O feitiço da bola - Revista Tranquilidade

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O feitiço da bola - Revista Tranquilidade
O feitiço da bola
(Quarta, 10 Outubro 2007) - Contribuido por Mateus Kisekula - Última actualização (Quarta, 10 Outubro 2007)
Arte no Futebol. O feitiço da bola, essa magia do futebol, resulta da imagem global que se observa do conjunto de um
estádio em movimento vivo. O estádio como animal biológico, corpo vivo e fremente de diversidade cultural. Respira
emoção. Pulsa a disputa, o antagonismo dos adversários em campo e dos adeptos torcedores nas bancadas.Evoca um
chão de dança, um salão de exposições de arte, um palco de teatro, um templo de invocação dos deuses, um circo de
malabarismos com a bola no ar. Este é o grande poder hipnótico do futebol, o jogo do pé na bola.
Comecemos pela dança do futebol, esse ballet de chuteiras e calção sobre o palco verde, dançado na sua dinâmica veloz
e com passadas inventariadas no computador pelo treinador mais sofisticado. Visto de cima e em câmara lenta, a
movimentação dos jogadores em todo o cenário do campo é uma execução cientificamente programada, com alguns
recortes de espontaneidade dos mestres da bola. Mas é através da foto de um bom fotógrafo desportivo que melhor
gozamos a imagem dançante de um Ronaldinho, na hora da finta, ou de um Akwá, no pontapé de bicicleta. A plástica
dos corpos exaltados, aquecidos ao rubro atrás da bola e no confronto com o adversário, faz apelo à pintura: as cores
das camisolas, as bandeiras, as faixas e outros adereços, os fumos coloridos, os movimentos sincronizados dos
espectadores nas bancadas, quando toca a puxar pela equipa do coração e a câmara da televisão os enquadra em
crescendo.Os espectadores, todos engalanados para a festa, os rostos pintados à maneira dos bárbaros guerreiros,
transformam o conjunto do estádio numa enorme tela pintada de dentro do próprio pano, sem o concurso de nenhum
artista individual. Como a música é a mãe de todas as artes, não poderia deixar de marcar presença. Há mesmo
claques que levam para as bancadas orquestras inteiras. Mas as buzinas estridentes é que ajudam a fazer a festa do
futebol, sopradas até rebentar as bochechas do executante e os tímpanos do espectador vizinho.Há, entre o público,
vozes de tenor, de soprano, timbres graves e agudos, o tambor e o batuque marcam o compasso e dizem-nos que o
futebol é um Carnaval de todo o ano. E também há religião no jogo da bola. Vejam os rituais de entrada e saída do
campo, os xirangas africanos enviando ondas de feitiço antes e durante o jogo. Vejam o sinal da cruz que os jogadores
cristãos fazem na hora de enfrentar o trumuno. Vejam a reza, de joelhos, daquele que marca o golaço da temporada. As
acrobacias do guarda-redes em voo rivalizam com as de um trapezista voador. A consolidação da captura da bola, todo
enrodilhado sobre o objecto de adoração, essa pose de posse, "és para mim, ó bola!" fazem lembrar a morte no chão, o
fim de percurso do esférico, cujo élan se extingue nas luvas do guarda-redes. Brevíssimo ritual funerário, cujo
kombaditókwa é o largar da bola no ar para o pontapé ressuscitar a pequena esfera de couro cheia de ar.
E os geniais golpes de cabeça, cinco ou seis jogadores elevados à altura da trave horizontal, ou então um cabeceamento
em voo, tal e qual a águia que se atira à presa, não ficam nada a dever aos arrojados lances dos homens e mulheres do
circo. Para terminar, temos a indústria cénica, quando o jogador matreiro cai na grande área, a ver se consegue um
penalty, mas o árbitro não vai na conversa. O teatro, essa manifestação tão natural e comum a todos os seres humanos,
é convocado como estratégia do jogo.A arte de representar, de fingir o que já é, é por vezes tão bem apresentada
sobre o relvado, que o árbitro e o próprio público caem no logro. Lembram-se da cabeçada do Zinedine Zidane na final
da Copa do Mundo? Ele não percebeu que o jogador italiano estava a fazer teatro, a provocá-lo para lhe diminuir a
concentração para o jogo. Mais do que uma competição desportiva, muito mais do que um mero entretenimento colectivo
cheio de emoções recíprocas, o futebol é hoje um mundo à parte, um mundo que atrai não apenas pelos pontapés na bola
ou o clímax da ejaculação da bola dentro da baliza.Atrai, e pouca gente dá por isso – até porque não é preciso
que toda a gente o saiba, basta que nós, os escribas, o saibamos – atrai mais por todo esse conjunto, essa
amálgama de manifestações artístico-culturais que jogadores e público, a maior parte sem intenção nem conhecimento,
alguns poucos dominadores de algum instrumento e cientes do seu papel, levam ao estádio de futebol. Para nos deixar
buamados.
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