Livro carvalho neto - Loja Maçônica Cotinguiba
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Livro carvalho neto - Loja Maçônica Cotinguiba
Carvalho Neto VULTOS DA MAÇONARIA Maconaria Carvalho Neto.indd 1 07/11/2013 10:27:24 Todos os direitos desta edição reservados ao autor Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, com finalidade de comercialização, ou aproveitamento de lucros ou vantagens, com observância da Lei de regência. Poderá ser reproduzido texto, entre aspas desde que haja expressa menção do nome do autor, título da obra, editora e paginação. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) e crime estabelecido pelo artigo 184 do Código penal. Capa e projeto gráfico: Adilma Menezes Ficha catalográfica Elaborada por Márcia Rosário Teixeira de Souza - CRB-5/890 Nascimento, José Anderson, 1944 N244c Carvalho Neto / José Anderson Nascimento. -Aracaju (SE): Loja Maçônica Cotinguiba; Criação, 2013. 1 9 4 p . ; ( Vu l to s d a m a ç o n a r i a ) . Esta obra faz parte das comemorações dos 141 anos de fundação da Loja Maçônica Cotinguiba do Oriente de Aracaju, e, inaugura também, a coleção intitulada como Vultos da Maçonaria. 1. Maçonaria - Aracaju. 2. Maçonaria - Brasil. 3. Maçonaria - Loja. I. Carvalho Neto, Antônio Manuel de, 1889-1954. II. Título. CDU 061.251 Maconaria Carvalho Neto.indd 2 07/11/2013 10:27:24 José Anderson Nascimento Carvalho Neto VULTOS DA MAÇONARIA LOJA MAÇÔNICA COTINGUIBA ARACAJU, 2013 Maconaria Carvalho Neto.indd 3 07/11/2013 10:27:24 Maconaria Carvalho Neto.indd 4 07/11/2013 10:27:24 Sumário Introdução..................................................................................................7 Biografia....................................................................................................15 Antologia..................................................................................................29 I. POLÍTICA....................................................................................................30 II. RELIGIÃO..................................................................................................62 III. FILOSOFIA..............................................................................................76 IV. LITERATURA..........................................................................................97 V. SOCIOLOGIA E DIREITO................................................................... 139 Bibliografia........................................................................................... 193 Maconaria Carvalho Neto.indd 5 07/11/2013 10:27:24 Maconaria Carvalho Neto.indd 6 07/11/2013 10:27:24 CARVALhO NeTO Introdução 7 Maconaria Carvalho Neto.indd 7 07/11/2013 10:27:24 VULTOS DA MAÇONARIA 8 Esta monografia inaugura a coleção intitulada como Vultos da Maçonaria, como parte das comemorações dos 141 anos de fundação da Loja Maçônica Cotinguiba do Oriente de Aracaju, numa iniciativa do Venerável Mestre, Jilvan Pinto Monteiro, um incentivador da cultura maçônica, em Sergipe. O objeto do trabalho é avaliar a vida e a obra do advogado, magistrado, professor, político, acadêmico, romancista, jurista, ensaísta e maçon Antônio Manuel de Carvalho Neto, ou, Carvalho Neto, como era mais conhecido. A pesquisa que levamos ao público leitor está dividida em duas partes. Na primeira está o perfil biográfico de Carvalho Neto. Na segunda parte, uma antologia da sua obra, dividida nos seguintes capítulos: I Política; II Religião; III Filosofia; IV Literatura e V Direito e Sociologia. Seguindo uma linha científica da obra, estabelecemos como periodização o lapso temporal entre 1918 a 1950, quando o biografado apresentou-se como uma das personalidades mais cultas e atuantes da sociedade sergipana, não só no desempenho de importantes cargos públicos no executivo e na representação do povo na Assembleia Legislativa e no Parlamento Nacional, como por sua proficiente participação Maconaria Carvalho Neto.indd 8 07/11/2013 10:27:24 Carvalho Neto na Maçonaria, no exercício de inúmeras funções honoríficas do Grande Oriente do Brasil e do veneralato, na Loja Maçônica Cotinguiba, onde, em uma das suas gestões administrativas, construiu e inaugurou o prédio da secular instituição, localizado na Rua Santo Amaro, número 171, em Aracaju, um dos exemplares da arquitetura civil do segundo quartel do século XX, com décor eclético no seu frontispício e algumas soluções dos estilos barroco e neoclássico. As fontes usadas nesta monografia incluem apreciações de Maria Thetis Nunes, Manoel Cabral Machado, João Evangelista Cajueiro, Antônio Carvalho Neto, Revistas da Academia Sergipana de Letras, Revistas da Faculdade de Direito de Sergipe, Revista Sergipe Judiciário, Revista Sergipe Forense, leis estaduais e federais relativas à instrução pública, ao Direito do Trabalho e ao Direito Penitenciário, entre outros. Para a construção deste trabalho, adotamos a metodologia da pesquisa bibliográfica, avaliando a escrita de Carvalho Neto, desde os seus ensaios sobre os problemas educacionais de Sergipe, em especial com a sua Cartilha de um Pedagogo,1 onde defendia a função social da educação. Na sua gestão à frente da Diretoria Geral de Instrução Pública de Sergipe, cargo que acumulou de 1919 a 1920, com o de Diretor da Escola Normal, ele pode realizar as suas experiências no tocante à modernização das práticas pedagógicas, difundindo o método de ensino intuitivo, introduzindo na sala de aula equipamentos didáticos para promover uma melhor aprendizagem, tipo planisférios, relógio, jogos e os Mapas de Parker para o ensino da Aritmética. 9 CARVALHO NETO. A. M. “A Cartilha de um Pedagogo I”. Correio de Aracaju. Aracaju, 5 jun., 1919. 1 Maconaria Carvalho Neto.indd 9 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 10 A contribuição de Carvalho Neto para o desenvolvimento educacional de Sergipe e do Brasil ampliou-se a partir da sua atuação como deputado federal, quando integrou, em 1921, a Comissão de Instrução Pública, ao apresentar o projeto Educação dos Anormais, publicado em plaqueta e inserido no ensaio No Parlamento: discursos e projetos.2 Este projeto aparece no cenário nacional como o ponto de partida da legislação que protege as pessoas diferentes e portadoras de necessidades especiais, no Brasil. No círculo fechado da Maçonaria, tanto na Cátedra da Lei3, como no exercício do Trono do Venerável, ou Cadeira de Salomão, Carvalho Neto sempre se pronunciou com temas de Filosofia e de Política, valendo destacar excertos de alguns discursos proferidos em torno dos princípios da dignidade humana, defendidos e consagrados pela Ordem Maçônica, tais como o princípio da Liberdade, o princípio da Igualdade e o princípio da Fraternidade, cujas achegas compõem parte do livro O pensamento vivo de Carvalho Neto, editado em 1988, em homenagem ao seu centenário e organizado pelo seu filho Antonio de Carvalho Neto, com alguns textos desse livro reproduzidos no campo da Antologia, desta pesquisa. Em meio a essas atividades, Carvalho Neto participa da fundação da Academia Sergipana de Letras, em 1º de junho de 1929, assumindo a Cadeira nº 25, do Sodalício sergipano, que tem como patrono o médico e pensador Antônio Dias de Barros. No ensaio Legislação do Trabalho4, publicado em 1926, Carvalho Neto inicia com a discussão sobre o Direito do Tra CARVALHO NETO, A.M. No Parlamento: Discursos e projetos. Rio de Janeiro: Typ da Casa Vallelle. 1921. 3 Cadeira do Orador (Nota do autor). 4 CARVALHO NETO, A.M. Legislação do Trabalho: polêmica e doutrina. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil. 1926 2 Maconaria Carvalho Neto.indd 10 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto balho e se notabiliza como um dos percussores da legislação laboral, pelo que conquista a simpatia dos seus pares da Câmara dos Deputados, diante dos seus conceitos jurídicos e das citações doutrinarias de grandes mestres dessa vertente do direito. Edita, em 1928, a revista Sergipe Judiciário: doutrina, jurisprudência, legislação, que foi um veículo de divulgação dos estudos da Ciência Jurídica em Sergipe, com artigos e ensaios sobre o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e crônicas sobre a advocacia e sobre o banditismo no Nordeste, além de pareceres, recursos e acórdãos do Tribunal de Apelação do Estado de Sergipe. Como se vê, a produção bibliográfica de Carvalho Neto é sólida e sempre voltada para a defesa dos direitos sociais. Nesse diapasão, dedicou-se, profundamente, ao Tribunal do Júri, à defesa dos menos afortunados e colecionou inúmeras vitórias, absolvendo os seus constituintes, sempre com uma linguagem escorreita, elegância, ética e respeito na condução do seu trabalho. Nesse tempo pode avaliar as condições dos presídios e da legislação penal, levando-o a aprofundar-se no estudo da incipiente Criminologia, abraçando a teoria do cientista e jurista italiano Enrico Ferri, que estudou as tendências dos criminosos, levando em consideração fatores econômicos e sociais, cujos conceitos estão encartados no livro Sociologia Criminal. Carvalho Neto, então, direcionou os seus estudos e também, a sua literatura, para o campo do Direito Penitenciário, que estava nos seus passos iniciais. Nessa época, participa, no Rio de Janeiro de conferências sobre o Direito Penitenciário Brasileiro e apresenta as teses Maconaria Carvalho Neto.indd 11 11 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 12 Patronato dos liberados e egressos definitivos da prisão5, durante a 2ª Conferência e Direito Penitenciário6, na 6ª Conferência Penitenciária Brasileira, as quais foram aprovadas e publicadas pela Imprensa Oficial do Estado de Sergipe. Publica o livro Advogados: como aprendemos, como sofremos, como vivemos.7 Um verdadeiro guia para os operadores do Direito, com as minúcias e os caminhos que devem trilhar os advogados na condução das suas causas, no trato com os seus constituintes e nas relações éticas com os seus contendores. No rol das obras de Carvalho Neto insere-se o romance Vidas perdidas8 e a coletânea de várias crônicas, com o título de Cinzas da Província9, em que o foco é o sistema penitenciário de Aracaju. Ambas analisam o crime e o criminoso. Carvalho Neto não deixou de preocupar-se com a educação, pois, durante a sua trajetória na Câmara dos Deputados, pronunciou-se pela formulação de uma política nacional de educação, para propiciar a formação do cidadão brasileiro e capacitá-lo para os desafios dos tempos modernos. Por outro lado, não se descuidou da cátedra acadêmica, pois figura como um dos fundadores e primeiro diretor da Fa CARVALHO NETO, A.M. Patronato dos liberados e egressos definitivos da prisão. Aracaju: Imprensa Oficial, 1944. 6 CARVALHO NETO, A.M. Direito Penitenciário. Aracaju: Imprensa Oficial, 1944. 7 CARVALHO NETO, A.M. Advogados. São Paulo: Saraiva. 1946. 8 CARVALHO NETO, A.M. Vidas perdidas. Salvador: Livraria Progresso. 1948. 9 CARVALHO NETO, A.M. Cinzas da Província. Aracaju: Curso de Tipografia e Encadernação da Escola Industrial de Aracaju. 1951. 5 Maconaria Carvalho Neto.indd 12 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto culdade de Direito de Sergipe, inaugurada em 28 de fevereiro de 1950 e primeiro professor de Direito Administrativo. Essa unidade de ensino superior está incorporada à Universidade Federal de Sergipe, onde mantém curso de graduação e de pós-graduação stricto sensu, com relevantes serviços prestados à sociedade. O estudo sobre a obra polimorfa de Carvalho Neto leva-nos à convicção de que ele se dedicou, em todas as fases da sua vida, a temas de real importância para a sociedade, com destaques à efetiva garantia dos princípios educacionais republicanos, capazes de inserir as pessoas como partícipes do desenvolvimento nacional, não se descuidando de propor melhorias para o trabalhador, com uma legislação laboral democrática e de preocupar-se com leis de amparo ao contingente de portadores de necessidades especiais, numa antevisão do quadro evolutivo do constitucionalismo brasileiro fundamentado numa sociedade participativa e plural que pugna pela dignidade da pessoa humana. 13 Aracaju, 10 de novembro de 2013. José Anderson Nascimento Maconaria Carvalho Neto.indd 13 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 14 Maconaria Carvalho Neto.indd 14 07/11/2013 10:27:25 CARVALhO NeTO Biografia 15 Maconaria Carvalho Neto.indd 15 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 16 Antônio Manuel de Carvalho Neto nasceu em Simão Dias, Sergipe, a 14 de fevereiro de 1889, primeiro filho do casal Dr. Joviniano Joaquim de Carvalho e de D. Josefina Freire de Carvalho, ambos descendentes de Manoel de Carvalho Carrigosa e de Antônio Matos Freire, portugueses, emigrados para o Brasil, no século XVIII, quando se instalaram nos municípios de Lagarto, Simão Dias, em Sergipe; e em Paripiranga, no Estado da Bahia. O pai de Antônio Manuel era médico e político da região. Elegeu-se deputado estadual à 1ª Assembleia Constituinte do Estado de Sergipe, após agitada a eleição de 10 de março de 1891, em que se debateram republicanos e antigos monarquistas, convulsionados por interesses políticos. Depois, foi eleito deputado federal por cinco legislaturas. O Dr. Joviniano Joaquim de Carvalho era aliado do Padre Olímpio Campos e do senador Coelho e Campos, destacando-se no Parlamento Nacional, diante dos debates, com Fausto Cardoso, pelas questões da política sergipana. Carvalho Neto realizou os seus estudos iniciais na terra natal, transferindo-se depois para Aracaju, onde estudou o curso ginasial no Colégio Alfredo Montes, sendo aluno e Maconaria Carvalho Neto.indd 16 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto amigo do Professor Abdias Bezerra e do Professor Alfredo Montes Júnior, projetando-se logo, como orador nas célebres sessões demostênicas e pelo gosto do estudo das letras e das línguas clássicas, especialmente o Latim e também a Língua Francesa. Concluído o ginásio, muda-se para o Rio de Janeiro, onde residia o seu pai. No Rio de Janeiro, em 1906, ingressa da Faculdade Livre de Direito, distinguindo-se em pouco tempo, como um brilhante aluno, havendo, inclusive, naquela época, pleiteado que o busto de Tobias Barreto fosse entronizado no salão nobre da Escola. Na inauguração dessa herma honorífica, proferiu um notável discurso, quando enalteceu as qualidades morais e intelectuais do pensador sergipano homenageado, um dos responsáveis pela introdução dos estudos jurídicos alemães no Brasil, e incentivador dos estudos da Filosofia do Direito no Brasil. Iniciou-se, ainda acadêmico de Direito, na atividade forense no escritório do professor, advogado, político, jornalista e escritor brasileiro Inglês de Souza, introdutor do naturalismo na literatura brasileira através do seu romance O Coronel Sangrado, publicado em Santos, em 1877, e um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, que fora, inclusive Presidente do Estado de Sergipe no período de 1881 a 1882. Ao bacharelar-se em Direito, Carvalho Neto retornou, em 1911, a Sergipe, atendendo ao chamamento do seu pai. Logo elegeu-se deputado estadual para a legislatura de 1912 a 1913, em cujo período foi líder do governo do Marechal Antônio José Siqueira de Menezes (1911-1914). Depois, foi nomeado Juiz de Direito de Itabaiana e, seguidamente, removido para a Comarca de Japaratuba. Deixou a magistratura, para exercer o cargo de Diretor Geral de Instrução, nomeado Maconaria Carvalho Neto.indd 17 17 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 18 que fora pelo Presidente (Governador) José Joaquim Pereira Lobo (1918-1922). Nessa Diretoria, que corresponde aos dias atuais à Secretaria de Estado da Educação, Carvalho Neto promoveu inúmeras reformas pedagógicas, modernizando o ensino, em Sergipe. O seu ingresso na Maçonaria aconteceu em 26 de julho de 1919, iniciando a sua trajetória nos mistérios da Loja Maçônica Cotinguiba, da qual exerceu quase todos os cargos: orador nos anos 1920-1921, 1928 e 1932. De 1921 a 1924 foi o representante da Loja na Soberana Assembleia Geral, venerável nos anos 1929, 1930, 1933/34, 1939/40 e 1942/1943 e Delegado Especial do Grão Mestrado no Estado de Sergipe, a partir de 1943. No seu veneralato, Carvalho Neto lutou incessantemente pelos princípios que norteiam a Maçonaria e colocou a Loja Cotinguiba em posição de destaque no cenário nacional. Na sua gestão de 1929 a 1930, inaugurou solenemente o prédio da sede da Loja Cotinguiba, na Rua Santo Amaro, nº 171, no centro de Aracaju. Carvalho Neto foi um ardoroso defensor da liberdade, havendo produzido na Cátedra da Lei, memoráveis discursos, sempre defendendo os principais lemas da Maçonaria: igualdade e liberdade, que, aliás, no desenvolvimento do constitucionalismo nacional, passaram a ser direitos de primeira grandeza, situando-se como clausulas petreas das Constituições, no campo dos direitos fundamentais da pessoa. No discurso de Carvalho Neto1, infere-se que ele proclamava a Liberdade como um fator preponderante da própria existência humana, pois indica a condição de livre, ou o poder NETO, A.C. O pensamento vivo de Carvalho Neto. São Paulo: Edição do autor. 1988, p. 28. 1 Maconaria Carvalho Neto.indd 18 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria determinação, respeitadas, entretanto, as regras legais instituídas. Nesse sentido, a Maçonaria adotou a Liberdade como lema emancipador e regenerador das classes sociais, razão pela qual a sociedade fraterna e organizada, somente se estabiliza com a convivência de homens e mulheres livres e de bons costumes, com igualdade de oportunidades. Na Maçonaria, além da Liberdade, adotaram-se a Fraternidade e a Igualdade, motes que se associam às três Grandes Luzes que adornam o Altar de uma Loja regular das obediências anglo-saxônicas: o Compasso, o Esquadro e o Volume da Ciência Sagrada. A Fraternidade na Maçonaria, sob a ótica de Carvalho Neto é a essência do Cristianismo. No círculo privado é a família. Na ordem social é a Nação. No regime político é o Estado. Na relação internacional é a humanidade. Ela proscreve o ódio que é destruidor. Proscreve a conquista que é antissocial. Proscreve a guerra que é desumana.2 A Fraternidade, sob o aspecto teórico, é um conceito de filosofia profundamente ligado às ideias de Liberdade e Igualdade. Com esses três elementos forma-se o tripé que caracteriza um dos mais importantes conceitos em que se baseia a Maçonaria. A ideia de Fraternidade mostra que o homem, na vida em sociedade, estabelece, com seus semelhantes, uma relação de igualdade, pois, em essência, não há nada que hierarquicamente os diferencie. São como irmãos, ou seja, fraternos. Esse conceito é a peça-chave para o pleno estabelecimento da cidadania entre os homens, pois, por princípio, todos os 19 2 NETO, A.C, ob. Cit. P. 18. Maconaria Carvalho Neto.indd 19 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 20 homens são iguais. Um fato importante a realçar é que Fraternidade, por muitas vezes, é confundida com caridade, embora elas tenham significados radicalmente diferentes. Enquanto a Fraternidade expressa a dignidade de todos os homens, considerados iguais e assegura-lhes plenos direitos (sociais, políticos e individuais), a ideia de caridade nos mostra exatamente o oposto, a desigualdade entre os homens, na medida em que faz crer que alguns deles possuem mais direitos e são superiores e portanto são generosos quando os compartilham com os demais. Carvalho Neto trata a Igualdade, como um dos fatores que sustentam a Ordem Maçônica. Na sua concepção, todos são iguais perante a Lei, como afirmou em Discurso na Maçonaria, em 1940. Nem nobreza de sangue, nem privilégio de casta, nem prestígio de dinheiro. Todos temos os mesmos direitos, podemos merecer as mesmas honras, conquistar os mesmos postos. Do maior ao menor, do mais rico ao mais pobre, não faz a lei distinção que não seja decorrente do merecimento pessoal, pelo trabalho, pela cultura, pela virtude, pelo civismo. Uma vez que relações fraternais pressupõem a inexistência de barreiras discriminatórias, é necessário que exista Igualdade para que os maçons possam ser denominados Irmãos. Portanto, sendo a Fraternidade um predicado fundamental da Maçonaria, também o é a Igualdade. Igualdade significa não diferenciação, inclusive entre os obreiros da ordem maçônica. Considera-se, pois, que os maçons podem ser reconhecidos, iguais quando entre eles inexiste qualquer diferenciação em termos de condições de tratamento e oportunidades. A Fraternidade, certamente, não é independente da Liberdade e da Igualdade, pois, para que cada uma delas efetiva- Maconaria Carvalho Neto.indd 20 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto mente se manifeste, é preciso que as demais também estejam presentes. Elas agem como componentes de uma equação, em que a presença dos três elementos é necessária e obrigatória para que o resultado esperado seja obtido. Tal resultado nada mais é do que a humanidade viver e contemplar a virtude de se ter uma vida em perfeita harmonia e paz. Ao lado de instruções doutrinárias sobre temas da Maçonaria, Carvalho Neto não se descuidava de pontuar a instituição no contexto histórico da humanidade. Pesquisas nesse sentido levam o estudioso dos assuntos maçônicos a compreender as grandes diferenças entre a Maçonaria do século XVIII e a dos séculos seguintes, revelando, principalmente, a Franco-Maçonaria, hoje, majoritária, pelo que, desde os pronunciamentos filosóficos de Carvalho Neto, já estavam descartados os grupos mais ou menos «particulares», como o círculo místico-esotérico de Lyon e o grupo político-ocultista dos iluministas bávaros de Weishaupt com seus partidários, que algumas escolas historiográficas como Firenze de Francovich e seus discípulos, tentaram elevar à categoria de casos gerais, abordagens que contrastam com a de Forestier, que limitou claramente o objeto de suas pesquisas à Franco-Maçonaria Templária e Ocultista. Com seu modo de vida simples, suas visões grandiosas, sua fidelidade à monarquia e suas vinculações religiosas na Europa católica e protestante da época, sem falar de sua composição social específica, mais próxima da nobreza que da burguesia, a Franco-Maçonaria do século XVIII tem poucos traços comuns com a nova Maçonaria do século seguinte, como aponta Carvalho Neto. Para ele, após a Revolução Francesa, esta nova Maçonaria se coloca, a princípio, a serviço de Napo- Maconaria Carvalho Neto.indd 21 21 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 22 leão Bonaparte e depois, por ocasião das revoluções no início do século, aproxima-se do liberalismo republicano com seus ideais de liberdade dos indivíduos e de independência dos povos. No decorrer do século XIX, esses ideais vão adquirir progressivamente, sobretudo dentro da Maçonaria francesa e sua “zona de influência”, uma coloração cada vez mais laica, e até mesmo anticlerical. Esta situação não existia no século XVIII e suscitou muitas tentativas de explicação quase sempre tendenciosas e pouco convincentes. Nesse sentido, Ferrer-Benimeli3, anota que além dos documentos encontrados nos arquivos secretos do Vaticano e da Inquisição, particularmente nos de Madri, Lisboa e México, as principais fontes de estudo dessa temática, vêm dos arquivos maçônicos de vários países europeus: Alemanha, Áustria, Itália, Portugal, Holanda, Bélgica, Suíça, Inglaterra, França. Os arquivos da Franco-Maçonaria, conservados no Gabinete dos Manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris, dispõem de documentos preciosos e variados, cuja importância já foi destacada por historiadores, como Le Bihan, Chevallier, Ligou, Agulhon, Luquet, Ladret, Amiable, Doré, Bernheim e muitos outros. Nos últimos anos, essas fontes chamaram a atenção de pesquisadores como Coutura, Taillefer, Beaurepaire, Halevy, Saunier, Porset, Lamarque, Mollier. O discurso de Carvalho Neto no campo dos confrontos da Igreja com a Maçonaria, coaduna-se, em grande parte, com a linha do livro Arquivos Secretos do Vaticano e a co-Maçonaria, que ajuda a esclarecer e a compreender a situação da Franco FERER-BENIMELI, J.A. Arquivos Secretos do Vaticano e a Franco-Maçonaria. São Paulo: Madras, 2007. 3 Maconaria Carvalho Neto.indd 22 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto -Maçonaria Européia antes e durante a Revolução Francesa e os seus reflexos, nos séculos seguintes, nos países americanos, em especial nos Estados Unidos e depois no Brasil. Nessa linha de pensamento é bom que se frise a importância e o caráter relativamente novo de uma abordagem da Franco-Maçonaria, não desde uma perspectiva local, regional ou nacional, mas e até mesmo “universal”, aqui sinônimo de ocidental, em uma época em que a Franco-Maçonaria ainda não havia sido implantada em alguns países. Essa abordagem permite assim deixar de lado os aspectos mais particulares e melhor compreender os que são comuns a países como Itália, Portugal, Áustria, Alemanha Espanha, Holanda, Suíça, etc. Esses traços nos ajudam a entender e situar o que aconteceu na Maçonaria Francesa ou Inglesa do século XVIII, sem considerar as lutas de influências internas e as interpretações do século seguinte. Estas, de fato distanciam muito desse fenômeno de “sociabilidade” que constituía a Maçonaria das Luzes. Alguns elementos fundamentais – particularmente a religiosidade e a crença – quase deveriam desaparecer no século XIX, tornando, assim, mais difícil a compreensão daquilo que foram e que fizeram os franco-maçons no século anterior. Segundo Machado4, Carvalho Neto, com sua voz firme, limpa e metálica empolgava como orador eloquente, imaginoso e culto, assumindo um lugar maior ao Sol. Candidata-se, assim, a deputado federal, elegendo-se para 11ª legislatura (1921-1923), apoiado pelo Presidente Pereira Lobo. No Rio, distingue-se, logo, no Parlamento, com seus projetos e dis- 23 MACHADO, M.C. Brava Gente Sergipana e outros bravos. Aracaju: Edição do autor. 1999, p. 58. 4 Maconaria Carvalho Neto.indd 23 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 24 cursos, chamavam-no “a patativa do Norte”. Muitos desses projetos e discursos foram publicados no livro O Parlamento. Reeleito, na legislatura 1924-1926, já familiarizado no Congresso, e com muitos amigos, inclusive o Presidente Artur Bernardes, Carvalho Neto torna-se o paladino da manifestação e federalização da Justiça e do Processo Civil e Criminal e, ainda, um dos maiores precursores do Direito do Trabalho. Seus projetos, pareceres e discursos são memoráveis, batalhando pela reforma constitucional para atribuir à União a competência para legislar sobre direito do Trabalho. Tudo isto está no seu livro Legislação do Trabalho, editado em 1926, e fora esta a primeira vitória do trabalhismo no Brasil. Elogiado por muitos, acusado de comunista por outros, Carvalho Neto sai vitorioso da pugna, mas não se elege na legislatura imediata. Agora, voltando a Aracaju, Carvalho Neto dedica-se à advocacia civil e criminal, ao jornalismo e publica uma revista jurídica Sergipe Judiciário. Defendeu os revolucionários tenentistas de 1924 e 1926, tornando-se amigo do Tenente Augusto Maynard Gomes, principal líder do Tenentismo em Sergipe. Nessa mesma época participa de reuniões da Hora Literária do Santo Antônio e aparece como um dos principais mentores para a fundação da Academia Sergipana de Letras, cuja sessão inaugural aconteceu no dia 1º de junho de 1929. Vitoriosa a Revolução de 1930, Carvalho Neto passa a figurar como uma das mais importantes personalidades do Governo do Interventor Federal Augusto Maynard Gomes, projetando-se como o Consultor Jurídico do Estado. Nas eleições de 1934, Carvalho Neto elege-se Deputado Estadual. Na fase constituinte e depois na legislatura, ele era considerado o deputado mais culto, mais brilhante e mais eficiente. Maconaria Carvalho Neto.indd 24 07/11/2013 10:27:25 Carvalho Neto Com o Golpe de 10 de novembro de 1937, a Assembleia foi fechada e os deputados perderam os mandatos, experimentando-se uma fase de intranquilidades sociais em Sergipe, diante do momento político discricionário, devido às ações do Estado Novo. Carvalho Neto, então, é chamado para defender perseguidos e oprimidos, contra a prepotência governamental. Em rumoroso processo, defende comunistas presos. Depois, são os integralistas e também os correligionários demitidos. Neste período é rica a sua produção literária. Farta é a publicação de temas jurídicos, merecendo destaque os ensaios Afirmações do Direito, A defesa no crime, Verdade de um fideicomisso, Casos criminais, Um caso de interdição, Ação de Investigação de Paternidade, Legítima defesa contra o banditismo. Na política, articula com os seus seguidores a volta de Augusto Maynard ao Poder. Com os amigos de Maynard, cuja campanha é coroada de êxito com a nomeação do líder revolucionário para Interventor Federal, cuja posse se deu a 27 de março de 1942. O Novo Interventor Federal, Augusto Maynard Gomes tem, outra vez, Carvalho Neto ao seu lado, como Consultor Jurídico do Estado. Na plenitude intelectual, Carvalho publica os Pareceres da Consultoria Jurídica. Em 1945, com a redemocratização do país, Carvalho Neto candidata-se a deputado federal, não se elegendo, porém, o que lhe causou grande consternação. Acabrunhado, pensa em deixar a política. Volta-se, contudo, para a Literatura e a atividade forense, consagrando-se como um dos pioneiros do Direito Penitenciário, ao lado de pensadores da estirpe de Lemos de Britto e de Heitor Carilho, participando de congressos de direito e apresentando teses, depois publicadas: Normas Gerais de Direito Penitenciário, Direito Penitenciário, Patrona- Maconaria Carvalho Neto.indd 25 25 07/11/2013 10:27:25 VULTOS DA MAÇONARIA 26 to de Liberados e Egressos definitivos da prisão e Advogados, obra doutrinária de repercussão nacional. Publicou ainda: Conferências várias e Orações acadêmicas e muitos discursos, dentre os quais se sobressaem: Gumercindo Bessa, Alfredo Montes, Abdias Bezerra e Casa das Laranjeiras. No campo do romance, escreveu: Vidas Perdidas e Cinzas da Província. Foi um dos principais mentores para a fundação da Faculdade de Direito de Sergipe, da qual foi o seu primeiro diretor. Na opinião de Manoel Cabral Machado5 a obra basilar de Carvalho Neto é “Advogados – como vivemos, como sofremos, como vencemos”. Literariamente, é uma espécie de “Carta de guia de advogados”, a modo de Francisco Manuel de Melo, na “Carta de Guia dos Casados”. Foi o primeiro livro sergipano, com realce, ainda hoje, na literatura jurídica nacional, a recomendar os intelectuais de Sergipe. Dele disse Manoel Ribeiro. “O monumento que é Advogados cabe na estante de todo homem culto, pois é a humaníssima história dos lidadores do direito na província”. Para João Evangelista Cajueiro6, “a língua em que se expressava Carvalho Neto era a dos escritos que estava em permanente convívio com os livros dos grandes mestres da linguagem lídima”. Com o falecimento do deputado Maurício Graccho Cardoso, em 3 de maio de 1950, Carvalho Neto, que era o seu suplente, assume a Câmara Federal, já estando combalido pela doença, que lhe perseguia. Mesmo assim, destacou-se em várias Comissões Parlamentares. Ainda enfrentou a eleição de 3 de outubro de 1950, ao cargo de deputado federal Machado, Manoel Cabral. Discurso. Revista da Academia Sergipana de Letras, nº23, p. 25. 6 Cajueiro, João Evangelista. A língua e o estilo de Carvalho Neto. Aracaju: Revista da Academia Sergipana de Letras, nº 17, 1956, p. 2. 