?". Lá
onde, como na Argentina, os setores subalternos tinham
possibilidades reais de optar, mas, ao mesmo tempo, já as instituições
republicanas estavam profundamente afetadas por um padrão
oligárquico, tomou vulto a rebeldia plebéia - aquela que constitui um
universo simbólico igualitário onde qualquer diferenciação entre os
indivíduos é suspeita de ser uma injustiça social5. À pergunta que
tinha por intuito por o afoito en su lugar, ele respondeu "a mí qué
cuernos me importa" cristalizando assim uma oposição muito pouco
feliz entre democracia e república.
5. Mas, a cultura política não se limita às respectivas relações entre
política, sociedade e lei. Atinge também questões identitárias. E, no
que tange a estas questões, gostaria de acrescentar alguns pontos
sobre o padrão mais elitista – representativo num caso e movimientista
no outro. Falando sem rodeios, acredito que no Brasil temos
populismo e nacionalismo deEstado enquanto que na Argentina temos
populismo e nacionalismo de sociedade. O conceito de Schmitter sobre
neocorporativismo estatal de pouco serve-nos aqui porque,
estruturação autônoma de interesses (própria do modelo ideal de
neocorporativismo societal) não encontramos em nenhum dos casos.
Mas a potência societal do populismo argentino – como complexo
sociocultural, histórico e político extraordinariamente denso – não
tem equivalência no Brasil, onde, em compensação, o populismo
apresenta um legado estatal perdurável indiscutivelmente bem
sucedido – tanto que na década dos 90 uma agenda democrática de
reformas assim chamadas de neoliberais se concretizaram presididas
pela retórica da desmontada do estado varguista, retórica essa
utilizada tanto por detratores tanto como por partidários. Não quero
Na Argentina do século XX, acredito, seria impossível encontrar adhesivos nos carros, como
aqueles que se encontran no Rio de Janeiro, que reçam reencarnação: uma questão de justiça.
5
exagerar, mas o populismo argentino legou atores políticos e legou
culturas, enquanto que o populismo brasileiro legou Estado e
instituições. Nesse sentido, resulta útil o instrumental analítico
desenvolvido por Edson Nunes sobre a “gramática” política
brasileira, porque dá para insinuantes contrastes quesito a quesito:
clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático, universalismo
de procedimentos.
6. O mesmo acontece, no meu entender, com o nacionalismo.
Começando pelo fato de que o nacionalismo argentino e o brasileiro
sejam tão diferentes. Parece-me evidente que o nacionalismo
brasileiro e bem menos tóxico que seu irmão argentino. O
nacionalismo argentino é atormentado, carrancudo, é uma flor
cultivada no fértil terreno da decadência (não estou sugerindo que a
Argentina seja um país decadente, não cabe discutir isso aqui), e leva
um amargo pingo de ressentimento. É um nacionalismo que pode,
para lançar mão de um exemplo recente, dar licença para a reação
crispada (do governo e de uma parte da sociedade argentina) perante
Uruguai na dissensão sobre as “papeleras” em Fray Bentos (reação
que contrasta de modo patente com aquela do governo brasileiro na
dissensão com a Bolívia sobre a Petrobrás – embora não faltaram
intelectuais que flamejaram a bandeira da dignidade nacional, não
tiveram, ainda bem, a repercussão nem social nem oficial que eles
esperavam). É evidente que os exercícios de recuperação da
autoestima nos quais sucessivos presidentes acreditam necessário
ingressar – ou incorrer, não é momento de discutir isso, mas sim de
observar que FHC e Lula têm apresentado uma perfeita continuidade
neste ponto – levam em se uma certa empolgação nacionalista, mas
isso tem um tanto de festivo e, sobretudo, não tem a típica indignação
argentina contra o mundo. "Puxa – pergunta-se Lula – como é que nós
brasileiros podemos ter do Brasil uma visão muito mais negativa que
a de fora?" Isto, diga-se de passagem, poderia nos internar em
apaixonantes discussões comparativas de chavões brasileiros, como o
assim chamado complexo de viralata (Nelson Rodrigues), ou a teoria da
jabuticaba, contrastados com chavões argentiníssimos como o mejor
negocio del mundo, o destino de grandeza, e a indignação argentina com
uma comunidade internacional que não termina nunca de reconhecer
"lo importantes que somos” e “el papel fundamental que nos tocaría
merecidamente desempeñar”6. Ou, por que não, com o conceito
En una de mis clases cariocas me atreví con una ocurrencia que tuvo un inesperado éxito: los
argentinos vivimos desconcertados e irritados con el resto del mundo, porque este nunca acaba
de reconocer lo valiosos que somos y de hacernos el lugar que nos corresponde, mientras que
los brasileños viven intranquilos por la posibilidad de que el mundo se de cuenta de que valen
tan poco. Por supuesto, y antes de que alguien me malentienda, el sentimiento de superioridad
argentino es tan infundado como el de inferioridad brasileño. Pero eso, la diferencia entre lo
“real” y lo “percibido” expresada precisamente en el chiste sobre el mejor negocio del mundo
en el caso argentino, no es lo más interesante; lo más interesante es, creo, que esas percepciones
son en sí mismas organizadoras de sendos espacios culturales.
