revista - pdf - Instituto Sedes Sapientiae

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Boletim Formação em Psicanálise
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE
ISSN 1517-4506
Instituto Sedes Sapientiae
Departamento Formação em Psicanálise
Comissão de Coordenação Geral, gestão 2011/2012
António Sérgio Gonçalves (coodenador), Gisela Giglio Armando (primeira secretária), Maria Tereza Scandell Rocco (segunda
secretária), Maria Terezinha Cassi Pereira Yukimitsu (primeira tesoureira), Mônica Salgado (segunda tesoureira)
Comissão de Publicação
Talita Minervino Pereira (coordenadora)
Cristiana Soldano (suplente)
Revista Boletim Formação em Psicanálise
Editor
DEPARTAMENTO FORMAÇÃO
EM PSICANÁLISE
José Carlos Garcia
Comissão Editorial
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Cristiana Soldano, José Carlos Garcia, Lineu Matos Silveira, Lucianne
Sant’Anna de Menezes, Margarida Azevedo Dupas, Tatiana Russo França, Valesca Bragotto Bertanha
Conselho Editorial
Cassandra Pereira França (Universidade Federal de Minas Gerais), Claudia Paula Leicand (Instituto Sedes Sapientiae), Durval Mazzei
Nogueira Filho (Instituto Sedes Sapientiae, GREA/IPQ – Instituto de Psiquiatria da USP), Ede de Oliveira (Instituto Sedes Sapientiae, EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos), Eliane Michelini Marraccini (Instituto Sedes Sapientiae), Emir Tomazelli
(Instituto Sedes Sapientiae), Flávio Carvalho Ferraz (Instituto Sedes Sapientiae), Francisca Isabel Teixeira (Instituto Sedes Sapientiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), José Carlos Garcia (Instituto Sedes Sapientiae), José F. Miguel H. Bairrão
(Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto), Lineu Matos Silveira (Instituto Sedes Sapientiae), Maria Beatriz Romano de Godoy (Instituto Sedes Sapientiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Maria Lúcia Castilho Romera (Universidade Federal de
Uberlândia), Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (Instituto Sedes Sapientiae), Marly T. M. Goulart (Instituto Sedes Sapientiae), Maria
Cerruti (Instituto Sedes Sapientiae), Nora de Miguelez (Instituto Sedes Sapientiae), Sonia Maria Parente (Instituto Sedes Sapientiae, UNIB – Universidade Ibirapuera), Suzana Alves Viana (Instituto Sedes Sapientiae)
Grupo de Divulgação: Margaret Simas Ramos Marques
(coordenadora), Mirian Arantes Gallo Grupo de Entrevistas:
Mônica J. S. Saliby (coordenadora), Gabriela Malzyner Grupo
de PUBLICAÇÃO DE LIVROS: Lucianne Sant’Anna de Menezes
(coordenadora) Grupo de Resenhas : Mônica Salgado
(coordenadora) Grupo de Revisão de Tradução: Tatiana
Russo França (coordenadora), Nora de Miguelez Oficina de
Textos: Lineu Matos Silveira (assessor) Jornal Acto-Falho:
Luciana Khair (coordenadora), Fernanda Zacharewicz, Talita
Rodrigues Marques Revisão Português : Stella Regina
Azevedo Alves dos Anjos Diagramação: Wellington Carlos
Leardini Projeto CAPA: Silvia Massaro Projeto Gráfico:
Esper Leon Jornalista Responsável: Marcos Daniel Cézari
– MTPS 11.193 Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP)
Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia
Boletim formação em psicanálise / Instituto Sedes Sapientiae,
Departamento Formação em Psicanálise. – Vol. 1, no. 1 (maio/jun. 1992)
– . São Paulo: O Departamento, 1992Ano XIX, v.19, (jan./dez. 2011)
Anual
Periodicidade bianual de 1992 a 1994; anual a partir desta data.
ISSN 1517-4506
1. Psicanálise – Periódicos. 1. Instituto Sedes Sapientiae.
Departamento Formação em Psicanálise.
CDU 159.964.2 (05)
Indexação: Index Psi Periódicos (www.bvs-psi.org.br)
Instituto Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoy, 1484
05015-900, São Paulo, SP
(11) 3866-2730
www.sedes.org.br / [email protected]
O Departamento Formação em Psicanálise tem por finalidade desenvolver
atividades de caráter formativo, científico, cultural e de pesquisa em psicanálise, de acordo com a Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae. Ele
tem como fundamento prover a formação continuada de seus membros, constituindo-se como um espaço de pertinência para alunos, ex-alunos e professores, propiciando interlocução com o Instituto Sedes e com a comunidade
psicanalítica em geral.
Oferece dois cursos regulares, abertos a psicólogos, médicos e profissionais com formação universitária: Formação em Psicanálise e Fundamentos da
Psicanálise e sua Prática Clínica.
Além desses cursos, o Departamento promove cursos breves, pesquisas, grupos de estudo, eventos científico-culturais, além de publicar a revista
Boletim Formação em Psicanálise e o jornal Acto Falho. Participa também da
Clínica Psicológica Social do Instituto Sedes Sapientiae.
Sua organização é realizada através do trabalho de comissões, eleitas
a cada dois anos entre seus membros. As comissões que compõem o Conselho Deliberativo do Departamento são: Coordenação, Curso, Clínica, Eventos,
Divulgação, Publicação, Projetos e Pesquisa, e Alunos. Essas comissões têm
funções específicas e o objetivo de refletir, discutir entre seus pares e implementar projetos que possam garantir que as propostas do Departamento sejam colocadas em execução.
Curso Formação em Psicanálise[1]
Corpo Docente
Armando Colognese Júnior, Cecília Noemi Morelli de Camargo, Durval Mazzei
Nogueira Filho, Ede Oliveira Silva, Eliane Michelini Marraccini, Emir Tomazelli,
Esio dos Reis Filho, Homero Vetorazzo Filho, José Carlos Garcia, Ligia Valdés
Gomez, Maria Beatriz Romano de Godoy, Maria Cristina Perdomo, Maria Helena
Saleme, Maria Luiza Scrosoppi Persicano, Maria Teresa Scandell Rocco, Nora
Susmanscky de Miguelez, Oscar Miguelez, Suzana Alves Viana, Vera Luíza
Horta Warchavchik.
Objetivos
Curso de especialização, que tem como objetivo a formação de psicanalistas. Busca transmitir a Psicanálise em sua especificidade, com base nos
três elementos essenciais da formação: análise pessoal, supervisão e estudo crítico da teoria psicanalítica a partir dos aportes das escolas francesa e inglesa. Visa desenvolver a escuta transferencial, considerando o
sujeito em sua singularidade. Trabalha a clínica psicanalítica, desde a descrição clássica feita por Freud até as formas de sofrimento observadas na
contemporaneidade.
Destinado a
Psicólogos, médicos e profissionais com formação universitária, com experiência pessoal em análise individual e com percurso na teoria psicanalítica.
Conteúdo programático
1. Seminários teóricos: Formações do inconsciente, O inconsciente, Pulsões,
Narcisismo, As identificações, Neurose obsessiva e histeria, O Complexo de
Édipo em Freud, Angústia, Superego e Édipo Kleinianos, Teoria das Posições e Inveja em M. Klein, Perversão e Psicose em Freud e em M. Klein;
1.Este curso foi credenciado no Conselho Federal de Psicologia em 31 de janeiro de 2003, para especialização em Psicologia Clínica, em conformidade com a Resolução CFP 007/01.
2. Seminários clínicos;
3. Supervisão individual (no 4º ano);
4. Monografia de conclusão de curso: com orientação individual, a ser realizada
após a finalização dos seminários teóricos e clínicos;
5. Estágio opcional na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, sujeito à
seleção e contando com supervisão específica;
6. Formação continuada: atividades extracurriculares e no Departamento;
7. Acompanhamento clínico: opcional para os alunos do 1o ano, no qual se trabalha em pequenos grupos a articulação da escuta clínica com os artigos
sobre o método psicanalítico;
8. Realização de análise pessoal: obrigatória durante o curso.
Duração
O curso regular tem duração de quatro anos.
Carga horária do curso
731 horas.
Horário/concentração
Quartas-feiras, com média de seis horas/aula semanais e mais uma hora e
meia de atividades.
Seleção
Duas entrevistas individuais. Apresentação de curriculum vitae (contendo foto)
em duas cópias e um breve texto, no qual justifique sua a busca por esta formação (um para cada entrevistador).
Fundamentos da Psicanálise e sua prática clínica
Corpo docente
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Berenice Neri Blanes, Celina Giacomelli, Maria Salete Abrão Nunes da Silva, Maria Tereza Viscarri Montserrat, Patrícia
Leirner Argelazi.
Objetivos
O curso propõe trabalhar os conceitos que fundamentam a Psicanálise e
que servem de alicerce à sua prática. Pretende, com isso, fornecer informação que preencha lacunas a quem já algo conheça e fundamentos a quem
desconhece, estimulando o interesse na continuidade do estudo, permitindo que uma eventual formação sistemática no futuro se faça sobre uma
base mais sólida.
Destinado a
Àqueles que se interessam pela Psicanálise e que pretendam uma iniciação
ao seu estudo: médicos, psicólogos e profissionais com formação universitária em geral.
Conteúdo programático
1. Especificidade da Psicanálise: Psiquismo e corpo, Terapias medicamentosas,
Psicoterapias e Psicanálise;
2. A Divisão do Sujeito: Dois conceitos fundamentais: Inconsciente e Pulsão,
Aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente, o ponto de
vista tópico, O Recalque: Desejo, conflito e defesa. Pontos de vista dinâmico
e econômico, Discussão clínica;
3. Formações do Inconsciente: Atos falhos, sonhos e sintomas, Discussão clínica;
4. Ponto de vista estrutural: Complexo de Édipo / Identificações, Segunda Teoria Tópica;
5. Neurose, Psicose e Perversão: Neurose, Psicose, Perversão, Uma introdução à
psicopatologia psicanalítica, Discussão de casos: um estudo comparativo,
6. Questões da Clínica: A situação analítica, Transferência e contratransferência, Resistência, A interpretação;
7. O Analista: Diferenças entre formação e informação.
8. O tripé da formação analítica: Análise do analista, supervisão e estudo da
teoria.
Duração
um ano.
Carga horária do curso
68 horas.
Observação
O segundo ano é opcional e será oferecido para aqueles que cursaram o primeiro ano, que tenham interesse na continuidade de seus estudos. Médicos e
psicólogos, que optem por dar continuidade ao curso, poderão se candidatar à
seleção de estágio na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.
Mais informações:
Secretaria do Instituto Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godói, 1484
05015-900 - Perdizes, São Paulo/SP
(11) 3866 2730
www.sedes.org.br / [email protected]
EDITORIAL
O Boletim Formação em Psicanálise abre este número com uma tríade de artigos que utiliza o recurso da arte para fazer avançar questões fundamentais do
campo psicanalítico, aspecto que nos remete a ideia da psicanálise como uma
atividade criativa, seja para o analisante seja para o analista, tendo em vista
que é possível construir ficções pela experiência da fala e da escuta. O próprio
Freud, em vários momentos, fez uso deste instrumento em reflexões e teorizações suscitadas pela clínica, como em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen
(1906), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) ou em Dostoievski e o parricídio (1928), dentre tantos outros ensaios conhecidos.