5 Maconaria Carvalho Neto.indd 26 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto pelo Partido Social Democrático (PSD), com o apoio do seu cunhado, o Desembargador Gervásio Prata, reelegendo-se à Câmara Federal, com 4.562 votos. Nesse tempo, empolga-se com os trabalhos legislativos, especialmente com as discussões em torno do assunto legislativo mais palpitante: o Parlamentarismo. Sobre esta matéria, escreveu o ensaio da literatura política, Irresponsabilidade dos Presidentes da República e Ministros de Estado no Regime Parlamentarista. A doença se acentuava, apesar das sucessivas intervenções cirúrgicas a que se submeteu seguidas e de melhoras transitórias. Muito doente, afastou-se da militância jurídica, maçônica e política. Faleceu em Aracaju a 26 de abril de 1954. Carvalho Neto caracterizou-se por uma vida toda de permanente luta pelo Direito, na cátedra, na tribuna, na imprensa ou no foro, pugnando sempre, destemerosamente, pelas liberdades democráticas e garantias inalienáveis do cidadão. Homem de pensamento, espírito ágil e cultura polimorfa, o saudoso professor era, sobretudo, um orador fluente, cuja voz empolgava as multidões e as elites, unânimes em aplaudi-lo com todo entusiasmo. Sob todas as facetas, por que se o encare, Carvalho Neto era personalidade que avultava às nossas vistas como uma legítima expressão de intelectualidade e simpatia que, a todo o momento, mais se arraigava. O professor, o jurista, o maçon, o escritor, o ensaísta, o parlamentar, o polemista e o advogado encontraram em Carvalho Neto um exemplo, com as qualidades invulgares e os requisitos que dificilmente se encontrariam numa só pessoa, pelo que se constituía numa figura impar dos nossos círculos intelectuais, marcando época, a sua passagem pela vida. Maconaria Carvalho Neto.indd 27 27 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 28 Maconaria Carvalho Neto.indd 28 07/11/2013 10:27:26 CARVALhO NeTO Antologia 29 Maconaria Carvalho Neto.indd 29 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA I POLÍTICA LIBERDADE 30 Por fim, liberdade! O outro vértice do nosso triângulo simbólico. Matriz dos povos civilizados, é a suprema aspiração das consciências honestas. Onde não houver liberdade é que o homem se degrada ao automatismo do irracional. Se não há independência para sentir e admirar o belo, para querer e conquistar o bem, para castigar o crime e premiar a virtude, para escolher, para distinguir, para eleger, para repelir, é que o homem desceu ao nível do bruto. Tem instinto, não tem razão! Se não tem opinião, se não escolhe a sua crença, se não proclama a sua fé, se não adora o seu Deus, pobre dele! Não será mais do que uma sombra perdida no cemitério das consciências mortas. Liberdade é flama que crepita e aquece e chama-se patriotismo. É sangue que borbota e ruboriza e chama-se honra. É ideal que transfigura o homem numa inspiração da divindade, para a realização dos seus altos desígnios de amor e renúncia, de caridade e de fé, de sofrimento e de piedade, de lutas e de glórias. E quereis ver como, senhores! É só perguntar: cientista ou filósofo, que seria de ti não podendo, acaso, proclamar a Maconaria Carvalho Neto.indd 30 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto verdade de tuas pesquisas, a descoberta de tuas leis, o desvendar de enigmas na trama dos fenômenos, a explicação das causas, a relação dos efeitos, em suma, a mecano-teleologia da vida? Pode o sábio condicionar o seu saber a imperativos da escola, a conveniências de planos oficiais, a imposição de ditadores, de qualquer espécie? E tu, artista, que seria de ti sem a inspiração livre, a vocação alada, a fantasia solta, o sonho a transvoar de páramo em páramo,andorinha que mergulha nos espaços azuis, borboletas que adejam sobre jardins floridos, abelha que suga o mel polens dourados? Haverá inspiração agrilhoada, como um pássaro preso, não podendo voar em todas as direções, nem se banhar nos regatos múrmuros de límpidas águas, nem espanejar as asas aos raios do sol? Pintor, que tiras da palheta dos íris celestiais as cores dos teus quadros, que seria de ti, se a cromatização das tuas imagens não fosse a escolha sensível de tua vista, cambiantes de tons e coloridos, que variam de um para outro, na gama infidas mais bizarras combinações? Músico, compositor, maestro, que coordenas os sons e fazes a harmonia das vozes, que seria de ti, se as tuas melodias os teus acordes, as tuas sinfonias não expressassem a espontaneidade dos sentimentos — aqui a alegria, ali a dor, ora um canto elegíaco, ora uma árida magoada, vezes o pranto, às vezes o riso, a brisa ou a tempestade, o ciciar de uma carícia leve, em modulações de arminho, ou o trovejar de uma imprecação em fúria, um grito de guerra no clarinar das trombetas, no troar das cargas, no ribombar das bombardas, ou a oração de paz, na serenidade augusta dos templos? Maconaria Carvalho Neto.indd 31 31 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 32 Arquiteto, onde a combinação de tuas linhas no plasma formas evocativas, expressivas, simbólicas, criando estilos diferentes, ornatos novos e variados, colossos egípcios, templos gregos, sólidos romanos, catedrais medievais, compositores da renascença? Tirai-lhe a liberdade de concepção e aqueles contrastes, que dão a simetria do conjunto, perderão, como peças desarticuladas, a expressão de harmonia, que é a beleza. E tu, poeta, mago de fadas encantadas, como cantarás o amor se te roubarem a lira que tens dentro d’alma, inacessível à profanação de estranhos? Acaso poderias entoar detirambos à tua deusa, se esta não fora propriamente a criação da tua fantasia, a imagem de teus sonhos, a inspiração de tuas paixões? Pode-se a alguém impor o amor? E como ao poeta poderia acorrentar, escravo que não fosse da própria inspiração. E que seria de ti, médico, no hospital, no laboratório, no consultório, sem o exercício livre de tuas qualidades, de tua técnica, de tua perícia, em que tanto entra de individual, de subjetivo? Como poderias, ao dobrares o joelho junto ao leito dos doentes, para lhes dar alívio ao sofrimento, linitivo ao desespero, fugir à tua consciência, ungida de piedade, a conselheira do diagnóstico, a esperança da cura? E que seria de ti, cidadão, se não fosses uma partícula de atividade útil, dotada de vontade nos negócios de teu país, uma componente da vontade coletiva, na escolha dos governos, na colaboração das leis? E tu, juiz, se a tua consciência se calasse de chumbo e arrastasse cadeias nos pulsos, que te impedisse de movimento no sentido do justo, do equidoso, do verdadeiro? Maconaria Carvalho Neto.indd 32 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto Que seria da sociedade, que te outorgou uma função próxima da divindade, que será da família, da honra, do patrimônio, se ao proferires os teus julgamentos, no deslinde dos conflitos humanos, não obedecessem ao fiel as conchas da tua balança e, antes, se inclinassem às sugestões do medo, do poder, do arbítrio? E tu, advogado, defensor dos humildes e dos oprimidos, dos direitos postergados, arcando contra as injustiças, rebelando-se contra as prepotências, não deixando nunca que a inocência sucumba sem defesa, o miserável sem proteção, o desgraçado sem assistência?! Acaso poderias permitir que a tua palavra inflamada, nas reivindicações da justiça, mergulhasse em gelo e se petrificasse na frieza da indiferença? Quem te deu o verbo de Demóstenes, de Cícero, de Lachaud, de Berryer, de Jules Favre, de Carrara, de Ferri, de Rui Barbosa, para que o infamasses nas intransigências dos governos desmandados, ou na corrupção dos juízes venais? Quem te quer senão escravo da lei, para que não te escravizes à vontade dos homens? E como poderias dignificar a tua missão, cumprir o teu dever, senão fazendo da própria liberdade o escudo de todas as liberdades? Por fim, tu, patriota, a encarnação de todos! Que seria, se vísseis a tua pátria talada pelo inimigo, amordaçados os espíritos, profanados os lares, despedaçadas as afeiçoes mais caras; os teus pais mortos à fome e a coice d’armas, as tuas filhas poluídas, os teus filhinhos a chorar sobre os escombros das cidades destruídas, como uma nota pungente de orfandade sem pão e sem teto; as tuas esposas dilaceradas por tantas dores inenarráveis, a tua terra tomada pelos invasores: o chicote do conquistador lanhando, a latigar crueldade, os ímpetos indômitos de tua rebeldia? Maconaria Carvalho Neto.indd 33 33 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA Que vida poderias tu viver, assim, senão a do ilota despersonalizado, uma vaga sombra da vida, que não é vida?! Eis porque, contigo, patriota, por todos e acima de todos, nunca cessará de estar a liberdade de tua pátria, razão suprema da tua existência, se a queres nobre, fecunda, altruística, numa sucessão que não finda, com o berço no túmulo dos teus pais, com o túmulo no berço dos teus filhos! (Discurso na Maçonaria, Aracaju, 1940). *** IGUALDADE 34 Igualdade! Outro lema de nossa Ord. e, por igual, preceito de nossa Carta política. Todos são iguais perante a lei — é a norma constitucional — por excelência. Nem nobreza de sangue, nem privilégio de casta, nem prestígio de dinheiro. Todos temos os mesmos direitos, podemos merecer as mesmas honras, conquistar os mesmos postos. Do maior ao menor, do mais rico ao mais pobre, não faz a lei distinção que não seja decorrente do merecimento pessoal, pelo trabalho; pela cultura, pela virtude, pelo civismo. Não há desníveis nesse plano senão pelo crime, pela traição, pelo impatriotismo. Conquista de sangrentas revoluções, entre os povos, também no Brasil para obtê-la, se regou o nosso solo com o sangue dos heróis. (Discurso na Maçonaria, Aracaju, 1940). Maconaria Carvalho Neto.indd 34 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto *** FRATERNIDADE Fraternidade! Eis o lema básico de Jesus Cristo, a essência mesma de nossa religião. Está nos Evangelhos: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. E um dos mandamentos fundamentais da existência humana, na fé cristã. No círculo privado é a família. Na ordem social é a Nação. No regime político é o Estado. Na relação internacional é a humanidade. Ela proscreve o ódio que é destruidor. Proscreve conquista que é anti-social. Proscreve a guerra que é desumana. E se das tábuas da lei divina, passarmos aos preceitos das leis humanas, vamos encontrar todas essas proscrições. Assim, que particularmente tange a nós brasileiros, vemos na Constituição do país, como precipitado da razão em fórmula jurídica, todos e esses mandamentos. Não há, por isso mesmo, entre nós, problemas racistas, que nos inimizem com outros povos, certo que a mescla de elementos étnicos de várias origens opera nas populações brasileiras o caldeamento de uma sub-raça de apreciáveis qualidades. Também não nos causam espanto os judeus, colaborando conosco todos os elementos de emigração sem eiva de imperialismo. (Discurso na Maçonaria, Aracaju, 1940). Maconaria Carvalho Neto.indd 35 35 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA *** POLÍTICA 36 Não é a política uma arte de harmonia e perfeição. E como ciência ainda lhe falta a exata previsão dos fatos humanos. Sabe quantos por ela passaram, ou nela vivam, que muitas vezes mais degrada do que alevanta os homens. Apesar dos princípios de Platão e Aristóteles, na antiguidade grega, foi Maquiavel, na renascença, quem fez escola, com alguns dos aforismos canalhas que ensinou com exemplos. Aliás, bem ponderadas as coisas, nada inovou, porque, no governo dos povos, aquelas práticas ominosas vão encontrar raízes profundas nos mais remotos tempos. O conhecido lema — os fins justificam os meios — acusa, destarte, uma perenidade de séculos. Desde o homo homini lupus até hoje, variando, apenas, de processos. Com Hobbes, com Rousseau, com Sorel... Com a rudeza atávica do primitivo, ou com a desfaçatez evolutiva do moderno. Pela força, pela violência, ou pela astúcia, (O Príncipe) chegando com Fouche e Tayllerand às formas recentes dessa fauna mimetista dos paços imperiais, ou às antecâmaras democráticas. Dentre aqueles, em nosso amado Brasil, um homem houve, maior que todos, que sempre viveu na política: Rui Barbosa. Pregando, evangelizando – missionário da democracia com a cruz do seu ideal alevantada aos olhos do povo. Mas incompreendido, desprezado, vencido! Porque não fora, em verdade, um político no sentido realístico, oportunístico, sem idéias, sem princípios. Maconaria Carvalho Neto.indd 36 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto Em campo aberto, mostrava-se o que era — o gigante da palavra, a eloqüência, a maravilha do pensamento, encantando, convencendo. Quando, porém, enfileirado nos quadros partidários, ei-lo a se deixar vencer, facilmente, por Pinheiro Machado, organização retardatária de caudilho dos pampas. Era este, defeito, quem governava, do Senado, os conchavos oligárquicos das situações estaduais. E nunca lhe chegara, a Rui, por mais que o merecesse, o leme da nau avariada, que ele tantas vezes vira a pique de soçobrar entre abrolhos intérminos!... A História serve de comparações. Clemenceau também caíra, depois de salvar a sua França atormentada e gloriosa. E Churchill acaba de ser derrotado, depois de ganhar para a humanidade a causa da civilização, que ele simbolizara na sua invicta Inglaterra. Ora, o próprio Rui numa de suas mais arrojadas e candentes filipicas da República, procurava dar uma explicação a esses contrastes históricos, com a filosofia amarga de um desalentado: 37 Política e politicalha não se confundem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente. A política é a arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas, ou tradições respeitáveis. A politicalha é a indústria de explorá-lo em benefício de interesses pessoais. (Ditadura e República). Com Rui estava a primeira, tirada de Stuart Mill, sciense is a collection of truths... com os seus adversários, a segunda, Maconaria Carvalho Neto.indd 37 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 38 colhida em Maquiavel, nesse decalque grosseiro em que tem evolvido o Brasil... Mas são estes, afinal, que dominam, pelo inescrúpulo dos processos, pela arrogância das atitudes, pela visceral indiferença na escolha dos meios. Como o intelectual, por via de regra, é o homem para”desempenar determinados papeles y a pertencer a ciertos grupos en los cuales el ‘ignorante’ no participa” (Florian Znaniecki, Papel Social del Intelectual), deixa-se amarrar a princípios, a sistemas, a programas, perdendo a flexibilidade para acomodações pessoais. Escapam-se-lhe, por isso, as oportunidades, que são acidentes passageiros e borboleteantes. Vem a propósito o que, num livro moderno e de sutis observações, Ortega y Casset escreveu: “La mission dell llamado ‘intelectual’, en cierto modo, opuesta a Ia del politico. La obra intelectual aspira, com frecuencia en vano, a aclarar un poco las cosas, mientras que Ia del politico suele, por el contrario, consistir en confundiliras más de lá que lo estaban “. (La Rebelion de Ias Masas). São, assim, pelos processos e objetivos, entidades contrapostas. Dar-se-á, porém, que não haja momentos de exceção, a modo de fugazes intervalos lúcidos, em que o intelectual sobrepuje o político e o poder do espírito domine o cerco dos interesses pessoais. Certo que sim, na ação, mui raramente; no pensamento, algumas vezes... (Estado de Sergipe de 15-1-49). Maconaria Carvalho Neto.indd 38 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto *** O NACIONALISMO BRASILEIRO Não é agressivo o nosso nacionalismo, nem com ele armamos o país contra as outras nações. É defensivo, no justo limite de assegurar a existência da nacionalidade, o seu território, o seu patriotismo, as suas leis, as suas tradições. Rico em matérias-primas, comerciamos com todo o mundo, dando, ou recebendo, em troca, os produtos que nos sobram ou nos faltam, tudo regulado pela lei férrea da concorrência. Não temos pretensões exclusivistas de autarquias econômicas e, da interdependência com os outros povos, tiramos, numa linha de compromisso honesto, o proveito lícito, de que tanto precisamos. (Discurso na Maçonaria, Aracaju, 1940). *** O PROBLEMA DO BRASIL 39 O Brasil é um país de problemas eternos. As soluções, ou não são dadas, ou são parciais, unilaterais, incompletas. Vive-se, por isso, a repetir a infinda e cansativa tarefa de Sísifo, rolando ladeira acima e descambando ladeira abaixo a mole imensa dos mesmos fatos insolúveis. O problema da alfabetização; o problema da saúde; o problema da alimentação; o problema da educação; o problema do trabalho; o problema dos transportes; o problema da cabotagem; o problema das barras; o problema da imigração; o problema da moeda; o problema da inflação e da deflação; o problema do câmbio; o problema dos orçamentos e dos Maconaria Carvalho Neto.indd 39 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 40 déficits; o problema da infância abandonada; o problema da velhice desamparada... Os salários ínfimos, a mão-de-obra elevada, o alto custo da vida, a mendicância nos centros populosos, o abandono das populações rurais, a superlotação burocrática, a incompetência do funcionalismo, a irresponsabilidade das administrações... tudo é problema. O combustível nacional, o combustível estrangeiro, o petróleo, o carvão, a energia hidráulica... outros problemas. O cangaceirismo, os novos ricos de após guerra, exploradores da farinha de trigo, o pão minguado e caro, o açambarcamento dos gêneros de primeira necessidade, o preço da carne, o preço do leite, o preço da manteiga, o que se come, o que se veste, o que se calça... novos problemas. As endemias, as verminoses, as moléstias tropicais... o tifo, a malária, o câncer, um sem conto de neuroses e psicoses dos nossos tempos tumultuosos, de fome, de dor, de sofrimento... tantos males do físico e do espírito na hora apocalíptica que vive o mundo... problemas também brasileiros. E por sobrecarga, em aflição tamanha, o problema da lepra no Brasil! (“A Lepra em Sergipe”, Diário de Sergipe de 9-3-48). *** EDUCAÇÃO Ora, um castigo injusto é um fermento de revolta; um temor infundido é um recalque que terá a sua reação deformadora. Não se educa um homem pelo medo da palmatória, ou à custa de reguardas aviltantes. Maconaria Carvalho Neto.indd 40 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto E fazendo apelo à razão, despertando os sentimentos pelo exemplo da bondade, que se grava nas almas a confiança na justiça. E essa confiança é o passo da redenção no caminho do erro, o reflorir da esperança na ilusão perdida. (Alfredo Montes, Aracaju, 1945). *** O PROBLEMA DA SAÚDE Tem-se dito, e com a chancela de autoridade respeitada,que o Brasil é um vasto hospital. Há, talvez, na asserção desalentadora algo de pessimismo. O estudioso que lançou a fórmula aterradora, certo se impressionara com o quadro nosológico que lhe caíra em observação. E daí as cores sombrias com que carregara a sorte dos brasileiros, sitiados, de um exército de endemias. O que, todavia, não se pode negar é que as nossas populações rurais se ressentem da falta das mais rudimentares garantias de higiene, vivendo em luta aberta com a natureza, recebendo, ao desamparo, o embate de terríveis flagelos. E, conseqüência inevitável, o depauperamento orgânico dessas populações, uma raça que se diz, exageradamente, de desfibrados e que vai vivendo quase de sociedade com as moléstias que as afligem. (No Parlamento, Rio de Janeiro, 1921) Maconaria Carvalho Neto.indd 41 41 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA *** JORNALISMO 42 Jornalismo... Ainda hoje o campo é estéril e esmarrido. Ou chafurdar na lameira das descomposturas sórdidas ̶ de que não podem participar os caracteres de eleição – ou escrever para ninguém ... O pensamento, se construtor de belezas e emoções de arte, tem que se trancar num círculo reduzido de amigos, como planta de estufa ... Não há sol fora dessa casa de vidro onde se confinam os pobres intelectuais da província de Sergipe d’EI Rey... (Abdias Bezerra p. 30,Aracaju, 1947). *** INFLUÊNCIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS Grego ou troiano, ninguém deixará de sofrer, em Sergipe, a influência dos partidos políticos. Direta ou indiretamente será arrastado por uma das correntes de opinião em voga. Por mal de muitos, porém, a seleção de valores dá-se às avessas, com o triunfo dos menos dotados de inteligência, de cultura, de caráter. E um processo de involução, em que as qualidades inferiores levam a melhor nas competições. Tudo está em que o indivíduo se adapte às condições ambientes sejam estas, embora as que favorecem a mediocridade,espinha flexíveis às curvaturas mais humilhante. (Abdias Bezerra, Aracaju, 1947). Maconaria Carvalho Neto.indd 42 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto *** PROFISSÃO DE FÉ Contra a intolerância, contra a violência, contra o arbítrio, somos pelo império da lei nacional, vinculando todos os brasileiros na construção da paz. Mas a paz com honra, com o reconhecimento dos nossos direitos, com o respeito de nossas tradições, com a segurança dos nossos destinos! (Discurso na Maçonaria, Aracaju, 1940). *** SERGIPE ENJEITADO Na Federação, senhores, por mais que me possa magoar, eu confesso, Sergipe tem sido um enjeitado, um desatendido, nunca retribuído à altura dos seus serviços à comunhão brasileira, nunca premiado devidamente pela colaboração efetiva que dá à Pátria em todas as esferas de trabalho. (No Parlamento, Rio de Janeiro, 1921). 43 *** O ESPANTALHO FINANCEIRO Este tem sido o terrível ceifador de todas as belas iniciativas de amparo à grandiosa causa da Educação Nacional. Sucumbem diante dele as ideias mais vivedouras, quando não contrariados diretamente ou espaçadas para melhores tempos, fórmulas que tem sido um tóxico em vez de ser uma esperança... Maconaria Carvalho Neto.indd 43 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 44 Hoje, então, é que mais se tem abusado do estribilho famoso, para matar na nascença qualquer medida de interesse geral do país. E é de ver que tal situação corre em maioria das vezes à conta da horrível parca que atende pelo nome de Finanças Brasileiras ... Mas não será tal estado de angústia nas fontes de receita nacional uma consequência mesmo da nossa ineducação, da ineficiência do operário brasileiro, da rudeza nos processos de trabalho, da falta de compreensão por parte do trabalhador rural dos comezinhos preceitos da economia; enfim, da sombra negra da ignorância que se projeta sobre 80% de patrícios nossos, esclarecendo-lhes as consciências e alheando-os da vida política do país? Não está, de fato, aí, a origem do nosso regime deficitário permanente, pois que a terra, desde a descoberta é toda ela “cham e mui formosa ... de muitos bons ares ... ‘em tal maneira é graciosa, que querendo-a aproveitar, dar-se-ha nella tudo...?” (Pero Vaz de Caminha). Não é verdade que as raízes desse mal crônico brotam do seio das nossas populações, que não conhecem os rudimentos da instrução profissional, e, não vai longe, aqui o provaram, à saciedade, os ilustres colegas Tavares Cavalcante, que a poucos dias enriqueceu as nossas letras com uma bela página sobre a instrução, e Eurico Valle, em eloqüente discurso, cumprindo-me salientar o brilhante parecer do eminente professor e nosso acatado colega senhor Azevedo Sodré considerando a educação profissional “a mais pujante alavanca do progresso e engrandecimento do Brasil?” (Diário do Congresso de 258-21). Maconaria Carvalho Neto.indd 44 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto *** E como sair dessa eterna penúria de recursos, vivendo a nação de descontinuidade de dois ou três produtos regionais; emperrados nossos patrícios no anacronismo criminoso das queimadas, das devastações comburentes, enquanto o Código das florestas redigido com o saber e o aticismo de Augusto de Lima vai dormindo no esquecimento dos nossos legisladores? O Sr. Americano do Brasil - V. Exª está ferindo a matéria fundamental. O Sr. Carvalho Neto ̶ Em verdade, como esperar um revigoramento nas rendas nacionais se os nossos patrícios não sabem valorizar a natureza, se gastam mas não produzem, se em vez de homens úteis, nobilitando o trabalho, a ignorância os arrasta na onda do proletariado das cidades, fugindo aos campos, cuja riqueza não sabem aproveitar, render, multiplicar? (muito bem). Eis como diante do exame imparcial dos fatos precisa ser visto o espantalho financeiro. Ele é obra da ineducação brasileira, produto da ignorância dos nossos patrícios, sombra imensa dessa noite intelectual em que vivem apagadas as nossas populações rurais. E, consequência lógica, a perdurarmos em fechar as portas do tesouro aos reclamos da educação nacional, nunca nos libertaremos do peso, dia a dia, maior de deficits anuais a que vivemos chumbados, sem remissão. (No Parlamento, Rio de Janeiro, 1921). Maconaria Carvalho Neto.indd 45 45 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA SÍMBOLOS NACIONAIS 46 Um só Brasil, um só hino, uma só bandeira! Com tal determinação não se atentava contra o sistema federativo. Antes, era um benefício dele que se legislava, dando-se às partes — Estados — uma consciência mais nítida e palpitante do todo — União. Tanto se estava em Sergipe, como no Amazonas, como no Rio Grande do Sul, sob o único pálido do estelado auri-verde pendão nacional. Era, também, um só hino que se ouvia, a vibração das mesmas notas, patrióticas. Nada de veleidade autonomísticas, quebrando a unidade de pensamento e sentimento entre brasileiros. Quando me bati na Câmara dos Deputados, em 1922, pela unidade de processo — hoje plenamente vitoriosa — e pela unidade da magistratura — vitória pela metade — abordei, também, o aspecto dos símbolos nacionais que deviam ser unificados. Não compreendia, então, como ainda menos compreendo nos dias correntes, em que o sentimento de pátria reclama vigilância maior. Essa disparidade de emblemas pelos Estados, como se cada um deles representasse uma história própria, o sentido tacanho de reivindicações particularistas. Admite-se que haja apego de S. Paulo aos lances históricos de Piratininga, ou do Rio Grande do Sul aos idos gloriosos da Farroupilha. Tambem a Confederação do Equador se esmalta em bravura e idealismo patriótico. Nada disto, entretanto, se há de sobrepor ao Brasil, ao esforço sinérgico e secular de sua unidade histórica — pela raça, pelos costumes, pela língua, pelo Direito, pela religião. Maconaria Carvalho Neto.indd 46 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto Bandeiras por decretos, hinos por decretos são bandeiras e hinos que se acabam por decreto. Se não há consciência histórica, um passado coletivo vivido na comunhão dos mesmos sentimentos — lutas sofrimentos, vitórias, glórias, esperanças comuns, o mesmo ideal — essa bandeira, ou esse hino, nada exprime. A bandeira nacional, que a crítica expõe a graves erros de técnica, tem de todo o Brasil esse cruzeiro dos céus brasileiros, que é bem um símbolo de consciência eterna. Para que pretender, então, em cada Estado substituí-la pela fantasia de outros desenhos, ou bordados, sem fontes históricas, sem raízes no passado? E que mais tocantes emoções se hão de encontrar noutros hinos, que não naquele velho hino que tem sido, por todo o Brasil, e sempre, o toque de reunir para a sua defesa, nas suas lutas pela liberdade? A mais sábia, a mais expressiva, a mais patriótica das soluções, pois, seria a de não ter Sergipe senão uma bandeira, a bandeira nacional: a de não ter senão um hino, o hino nacional. (Diário de Sergipe de 27-4-48). 47 *** ORGULHO DE SERGIPANO Não tenho como vedes, motivos que não sejam de orgulho pela nossa terra e pela nossa gente. Sergipe grande, que a injustiça da História apequenou territorialmente, é bem a pátria da inteligência, que aí está por toda a parte, acolhida, festejada, vencedora..! Maconaria Carvalho Neto.indd 47 07/11/2013 10:27:26 VULTOS DA MAÇONARIA 48 Raro será, em verdade, de norte a sul do país, onde não esteja a cintilar uma inteligência sergipana. E só isso nos vinga e redime das injustiças e desprezo de que somos vítimas! Mas, não somente pátria da inteligência, e sim, por igual, terra do trabalho, onde o homem, como parcela de economia e eficiência, na obra civilizadora do Brasil, vale por um esforço comprovado em quase todos os pontos do território nacional. Na agricultura, nas indústrias, no comércio, nas profissões liberais, em todos os ramos de atividade honesta e proveitosa, estamos nós, os sergipanos, por toda a parte, com a parcela do nosso trabalho, do nosso labor, do nosso gênio ativo e empreendedor. Por um determinismo geográfico, temos sido uma perene corrente migratória, que despovoa as nossas terras para enriquecer outros tratos do solo brasileiro. E onde quer que nos levem as contingências da vida, acabamos por vencer! É no Rio de Janeiro, galgando nomeada e posição; em Ilhéus e Itabuna, formando numerosas colméias de trabalho e lá enriquecendo, é na opulência de Santos, com uma colônia que sobreleva; é na árdua conquista da Amazônia, triunfante no inferno verde! Por aí além há sempre, no ritmo do progresso brasileiro, uma centelha da inteligência sergipana, um pouco de calor do nosso entusiasmo, uns lampejos de nossa fé, de nosso idealismo, do nosso caráter. Tenho, pois, meus caros consórcios, motivos de orgulho pela nossa terra e pela nossa gente! (Discurso na Academia Sergipana de Letras). Maconaria Carvalho Neto.indd 48 07/11/2013 10:27:26 Carvalho Neto POLÍTICOS DE ONTEM E DE HOJE À medida que passam os tempos, e a História faz a seleção dos seus ídolos, Jogando por terra falsos deuses e entronizando na reverência da posteridade os esquecidos e injustiçados de ontem, mais se acentua o contraste entre os homens dos primeiros governos da República e os que se lhes seguiram em sucessivas mutações. Dir-se-ia que se repete hoje aquela «anomalia algébrica» das quantidades negativas de que fala Euclides da Cunha quando traçou o perfil do Marechal de Ferro: “cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional.” E nesse crescer de um e diminuir de outra o que ressalta aos olhos do observador é um fenômeno de depressão social, que caracteriza certas épocas de dúvidas e estarrecimento na vida dos povos. Àquele momento, refere o sociólogo: 49 “era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições ...” Mutatis mutandis, o caso se renova nos dias atuais. Depressão mais profunda do meio ambiente, a cujo nível rasteiro respondem as figuras anãs de politicóides de enxurrada, queas ambições do poder levaram até às alturas donde pontificaram os pro - homens da primeira República. (“Lição Esquecida”, Diário de Sergipe de 16-3-48). Maconaria Carvalho Neto.indd 49 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA *** ASSISTÊNCIA 50 Nos círculos dinheirosos de Sergipe são raríssimos os casos de solidariedade e assistência para com os enjeitados da sorte. Quanto mais a fortuna sorri para certa gente e os cruzeiros se lhe amontoam aos milhões, parece que mais se lhe inrija o coração, insensível à miséria do próximo. Cabedais herdados sem nenhum esforço de quem os recebem por um golpe do destino, e antes sob a garantia de velhos postulados de economia anti-social, roja-se por aí acumulados em mãos avaras, entupindo as arcas bancárias para a multiplicação fascinante dos juros. Não sobram migalhas para as casas de caridade, para os asilos dos pobres, para a indigência faminta e andrajosa... Cabedais rapidamente formados das especulações do câmbio negro, nesses dias amaríssimos de ódio e extermínio que se seguiram às grandes guerras, ou nelas tiveram o seu clímax de desumanidade, pululam em nossos meios aburguesados numa proliferação envenenada de agravos e injustiças sociais, cada vez mais arrogantes e perigosos. Se se publicasse uma estatística dos patrimônios milionários de Sergipe e da quota de sacrifício entregue aos institutos de assistência, até as pedras das ruas haviam de corar de vergonha... O ridículo das contribuições desses polpudos apatacados, em benefício de seu próximo desvalido, é um atestado tristíssimo dos sentimentos de solidariedade em nossa terra. Maconaria Carvalho Neto.indd 50 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto Dá-se, até, uma situação de verdadeiro paradoxo. São as classes menos aquinhoadas de bens — os funcionários, os comerciários, as profissões liberais, os homens de ordenados fixos e gastos progressivos — nessas oscilações vertiginosas do custo da vida, os que proporcionalmente mais contribuem para as obras de beneficência, para as instituições pias! Toda a vez que se organiza um festival de arte, um espetáculo literário-musical, ou se realiza uma simples, visando qualquer deles um objetivo de caridade, são sempre as classes menos pingues que dão maior contingente no benefício. Aqueles milionários – ou porque vivam à tripa forra, pensando que o mundo deles não acaba... ou porque temam de aparecer em público, com a consciência a lhes apontar os crimes do próprio dinheiro – aqueles milionários quase não são vistos nessas ocasiões. Ficam trancados em casa, à semelhança dos seus cabedais engavetados nos cofres. Quando, pois, nesse panorama sombrio e trágico, onde vivem almas apagadas de fé em corpos vazios de sentimento, reponta uma nesga de luz, como no dilúculo do mais belo colorido, todas as vistas se lhe concentram como por encanto ... Dir-se-ia uma aurora a surgir, na grandiosa festa de maravilhas que se dá a natureza. (Diário da Tarde de 4-5-48). 