6
brasileiro de miscigenação contrastado com o argentino de crisol de
razas, aparentemente semelhantes, embora tão sugestivamente
diferentes em quase tudo. Mas o tempo não me permite hoje estender
esta digressão, e me obriga a voltar ao nacionalismo. Porque uma
diferença que se acumula com as outras é que o argentino é um
nacionalismo de sociedade, muito enraizado nos atores e grupos
sociais, na cultura e nas identidades políticas, e o brasileiro é um
nacionalismo de Estado: é o Estado, no imaginário social brasileiro, a
expressão principal da nação. Quando, por exemplo, Lula diz, “gente,
se conseguimos fazer uma coisa tão boa como a Petrobrás, como é que
não poderíamos ir para frente?", sabe muito bem de que, para quem e
evocando o que, está falando.
7. E creio com sinceridade que estas diferenças se fazem evidentes na
atualidade, nas formas, nos conteúdos e nas predominâncias das
propostas identitárias, como é o caso do nacionalismo, tão estudado
em seu passado como desatendido – com poucas exceções – na sua
dimensão contemporânea7. O que é e como atua o nacionalismo hoje?
Não tratarei deste assunto agora, mas, estou pronto para argumentar
que existem significativos contrastes nas formas em que, por caso, o
nacionalismo argentino aborda questões tais como a soberania na
Patagonia e o nacionalismo brasileiro o faz com uma questão como a
região amazônica, questão que estamos vendo ano após ano se
deslocar para uma posição mais próxima ao centro da agenda política
brasileira e que, a meu entender, está destinada a se constituir em um
tema crucial da política e da cultura política do futuro cercão.
8. As diferenças que tentei identificar, assim mesmo, podem-se projetar
ao plano das dinâmicas institucionais, quer dizer, das morfologias
político institucionais de cada país e dos processos políticos.
Examinemos brevemente, sem mais, as últimas décadas,
democráticas, do século, em ambos os países. A Argentina demorou
quase uma década, e Brasil também, em conseguir estruturar
coalizões democráticas reformistas relativamente estáveis – Menem
desde 1991 e FHC desde 1995. Foram capazes de estabelecer núcleos
de governabilidade, recuperaram capacidades estatais, puderam
fazerr política económica e formular e implementar uma agenda de
reformas. Mas, qual foi o tópico político, a arena política central em
cada caso? Qual foi a capacidade de criação institucional e de
perduração em cada caso? Atrevo-me a dizer que o cerne da
interação no caso brasileiro foi institucional e representativa: a
Presidência, o Congresso, o relacionamento entre o presidente, a
Presidência e o Congresso. Algo bem diferente registrou-se no caso
argentino: lá as interações tiveram por atores privilegiados os agentes
económicos e as corporações, com pivô personalizado no presidente,
7
Entre esas pocas excepciones se cuentan: Alejandro Grimson (una completísima compilación, EDHASA
2008) comparativa Argentina y Brasil y Vicente Palermo, Sal en las heridas, 2007, y Del otro lado del río,
compilación EDHASA, 2007), para Argentina.
que era ao mesmo tempo chefe de governo e articulador excludente
da coalizão. E as diferenças na criação institucional-estatal, na
consolidação de atores políticos no jogo de governo – oposição em
torno da gestão reformista, e a continuidade de políticas, são
notórias8.
9. As vezes fico com a impressão de que os cientistas políticos damos de
lambuja que o campo da cultura seja para nós um perigo de queda no
diletantismo. Creio que vale a pena atentar mais e melhor esse campo
e dialogar com quem com seus próprios meios e sem muito precisar
de nós ocupa-se dela, como os antropólogos. Gostaria então de
exemplificar o ponto chamando a atenção para um cruzamento
extremamente insinuante, e muito pouco estudado, entre política e
cultura: o mundo dos jargões políticos. Porque se ficamos imersos em
nossos próprios âmbitos nacionais, talvez não encontremos nada de
interessante nisto; mas, se saímos deles para comparar, percebemos
que as diferenças são tão assombrosas quanto expressivas.