A partir da contextualização histórica dos quatro discursos de J. Lacan,
o primeiro artigo, de Durval M. Nogueira Fº, procura refletir sobre os efeitos
que a realidade virtual pode produzir no homem contemporâneo, recorrendo
ao cinema e à literatura, em especial no rico contraponto entre os filmes Matrix, de Andy Wachowsky, e Substitutos, de Jonathan Mostow, mostra diferentes
sociedades do futuro e as influências terríficas do avanço tecnológico e científico, assim como a submissão a determinados discursos, promovendo uma
bela discussão sobre o eu, a realidade e a linguagem, deixando-nos a mensagem de que a transcendência seria a única maneira de garantir a insubmissão
a discursos condicionantes do ser humano.
O segundo artigo traz a inovadora experiência de um grupo de seminário clínico, do Departamento Formação em Psicanálise (Ana Raquel B. M.
Ribeiro, Fernanda Zacharewicz e Luciana B. Khair, sob coordenação de Ligia
V. Gómez), em que o intuito foi discutir a escuta como o elemento essencial na
experiência da transferência e contratransferência, com foco na construção da
escuta do analista em formação, a partir da prática de relacionar de um caso
clínico com produções da literatura (A hora da estrela, de Clarice Lispector), da
escultura (O impossível, de Maria Martins) e da música (Luz, de Arnaldo Antunes), possibilitando a construção de três escutas que se completam como Quelques Cercles, de Kandinsky, obra que inspirou o nome deste grupo: Nosso círculo.
Em um encantador diálogo entre as obras homônimas A terceira margem do rio, o próximo artigo, de Ana Raquel B.M. Ribeiro, procura mostrar a
presença dos mecanismos de deslocamento, condensação e figurabilidade no
poema (canção) de Caetano Veloso, a partir do que é narrado no conto de Guimarães Rosa, supondo que a personagem que narra o conto em primeira pessoa é aquela que ‘sonha’ a canção, fazendo da terceira margem no rio o que
encerra o indizível, presente em ambas as obras.
O quarto artigo, de Leonardo B. Tkacz, também aborda o tema do indizível, entre o corpo e a imagem, propondo esta discussão a partir dos conceitos
de corpo e de imagem para a psicanálise, tendo como eixo teórico o conceito
de estádio do espelho de J. Lacan e de seus desdobramentos na constituição
do corpo do bebê, destacando a importância fundamental do olhar e da voz
do Outro (mãe), como meio de promoção das bordas garantidoras da imagem
do corpo.
Encerra a seção de Artigos um trabalho na interface psicanálise e psicologia, fruto de pesquisa acadêmica de Daniel Schor, que trata do desenvolvimento infantil e procura estabelecer um mutualismo entre a constituição da
noção de si-mesmo e do mundo externo, demonstrando que é possível encontrar na obra de J. Piaget elementos fundamentais para se ampliar a compreensão sobre fenômenos descritos por D. Winnicott e, em consequência disso,
sobre as formas com que experiências muito precoces podem ser determinantes na constituição da subjetividade.
Na Entrevista, temos um bate-papo interessante de Gabriela Malzyner
com Bernard Penot, psiquiatra e psicanalista membro da Sociedade Psicanalítica de Paris, em que relata sua experiência no hospital-dia CEREP (Centre de
Réadaptation Thérapeutique), onde criou, com sua equipe multidisciplinar, um
instrumento institucional de pesquisa com psicóticos e pessoas com perturbações graves da subjetivação, que se baseia em levar o paciente a subjetivar
sua transferência, aspecto que une com a questão da cura psicanalítica e da
sublimação.
Finaliza esta edição uma Resenha e uma Tradução de obras referentes
a Wilfred Bion. A poética resenha, de Emir Tomazelli, apresenta um livro considerado um tributo de James S. Grotstein a Bion e sua obra. Já a tradução, de
Julia Paladino sob revisão de Marly T. M. Goulart, é de um artigo de Richard
J. Rosenthal (parte de uma obra organizada por Grotstein em comemoração
aos 80 anos de Bion), uma leitura pormenorizada, a partir de conceitos bionianos, dos aspectos do funcionamento psíquico de Raskolnikov, personagem
central do romance Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, o que nos movimenta como Quelques Cercles, de Kandinsky, ao início deste editorial, na relação da psicanálise com a arte, e na possibilidade do leitor vir a ser afetado por
esta experiência criativa.
Lucianne Sant’Anna de Menezes
Comissão Editorial
Sumário
ARTIGOS
Estamos todos tranquilos!?
Are we all calm!?
Durval Mazzei Nogueira Filho 15
O Nosso Círculo: Fragmentos de uma Escuta Psicanalítica
Our circle: fragments of a psychoanalytic listening
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro Fernanda Zacharewicz Ligia Valdes Gomez Luciana Bocayuva Khair 25
A terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa
(vigília)
The third shore of the river: a dialogue between poetry (dream) and prose (vigil)
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro 45
Corpo e Imagem
Body and Image
Leonardo Beni Tkacz 57
Revisitando Winnicott em companhia de Piaget: apontamentos
sobre a noção de imaturidade egóica
Revisiting Winnicott in Piaget’s company: notes on the notion of ego immaturity.
Daniel Schor 63
Artigo
ENTREVISTA
Entrevista com Bernard Penot
Gabriela Malzyner 81
RESENHA
Estamos todos tranquilos!?
Um facho de intensa escuridão – o legado de Wilfred Bion à
psicanálise
Durval Mazzei Nogueira Filho
A beam of intense darkness - the legacy of Wilfred Bion to Psychoanalysis
Resumo: O autor escreve a respeito da influência que a realidade virtual pode
James S. Grotstein - Autor vir a produzir no homem do mundo contemporâneo.
Emir Tomazelli 103
TRADUÇÃO
Palavras-chave: Psicanálise, Virtualidade, Clínica Contemporânea.
A transgressão de Raskolnikov e a confusão entre destrutividade e
criatividade
Raskolnikov’s Transgression and the Confusion Between Destructiveness and
Creativity
Queremos?
Richard J. Rosenthal - Autor Uma maneira profícua de ler o desenvolvimento de Lacan (1992) sobre os
quatro discursos é marcá-los com uma dimensão histórica. Não é difícil atribuir ao discurso do mestre antecedência a quaisquer outros discursos. Basta
que concedamos à sua descrição à vontade de domínio e reconheçamos que
na fala religiosa usual, das grandes religiões monoteístas às versões míticas
sobre a origem das comunidades indígenas, não está ausente uma entidade
que criou o mundo e criou os homens para agirem de acordo a seus desígnios.
Uma entidade que garante que não há fenômeno fora da lei e que o saber sobre tudo está garantido pelo próprio ato criador. Não há o que descobrir, há
que agir corretamente.
Se aplicarmos esta leitura à história da cultura ocidental não é incorreto concluir que a ordem regida por Deus prevaleceu absolutamente até que
os homens arriscaram desafiá-la. O desafio não foi nenhuma declaração a propósito da morte de Deus, o desafio foi questionar que nada há a descobrir, que
nada há a inventar, que nada há a aprimorar. Questionar, portanto, a perfeição
Julia Paladino - Tradutora Marly T. M. Goulart - Revisora 111
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 163
boletim formação em psicanálise
– ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011
Psicanalista, Mestre em
Psiquiatria, Membro do
Departamento Formação
em Psicanálise, Membro da
Seção São Paulo da Escola
Brasileira de Psicanálise,
Mestre em Psiquiatria
pelo Hospital do Servidor
Público Estadual – HSPE.
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artigo
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– durval mazzei nogueira filho
da obra divina. Francis Bacon (1979) e o ‘Novum Organum’, de 1620, não obstante o respeito às formulações e ao poder religioso, propõe um método específico à ciência e a destina a cumprir um papel útil à humanidade. Descartes,
contemporâneo de Bacon, é outro que se insurge diante da tradição escolástica
que não questionava a razão da existência dos objetos do mundo e do próprio
homem. Acena com a dúvida metódica para fundar um sujeito para o pensamento: Penso, logo existo.
Sem preocupação em receber crítica de filósofos e historiadores, Descartes, Bacon e a multidão anônima de artistas mecânicos, para usar a expressão de Rossi (1966, p.11), abrem o caminho para novas considerações “sobre o
trabalho, sobre a função do saber técnico e o significado que têm os processos
artificiais de alteração e transformação da natureza”. Está pavimentado o trajeto para a era das Luzes e para que não seja mais um surpreendente desafio
à ordem divina o homem deixar de lado a tutelagem e libertar-se para usar a
razão sem a direção de outrem.
É neste momento da história que situamos a emergência do discurso
universitário. Quando o homem recalca o significante-mestre (S1) e promove
ao lugar do agente o saber (S2). Está instaurada a ciência, com toda ambigüidade, virtude, benefício e malefício de sua ação sobre o mundo e o ser. De uma
vez por todas, o saber desbancou a obediência.
Em um primeiro momento, o mundo natural, onde vivem os homens,
foi o objeto privilegiado da ciência de sua cria mais dileta: a tecnologia. Não
demorou muito para que a volúpia do saber dirigisse o poder para o ser que
desenvolveu a ciência. Dos passos nesta direção o mais decisivo foi a queda
do vitalismo. Foi o momento em que não se atribuiu mais à matéria viva, à
substância extensa, propriedades distintas da matéria física. O corpo e a pedra
compartilhavam muito mais identidade que a vã razão vitalista poderia supor.
Foi na metade do século XX que esta perspectiva estabeleceu bases que
mudaram o rumo do pensamento biológico. A lápide do vitalismo foi proferida
por Schrödinger (1996) em sua conferência no Trinity College de Dublin, em
fevereiro de 1943. Desenvolve um inteligente argumento para sustentar que
o trabalho de um organismo exige leis físicas exatas e compara-o a um relógio. Sua hipótese de que o material hereditário é constituído por um “cristal
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aperiódico (p.85)” influenciou Watson, Wilkins e Crick a definir a dupla-hélice
do ADN e o resto da história é o que vivemos na contemporaneidade. Todo e
qualquer detalhe em torno da vida orgânica é objeto do escrutínio científico,
sem excluir o conjunto de processos que levam à cessação do funcionamento
desta máquina.
Assim não é à toa que a edição nacional de julho de 2010 da Scientific
American lista “os 12 eventos que mudarão tudo e não da maneira que você
pensa” (chamada de capa) e inclui 3 relacionados à manipulação do corpo ou
ações correlatas. A saber, vida sintética e máquinas conscientes (proposições
herdeiras diretas da equiparação do biológico ao físico) e a clonagem humana.
Como outras 5 seriam desastres radicais (Big One, guerra nuclear, colisão de
asteróide, pandemia mortal e derretimento polar), vê-se que a intervenção na
matéria viva, a possibilidade de reproduzi-la fora da natureza, a possibilidade
de imiscuí-la de produtos sintéticos, a possibilidade de replicá-la sem a intervenção sexual são pontos plenamente legítimos da atual ambição da ciência.