51 *** MENDICÂNCIA Era um dia de feira e fomos ao Mercado. E foi como ainda hoje — e talvez mais agora do que dantes – um triste e trágico espetáculo. Maconaria Carvalho Neto.indd 51 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 52 Por toda aquela multidão imensa perambulavam farrapos humanos, numa variegada exibição de miséria e fome. Cegos, aleijados, cancerosos, chagados, maltrapilhos famintos, uma legião de subalimentados, de ossos mortiços e faces escaveiradas, estendendo as mãos à caridade pública. Homens e mulheres, velhos trôpegos e crianças de braço, numa policromia vivaz de pigmentos em mistura, diluindo numa marca uniforme de sofrimentos tipos étnicos primitivos. Há em Os Miseráveis, de Victor Hugo, uma página sensacional em que se reúnem os párias do bas fond parisiense, com todas as marcas do subsolo social, onde fermenta o caldo de cultura dos piores crimes. Por mais sensível e impressionista que fosse a palheta do artista genial, colorindo os quadros dessa camada rasteira da sociedade não chegou ao vivo da realidade monstruosa a que tivemos de assistir. Entre nós o fato supera a ficção, a luz da verdade queima as tintas da fantasia. É um imenso inferno de Dante, com as suas dores infinitas, os seus castigos inenarráveis, as suas desesperanças sem consolo... Ali se preparam, nas garras da fome, as eleitas da prostituição... e vemos a interminável farândula dos prostíbulos, caminhando para a degradação do comércio da carne pecadora ... como aquela visão horrenda de Zamacois n’O Delito de Todos ... Ali se caldeiam os Capitães de Areia de Jorge Amado, com toda essa súcia de maloqueiros na ante-câmara do crime ... Os abandonados de Coppú, germes do crime, que a sociedade recolhe, mais tarde, quando o perfume da inocência já Maconaria Carvalho Neto.indd 52 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto se lhes evolou da alma e os miasmas dos vícios mais infrenes já lhes impregnaram até a medula... Vidas perdidas, em suma, que vão encher as prisões e os reformatórios, os manicômios e os asilos, com as manchas de uma sociedade má, poluída e decadente... (Diário de Sergipe de 6-4-48). *** A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL Há verdadeiramente no Brasil uma questão social? Muitos são os que lhe negam a existência, julgando-nos no melhor dos mundos, crendo beatificamente nas virtudes imanentes do Direito, sob o Império da Justiça. Vai assim, tudo à maravilha, com equidosa repartição dos bens comuns, riqueza para todos, miséria para ninguém ... Imenso paraíso terreal, com abunda de frutos e messes inesgotáveis, só os preguiçosos, se privam dos gozos que a terra boa lhe proporciona a mancheias... E deslumbrados com essa fartura enganosa, negam terminantemente que exista entre nós a questão social! Ainda porque a confundem, a todo instante, com os velhos conflitos de classe, renhidos e renovados sempre, que na Europa, vão operando, por golpes de força, transformações sociais incoercíveis. Ora, está patente antes de mais nada, que estes abastados negadores (são sempre pessoas bem postas na vida) tomam efeitos pela causa e vão racionando ao arrepio dos fatos mais concludentes. Porque, em verdade, a questão social no Brasil aí está crescendo e agravando-se, tanto mais quanto se emperram em Maconaria Carvalho Neto.indd 53 53 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 54 lhes não dar tento os responsáveis pelo governo, os poderes a quem incumbe velar de mais perto pelas classes trabalhadoras do país. Digo até mais grave se me afigura a sua atuação no nosso meio, desde que lhe não cuidamos, a tempo, de aspectos sobremodo sombrios, já atendido nos outros povos. Então porque se não abre, violentamente, em pelejas sangrentas, em conflitos armados, como o séquito inevitável de crimes e misérias é que se duvida da sua existência entre nós? Ora isto é, apenas, questão de tempo. Se persistirmos nessa indiferença pela solução dos problemas fundamentais que nos afligem, lançando mão de expedientes transitórios e de empréstimos, vai-se ver como ela explodirá, abalando profundamente os alicerces da própria nacionalidade. Os otimistas, para não dizer ingênuos, que durmam o seu calmo e sossegado sono... Talvez os acordem, mais cedo do que podem supor, os ecos da tempestade, que se vai formando, em camadas profundas, no seio do povo, desse povo que não queixa e não protesta, e por isso mesmo lhes parece feliz e conformado. Atende-se, porém, que é um povo a quem, exatamente pela carência de convicções religiosas, educação deficiente, civismo mal formado, tudo o que constitui a alma da resistência contra os fermentos da indisciplina, que, neste momento, mais insuflam as lutas de classes, se pode tornar o mais veemente e invencível na rebeldia contra a ordem de coisas estabelecidas no presente. Só, então, é que se saberá que não tinham escolas, nem habitações higiênicas, nem conforto, nem hospitais, nem garantias no trabalho, nem assistência, nem direitos de espécie nenhuma!... Maconaria Carvalho Neto.indd 54 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto Estará, posta, destarte, a questão social, como só a entendem os nossos patriotas tranqüilos e abastados. A esse tempo, é bem de ver, porém, que teremos de obedecer, de pronto, às circunstâncias imprevistas, porque não quisemos, oportunamente, afastar, por medidas legislativas, governamentais, administrativas, os conflitos latentes, indicados pela situação de abandono em que está o trabalhador nacional. (Legislação do Trabalho, p. 256/7, Rio, 1926). *** PROTEÇÃO À INFÂNCIA OPERÁRIA Não podemos continuar a desquerer, com tamanha indiferença, a infância operária do Brasil. Afigura-se-nos um contrassenso, já perpetuado nas normas da nossa administração, incentivarmos, para o país, as correntes imigratórias, estipendiarmos, a alto preço, o braço estrangeiro, esquecendo-nos, por completo do operário nacional, que abandonamos, desde a infância, no sacrifício do trabalho desprotegido. Não sei de outro modo de preparar e garantir o futuro da Pátria, senão zelando pelos seus filhos, acordando-lhes na alma as lições de civismo, dando-lhes escola, amparo, proteção. Nunca seremos uma nação segura dos seus destinos se a não fizermos forte nos braços dos seus naturais. Para o amanho dos campos, ou os misteres da indústria, para a nossa autonomia econômica, para a restauração das nossas finanças, a base há de ser o operário brasileiro, aquele que vive e canta e ri e chora com as emoções que nos são caras, com os nossos triunfos, e as nossas alegrias, tendo a falar a mesma língua e a venerar uma só bandeira! Maconaria Carvalho Neto.indd 55 55 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 56 Mas quem diz operário brasileiro diz essa infância abandona da donde ele emerge, diz a flor da raça, a seiva que será o Brasil de amanhã, o futuro do Brasil! Não podemos destruir a raça, desamparando-a nos seus rebentos. Todos os povos lutam por vencer e perpetuar-se. Ou isto, ou a morte! Na infância brasileira está o lema intorcível, insofismável, do nosso destino entre as demais nações. Ou protegê-la, ou nos resignarmos ao papel de notas entre os vencedores. Quando não por esta alta compreensão de defesa orgânica, de raça, de povo, de nação, de Estado, ao menos, senhores Deputados, nos lembremos da infância operária do Brasil, por espírito de justiça, por inclinação de bondade. Nunca, como hoje, me pareceram mais a propósito estas comovidas palavras de Victor Hugo: “Celui qui a vu la souffrance des hommes n’a rien vu; et faut voir la souffrance des femmes. Celui qui a vu la souffrance des femmes, n’a rien vu; il faut voir la souffrance des enfants.” Pois que nos mova o sofrimento desses pequenos, em cujos corações hão de vibrar os hinos de amanhã, redimida a falta que nos diminui, quando tivermos dado ao país a carta de alforria da infância brasileira! (Legislação do Trabalho, p. 344/5, Rio, 1926). Maconaria Carvalho Neto.indd 56 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto *** A IMPRENSA DE ONTEM Àquele tempo, os editoriais doutrinavam como uma cátedra acadêmica, os artigos de fundo eram lições de sabedoria. Hoje, a alfabetização dos adultos, leva os que não tiveram escola, à direção dos órgãos de publicidade. Não há mais iletrados e apedeutas. Todos são doutos e doutores, bastando-lhes o nome no cabeçalho do jornal. A imprensa era uma tribuna de civismo e do seu mérito se avaliava pelas penas que a escreviam. Mesmo quando o vinagre da politicalha malsã levedava as discussões entre os partidos, para cobrir de bolhas fétidas a honra pessoal do adversário desvairando, muitas vezes, pelo recato das famílias, ainda assim, a linguagem tinha cunho de vernaculidade, que atenuava as asperezas da luta... Não era o calão de feira, com o resíduo das sarjetas, de que se nutrem os escrevinhadores alugados para as de composturas soezas. Havia, é certo, os malvados que se despejavam na via pública das colunas pagas, como num ato fisiológico de desnutrição. Não tanto, porém, como os néscios de hoje, que babujam os tipos das oficinas gráficas com baboseiras de suas necedades. É com uma diferença para pior! É que aqueles eram exceções que ficavam marcados pela profilaxia dos homens de bem, e agora são multidão, proliferando como mosca no esterquilíneo das paixões anti-sociais. (Gumercindo Bessa, Aracaju, 1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 57 57 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA *** INSUFLAMENTO GEOGRÁFICO E INTELECTUAL DE SERGIPE 58 A situação geográfica de Sergipe, embora lançada numa extensa faixa litorânea, não é propícia a amplos intercâmbios. As importantes cidades que demeram na proximidade do oceano, ou à margem de rios correntes, estão fora das linhas de navegação de longo curso, ou mesmo da cabotagem de maior tonelagem. Passando ao largo os transatlânticos, os navios de alto bordo, avistando de longe as deprimidas costas de alvos areais, flabelados de coqueirais virentes... Está nesta contingência paradoxal — de distância e proximidade — a nossa bela Aracaju, trancada ao mar por uma barra impraticável à grande navegação, que demanda os importantes portos do país, ou do estrangeiro. Quem quer, pois, que não tenha negócio direto com Sergipe, ou alguma especial missão a cumprir entre nós, navega além de águas territoriais, na rota de outros destinos. O baixo São Francisco, amplo e ilhado, dia a dia se entope à jusante, multiplicando-se lhe os bancos de areia, infirmesa flor das águas, na sinuosidade volúvel das correntes. Do Vaza-Barris já ninguém sabe, no delta que muda cada ano, qual o canal antigo por onde navegaram as embarcações veleiras que aproavam, à feição dos ventos, para São Cristóvão e Itaporanga. Do Rio-Real, com as tradições de uma história em muitos pontos contestada, nem mais sinal de vida nos périplos marítimos. E do Piauí, que dera à Estância a alta valia de empório comercial do sul do Estado, crescem, desmedidamente, as Maconaria Carvalho Neto.indd 58 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto margens de mangues, confinando-lhe o leito ao calado de simples barcaças e canoas. Resta o estuário do Sergipe - Cotinguiba, com excelente ancoradouro, mas estrangulado pelas aperturas de um canal de poucos pés, à saída da barra, variando-lhe o thalweg, de linhas tortuosas, à mercê da intermitência das marés ... Fecham-se, assim, praticamente, as portas atlânticas, sucumbindo, por essas vias de comunicação, em progressão contínua na história, as nossas relações comerciais e civilizadoras com os outros centros de cultura, de produção, de vida, do território nacional. E muito mais na República do que no Império; muito mais hoje do que dantes! Ora, o que se verifica normalmente no plano de interesses materiais, na troca de valores e efeitos comerciais, também é visível no câmbio de interesses espirituais. E aqui com repercussão mais sensível e agravante do que ali. A permutação das ideias, a circulação do pensamento, a interpretação de valores intelectuais, já tudo isto se não faz através do contato permanente das vias marítimas. Ao contrário, supressos esses caminhos civilizadores, o que se vai realizando é por hiatos prolongados, muito à distância, e por casos isolados. Não se areja a inteligência com o oxigênio de culturas modernas, em contato direto. Nem lhe bastam os recursos da aviação — para ricos — nem as ondas invisíveis do rádio, por meios indiretos. O que vale, o que marca, o que prende, é a comunicação pessoal, de homem a homem, de espírito a espírito, de sentimento a sentimento, em ação catalítica. E é esta que falha, progressivamente. Maconaria Carvalho Neto.indd 59 59 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 60 Em tais condições, as cadeias do provincianismo prendem as asas aos melhores talentos, que aqui ficam borboleteando, num sonho de luz inatingível... Vê-se, então, o sergipano neste dilema intorcível: ou se parte, num desgarre aventuroso, para outras terras e lá se fixa, tentando uma vitória cheia de sacrifícios, para não mais regressar, aos pagos; ou se anquilosa na província, nessa coivara ardente e inglória em que lhe consome o espírito em loucas fantasias ... É um destino trágico e irremovível... Sergipe — Estado do litoral — está fora das linhas de navegação! Quem sabe, em verdade, dos altos cumes intelectuais, do país ou do estrangeiro, que haja, alguma vez, assomado aos horizontes de nossa terra? Muito pouca gente, tão raras, em nossa história, essas oportunidades estranhas. D. Pedro II, Cansação de Sinimbú, Zacarias de Góes, Tomaz Alves, Evaristo da Veiga e Inglês de Souza, no Império? Barão Homem de Melo, Rocha Pombo, Parreiras Horta, Saturnino de Brito, Evaristo de Morais, na República? E quem se lembra da passagem de Branner, para estudar os calcários paleolíticos de Maroim e recompor o fácies geológico das camadas cretáceas sergipanas? Os nossos próprios patrícios, que avultaram fora do Estado, quanto tempo aqui estiveram, quantas vezes regressaram? Tobias, Sílvio, Fausto, Martinho, Felisbelo, Laudelino, Heitor de Souza, Gilberto, Hermes Fontes, Jackson? E o grande João Ribeiro, que mágoas não ocultou do descaso da terra ingrata? (Diário de Sergipe de 23-4-46). Maconaria Carvalho Neto.indd 60 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto *** MINISTÉRIO DE ASSITÊNCIA Antevemos que o Brasil terá, mais cedo ou mais tarde,o seu Ministério de Assistência, coordenando os serviços de outros ministérios nesse ramo de atividades. Quando menos, um departamento com tais atribuições, pois o Estado intervencionista, que impõe o seu poder fiscalizador em elastério cada vez mais dilatado, não deixará que o problema de assistência, mesmo nas instituições particulares, lhe seja estranho ou indiferente. (Patronato dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). *** 61 Fujamos, quanto possível, do regime do papelório inútil, da exteriorização pedantesca de certos departamentos faustosos, mas de resultado duvidoso. (Patronato dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). Maconaria Carvalho Neto.indd 61 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA II RELIGIÃO A FÉ RELIGIOSA 62 Sou desses que não fazem da religião objeto de exibição, persignando-me aos olhos da curiosidade como sinal de que pertenço à comunidade católica. Se os meus pecados para com Deus se medirem por essa craveira, não me esquivo de bater aos peitos, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa... Continuarei, porém, como sou, como tenho sido: um crente sincero, volvido para Cristo, porque “o cristianismo e em Cristo...” (Maurice Zundel, O Poema da Sagrada Liturgia). Reconhecendo-me um temperamento de fundo místico por suas práticas mundanas, “brulent du désir d’assassiner une seconde foi Jesus” — procuro nos padres Lagrange, De Grandmaison, Lebreton, Pinard de Lahoylaye, Leonel França, as razoes dessa mística, de que me não afasto. E como na formação de minha alma, no escrínio de minha fé, só a minha consciência impera, não admito nem aceito intervenções que me demovam. Filho de família católica, com dois tios padres, reverencio nessa fé a cristalina pureza da religião de meus pais. Nunca se me apagou do coração a lâmpada que lhe acendeu em Cristo a bondade inesgotável de minha mãe. Estou a vê-la, acariciando ensinar-me o “Padre Nosso.” E hoje quando, na simplicidade do meu lar, testemunho Maconaria Carvalho Neto.indd 62 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto a minha companheira repetir para meus filhos essa mesma oração, é que posso avaliar o sentido destas palavras de François Mauriac. “Se Cristo não o tivesse dito - ‘Padre Nosso...’ nunca em mim despertaria o sentimento dessa filiação, nunca essa invocação me teria subido do coração aos lábios”. (Vida de Jesus). Ora quem assim tem sido, quem assim continua sendo, que mal lhe vai a maldade humana, teimando em lhe arrancar do coração a imagem que seus lábios nunca profanaram? Quem arrancaria do espírito livre de Guerra Junqueiro, entre tantas dúvidas que o assaltaram, a crença profunda, de inspiração divina, que estes versos esculpiram num diadema de luz para a eternidade? .................................................................................... Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal .................................................................................... Sim, creio que depois do derradeiro sono Há de haver uma treva e há de haver uma luz Para o vicio que morre ovante sobre um trono Para o santo que expira inerme numa cruz. Tenho uma crença firme, uma crença robusta Num Deus que há de guardar por sua própria mão Numa jaula de ferro a alma de Lucusta, Num relicário d’ouro a alma de Platão” (Diário de Sergipe 15-3-46). 63 PROFISSÃO DE FÉ A despeito de tão claras e inequívocas manifestações, por atos e palavras, no traçar uma linha de conduta pública Maconaria Carvalho Neto.indd 63 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 64 entre o poder espiritual e o temporal, não se aquiteu o farisaísmo anônimo da imprensa politiqueira. Vez por outra me averbava de irreligioso, como num desejo de malquistar-me com a Igreja... E até nos comícios da campanha partidária ia desaguar essa verborréia impura, manando dos lábios de sacerdotes transviados dos seus deveres de piedosa catequese. Sempre tive como ínsito na órbita da vida privada, nos limites da consciência inviolável, esse problema da fé. Parece-me que deva ficar resguardado da bisbilhotice matreira desses intrometidos nos segredos dos lares alheios. Afiguram-me quais ladrões noturnos, a busca de tesouros imaginados... Ora, os que conhecem portas adentro a minha casa e lhe testemunham os hábitos cristãos, na sua simplicidade, na carência de ostentação, hão de rir dessas invencionices pecas da terra mexeriqueira... Nada sei da intimidade de outros lares, ricos ou pobres, felizes ou desventurados. Não é de minha conta devassá-los, para saber se são devotos, ou ateus; se aliados dos demônios, ou tementes a Deus... Mesmo nas angústias e no sofrimento, quando um raio da desgraça lhes toca a existência e se me confessa, na esperança de lenitivo ― tantas vezes tem isto acontecido! ― manda a ética de minha profissão que guarde sigilo e nada refira senão expressamente autorizado. Tão respeitável para a dignidade dos homens, é a intimidade dos lares seja de um virtuoso ou de um celerado! E quando digo intimidade quero especialmente referir-me a esses sentimentos delicados do coração, em que se aquece a fé, em que tem o homem o santuário de sua vida subjetiva. Que, em verdade, sabem de mim, de minha religião, de minhas crenças, esses profanadores da consciência alheia? . Maconaria Carvalho Neto.indd 64 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto Nada e nada! Porque, felizmente, nunca lhes fiz confissão, ou lhes dei a confiança de repastarem a curiosidade nas graças cristãs do meu lar. Estou com este avisado conselho do livro sapiente: “não abras o teu coração a qualquer pessoa” (Ecles. VII,22). Por isso mesmo, escolho voluntariamente, o meu padre, o meu confessor, o meu amigo. E somente este pode saber como sinto, como penso, como devo ser julgado ante a munificência divina. Quando, ao arrepio destas verdades intuitivas, vejo a profanação das consciências cristãs na logorréia mitingueira de sacristias alugados ao deus ouro, tenho piedade deles, da sua infinita ignorância e maldade. E certo que “tudo o que acontece tem algo admirável, porque traz a vontade de Deus”, segundo Pascal, bendigo a oportunidade destes fragmentos para fazer uma confissão pública, pois em particular não a ignoram os meus amigos, os que privam comigo na intimidade dos meus sentimentos. Será talvez, uma confissão ingênua, como a de tantos outros que vazam o coração nos derrames da fé... Verdade é que, por tradição de família esclarecida no meu espírito pela compreensão de uma das mais luminosas meu espírito pela compreensão de uma das mais luminosas representações da cristandade, tenho a devoção de Santo Antonio. É uma herança afetiva de meus avós, continuada na crença de meus pais, permanente no culto e nas preces do meu lar e transmitida, pelo exemplo, as inspirações de minha descendência... Antonio era o meu avô, na linha materna; por Antonio me chamo; um dos meus filhos é Antonio; e já um neto vem à luz como Antonio. Maconaria Carvalho Neto.indd 65 65 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 66 Esta continuidade batismal tem sido mais que um desejo, tão comum aos pais, de ligarem ao tronco primitivo os ramos das novas gerações. Tem obedecido, no desdobramento da estirpe, a essa doce vocação mística de formar uma família cristã sob o signo e a proteção de um dos mais sagrados nomes da Igreja. Em se lhe conhecendo a formosa historia de humildade na inteligência ̶ em Lisboa, em Pádua, em Roma, na África ̶ as afinidades espirituais e morais com o Pai Seráfico de Assis, seu guia e inspirador; a peregrinação evangélica, com “a grande inteligência e a grande humildade”, que revestiram a sua palavra e os seus atos; é natural que se chegue a conclusão a que chegou Constâncio Alves. “Ora, façam o esforço de apagar a vida de Santo Antonio o que mais refulge, a história de seus milagres, que não consente ver bem o resto, e o que fica é a biografia de um grande homem de letras, que só não poderá servir de modelo a seus confrades, por sua perfeição desanimadora.” (Santo Antonio). De feito, para um homem de estudo, nos caminhos cruzados da civilização, esse lume espiritual é um guia inspirado em meio as incessantes tribulações terrenas. E nenhum como ele tão ligado às tradições religiosas do Brasil. Nos altares e nas armas. O grande orador que ele foi, tendo maravilhado o mundo de seu tempo, recebeu da Academia Brasileira de Letras a mais comovida homenagem, eleito patrono dos intelectuais, como é Santo Ivo dos Advogados. Ora, é ele o Santo glorioso que enche de esplendor místico a modéstia de meu lar, festejado na intimidade da família, Maconaria Carvalho Neto.indd 66 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto nas trezenas votivas do seu culto. Como toda a casa católica, tem a minha o seu oratório de imagens, segundo a vocação de minha esposa, a seu zelo, as suas orações. E entre quantos símbolos de veneração, de estima, de admiração, figuram em minha biblioteca —̶ onde dois terços do meu tempo útil se consomem no estudo da ciência, da pesquisa da verdade, na contemplação do belo — é ele, Santo Antonio, na sua efígie de doçura e bondade, que ilumina o meu espírito e eleva a minha profissão. Ou seja, nas telas de Murilo, ou de Rafael, que o gravaram para a adoração da cristandade com aquela serenidade de expressão acolhedora, ou nos afrescos de Goya, representando-o com a mesma fisionomia de suavidade apascentadora, o certo é que a arte o popularizou como é geralmente conhecido: — no seu severo hábito franciscano, tendo um livro na mão, e nos braços, aconchegado ao peito, a imagem de um menino. Castro Alves, que foi Antonio, assim o evocou: “Quando ante Deus vos mostrardes, Tereis um livro na mão.” Esse menino é bem um símbolo de proteção; esse livro um sinal de estudo, de meditação. Para os que estudam, Santo Antonio é um guia, um amparo, uma inspiração! (Diário de Sergipe de 28-3-46). 67 A IGREJA E O ESTADO Triunfou com Rui Barbosa, o pontífice magno do constitucionalismo brasileiro, na implantação da República, a sabia formula de equilíbrio ético-politico-religioso de Cavour Maconaria Carvalho Neto.indd 67 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA — a Igreja livre no Estado livre. E a despeito das resistências opostas, no início, tornou-se definitiva com os decretos da separação e o texto da Constituição de 1891. Desde muito havia Renan expresso o ponto nesta síntese: “Grâce à Jesus les drois de la conscience soustraits a la politique sant arrivés à constituer un pouvir spirituel” (Vie de Jesus). 68 Esse poder espiritual, força das consciências, encontrou nos postulados da separação a sua melhor garantia. A palavra oracular pronunciada por Montalembert sobre a Igreja Iivre no Estado livre, no Congresso de Malines, ecoaria demoradamente pelo órbe católico. Conceituando a liberdade, sob esse aspecto das relações da religião com o Estado, eis o que disse: “Católico, se quereis a liberdade para nós entendei-o bem, é preciso que a queiras igualmente para todos os homens e debaixo de todos os céus. Se a pedirdes para vós unicamente, não a tereis nunca: dai-a em toda a parte onde fordes escravos.” Ampliando este conceito, na critica que faz as conclusões desse congresso, Ramalho Ortigão escreveu: “A liberdade é uma só, única, indivisível e sagrada, expressa pelo predomínio dos poderes espirituais sobre os poderes temporais, representada na parte dinâmica pela ciência, na parte estática pela religião.” (As Farpas). Maconaria Carvalho Neto.indd 68 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto E para assegurar esse predomínio dos pobres espirituais, de modo a se tomarem invioláveis as consciências, foi que nas democracias se proclamou o princípio separatista vigorante. Dentro mesmo nesse princípio os dois tipos marcantes: o da França, reacionária e agnóstica o dos Estados Unidos, conciliador e cristão. Ora, é com os Estados Unidos que envolveu, constitucionalmente, o Brasil, inspirando-se em suas livres instituições. Nisto se rastreia a noção doutrinária exposta por Bryce (South America - Observations and Impressions: The American Commonwealth), confirmando os expositores americanos mais reputados. Deu ao Brasil a interpretação segura dos fatos, derredor dos incisos legais, o insigne Rui. Em termos lapidaras, aquela admirável oração do Colégio Anchieta, em 1903, em reinteração, aliás de muitos outros ensinamentos, que, em fases diversas, andou definindo em cintilações de gênio. Tomada para confronto a grande democracia norte-americana, em cujos exemplos se iluminou na elaboração da Constituição de 1891, pronunciou: 69 “Veda a Constituição, de todo, ali, como aqui, aos poderes federais qualquer aliança entre a Igreja e o Estado; circunvala entre este e aquela a separação mais completa. Mas os atos mais solenes do Governo invocam o nome de Deus. Os generais em serviço de guerra imploram, diante das tropas, a bondade tutelar dessa Providência, que encaminha indivíduos e nações. À voz do Presidente, se reúnem todos os anos, em dia certo, a nação inteira, a render graças ao Eterno. As sessões do Congresso, nas Maconaria Carvalho Neto.indd 69 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA 70 suas duas Câmaras, se abrem e encerram diariamente com as preces de um sacerdote. O Senado tem o seu capelão: tem o seu a Câmara dos Representantes, um e outro eleito por essas duas assembleias. Têm-nos, ainda, nomeados pelo Presidente, as prisões, os hospícios de alienados, as escolas militares, o exército e a marinha até vinte e quatro para esta e para aquela trinta e quatro. A propriedade eclesiástica não se tributa no distrito da Colúmbia nem nos Estados. O juramento nas instituições federais, como nas estaduais, se confere sobre a escritura sagrada aos que não a rejeitaram. As leis da União, como as dos Estados, consagram o descanso dominical.” E segue, num crescendo de exemplos admiráveis, a palavra evangelizadora do incomparável paladino das instituições democráticas. Ora, nas maiores provações por que tem passado a nação americana ainda mais se acentuou essa concepção, abonada com a prática de todos os dias. São de conhecimento recente os fatos da guerra de 1914 — 1918, e de recentíssimo conhecimento a última conflagração mundial, numa e noutra com tão larga e decisiva participação do povo americano. E através das manifestações de Wilson, de Roosevelt e Truman, não se descontinuou essa linha inflexível de conduta entre a Igreja e o Estado. Porque, ali, o poder espiritual — reserva das consciências — não se comprime a moldes de intolerância política, ou Maconaria Carvalho Neto.indd 70 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto religiosa. Impera, ao contrário, aquela concepção de respeito ao indivíduo, na inviolabilidade dos seus sentimentos religiosos. Eis porque o Brasil, plasmando a sua lei magna nesses exemplos edificantes, não pode variar dessa interpretação liberal e harmonizadora. É assim que, nada obstante os termos formais da separação entre as duas esferas — a temporal e a espiritual — é mantida a legação junto a Santa-Sé e têm os nossos políticos, numa alta compreensão diplomática, influência na conquista dos nossos cardinalatos e príncipes da Igreja. Essa, a política que me tem norteado em toda a minha vida pública. Na Câmara Federal, como na Assembléia Estadual. Quando falo, ou quando escrevo. E se nem sempre bem compreendido, ou intencionalmente mal compreendido, culpa não me corre de que me irroguem pensamentos que não são meus, ou palavras que jamais proferi. No homem que fala, ou que escreve, é fácil que a inópia dos tolos rebusques frases soltas, expressões isoladas, para lhes atribuir sentido falso, equivoco, duvidoso. A probidade mais rudimentar, porém, está no entrosálas no discurso, ou no escrito, para se conhecer a inteireza do pensamento, a essência da verdade. A recomendação de Jacques Maritain se pauta por estes termos: 71 “L’oeuvre proprement catholique est de fomenter partout le vrai.” (Religion et Culture). Nesse fomentar da verdade, edificando nas consciências, é que está o sincero exegeta das nossas instituições, no que tange com esta magna questão. Maconaria Carvalho Neto.indd 71 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA Foi o que fez Rui, é o que fazem os fiéis do credo politico-democrático. Que importa surjam, a sorrelfa, os apedeutas, treslendo-lhe as lições, conspurcando-lhe o pensamento? Só os tartamudos, que baralham as palavras e truncam as idéias, é que se podem gabar de não ser Iidos, ou ouvidos. Na terra deles, a lapidação é uma vitória do pensamento contra certo ultramontanismo desvairado. Não é estranhável que ainda hoje só se veja em Rui a sombra odiada do autor? Tradutor do Papa e o Concílio... (Diário de Sergipe de 23-3-45). *** A IGREJA E A QUESTÃO SOCIAL 72 É estranhável que se pretenda negar, ou diminuir, a eficiente colaboração da Igreja no evolver da Legislação social. A célebre Encíclica de Leão XIII ̶ Rerum Novarum (de conditione opificum) — 15 de maio de 1891 — é o mais alto documento de sabedoria que reúne, sob a bandeira da religião, os socialistas católicos. Para os pormenores da questão, entre outros, Max Turma; Le Catholicisme social depuis l’incyclique Rerum Novarum, 1910; Ch. Feuillete, Du Regime du travail d’apres l’encyclique Rerum Novarum, 1913, etc. Avulta, ainda pela origem e significação especial que representa para o mundo católico, a alocução do Santo Padre ao conde de Mun e aos romeiros que o acompanharam a Roma, depois da Encíclica. Extratem-se-lhe da inspiração saudosa alguns trechos lapidares: Maconaria Carvalho Neto.indd 72 07/11/2013 10:27:27 Carvalho Neto “Nous l’avons dit: il est certain que la question ovrière et sociale ne trouverá jamais de solution vraie et pratique dans lois purement civiles, même les meilleures. La solution est liseé aux précepts de parfaite justice réclamant que le salaire réponde adequatement ou travial. Elle est done du ressort de Ia conscience. Or, 1.’1, législation humaine, visant direetement les actes exterieures de Phomme, ne saurait comprendre Ia direction des consciences. “ E mais outra passagem: “Nous constatons avec plaisis que les chefs d’industries considerables ont étudié déja l’aplication de notre Encyclique et que les gouvernements n’y sont pas été insensibles.” (Maurice Block: L ‘Europe politique et soeiale - p.577/8). 73 E assim a palavra da Igreja foi dominando os horizontes da questão social, plantando deveres ao lado de direitos, numa correlação necessária e indesatável. Tanto que, já a 25 de janeiro de 1885, o conde de Mun, no Parlamento francês, traçando os lineamentos do cristianismo social, em face dos problemas operários, conseguiu que a câmara pusesse em ordem do dia e votasse: “La Chambre invite le Gouvernement à preparer l’adoption d’une legislation internationale qui permette à chaque Etat de protegér l’ouvrier, sa femme et ses enfants, contre les excés du travail sans danger pour l’industrie nationale.” (A. Vabre - ob. cit. p. 16). Maconaria Carvalho Neto.indd 73 07/11/2013 10:27:27 VULTOS DA MAÇONARIA Da existência de partidos católicos nos países cultos, propugnando por esses princípios não é lícito duvidar. Quando se não queira recorrer, em seu testemunho, à farta documentação histórica, basta recordar o eco das conferências que em 1908 realizou no Brasil o professor Vlieberg, da Universidade de Louvain, sobre questões católicas e sociais. Discorrendo sobre “As tendências dos povos latinos e germânicos na solução das questões sociais”, falou: 74 “Vamos sinceramente ao trabalhador, ao operário, iluminemo-lo, façamo-lo compreender que na moral cristã nada existe que se oponha às suas justas reivindicações, e, se não nos for dado ver triunfo final, poderemos ao menos dizer: ‘Et nune Domine dimitte servum tuum’ — teremos feito o que nos foi possível e o que deveríamos fazer. “ E quem já esqueceu a ação nobilíssima de Inácio Tosta, na Câmara dos Deputados, à frente sempre desses límpidos ideais, exclamando em sessão de 29 de junho de 1905: ̶ “A Igreja, guarda da religião, tira do Evangelho um conjunto de doutrinas próprias para o conflito social, ou pelo menos, arranca-lhe a aspereza?” No que diz respeito propriamente a obras católicas ligadas à questão social, ao lado simpático e doce da caridade, fundações, institutos, asilos, colégios, hospitais, maternidades, recolhimentos etc. (e o próprio Leão XIII dizia que - “la question reclame aussi le concours de la charité que va audelá de la justice.” - M. Bloock, op. cito p. 577) não há, então, abranger a vastidão em que se tem alargado a ação católica, bem verdade que em emulação com outros credos ou seitas religiosas. Por Maconaria Carvalho Neto.indd 74 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto felicidade nossa o Brasil já testemunha, neste sentido, um movimento dignificador, aí patente às nossas vistas, coram populo. E para o estrangeiro? Seja bastante, como índice dessa imensa grandeza, o que na obra de Emile Sergent, L. Ribadeau, Dumas, L. Badonniex - Medicine Sociale, XXXIII ed. 1925, escreve Pierre Laurar, no Capítulo IV sobre Obras Católicas - p. 245-255. (Legislação Social, p. 75-77, Rio, 1926). 