É em Emilio de Ípola e Juan Carlos Portantiero, parafraseando, se não
me engano, a Althusser, já não lembro em que texto, que me deparei
com a mais bela definição metafórica de política que eu conheça. Citoa de memória: “es ese espacio tan cercano a la muerte, pero erigido contra
ella, donde la palabra encuentra su lugar”. Bom; o vínculo entre a política
e as palavras – ou de outro modo, a relação entre a política, as
palavras e a morte – foi muito distinto no Brasil e na Argentina do
século XX. Na Argentina as palavras estiveram próximas demais com
a morte e a política tem sido um espaço erigido com muros precários
demais contra ela. É claro, poderão vocês me dizer que este é também
o caso do Brasil, não sei. Sei sim que as famílias de palavras políticas
são muito diferentes. Não há no Brasil, por exemplo, nada semelhante
a uma família inteira de palavras interditadas durante anos como de
fato foi o caso na Argentina (as palavras peronistas: peronista,
justicialista, Perón, Evita, marcha peronista e outras que por anos
estiveram proibidas por lei9. No Brasil a palavra zurdo, tão importante
no léxico político argentino, não tem um equivalente aceitável – está a
palavra trosco mas sem a preeminência de zurdo, e com um alcance
social bem mais reduzido. E a mesma coisa acontece com sua
antípoda, porque a palavra facho, que não é de jeito nenhum, devo
esclarecer, apenas um irmão coloquial de fascista, também não tem
seu análogo funcional ou semântico no jargão político brasileño.
Léxico no qual a expressão correr por izquierda, tão comúm na
Argentina, não quer dizer nada10. Enquanto que gorila, contrera,
peronista, antiperonista, levam-nos de chofre ao mundo das
No toda la explicación de estas diferencias reside en el punto que estoy discutiendo aquí, pero
creo que es una variable ineludible a la hora de procurar explicar.
9 E que nos legaram en la expresión el-que-te-jedi un hijo vergonzante: aquel que te dije pero que
no puedo nombrar.
10 O en el mejor de los casos es demasiado técnica, demasiado especializada. En google aparecen
deportes.
8
identidades radicalmente enfrentadas da Argentina do século XX, as
identidades que não se definem por positividade e adversatividade
mas sim por oposicionismo: ser anti-peronista é o identitário por cima
das identidades prévias, assim como ser peronista supõe – no século
XX – um mandato identitário de peronización da nación. No Brasil,
alguma coisa apenas muito tenuamente parecida tem que ser
“descoberto” por cientistas políticos, que, além disso, precisam lançar
mão de metáforas futebolísticas para explicá-la: Fábio Wanderley Reis
sustenta que a política eleitoral brasileira esteve caraterizada por algo
que chama de “síndrome de Flamengo”, definida pelo eixo oposição –
situação. Inclusive um sociólogo paulista jovem e culto desconhece no
vocabulário brasileiro a palavra sipaio, sendo que o termo originário
equivalente, cipayo, disfruta ainda hoje duma popularidade,
redefinido no jargão político argentino, bem maior de aquela que eu
preferiria que tivesse. Seja como for, a grande família de palavras
políticas da Argentina do século fala-nos de um mundo muito
diferente ao mundo que pode-se entrever no jargão brasileiro
correspondente: caudillo (que tem muito pouco a ver com o brasileiro
coronel), montoneras, o sintagma civilización y barbarie, causa nacional,
reforma universitaria, movimiento, gorila, oligarquía, gobierno nacional y
popular, partidocracia, proyecto nacional, demoliberal, intransigencia,
patota, e os irmãos gêmeos que se odeiam, dictadura y tiranía. E
também está o patriarca patria: patria socialista, patria peronista, patria
metalúrgica, patria contratista, etc., e o patriarca aumentativo azos:
cordobazo, rosariazo, santiagazo, etc., e, evocando a capacidade
argentina de perfazer e aturar choques, rodrigazo. Que eu saiba, por
exemplo, tiranía pouco ou nada nos diz de específico no Brasil, em
quanto na Argentina tenemos primera tiranía, segunda tiranía, assim
como a oposicão hipócrita, por parte de nosso liberalismo, entre
tirania (popular) e ditadura provisional. Os vocábulos em portugués,
é claro, existem, mas com significados y predominâncias
completamente diferentes, como é o caso de movimento, que no
Brasil faz alusão ao MDB (PMDB) ou aos “movimentos sociais”. Não
sei tão bem como vocês quais são os membros conspícuos da família
brasileira de palavras políticas mas, modestamente (caso vocês
estejam bem predispostos para acreditar no oxímorão argentino
modesto), posso sim apontar o que eu vejo. Vejo que no Brasil se
despolitizaram palavras, como é o caso do termo camarada, ou não se