Não há como saber as consequências desta marcha. Há como afirmar
que inócua não será. Linares (2008, p.11) diz que “a expansão do poder tecnológico tem afetado a autoconsciência da humanidade enquanto à compreensão de
sua própria natureza e do posto que ocupa no universo”. Diante desta constatação, se assim é possível escrever, os pensadores dividem-se entre apocalípticos e
integrados. Os últimos apostam todas as fichas que a humanidade, de posse dos
produtos da agora chamada tecnociência, elevar-se-ia sobre a natureza e teria
em mãos instrumentos poderosos para safar-se de qualquer tragédia. Desde a
tragédia da morte individual, marca da humanidade desde a linguagem, até a
tragédia decorrente de algum desastre ecológico. Misturam-se neste belo caldo
de leituras utópicas a possibilidade de deslindar os mecanismos genéticos do
envelhecimento e da morte e, quiçá, criar por meio da engenharia genética
células imortais a definir a matéria como ilusão e desenvolver complicadíssimos algoritmos para afirmar que absolutamente tudo em torno resume-se
a bits e informação, acenando com a decifração deste código e, portanto, com
a possibilidade de controle deste processo e reduzir a matéria, vida biológica
incluída, à realidade fundamental cibernética. Longe do peso da vida carnal.
Luna e López (2005) classificam pensadores deste jaez de ‘otimistas científicos’
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– durval mazzei nogueira filho
e ‘otimistas éticos’. Crêem que não somente a humanidade vai alcançar este
patamar como apostam que esta perspectiva segue a máxima iluminista de
uma ética regida pela razão e pelo igualitarismo. Os apocalípticos recortariam
este campo de outra maneira. Se bem que ‘otimistas científicos’, pois apostam
no sucesso da tecnociência, seriam ‘pessimistas éticos’. Dado que atribuem o
sucesso da ciência à falência de qualquer ética sustentada na responsabilidade.
O raciocínio é que a humanidade dedicou-se à liberdade, abandonou o principal discurso – do Mestre – que pedia a obediência, para entregar-se ao domínio
pelo discurso universitário e abdicar de construir o próprio destino para além
de um hedonismo imóvel.
No primeiro time estão Ray Kurzweil, Andy Clark, Marvin Minsky,
Donna Haraway e Michio Kaku. No outro time Hans Jonas, Jürgen Habermas,
Zygmunt Bauman, Jacques Ellul e Jean Baudrillard. Como se vê, daria um partidaço de futebol de salão.
Resta saber se é o que queremos...
Resta saber se é o que desejamos...
Ficção científica?
Os filmes “Matrix”, de Andy Wachowsky e “Substitutos”, de Jonathan Mostow,
são apocalipses futurísticos.
O cinema e a literatura dividem-se em seus exercícios premonitórios.
Há filmes, como “Mad Max”, de George Miller, e romances, como “Um cântico
para São Leibowitz” de Walter Miller, que descrevem um futuro onde o avanço
tecnológico desaparece – em geral, por suas contradições internas – e a humanidade é, de uma hora para outra, jogada em uma situação sociocultural
primitiva. Noutros filmes, “Matrix”, por exemplo, e romances, como “O admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, o avanço tecnológico desenvolve-se de
tal forma que não se pode mais pensar na Humanidade como singularidade.
A morte do Homem torna-se uma verdade primária.
Nas histórias do primeiro tipo, o dilema da humanidade é a reorganização de um mínimo de Lei que não seja, simplesmente, a supremacia do mais
forte e proporcione uma distribuição justa do espólio da falência da sociedade.
Nos filmes do segundo tipo, um homem ou pequeno grupo dá-se conta de que
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algo com a realidade está errada. A realidade que a cultura em torno aponta é
um engano, apresentado como verdade indiscutível pelo poder da insistência
e pela insistência do poder. Nos dois tipos de relato, o que ‘salva’ a humanidade é, talvez, a única especificidade humana: a disponibilidade à transcendência. Isto é, a possibilidade de reconhecer o Outro. Seja o Outro como Lei.
Seja o Outro como Real. Transcender é ir além da aparência, além da empiria
metodológica ou imanente. E esta possibilidade existe se e somente se há uma
perspectiva ética em cena.
O personagem de Keanu Reeves, em “Matrix”, é esperado por um pequeno grupo como o Salvador. Este pequeno grupo transcendeu. Deu-se conta
que a realidade oferecida pelo grupo dominante continha furos e convencia
apenas pela cumplicidade dos que deixam a luta pelo próprio futuro. O argumento se estrutura como uma metáfora futurística do renascimento de Cristo.
Cabe salientar que a versão cristã da transcendência – o reconhecimento do
Outro como Deus – se é genuína, não é a única. O Outro como Lei ou o Outro
como Real aproxima-se das versões psicanalítica e existencialista da transcendência. O personagem de Bruce Willis, em “Substitutos”, é um policial que
resgata o espírito dos detetives noir de Dashiel Hammet. É a reserva moral em
um mundo onde impera o caminho mais fácil. Homens e mulheres ao redor,
incluindo a esposa do herói, aceitaram entregar a vida a artefatos tecnológicos cibernéticos feitos de material imitador da pele que não envelhecem, são
lindos e sedutores. Tais corpos cibernéticos é que trabalham, dançam, namoram, drogam-se, trepam enquanto os corpos reais estão nos quartos plugados
a computadores fruindo, em tempo real, as peripécias dos substitutos.
O filme “Matrix”, então, pertence à categoria das previsões apocalípticas onde o traço característico da humanidade – a transcendência – torna-se
impedida em função do totalitarismo tecnológico. Na história, os sujeitos são
mantidos sob controle, imersos em uma onipotente realidade virtual policiada
por mandatários de uma instância de comando sobre a qual o espectador nada
sabe. Neste sentido, “Matrix” exibe um paradoxo que define bem a ambiguidade, percebida ou não, da humanidade perante a Ciência e a Tecnologia. Assim, enquanto nos divertimos e nos fascinamos com os efeitos especiais, efeitos
produzidos pela virtualidade de poderosos computadores, assistimos ao horror
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que a realidade virtual pode constituir. Se visto desta forma, o filme propõe
uma reflexão entre o prazer e a facilidade imediata que a Tecnologia oferta e
o preço a pagar pela artificialização e alienação que a Tecnologia e a Ciência
produzem. O filme revela uma face desta alienação: a realidade virtual, apesar
de oferecida por alguém – um homem – que a define, é a ‘realidade real’ que os
cidadãos vivem. A atividade subjetiva dos sujeitos naquela cultura é inteiramente dominada por esta ‘verdade’ sobre o Real oferecido por uma instância
de domínio. Neste sentido, o filme ‘Substitutos’ pode servir como um perfeito
antecedente de Matrix. O ambiente não é em nada diferente das cidades contemporâneas. Não há elemento futurístico. O espectador descobre que está no
terreno da ficção científica quando é revelado que aqueles belos e felizes humanos são artefatos. O ponto é que não há obrigação em viver por meio dos tais
artefatos. Os sujeitos escolheram substituir o peso da carne, a dor da carne, o
horror pelo envelhecimento, o luto pela perda do poder sedutor por um artefato tecnocientífico. A servidão voluntária, horror dos iluministas, encontra
perfeita guarida no mais íntimo sonho de um sujeito.
É possível?
Há essa possibilidade? Há possibilidade daquilo que se julga ‘realidade’ ser da
ordem da construção artificial? E há a possibilidade de homens e mulheres singulares optarem por viver este engano voluntariamente? As histórias de “Matrix” e “Substitutos” têm, portanto, a chance de não se restringirem a uma das
milhares das histórias da imaginação desprovida de praticidade? A humanidade
pode, de fato, enganar-se e entregar-se a este ponto? Ao ponto de que o que é
vivido com todas as qualidades de uma vivência genuína ser um engodo? Se a
resposta a estas perguntas não recupera em nada o animismo primitivo, nos
faz tremer ou nos regozijar pela possibilidade de receber “sim” como resposta.
Dois pesquisadores separados por aproximadamente 100 anos, Freud
e Maturana, orientam-nos.
Em 1895, Freud escreveu o Projeto para uma Psicologia Científica. Neste
texto, de uma maneira bastante original, o fundador da Psicanálise constrói um
esboço de aparelho psíquico. A principal característica deste aparelho original
é a separação que Freud faz entre o fenômeno bruto da percepção e a sensação
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– estamos todos tranquilos!?
consciente que nos garante a realidade como fenômeno presenciado. Entre a
percepção bruta e a consciência, Freud interpõe o setor “psi” constituído fundamentalmente por representações que não copiam os objetos do mundo. E,
além disso, estas representações vinculam-se à história do sujeito. Isto é, representam-se as experiências que o corpo vive. Mas, caracteristicamente, as
representações, se pretendem orientar e organizar a relação do sujeito à realidade o fazem de acordo com uma lógica própria que não repete a lógica dos
objetos e acontecimentos que representam. Como este setor “psi” se interpõe
entre a percepção bruta e a sensação consciente, garante da realidade, é lícito
concluir que a garantia de realidade recebe uma contribuição importante da
organização das representações e, portanto, das experiências históricas e pessoais do sujeito. Isto é, sendo verdadeira a proposição freudiana, o que chamamos de realidade inclui a participação daquele sujeito que a descreve e que a
vive. Outro ponto que Freud salienta neste texto é que justamente por cadeia
de representações e realidade obedecerem a lógicas distintas, é fundamental
que cada sujeito faça um trabalho que o desvencilhe do poder fascinante das
representações e alce ao que denomina ‘principio de realidade’. Isto é, como
o aparelho psíquico funciona sustentado na materialidade das representações ele não exige o mundo real, senão como aplacador da carga originária no
corpo. Repete-se: se não há nenhuma justificativa em renovar o animismo
primitivo, constata-se, desde Freud, que há um hiato difícil de ser transposto
entre a realidade e o sujeito que a vive. Isto quer dizer que este pacto objetivo
que nos preside não é um dado que se oferece espontaneamente à percepção
que, por sua vez, também seria espontânea. Não são, na verdade, a realidade e
a percepção como dois canais abertos que não recebem influência nenhuma
do ator do ato perceptivo.
Na década de 60 do século XX, Maturana (2001/1997), um biólogo em
nada influenciado pelo pensamento freudiano, conduziu experimentos sobre
a percepção visual que levaram à observação que diferentes combinações de
comprimento de onda [luminosa] podem gerar a mesma experiência cromática, assim como as mesmas combinações de comprimento de onda podem gerar distintas combinações cromáticas. Estes experimentos – aqui não descritos
– levaram o pesquisador a concluir que a visão é um fenômeno que depende
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da estrutura do sujeito que vive a experiência. Outra vez, não há espontaneidade perceptiva. O último passo das conclusões de Maturana levou-o a mudar
a pergunta tradicional sobre a percepção, isto é, deixou de correlacionar a atividade da retina com a cor definida em termos de espectro luminoso objetivo,
para correlacioná-la com o nome da cor. Quer dizer: há uma experiência de
linguagem além do ato perceptivo. Se, sem nenhuma extrapolação indevida, é
considerado que o termo representação, em Freud, inclui decisivamente a linguagem é notável que autores de interesses e preocupações tão diversas concluam da mesma forma que o nexo entre realidade e percepção não pode, e não
deve, descrever-se como um fenômeno imediato sem a intervenção de nada
mais que a boa fisiologia dos órgãos do sentido e a clareza óbvia da realidade.