75 Maconaria Carvalho Neto.indd 75 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA III FILOSOFIA EVOLUÇÕES DAS IDEIAS 76 O evolver das ideias não é o passo de um dia, o caminhar de alguns meses, ou mesmo de muitos anos. É o ciclo de várias gerações, comumente de séculos, de épocas, de civilização. Há forças que se opõem no trânsito desses ciclos. Forças de conservações, forças de evolução. Misoneismo ou filoneismo. Se a ideia é vivedoura, se traz o germe do futuro, rompe a resistência dos preconceitos, quebra o casulo do conservantismo e vence a marcha! (Diário de Sergipe de 26-7-46). *** A VERDADE ... toda a obra de arte, corporifique a força ou revista o direito, seja expressão do belo ou síntese do justo, não perdurará se não a iluminar interiormente essa centelha, que tremeluz no íntimo de todas as grandes aspirações — a verdade! (Legislação do Trabalho, p. 250, 1926). Maconaria Carvalho Neto.indd 76 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto *** OS POVOS E O INTERCÂMBIO DAS IDEIAS O intercâmbio das ideias é a atmosfera moral em que vivem as nações. Desse intercâmbio se interpretam as doutrinas políticas, jurídicas, sociais, econômicas, que se disputam o mando, em ações e reações. E nessa troca incessante — endosmose e exosmose, como nos organismos vitais — defrontam-se povos fortes e povos fracos, povos cultos e povos incultos. Os primeiros, que se distinguem pela sua solidez estrutural, política, racial, econômica, e reagem e afirmam a sua individualidade autônoma, na continuidade histórica de suas tradições. Estratificação de costumes, de moral, de instituições de sentimentos, de caráter. Os segundos, que se deixam facilmente absorver por infiltrações desagregadoras estranhas, e lento e lento sucumbem ao avassalamento de programas alienígenas de conquistas moral, jurídico, econômica, social. Areia movediça à feição dos ventos, sem fixação definitiva no solo das convicções enraizadas pelo tempo. (Discurso na Maçonaria, Aracaju. 1940) 77 *** A SUPREMACIA DO MATERIALISMO NAS PROFISSÕES LIBERAIS É incontestável que o homem de negócios vai vencendo, hoje, o homem de letras. Mais agora do que antes. O interesse mercantil suplanta a cultura do espírito. Cede, assim, o lado subjetivo da profissão as rudes imposições do objetivo. Maconaria Carvalho Neto.indd 77 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA 78 O idealista já se torna um como viajor perdido, sonambulando pelos caminhos irreais do sonho, da fantasia... Na época dominadoramente realista do vil metal, outra é a nobreza que os homens procuram. Nem a do sangue, nem a da inteligência. Doura-se de um novo brilho, com a arrogância espaventosa de nouveau riche, ostentando o seu domínio no mercado dos dólares, das esterlinas. Mesmo os cruzeiros de câmbio vacilante soam ruidosa mente como pegas de ouro, transbordando nas hurras de argentários enfartados. É o reinado material de certa burguesia endinheirada negociando-se o amor, prostituindo-se a arte, comprando-se as consciências. E tudo o que se não ajustar, a este denominador comum, na aferição dos valores humanos, é passadismo, idéia morta, reminiscência de um tempo longínquo... A idolatria do bezerro de ouro tem ares de nova fé, como renascente de ilusões perdidas. A despeito de todas as teorias estatais modernas, na tentativa de se repartirem as riquezas por medidas mais equidosas para a sociedade, o que vemos é que elas se acumulam noutras formas igualmente egoísticas e desniveladoras. Proclama-se a falência da razão e surgem as místicas, tomando-lhe o sólio. E que a “crise do espírito”, de que fala Paul Valéry, continua a “falência da ciência”, anunciada por Brunetiére. Paralelamente, no governo dos povos, as formas lúcidas da política são substituídas por um culto ostensivo, tangível: o herói, o chefe, o führer, o duce, encarnando um só princípio incontrastável — a força! Maconaria Carvalho Neto.indd 78 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto A planificação quer alcançar até os domínios mais altos do espírito, engaiolando o pensamento como um pássaro preso. Dai, nesse crescente evolver das bases da civilização, irem perdendo as profissões liberais, qual luz que se fosse apagando lentamente, de um sol distante que já se não vê, a sua feição clássica de arte e beleza, o seu objetivo superior de culto à ciência, essa íntima impregnação de princípios filosóficos e éticos, que as elevavam acima, muito acima, de suas condições puramente materiais. (Advogados ̶ como aprendemos, como sofremos, como vivemos, p. 85). *** O VALOR DA CIÊNCIA A ciência não se afirma por ser ensinada conforme a profissão do individuo. Vale sim, pelo saber de quem a professa, pelos estudos de quem a conhece. Não é um privilégio de uma classe, mas uma conquista de quem lhe penetra a interpretação. Médico ou bacharel, cada um vale pelo que sabe, não pelo que presume. E a medicina-legal tanto é disciplina de curso médico, como de curso jurídico. (Um caso de interdição, vol. I, Aracaju, 1936). Eis ai — a chave da abobada do edifício intelectual é a memória. Sem ela tudo mais se vai apagando, inteligência, julgamento, linguagem, consciência. O psiquismo se reduz, assim, a um aparelho deficitário e incapaz. (Um caso de interdição, vol. I, Aracaju, 1936). Maconaria Carvalho Neto.indd 79 79 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA *** O NíVEL INTELECTUAL DAS ASSEMBLEIAS Quem já fez parte do Parlamento, ou pertence a qualquer assembléia, por mais culto que seja, sabe de experiência própria que o trabalho de conjunto, o trabalho dessas coletividades, é sempre inferior ao que individualmente seria capaz de produzir qualquer dos seus membros. A poesia, que dá a intuição das leis cientificas, nos versos de Lamartine diz: “Il faut se séparer, pour penser, de La foule. Et s’y confonder pour agir. 80 E Maupassant, em admirável página de psicologia, com simples pretensões de literatura, bem assinalava que, “Les qualités d’initiative intellectuelle, de reflexión sage et même de penetration de toute homme isole disparaissent dés que CET hommes est mèlé à um grand nombre d’autres hommes. ” Esta verdade vem também enunciada nos Paradoxos de Max Nordau, com estas palavras: “Não precisa ser profundo pensador, nem hábil observador para descobrir que as grandes assembléias são disparatadamente medíocres no que diz respeito ao nível intelectual. Reúnam, pois 400 Goethes, Kants, Helmholtz, Shakespeares, Newtons etc. . . e submetam ao seu julga- Maconaria Carvalho Neto.indd 80 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto mento e sufrágio as questões práticas do momento. Os seus discursos serão talvez diversos dos pronunciados em uma assembléia qualquer, ainda que destes eu também não deseje ser fiador; enquanto, porém, as suas decisões estou certo de que não serão de modo algum diferentes das de que qualquer outra assembléia.” Quem quer perlustre, em verdade, os trabalhos sobre psicologia coletiva, sabe que esta afirmativa é incontestável. Sipio Sighele, Gustave Le Bon, Gabriel Tarcle, Guglieno Ferrero, Enrico Ferri, Garofalo, para só falar nos mais lidos entre nós, têm como assente e definitivo que o nível intelectual baixa na coletividade, enquanto cresce no individuo. E não bastante os seus pendores filosóficos, ou divergências doutrinárias, num ponto estão de acordo: que as inteligências numa assembléia não dão soma, e sim uma média, ou como diz Gabelli ̶ “les forces dês hommes quand ils sont reúnis se retronchent et ne s’enjoulent pas.” Lord Chesterfield, tomando para exemplo o seu parlamento, escreveu — “Sê-lo-á sempre assim. Toda assembléia é uma multidão. Quaisquer que sejam os indivíduos que a componham, nunca se lhes pode exigir a linguagem da razão; uma coletlvidade não tem a faculdade de compreender...” Ora, esta observação fora feita em 1751!... Para alguma coisa ha de ter servido tão longa experiência, aproveitada hoje pelos povos cultos, anexando aos seus parlamentos, as comissões técnicas.” (“Comissões Legislativas”, Jornal de Sergipe de 28-3-31). Maconaria Carvalho Neto.indd 81 81 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA *** A FORMACÃO DAS COMPETÊNCIAS 82 O título científico serve apenas de presunção relativa, para ingresso à formação das competências. E estas não se formam por colação, consoante a expressão de Faguet (O Culto da Incompetência, p. 11) mercê da generosidade dos mestres, ou condescendências acadêmicas. Consegue-se, porém, no trabalho diuturno, no estudo continuado, na paciência de acumular subsídios de conhecimentos através da mais perigosa observação dos fatos. Não hasta ler, quando se leia; o compulsar livros quando se os tenha. A operação do espírito é absorver pela assimilação, transmutando em saber próprio a cultura de outrem. Bem disse o inimitável Rui: “Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimula” (Oração aos Moços). Não é, por isso mesmo, trabalho de improvisação, às vésperas de cada emergência. É ao contrário, tarefa continuada persistente de todos as dias, do madrugar ao anoitecer no ofício. (Um caso de Interdição, vol. I, Aracaju, 1936). Maconaria Carvalho Neto.indd 82 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto *** A IMPERFEIÇÃO HUMANA A perfeição não é um dom humano; é privilégio divino. Um trabalho perfeito não será criação do homem, mas reflexo da divindade. Ascende o gênio às mais altas concepções do pensamento, traça sistemas filosóficos, descobre e define leis, organiza postulados científicos. De mesclas impuras, entretanto vem o tempo mostrar que os expungiu. A condição de precariedade, pois, é inseparável das obras humanas, e, ainda nas mais belas, ou de maior poder sugestivo, ou emocional, há laivos destoantes. Manoel Bernardes escreveu que: “Todos os filhos de Adão padecemos nossas mutilações e fealdade, uns na honra, outros na saúde, outros na fazenda, outros na ciência, outros na limpeza do sangue, outros em outras coisas...”. De mutilações e fealdades, sobretudo, na ciência, nas produções do espírito. (Jornal de Sergipe, 1932). 83 *** IGNORANCIA HUMANA Grande é a sede de saber; maior, porém, o mundo dos conhecimentos não revelados. O céu imenso e profundo que olhamos e nos encanta, quantos de vós podeis explicá-lo. E pelo não fazerdes, o perderá, acaso, a sua formosura inigualável, a grandeza impar dos seus mundos estelados, a Maconaria Carvalho Neto.indd 83 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA 84 chuva luminosa de sua via láctea, o infinito de espaço com o infinito de estrelas, criando no imaginário dos poetas fonte perene e inesgotável de inspirações? E o mar grandioso, águas em todos os quadrantes, marulhosas ou plácidas, azuis, verdes, escuras, espelho em que se miram sóis, transparência de astros nos plenilúnios de prata, estrada com que se conquista mundos e se descobrem continentes? Quantos de vós podeis, narrar-lhe o incessante movimento, as caricias das vagas beijando as praias, o furor das ondas no embate dos arrecifes? E pelo não fazerdes será que se estanquem as suas maravilhas, se exauram os seus tesouros, e se despreocupem os homens de cantar-lhe a magia, o enleio a fascinação? E o brilhante que ostentais no dedo, gema rara e custosa, ou cintile como um pingo de luz, na curva perfumada de um colo sedoso, pondo reflexos de iris na carne palpitante e rosada, quantos de vós podeis dizer-lhe a história tortuosa, da sua formação milenária, na química geológica, as angústias e esperanças da cata, do cavoqueiro, da bateia, do lapidário, enfim? E pela não contardes deixará, acaso, esse brilhante de ter brilho e de ser, aos olhos perdidos e enamorados de vaidade humana, o prego de tantos prazeres transitórios, mesclados de quantas torturas ignoradas? Uma árvore ancestral e anosa, veneranda e austera, raízes embebidas na terra, nutriz de sua seiva, na terra, nutriz de sua seiva, do seu lenho; copa armada e galhos distensos para os beijos de luz, para a orvalhada matinal, para o cicio da brisa, para os ninhos da passarada. Maconaria Carvalho Neto.indd 84 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto Quanta beleza no seu porte altaneiro, quanto perfume nas suas flores, quantas lágrimas na resina gotejante do seu caule mutilado! E se não puderdes explicar essa maravilha da natureza, será, então, o caso de a não achardes bela, majestosa, inspiradora da arte, criadora de sonhos? Por fim palpai vós mesmos o vosso peito: eis o coração! Ele pulsa, é o ritmo da vida! Sístole, e diástole, o bem e o mal, a esperança e o desespero, a alegria e a dor, a fé e a dúvida, o sonho e o desengano, o amor e o ódio, corrente impura ou linfa cristalina, a mescla de todas as emoções, num segredo que ninguém nunca descobriu!... Sois o crente, e ele é a urna da fé; sois o amante, e ele é o transbordamento do amor; sois a maternidade, e ele é tudo, sofrimento, alivio, esperança, dedicação, saudade; sois o patriota, e ele é coragem, heroísmo, esquecimento de nós mesmos pela lembrança de todos; sois o namorado, e ele é o mel que se da nos lábios, o quebranto que se tem nos olhos; sois o criminoso, e ele é o fiel, a salsugem, tisnada de resíduos da nossa natureza; sois o louco, e ele é a luz apagada em mar de sem de tempestade, no navio desarvorado na noite sem fim da consciência perdida!... Eis o coração!... Como o entender? Como o explicais? Segredo eteno! Bem junto a nós, dentro de nós, e a quanta distancia dele, quanto mistério nos seus desígnios, quanta sombra no seu mundo invisível (Jornal de Sergipe, 1931). Maconaria Carvalho Neto.indd 85 85 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA *** VALOR DAS COMISSÕES Sabemos de experiência — e é uma lição correntia da ciência — que as comissões numerosas são pouco eficientes conhecida lei de psicologia coletiva que os valores mentais intelectuais, não se somam numa assembleia. E a média resultante é sempre inferior és individualidades competentes. Ademais, quanto maior o número de uma assembléia, ou corporação, mais nela se dilui e enfraquece a responsabilidade de cada membro, perdendo com isto a autoridade. 86 “Não precisa ser profundo pensador nem hábil observador para descobrir que as grandes assembléias são desparatadamente medíocres no que diz respeito ao nível intelectual. Reunam, pois, 400 Goethes, Kants, Helmholtz, Shakespeares, Newtons etc.; e submetam a seu julgamento e sufrágio as questões práticas do momento. Os seus discursos serão talvez diversos dos pronunciados em uma assembleia qualquer, ainda que destes também eu não seja fiador, porém, às suas decisões estou certo de que não serão de modo algum diferentes das de qualquer outra assembleia”. (Max Nordau, Paradoxos, p. 59, Patronatos dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). Maconaria Carvalho Neto.indd 86 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto *** AS UNANIMIDADES E as unanimidades não sagram ninguém, nem valem como título de escol. Em Les lois d’imitation, exprime Tarde: “Il faut se mefier beaucaup dês unanimités; rien ne dénote mieux l’intensité de l’entrainement imitutif”. É até humilhante confundir em uníssono o aplauso de toda a gente. Afrânio Peixoto, dirigindo-se a Oswaldo Cruz, repetiu noutras palavras o conceito do sociólogo e penalista francês: “A unanimidade de aplausos é prova certa de uma mediocridade que deixa de contentar a alguns para satisfazer a todo o mundo.” (“Louvores ao Código”, Jornal de Sergipe de 19-9-32). 87 *** AS IDÉIAS NOVAS E A RESISTÊNCIA DO MISONEÍSMO A resistência do misoneísmo é arma em riste, voltada sempre contra as idéias novas. A tendência à conservação de conceitos adquiridos, obedece a uma lei de persistência que acumula no espírito velhos sedimentos difíceis de remover. Em tais casos, só o lento e lento das transformações da consciência jurídica, processadas por demoradas etapas no sentimento coletivo, conduz a modificações apreciáveis através dos tempos. A não ser que abalos sísmicos revolvam, de súbito, as Maconaria Carvalho Neto.indd 87 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA camadas subjacentes e renovam as superfícies estratificadas em longas sedimentações!... (“Louvores ao Código”, JornaI de Sergipe de 19-9-32). *** AMIZADES 88 Inesgotável essa fonte de bondade onde banho o espírito, qual rorejar cristalino de palavras amigas, letificando-me existência... Por mais áspera que se me apresente a luta, nas incertezas da política, ou nas alternativas da profissão, nesse trato de certidão social, bravio e ardente, que é o nosso Sergipe, quando menos espero lá me vem, com prismas de aurora, um pouco de luz benfazeja, dourando-me o caminho da vida... Tenho a sensação, nesses raptos de sonho, a noção grosseira e diuturna de arco e flecha, com que o indígena se arma e combate nas guerrilhas permanentes da terra arestada de tocaias e misérias... Converso com outros homens, auscuto-lhes os sentimentos, ouço-lhes as palavras, e só então é que percebo que o ambiente de aldeia, onde me condeno a viver, ainda não me suplantou na inteligência as ânsias incoercíveis de aperfeiçoamento, de beleza, de harmonia. Esqueço-me, por instantes, do lugar onde estou e deixo-me tomar pelo oxigênio dos ares sadios, que transmontam os horizontes confinados de Sergipe. Enche-me o peito, a largos haustos, de revigorante otimismo... (Diário de Sergipe de 16-4-46). Encontramos em sua correspondência, uma carta de José Peixoto, da firma Peixoto, Gonçalves & Cia., datada de fevereiro Maconaria Carvalho Neto.indd 88 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto de 1954, que é bem a prova dessa sua capacidade de criar sólidas amizades que lhe perfumaram a existência agitada. Sentindo-me doente e incapaz de continuar com a proficiência de sempre à tutela dos interesses jurídicos desse cliente, pos-lhe nas mãos o gesto de confiança que recebera 25 anos antes. A resposta desse amigo, em missiva íntima, destinada apenas ao seu conhecimento pessoal, é cheia de bondade e lhe deve ter sido um lenitivo para os sofrimentos que o cruciavam: “Ora, damos, portanto, uma prova de nosso justo apreço a sua pessoa em haja o que houver, para nós, o nosso advogado será sempre o meu Amigo, esteja ou não no Estado, possa ou não prestar seus valiosos serviços profissionais e do velho e querido amigo. 89 “Se o meu Amigo quiser indicar quem o substitua, nas tuas ausências, muito bem, e se não quiser, para nós será o mesmo, não contrataremos outro bacharel, manteremos o meu Amigo, e, se viermos a necessitar de um advogado, acertaremos os honorários dele para aquela causa. “Não somos ingratos e vemos em sua amizade, de cerca de 25 anos, um verdadeiro patrimônio moral para nós, acima de qualquer interesse profissional... *** CLASSIFICAÇÃO Constituíram sempre o definir e o classificar difíceis operações mentais. Espíritos do mais amplo horizonte, inte- Maconaria Carvalho Neto.indd 89 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA ligências do mais seguro equilíbrio não raro se desnorteiam, sossobrando nos escolhos das definições. A sabedoria romana pode cristalizar em uma fórmula do seu direito imortal um principio que os séculos não desmentiram: “0mnis definitio periculora est... .” (No Parlamento. Rio de Janeiro, 1921). *** AMOR 90 O amor é a entrega voluntária, o amplexo da carne e do espírito no desejo recíproco de se pertencerem. É o material, é ato psicológico, sem este ou outro consiste, apenas, na posse física, violência ou negócio. No estrupo não há amor; há bestialidade. (Vidas Perdidas. Bahia, 1948). *** A PSICANÁLISE Ainda que a consideremos, por enquanto, de aplicação difícil e, para muitos tribunais do pais, de êxito duvidoso — tal a complexidade dos fenômenos dessa especialidade — a psicanálise não deve estar afastada das cogitações do advogado. Tenhamos por orientação esta sensata advertência de Afrânio Peixoto: “Quaisquer que sejam as nossas críticas e sorrisos, a tal ou qual dos detalhes da doutrina de Freud, há no freudismo, muito, muitíssimo, a considerar. E a aproveitar.” (Criminologia). Nos laudos periciais vão surgindo, de quando em quando, conclusões psicanalíticas. E é preciso que o advogado esteja habilitado, pelo menos, a objetá-las. Maconaria Carvalho Neto.indd 90 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto E isto levando em conta que a especialidade transcende a tal ordem de conhecimentos, que ainda não são facilmente encontradiços os especialistas. Henrique Roxo, muito conhecedor do assunto, previne: “É preciso que dentro da especialidade de doenças mentais, haja médicos que se dediquem única e exclusivamente a psico-análise”. (Psico-Análise em Arquivos de Medicina Legal). Daí os disparates que aventuram os que se não formaram nessa especialidade de cultura transcendente. Como quer que seja, o fato é que ainda se não trata de um domínio pacífico, chocando-se as doutrinas em pontos fundamentais. Mais uma razão para que o advogado se não descure de acompanhar a esfera dessas divergências. Se Maurice Fleury afirma que a psicanálise está, morta, “morta pelo másculo bom senso e pela sã ironia da nossa crítica francesa”, outros, antes dele, e outros, após ele, fazem afirmações contrárias. Se este ilustre mestre acentua que “depois dos belos debates da Sociedade de Psiquiatria de Paris, depois da obra irresistivelmente demonstrativa do professor Ch. Blondel (de Strasburgo), depois da severa sátira de Marcell Bool, dela restam apenas “cacos pelo chão”, inúmeros outros mestres o contraditam formalmente. E com vantagem. No que tange à responsabilidade penal, que é face de interesse para o advogado criminal, com Evaristo de Morais: 91 “Não haverá ai quem ouse contestar a relação direta de certas afirmações — a meu ver prematuras — dessas teorias com a gravíssima questão da responsabilidade Maconaria Carvalho Neto.indd 91 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA 92 penal.” (Psicologia da acusação e da Defesa, na vida judiciária e na literatura). Numa apreciação sintética de suas aplicações à criminologia, J. A. Corréa de Araujo (Os Novos Horizontes da Justiça Criminal) dá os seguintes ensinamentos: “Destarte Freud, Jung, Ritterhaus, Otto Lipmann, Stohr, entre outros, têm procurado estudar a psicogênese do crime, explicar as reações criminosas como determinadas por um complexo que se manifesta numa violação da lei penal. Visa, assim, o método vários objetivos em suas aplicações judiciárias: orientar com eficácia as pesquisas no sentido do descobrimento dos crimes, mediante exploração da psicologia dos criminosos, provocando por este meio de análise psíquica a confissão dos atos delituosos. Ao mesmo tempo que imprime novo rumo às investigações acerca da etiologia do crime, explica os atos anti-sociais como o corolário dos conflitos psíquicos, ou da luta entre o determinismo cego do inconsciente, composto de tendências impulsivas, e as idéias conscientes, do homem, produto de sua educação e de seus sentimentos ético-sociais”. Discorrendo do assunto, por aventado nos tribunais, embora num caso especial de insuficiência mental, para que fosse decretada perda da capacidade civil, traçamos um breve resumo, tirado do inquérito dirigido por Genil Perrin - Psicanálise e Criminologia ̶ tem tradução de Leonidio Ribeiro. Desse inquérito se vêm os baluartes de cada lado da trincheira, mantendo-se o fogo sagrado da discussão. Se para uns a psicanálise é “meio auxiliar de exploração psicológica”, e permitindo “aumentar o circulo de investigações durante Maconaria Carvalho Neto.indd 92 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto uma pericia médico-legal, merece ser utilizado, e pode ser necessário, “revelando complexos recalcados e descobrindo nos atos falhos os pensamentos obsedantes,” etc., etc.; para outros é “um sistema cujo fagedenismo apavora” e são negativos todos os predicados que lhe pretendam dar, nas suas várias aplicações médico-legais. No Brasil vai crescendo a corrente dos favoráveis, havendo, hoje, uma vasta literatura a respeito. Henrique Roxo escreve: “A psico-analise deve ser assinalada como um dos recursos mais valiosos da psiquiatria moderna, para esclarecimento, diagnóstico e tratamento dos doentes mentais.” - (Arquivo cit.). Murilo de Campos: “As investigações psicanalíticas tem permitido mais amplo horizonte ao estudo das neuroses e psicoses”. (Caracterologia psiquica da epilepsia; Arq. cit.). Mota Filho: “Com efeito, Freud veio, com o seu método, esclarecer uma série de pontos escuros da Psicologia. Abriu o consciente fechado, de há muito, a sete chaves”. (Prefacio em A Expressão Artística nos Alienados). São de lembrar, entre ouras, as contribuições preciosíssimas de Gastio Pereira da Silva, um Verdadeiro orientador, entre nos, do acidentado terreno por onde vai caminhando a doutrina freudiana: Para Compreender Freud; Crime e Psico-Análise; Lenine e a Psico-Análise; A Psico-Análise em 12 Ligções; Novos Rumos da Psico-Análise, etc. Outro tanto com relação a Porto Carrero, nas suas inestimáveis lições sobre Introdução à Teoria da Psicanálise; A Psicanálise de uma Civilização, etc. Artur Ramos : Pisiquiatria e Psicanálise Muitos, muitos mais. Maconaria Carvalho Neto.indd 93 93 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA 94 Tudo isto - qualquer que seja o lado que se tome - “mostra a relevância do assunto e a sua dificuldade experimental, requerendo tenha muita competência e bastante paciência”, como ensina Roxo (obr. cit.). Se assim mio for, fatalmente se cairá no domínio do puro charlatanismo, comprometedor da ciência, a cuja ilharga se apega, parasitariamente. E bem a propositada a advertência de Pereira da Silva: “Havemos de ter sempre em mente, que, ao iniciar-se a nossa técnica, vamos tocar em ‘feridas anímicas’, digamos, assim, vamos passar uma ‘cureta’ numa alma machucada”. Se não temos, portanto, paciência, destreza, coragem para tanto, devemos deixar de fazê-lo. Porque, não raro muitas e muitas vezes se tem acusado a psicanálise justamente por a não praticar com inteligência bastante. Pense-se no destro cirurgião que traumatiza o traumatismo para obter a cura, ou num “açougueiro”, que aleija o operado” (A Psico-Análise em 12 Lições). Eis o problema vasto, complexo, de custosa penetração. Mas argüido, de vez em quando, nos tribunais. Por isso mesmo na esfera de apreciação do advogado. E para que este não aceite de olhos vendados as conclusões formuladas perante a Justiça, toca-lhe o dever de não ignorar a doutrina em que se fundamentaram. E um direito de defesa pedir explicação dos fatos controvertidos em juízo. E, paralelamente, obrigação que lhe corre de saber formular e discutir os quesitos apresentados aos técnicos e as respostas que lhes correspondem. (Artigo). Maconaria Carvalho Neto.indd 94 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto *** UNIDADE DO PENSAMENTO Pelas alturas irisadas do pensamento cientifico e filosófico, como numa atmosfera comum de idéias e inspiração, encontram-se os homens cultos de todos os países, nada obstante a distância histérica e geográfica de tempo e lugares,que lhe possa estar de permeio. Partindo de latitudes e climas diferentes, não raro com séculos de separação, filhos de raças diversas e num ambiente de costumes os mais diversos, unem-se superiormente pelo espírito, em torno de princípios e doutrinas, que a civilização foi sedimentando num largo patrimônio de toda a humanidade. E nesse plano de comunhão de idéias acontece, és vezes, que escritores de vários pontos do globo — franceses, ingleses, alemães, italianos, americanos ou brasileiros — ainda que não se hajam lido ou comunicado, podem coincidir teorias de suas preferências, reformulando as mesmas teses, chegando às mesmas conclusões. (Diário de Sergipe de 26 2-4). Maconaria Carvalho Neto.indd 95 95 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA IV LITERATURA A BELEZA DA EVOCACÃO 96 Nada melhor para reconfortar o espírito, em meio as tribulações da hora presente, tumultuária e incerta, do que, na breve trégua de um solilóquio, rever velhas páginas do passado que se viveu. Para quem a árvore da vida mais profunda nas raízes do tempo que se foi, do que se enflora na promessa dos frutos que há de vir, é uma fascinação maravilhosa esse olhar retrospectivo principalmente quando se chega a esta estação da vida em que as folhas dos dias vividos vão caindo sobre a terra, murchas, amarelecidas, até a entrega do despojo final, lembrando a passagem de Dante: “Come d’autunno si lévan le foglie L’una apprésso del ’altra, infin che il ramo Vede alla terra tutte le sue spóglie...” Compraz-me, por isso, recordar fatos de antanho, a memória recompondo episódios esquecidos imagens apagadas, tradições fugidias...” (“Frei Fabiano de Cristo”, 1950). Maconaria Carvalho Neto.indd 96 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto *** A BELEZA QUE MORRE Nada mais triste do que assistir ai morte do que é belo... Como que da gente a alma também se desprende, sofrendo, inconsolada. De alguns anos a esta parte é a uma dessas mortes, lentas e contínuas, que venho assistindo, no desalento do irremediável. A natureza enfeita a vida, dá-lhe poesia, inspiração, sonhos... Quando, pois, ela se mutila é a própria vida que golpeia e sangra, e morre... Porque a natureza, paisagista encantadora, com a magia de tons maravilhosos na paleta de cores, só ela cria, inspira, inventa, inova, os segredos da beleza. Um trecho do céu azul, com farrapos esvoaçantes de nuvens coloridas, galopando no espaço... Uma nesga de floresta, misteriosa e sombria, onde mal se vê, entre caules e lianas, o espelho de um regato múrmuro, quebrando nos fraguedos limosos o cristal dos raios matutinos... As linhas sinuosas e pardas das imensas praias nordestinas, com a toalha de rendas brancas espumando na crista das ondas. O mar sem fim, ora glauco e espelhante, ora trevoso e agitado, a bramir iracunde, nos vórtices bravios da tempestade, ou a se espraiar sereno, calmo, azulado na fita longínqua dos horizontes infinitos... A palmeira hierática e romântica com as raízes fincadas na terra e a fronde espalhada no céu, com o seu leque de palmas viridentes abanando, diuturnamente, ou ao repelão dos ventos... Uma rosa que desabrocha cetinosa Maconaria Carvalho Neto.indd 97 97 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA e orvalhada, florindo com a maciez das pétalas perfumadas os ramos verdes de espinhos... Uma alvorada de primavera, ou a curva celeste de um arco-iris, liquefazendo-se na gaze vaporosa de cambiantes... Um por de sol violáceo, afogado em luzes que se vão, no quebranto da tarde... Que mais?... Tanto... Nas metamorfoses incessantes da natureza!... Um corpo nu de mulher, na pujança do sexo, escultora serpeante de curvas macias e tentadoras, no supremo esplendor da carne, na sedução suprema do amor... Sim, quadros mil da natureza... Quem os poderá ver sem êxtase, adorando a Deus nas maravilhas de sua criação!!... (Diário de Sergipe de 27-1-4-8). *** CRÍTICA E CRITICASTROS 98 Nenhuma obra de arte, para afirmação de vida superior, que transcenda à mediocridade remessã, passa incólume à aferição da crítica. Esta lhe dá o peso, mostra-lhe a qualidade, virtudes e defeitos. O pior dos julgamentos é sempre a indiferença; o silêncio mata. Fora igualmente decepcionante só reunir prosélitos e louvaminhas, sem lhes opor desgabos e adversários. Estes indicam o valor daqueles, o quilate moral de sua superioridade. Até mesmo as descomposturas valem: traem, muitas vezes a desolação dos invejosos. E ainda quando rastejam pelas invectivas pessoais, retratam de preferência a raiva encanizada do agressor, na impossibilidade de oficio melhor... Maconaria Carvalho Neto.indd 98 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto Mas, de críticos a criticastros vai a diferença da cultura à ignorância. Aqueles são simples, sinceros, com autonomia mental definida, pensando com independência, construindo com arte, com a pena em escopro entalhando formas duradouras, de emoção e beleza. Estes são os devotos do pastiche, mentalidades deficientes, trepados em muletas de empréstimo, parodiadores sem graça e sem estilo, ruminando o retraço de ideias alheias. E como não afirmam uma personalidade, no desgaste de atitudes próprias, nem mesmo um espírito que se entreveja no lusco fusco de ideias mal esboçadas, ostentam, ao arrepio, e carnavalescamente, um penacho berrante de falsos preconceitos. Não pensam: são reflexos de pensamentos estranhos. Não produzem. (Advogados). 