chegaram a politizar palavras, como é o caso de esquerda, ainda
amarrada demais ao que é considerado torto, contrário ao que está
bem porque está direito. E também vejo como algumas palavras que
registraram no século XX uma trajetória melhor sucedida, tiveram um
leito fundamentalmente institucional mais que societal. Tal é o caso
das palavras cidadão e cidadania, que tem atingido sua refulgência da
mão da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. E conjeturo que
palavras como casuismo, voto de cabestro, coronelismo, corporativismo,
clientelismo, patrimonialismo, cartorialismo, peleguismo, cooptação, Estado
Novo, revolução legalista, abertura política (a palavra transición não
forma parte do léxico político argentino, só do cientista político),
fisiologismo, presidencialismo de coalizão (acredito que nenhum jornalista
político brasileiro utilize o sintagma menos de dez vezes por ano),
esplanadeiros, orçamento participativo, próprias do léxico político
brasileño, são marcantes de um contraste nítido demais com o
correspondente argentino. Mas, também, estão os patriarcas do
nacional desenvolvimentismo – termo que, comparado con nosso
paupérrimo desarrollismo (e não estou me referindo aos desempenhos
históricos de Juscelino e Frondizi, senão ao valor e à carga semântica
dos vocábulos no século), é como comparar um titã com um alfenim:
o petróleo é nosso, Petrobras, 50 anos em 5, e ainda milagre económico,
modernización conservadora e modernização pelo alto, así como isolamento
burocrático, anelos burocráticos, ínsula de eficiência. Ou seja, os termos
que evocam o Estado e o nacionalismo de Estado tão, a meu entender,
tipicamente brasileiros e tão diferentes ao nacionalismo argentino.
Por prudência, evitei nesta exposição falar muito do século XXI, mas
não posso me poupar de fechar o ponto com uma graça que, acredito,
vem a calhar aqui muito bem: enquanto que a aquisição mais recente
do jargão político brasileiro é anfíbio (alto funcionário que atua em
áreas estratégicas ou com acesso a informação valiosa, que costuma
tomar licença sem remuneração para prestar consultoria a empresas
privadas valendo-se de informações privilegiadas, e que quando
retorna ao serviço público atua de modo a favorecer seus clientes,
segundo a explicação de Jorge Hage), o caçula, por enquanto, da
correspondente família argentina, é autoconvocado (vecino que
participa en puebladas de protesta con diferentes formas de
interpelación mediática y afectación de derechos de terceros).
Estas hipóteses podem ser corretas ou erradas mas, em qualquer caso,
me importa dizer que não as estabeleci ex nihilo, como vindo do nada, nem
diacrónica nem sincrónicamente. Diacronicamente, porque a história do século
XX sustenta-se, é obvio, por sua vez numa história, aquela do século XIX, com
escravos, Império, república, legitimidade republicana e guerra da
independência, guerras civis, federalismo para manter a unidade e federalismo
para obter a unidade (tomando a sugestiva distinción de Stepan no caminho de
Rikker), exército nacional (a relação entre exército e nação tão diferente no
século XIX brasileiro e argentino11), projeto tabula rasa de um nação sobre um
“desierto”, imigrantes, nacionalismo liberal, estado poderoso em algumas
dimensões no Brasil muito diferentes às correspondentes na Argentina,
educação sarmientiana, homens livres no Brasil escravocrata (Roberto
11 No Brasil, como muestra Doratioto, fue solo a partir de la guerra del Paraguay que el ejército
pudo construir una identidad asociada ya no al Imperio sino a la nación, pero paulatinamente.
La preocupación está, a mi entender, vivamente presente en las páginas de Os Sertões,
redigidas por Euclides da Cunha a fins do século.
Schwarz), deferência social e alienação política com mix desemelhantes – enfim,
tudo aquilo que configura as condições para uma história dos sectores
populares tão diferente. E sincronicamente, porque de certo cada uma das
hipóteses ou conjeturas que discuti aqui pode imbricar-se com os processos do
próprio século XX, com os dramas, as lutas, as lideranças, os conflitos, as
controvérsias, as gestões de governo, os períodos de depressão e de
prosperidade, as esperanças, que constituem a história desse século. Mas
encarar essa tarefa vai além do que posso fazer nesta apresentação.
• Texto apresentado no seminário Política e Sociedade na Argentina e no Brasil: Estado,
Democracia e Cultura, Departamento de Ciéncia Política, Universidade Federal de Minas
Gerais, junho de 2008. Desejo agradecer a Rafael Mantovani pelos úteis comentarios em base a
um rascunho prévio.

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