Desta forma, mesmo que Maturana e Freud não se influenciem reciprocamente, são dois autores que, a despeito de partirem de pressupostos distintos, propõem que o sujeito que percebe participa na construção da realidade
onde vive, apesar da evidência empírica que atesta que há o ‘Eu’ e a ‘Realidade’.
Aliás, é a Psicanálise que mostrou que esta diferenciação – entre o ‘Eu’ e a ‘Realidade’ – na verdade, é constituída na rede de laços que se estabelece entre o
infante que se desenvolve e os outros que o recebem, para o Bem ou para o Mal.
A conclusão final é que o cérebro, órgão que sustenta a atividade psíquica, não tem autonomia para captar a realidade, não tem como decifrar a
realidade, se não estiver vinculado à linguagem. O antropólogo Geertz (1989,
p.57) diz: “o homem precisa tanto de... fontes simbólicas de iluminação para
encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não-simbólica constitucionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa”. Se assim é:
(...) não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos
significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um amplo caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais
padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela (GEERTZ, 1989, p.58).
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– estamos todos tranquilos!?
Como a linguagem é um pacto social sem autor, por mais que a potencialidade linguística possa aproveitar-se de detalhes da estrutura cerebral,
e participa na constituição da realidade, não é impossível concluir que outras
formas de influenciar a atividade de um sujeito que possui um cérebro possam
constituir uma realidade com todos os traços de legitimidade. É exatamente
este o ponto que as distopias futurísticas que inspiram este texto salientam.
Em “Matrix”, a humanidade vive com todo o frescor de uma existência plena
enquanto está confinada em casulos, imóvel e alimentada por uma complexa
rede de tubos e cateteres. Em “Substitutos”, voluntariamente a humanidade
renuncia aos tropeços usuais para viver com plenitude apenas as boas sensações. Sem nenhum tipo de risco. Pelo descrito, não é, em hipótese nenhuma,
negativa a resposta às perguntas acima expressas. A realidade é, sim, uma
construção que pode vir a ser artificializada pelo progresso tecnológico e se,
porventura, esta seja mais aprazível que a construção que obrigatoriamente
todos arquitetamos muitos de bom grado aderirão.
Por fim...
A referência a Freud e Maturana é para sustentar que o horror virtual que domina as sociedades futurísticas de “Matrix” e “Substitutos” é possível. A relação do homem à realidade é mais frágil do que a certeza subjetiva supõe. Em
última análise, significa que a renúncia à crítica, a obediência cega a discursos de qualquer natureza tem o poder, sim, de conformar a realidade que habitamos. A linguagem e a cultura são tão condicionantes da realidade quanto
a convicção de que o mundo real nos antecede. Significa que transcender e sacar que há algo além de qualquer experiência possível, se traz mais trabalho ao
sujeito, é a única maneira de garantir a insubmissão a qualquer discurso que
vise dizer como é o Homem ou como são as Coisas. Venha o discurso de onde
vier: da Religião, da Ciência, da Rede Mundial ou da Televisão.
Não há outra maneira de tranquilizarmos.
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Artigo
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Are we all calm!?
Abstract: The author points out the influence that the virtual reality can produce
on mankind in the contemporary world.
Keywords: Psychoanalysis, Virtuality, Contemporary Clinic.
Referências
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LACAN, J. (1969/1970) O seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, 212p.
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SCHRÖDINGER, E. (1944) What is life? With ‘mind and matter’ and ‘autobiographical sketches’. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 184p.
O Nosso Círculo: Fragmentos
de uma Escuta Psicanalítica
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro[1]
Fernanda Zacharewicz[2]
Ligia Valdes Gomez [3]
Luciana Bocayuva Khair [4]
Resumo: O artigo apresenta o resultado de um ano de trabalho em um semi-
nário clínico de formação de psicanalistas, do curso Formação em Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae. Nessa experiência, produções artísticas foram
instrumento para a construção da escuta do analista em formação. Três escutas de um caso clínico discutido pelo grupo evocaram diferentes ilustrações
artísticas da literatura, da escultura e da música, respectivamente. Tais imagens, emergentes do singular e também do grupo, compuseram o processo de
escuta e a elaboração de uma narrativa que transcende o caso original, confi- 1. Membro acadêmico do
gurando uma experiência sensorial e associativa fundamental na formação Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
de uma escuta psicanalítica sensível.
Palavras-chave: Escuta Psicanalítica, Arte, Literatura, Escultura, Música.
3. Psicanalista, Professora
e Supervisora do
Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
Escutar, escutar e escutar... transforma.
4. Membro acadêmico do
Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
Durval Mazzei Nogueira Filho
Rua Almirante Pereira Guimarães, 298
Pacaembu
(11) 3862-5716
[email protected]
2. Membro acadêmico do
Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
Não desças os degraus do sonho
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Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
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– o nosso círculo: fragmentos de uma escuta psicanalítica
Ocorre em toda parte desde um espaço público representado pelo Estado, passando pelas relações familiares e privadas, chegando mesmo até aos impulsos
organizadores do sujeito. (BARTHES, 1997)
Diz Barthes (1997, p.13):
... por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação.
Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com de-
Mário Quintana
Encontramos reflexões e críticas abundantes de como a nossa escuta
é moldada por elementos da cultura, que vão organizando os nossos pensamentos e nossas subjetividades, nas mais diversas áreas de conhecimento,
inclusive na Psicanálise.
Seguindo esse caminho, o presente trabalho é fruto da experiência que
foi proposta a um grupo de seminário clínico, sob a minha coordenação, no
curso Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
O objetivo ímpar do seminário foi o de possibilitar a cada membro do
grupo uma reflexão sobre a escuta, tendo em vista a sua formação como analista. Adotamos a prática de relacionar o caso clínico com produções de arte, de
literatura e de música; com o intuito de discutir a escuta do analista, como o
elemento essencial na experiência da transferência e contratransferência, tão
caras à prática psicanalítica. Cada aluno apresentou o caso clínico duas vezes
para a supervisão e reflexão em grupo e, num terceiro encontro, cada um trouxe
um novo elemento das artes e da cultura articulando-o ao caso já comentado.
Passaremos a descrever as principais ideias que fundamentaram teoricamente o trabalho, seguido das três escutas que articulam o caso clínico
com produções artísticas.
Pensamos a escuta como o marco inicial de um processo em que ideias,
palavras, frases, gestos, são tecidos pela língua falada e escrita. Destacamos a
ideia de que a língua ou linguagem constitui e organiza o sujeito. E na prática clínica, transforma o analista em seu trabalho e o analisando em suas
descobertas.
Roland Barthes considera a língua como expressão máxima do poder.
masiada frequência, é sujeitar: toda a língua é uma reição generalizada.
Esse conceito é ampliado em outro livro do autor ao afirmar a existência
na língua de pelo menos cinco elementos (o hábito, a repetição, o estereótipo, o
chavão e a cláusula obrigatória), que contribuem para a alienação do sujeito, e
revelam como esta é trabalhada pelo poder no contexto social. (BARTHES, 1987)
Não pretendemos aprofundar cada um desses conceitos, somente iremos assinalar que, de diferentes maneiras, todos apontam para a perpetuação
do sempre igual, da verdade absoluta e do sentido único em nossas expressões
linguageiras.
Hoje em dia, vemos o quanto algumas ideias podem se organizar em
torno de objetos supostamente paradisíacos, como o da magia de um Saber
Absoluto, da sensação de um Poder Supremo e de uma Felicidade Infinita. São
ideias-objetos, veiculadas como mercadorias que vão sendo consumidas pelo
sujeito às custas de sua própria alienação. São condições criadas com a função
de apagar contradições, eliminar tensões e evitar confrontos e diversidades.
A ilusão de completude ofertada ao sujeito é, então, revestida de permanência e sentida como realidade eterna. Vivemos o encantamento do significado
em excesso, dando a ilusão de que tudo pode ser explicado, esgotado e esfacelado, e com isso perdemos o prazer, o lúdico, o não sabido, na construção dos
nossos saberes.
Quando Barthes trata a língua humana como um lugar fechado, que
subjuga e aliena, traz também a ideia de que a liberdade, a singularidade, só
pode existir fora dos significados cristalizados, fossilizados.
Pensamos que a Psicanálise se aproxima cada vez mais desse contexto,
tendo em vista a reflexão do sujeito que é constituído por esses discursos, ao
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tratar do inconsciente –do sujeito cindido, heterogêneo e singular. A teoria lacaniana amplia e aprofunda essas contribuições, com a afirmação de que no
sujeito, há sempre algo que vaza, aquilo que permanece enigma, que é – o não
sabido, o inominável, o mais pulsional, o gozo.
Atualmente assistimos no árduo trabalho de análise, aos momentos
de angústia, de estranhamento dos pacientes, ao não conseguirem expressar
verbalmente esses estados. Marcadamente denunciam em si a situação da
nossa cultura contemporânea. Vivem momentos de gozo, silenciosos, excessivos, traumáticos que transbordam e fazem com que tudo permaneça sempre igual e desconhecido.
O não sabido e a singularidade também podem ser estímulos para o
trabalho, quando nós analistas, escutamos. A sutileza do ato analítico deve ligar-se à singularidade do sujeito e não à universalidade dos fatos. Assim a singularidade considerada como unidade de trabalho e, o não sabido, como fonte
permanente de interrogação do sujeito em relação a si e ao mundo, gerando
estímulo para a reflexão, foram as condições que nos interessaram para pensarmos a escuta em psicanálise.
Um dos caminhos de pensar essa questão foi a partir do conceito de
texto ou escritura em Barthes (1974, p.81):
Texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado
por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais
ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido,
a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz,
como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas
da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do
texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha).
Essa noção em Barthes foi norteadora para pensarmos que na escuta
há, pelo menos, duas vertentes que podem ser tratadas:
a) a dos significantes que remetem ao significado único, mantendo-nos
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no visível, no conteúdo manifesto, em que as palavras cristalizam-se num só
sentido ou numa única explicação. A linguagem nesse contexto fica com a
função de comunicar, de informar, e mesmo assim não livre de ruídos, equívocos e desencontros.
b) outra vertente é aquela em que o significante ao relacionar-se a outros significantes constrói uma rede, composta pelos fios e espaços entre eles,
que ampliam infinitamente as possibilidades de significação. Uma teia, uma
“hifologia” como vemos em Barthes.
Podemos dizer que a articulação de significantes vai formando uma
rica tessitura, por entre metáforas e metonímias para Lacan (1985), para Freud
condensações e deslocamentos, que anuncia o inconsciente – esta é a textura
da escuta psicanalítica.
Mas como numa terceira margem do rio, parodiando Guimarães Rosa
(1987), uma terceira vertente se delineia, e assinala um outro elemento da rede
– os vazados, os espaços que ficam delimitados pelos fios. Os vazados passam
a constituir lugares invisíveis, que marcam um trânsito para fora da palavra.
Dito de outra forma: se por um lado o que escutamos vai formando a rede composta de linhas da rede, em que a palavra disparada pela pulsão vai se movimentando como um caleidoscópio de linguagem, por outro lado, é nos espaços
entre os fios e nós da rede, no vazado, que está o fora da palavra, o além da palavra – lugar de caos e de silêncio.