99 *** CITAÇÃO Num livro de doutrina, quando o escritor já tem autoridade para tanto, bastam muitas vezes, breves indicações das matérias versadas, das fontes, das escolas das correntes, opiniões. Num livro de polêmica, porém, o mesmo não ocorre. A discussão chama provas e estas se dão não só pela indicação das fontes dos conhecimentos trazidos a debate, mas pela transcrição dos trechos abonadores, das passagens incisiva da questão. Ora, um pleito judicial, é o que há de mais controvertido. Uma parte afirma, a outra nega. Para uma conclusão esta num sim; para a outra é de um não. Maconaria Carvalho Neto.indd 99 07/11/2013 10:27:28 VULTOS DA MAÇONARIA 100 Mas, para a justificativa desses extremos, cada qual se esforça por aduzir os motivos de convicção, ajuntando-lhe, respectivamente, as peças essenciais de verdade, de certeza, de inconquistabilidade. Dai o contraste das razões que apresentamos sempre arrimadas em citações apropositadas, com as alegações do ex-adverso, vazias de qualquer apoio nos livros da ciência, na lição dos mestres. Redarguindo, certa feita sobre o mal que nos era imputado — de carregarmos os nossos arrazoados forenses de peso de alheias opiniões — tivemos necessidade de esclarecer este ponto, que só a cegueira dos que não lêem costuma enxergar. Mostramos, então, como nos prélios judiciários é de essência chamar ao debate das ideias os valores reais, os homens de prol na pena e na palavra, os expoentes da cultura no ramo sobre que versa a lide. E nesse conclamá-los à discussão, só há meio honesto reconhecidamente digno de sua assentada no pleito: a citação! Cita quem sabe citar. Cita quem reconhece na citação o valor do citado. Cita quem, numa ciência que não admite privilégios e exclusividades de saber, aprender nas citações a doutrina a lição dos mestres. Cita quem, só em citando, mostra razoavelmente que aprendeu e indica as fontes do seu conhecimento. Só não cita o ignorante, porque não sabe. Só não cita o presunçoso, porque tem a displicência ridícula do enfatuado e simulador de cultura. Só não cita o plagiário, porque veste alheia roupa, para fingir como própria. Maconaria Carvalho Neto.indd 100 07/11/2013 10:27:28 Carvalho Neto Só não cita o narciso, porque se enamora do seu eu, enquanto tem a sua imagem, mesmo deformada, refletida no seu espelho de vaidades, não se quer desencantar do seu enlevo... Dando exemplos de como assim entendem os pró-homens da profissão, indicávamos João Monteiro, professor de Direito, em S. Paulo; professor no Brasil, pela ampla difusão de seus ensinamentos inigualáveis, de sua maestria no dizer, de seu conhecimento das fontes, da inesgotável perquirição na legislação comparada. Pois esse insigne mestre da processualística nunca, em todos os seus trabalhos, notadamente nos de advocacia, deixou de enriquecer a discussão de suas teses com as opiniões de outrem, num luxo espantoso de citações. Sabendo como poucos, não pretendeu jamais ser sozinho nas disciplinas mentais que professava. E a cada assento próprio logo lhe ajuntava o lastro opulento de outros pareceres, de outras lições, de outras autoridades. Averbado de opulentar os seus escritos com a citação de quem podia ser crido e aceito na matéria, redarguia aos zoilos, opondo-lhes outras citações, indicando-lhes outras fontes, testemunhando sempre o cabedal inesgotável de sua ilustração. Justificava-o por esta forma irrespondível: 101 “E porque é na palavra dos grandes mestres que reside o crédito dos que apenas não passam de discípulos, nunca cheguei a ter como bastante a bibliografia em cujo seio vivo e que, quotidianamente, se me afigura pequena para saciar a incoercível polidipsia de saber, que faz do homem o incontestável eterno. E eis porque são os nossos pareceres tão ilustrados de Maconaria Carvalho Neto.indd 101 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA citações de bons autores, que talvez se me increpe como ostentação viciosa de erudição rebuscada, o que em verdade só procede da honesta consciência do insignificante valor do que fosse propriamente meu. Com o endosso de tão bons garantes talvez menos difícil possa ser a circulação das minhas letras”. 102 Ora, com João Monteiro se pode estar confiantemente amparado a modelo dos mais insignes dos causídicos brasileiros. Mais relevo ainda alcançou Rui Barbosa, primeiro entre todos no Brasil. Vernaculista, pedagogista, jornalista, financista, jurista, estadista, polemista, a tudo enriqueceu com o máximo de saber nos ramos que abraçara. Em nenhuma de suas obras assombrosas, fartas de erudição e beleza, deixou, entretanto, de emprestar grandioso aparato de citações. Como advogado, sobretudo, este cuidado jamais lhe escapou. Tome se um a um dos seus pareceres, dos seus arrazoados, dos seus libelos, dos seus articulados, e ali estará, lado a lado, a citação mais convincente, mais a propósito, mais autorizada. E era Rui, o sumo pontífice do Direito no Brasil, o maior dos seus advogados! Quem, tomando para imitação este modelo ímpar, rebuscando, como ele, a citação adrede, não se há de sentir fortalecido na consciência? E como Rui, todos os grandes advogados brasileiros, que fazem profissão de verdade e sinceridade. Maconaria Carvalho Neto.indd 102 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Neste momento, não são exemplos edificantes Levi Carneiro, Astolpho de Rezende, Mendes Pimentel, Alfredo Bernardes e outros muitos deste nível, em cujos trabalhos, refeitos de saber, se enfileiram as opiniões que lhes reforçam os argumentos, prova provadíssima da probidade com que versam os assuntos sobre que escrevem? E na magistratura não é o mesmo que se verifica entre os de mais prol nos tribunais? Pedro Lessa, notável magistrado, e por igual professor e escritor, fazia realçar sempre nos seus votos, ou imenso cabedal de citações. Nem por isso valeram menos, senão muito mais, as suas opiniões de grande mestre, de insigne magistrado. Na Corte Suprema, atualmente, é esta a justa e exata apreciação que se pode fazer. Na discussão dos feitos não se dispensam aos egrégios Ministros de fundar os seus motivos de decidir nas lições colhidas na doutrina, indicando as fontes de seus conhecimentos. É isto, sim, o que ilustra a Justiça e a torna insuspeita aos olhos das partes, a quem, por tal forma, se da o direito de examinar os julgados e penetrar-lhes as razões e os fundamentos. Se é assim que procedem, honrando a profissão, os próceres do Direito no Brasil, que será dos mínimos como nós, cuja autoridade única está nas citações onde aprendem e em cujo teor também se formaram as verdadeiras ilustrações? Eis porque, ao revés do ex-adverso, não nos dispensamos nunca de fazer citações, onde estas, suprindo as deficiências do nosso minguadíssimo saber, aclaram o debate, mostram o direito, documentam a verdade. Maconaria Carvalho Neto.indd 103 103 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA Outro meio não há de se servir, com escrúpulo e lealdade, à missão imparcial da justiça. (Um Caso de Interdição, p. VIII/XII). *** VALORES ARTÍSTICOS 104 Em Sergipe não há o culto das tradições. O passado é o esquecimento. O que não trouxer interesse imediato, ou se não aferir pelo toque de gozos materiais, burguesamente grosseiros, não vale a pena ser visto, conservado, estimado. Obras de arte, motivos de arquitetura, relíquias históricas, tudo vai esquecido como folha outonal, que o vento leva... O que ainda restava pelas cidades e vilas do interior, pelos engenhos e fazendas de nossa acabada aristocracia, os gringos e turcos cataram a pregos vis, e levaram para fora do Estado, revendendo com lucros fabulosos. Tenho ouvido a alguns descendentes dessas famílias de velha linhagem sergipana, herdeiros de patrimônio formado no Império, a sem cerimônia com que contam os bons negócios realizados com os mimos e jóias de antiguidade... Faz pena vê-los, assim, garbosos das pechinchas com que dilapidaram, na sua deseducação artística, inestimáveis valores de nossa civilização. Certa feita, um novo rico de minhas relações, consultou-me se devia ou não comprar uma riquíssima baixela de prata, que pertencera a um dos solares de mais falado luxo na Monarquia em nossa terra. A avidez do argentário não dava pela estima do primor de arte que se lhe oferecia... Nem a ingenuidade apática do Maconaria Carvalho Neto.indd 104 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto vendedor ̶ último rebento da estirpe extinta ̶ avaliava o patrimônio raro de que se desfazia. O primeiro só via, como negócio, a prata: o peso das bandejas de prata, os bules de prata, as taças de prata, os talheres de prata... E calculava, como judeu, o ágio prata... Não se detinha nos valores e caprichos dos relevos artísticos, nem em reparar na data, ou origem da preciosa baixela. O segundo —̶̶ cândida criatura! Não se lembrava de aquele acervo de jóias era uma relíquia de família com a história de um fausto e a crônica de bom gosto, com que os ancestrais mantiveram um dos salões fidalgos da Província de Sergipe d’El Rey... Fechou-se o negócio e a prataria abandonou o solar aristocrático para o palacete do milionário brasseur d’affaires... hoje fora do Estado. Que essas transações se operem na economia particular, é lamentável. Mas que se verifique com os bens de finalidade coletiva, ou de uso público — ainda que de associações de caráter privado — além de lamentável, positivamente, é criminoso. Certo é que, por tais formas, esse patrimônio cultural histórico, artístico, de Sergipe, se tem evadido com um acintoso descaso pelos nossos foros de gente civilizada. Há então, muito que dizer com relação à arte religiosa passado, de passado tão rico quão esquecido entre nós. Não primam as nossas Igrejas pela originalidade, ou mesmo reprodução feliz de motivos arquitetônicos. São no geral, pobres, de linhas simples, num colonial de aspecto uniforme e monótono. Mas se assim se desenham exteriormente, sem variar de perspectivas, no seu interior há belezas que impressionam. Maconaria Carvalho Neto.indd 105 105 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 106 O estilo dos altares, o traço das colunas, frisos e capitéis, a pintura dos tetos, dos coros e retábulos mostram o gênio do artista que os modelara. Há quarenta anos atrás esses primores de estilo ainda eram vistos em muitas de nossas matrizes, ressaindo da brancura e leveza dos relevos de gesso e ouro de custosas decorações. Tudo isso... se não acabou sob o empastelamento de pinturas berrantes, foi substituído pela massa bruta do cimento armado. Havia painéis de esmerado louvor e sublime inspiração, que recordavam verdadeiras obras-primas. O tempo... O descaso, a indiferença, a ausência de sentimento artístico, foi deixando que tudo se consumisse, desaparecesse... Entretanto, lembravam uma época de notáveis realizações do gênero pitoresco religioso no Brasil. Sabem os meus patrícios ̶ tão delidos de memórias! ̶ qual foi o artista de gênio que tragou aquelas maravilhas da Igreja de Divina Pastora, hoje carcomidas, apagadas? Foi José Teófilo de Jesus, vindo especialmente da Bahia, depois que lá havia gravado a marca de seu pincel miguelangelesco nas cúpulas e nos altares da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, do Convento de S. Bento, da Igreja e Colégio dos Órfãos de S. Joaquim, de Nossa Senhora da Piedade, do Recolhimento do Senhor os Perdões e nos painéis e quadros da Ordem Terceira de S. Francisco! E aqui, em nossa terra ingrata e deslembrada, andou distribuindo a irização mágica das cores, com efeitos valesqueanos de luz e sombra, na Matriz de Maroim, na Maconaria Carvalho Neto.indd 106 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Matriz do Socorro, na Ordem Terceira de S. Francisco, em São Cristovão, e noutras Igrejas e Capelas, onde o culto católico, no fervor da fé, sabia aliar o místico da crença ao esplendor da arte. Teófilo de Jesus, discípulo de José Joaquim da Rocha, o fundador da escola de pintura da Bahia, tem, no Estado vizinho, o culto imperecível de sua glória na conservação dos painéis que o seu pincel inspirado espalhou entre as maravilhas de arte de seus templos. Entre nós... tudo se foi! A obra de arte e a memória do artista! *** ARBORIZAÇÃO Num desses últimos dias de sol ardente e intensa claridade, deslumbrado acheguei-me à copa virente de uma árvore, num dos trechos sombrios da cidade, no Jardim Olympio Campos. Céu azul, profundo e escampo, vibrando de luz, sem nuvem no espaço infindo. Mal se me acomodavam os olhos aos raios luminosos, que incidiam, em projeção meridiana, sobre as ruas em derredor. Como que das paredes dos prédios, em tons geralmente claros, e da chapa granítica do calçamento, cintilando fagulhas, a luz se refletia ainda mais forte e deslumbrante. O ar parado e morno dava a impressão de coar imperceptíveis ondas de calor, num clima de deserto africano. E seria se do lado do mar, filtrado entre os flabelos dos coqueirais, não viesse a sussurrar, de leve, uma brisa fagueira que balançava, como uma caricia, a fronde verde-escuro dos oitizeiros. Maconaria Carvalho Neto.indd 107 107 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA Notei, na parada breve, o porte altaneiro de algumas palmeiras imperiais, abrindo lá em cima, no esplendor da luz, seus cachos de ouro e esmeralda sob leques de palmas farfalhantes. E, por contraste, achando-me na planície, o terso verso de Alberto de Oliveira: “ser palmeira, existir num píncaro azulado. . .” Relanceei a vista e logo se me descortinou, como uma sanguínea da paisagem, num estencial de rubras flores, o da púrpura de uma maravilha ̶ flamboyant ̶ em plena florescência. Associando ideias, a memória fez-me, então, evocar a mimosa quadra de Adelmar Tavares: 108 “Vi hoje uma árvore velha toda coberta de flor e me lembrei de minh’alma cheia de sonhos de amor...» Dai fui, insensivelmente, de devaneio em devaneio, de lembrança em lembrança, revocando o passado, as fontes inesgotáveis da saudade... Aracaju de outros tempos... Aracaju de minha mocidade... Foi essa a época das grandes chácaras, dos ricos pomares, dos sítios florestados, como dádiva da natureza, no coração da cidade. A chácara de Moura Matos, a chácara de Cazuza Barros, o sítio de Luizinho, os amplos quintais de fruteiras, imensos espaços verdes fazendo a moldura da Capital dos Cajueiros... Espaços verdes... técnica de urbanismo. Maconaria Carvalho Neto.indd 108 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Aracaju crescia assim, nos braços das árvores, onde as abelhas zumbiam e colhiam mel e os pássaros chilreavam as suas harmonias matinais. Mas o homem, sempre imprevidente, foi fazendo a cidade e esquecendo as árvores... Alargavam as praças e estreitavam-se os espaços verdes. Alinhavam-se as ruas e as areias ficavam nuas, como se todas elas devessem copiar o deserto dos morros do Pyrrho e Borborema. E consumou-se este paradoxo: no seio dos trópicos, onde a floresta corrige os rigores do clima e ameniza a temperatura, suprimiram-se as árvores e aglutinavam-se casas, acumulando-se calorias nos artes exsicados. Sim, Aracaju devia crescer, como ainda cresce. Mas em cada rua que se abrisse logo se lhe plantasse um renque de árvores, dando sombra e beleza ao logradouro público. É esta técnica moderna do urbanismo, mesmo nas cidades de climas temperado e ameno. Belo Horizonte é exemplo atual e convincente. 109 *** O GÊNERO EPISTOLAR O gênero epistolar é dos mais difíceis na literatura de todos os povos. Tanto assim, que, em havendo numerosas coleções de Cartas, em diversas fases da civilização, nem todas lograram vencer ao tempo e perpetuar-se na Historia. Requisitos especiais de delicadeza, de simplicidade, em tom de conversas, em afetação, sem rebuscamento, são qualidades raras em que escreve uma carta. Vazar no papel o pensamento como se fosse uma palestra entre amigo. É a Maconaria Carvalho Neto.indd 109 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 110 intimidade que se revela, a alma que se comunica, sem a vestimenta artificial das convenções sociais. E para se conhecer um caráter, o traço psicológico muito mais se surpreende numa carta do que num livro — romance, novela, poesia, ou outra qualquer forma de arte, ou ficção. É que nestes se procura o efeito de publicidade, a idéia se transmite com a preocupação, não raro, de ocultar o sentimento. Joaquim Nabuco, numa das suas mais íntimas e mimosas missivas a Machado de Assis, escreveu esta verdade: “Você pode cultivar a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances, mas suas cartas o traem.” Efetivamente, o que estas exprimiam era doçura de coração amigo, a fidelidade carinhosa da simpatia humana que, muitas vezes, se não encontram nos romances do mestre incomparável. Ficaram célebres as Cartas Persas de Montesquieu (Le persanes), as de Mme. De Sévigné (Lettres de Madame Sévigné), umas pelas sátiras, outras pela delicadeza de sentimentos. Todas, porém, pelo estilo cheio de naturalidade, correndo com linfa cristalina em leito desimpedido, sem embaraços, sem retorcimentos. Na biografia dos grandes homens, dos grandes escritores, dos grandes artistas, dos grandes generais, dos grandes políticos, é nessa fonte que se vai buscar, repentinamente, a inspiração dos seus atos. Na antiguidade, na idade média, no renascimento. Em se tratando de santos, ou heróis. Com as belezas da Grécia, ou as grandezas de Roma. Maconaria Carvalho Neto.indd 110 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto “Isocratis epistolae; Aeschinis epistolae; libri XIX epistolarum Petrarchi; Aretini epistolae; Dantis epistolae; Grotius epistolae,” são preciosos documentos que revelam passagens históricas que outros escritos deixaram em duvida. As cartas de Goethe, de Thomas Moore, de Mozart, de Malherbe, de Descartes, de Balzac, de Corneille, de Racine, de La Bruyére, de Rousseau, de Voltaire, de inúmeros outros, em várias literaturas, retratam flagrantes de sentimentos de coração, de espírito, sem os quais a vida lhes ficaria incompleta, ou mal interpretada. E a vida de cada um deles é um trecho na paisagem da época, senão em muitos casos, toda a paisagem. Recentemente a vida de Cícero, já tão decantada através de suas atuações forenses — splendorem illum forensem — e da grandeza de seus discursos políticos - et in senatu autoritatem — apresenta uma feição nova, atraente, através de suas Cartas. Porque somente ai há passagens íntimas, que a tribuna não podia comportar, e um estilo simples, que a eloquência não deixava aparecer. E como alguém estranhasse não ver nessa correspondência aqueles raios de expressão dos discursos políticos ̶ fulmina verborum, o insuperável orador, e não menor escritor e epistolográfico, prestes redarguiu: 111 “Que pensa então de minhas cartas? Não acha que escrevo no estilo de todo mundo? Não se deve manter sempre o mesmo tom. Uma carta não pode assemelhar-se a uma defesa ou a um discurso político... Nela nos servimos das expressões costumeiras”. (Adr. form., IX, 21). Maconaria Carvalho Neto.indd 111 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 112 Esse estilo de todo o mundo, conversando na carta; essas expressões costumeiras, eis o espelho da alma, sem disfarces, sem pinturas... É para mim, um encanto que me traz a leitura epistolar de tantos artistas notáveis. Que tesouro de belezas castiças nas Cartas de Machado de Assis, de Joaquim Nabuco, de José Verissimo! Que diferença de Euclides da Cunha, n’Os Sertões, no Contrastes e Confrontos, no A Margem da História, naquele seu estilo arrebatado e majestoso, tão próprio, para o Euclides, missivista, confidenciando!... É aí, principalmente, que se mostra o homem, sem arestas, sem torcicolos, tal qual a imagem de sua natureza. Estimo pois, as Cartas, por essa peculiaridade, por esse tom de simplicidade, comunicativa, sem os refolhos, as obscuridades da convenção social. (Diário de Sergipe, 1948). *** A PROFESSORA PÚBLICA Professora pública primária, Leonor da Silva, sua mãe, era uma dessas abnegadas servidoras do Estado, que trocam a alegre mocidade pelo pão amargo de uma infinita dedicação ao ensino. Mal pagas, desassistidas, vítimas imbeles de suspeitas e mexericos, são as bandeirantes incompreendidas da formação mental na nacionalidade. Atiram-se pelos sertões desconhecidos, pelas fazendas, pelas usinas, pelos povoados mais distantes do interior e lá fundam, de verdade, a escola que o Governo apenas sabe existir pelo decreto de sua criação. Maconaria Carvalho Neto.indd 112 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto São elas a vida espiritual, o canto, o hino, o sentido da Pátria nesses confins abandonados. Ensinam letras e patriotismo, deveres e religião, moral e prendas, a bandeira e a fé, missioneiras do Brasil nessas paragens de conquista. Cedem, às vezes, à lei do amor e, sempre, ao império da necessidade: casam-se! E o casamento lhes é mais atrapalhações do que felicidade. Porque, não raro, não lhes aliviam os esposos o peso lar, antes o sobrecarregam, parasitando os minguados vencimentos da professora. Somente elas trabalham – na escola, nos quefazeres domésticos, na criação dos filhos. Enquanto isso, os quincas usufruem filauciosamente, destas vantagens e sacrifícios e vivem na ociosidade, como inúteis. (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). 113 *** A CAPITAL E O INTERIOR Assim Aracaju, jovem e formosa, cheia de louçanias e novidades, com requintes de arquitetura e anseios de mundanismo, flor de cacto em vaso de porcelana, faz esse contraste com as cidades do interior, ânforas de barro com essências antigas. Estas guardam, malgrado a selvageria de retocadores sem alma, o tesouro humilde do nosso passado. E somente nelas, na vetustez limosa dos seus templos, nas varandas e balaústres de suas casas grandes, na fisionomia colonial de suas ruas, nos seus outeiros desnudos coroados de ermidas, nos descantes álacres de suas lavadeiras caboclas, batendo e alvejando a roupa nas lajes do rio, no planger monótono e dorido dos bronzes na Ave Maria, no chilrear festivo das Maconaria Carvalho Neto.indd 113 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA andorinhas no beiral das igrejas, em tudo isso que ambientou a vida de nossos pais, é que vamos encontrar, como velhas páginas carcomidas pela indiferença das gerações sucessoras, o livro vivido e sentido de nossa Historia. (Um Grande Médico, Aracaju, 1936). *** O CULTO DAS TRADlÇÕES 114 Bem haja o povo que sabe honrar os seus grandes homens,venerando-lhes as puras tradições. Atentai, entretanto, senhoras e senhores, que o valor desta consagração não está no bronze que a materializa. A matéria amolda-se ao buril do artista, afeiçoa-se ao capricho do cinzel, funde-se à feição da ideia que se quer representar. Mas, sem o subjetivismo que a inspira, é um corpo sem alma, matéria inerte que não tem vida para se perpetuar na lembrança e lançar-se à posteridade. (Um Grande Médico, p. 13, Aracaju, 1936). *** A FAUNA SERGIPANA Acontece com a fauna de Sergipe o mesmo que, de ano para ano, vem ocorrendo com a sua escassa e mirrada flora. Nas matas, nos prados, nos tabuleiros, nas caatingas. É devastação em grande escala. Até onde o homem pôde penetrar, com o seu instinto selvagem de destruição, a caça foi sendo abatida a grosso miúdo. Maconaria Carvalho Neto.indd 114 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Correm parelhas a denudação e a chacina dos animais silvestres. Algumas espécies só hoje são lembradas pela toponímia das regiões, onde ainda persistem traços vivos de uma ou de uma fauna, que já se não conhecem. São, apenas, índices de eras passadas, que entraram para o domínio da historia... As queimadas devastadoras, os cortes de lenha indeterminados, a estrada de ferro, as caldeiras das indústrias são fatores de uma progressiva degradação, que está reduzindo Sergipe a um cálido e triste deserto tropical. Com a extinção, assim, das reservas florestais, necessariamente a caça perde o seu habitat natural e vai-se tornando rara, esquiva, até o seu completo desaparecimento. As variegadas madeiras de lei, que enriqueciam e embelezavam as nossas matas, ninguém as vê mais em Sergipe. Jequitibás altaneiros e frondosos; ipês formosos, com a sua túnica de ouro aberta sobre os galhos floridos; perobas resistentes e linheiras, sob o manto lilás das flores perfumadas; arapiracas e quiris, de lenho rijo e amarelo; potomujus de nervuras castanho-claro, com que, de par com os jacarandás espessos, se esculpiam os mais belos relevos de nossa mobília colonial; cedros olentes, de caule precioso, e sucupiras de âmago talhado à carpintaria naval; tudo isto é, apenas uma recordação, à distância do que foram as nossas essências vegetais mais valiosas... O fogo, ou o machado, num trabalho criminoso de séculos, foi reduzindo a pó essa imensa grandeza insubstituível... Da mesma sorte, antas, capivaras, queixadas, onças, são mamíferos que apenas se recordam pelos lugares que lhes herdaram os nomes... Maconaria Carvalho Neto.indd 115 115 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 116 E outros menores ̶ coatis, tapitis, guaxinins, iraras, juparás, pacas, maracajés ̶ pouco se vêem nos derradeiros tratos florestais das caatingas... A civilização foi implacável, na sua imprevidente marcha contra a natureza. No reino das selvas, então, de mais fácil alcance do caçador vagabundo é calamitosa a situação. Jacus, jacupemhas, jacutingas, juritis, zabelês, aracuãs, qual o felizardo de nossos cinegetas que ainda consegue surpreendê-los — ariscos, desconfiados, olhos atentos ao menor movimento — no fundo de alguma nesga de matos esquecidos?. E nas lagoas e brejos, que marginam alguns dos nossos rios lentos e cansados, as marrecas, irerês, maçaricos, narcejas, agachadeiras? Quanto a perdizes, codornas, codornizes, nem é bom falar!... Uma verdadeira paixão furibunda dos caçadores, abatendo peças por todo o ano, sem reparar o ciclo das estações, o período da postura, ou da procriação. Mata-se por matar, sem mão, nem metro. É uma hecatombe despropositada, num desperdício fantástico de tiros a esmo, em batidas constantes pelos campos, capineiras e tabuleiros. Não se satisfaz o caçador com o que de arte, ou de prazer espiritual, possa haver numa caçada ao voo. O que ele quer é matar, matar a granel, matar por matar, o ano inteiro... (Diário de Sergipe, 1946). Maconaria Carvalho Neto.indd 116 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto *** CARVALHOS Aqueles lendários carvalhos que fostes encontrar com raízes na história, consagrados aos deuses, agasalhando ninfas tecendo coroas, inspirando oráculos, sumiram-se na voragem dos séculos. Nem o quercus pedunculata, ou o quercus sessiliflora, o quercus pubescens, ou o quercus cervis, ou o quercus toza ou o quercus fastigiata, das regiões temperadas nem o quercus ilex, ou o quercus gramuntia, ou o quercus bollota, ou o quercus coccifera, ou o quercus suber, ou quercus vivens, que vão das temperaturas às meridionais, em climas doces; sequer as espécies exóticas, quercus infectora ou quercus macrocarpa, de outras zonas climáticas do globo; poderiam brotar, germinar, viver, desafogadamente, em meio essa selva horrida das terras sergipanas, à ourela das caatingas insolaradas, nos limites das florestas tropicais, que o homem civilizado, copiando o indígena, num escárnio natureza, vai, dia a dia, no crepitar das queimadas, reduzindo àquela imagem triste do “quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada de esgalhos” no descrever pinturesco expressivo de Euclides da Cunha. (Discurso na Academia Sergipana de Letras, Aracaju, 1950). 117 *** CAÇAS E CAÇADAS Sergipe é um dos Estados em que Nemrod reúne maior número de afeiçoados. Escassa fauna para legiões de caçadores. Maconaria Carvalho Neto.indd 117 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 118 A paixão cinegética não dá, entre nós, pela sentença de S. Jerônimo “venatio ars nequissima et venatores nefarium genus.” Ao contrário, o prazer pagão criou raízes fundas no caráter veneratório do sergipano, de boa ou má linhagem, de nobre ou humilde estirpe. Caça o pobre e caça o rico. Caça o ignorante e caça o ilustrado. E todos se nivelam nesse “honnête passe-temps d’oisifs” , na frase de TropIong. Por isso mesmo a devastação é incalculável, havendo espécies selvagens que já desapareceram dos parques rústicos do interior. Talvez não haja passatempo que tanto se ajuste à índole aventurosa do sergipano como o das caçadas. Correr atrás do desconhecido é bem do feitio do seu temperamento romântico e aventureiro. E como todo o prazer costuma levar aos excessos, aos abusos do próprio prazer, ninguém se contenta em caçar sob medida, com moderação, fazendo do divertimento uma arte de gosto espiritual. Caça-se por destruir, por volúpia de chacina, no selvagismo ancestral e atávico de abater a presa. Ora, é essa caça depredatória, extinguindo as mais belas espécies da nossa fauna, que agora nos preocupa. (Diário de Sergipe de 4-6-41). *** PRADO SAMPAIO Houve, em Sergipe, uma vida ilustre que não transmontou os horizontes da Província. Aqui brilhou intensamente e se consumiu nas lutas estéreis do meio pequeno. Maconaria Carvalho Neto.indd 118 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Escreveu livros, fez discursos, ensinou a mocidade. Por onde passou foi deixando a marca brilhante de um talento invulgar. A filosofia, o Direito, a literatura propriamente dita, nele tiveram um desbravador culto e orientado. Nota-se que era, sobretudo, um homem de sistema, organizando os seus conhecimentos num piano filosófico. A mecânica e a finalidade das coisas, no mundo físico e no mundo social. Perquiriu, assim, do átomo à vida, da vida à sociedade, demonstrando as correlações necessárias nos fenômenos respectivos. Depois de Tobias Barreto, fazendo frente ao cartesianismo e erigindo o evolucionismo em tese agnóstica, deslocando para este eixo a rotação do pensamento filosófico; depois Silvio Romero, com os spencerianos, assentando na sua cátedra as bases de uma crítica segura ao filosofismo escolástico; depois de Fausto Cardoso, com o materialismo haeckeliano definindo e estruturando a concepção monística do universo; tem-se a impressão de um vácuo profundo, até que se processou reação espiritualista, em nossos tempos, como Jackson de Figueiredo. Estes quatro guias, porém, tiveram como ponto de apoio os centros de maior cultura nacional, no domínio da filosofia. É do Rio de Janeiro que sopram as tubas da fama, irradiando por todo o Brasil. O próprio Tobias, com sede em Recife, não teria a projeção que alcançou se não fora a dedicação incomparável de Silvio, no Rio, tomando aos ombros a tarefa hercúlea de elevar aos olhos de todos a figura de gigante de seu imortal conterrâneo, lapidado na Província como um réprobo. Maconaria Carvalho Neto.indd 119 119 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 120 Pois em meio a Tobias, Silvio, Fausto, Jackson, que viveram e morreram fora de Sergipe, e, por isso mesmo ultrapassaram os horizontes da terra pequenina, há um sergipano que só em Sergipe viveu e em Sergipe morreu, e que não foi menor do que eles nos domínios da especulação filosófica. Refiro-me a Prado Sampaio, que aqui andou lavrando a terra do pensamento e nela semeando as mais belas e vivedouras idéias. Mas, que se há de querer? Não tinha ambiente para seu espírito de escol e os que o liam, salvantes raríssimas exceções, não o entendiam. Certa vez, quando eu era juiz municipal, em Japaratuba, um velho experiente, muito meu amigo, me disse: ̶ Doutor, em terra pequena só é grande fuxico! E ele tinha razão... Prado Sampaio ficou no fuxico da terra pequena e quando, uma vez por outra, alçava o pensamento às regiões superiores da filosofia, era como uma águia que soltasse o voo perdidamente, sem encontrar um cume altaneiro para pousar. Descia de novo a terra... E a terra era Sergipe! Onde ficaram as suas publicações, em resumidíssimas edições? Quase não circularam no Brasil! E onde não vai o livro com a idéia,morre a idéia no anonimato. (Diário de Sergipe, 1948). Maconaria Carvalho Neto.indd 120 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto *** A MORTE DE ALFREDO MONTES É a 1º de agosto que Alfredo se despoja da matéria e rende a alma ao Criador. Um dia triste, um dia de pranto, um dia de saudade... Foi num poente violáceo, à hora em que a luz morria nos vales e pela crista dos morros, ao longe, pálidos reflexos tremeluziam no verde da mata... No cemitério havia uma multidão confusa... Autoridades, professores, estudantes, o povo em vários matizes. Sinfonia dolente gemia, em toques fúnebres, na garganta do instrumento do maestro Ceciliano. Badalava, a espaços, dlim!... dlim!..., o sino da Capela. Soluçavam alguns amigos, enquanto a dor da família orfã cortava corações. Deu-lhe o adeus da despedida o professor Manuel Alves de Oliveira. Um belo e comovido adeus... Dentro em breve, na expectativa do irreparável, uma lápide singela fechava o sarcófago, separando dois mundos: a vida e a morte. E logo descia à terra, silenciosamente, o crepe da noite... Consumatum est!... (Grande Educador, Alfredo Montes, Aracaju, 1945). Maconaria Carvalho Neto.indd 121 121 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA *** JACKSON DE FIGUEIREDO 122 Não preciso dizer quem foi Jackson de Figueiredo. Conhecido em todo o país como arauto da nova legião de vitalistas, erigiu-lhe Sergipe um busto em bronze, em testemunho de reconhecimento às suas virtudes morais e intelectuais. Guia de uma geração no caminho de Deus, assim o consagrou e reverenciou a posteridade. Escritor de combate, polemista aguerrido crente acendrado, era um homem governado pelas paixões mais nobres. Escreveu François Mauriac: “A fé de um rapaz católico nos primeiros alvores deste século, sofria embates de toda a ordem.” (Vida de Jesus). Foi a esse tempo que Jackson entrou em luta, depois das primeiras vacilações em busca da verdade. E decidida a estrada a palmilhar, tomou, desde logo, posição a descoberto. Vivendo pelo ideal cristão, defendeu até a morte, como um trapista abnegado, a causa santa da fé, que abraçara. Aquela intrepidez invencível, nas pelejas mais acerbas que travara pelos princípios da Igreja, tinha, porém, entremeios silenciosos e de doçura e tranquilidade. Era quando entrava na intimidade dos amigos e abria o coração em confissões comovedoras. Surpreendentemente, o leão de juba sacudida, que rugia contra o adversário e num golpe o dominava, se transmutava em cordeiro, era manso, doce, generoso, quando se recolhia ao seio de suas afeições. Ouvi-lo, nesses momentos, era um encanto, temperando as asperezas da vida com a renúncia cristã de glórias mundanas. Maconaria Carvalho Neto.indd 122 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Conheci-o junto a Epitácio Pessoa e, depois junto a Afonso Pena Júnior, como um porta-voz doutrinário dos direitos da Igreja nas relações com o Estado. Tive-o entre e os mais caros de minhas amizades e guardo de sua fé iluminada recordações imperecíveis. Certa vez, pessoa a quem estou ligado por laços indesatáveis, recebeu de suas mãos, num dia de aniversário, como homenagem do seu apreço ao meu lar, uma relíquia santa conservada com extremo afeto. E uma de Bernadete Sourbirrous (Cheveu de La Veneráble Soeur Bernadete Sourbirrous), dádiva de uma eminência cardinalícia ao seu grande amigo. Tanto lhe era dedicado o bondosíssimo D. Leme. Era assim que Jackson procurava interpor em nossas relações um sinal de sua fé, adoçando, como dizia meio irônico, o meu incompreensível agnosticismo... Um a um, todos os seus livros me foram oferecidos de seu punho, cada qual com a marca sensível de seu afeto, da sua generosidade. Alegra-me imenso vê-los relidos e anotados por meus filhos e sem que isso exprima, acaso, integral adesão às suas idéias, dele, ao menos como reverência aos sentimentos de nossa sobrevivente amizade. (Diário de Sergipe de 23-3-46). 123 *** SANTO ANTÔNIO DE ARGUIM O caso é que segundo Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão ̶ que outros cronistas apóiam ̶ do Reino da França se partira uma frota de doze naus para “tomarem e destruírem a cidade da Bahya, terra do Brasil”. Maconaria Carvalho Neto.indd 123 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 124 Vinha a frota, de ânimo perverso, sob o comando de huguenotes ou consoante a palavra do historiador, “por capitães principais três lutheranos”. Na derrota que se tragaram, deu-lhes o rumo que fossem abordar à costa Berbéria, no continente africano. E ai o desembarque em Arguim onde praticaram toda a sorte de depredações nos de terra, com especialidade as Igrejas e relíquias sagradas. Ao reembarcarem numa das naus colocaram a imagem de Santo Antonio, depois de a mutilarem e escarnecerem. Citando documentos dessa época, Serafim Leite menciona que os incréus charlaceavam do Santo, dirigindo-lhe mofas. Ai está uma delas: “San Antonio, peleja, porta la nave à la Bahia, Português.” O fato é que, nesse tempo, se armou no oceano imensa tempestade, que levou o naufrágio às velas da expedição. Somente uma das naus logrou escapar ao total sossobro. E fora exatamente a em que viajava o Santo que os infiéis, para que ela os conduzisse a salvo mostrando-lhes a direção de terra, jogaram no dorso das águas encapeladas. É aqui onde o episódio tange com o nosso Sergipe. Transcrevo de dois biógrafos do taumaturgo. Macedo Soares: “Salvou-se a nau que conduzira o Santo indo, porém, desgovernado, dar a costa do Brasil na altura de Sergipe. (Santo Antonio de Lisboa ̶ Militar do Brasil). Maconaria Carvalho Neto.indd 124 07/11/2013 10:27:29 Carvalho Neto Afrânio Peixoto: “Tanto que, à vista de terra, que era de Sergipe, ou já Aldeia do Espírito Santo...»(Santo Antonio de Arguim Livro de Horas). Indubitável, por conseguinte, que foram as praias sergipanas as primeiras tocadas pelo Santo, não importando que abaixo, nas proximidades de Itapoã. O Santo foi encontrado em pé, sobre a areia, enquanto náufragos, presos, foram levados à presença de Dom Francisco de Souza, então Governador da Bahia. Fazendo a crônica do acontecimento é ainda Jaboatão quem diz: “Para tirar toda a dúvida que pudesse contradizer tão grande maravilha, buscaram mui de propósito se por ventura alguma pessoa humana o havia levantado em pé, que não achando nem pegadas na areia de homem, ser caminho não seguido, tomaram o Santo com devoção e veneração, e trazião, mas achando hum homem honrado no caminho que lhe pedia com muita importunação para o por em sua hermida, lho derão.” 125 Os fatos que se seguiram não desmentem esta versão antes a confirmam. Quem conhece a extensão dos domínios de Sergipe, nessa época (Ivo do Prado: A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias), não duvida de que era sergipano o território onde encontrava de pé a imagem do querido Santo. Nem o contraria a circuns- Maconaria Carvalho Neto.indd 125 07/11/2013 10:27:29 VULTOS DA MAÇONARIA 126 tância de ter sido conduzido para o solar de Francisco Dias d’Ávila, Senhor da Casa da Torre. Mais tarde, propalada a notícia, foi levada para a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Bahia. E, por direito dos capuchinhos, novamente trasladado, a 23 de agosto de 1595, para o Convento de São Francisco, em meio às pompas do ritual da Igreja, nessa época. À procissão e solenidades estavam presentes a Câmara e o Cabido. Ao referir, no meu discurso, esta passagem histórica, quis mostrar, apenas, como a cidade de Aracaju, também nascida ao pé do Morro de Santo Antonio tinha bem uma filiação religiosa digna de evocação, devendo ser mantida e cultuada. O que consta da “Ordem do Governador do Estado Rodrigo da Costa”, para a Bahia, de que “se deu parte a El Rey que era então de Portugal o segundo Phelipe, e terceiro em Castela”, devia constituir, para nós sergipanos, uma das tradições de maior fervor para com o venerado Santo Antonio. Se, em resumo, as nossas lindes chegavam até onde as demarcava a Carta de Doação, o Santo e orago de Arguim foi em terra sergipana que começou a sua glorificação no Brasil. (Diário de Sergipe de 1-6-48). *** TERRA DE PAPAGAIOS O nosso legitimo papagaio não é praiano, mas sertanejo. É lá o seu habitat, o seu clima de vida alada e alegre. Tenho encontrado uma variedade desses psitacídeos nas terras do litoral, em bandos menores e sem o galrar festivo da Maconaria Carvalho Neto.indd 126 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto espécie sertaneja. Além disto, menos beleza e tonalidades no colorido da plumagem. Bem perto de Aracaju, ali no Parnamerim e no Mazombo, por exemplo, quem se aventurar às excursões venatórias ainda hoje os encontrará, quase sempre aos casais. É bem possível que se houvesse processado uma lenta aclimação, do sertão para o litoral, pois os papagaios são aves migradoras e costumam descer nos períodos das secas prolongadas. Porque, então “cajueiros dos papagaios”? Não os tenho encontrado em cajueiros, mas noutras árvores da região. Periquitos, sim, muitas vezes os tenho visto nesses anacardios, devorando-lhes os maturis, bicando-lhes as castanhas verdes. Vem próximo o tempo em que nos cajuais da Atalaia — hoje extensamente devastados — é fácil tê-los de perto, voar de galho em galho e colhendo o seu manjar delicioso. Deve-se aqui inverter o boato do nosso folclore: “papagaio come milho, periquito leva a fama”. Não, não. Os periquitos é que fazem a devastação, embora caia por cima do papagaio a má fama que a história lhe consagrou. Mas, por isso ou por aquilo, Aracaju foi a terra dos “cajueiros dos papagaios”... Não deve ir muito por longe a tradição. Afrânio Peixoto pesquisou que, a 22 de julho de 1801, Giovanni Matteo Cretico, noticiando a viagem de Cabral, escrevera: há discoberto una terra nova, chiamano la terra deli Papagá. E também da carta de Pietro Pasqualigo, de 18 outubro de 1501, “con la terra dei Papagá noviter trovate”.... Maconaria Carvalho Neto.indd 127 127 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA 128 Se para Vera Cruz, Santa Cruz, Brasil, enfim, terra deli Papagá, não vem demais que Aracaju se crismasse por sinônimo adequado, “cajueiros dos papagaios...” E pelo tempo em fora a tradição foi tendo novos de contato. Conta-se que na viagem de D. Pedro II a Sergipe, Sua Majestade desembarcava na Ponte do Imperador, ali estava postado, para uma saudação especial, um belo e ensinado papagaio falador. E mal o lmperador saltava em terra, o orador verde-amarelo, inchando o pescoço ouro-esmeralda, palrou, estentóreo: ̶ Viva D. Pedro Il! E foi delirantemente aplaudido. Fora isto, como se vê, nos tempos da Monarquia... Pois na Republica, o fato se repete, com mais arte. Um candidato à Presidência da República excursionava pelo Norte, para conhecer as necessidades do país. Haviam-lhe preparado em Aracaju uma recepção condigna. Dá-se, porém, que antes desse candidato uma outra candidatura se agitara, estando quase a vingar. Corriam páreo São Paulo e Minas Gerais, respectivamente candidates Washington Luiz e Melo Viana. Ensinaram, então, a um papagaio velho um viva a Melo Viana. O papagaio, de tanto se lhe repetir a lição, gravou-a na cachola. Fracassada a candidatura do mineiro, vingou a do paulista. E o velho papagaio passou a ouvir, todos os dias, um viva a Washington Luiz. Maconaria Carvalho Neto.indd 128 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto Afinal, gravou a ultima lição, esquecendo a primeira. Vai senão quando por aqui passa o eminente brasileiro, candidato vitorioso e eleito. É lhe apresentado o papagaio, que, nesse dia, estava com o subconsciente mais desperto do que o consciente. E não teve duvida. Abriu o bico, temperou a laringe, e gritou: ̶ Viva Doutor Melo Viana!... Desapontamento geral. Só o Doutor Washington gozou da troca, pois de papagaios não lhes ia às festas... O Brasil evoluiu. Monarquia... República. . _ Ditadura... e o que hoje está passando... Pois não é que agora não é mais terra dele Papagá, de Giovanni Cretico, nos idos de 1501, mas autêntico pau de papagaios, na Republica de 1948 depois de quatro séculos a pico? Historicamente o Brasil é assim. Todos falam e ninguém se entende!... (Diário de Sergipe de 22-6-48). 129 *** NASCIMENTO DE ARACAJU E foi assim que dos relevos verdejantes e graciosos, que bordejavam o Paramopama, marcando nas encostas escarpadas a tradição gloriosa de recontros contra o indígena, ou o estrangeiro; e foi assim que dos conventos ancestrais, de estrutura maciça que desafia os séculos, e em cujas naves austeras se celebrava o culto de Deus e se tributavam honras aos representantes do Estado; e foi assim, numa transmutação rápida de cenários que a Capital desceu da montanha para a planicie dos “Cajueiros dos Papagaios”... Maconaria Carvalho Neto.indd 129 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA E foi assim que entre areias infirmes de dunas alvejantes na planura aluvial ganglionada de lagoas e rasgada de riachos, derivantes entre o estuário do Sergipe e a estagnação marasmática do Poxim, que Aracaju nasceu para o seu glorioso destino. (Grande Educador, Alfredo Montes, Aracaju, 1954.) *** O NASCIMENTO DE “LARANJEIRAS» 130 Era uma vez um pé de laranjas ̶ referem as crônicas antanho ̶ plantado, descuidadosamente, à margem do Cotinguiba, que, de águas mansas, deslizava entre alfrombras bambus, pelas várzeas, flabelos de ouricuris, pelos outeiros, perfume de manacás, pelo ambiente... As velas que se infunavam, rio abaixo, rio acima, em demanda das mercadorias e conduzindo manufaturas, enrolavam-se aos mastros bem perto da árvore preciosa, que dava flores de suave odor, que dava frutos de sumarento acri-doce. E era como um prenúncio da vida que surgia, no poético... Assim, a árvore fez o porto — Porto de Laranjeiras — e o porto fez o centro comercial da região. As terras ferazes do extenso vale cretéceo ondulavam canaviais, a mataria desfrondando-se para as culturas, multiplicando-se os engenhos, a riqueza abrolhando no celeiro burguesia afidalgada. O povoado que se encaracolava pela cinta das colinas verdejantes, crescia a passos de gigante, tufando de casebre pinturescos as encostas do Bonfim, do Navegante, do Boa do Outeiro do Horto, formando uma aquarela ensolarada de tons Maconaria Carvalho Neto.indd 130 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto verdes e dourados, a vegetação e a luz entremeiando-se de cambiantes maravilhas... Pelas vielas em torcicolos transitava, na labuta diária, a população escrava, dos engenhos para o porto, do porto para os engenhos, carregando açúcar, tangendo bois, num intercâmbio que aumentava cada dia. E foi sob o imperativo crescente desses índices de progresso que o povoado se tornou Vila, a 7 de agosto de 1832, quando a Assembléia Geral, computando o senso demográfico e o arrolamento econômico, reconheceu a Laranjeiras capacidade autonômica, prenunciando-lhe, para não muito longe, foros de cidade. Por seu lado a fé cristã, bem arraigada no sentimento do povo, construía santuários nas ermidas dos morros altiplanados, que movimentam, em relevos graciosos, a orografia local. E a Lei Provincial, de 6 de fevereiro de 1835, dando corpo a esses sentimentos, que os Jesuítas andaram a esculpir noutras Capelas, emoldurando-se símbolos esculturais e paisagem de Comendaroba, criava a freguesia da Capela do Santíssimo Coração de Jesus, como uma bênção da Igreja para a terra promissora. Ora, com os forais de ordem civil e os suprimentos da ordem religiosa, já Laranjeiras emulava com os melhores centros produtores, culturais e políticos da Província, Emulava e vencia! (Casa de Laranjeiras, Aracaju, 1942). Maconaria Carvalho Neto.indd 131 131 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA *** O VALE DO JAPARATUBA 132 Desatam-se em desmedida extensão as terras complanadas por onde corre o Japaratuba, aumentando no seu curso por uma rede de afluentes, que derivam das faldas de inúmeros cerros, que movimentam, em belos relevos, os terrenos circunjacentes. Desde quase a nascente a horizontalidade do leito não lhe imprime grande velocidade; as águas deslizam sem arruído, espairando-se nas planícies rasas em derredor, formando alagados em cada depressão mais leve do solo. E assim transcorre longamente, até entestar com o litoral, em cujas proximidades se sucedem grandes lagoas, de superfície ao nível da corrente. Dada a falta de declividade do rio, o seu curso se torna, principalmente neste trecho, demasiado alongado em curvas e sinuosidades, o que determina uma disparidade chocante entre a quilometragem geográfica e itlneraria. Ademais, Sr, Presidente, muito longe da foz a maré vem represá-lo, de modo a manter sempre as águas em maior altura, enquanto o correamento da corrente, os detritos conduzidos, vão se depositando lento e lento, formando e distendendo a planície aluvial. Ora basta que aumentem, do comum as chuvas do inverno, o que ocorre anualmente — ou que venham abundante as das “clássicas trovoadas”, para que se verifiquem as enxurradas e se restabeleça, periodicamente, o regime das inundações que assumem nesse trecho sergipano gigantescas proporções. Maconaria Carvalho Neto.indd 132 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto É tal a demora das águas no vale inundado, e tão insensível é a sua baixa, depois de haver galgado as planuras convzinhas, que, Sr. Presidente, toda a cultura, todo o trabalho humano, toda a luta afanosa, no amanho da terra aí se inutilizam, vão por água abaixo, registrando-se dolorosa e irremediavelmente, prejuízos imensos. Por isso mesmo que as águas ai se adensam e retardam, sendo de lentidão proporcional ao seu volume, o que ocorre nessa quase estagnação, é o cúmulo cada vez mais abundante de detritos obstruindo o leito do rio, arrasando os cortes canal. E, consequência inevitável, desponta-lhe as bordas fertilizadas luxuriante vegetação de algas variadas, formando enseadas, balseiros, em cuja trama compacta esbarra, extravasando, a corrente entumecida e calma. Com esses novos obstáculos, que se multiplicam de cheia para cheia, de ano para ano, de dia para dia, aumentam volume os bancos de vasa, enquanto em torno, até o sopé das montanhas mais distantes, invadindo áreas cada vez maiores se formam grandes paludes, inúteis e pestilênciais. (No Parlamento, Rio de Janeiro, 1921). 133 *** A PENITENCIÁRIA DE ARACAJU A Penitenciária, ou a Grande, como lhe chamam os prisioneiros, situa-se a quatro e meio quilômetros da Capital. Já de longe se lhe avista a arquitetura pesada de castelo medieval, com duas torres laterais mirando as distâncias. Ergue-se, assim, com seus muramentos grosseiros, no dorso de uma coluna desnuda, escalavrada. Maconaria Carvalho Neto.indd 133 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA 134 Impressiona pelo conjunto aquela massa compacta de alvenaria, como um bloco de tijolos associados emergindo das terras deprimidas que lhe ficam em derredor, ganglionadas de lagoas e brejos paludosos. Chega-se até lá, depois de percorrido pequeno trecho de linha, rumo ao interior, a trotes por uma estrada de rodagem de má conservação, rasgada na argila vermelha e quebradiça, coleando o morro... Vão ficando às margens, para trás, pantanais e capineiras. E quando se galga, infletindo-se para o sul, a ultima rampa suave e alcança-se, afinal, a estreita lombada onde assenta o edifício, estende-se a perder de vista, para todos os lados, um panorama movimentado e belo. Em meio a planície aluvial do município de Aracaju irrompem, então, relevos orográficos de pequena altura, destacando-se, salteadamente, na monotonia de paisagem, que tornam atraente, sugestiva. De feito, transporta a extensa baixada em frente, agrupam-se, em sequência ondulada, alvas dunas, revestidas algumas de vegetação rasteira arbustiva. E além, fechada ao nascente pelo estuário do Cotinguiba, que desliza entre o continente e a Barra dos Coqueiros, descobre-se em toda a extensão a cidade, acompanhando-lhe a linha sinuosa até a barra. Tem-se, destarte, diante dos olhos este quadro pinturesco, dos mais variados tons. Pelo corte, a tiro de fuzil, o Outeiro do Céu, alongando-se até o cocuruto vermelho, como um crânio pelado onde houvesse crescido hirsuta verruga de matos agrestes. A seguir, o Morro de Santo Antônio, de topo ligeiramente achatado, em torno ao qual se alinham graciosas vivendas. E no meio delas, flechando em vertical o espaço, a torre da ermida do milagroso padroeiro. Maconaria Carvalho Neto.indd 134 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto Mais ao fundo, para a direita, o Morro do Urubu, na pompa verde de suas derradeiras matas, cobrindo-se as encostas. Pelo sul, toda a vasta zona dos coqueiros, por onde serpeia a fita encaracolada do Poxim, e onde sobe, lá para Atalaia, a silhueta branca, altaneira, esguia, do farol, como uma sentinela insone ao bramir incessante do oceano quebrando nas praias... Enfim, pelo poente, as elevações que vão, dispersas, do Jabotiana à Cabrita, ao São Gonçalo, ao Socorro, às terras cretáceas do Cotinguiba, e muito longe, dominando os píncaros circunjacentes, já no amplo dos tabuleiros, à envergadura azulada e rija da Serra de Itabaiana, fechando o horizonte. É dentro nessa larga e movimentada moldura da natureza, caindo de nível para o litoral que se levanta a Penitenciaria, símbolo sombrio da liberdade perdida... 135 *** Vai por alguns anos delineara-se essa construção, para retirar do centro da cidade a Cadeia Velha. Superior a esta em extensão, em perspectiva já nascera, porém, em moldes vetustos, com um século de atraso na ciência — Cadeia Velha também. Vindo depois da de São Paulo (Carandiru), não lhe copiou os melhoramentos, nem a técnica. Vindo antes da de Minas Gerais (Neves) de Pernambuco (Itamaracá) evidentemente está longe desses modelos. Sequer as transformações verificadas em Santa Catarina, Paraíba e Rio Grande do Sul. Maconaria Carvalho Neto.indd 135 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA 136 Inadequara-se, por isso, desde o início, aos fins pretendidos. A vistyosa fachada do edifício da administração, a cavaleiro daquele mirante natural, não encobre lá dentro, o primitivismo do presídio. Não se consultou, em verdade, a palavra do técnico. Não se reviram as últimas conquistas arqueológicas no traçado da construção. Foi o empirismo do construtor inexperto que deitou a orientação, das bases as cimalhas. Pensou-se no ilusório efeito da vista, esquecendo-se a finalidade real da obra. Malbaratou-se, destarte, o dinheiro público na cópia de modelos anacrônicos. Ficou pela mesma grosseira imagem dessas velhas cadeias espalhadas pelo Brasil, com maiores ou menores adaptações à técnica moderna. Ao leigo seduz, talvez, a mole imponente da grossa estrutura de pedra e cal. Ao perito, entretanto, não escapam, a um simples relance, os erros cometidos, desvirtuando os objetivos reformatórios da pena. Cogitou-se mais do crime do que o criminoso, e este mesmo julgado tendenciosamente, por preconceitos e aprisiorismos. Não se viu no homem o desajustamento social, que a sociedade quer corrigir pelo tratamento adequado. Houve preocupação do castigo; não se tratou da educação. Pretendeu-se a pena intimidativa, mas não a corretiva. Do trabalho ̶ higiene dos músculos, fonte de saúde, terapia moral — nada se fez com proveito. Apenas um pavilhão aberto de chão batido e poento, com ferramenta manual rudimentar, incapaz de treinar um ofício, orientar uma profissão. Tudo bem longe de se prestar à execução de qualquer sistema penitenciário racional. Nem mesmo a meros ensaios do Maconaria Carvalho Neto.indd 136 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto regime compósito do Código Penal de 1890, em cuja vigência se inaugurava a Penitenciaria. (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). *** REMINISCÊNCIA Há trechos da vida que não desaparecem... Mesmo à distância, ficam na lembrança como uma centelha que nunca se apaga. (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). NORMAS EDUCACIONAIS Tanto vale o espírito de luz no corpo de pedra, acendendo claridades na opacidade da matéria bruta. Sem apascentar os corações, sem levantar os sentimentos, até os bons são maus, e os homens são puros animais indomáveis. Dominam-se os instintos pela inteligência, pela razão pela bondade. Muitas vezes um conselho vale mais que um castigo e um exemplo de tolerância compreensiva mais que alguns dias prisão. O primeiro amansa; o segundo revolta. E o criminoso, ser um desajustado, muito precisa de intuição psicológica em quem o guarda, em quem o trata, em quem o julga. (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). Maconaria Carvalho Neto.indd 137 137 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA *** LEMAS DA MAÇONARIA 138 Somos, na Maçonaria, uma comunidade de paz, de justiça, fraternidade. Temos a existência mesmo condicional à felicidade geral dos homens. Não distinguimos nações senão pela sua capacidade na prática do bem. Não acreditamos em regimes políticos senão pelas garantias que ofereçam aos dos cidadãos. Qualquer povo, qualquer país, qualquer sistema de governo, também será, por isso mesmo, nosso povo, nosso país, nosso sistema, desde que assegure a liberdade, coloque a igualdade dentro da lei, não destrua a fraternidade por injustas perseguições. Daí a razão pela qual a Ord. Maçônica acolhe em seu seio, onde quer que se erga um Templo de Hiran, seja qual for o continente, maçons de todos os povos, de todas as raças, todas as religiões. (Discurso na Maçonaria). Maconaria Carvalho Neto.indd 138 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto V SOCIOLOGIA E DIREITO A CASA DO ADVOGADO Sim, é a casa do advogado. O pouso aberto, o abrigo certo, na deserta estrada. Quando tudo foge ao viandante e ele se perde nas encruzilhadas de sua desventura, só esse abrigo o acolhe, até que passe a noite do seu infortúnio. Ali arma o ninho de esperanças, aquece-o ao calor da profissão do advogado, mestre e conselheiro reanima-se, comove-se, espera o sol da liberdade, e de novo sonha com a felicidade. E quando esta lhe vem dourar, outra vez, os horizontes da vida, a estrada do futuro se lhe reabre, sem mais sombra do perigo, ei-lo que parte... E nem olha para trás!... Que resta, afinal, ao dono do abrigo, do pouso aberto, para contar a história desse encontro? Um pouco de cinza e de fumaça. Fumaça que tem, contudo, transparência de luz! Cinza que esplende como poeira de ouro! Relíquias de uma vida consagrada ao Direito, no apostolado de defender para cada um o que a cada um pertence. E é assim a casa do advogado: um pouso aberto, à beira da estrada. (Advogados, p. 113). Maconaria Carvalho Neto.indd 139 139 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA *** LEMAS DA ADVOCACIA 140 O advogado entra no pleito com os sentimentos do seu cliente, com a revolta do seu direito ofendido, pedindo reparação. Repele a ofensa, retorque ao insulto, castiga a insolência São deveres inauferiveis, de que não pode abrir mão. Quem se não sentir com a coragem para essas atitudes, não serve a profissão, nem ao Direito. Rasteja aos pés dos poderosos, pede esmola aos juízes, trafica pleitos, não advoga! Se ele não for o que dele disse um grande magistrado ̶ livre dos vínculos que amarram os outros homens, muito altivo para ter protetores, muito modesto para ter protegidos, sem escravo e sem patrão, ̶ não tome a peito as coisas alheias. Somos modestos, e não temos protegidos. Somos altivos, e não temos protetores. (Um Caso de Interdição, vol. I, p. VIII, Aracaju, 1936). *** O CLIMA D0 ADVOGADO O clima do advogado é a luta. Não é o marasmo, a apatia, a inércia. Vitorioso o princípio de Jhering: “A ideia do direito encerra uma antítese que se origina desta ideia, da qual se pode, absolutamente, separar: a luta e a paz; a paz é o termo do direito, a luta o meio de obtê-lo.” (A Luta pelo Direito; trad. de José Tavares Bastos, p. 3). Estagnar é morrer. Movimentar é morrer. E vive-se pela paz, lutando pelo direito. Quem renuncia ao seu direito receoso Maconaria Carvalho Neto.indd 140 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto de lutar, pratica um suicídio. Tem a paz da morte, que é o nada. Não tem a paz da vida, que é a própria vida. O advogado é a alma dessa luta, movimentando nos Tribunais de Justiça o princípio da seleção legal pela existência do direito. No acesso das paixões que se defrontam, no renhir dos interesses que se opõem, tem ele o ambiente do seu trabalho. Não pode ser apático, indiferente, frio. Sofre, necessariamente, a influência do seu meio. Sem descomedimentos escusáveis, cumpre-lhe manter a posição que lhe foi confiada e pelejar pela vitória. Inumeráveis contratempos pelo caminho. Injúrias, convícios, a infalível conjura suspicaz da inveja. Quanto mais lido e corrente nos luminares da profissão, mais ao alvo das setas. Não raro se vê forçado a mudar de armas no combate, descendo à arena do adversário com os recursos que este lhe proporciona. É conhecido o dito do escritor: tudo no mundo tem um limite, menos a estupidez. E quantas vezes é nesse campo ilimitado que lhe cabe a sorte de lutar, palmo a palmo, ponto a ponto, até que um fragmento de luz penetre a camada espessa da rotina empedernida! No fim, a palavra da Justiça. Mas, quantas vezes justa, quantas vezes injusta! Uma coisa entretanto, sempre certa, infalível: a luta. Quando iluminada pela consciência do dever, quando inspirada pelo principio do bem é um sol em que se incende o culto do Direito. E só isso compensa ao advogado todo o seu trabalho, todo o seu esforço, todo o seu nobre desejo da vitoria: Maconaria Carvalho Neto.indd 141 141 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA ............................................................................................................................. 142 A advocacia não se faz em segredo. É pretório, tribuna, palavra, pena, publicidade. Advocacia secreta, de acordos escondidos, de acomodações reservadas, é mentira, patota, traição vil. Quem advoga fala em público, escreve a sol meridiano, tem a eloquência da verdade que não pinta o rosto, nem usa de véu, na pinturesca expressão de Tobias Barreto. Não goza, por isso, o advogado das “delícias de l’enedit”,de Flaubert, para ruminar consigo mesmo, no silêncio do seu gabinete, o inédito de suas produções. Estas são as suas armas de combate, cintilando à luz dos argumentos como gume acerado nos golpes decisivos. Quem as esconde é porque receia a têmpera em que foram forjadas. Brandi-las a descoberto, experimentando o aço em que foram caldeadas, é ter a certeza do teor de resistência que oferecem. (Um Caso de Interdição,vol. I, Aracaju, 1936). *** A MUTABILIDADE DO DIREITO De feito, só em uma sociedade imutável fora possível conceber-se um direito imutável, uma lei que conservasse indefinitivamente a sua razão originária, o seu alcance, o preestabelecido, o seu objetivo predeterminado (apoiados). Quando novas relações surgem e antigos problemas adquirem feições novas, quando os valores se transformam e tudo muda, porque tudo incessantemente evolve, fora absurdo que só o legislador estivesse parado, desatento ao perpétuo Maconaria Carvalho Neto.indd 142 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto movimento que o envolve, como essa “personalidade imaginária, mítica e permanente”, de que fala o grande Saleilles. Razão assiste, pois, a A. Giraut para dizer: “Quando o legislador pensa no presente, não devia edificar para a eternidade.” Em dominando atualmente outras concepções sociais, porque as relações da vida se modificaram e então, segundo apreciara Geny, “conte em si mesmas as leis que as devem reger,” não se pode ficar chumbado ao peso de princípios que se imobilizaram nos códigos, enquanto a sociedade caminha sempre, eliminando do seu caminho as peças inertes do organismo político que já não podiam realizar as suas irreprimíveis aspirações de progresso” (muito hem). Consoante um raciocínio de Tarde, o direito vem a ser a “conclusão de um imenso silogismo prático, em que a premissa maior é constituída pelos desejos, necessidades e apetites da sociedade, e a menor pelas suas crenças, idéias e conhecimentos: toda a modificação no estado dos desejos ou das crenças, tem necessariamente a sua repercussão jurídica, segundo a intensidade do abalo regenerador. Legislar é, portanto, tecer sem parar a teia de Penélope, e é já, para o legislador, antes de organizar o direito do futuro, uma tarefa esmagadora manter o direito de ontem a par da sociedade presente.” (Legislação do Trabalho, p. 309/10, Rio de Janeiro, 1926). Maconaria Carvalho Neto.indd 143 143 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA *** CULTORES D0 DIREITO 144 Ciência especializada, conquanto ramificada na amplitude magna dos conhecimentos humanos, requerendo estudo próprio e longo tirocínio, somente os que a ela se consagram, enamorados dos seus segredos e da atração de suas infinitas dificuldades, é que a podem ministrar com proveito, ou lhes exercer com dignidade os nobres misteres. Nela não podem medrar os diletantes, adejando sobre assuntos graves, que pedem estudo meditado, reflexão esclarecida. O cultor do direito há de ser um profissional do sentido rigoroso do oficio diuturno, em que elabore sem cessar. Escritor, se o é, a doutrina carece sempre e sempre renovada, refundida, melhorada. E o doutrinador nunca atinge a perfeição, porque nunca lhe basta o estudo. Legislador, se vier a sê-lo, alarga-se-lhe em responsabilidade a missão que lhe cabe. Fixar, num dado momento, as aspirações sociais, gravando-as em norma jurídica, como regra obrigatória, disciplinando os interesses coletivos, tanto lhe custa o feitio delicado. Juiz, então, se o for, em desmedido alcance, avulta a dificuldade da função. Devendo versar perenemente a doutrina, para lhe extrair da ganga impura o veio precioso, não pode arredar dos livros a vista inquiridora. Em lhe cumprindo por outro lado, aplicar a lei, é o próprio estudo feita a sua exegese meticulosa, que lhe está a impor, constantemente, maior soma de indagações especulativas, filosóficas, sociológicas. Maconaria Carvalho Neto.indd 144 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto Advogado, se de verdade o for, não tem outro terreno onde lavrar, outra fonte onde beber, outra sombra onde repousar, senão os livros, sempre os livros. É o seu tântalo insaciável , torturante, eterno... Ora, para todos esses penitentes da profissão, escravos do ofício — o escritor, o legislador, o juiz, o advogado — e uma conquista que não finda, desafio de todos os dias, penetrar os segredos do ofício, vencer os entraves da carreira. E somente quando desse tesouro, como prêmio a esforços incessantes, se recolhem algumas parcelas, é que se deve dar a resposta que possa fazer calar a Epictelo... Pois bem, se, ainda assim, grandes e frequentes são os erros cometidos no apreciar uma teoria, no desenvolver uma tese, no escandir uma hipótese, no aplicar uma lei, que se dirá dos que se metem nesses assuntos, sem as primicias do estudo, as láureas do esforço continuado? (“As Máximas de Epictelo” - Jornal de Sergipe, 1928). 145 A EVOLUCÃO DA CRIMINALIDADE Acompanhando o ritmo da civilização, da barbária ao requinte e caprichos do homem moderno, a criminalidade vai acumulando uma série imensa de formas, com as características diferencias de cultura e formação moral dos indivíduos. Assim, a criminalidade atávica, residual dos meios bárbaros e a criminalidade evolutiva, reflexos das sociedades adiantadas. Daí o dizer-se que cada sociedade tem o seu crime paralelo, refletindo-lhe o estado evolucional. Maconaria Carvalho Neto.indd 145 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA Ou, consoante Tarde, a sombra que ela projeta - “ l’ombre projetée par la Societé” ̶ (Etudes Pénales) e que vai marcando o perpétuo, conflito das atividades honestas, para o bem e para a harmonia social, com as atividades desonestas, ou infringentes dos princípios da ética e interesse geral da comunhão. Diz Scipio Sighele: “ de sauvage et brutale, elle est devenue raffinée et policée; la cruanté l’a cedé ou dol, la violence à l’astuce, le délinquant moderne combat avec le cerveau bien plus qu’avec les muscles.” (Lai Psychologie des Sectes, p. 4-). 146 Opera-se, assim, essa transformação, desde muito notada por Musedaglia, de que cada civilização tem a sua criminalidade própria (La statistica della criminalité). É uma resultante da lei de adaptação, que também rege os fenômenos sociais, levando Maury a afirmar que as tendências criminosas não desaparecem, transformam-se; “les tendances criminelles se transforment et ne supriment pas,_ en suivant purement et simplement de la loi universelle de l’adaptation” (Da mouvement moral de la Société, Revue des Deux Mondes; Sighele cit.). Nessa transformação se verificam as duas formas básicas, marcantes de toda atividade anti-social. Uma, a evolutiva, como assinala Sighele, é toda cérebro e tem a astúcia por processo, variando, apenas, nas suas manifestações, como as apropriações indébitas, o falso, a fraude; a segunda, a atávica, é a ferocidade da ação violenta, Maconaria Carvalho Neto.indd 146 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto toda músculos e se exterioriza na revolta, no homicídio, na dinamite. Nas próprias palavras do notável escritor: “La premiére est tout de cerveau et son procédé c’est l’astuce, sous ses deverse manifestations, telles que les appropriations illégitimes, le faux, la fraude; la deuxiéme est en grande partie accomplie par les muscles et ses procédés sont purement féroces: la révolte, l’homicide, La dynamite” (ob. cit. p. 17). Vê-se, pois, que a sociedade caminha arrastando o seu fardo imenso de prejuízos ancestrais, do mesmo passo que sofre modificações sensíveis em sua marcha, adaptando-se sob a pressão de novos fatores. Como quer Wirchow, mesmo no corpo social, “a patologia segue um processo idêntico ao da fisiologia”. A atividade funcional harmônica, no ritmo da co-existência social, ao lado dos distúrbios patológicos, comprometendo a vida do organismo. (Um Caso de Interdição, vol. I, Aracaju, 1936). 