Cabe ao analista escutar e captar esses momentos, até que possam ir
adquirindo forma pela linguagem. São momentos que merecem vir à tona, sem
qualquer precipitação do analista, sem que este tente encaixar o analisando
nas pré-concepções científicas, que modulam os sujeitos, nomeando-os com
designações que por vezes o desconsideram em sua singularidade.
Percebe-se, então, como a escuta precisa ter a função de descolar a palavra de suas significações prévias, estereotipadas e alienadas para tentar (re)
colocá-las em movimento, para que possa aparecer o que ainda não tem visibilidade. Preparar o campo analítico para o questionamento, para o pensar é
trabalho longo. É trabalho do analista em sua escuta, aprender a escovar as
palavras como diria o poeta Manoel de Barros (2003).
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Transgressão?
O ato de brincar para Winnicott (1975) evidencia a riqueza de expressão das
crianças, com o emergir das experiências e dos processos delas, no longo processo de constituição e desenvolvimento. Pelo brincar as crianças expõem e
vão simbolizando o que lhes ocorre internamente. Não há nelas um objetivo
consciente de comunicar ou informar alguma coisa, mas sim de expressar as
suas vivências natural e espontaneamente.
Um exemplo disto é o acervo de músicas infantis presentes no imaginário da criança e em nossa cultura. Diversas vezes já ouvimos e cantamos a
música infantil “quem cochicha o rabo espicha... quem escuta o rabo encurta...”.
Podemos escutar essa canção popular como tendo a função de manter a escuta nos limites tidos como apropriados, segundo ditames culturais,
pois vamos crescendo moldando-nos no “como deve ser”, “quais os padrões
a espelhar”, etc.; mas, também, podemos ouvi-la através do efeito que nos
causa – o prazer pelo proibido. Destacamos aqui não o sentido normativo, e
sim o efeito atraente e transgressor que o proibido pode disparar. Podemos dizer com relativa certeza que todos nós já cochichamos e escutamos para além
do dito “permitido”, não? E, a partir daí, pudemos (re)encontrarmo-nos com
situações, pensamentos, afetos, que não imaginávamos... um misto de horror,
de gozo, quiçá de prazer, algo novo inaugurando um espaço do pouco dantes
navegado, como premissa de explosão e quem sabe libertação.
Pois bem, a escuta que vai além do instituído, aquela que amplia limites, que se constitui como uma escuta que tece rupturas, foi a primeira das
propostas de reflexão no seminário. Pensamos o caráter transgressor da escuta como uma das possibilidades de instaurar o pensar, o fazer como criação
e novidade, num ofício que se aproxima mais ao fazer artístico pela criação
que permite, do que à prática científica clássica.
Repetição ou o de-novo, novo?
Na mitologia, conhecemos a ninfa Eco, aquela que falava incansavelmente
– uma tagarela como ficou conhecida por nós. A deusa Hera mulher do deus
maior Zeus, ao sentir-se enganada pela fala incessante de Eco a enfeitiçou, condenando-a a só repetir as últimas palavras do que escutava. Eco ficou, então,
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eternamente presa aos ditos e não ditos do outro. Temos aqui o exemplo de
como a repetição do sempre igual contribui à intensificação da alienação e do
estranhamento na busca de quem somos, e nos congela, cristaliza, para a possibilidade de mudanças e transformações acontecerem. A necessidade de uma escuta que vá além da repetição na busca do novo foi outra de nossas atribuições.
Paradoxo e permanência?
O poema “rose is a rose is a rose is a rose...”, de Gertrude Stein, tão amplamente
difundido e conhecido, é um marco da modernidade e da linguagem. Sem adentrar nos ensaios feitos sobre este poema, destacamos a ideia do paradoxo que
está contido nele. A “rose” é afirmação, é negação pela repetição, é algo além
de “rose”, mas permanece sendo “a rose”, também.
A escuta pode ser paradoxal se pensarmos que como na teia, na rede, a
palavra pode remeter a vários sentidos, e o que une linhas, o que constrói formas vazadas, dá a tessitura da rede. Mesmo quando priorizamos um sentido
este é um elemento momentâneo, de um todo de criação contínua – a rede.
Podemos usar a metáfora de sermos cavernas, cujas experiências ficam
tatuadas em nossa carne e constroem as nossas psiques, como inscrições, escrituras, hieróglifos que nos marcam, constituem e organizam e podem contar
nossas histórias infinitamente. Para que possamos fazer descobertas, é necessário que as palavras, gestos e silêncios sejam ouvidos nas três condições de
escuta apresentadas: descoladas do usual, do antigo; para fora dos ecos repetitivos do sempre igual; e, em sua condição paradoxal, são possibilidades de
abertura para o novo. É preciso que possamos permanecer atentos a um ecoar
interno, às vezes um sussurrar, às vezes um trovejar, nos seus movimentos
descontínuos e permanentes, lugar de criação.
Permanecer para escutar não é tarefa fácil! Por entre subidas e descidas, encontros e desencontros, que possamos permanecer como nos convida Quintana, no mistério da vida, lugar onde, também, habitam enigmas e
monstros conhecidos, e quiçá, alguns, possam ser decifrados e (re)integrados
na relação terapêutica.
Na clínica, os ecos ditos e ouvidos, resquícios das sessões são transformados pela escuta do analista, porque entrelaçados à escuta interna da sua
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subjetividade e de seu arquivo de vida. A escuta do analista se enriquece, se
pode flutuar também no cotidiano, usando a arte em suas variadas expressões. São instrumentos importantes para o analista na sua prática psicanalítica, porque aprofundam a compreensão da sua relação com o analisando.
Neste trabalho optamos por refletir, a partir de um único caso clínico,
as várias possibilidades de escuta das analistas em formação, e as diversas articulações e entrelaçamentos que houve entre elas, permitindo a construção
de um fazer coletivo.
Não deixamos de tentar compreender o analisando, nas devidas supervisões clínicas, mas ao ampliarmos as possibilidades de escuta, fomos refinando
e transformando, porque permitiu irmos para além da escuta do caso; permitiu a criação de diferentes personagens gerados pela escuta singular de cada
uma das analistas. Trouxe a possibilidade de cada uma poder ir construindo
seu estilo próprio, mais pessoal, seu jeito mais natural de ser analista e estar
nos seus atendimentos.
Foi possível, a partir do caso clínico analisado, perceber a analisanda se
tornar Béa ao ser escutada em conversa com a Macabéa personagem do conto
de Clarice (LISPECTOR, 1998). Numa outra escuta, Béa fundiu-se aos tentáculos
do Impossível, a escultura de Maria Martins (Da MATA, 2008) e sua agressividade pode emergir como instrumento de reflexão. Numa terceira possibilidade
temos Béa fragmentada na luz, conforme música de Arnaldo Antunes (ANTUNES, 1993) com seu conteúdo de poesia concreta, em que Béa encontra a sua
sombra para ensaiar ser.
Partes tão diferentes e que ao final compõem um todo sensível e passível de aprendizado. Na analisanda num devir longo, trabalho de ourivesaria
da dupla analisando/ analista. Neste trabalho ampliando limites e formando
o analista.
Quelques Cercles
Formado o grupo, passamos a chamá-lo de “Nosso Círculo”, inspiradas por
Kandinsky, já que a tela Quelques Cercles (KANDINSKY, 1926) ilustra o que foi
nosso trabalho. Nessa tela, sobre o fundo azul escuro, ficam lado a lado, sobrepostos ou justapostos, variados círculos de diferentes cores, formatos, texturas
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e tons, que apesar da singularidade de cada peça, juntas se complementam e
formam um conjunto.
Artista do século XX, um dos porta-vozes da Arte Moderna, o pintor nos
provoca e convoca a uma desmontagem da realidade construída e instiga a
uma nova leitura, autoral. Essa obra suscita a efervescência que vivemos: pluralidade de perspectivas, de interpretações, uma “polifonia visual”, inspirada
pela escuta e enriquecida pelas obras de arte em suas mais variadas formas.
No álbum da exposição do artista, realizada em Paris, editado pelo Museum Centre Pompidou (Centre Pompidou, 2009, p.45), explica-se que “o círculo
é a forma mais modesta, porém a que se afirma mais incondicionalmente; é
precisa, mas infinitamente variável; simultaneamente estável e instável; simultaneamente intenso e suave; única tensão, mas que carrega incontáveis
tensões em si mesma”.
Os círculos que contêm (ou deixam de fora) cores, contrastes, gritos,
sussurros, contornos nítidos ou manchados, precisos ou difusos, esparramados. Assim foi a escuta de cada um de nós, singular. Assim foi a escuta de nosso
grupo, una; um conjunto com círculos que se complementam, formam um
todo; diferentes entre si, se sobrepõem, se intersectam, se incluem e excluem,
tingem, mudam a cor um do outro, realçam ou simplesmente escurecem. Um
caldo de estilos e subjetividades de onde pode emergir, a partir de cada escuta
singular, uma coletiva.
A seguir, apresentaremos o caso clínico “Béa” e três escutas analíticas
que foram construídas, inseridas nessa polifonia visual que citamos, tomando
como suporte ilustrações artísticas da literatura, da escultura e da música,
respectivamente.
Psicanálise e Literatura - Um pouco (um conto) de Béa
Béa. Assim será chamada por influência de Clarice. Não que a paciente Béa seja
toda Macabéa – a moça de A hora da Estrela de Lispector – ela o é em sua busca
por contornos para existir. Béa parece ainda não saber se existe ou, ao menos,
parece ainda não ter encontrado as palavras para nomear-se.
Béa não é só pessoa, só paciente ou caso clínico. Béa é, antes, um personagem criado numa escuta coletiva e atravessada de poesia, imagens, sons e
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palavras. Aqui Béa é um conto criado por muitas mãos e que como todo conto
tem a marca da vivência de quem o escreve.
Na primeira vez em que veio ao consultório, Béa sentou-se encolhida
na pontinha da cadeira, apertando a bolsa sobre os joelhos encostados, já quase
indo embora. Medicada para evitar a dor de existir, tinha dificuldade de dizer
o que se passava com ela mesma, atada que estava à única certeza de que nada
do que dissesse poderia prestar.
Aos poucos, as palavras apareceram, uma a uma, eclodindo sem que
ela pudesse senti-las propriamente como suas. Ouvir Béa falar de si é como
ler, no conto de Clarice, o personagem-narrador descrever Macabéa – não se
tem certeza onde primeira e terceira pessoas se encontram e se distinguem.
Lá, no conto, o narrador fala das dores da nordestina, sendo ele próprio nordestino e cria em Macabéa uma (in)existência que ele não sabe se é sua também.
Assim acontece com Béa. Relata fatos que seriam quase como seus, mas não
ousa se aproximar deles, talvez pelo medo de sentir a violência que tais fatos
embutem. Nesse sentido, Béa, assim como Macabéa, “falava, sim, mas era extremamente muda”. (LISPECTOR, 1998, p.37)
Béa diz não ter amigos por não conseguir conversar. Nunca sabe do que
as pessoas estão conversando ou quando sabe alguma coisa é incapaz de ter
uma opinião a respeito. Essa era a mais forte reclamação do então namorado
e principal motivo dele para humilhá-la e para sucessivos rompimentos, vividos em sua maioria por Béa como aniquilamento de si mesma.