147 *** MUTILAÇÕES CONSTITUCIONAIS Mesmo que uma Constituição não se petrifique como um monólito indiferente ao perpassar dos séculos, ela deve ser como essas grandes árvores centenárias do nosso solo, cujas raízes se embelem nas profundezas da terra, e cuja copa se esgalha no espaço, dando frutos à vida e dando sombra contra as intempéries. Era assim a Constituição de 1891, plantada Maconaria Carvalho Neto.indd 147 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA 148 pelas mãos de Rui Barbosa, como só ele sabia plantar os carvalhos do futuro. Que fizemos nós dessa árvore gasalhosa e fecunda, sob cujo teto aprendemos a amar o Direito, a Justiça, a Liberdade? Fomos-lhe à fronte imensa e deceparmo-la; fomos-lhe ao cerne rijo e cortamo-lo; fomos-lhe às raízes e extirpamo-las. Mas, havia mister que o fizéssemos, com tamanho desamor às nossas mais caras e nobres tradições? Não e nunca! Somos um povo de esquecidos. Havíamos aprendido a história constitucional dos Estados Unidos somente pela metade. Aquelas sábias instituições, transplantadas para o nosso meio, aqui vicejaram, prosperaram. Mas não havíamos aprendido toda a sua história... O povo americano nunca ousou, e jamais ousará, destruir a sua grande árvore da liberdade. O que ele fez, o que ele faz, é conservá-la, melhorando-a, adaptando-a, e ajustando-a às transformações sociais. Para isso segue, apenas, a regra ordinária do bom senso: poda, enxerta, emenda! E sobre o velho tronco, anoso e secular; e com a seiva das raízes profundas das tradições; de pé sempre a mesma árvore constitucional, ei-la de novo vicejante e frondosa, com a floração moderna das conquistas mais recentes, embelezando o panorama das liberdades, ampliando os frutos do direito, tornando mais humana a vida humana! (Discurso pronunciado na Câmara Federal em setembro de 1952). Maconaria Carvalho Neto.indd 148 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto *** INTERPRETAÇÃO DA LEI Se a lei é clara — interpretatio cessat in claris — (hoje com limitações bem aceitáveis) cabe simplesmente aplicá-la, como “uma inteligência sem paixão” conforme a expressão de Aristóteles. Se o não é, supra-lhe o juiz a obscuridade, ou a omissão, e faça da hermenêutica uma faixa de luz que penetre o mais íntimo do fenômeno jurídico. Ubi cadem est legio ratio eadem debet esse legis dispositio, para os casos análogos, de semelhante a semelhante, justapondo espécie a espécie, no cadinho rigoroso da lógica judiciária. E ainda para inumeráveis outras hipóteses que escapem do círculo legal, o largo e imenso espraiado dos princípios gerais, “fontes mediatas do direito”, segundo Chironi, e que no “formulá-los e concebê-los sobrelevam a inteligência e a cultura do Juiz”. Como bem notara Landucci. Para tanto, porém, não basta o alfarrabista de arquivos empoeirados, como o seu saco de alfarrábios exalando bafio. Não é com esses colecionadores de múmias que o Direito se renova e utiliza, solvendo os conflitos sociais presentes. (“Casos Omissos”, Jornal de Sergipe de 15-9-32). 149 *** PREVISÕES DA LEI A lei, por mais ampla que distenha a sua esfera de ação, não tem o poder de reunir a infinita complexidade das relações sociais. Maconaria Carvalho Neto.indd 149 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA Traça-se uma norma jurídica sobre a tendência vencedora no momento, e ainda assim os mesmos fatos por ela virtualmente abrangidos, num incessante variar de combinações, fogem à sua disciplina coercitiva ao seu domínio de força social obrigatória. Daí o que se diz comumente em técnica judiciária: a lei não pode ser casuística. Do contrário, o engano a que estaria volvido o legislador, supondo encarnar essa “personalidade imaginária mítica e permanente” de que fala Salelles como sombra vigilante ao lado do juiz. Jean Cruet pode dizer-se que condenou numa frase límpida tudo o que sobre o assunto escreveram doutrinadores: 150 “A ilusão do legislador é crer todo o direito; esta ilusão produz a ilusão do juiz que quer tirar todo o direito da lei” Certo é, de conseguinte, que a quem põe mãos no feitio das leis não deve ser estranho que tem o campo relativamente limitado, sabendo de antemão que a norma jurídica oscila incessantemente, varia muitas vezes o seu alcance primitivo, sobre ela refletindo-se as mutações das coisas. E por isso não há de pretender que fique imutável o preceito legislado, quando a sociedade para a qual se formulou oferece novas cambiantes”. (“Previsão da Lei”, Jornal de Sergipe de 12-9-32). *** O ESTILO NA ELABORAÇÃO DA LEI Verdade é que os predicados essenciais na elaboração das leis são, por excelência, a clareza, a concisão, a simplicidade. Como que nenhuma lei sem essas virtudes de estilo Maconaria Carvalho Neto.indd 150 07/11/2013 10:27:30 Carvalho Neto atinge a eficiência da sua obrigatoriedade, tornando-se norma social coercitiva. Acordes neste ponto se acham Montesquieu (Esprit des lois); Benthan (Vue general d’un cours complet de legislation); Rossi (Elements de droit pénal); Rousset (Science nouvelle des lois) e tantos outros que hão versado o assunto, convergentes na afirmação de que nas construções legislativas o estilo se há de formar imprescindivelmente daqueles elementos substanciais. Em sendo, porém, a concisão uma qualidade, defeito inconteste é o seu exagero. Bem o diz Clóvis Beviláqua: “Mas a grande concisão pode trazer a obscuridade mutilando a ideia ou exprimindo-a falsamente. - J’évite d’étrelong et je deviens obscur! pondera Boileau.” (Projeto do Código Civil). 151 Notadamente quando o instituto é novo, novos os princípios que formam, novas as aspirações sociais que o determinam, é erro condensar em uma fórmula por demais breve e sintética a amplitude da doutrina vencedora. Daí as inevitáveis incursões da doutrina no campo propriamente da legislação, por atender a esclarecimentos indispensáveis para a legítima e curial aplicação das leis. Assim foi e assim é, sempre e sempre, no erigir em código os princípios jurídicos dominantes, do gravar em constituições as conquistas políticas vigentes. A modo do que em outros povos ocorrera, quando foi da feitura de suas codificações, a mesma necessidade imperou entre nós, tornando-se bem visível e diversas indeclinável por ocasião de ser discutido e votado o Código Civil. E entre Maconaria Carvalho Neto.indd 151 07/11/2013 10:27:30 VULTOS DA MAÇONARIA quantos outros salientaram documentalmente esta verdade, está o seu próprio autor, dizendo: “Por isso, quando o legislador moderno sente necessidade de assentar certas nações doutorarias exigidas pelo instituto, por sua novidade e circunstâncias do momento em regra, substitue as definições formuladas, segundo os preceitos da lógica, por indicações breves, mas suficientemente lucidas, sobre as quais a doutrina levantará as suas definições exatas e as suas explanações eruditas” (ab. cit.). 152 E tal deve ser, por evitar que do contexto legal omisso, ou demasiado breve, surjam as interpretações, que, não raro, destroem o sentido exato do preceito legislativo, máxime nos institutos novos. Daí a sábia advertência de Rui Barbosa: “Entre um frasear sujeito a hermenêutica e o outro de sentido materialmente variável não há vacilar” (Réplica). (Legislação do Trabalho, p. 294/5, Rio de Janeiro, 1926) *** O FETICHISMO DA FORMA Temos nós outros que fomos juízes, ou somos advogados, o fetichismo da forma, essa divindade que nos tribunais nos agasalha contra o arbítrio dos maus julgadores, ou as astúcias da chicana destemerosa. Daí a sua indeclinabilidade, devendo estar preestabelecida na lei para que os juízes possam agir, os advogados Maconaria Carvalho Neto.indd 152 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto pleitear, o direito afirmar-se. Por ela, sim, é que se manifestam as relações de direito perante a justiça social, nela em que, consoante a lição do grande João Monteiro, “tem o homem o mais contínuo e seguro defensor de suas liberdades.” (Legislação do Trabalho, p. 44/5, Rio de Janeiro, 1926). *** AS LEIS E A SUA REDAÇÃO O ensinamento de Laurent é que “la précision des idées et la netteté du langage, voilá tout le droit”. O Sr. Afrânio Peixoto: Não me referi a impurezas de redação, mas ao caso de clareza de expressão. O Sr. Carvalho Neto: A clareza de expressão ou obscuridade da redação. . . Mas, Senhor Presidente, nem todos logram ser precisos nas ideias e claros na linguagem. Verdade é que se admira e ouve com atenção um pensamento bem formulado, a nitidez de uma expressão adamantina, mesmo que não semelhe à palavra de Rui Barbosa, ímpar no idioma pátrio. Frases obscuras e toscas, sem clareza e polimento, não podem veicular ideias tersas e apreciáveis. Xavier Marques escreve que “uma frase obscura e confusa é o eco de um pensamento sem nitidez é o sinal de um conceito vago, mal definido no espírito”. E João Ribeiro aconselha que “... é probidade de quem escreve polir, castigar e por em ordem os seus escritos. .” 153 ............................................................................................................................. Maconaria Carvalho Neto.indd 153 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 154 Em se tratando do preparo das leis, do amanho das codificações, é mister que as palavras sejam pesadas, medidas as sentenças, de modo que se condensem proposições práticas,capazes de lidima compreensão e execução fácil. Entre nós o oráculo no falar e no escrever, Rui Barbosa, discorrendo com aquele saber incomparável sobre o feitio das leis, construiu um monumento de lógica e vernaculidade, no traçar as normas para os atos legislativos, dizendo que “sendo a língua o vículo das idéias, quando não for bebida na veia mais límpida, mais cristalina, mais estreme, não verterá estreme, cristalino, límpido o pensamento de quem a utiliza.” E um dos maiores juristas de todos os tempos, senão o maior R. Von Ihering, não se descuidou de lavrar um volume inteiro, para explicar quanto “de terminologia rigorosa, nitidamente acentuada, ricamente desenvolvida, depende a precisão, a segurança, a vivacidade do pensamento jurídico.” (Legislação do Trabalho, p. 40/1, Rio de Janeiro, 1926). *** A IMITAÇÃO NA LEGISLAÇÃO Isto posto, a nossa tendência irresistível é para a imitação, lei universal nas sociedades humanas. Onde modelos houver que se casem às condições do nosso meio, havemos de buscá-los, segundo refere Clovis Beviláqua, por alotrionomia, “... essa propriedade de assimilação de leis estranhas, essa necessidade que têm certos povos de completar seu cabedal jurídico, tomando por empréstimo o que outros evocaram do caos das aspirações para a claridade da existência real, da forma adequada, da atuação eficaz.” Maconaria Carvalho Neto.indd 154 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto A história do Direito é esta em toda a parte. Roma deu leis ao mundo, e hoje ainda nos alicerces de todos os monumentos jurídicos contemporâneos é o cimento indestrutível do direito romano que os fundamenta e equilibra. Nem sei de povo moderno, Senhor Presidente, onde as criações jurídicas no circulo das relações privadas, as tenham baseado mais largamente na sedimentação do direito romano do que o nosso, a custo evolvido para as Ordenações, leis extravagantes, até a formação do Código Civil. (Legislação do Trabalho, p. 187/8, Rio de Janeiro, 1926). *** LEGISLADORES IMPROVISADOS Que longe se estava, então, dessa cáfila de legisladores improvisados, que se metem a fazer da Constituição um ventre de Gargantua onde socam, a granel, as iguarias mais diversas dos paladares estragados! Desses licurgos de francaria, quese põem a remendar Rui Barbosa naquilo em que somente ele pontificava com estudo e paciência — segredos do gênio! Desses legisferantes de mesa de cafés e beiras de calçadas e não da meditação e silêncio das bibliotecas! Desses improvisados doutores da lei, esquecidos do que, a seu respeito, Batista Pereira acertou de chamar “a mascarilha do despreparo”, “a razora achanando os níveis da cultura”, “a apologia do solecismo e do barbarismo” em que são titulados! (Gumercindo Bessa, Aracaju, 1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 155 155 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA *** ARRASOADOS FORENSES 156 São folhas fanadas as que, scurrente calamo, se escrevem para a justiça no lidar dos processos. Destinadas a uma publicidade limitadíssima, pouco além dos passos perdidos na sala dos pretórios, correm céleres como rios secos nas monções das enchentes. Entumecem rapidamente e logo se escoam, águas a jusante... Não param, não refluem, não ficam. Solucionados os pleitos, sai-se com a vitória a lembrança dos trabalhos que a conquistaram. O serviço do advogado apaga-se com a decisão, que traça a norma vencedora para a jurisprudência. (Casos Criminais, p. 7, Aracaju, 1937). *** HARMONIA DOS PODERES Não se tolera o Poder Judiciários portas a dentro do Legislativo para lhe ditar: não proponha, não discuta, não emende, não rejeite o projeto, a proposição! Não se tolera o Poder Judiciário portas a dentro do Executivo, para lhe ditar: não sancione, não promulgue, não vete, não publique! Maconaria Carvalho Neto.indd 156 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto *** MAGISTRATURA CRIMINAL ESPECIALIZADA Nestas condições a especialização da Magistratura Criminal se impõe como um fato de evidência incontestável. E se nos Estados ela ficou na dependência das Organizações Judiciárias respectivas, ou de leis especiais decorrentes do art. 124 da Constituição, no Distrito Federal a competência para a sua organização é O Congresso Nacional, ex-vi do art. 25 do mesmo diploma constitucional. Chega até a se não compreender, Senhores Deputados, como na Capital da República, pela densidade de sua população, pelo alastramento do crime em várias modalidades, indo da criminalidade atávica, bárbara, de sangue, de rude perversidade — até a criminalidade evolutiva — cheia de artifícios e simulações, calçando luvas e vivendo no meio aristocrático — chega a se não compreender, repito, ainda se não haja constituído essa magistratura especializada, tecnicamente armada de elementos científicos para a prevenção e repressão dos crimes e dos criminosos. (Bases Constitucionais do Regime Penitenciário, Rio de Janeiro, 1951). 157 *** MAGISTRATURA CRIMINAL ESPECIALIZADA Além disto, não ha magistratura especializada no crime. O magistrado de hoje, a despeito de tantos setores diferentes, que reclamam conhecimentos especiais, continua sendo uma gaveta de sapateiro. Há de ter pouco de tudo para os variados solados da Justiça. Maconaria Carvalho Neto.indd 157 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA Que sabe ele de psicologia, se não se afeiçoou ao estudo profundo da inteligência, dos sentimentos, da vontade, dos fenômenos mentais? E da endocrinologia reveladora de tantas manifestações internas, das secreções e hormônios, marcantes da personalidade? E da psicanálise, para exploração do subconsciente, do inconsciente, com que se há de jogar necessariamente na determinação dos atos da individualidade desajustada. Poderá o juiz, à margem ou ao arrepio destes conhecimentos, fazer a individualização judiciária da pena, de tal sorte que atenda a sua finalidade ético-social? (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). 158 *** UNIFICAÇÃO DA MAGISTRATURA BRASILEIRA “O Sr. Carvalho Neto: Pugnar, pugnar sempre pela unidade da Pátria, estreitando os laços da nacionalidade, unindo os seus símbolos numa só bandeira, num mesmo poema a vibração dos seus hinos, na mesma história o seu passado, esperanças iguais num futuro comum! O Sr. Joaquim Osório: V. Ex também quer rasgar todas as bandeiras estaduais? Só será possível aquelas criadas por decretos. O Sr. Carvalho Neto: Eu não quero rasgar bandeiras, mas desejo que nos corações brasileiros, acima de tudo, tremule uma só bandeira, um só estandarte, ecoe um mesmo hino,vibre um mesmo sentimento, palpite a mesma crença, por que em qualquer parte do Brasil em que me encontre, eu não quero ser distinguido senão como brasileiro. (Muitos apoiados). Maconaria Carvalho Neto.indd 158 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto Uma só Nação, e para isso, um só direito, um só processo, uma só Magistratura. Una lex et semper et ubique unun jus,como disse João Monteiro. Porque, ao revés disto, sr. presidente, se emudecermos nestas campanhas, se este ideal não perseguirmos, ai! da Justiça Brasileira, ai! do Direito Pátrio !... Vê-los-emos diluídos, pouco a pouco, pela ação erodente das leis estaduais, e todo este sólido patrimônio de tradiçõescomuns, todo este bloco resistente do Direito Nacional, argamassado de nossas lutas pela liberdade, se esse ideal não perseguirmos, ai! da Justiça Brasileira, o nosso povo irá sofrendo, lento e lento, uma degradação continua. . . O lema é pois, “unir para salvar!” No discurso de 7 de novembro de 1922, como se viu, era esta a afirmativa: “Podemos confiantemente aguardá-la, pois que madruga, perto de realização, na consciência esclarecida dos mais responsáveis pelo poder publico, no governo que se vai iniciar”. Acertei em parte: aí está a ordem do dia o problema da revisão, aberto ao debate no ano passado. Engano, porém, fora o de acreditar que desta vez lograsse solução conveniente e unificação das leis processuais. A questão perdurará indesatada, com os graves erros decorrentes. Quando tudo no Brasil nos vai indicando a necessidade inalienável de unificação, como medida de defesa e segurança da nacionalidade, não era de supor se procrastinasse, em momento tão propicio, uma providência, tantas vezes denegadaquantas requeridas com maiores e dobradas razões. Por um momento, apenas, bruxoleou a esperança dessa conquista nos horizontes da alta política nacional. Maconaria Carvalho Neto.indd 159 159 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA Mas ao primeiro choque de interesses regionais, malferidos na demasia de prerrogativas autonômicas, esmaeceu de vez a pálida estrela... E ao status quo desenganadamente se volveu, adiando-se uma solução que requeria urgência, pois urgem sempre os reclamos do patriotismo. (Discurso na Câmara Federal em1922, Diário de Sergipe de 15-2-46). *** UNIDADE DA MAGISTRATURA 160 Tenho assim, por mantidas as assertivas doutrinarias que venho sustentando com passo firme. E com o recente de abalizados mestres. Pereira Braga, que me confere a distinção de incluir-me entre as citações de seu eruditíssimo trabalho — Exegese do Código de Processo Civil — diz muito bem: “Leis federais feitas por um congresso federal, sancionadas e promulgadas pelo executivo federal, devem ser interpretada se aplicadas pelo poder judiciário federal. Dar esta atribuição a um poder local é anomalia; e corrigir uma incongruência não é deturpar nem deformar nada, e sim aperfeiçoar e integrar o sistema” (pag. 56, vol, I). Não é tal integração o arremedo tentado pela Carta de1937. Não houve unificação, nem se pode dizer que houvesse nacionalização pelo alvitre sugerido pela Comissão de Reorganização da Justiça Nacional, cometendo aos juízes locais as atribuições da Justiça local e da federal. Maconaria Carvalho Neto.indd 160 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto A situação continua agravada pelo desacerto de entregarse aos governos estaduais a sorte da Magistratura, a quem se deu competência para os altos interesses nacionais. Dois depoimentos recentes, e de fontes insuspeitíssimas, vêm consagrar os mesmos princípios por que me venho batendo. Neles fala, além da própria autoridade de seus autores, a constante experiência dos tribunais em que lidaram. E ambos com a vista a um possível aproveitamento da Constituição a ser elaborada. O primeiro é de Seabra Fagundes, Desembargador do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Norte, em Conferência que realizou no Instituto dos Advogados (DF), a 26 de maio de 1945. Dos novos jurisconsultos brasileiros, pela solidez de preparo, pela atualidade dos conceitos, nesta nova fase de reestruturação jurídica mundial, pela clareza de exposição, pela força da lógica, nenhum leva a palma a Seabra Fagundes. Já é um nome indiscutido nas altas esferas culturais do país. Eis o que diz: 161 “A vigente estruturação constitucional do Poder Judiciário se nos afigura de todo inaceitável. Nem se unificou a magistratura, emprestando- lhe cunho nacional, nem se manteve a qualidade existente até 1937, com os seus defeitos e as suas vantagens”. (Revista do Serviço Público, Ano XII, Vol. III, Nº 3). Examina o assunto com sua costumada proficiência, estribado nos mesmos argumentos em que me hei fundado, há Maconaria Carvalho Neto.indd 161 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA tantos anos. Não me fora dado conseguir melhor abono para as ideias que condensei em minha proposição. E conclui, no mais lógico e irretorquível de seus alvitres: “A unificação do Poder Judiciário, em todo o pais, reguladas as investiduras e promoções pelo Supremo Tribunal ou pelos tribunais dos Estados, constitui a solução preferível para o problema, prestigiando a justiça e melhorando as condições dos seus serventuários”. (Ibidem). 162 O segundo depoimento é de Gabriel Rezende Passos, também em Conferência realizada no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (DF), em junho do ano passado. Com assento no Supremo Tribunal Federal, lidando cada dia com os mais relevantes interesses nacionais com solução no Judiciário, pode observar os erros decorrentes da atual organização judiciária do pais, na sua canhesta dualidade. Autor de eruditos pareceres, versando com proficiência os temas de maior relevância jurídica, nessa superior instância,acreditou-se como sabedor profundo e expositor convincente. Nessa conferência talha os mesmos argumentos apresentados, reforça-os com a sua experiência e conclui com aqueles princípios que, há mais de trinta anos, escudam a minha porfiada batalha doutrinária. Eis o que diz: “A justiça segundo nos parece, pois, deve ser uma instituição nacional, custeada unicamente pela União e por ela organizada, segundo as necessidades da vida forense dopais, com certa plasticidade, de maneira que os trabalhos sejam distribuídos equitativamente e tenham Maconaria Carvalho Neto.indd 162 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto marcha rápida. A unidade da justiça seria sobre isso mais um laço a identificar e prender os diferentes Estados Federais, e retiraria os juízes das influências locais sempre mais atuantes sobre eles do que os Poderes Federais”. (Revista do Serviço Público, Ano XII, Vol. III, Nº 2). Para concluir decisivamente: “Justiça Nacional, já que contamos com um só Direito material e formal, organização como corpo único, a expensas da União Federal.” (Ibidem). Ora, foi este o voto que formulei no ultimo Congresso Jurídico. Uma velha aspiração, que se vai tornando vitoriosa na consciência esclarecida da Nação. Disse que era batalha ganha, eis que para ela conquistados os espíritos que planam à altura da compreensão dos interesses de unidade política e jurídica do Brasil. Oxalá assim a entendam os congressistas da atual Constituição. (Diário de Sergipe de 22-12-46). 163 *** DIREITO PENITENCIARIO Sim, Deputados, é preciso que se institua nas Faculdades de Direito nacionais um curso autônomo de Direito Penitenciário, de tal sorte que daí parta, disciplinada, metodizada, a melhor compreensão da finalidade e aplicação dos diplomas penais vigentes, nesse tanto de execução das penas. Não se trata - devo advertir - de ideia nova, de improvisação. Trata-se, sem-cerimoniosamente, de imitação. Maconaria Carvalho Neto.indd 163 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 164 Mas, imitação que é cultura, que é ciência, que é patrimônio comum, de todos os povos civilizados. Não levemos a mal Alberto Torres quando escreve: “Nunca chegamos a possuir cultura própria, nem mesmo cultura geral” (O Problema Nacional Brasileiro , p. XVI). É uma advertência salutar para que a possamos conseguir imitando. Daí a razão que assistia ao espírito profundo de Artur Orlando para dizer: “Conhecidas as leis da imitação, podemos nos dizer na posse do fio condutor do desenvolvimento social.” (Propedêutica Jurídica, p. 40). E um dos maiores constitucionalistas brasileiros, em cujo ensinamento tanto foram dessedentar-se as gerações que o sucederam — João Barbalho —colocou a questão nos seus verdadeiros termos. “Imitar os bons modelos é ato de sensatez e prudência, é procedimento avisado e proveitoso” (Comentários, p. 6). Ora, já são conhecidos, nesse ramo, “Instituto de Ciências Penais da Universidade de Paris”; a “Escola de Aperfeiçoamento em Direito Penal” da Universidade de Roma; a “Escola de Criminologia de Madrid”, ampliada depois no “Instituto de Estudos Penais”; O “Instituto de Criminologia da Polônia”, e mais perto de nos, O “Instituto de Altos Estudos Penais e Criminologia” de Buenos Aires, em todos os quais se professam os altos estudos dessa especialidade. (Bases Constitucionais do Regime Penitenciário, Rio de Janeiro, 1951). Maconaria Carvalho Neto.indd 164 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto *** LEGÍTIMA DEFESA Não se compreenderia uma sociedade civilizada, em que esse direito não assistisse a qualquer cidadão. Agindo em defesa própria, é em nome da sociedade que age. Defendendo-se a si mesmo, é a sociedade que ele defende. Do contrário o Direito estaria sempre a pique de sossobrar, pois a todo instante corre o individuo o risco de ser injustamente agredido. Como já foi notado! De um lado o bandido, o agressor, o perigoso, o antissocial; do outro lado, o homem honesto, o probo, o ajustado à coexistência social. (Legítima Defesa em ação contra o Banditismo, Aracaju, 1942). 165 *** PREGUIÇOSOS TOGADOS Não temos uma Magistratura aparelhada para tirar das hodiernas conquistas da ciência criminológica os frutos apreciáveis, que ela proporciona. Não falamos, é certo, dos meios cultos e adiantados, comum escol de juízes do melhor quilate moral e intelectual. Nem mesmo das exceções, que, de vez em vez, se impõem à admiração geral, rompendo a clausura das cidades pequenas e esquecidas do nosso vasto interland. Referimo-nos, sem constrangimento, ao grande numero desses preguiçosos togados, que vivem grudados aos repertó- Maconaria Carvalho Neto.indd 165 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 166 rios de jurisprudência anacrônica e não estudam a doutrina,e não interpelam o Direito à luz do seu evolver incessante e não tem da vida mais do que uma grosseira e empírica idéia materialista. A eles esta confia da a nova tarefa de julgar os seus semelhantes, sem a mínima compreensão do que seja esse julgamento em face das leis vigentes. Aferrados a velhos moldes, embotados pela influência de conceitos apriorísticos, sem nenhum esforço para se porém em contato com a vanguarda de ideias, expressas nos estatutos contemporâneos, são retardatários que julgam para trás, ao arrepio das verdades proclamadas, hoje pela ciência. De uns a indolência muçulmânica de vitalícios enfarados, desempenhando a função como quem carrega um peso esmagador. De outros, a pressa e a parlapatice, engrolando considerandos como Iinguiça e contaminando o ambiente com erutações de sabença de bobagens. Triste da sorte de quem experimenta o julgamento de uns ou de outros! Ainda não há muito, tivemos um caso na alçada de um desses jograis da toga. Nenhum trabalho para o julgamento. Nenhum estudo. Nenhuma razão. Nenhuma lógica. Bastou abrir um fichário bolorento com um acervo e emendas desparatadas. E o paciente foi crucificado com todos os sacramentos da jurisprudência (Legíma Defesa em ação contra o Banditismo, Aracaju, 1942). Maconaria Carvalho Neto.indd 166 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto *** O MAL JURISPRUDENCIAL Ora, as leis vigentes não podem estar à mercê desse mal Jurisprudência, que era uma espécie de caquexia de toga. O tempo e o espaço modificam, cada instante, as hipóteses que vão aos tribunais. E um magistrado que adormeceu sobre a coleção de julgados, sem os joeirar com a peneira da doutrina contemporânea, é um animal pré-diluviano objeto de museu, sim, porque juiz é que não pode ser. (Legítima Defesa em ação contra o Banditismo, Aracaju, 1942). *** JÚRI Depois, os debates culminam naquele pungente rebaixamento moral das sessões públicas, como exibição de circo. A competição dualística do promotor e do advogado, fazendo do réu uma pelota doida. Não há homem capaz de tolerar sem emoção, cara a cara, uma acusação publica, resolvendo-lhe nos íntimos refolhos, não tanto para lobrigar a verdade, mas, muitas vezes, para a deformar, a torcer, a infamar...(Villas Perdidas, Bahia,1948). 