Ridicularizada em sua existência pelo namorado e pela família, Béa/
Macabéa, como diz Lispector (1998, p.36) “não perguntava por que era sempre castigada, mas... nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida”.
O não dizer/ não saber/ não sentir de Béa, assim como de Macabéa, encontram lugar no corpo, onde o adoecer é a tentativa de um grito de existência.
Béa é quem sustenta, precariamente, a família desde a morte de sua
avó, a grande provedora. Sem se dar conta de que passou a ocupar o lugar da
avó, Béa se “protegeu” sob uma espessa capa de gordura, o que parece não ter
sido suficiente porque também desde então passou a ficar constantemente
“doente”: crises de febre, fortes dores e formigamento nas pernas, crises de
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vômito e diarréia, desmaios, sensação de sufocamento. Os médicos (neurologista, gastro, cardiologista, clínico) não encontram nenhuma explicação para
esses quadros. Os psiquiatras dizem que ela sofre de estresse e depressão. A família de Béa a ridiculariza por tudo, especialmente pelas doenças, vistas como
“frescura”. As febres têm que ser cada vez mais altas para que Béa seja socorrida.
O corpo, destituído de desejo, adoece como forma de existir. Béa e Macabéa
buscam nas aspirinas o alívio para “não se doer”. Nas palavras de Macabéa: “Eu
me doo o tempo todo. Onde? Dentro, não sei explicar.” (LISPECTOR, 1998, 66p.)
Doer e doar... “eu me doo... dentro”. Macabéa diz da dor que é também
de Béa: o quanto dói dar sua vida, aquilo que há dentro, abrir mão, resignadamente da própria existência e subjetividade. Como se Béa, ao assumir o lugar
da avó, tivesse deixado de viver como si mesma e tivesse assumido uma espécie de sucedâneo de existência. Vetorazzo Filho (2010) conta dessa sensação
de “imitação do vivo”, experimentada por algumas pessoas, algo que, na realidade, os aproxima mais da ruína de sua subjetividade e que Fedida aponta
como a situação em que “a vida é empurrada para longe demais pela sua imitação vivente”.
Mas Béa não reclama, sequer tem clareza do lugar que ocupa na família ou da reprodução da história da mãe – também gorda, doente, traída e humilhada pelo marido. Béa apenas sente medo de se afastar de casa, teme pela
saúde da mãe e não consegue impor minimamente alguma dignidade. Não
vive, apenas reproduz, imita. A imitação do vivente é o cotidiano de Béa e está
descrita na rotina de Macabéa:
“quando acordava, não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com
satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se
de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel
de ser. (...) Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de
tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma
prévia experiência de – de êxtase, digamos. (...) Não sabia que meditava, pois
não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma
longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
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mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela.
Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.” (LISPECTOR, 1998, 43p.)
Macabéa e Béa quase perderam seus empregos pelos persistentes “erros
de ortografia”, incapazes que eram de copiar as palavras. Ambas só não foram
demitidas, por pena. A impossibilidade de reproduzir palavras, por lhes parecerem vazias de sentido, denuncia um oco na linguagem. Um profundo oco
representacional que antecede qualquer questão cognitiva, mas sugere uma
falha na constituição do Eu. Tal falha, no caso de Béa, manteve-se latente até
a morte da avó, quando ela relata não apenas o início dos sintomas somáticos,
bem como de crescente dificuldade com as palavras (esquecimento, troca de
letras e construção de frases sem sentido). Béa conta também como passou a
ter dificuldade de organizar coisas e discriminar categorias, sendo capaz de ficar
parada, por horas, em frente a um arquivo sem conseguir decidir como operacionalizar sua organização. A desorganização interna de Béa ficou exteriorizada
no sofrimento corporal e nas dificuldades com a língua e com a vida cotidiana.
Pensar a desorganização de Béa a partir do movimento pulsional que
a ocupação do lugar da avó provedora pode ter desencadeado implica considerar como foram reavivados os processos identificatórios na trama psíquica.
A ocupação do lugar da avó provedora não se dá apenas no campo concreto,
mas principalmente na fantasmática psíquica. Béa conta que estranhamente
“não sentiu tanto assim a morte da avó” (sic), como se esse luto não tivesse sido
efetivamente realizado. Ao contrário, parece que a dificuldade de Béa em aceitar a perda, pode ter provocado um movimento regressivo, de buscar internamente o objeto perdido externamente, tornando-se ele mesmo. Melancólica,
Béa considera-se merecedora das humilhações que recebe do mundo e acredita
que não é alguém que valha a pena. Como descrito por Freud (1917), em Luto e
Melancolia, a autorrecriminação do melancólico seria na verdade uma queixa
contra o objeto perdido. Béa, identificada regressivamente com o objeto perdido,
fica indiscriminada do outro, como conta a poesia de Sá-Carneiro (1914/1995):
Eu não sou eu, nem sou o outro
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Sou qualquer coisa de intermédio.
Pilar da ponte de tédio,
Que vai de mim, para o outro.
Béa, “pilar da ponte” que sustenta a ligação amalgamada com sua família. Uma “ponte de tédio” porque pouca vida há na reprodução da história instalada na família desde a avó onipotentemente provedora. Enquanto
o grupo de parasitas sobreviventes continua esperando a morte chegar, Béa
vive o conflito de ter se tornado a provedora do sistema que, ao contrário da
avó que apenas repassava os recursos de uma pensão, tem que trabalhar para
prover. Não por acaso, Béa dizia “não entendo como não me demitem, eu não
faço absolutamente nada no trabalho” (sic). Nem poderia. Na ocupação do lugar da avó fica reeditado o roteiro fantasmático da constituição do Ideal do Eu:
“Trabalhar pra quê? Pra ganhar essa merreca? Eu posso te dar mais dinheiro
do que você é capaz de ganhar” (sic), dizia a avó a todos. Assim, trabalho tem
um significado nessa família de algo penoso e degradante. Trabalhar agride
Béa porque é ela sozinha que se desgasta para aqueles que nada fazem e, principalmente, trabalhar a distingue da família e a coloca no lugar de sujeito de
suas escolhas – lugar tanto desejado quanto temido.
A ponte que une e separa Béa de sua família representa aqui também seu conflito fundamental: existir ou desistir? “Pilar da ponte” ou “pular
da ponte” de tédio? Béa, ao contrário de Mário de Sá e de Macabéa, vive, mas
adoece. Em seu adoecimento há um grito por socorro e uma busca pela vida.
Psicanálise e Escultura – Será Impossível?
Quando Béa foi apresentada, nos impressionou – como bem nos disse sua analista – seu esforço para não ser. Misturada com sua mãe e absorta na repetição
de sua história familiar, como na obra de Maria Martins, intitulada O impossível. Esta escultura, em mármore branco, estava no Malba, em Buenos Aires
e pode ser vista em Da Mata (2008).
Na escultura branca de Maria Martins, dois grandes corpos amorfos
quase se juntam pelos ávidos tentáculos-boca, que captam toda a nossa atenção. Não existem rostos, só enormes bocas, que nem isso são. E é, sobretudo,
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o branco que nos capta, já que pela ausência de cores mal se pode distinguir,
nessa mordida voraz, os diferentes corpos, em uma tentativa de possuir e dominar aquele corpo ao lado que “lhe pertence”. O que ouvimos de Béa foi sua
destrutividade: silenciosa, devastadora, contagiosa, presente pela ausência...
Um grande não fazer, não produzir, não reagir, não falar, não associar.
Ao ouvir sobre Béa, nos paralisamos, não sentimos raiva, não pudemos
reagir. Ouvimos lamentos melancólicos, que Béa fala em análise e chora em
seu corpo (pelas suas febres, diarréias, etc.).
Foi estranho selecionar a obra de uma artista tão ativa e revolucionária para falar de Béa – é como se nem isso ela pudesse. Nascida em família
abastada, Maria falava línguas, casou-se duas vezes – na segunda vez com um
diplomata, Carlos Martins Pereira e Souza (1884-1964). Viveu na Europa, estudou escultura em Paris, morou no Japão, participou ativamente do movimento
surrealista, modernista e esteve lado a lado de grandes nomes como: Marcel
Duchamp, Mies Van der Rohe, Rufino Tamayo, Chagall, Mondrian, Max Ernst
entre outros. Mas, foi ela quem nos traduziu Béa.
Vemos Béa nesses corpos brancos misturados, indiscriminados, que
tentam (tentativa impossível) em seus tentáculos se fundir. Mãe e filha em
uma identificação canibal, voraz. Separação, diferenciação ou distinção é ameaça de um corpo dilacerado; ego fragmentado.
Em dois momentos ao longo do seminário clínico pensamos em Béa.
A seguir nosso reencontro.
Começam a aparecer os tentáculos. Há uma nova possibilidade de lidar com sua agressividade, que antes não podia aflorar. Antevendo e temendo
o fim de seu longo namoro, ela, sabendo que seu namorado a trocou por outra,
Béa cria um personagem virtual para se relacionar com a rival. Aqui a nova Béa
(sua personagem), é Zezé, uma Béa masculina, ativa; com quem experimenta
sua potência e pode ativamente fazer algo por si própria; pode também seduzir e atacar… Exercita com sua personagem sua sexualidade e agressividade,
o pulsional que precisava encobrir. Desconta sua raiva, elabora a sua dor, se
vinga do seu – agora – ex-namorado.
A Béa-Burra trocada por outra, agora travestida de Zezé, deixa de ser
caça e passa à caçadora: ataca, faz seu namorado sentir-se trocado por outro
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(e que outro!). Pode saborear sua vingança frugal.
Béa desfruta de novas experiências, sutis, mas sem dúvida, novas; com
o término do namoro vive a profunda tristeza do rompimento (e da separação)
na análise, não fica paralisada ou dilacerada pela depressão e pode até cuidar
da sua feminilidade (vai ao salão).
Ela traz um sonho: vê uma coruja, grande, com olhos bem abertos. Ela
associa a ave a uma má notícia, que pode ser a morte da mãe. Acordada, fica
muito preocupada com a saúde de sua mãe, teme intensamente pela sua morte.
A realização de desejo, a morte da mãe, expõe “a céu aberto” sua agressividade que agora pode aparecer. Morte, separação, autonomia ou apenas diferenciação. Ela com “olhão” de coruja já pode começar a ver, mas preferia não
enxergar. O desejo de poder se separar da mãe é também horror, morte, medo
da separação, medo de seu desamparo uma vez que esteja só. Um desejo de separação que é tão intenso, temido e culpado, que teme que sua raiva mate. Separação, morrer e matar; sobredeterminações.
Encontrar-se com esse “novo” aspecto seu não é fácil: na semana seguinte a paciente falta e quando volta relata que foi a um psiquiatra. Ele receitou medicamentos, mas ela não tomou. Será que ela busca (fora da análise)
fugir de sua coruja, que enxerga seus desejos? Talvez seja possível à Béa, em
sua análise, trilhar um caminho para diferenciar-se de sua mãe e constituir
sua própria identidade.
O medo de separação, agora, está na relação transferencial (podendo
fazer escolhas de amor objetais e não apenas identificações canibalísticas): a
possibilidade de separação com a mãe chega pelos encontros com a analista.
Será que o remédio faz passar “medo de separação” com a analista? A própria
paciente começa a digerir essa questão. Psicanálise e Música - Béa enquanto
processo – possibilidade de ser
Para escrever sobre Béa não basta escutá-la em um momento único, é necessário ser capturado pelo processo da paciente ao longo do ano de 2009. A
primeira apresentação de Béa foi marcada pelo seu acorrentamento na dinâmica familiar, os seus empregos com funções simultaneamente simplórias e
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impossíveis de serem cumpridas. O segundo relato trazia em seu âmago uma
nova Béa, que exercia papéis também fora do âmbito familiar, que criava personagens e, embora ainda não por si mesma, era capaz de seduzir como Zezé. A
nova Béa que era resultante do trabalho analítico; continuidade da velha Béa,
porém começando a se integrar.
Como ilustrar o processo? Partiu-se da poesia concreta. A poesia concreta é composta por partes sem ligação. Após a leitura do primeiro momento
de Béa, era justamente isso que ela parecia, faltavam conexões entre as partes,
mais ainda: as partes mesmas estavam cindidas.
Para compreender a poesia concreta necessita-se de um esforço do leitor, ou melhor dizendo, um esforço do leitor para ler a obra. Será que aqui estava referindo o esforço do analista? Sim. Ouvir a sessão, estar atenta às febres
e continuar o trabalho analítico mesmo a partir da vontade estagnadora da
paciente eram sem dúvida parte essencial do trabalho desse analista.
A obra escolhida foi Luz, letra e música de Arnaldo Antunes. A voz grave
e a falta de cadência, ou a presença de lacunas abissais entre cada nota, transcreviam a angústia da paciente. Desde essa percepção realizou-se o trabalho
sobre a poesia de Antunes (1993, p.81):
Luz
Na luz
Não é nada
Béa era luz, mas estava impossibilitada de ser. Béa, enquanto luz na
luz, não era nada, nem nada era. O que ela poderia ser fusionada na geleia
disforme em que consistia seu núcleo familiar nesse momento? Perdia-se,
nadava no nada. Cabia a ela o desafio do processo de separação da fusão, cabia a ela, cortar, morrer para então tornar-se sujeito. Tomando como ponto de
análise o relato da segunda sessão, quase seis meses depois da primeira, Béa
era luz, mas já não mais na luz. Béa afasta-se da luz que cega, pode dar início
ao ser, ainda que sombra. O que leva esse ensaio à segunda parte da poesia de
Antunes (1993, p.81):
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Só sombra
É nada
No primeiro esboço Béa poderia ser sombra enquanto existência parcial, sombra de final de tarde em dia nublado. Mas pode-se agora tomar a perspectiva da sombra como diferenciação, do nada que antes, mesmo com tanta
luz, tamanha exposição de seu ser, não havia nada. A sombra é, portanto, agora
para Béa possibilidade de ser, mas ainda não em sua plenitude. A sombra de
Béa está agora mais próxima do meio-dia, da sombra que ofusca o ser.
Béa ao longo do tempo, dos seis meses que cronologicamente impõe-se entre os dois momentos da apresentação de seu caso, afasta-se da poesia
concreta. Por si mesma torna-se prosa. E prosa independente do leitor, torna-se prosa por própria autoria. Obra escrita a partir da necessidade de ser. Onde
encontra-se agora o analista?
Béa aos poucos inicia a escrita da própria história. Escreve sim sua
prosa! Mas às vezes falta-lhe imprimi-la. Imprimir é tirar do arquivo pessoal,
é fazer concretamente existente o que antes era possibilidade. É isso que o analista de Béa faz nesse momento. Ajuda-a a imprimir, fornece o papel. Acessório
à obra já escrita, mas fundamental para o real da existência.
Já não é mais assim. Em um segundo momento pensar em Béa enquanto música passa a ser pensar em Andante, ainda lento, mas já no limiar
dos andamentos considerados rápidos. Béa com maior possibilidade de movimento. Ao escutar Béa em andante, ritmo de passeio (76-108 batimentos por
minuto), escuta-se seus primeiros passos pela rua, o espaço público que a faz
sujeito fora da casa, início da separação da família que a aprisiona. Béa ainda
não é capaz de andar em Allegretto graciozo (moderadamente rápida e graciosamente). Passeia para poder conhecer o mundo do qual foi privada, passeia
com sua analista por vitrines de símbolos criados pela cultura buscando preencher as lacunas deixadas pela formação de um suposto sujeito pouco ou
nada libidinizado por suas figuras parentais. Para que Béa páre de ter febre,
de somatizar as inundações libidinais que, no momento, carecem de significantes, há que acompanhá-la em seu passeio. O passeio que marca o ritmo do
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trabalho psíquico empreendido na dupla analista-analisante dará os elementos necessários para que Béa forme uma mais complexa cadeia associativa,
podendo assim dar palavra para o que agora ela escreve no corpo. Aos poucos,
Beá afasta-se de Macabéa. Exige-se ainda olhar para a poesia em si.
Para complementar esse ensaio faz-se crucial somar a descrição da
imagem da germinação da semente de feijão no algodão. Experiência essa que
toda a criança faz. Há que se escolher os grãos, os copinhos, pôr o algodão, molhá-lo na medida adequada e deixá-lo à luz. Não aguar demais, porque morre.
Não expor à luz demais, porque morre. E esse exagero de luz aproxima-se da
luz da poesia concreta tomada aqui como objeto. Luz na luz não é nada. Impossibilidade. Morte.
Béa já começa a não se inundar de luz, sai do meio-dia. Já não se deixa
invadir pelo seu meio. Béa pode ser meio sombra e começa a germinar. É estranho, porque não dá pra ver. Dá a impressão que de repente sai o broto. Mas
o processo iniciou-se muito antes, o que é visto é somente o resultado disso. É
esse o processo que se deu na análise de Béa, e pode-se dizer, com a paciência
do analista. O processo de análise é longo, para o paciente e para o analista.
O que resta fazer agora? Continuará Béa a crescer e desenvolver-se?
Como todas as crianças sabem, o pé de feijão não se sustenta no algodão! Há
que plantá-lo em terra boa para que dê frutos. Como transplantar essa vida?
Será que isso é possível?
A busca pelo retorno ao medicamento pode ser escutada como essa angústia do transplante. Mais uma vez o analista porá folhas na impressora para
que Béa continue a escrever-se como sujeito prosa, sujeito conto.
Ainda, algumas palavras
As três escutas, apesar de autônomas, simultaneamente se completam: nos levam a um trânsito harmonioso entre singular e coletivo e ainda, a Kandinsky.
Our circle: fragments of a psychoanalytic listening
Abstract: The article presents the results of a full year’s work in a clinical seminar
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for psychoanalysts’ training, from the course “Formação em Psicanálise” in “Instituto Sedes Sapientiae”. In this experience, artistic productions were instruments
in the construction of the psychoanalyst listening. Three distinct listenings of a
clinical case discussed by the group evoked different artistic illustrations from
literature, sculpture and music, respectively. The resulting images, which emerged from individuals and also from the group, made up the process of listening
and developed a narrative that transcends the original case, setting up a sensory and associative experience that is crucial to the constitution of a sensitive
psychoanalytic listening.
Keywords: Psychoanalytic Listening, Art, Literature, Sculpture, Music.
Referências
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BARROS, M.. Memórias inventadas A infância. São Paulo: Planeta, 2003, 40p.
BARTHES, R.. El placer del texto. Espanha: Siglo Veintiuno de Espana editores,
1974, 86p.
__________ . O rumor da Língua. Lisboa/ Portugal: Edições 70, 1987, 486p.
__________ . Aula. São Paulo: Cultrix, 1997, 96p.
CENTRE POMPIDOU. Kandinsky. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2009,
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DA MATA, L. C.. Maria Martins. Sobre o toque e o impossível. In: XI Congresso
Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências.
2008, São Paulo. Anais Online. Recuperado em 13 de setembro de
2011: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/034/LARISSA_MATA.pdf
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
(1917). Luto e Melancolia, v.14, p. 245-270.
KANDINSKY, W.. Quelques cercle (1926). Original: óleo sobre tela; 140 x 140 cm.
Paris: Centre Pompidou.
LACAN, J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de
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Janeiro: Jorge Zahar, 1985, 280p.
LISPECTOR, C.. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 87p.
ROSA, J. G.. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1987, 236p.
SÁ-CARNEIRO, M. (1914). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
1101p.
VETORAZZO FILHO, H.. A tirania do ideal na ruína do Eu. In: MARRACCINI,
E.M. (Org.). O Eu em ruína – perda e falência psíquica. São Paulo: Primavera Editorial, 2010, p.61-89.
WINNICOTT, D.W.. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 203p.
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro
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Fernanda Zacharewicz
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Ligia Valdes Gomez
Rua Tupi, 267, cj14
(11) 3663 5973
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Artigo
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A terceira margem do rio: um diálogo
entre poesia (sonho) e prosa (vigília)[1]
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro
Resumo: O diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas obras homônimas
A terceira margem do rio, permitiu evidenciar os mecanismos deslocamento,
condensação e figurabilidade entre as palavras de Caetano Veloso e de João
Guimarães Rosa. Nesse sentido, a idéia de uma terceira margem no rio que encerra o indizível, presente em ambas as obras, permite pensar a palavra como
representação de coisa, a palavra em sua materialidade que flexibiliza a relação
entre significante e significado (água da palavra). Mas é metaforicamente na
relação com o pai que se encerram as raízes de toda cadeia associativa. São os
desejos inconscientes, submersos no rio, que regem os operadores e que criam
os meandros da rede de associações ora convergentes e ora contraditórias denunciando a presença escondida, disfarçada da (i)lógica do desejo inconsciente.
Palavras-chave: Psicanálise; Poesia; Prosa; Sonho.
Luciana Bocayuva Khair
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(11) 9142 6117
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1. Versão revista e ampliada do trabalho apresentado na XX Jornada do Departamento Formação em
Psicanálise em 2009.
boletim formação em psicanálise
– ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011
Membro acadêmico do
Departamento Formação
em Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae.
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boletim formação em psicanálise
artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– ana raquel bueno moraes ribeiro
Um convite...
Caro leitor, permita-me fazer um convite: Uma pausa para um devaneio, um mergulho nas águas (des)conhecidas da Terceira Margem do Rio...
Se essa não for uma hora conveniente, volte mais tarde, mas, por favor, não
prossiga sem antes se dar o tempo de experimentar as águas de Caetano e
Milton. E, se agora for um bom momento, acomode-se naquele recanto mais
aconchegante e ouça (mesmo) essa música. Use o tempo que lhe parecer necessário. Aproveite para dar tantos mergulhos quanto for o caso até deixar-se
molhar pelas intrigantes palavras desse obscuro rio. Depois, e apenas depois,
de um belo mergulho na música, sugiro um mergulho no conto homônimo
de Guimarães Rosa. Só então estaremos prontos para começar a brincadeira...