167 *** O PROBLEMA DA APLICAÇÃO DA PENA É que, em verdade, o problema da aplicação da pena, no Brasil, em que pese a destacadas experiências úteis e proveitosas em alguns Estados, continuará sem solução Maconaria Carvalho Neto.indd 167 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 168 científica enquanto se não lhe der, na prática, uniformizarão técnica adequada. Não se compadece com o espírito de unidade jurídica nacional, que, hoje, rege o Direito Penal e o Direito Processual Penal, teoricamente unos nos seus Códigos, a disparidade de sua execução nos Estados. A mesma pena, substancialmente uniforme para todo o território nacional, aparelhada na lei e na doutrina por um processo uniforme, a sofrer, quando executada pela administração penitenciaria, a contingência de vários moldes estaduais, que diversificam nos seus múltiplos estabelecimentos presidiários. Pode bem dizer-se, sem fugir ai meridianidade dos fatos mais evidentes, que cada Estado tem a sua medida especial de execução administrativa, de conformidade com as condições técnicas de suas prisões, as possibilidades de seus recursos financeiros, a melhor compreensão de seus programas de governo e até a cultura e vocação dos diretores de seus estabelecimentos carcerários. É, destarte, um panorama de caos, com o absurdo flagrante de se dar a um Código Penal único, sujeito ao molde uniforme de um só processo, várias e diversas aplicações de Estado para Estado. A lei substantiva, como não poderia deixar de ser, é de um só padrão. A lei adjetiva, como forçosamente havia de acontecer, também de estalão comum. Dado, porém, que é a prática que revela a execução, está a variar por tantas formas quantas as condições de técnica, as possibilidades financeiras, a aparelhagem dispor de cada cárcere, segundo regulamentos também díspares em cada unidade federativa. (Direito Penitenciário, Aracaju, 1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 168 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto *** PADRONIZACÃO DOS ESTABELECIMENTOS PENITENCIÁRIOS E, em se tratando de estabelecimentos penitenciários, que requerem padronização, para que a pena se execute no paÍs de modo uniforme, segundo as regras técnicas de um só sistema acorde com a lei e a ciência, porque se eriçam os zelos autonomistas, impedindo o que a União realiza contra a lepra, contra a tuberculose, contra a sífilis, contra o analfabetismo? Por que se constroem escolas, ginásios, colégios, hospitais, maternidades, serviços de cooperação, sem que, para tanto, se invoque a quebra de princípios constitucionais, e não se constroem penitenciárias, reformatórios, manicômios, institutos de biotipologia, colônias penais, defendendo a sociedade contra a diátese do crime, imunizando-a da reincidência? Evidentemente não vejo razão para esse mal-entendido na eiva antiga que nasceu com a República, no pressuposto — errôneo de que o federalismo antemurava os Estados contra a União da prática desses serviços. Mas, se a Constituição Federal já se curou dessa eiva, tornando expressa nos seus dispositivos a competência para a política executiva da pena na orbita da União, porque persistir no erro fatal, que desmantela a obra de unificação pretendida pelo Código Penal e pelo Código Processual Penal e reduzo sistema penitenciário a uma colcha de retalhos, a jeito do gosto, da incompreensão, das veleidades autonomistas, ou da precariedade de meios materiais e técnicos dos Estados? Por que, em sendo uma só a pena, decorrente de um só diploma penal, de aplicação obrigatória em todo o território Maconaria Carvalho Neto.indd 169 169 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 170 nacional, é múltipla e vária a sua execução nos Estados, consoante o aparelhamento de cada qual? Conheço algumas penitenciárias e cadeias no país — Carandiru, Neves, Itamaracá ̶ e muitos desses velhos castelos medievais onde se arrumam os condenados como fardos num trapiche. Conheço, igualmente, os estabelecimentos penitenciários do Distrito Federal e suas ultimas aquisições modelares. Sei de muito da habilidade, de delicadeza, de paciência, da Inspetoria Penitenciária, para conseguir algumas reformas, adaptações e novas construções e instalações. Pois bem. Ou se padronizam por esses modelos — aproveitando de São Paulo, de Minas, de Pernambuco, do Distrito Federal — os estabelecimentos dos Estados, ou esse preconizado sistema progressivo dos diplomas penais do pais continuará sendo uma mentira para engodar os inexpertos. (Direito Penitenciário, Aracaju, 1949). *** EXECUÇÃO DA PENA Releva considerar, antes do mais, que é a execução da pena o ponto crucial do Direito Penal. Pode a lei definir crimes e marcar, através de um mínimo e de uma máxima, a pena adequada a cada criminoso. Individualização legal. Pode o juiz ajustar essa pena, tendo em vista a personalidade do delinquente, o seu bio-psíquico, a série de fatores endógenos e exógenos, que lhe determinaram a ação antissocial. Individualização judiciária. Maconaria Carvalho Neto.indd 170 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto Tudo ficara inútil, e às vezes contraproducente, se a execução da pena não estiver aparelhada por uma máquina administrativa capaz de conseguir os resultados pretendidos. Individualização administrativa. Daí a importância decisiva do sistema penitenciário para o objeto simultâneo de regeneração e readaptação do criminoso e de defesa da coletividade, levando em conta a periculosidade, ou a possível cessação desse estado de reação potencial as condições de coexistência social. (Patronato dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). *** PATRONATO DE LIBERADOS Isto posto, cabe inquirir: até onde pode ir a União na organização dos patronatos oficiais? Basta-lhe fixar as linhas mestras de sua composição, como norma para os Estados, ou deve tomar diretamente a sua conta a constituição desses órgãos, nomeando-lhe os membros, organizando-lhes secretarias, provendo funcionários, consignando-lhe verbas, dotações? Logicamente, para um sistema penitenciário uno, de aplicação por todo o país, deverá a União a responsável pela criação dos patronatos, como ocorre com os serviços federais, em geral. Seria este o plano ideal, completando a unificação de todos os departamentos penitenciários, com uma só e comum orientação técnico-científica. (Patronato dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). Maconaria Carvalho Neto.indd 171 171 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA *** 172 É de dissolver reuniões, impedir ajuntamentos, comícios, regular o trânsito, isolar doentes, localizar o meretrício, impor vacinação, e tantas outras restrições da liberdade, sempre que haja uma conveniência superior da coletividade a preservar, a defender? Porque, então, em se tratando da profilaxia do crime, para prevenir a reincidência e tantos outros males oriundos da miséria, da fome, do abandono ao liberado, não é dado ao Estado intervir, exigindo a cooperação dos particulares com os Patronatos? (Patronato dos Liberados e Egressos Definitivos da Prisão, Aracaju, 1944). *** FALHAS NOS CONSELHOS PENITENCIÁRIOS Com relação aos Conselhos Penitenciários cabe o mesmo reparo: não há paridade no modo de seu funcionamento. As normas do Código Penal e do Código Processual Penal deviam ser processadas uniformemente. Assim quanto aos trâmites de seus regimentos na concessão do livramento condicional, como no da cassação de medida. Outro tanto nos informes sobre indultos e comutação de penas. A própria composição dos conselhos tem variado quanto ao número, havendo os que admitem suplentes ao lado dos efetivos. Seria de toda conveniência fixar-se um padrão de regimento, eis que se não pode admitir um Conselho Penitenciário a funcionar mudando de Estado para Estado. Maconaria Carvalho Neto.indd 172 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto No ano passado foi apresentado ao Congresso um projeto de lei para o qual, na imprensa local, chamei a atenção dos componentes, no sentido de se evitar um erro lamentável. Transcrevo alguns trechos dos meus reparos: “O assunto é daqueles que não podem ser discutidos sem um lastro sólido de conhecimentos especializados. Mais do que isto sem a colheita de fatos, em observação demorada, no recolhimento das prisões. E o projeto se me afigura distanciado, em muitos pontos, dessa realidade. A primeira das suas falhas — e das mais graves — é tocante à constituição dos conselhos. Se para esses órgãos selecionados, em geral, a psicotécnica é a base da escolha, de modo que se reúnam verdadeiras competências, não vejo como ela possa influir menos na formação de comissões nítidas e rigorosamente especializadas. E esta especialização não se fez de jato, mas num currículo demorado de aprendizagem. É a prática que lhe dá o teor dos conhecimentos indispensáveis. Tudo aconselha, pois, que o membro do Conselho Penitenciário tenha um longo e demorado tirocínio, a que deve consagrar estudo e vocação. Nestas condições, é manifesto que o revezamento deve ser contra-indiciado. Substituí-lo quando apenas começa a conhecer a técnica das suas funções ̶ pelo estudo e pela prática — é negar a objetividade da missão delicada a que foi chamado. (Direito Penitenciário, Aracaju, 1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 173 173 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA *** DESCANSO NO DIA D0 SENHOR 174 Porque, pois, somente na impugnação das leis operarias, vem arguido o descanso no dia de domingo? Em se demorando as vistas por toda a legislação brasileira, há de se ver que esse dia se acha consagrado, nemine discrepanti, no nosso Direito, desde os tempos mais afastados. O Brasil, nação cristã, seguiu a tradição universal, recebendo das leis portuguesas, com a civilização do seu povo, o respeito ao Dia do Senhor. Para os atos públicos e oficiais, para a prática do foro, para os misteres dos notórios, para diligências judiciais, em tudo se tinha como excluído o grande dia. E ainda hoje no cômputo das férias forenses, na celebração de atos que geram efeitos jurídicos, aí estão as leis, guardando a tradição imemorial. A que vinha, pois, impugnação no Código do Trabalho? Por ser, em verdade, o Dia do Senhor? Mas, “toutes les religions, et non pas seulement l’Eglise catholique, ont recommandé de sanctifier les jour du repospar l’assistence aux exercices religieux...” (J. H. Lefort, De Repos Hebdomadaire ou Point de vue de la Morale, p. 64), e onde quer que se encontre uma grande nação, com sólidos princípios morais, ai nunca se teve por vacilante o respeito a esse dia. Os documentos sobejam em evidenciá-lo, já em obras católicas, já em escritos profanos. Dizia São Thomaz que o domingo é o ponto central da santificação entre a semana precedente e a seguinte; é a estação concedida à franqueza do homem para corrigir o Maconaria Carvalho Neto.indd 174 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto passado e assegurar o futuro; é o porto onde ancora o navio para reparar avarias e renovar provisões. (Le Courtier, Le Dimanche,ob. cit.), p. 64). Se estas palavras por serem de quem são, acaso não valem para os chamados espíritos emancipados, parece-me que de igual suspeição não padecem as de que usa Proudhon, dizendo; “C’est le dimanche que le caractére du prétre, darts cequ’il a de conciliant et d’apostollique, brille de tout sonéclat. La visite du curé est la joie d’une famille champêtre; que de malades soulagés, de pauvres secourus, d’infortunes adoucies, de haines éteintes, d’ennenmis réconciliés, d’espoux réunis, par intermediaire du curé!...Or de prétre, dans les campagnes surtout, ne dispose pasdes instants: il fault qu’el saisise ou passage, et c’est le dimanche qu’il voit ses devoirs se multiplier, ses ouvresporter leus plus beaux fruits; c’est le dimanche qu’ildécouvre tout le biem qu’il peut faire ‘(De la celebration du Dirnanche, considéreé sous les rapports de l’hygienepublique, de la morale, des relations de famile et de cité’ , ob. cit., p. 65). 175 E quem conhece o Brasil do interior, nas vilas e povoados centrais, nas cidades do sertão, com os seus hábitos de festa aos domingos, a reunião das famílias, os ofícios religiosos, só, em verdade, estranharia que se vibrasse um golpe naquilo que constitui o mais radicado dos seus costumes. E a história universal aí está para atestar que o legislador brasileiro se não podia, ex-autoritate propria, descartar de tão suave e formosa tradição. Maconaria Carvalho Neto.indd 175 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA 176 Dos hebreus se sabe que eram obrigados a guardar um dia da semana, preceito do legislador inspirado por Deus. No Gênesis figura que o senhor abençoou o sábado e o santificou,querendo que lhe fosse o culto consagrado, em lembrança da criação. E o Decálago o confirma. Ainda nos livros santos do povo de Moisés está escrito: “Memento ut diem sabbati sanct ifices. Sex diebus operaberiset facies omnia opera tua; septimo autem die sabbaturn Dornini Dei tui est.” E em muitas outras passagens e obras se repetem as mesmas prescrições. Do que ocorrera no Oriente, segundo as leis do Zoroastro; na China, anterior a Confucius, como livro sagrado; como Korio, (Pastorel, Histoire de la legislation; Cibot, Essai sur lesmemoires chinois, t. XIX, des Memoires sur la Chine, 1783; Pastore, Soroastre, Confucius, Mahomet) consoante largamente vem citado em Lefort (ob. cit., p. 3) se observa o repouso no sétimo dia, consagrado à divindade. Na Grécia (ob. cit., p. 4), em Roma (ibidem), os dias de festa voltados ao sacrifício dos deuses, aos jogos públicos, a instituição das férias (feruie). (Explication des coutumes etcérémoniés observeés chez les Romains, por Neuport, Paris,1770, ob. cit., p. 4). De tal sorte que o cristianismo, “cette réligion neé du culte judaique” (Lefort, oh. cit., p. 5) não podia abandonar a ideia do repouso hebdomadário, que vinha das leis do Sinai. De começo, dois dias eram santificados na semana: o sábado, em honra à criação, conforme o Antigo Testamento, e o domingo, consagrado ao culto de Deus redentor, segundo a nossa lei. Maconaria Carvalho Neto.indd 176 07/11/2013 10:27:31 Carvalho Neto De como veio o domingo preterir o sábado, é bom que se observe a explicação de Lefort: “Lusage fit insensiblement modifier um tel état de chase set remplaça la féte du semedi par cele du dimanche: les Péres de l’Eglise confirmésent cette coutume, et sain Ignace d’Antioche engageait même á travailler le samedi,parce que, desai’til, celui que ne veut pas travailler ce jourla ne doit par manger. Le concile de Ladiceé, en 365, la prirniére assemblée ou l’on se soit occupé de cel sujet,déclara que le dimanche serait l’un, que jour consacré á divinité, en meme temps qu’il se borns à defendre le travail manuel dans les limites du possible.”(Ibidem, p. 5). Quando foi da ascensão dos príncipes cristãos, nada mais restava do que abrigar em lei estas prescrições. Assim, ao tempo de Constantino, a proibição do trabalho aos artesões — venerabili die solis (L. 3, C. J. De feries, lib. III, tit. XII). Com Theodorico, para muitos casos, o domingo e os dias de festa. (V. L. 7, C. J. De feries, lib. III, tit. XII), etc., etc. Na idade média ainda mais se arraiga nas leis e costumes essa tradição. Braudillart exclama: “Quel bienfait ne fut pas l’institution du dimanche ou moyenâge! (L’utilité de Repos Hebdomadaire, XII, Lefort, ob. cit.). E segundo Levasseur (Histoire des classes ouvriéres em France jusqu’em 1789, tit. I), chamado a depor por este autor,ao domingo era interditado o trabalho, geralmente, na cidade,ou no campo, e nem mesmo as mulheres podiam tecer a tapeçaria ou lavar roupa. Maconaria Carvalho Neto.indd 177 177 07/11/2013 10:27:31 VULTOS DA MAÇONARIA Segundo o Concilio de Arles, em 538, nos dias de domingo e de festa, nenhum trabalho ou comércio, era permitido. No Concilio de Orleans, no mesmo ano, estendeu-se a proibição a todos os habitantes, sem distinção de estado ou profissão. E, reiteradamente, se for observando a prática em decretos e concílios posteriores, vindo Carlos Magno a confirmar as prescrições romanas. Ora, de antão a esta parte fora empreender tarefa infindável o apontar os marcos que atentam a vigência dessa prática.Nos tempos modernos, nas leis canônicas ou nas leis civis, nada se tem feito, senão reforçá-la (ibidem, p. 9 e s.). (Legislação do Trabalho, p. 66/68). *** O TRABALHO DAS GESTANTES 178 Lembram-se todos da visita de Clemenceau ao Brasil, e de como apreciara, — ferindo por vezes a nossa vaidade de brancos civilizados — instituições e letras e sociedade e serviços brasileiros. De referência especial as nossas fábricas não pode calar o espanto de que se possuíra. E Rui Barbosa que lhe sentira a verdade flageladora, lanhando ominosas práticas da nossa indústria, foi o primeiro a fazer ecoar, pelo prestigio de sua imensa palavra, aquela voz estranha e respeitável. Disse, então “Clemenceau, entre outros fatos que muito o contristaram,entre nos, diz ele, singulariza o de “ver mulheres em adiantado estado de gravidez trabalhando horas inteiras de pé.” “Não se há mister de ser médico’, acrescenta o grande francês, ‘para sentir o sofrimento dessas operarias ”. Maconaria Carvalho Neto.indd 178 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto Ora senhores, é preciso que cessem de vez, a bem do nosso nome internacional, a bem mesmo da nossa dignidade interna essas apreciações, que pelo mundo ecoam, delindo de sentimentos nobres as nossas instituições, as nossas leis. (Muito bem; muito bem). Para que estas verdades — que por serem verdades tanto nos sensibilizam — não continue a repercutir no estrangeiro, espelhando às nossas próprias vistas a imagem do nosso lamentável atraso, tudo se deve envidar no sentido de uma legislação operária compatível com o grau da nossa civilização, com a responsabilidade dos nossos compromissos internacionais, como próprio decoro, enfim, dos nossos sentimentos de humanidade. (Legislação do Trabalho, p. 147, Rio de Janeiro, 1926). 179 *** DIREITO PENITENCIÁRIO Se o ramo do Direito Criminal já é uma especialidade, muito mais o é o Direito Penitenciário. Para este a soma de conhecimentos especializados é capaz de preencher toda a vida de um homem culto. A individualização da pena compreende uma série de estudos por si só absorvente da atividade mental mais ágil e mais pronta. Assim quanto aos médicos, como quanto aos juristas. (Direito Penitenciário, Aracaju,1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 179 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA *** DO MINISTÉRIO PÚBLICO 180 Como o advogado, na nobreza de sua atitude ante a verdade, tem o representante do Ministério Publico os limites de sua ética na consciência da dignidade profissional. Já ninguém admite aquele curioso tipo de parlapatão maldizente, que José Verissimo estereotipou em O Crime do Papuio, com a “eloqüência retórica e fofa dos adjetivos pavorosos, horríficos e sofrivelmente afrontosos...” Nem o vulgar do rábula enfatuado, que vive nas páginas das Cidades Mortas, de Monteiro Lobato, como uma triste reminiscência da justiça cruel do coronelato de aldeia. Nem aquela espécie de acusadores sistemáticos, que a sátira de Humberto de Campos ferreteou com marcas de fogo: “Essa classe de serventuários da justiça humana, que acusam, ora mais, ora menos, mas acusam sempre, devia ser tirada das penitenciárias, como se tiravam, outrora, os homens do baraço”. São os deformados profissionais, que um longo hábito na acusação tornou insensíveis ante a realidade da vida. Para estes o delírio persecutório tem explicação aceitável na projeção do sentimento de culpa, segundo Freud, e que Porto Carrero (Psicologia Judiciária) tão bem definiu no estudo do ambiente de nossos tribunais. Votados à missão ingrata de acusar, é-lhes comum essa deformação, essa extroversão do sentimento próprio na culpa alheia. Não é destes que vimos falar, exceções berrantes nos dias de hoje. Maconaria Carvalho Neto.indd 180 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto Mas dos espíritos superiores, de formação moral equilibrada, que pairam em esferas mais altas da filosofia e compreendem, por isso mesmo, a natureza humana, no seu complicado tecido de imperfeições. Para os a quem a missão de acusar está ligada intimamente ao direito de defesa social, bem longe dos ódios da vingança privada, e que só o exercem até o justo limite em que esse direito se acha assegurado. Ora, admitindo um Ministério Público com esta formação, perguntamos: até onde é permitido que a acusação sustente o seu libelo? Controversa é a questão, como a que já verificamos de referência ao ministério da advocacia. De feito, parecerá estranho que o Promotor, tendo promovido o processo, articulado a acusação, possa torcer caminho nesse propósito. Não temos dúvida, porém, em afirmar como exato o ponto de vista de Roberto Lira; “De qualquer forma, diante da prova da inocência ou da dúvida irremediável, ao Promotor Público cumpre antecipar-se ao advogado no reconhecimento dos direitos do réu.” (Teoria e Prática da Promotoria Pública). Tal atitude só poderia trazer prestigio e respeitabilidade ao Ministério Público. Diante da verdade não torce para a mentira. São de Galdino Siqueira, secundando conceitos de João Mendes (Proc. Crim.) e Whitaker (júri); “Quando seu representante abandonando a verdade, apega-se, para vencer, aos artifícios da palavra e aos vícios da argumentação, amesquinha o mandato que lhe foi conferido, merecendo a reprovação pública e severa punição.” (Proc. Crim.). Maconaria Carvalho Neto.indd 181 181 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA 182 Força é, conseguintemente, que, para não amesquinhar o mandato público, de que está investido, siga o caminho da verdade. E se este caminho o conduzir a convicção da inocência do réu, que o proclame e se antecipe mesmo ao advogado no requerê-la. Roberto Lira discorre do assunto com a costumada proficiência com que versa estes problemas de deontologia forense. Rebata objeção, refuta julgamentos, responde a críticas. É firma que, pedidos de absolvição — pode e deve fazê-los o promotor público. Não há razões que consigam refutá-lo neste ponto: “O empenho do Ministério Público é evitar o erro e a injustiça, apurando quem seja o autor e não provando, quand meme,que o autor foi denunciado, ou concentrando a culpa sobre um homem, só porque a presunção apriorística o levou ao banco dos réus. Seja qual for o crime, seja quem for o criminoso, se culpado, irá para o cárcere; se inocente ou irresponsável, tem direito a liberdade, se inimputável, ou irresponsável, em estado de periculosidade imediata, merecerá o manicômio!” (obr. cit.). O que se não compreendia é que pudesse a sociedade, convencida do erro, por intermédio de seu representante, fazê-lo vitorioso levando os tribunais à prática de uma injustiça manifesta. A todo o tempo é licito reparar um erro judiciário e quanto antes melhor. E se essa reparação tiver por instrumento o próprio órgão de acusação, mais avultara em consideração e apreço Justiça Pública. (Correio de Aracaju de 2-7-41). Maconaria Carvalho Neto.indd 182 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto *** O PERITO DEVE SER UM ESPECIALISTA Assim, o perito é o conhecedor da especialidade sobre que vai exercer a sua missão. Só nessa hipótese, “com as luzes de sua ciência e as conclusões de sua razão, seu relatório baseado numa competência, as mais das vezes especial, tem um peso considerável na balança e influi necessariamente nas determinações da justiça. (Dr. G. Ricoux, Débouche sexuelle et responsabilité penale, p. 2). Com o evolver crescente da ciência, o rigor das especializações, as técnicas individualizadas, maior é a dificuldade da perícia, ou seja a necessidade indeclinável de afeiçoar a cada especialidade os especialistas. E os especialistas não se improvisam. Dos conhecimentos gerais, que lhes formam a base da profissão, tem, necessariamente que ir aos conhecimentos da especialidade abraçada. E um curso próprio, com laboratórios próprios e técnica própria. Nem mesmo assim se constituem, de logo,laureados na profissão. O saber reclama ainda alguma coisa: a prática do ofício, a diuturnidade na experimentação, no estudo aplicado. (Um Caso de Interdição, vol. I Aracaju. 1936). 183 *** O DEVER DA CONFISSÃO DE INCOMPETENCIA PELOS PERITOS O professor Lande escreveu: “A medicina legal deve ser uma ciência. Quando a perícia não atinge o rigor científico, não há desonra para o perito Maconaria Carvalho Neto.indd 183 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA em confessar sua incapacidade. Concluir, sem bases sérias, sem certeza formal, não seria para eles apenas uma falta profissional, seria um crime contra a sociedade e a justiça.” (Dr. P. L. Lande, Leçond’Ouverture — Cours de médicine legale, in Journal de Medicine de Boudeaux). 184 A confissão de incompetência técnica dos peritos constitui, pois, um dever profissional, evitando-se, assim, um desserviço à sociedade e à justiça. Não lhe sendo possível atingir o rigor científico, para firmarem em bases sólidas a certeza do fato, o que lhes cumpria era a declaração, que reiteradamente fizeram da sua insciência nos ramos especializados da psiquiatria. O nosso eminente Viveiros de Castro que de tão acentuados traços de erudição opulentou a jurisprudência criminal brasileira, mui acertadamente escrevera: “Ninguém se rebaixa confiando as autoridades competentes a decisão das questões técnicas. Só os ignorantes se atrevem a julgar de coisas que não entendem. Se para construir-se uma estrada de ferro, recorre-se ao engenheiro, como confiar a apreciação de um estado mental a quem não tem conhecimento de psiquiatria?” (Atentado ao Pudor, p. 363) (Um Caso de Interdição, vol. I, Aracaju, 1936). EDUCAÇÃO DOS ANORMAIS Inscrito na legislação dos povos cultos, constitui, de presente, frondoso ramo da pedagogia moderna, orien- Maconaria Carvalho Neto.indd 184 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto tada pela ciência, visando um elevado escopo social e econômico. Restituir à sociedade, como elementos de economia e trabalho, algumas parcelas abandonadas à inércia, senão ao caminho da loucura ou do crime, eis a sua finalidade. Na cátedra ou no livro, em conferências ou congressos, na palavra dos sábios ou nas elaborações parlamentares, tem sido essa matéria, sob feição várias, objetos de cuidadosas indagações. De simples especulação doutrinária de inicio, chegou,atualmente, a cristalização do direito positivo. Assim é que se vai encontrá-la na lei escrita nas nações que se portam à vanguarda da evolução em processos pedagógicos. A Bélgica, a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Noruega, a Holanda, a Itália, a Suíça e sobretudo os Estados Unidos, são os dianteiros dessa nova marcha ascendente da assistência a infância desprotegida, sendo que em alguns desses países,desde muito tempo, se adota e aplica em benefício dos anormais uma legislação completa e dos mais fecundos resultados. 185 *** E O BRASIL? Fora preferível, talvez, não escrever esta página, deixá-la mudamente em branco, a não copiar as cores escuras que vêm sombrear o quadro. Custa a crer que um país que alcança uma posição de saliência no mais elevado tribunal do mundo, subindo até lá pelo prestigio da mentalidade incomparável de Rui Barbosa; custa a crer que uma nação que vai pontificar pelo espírito, chegando à augusta Assembleia das Nações pelos atributos da Maconaria Carvalho Neto.indd 185 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA 186 inteligência iluminada, esteja tão distante desta esfera superior, em que gravitam os povos civilizados, na proeminência da sua educação. Quem quer que haja convivido com os meios escolares; estabelecido contato com o ambiente das classes elementares; desempenhado uma qualquer missão junto à infância das escolas, terá a nítida certeza do que venho a afirmar. Em meio à matrícula numerosa um fenômeno assalteia, prestes a observação do observador: a percentagem diminuta, vezes ridícula, da frequência. Aí está um índice de frutuosas indagações, que o Egrégio Sr. Rui Barbosa e outros tão detalhadamente estudaram sobre a feição geral mas que muito vale ponderar sob o ponto de vista das escolas para anormais. Não me tenho, todavia, nesse trecho, deixando apenas acentuado que é um elemento de real importância para se aferir do grande número de anormais pedagógicos, indevida e desaproveitadamente inscrito nas escolas comuns. Observam-se, entre os escolares da mesma idade matriculados na mesma classe, guiados pelo mestre comum, orientados por método igual, disparidades evidentes. Uns avançam a rápidos voos, desatando a inteligência em conquistas diárias de aproveitamento; outros, de nível intelectual menos elevado, ficam a meio caminho; ainda outros, não obstante forcejarem em penosa aplicação, estacionam quase nos rudimentos, que lhes petrificam o cérebro; enfim, um certo número não se abre decididamente às aplicações do professor. Indiferentes, às vezes; distraídos, quase sempre; não raro impulsivos, desobedientes, malcriados — consoante uma expressão que lhes disfarça, em muitos casos, os desvios mentais, ou perversões do sentimento — esses nada lucram Maconaria Carvalho Neto.indd 186 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto na escola, impermeáveis que são as bondosas sugestões do professor, ou ao aprendizado conveniente, administrado aos alunos normais. Registra-se, pois, com desprazer, que na escola não adiantam jamais da primeira série. O aproveitamento dos outros colegas ainda mais o distancia, parecendo que retrogradaram. E ao fim de alguns anos, não tendo na convivência escolar passado do terreno estreito em que sempre marcharam, como autômatos, regressam à sociedade, que os solicita para misteres diferentes, sem que lhes haja proporcionado a escola os primeiros elementos para uma entrada triunfal, vitoriosa, ou pelo menos confiante, ou mesmo medíocre, na famosa luta pela vida. Ora, tais são as observações triviais, quotidianas, apanhadas em flagrante, por quem já tenha penetrado a existência das escolas, ou ao seu ofício se haja dedicado, ou ainda haja se lhe entregue afeiçoadamente. Pois bem, será justo, humano, criterioso, racional, econômico, manter, em premeditação, entre as classes comuns esses elementos de reconhecida inferioridade? A que propósito sujeitar essas crianças a um regime que lhes não aproveita, a um método que as não educa, a um ambiente que lhes não convém? As respostas estou certo, repontam, lógicas, peremptórias, em formal negativa. Está-se a ver, de conseguinte, que só as escolas paralelas, ou em classes especiais nas escolas comuns, lhes poderá ser útil a educação. E, assim, como a pouco afirmei, nas escolas ou classes para anormais reside um complemento lógico, indispensável do problema da educação. Maconaria Carvalho Neto.indd 187 187 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA 188 E se cuidarmos deste, desejosos de resolvê-lo, de modo a levantar o nível moral da sociedade brasileira, de assegurar uma das condições vitais da nossa nacionalidade, não o conseguiremos, nunca, com o abandono da imensa legião desses patriciozinhos, que sofrem a desdita de uma inteligência definhada, muitas vezes espiando, na treva, os vícios e desbragamento de ancestrais culpados? Depois, circunstâncias de vulto respondem, por outro lado, a objeção que ora desfaço. Ato de filantropia, mercê da generosidade patrícia, ou reclamo imperativo da assistência pública, o fato é que, entre nós, como apontei se registram institutos de anormais completos, exatamente para aqueles de quem a sociedade pouco ou nada possa esperar, ou conseguir. Ora, se nos desvelamos por estes últimos, se os agalhamos em recolhimentos e asilos, sem que possamos suferir resultados positivos, pois na verdade, constituem, em geral fardos sobremaneira pesados para o Governo e as instituições de caridade; se abrimos os nossos corações para esses degenerados profundos, que agrilhoados às taras que os torturam incessantemente, são verdadeiros inadaptáveis ao meio social; como negar aos educáveis, aos corrigíveis, aos readaptáveis, as lições que reclama a sua mente frágil, o sustento moral que pede a instabilidade de seus sentimentos, a assistência educativa, que somente a escola ou a classe especial lhes pode fornecer como auxílio indispensável, essencial, a que se tornem na sociedade parcelas de atividade econômica e não um peso morto, ou, pior ainda, candidato certo às hostes crescentes da vagabundagem e delinquência juvenil? (No Parlamento, Rio de Janeiro, 1921). Maconaria Carvalho Neto.indd 188 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto *** O cimento de qualquer organização social é o trabalho, e o trabalho tem sido no Brasil, a tarefa conjugada de dois grandes artifícios: O coronel, que administra e dirige e economiza,consolidando a riqueza; O trabalhador anônimo, desconhecido, outrora escravo, hoje livre, sem cujo braço essa riqueza não existiria. (Casa de Laranjeiras, Aracaju, 1942). *** Há no mundo, patente aos olhos de todos, a mais séria, a mais grave, a mais contagiosa das revoluções sociais. Ora, legislar um pouco no sentido dessas tendências sociais é, na frase concisa e bem sugestiva de Gide, operar l’ économie d’une révolution. (Legislação do Trabalho, p. 317, Rio de Janeiro, 1926). 189 *** Nem destruir o Estado, nem anular o individuo! Só assim terá o homem uma existência digna e o Brasil um programa de justiça social. (Diário de Sergipe de 26-7-46). *** E senhores, quaisquer que sejam as nossas ideias, os princípios que abraçamos, os sistemas em que nos filiamos, tudo, tudo deverá estar subordinado ao interesse da Pátria. (Legislação do Trabalho, p. 116, Rio de Janeiro, 1926). Maconaria Carvalho Neto.indd 189 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA *** 190 Mas, Senhor Presidente, se os nossos esforços se malbarataram se ontem como hoje a premência dessa questão é contundente, se o analfabeto continua a ser a diátese de uma democracia anemizada, nem por isso outras questões igualmente relevantes devem adormecer, esquecidas, abandonadas. . . Então porque o Brasil não tem escolas bastantes, que acolham toda a população infantil alfabetizável, há de se pôr a margem a assistência a infância operaria? Esquecer a tutela do Estado contra as explorações industriais? A ação dos governos na defesa ativa e permanente da eugenia, na conservação e fortaleza da raça? (Legislação do Trabalho, p. 116, Rio de Janeiro, 1926). *** Fizeram-se novas leis, promulgaram-se Códigos, estabeleceram-se princípios de seleção na carreira judiciária. Mas os homens não se reformaram. .. (Vidas Perdidas, Bahia, 1948). A experiência demonstra, a cada passo, que as assembléias não são boas conselheiras em assuntos técnicos. A lei de psicologia coletiva — de que nos votos desses corpos deliberativos as competências não se somam, mas exprimem, apenas,uma média — é de flagrante realidade. E, em dando uma média, é incontestável que dá uma produção inferior à soma. (Direito Penitenciário, Aracaju, 1949). Maconaria Carvalho Neto.indd 190 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto *** Justiça é verdade. Verdade é justiça. Caminham juntas, lado a lado, interpenetrando-se Dos mesmos princípios, dos mesmos estímulos, para um objetivo comum. Dissociá-las é erigir o erro como princípio e o injusto como fim. (Advogados, p. 191). *** O Direito evolve sempre. Segue a parábola das transformações. E vai de contínuo a frente da lei, antecipando-lhe as formas condensadas. O Direito é dinâmico; a lei é estática. Esta, cristalização; aquele, movimento. (Advogados, p. 191). 191 *** E agora, senhores, alonguemos o olhar, circunvagante, pelo que há de vir, por este sonhado Brasil de amanhã, com a beleza de tantas perspectivas promissoras, com a tristeza de tantos augúrios desalentados. . . - Crer? Descrer? - Confiar? Desconfiar? Eia! Senhores, descrer, nunca! Crê firmemente! Desconfiar, jamais! Confiar, patrioticamente! Nação que não crê é nação que morre, lento e lento, diluindo os seus dias nos entorpecentes românticos do pessimismo suicida. Maconaria Carvalho Neto.indd 191 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA Povo que não confia é povo sem alma, sem lume no coração para aquecer o ideal, sem amor às tradições, espelho dos seus destinos, seiva da sua vida; sem fé no seu Deus, cruz da sua redenção (Discurso aos Revolucionários de 1930, Juarez Távora, Góis Monteiro e Getúlio Vargas). *** 192 Maconaria Carvalho Neto.indd 192 07/11/2013 10:27:32 Carvalho Neto BIBLIOGRAFIA CAJUEIRO, João Evangelista. A língua e o estilo de Carvalho Neto. Aracaju: Revista da Academia Sergipana de Letras, nº 17, 1956, p. 2. CARVALHO NETO, A.M. Advogados. São Paulo: Saraiva. 1946. CARVALHO NETO, A.M. Cinzas da Província. Aracaju: Curso de Tipografia e Encadernação da Escola Industrial de Aracaju. 1951. CARVALHO NETO, A.M. Direito Penitenciário. Aracaju: Imprensa Oficial, 1944. 193 CARVALHO NETO, A.M. Legislação do Trabalho: polêmica e doutrina. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil. 1926. CARVALHO NETO, A.M. No Parlamento: Discursos e projetos. Rio de Janeiro: Typ da Casa Vallelle. 1921. CARVALHO NETO, A.M. Patronato dos liberados e egressos definitivos da prisão. Aracaju: Imprensa Oficial, 1944. CARVALHO NETO, A.M. Vidas perdidas. Salvador: Livraria Progresso. 1948. Maconaria Carvalho Neto.indd 193 07/11/2013 10:27:32 VULTOS DA MAÇONARIA CARVALHO NETO. A. M. “A Cartilha de um Pedagogo I”. Correio de Aracaju. Aracaju, 5 jun., 1919. FERER-BENIMELI, J.A. Arquivos Secretos do Vaticano e a Franco-Maçonaria. São Paulo: Madras, 2007. MACHADO, M.C. Brava Gente Sergipana e outros bravos. Aracaju: Edição do autor. 1999. MACHADO, Manoel Cabral. Discurso. Revista da Academia Sergipana de Letras, nº 23. 194 NETO, A.C (org). O pensamento vivo de Carvalho Neto. São Paulo: Edição do autor. 1988. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviedo Teixeira, 2008. Maconaria Carvalho Neto.indd 194 07/11/2013 10:27:32 Maconaria Carvalho Neto.indd 195 07/11/2013 10:27:32 1ª Edição : Impressão : Papel de miolo : Papel de capa : Tipologia : Maconaria Carvalho Neto.indd 196 2013 Gráfica J. Andrade Polém 80g/m2 da Suzano Supremo alta alvura 250g/m2 da Suzano Cambria 07/11/2013 10:27:32