Espero por você aqui. (...)
boletim formação em psicanálise
artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– a terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília)
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio vil, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
A terceira margem do rio - Caetano Veloso e Milton Nascimento
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, tristriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Margem da palavra
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
Mas, afinal por que esse convite? Por que deixar-se levar pelos meandros de um poema/canção num devaneio? Por que entregar-se a essa escuta? Na
formação de um analista, busca-se incessantemente desenvolver uma escuta
capaz de romper a concretude do discurso. Faz-se analista aquele que consegue
se aproximar de seu paciente naquilo que ele não sabe que diz ao falar, quando
a palavra transcende o significado mais explícito e se apresenta numa rede de
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artigo
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– ana raquel bueno moraes ribeiro
possibilidades de significação. Nesse sentido, o fazer psicanalítico aproxima-se
do fazer poético, artístico, que se permite brincar com as palavras. No entanto,
contraditoriamente, quais são os espaços criativos em que psicanalistas em
formação (ou não) se permitem estar? Onde está o lugar da brincadeira com
as palavras que permite o exercício da escuta? Em meio ao universo teórico
austero que emoldura, formata e enquadra, a brincadeira com a palavra parece
por vezes acuada, já que tão pouco “séria”...
Na linguagem popular, “poeta” e “sonhador” são, às vezes, tratados
como sinônimos. Trata-se de uma analogia que considera que ambos utilizam
a palavra como “coisa”. Regidos pelo significante, o sonho ignora e o poema
flexibiliza as relações entre significante e significado. Tanto na poesia, quanto
no sonho, a palavra se materializa na sua corporiedade: soma e sema. A palavra é signo e corpo - é isso que nos ensinam os trocadilhos - e é por isso que os
poemas escondem um universo quase infinito de significados que permitem,
além de um deleite particular, um exercício de ampliação de escuta.
É conhecida a importância capital do significante em toda e qualquer
formação do Inconsciente: chistes, sonhos ou sintomas. Regido pelo processo
primário, ambíguo e caótico, o Inconsciente pressiona o Eu para manifestar-se,
seja no pequeno espaço de um chiste que escapa, num poema demoradamente
gestado e sentido, ou nos sonhos. Todos os casos encerram a manifestação do
desejo inconsciente. Muito antes de Freud, segundo Meneses (2002, p.21), o
filósofo grego Aristóteles já articulava a imaginação ao desejo: “...a fantasia,
quando se move, não se move sem o desejo.” Freud (1900/1996) concorda com
o filósofo ao propor que: “...durante o sonho o Inconsciente não pode oferecer
nada mais que a força pulsionante para um cumprimento de desejo.”
O desejo, compreendido como mola propulsora de todo movimento
psíquico, reproduz a cada momento da vida de vigília ou no sono os registros
arcaicos de vivências de satisfação geradas a partir de tensões de necessidades
atendidas. O desejo é, portanto, a moção pulsional no aparelho psíquico que
arranca a carga da tensão de necessidade na busca da vivência de satisfação.
O investimento energético do traço da vivência de satisfação fica tão intenso
que resulta numa identidade perceptiva alucinatória. Tal identidade de percepção passa a constituir o objeto do desejo, que ao ser reproduzido em sonho,
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– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– a terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília)
ou em qualquer outra formação do inconsciente, consiste no que ficou conhecido como a realização do desejo.
Nesse sentido, tanto o sonho como a poesia operam sensorialmente. A
elaboração onírica se aproxima, portanto, do processo de elaboração artística ambas enraizadas nas descargas pulsionais regidas pelo desejo. Para Meneses
(2002, p.16) “poesia e sonho mergulham numa lógica da ambiguidade, abrigando a contradição, acionando insuspeitas forças psíquicas. Quando sonha,
todo homem é poeta: utiliza os recursos da figurabilidade, a imagem sensível;
estabelece analogias que não se impõem à primeira vista”. Meneses (2002, p.20)
aponta ainda o que diz Ricoeur acerca de todo latente que exige ser manifestado: “onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue
para interpretar” - o que nos traz de volta à proposta desse trabalho.
A Terceira Margem do Rio é um poema particularmente interessante
para nosso convite ao devaneio/ exercício de escuta/ interpretação. Isso porque
não se trata apenas de um poema maravilhosamente concebido, mas que preserva suas raízes na prosa. Caetano criou a canção (poema) a partir do conto
homônimo de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, criando um diálogo entre poesia e prosa análogo à relação estabelecida entre o sonho e a vida de vigília. A prosa de Rosa parece ordenar, preencher as lacunas deixadas pelo poema
de Caetano. Mas poderíamos pensar o inverso. A canção criada por Caetano é
a condensação poética do conto de Guimarães Rosa, como se o conto pudesse
ser pensado como um evento da vida de vigília que carrega de energia algum
elemento inconsciente e se transforma num resto diurno, matéria-prima nobre para a construção poética do sonho, no caso, a canção, tão mais livre na
palavra como “representação de coisa” (Laplanche e Pontalis, 2004). Isso permite que a canção sirva não apenas de base para a livre associação daquele
que a escuta – o que já seria válido – mas para escutar o poema à luz do conto,
de forma análoga à escuta de um sonho à luz das associações do analisando.
Em outras palavras, suponho aqui nesse exercício metafórico, que a
personagem que narra em primeira pessoa o conto é aquele que “sonha” a
canção, de onde surge a analogia entre o sonho e a vida de vigília, bem como
evidências dos efeitos da força do desejo inconsciente. Em oposição a esse suposto “trabalho do sonho”, o presente “trabalho de análise”, tenta resgatar no
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conto, evidências de como a palavra foi transformada. O presente trabalho estabelece, portanto, um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas duas
obras, procurando evidenciar a presença dos mecanismos de deslocamento,
condensação e figurabilidade no poema (canção de Caetano Veloso), a partir
do que é narrado no conto de Guimarães Rosa. A seguir, compartilho a experiência desse meu mergulho...
Compartilhando meu mergulho na “Terceira Margem do Rio”
Ouço a música A terceira margem do rio, de Caetano Veloso, e sou tomada por
ela. Não consigo explicar o que se passa. Simplesmente me invade a cadência ritmada desse rio-silêncio, denso sentimento do pai que se faz presente
na ausência, na palavra que cala. Penso em como me fisga a canção e como
não consigo parar de ouvi-la... Dezenas de vezes até que a repetição permita
acomodar cada som e palavra em mim. Sinto como se quase pudesse tocar o
mergulho da música e da poesia no inconsciente. Mergulho rápido, invasivo,
sem permissão prévia. Não há nada a fazer, a não ser sentir que algo foi pinçado das entranhas e emergiu das profundezas. Tal qual Caetano canta sobre
o rio, água da palavra.
Da narrativa a canção reproduz o efeito enigmático da palavra que silencia. De fato, sem o conto, a canção parece codificada como um sonho. Também fica preservado no poema o estilo característico da prosa rosiana, seus
neologismos, aliterações, rimas, lirismo e melodia quase musical. O ritmo
oscilante entre aceleração e distensão do poema se assemelha ao processo de
construção do sonho, em seus movimentos sucessivos de regressão e progressão no aparelho psíquico.
A aceleração e distensão também aparecem no poema como recurso
para deslocamento e condensação de elementos do texto de Guimarães. Em
seu texto, Rosa (1988, p.32) conta que o pai encomenda uma canoa feita de uma
madeira boa, rija, que dure “na água por uns vinte ou trinta anos”. Nos versos
iniciais do poema (“oco de pau que diz / eu sou madeira beira/ boa, dá vau, tristriz/ risca certeira”), Caetano estabelece uma aceleração que emparelha “madeira beira”, ocultando não apenas “madeira boa”, como “beira boa” - as duas
duplas que anunciam o sentido de canoa ao “oco de pau”. Isso porque o “oco
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de pau” é “madeira boa” para a canoa, e é a “beira boa” que abre passagem, “dá
vau”, para a canoa fazer na água uma risca suave (tristriz) e precisa (certeira).
Particularmente o neologismo “tristriz” dá um tom de sonho à canção.
Há algo oculto nesse curioso termo que remete à figurabilidade e à condensação características do trabalho do sonho. No primeiro caso, há em “tristriz” a
sonoridade da canoa resvalando na água. A própria musicalidade do significante permite o deslocamento do efeito sonoro de repetição de “tristriz” nos
demais pares: “meio a meio”, “rio ri” e “silencioso sério”, como se o som da palavra fosse, nesses casos, o elo entre significantes distintos, todos eles apontando
para as margens do rio que escondem a “terceira margem” silenciosamente
presente. Dessa forma, reproduz a imagem, narrada no conto, do pai fortalecido na sua ausência, por anos a fio visível (sentado na canoa no rio), porém
inatingível para o filho.
Em relação à condensação, enquanto “tris” condensa “três” e “ris” (de
risca) evocando, portanto, a “risca terceira”, “triz” sugere o limiar de “por um
triz”. Essa condensação expressa o sentimento, presente no conto, do pai que
abandona a família para viver/ morrer na canoa - a vida por um triz, expressa
no risco na água. É também a água que denuncia a ausência/presença do pai. A
água é o lugar de uma fala que cala, e o poema marca isso na oposição (“nosso
pai não diz, diz”) que se anuncia entre as margens do rio (“risca terceira”). Ou
seja, o pai se cala, mas a risca terceira da canoa, sinal do seu abandono, é quem
denuncia (“nosso pai não diz, diz risca terceira”).
Há um mistério na imagem imóvel do pai na canoa. Por trás do silêncio e da seriedade do pai esconde-se um riso vil. Por deslocamento, a imagem
do pai “sério” vista pelo filho, aparece na canção/ sonho como um rio que ri
um riso localizado no seu meio (“meio a meio o rio ri”/ “Por sob a risca da canoa/ o rio vil vi”), ou seja, o riso está naquele que fica no meio do rio, em “sé-rio”, no pai. A condensação que aproxima o riso da seriedade do pai sugere o
efeito sádico exercido por ele sobre a família que sofre as consequências do
abandono vigiado.
Em outro trecho, há a expressão da figurabilidade do sonho - a criação
de uma identidade perceptiva, tão vívida no psiquismo que pode ser sentida:
“ouvi ouvi” a inaudível “voz das águas”. Ainda pela figurabilidade, “ouvi ouvi”
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sugere uma percepção visual e auditiva simultânea: “ouvi ou vi”. A figurabilidade é o mecanismo que permite que a regressão se dê temporalmente (do
presente para o passado, que ao mesmo tempo reconfigura o passado). Ao representar os pensamentos em imagens, o poema/sonho substitui a cena infantil que demanda uma expressão, por uma cena recente, vívida e vivida no
presente do sonho. A cena infantil que não pode ser esquecida e tampouco revivida, pode, no entanto, reaparecer em sonho. É assim que “o que ninguém
jamais olvida” permite pensar no registro inconsciente que nunca se perde, e
que justamente pela figurabilidade pode ser revivido no psiquismo alucinatoriamente (“o rio vil, vi”). No conto, Rosa (1988, p.32) explicita como a imagem
do pai na canoa não poderia jamais ser esquecida: “Não, de nosso pai não se
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era
só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros
sobressaltos.”
Mas é possível pensar, sob a ótica do pai, que outros registros inesquecíveis emergem das águas. Lançar-se ao rio aparece como um deslocamento da
temática da loucura presente no conto. A terceira margem é o invisível, inaudível e desconhecido. O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o
desconhecido dentro de si mesmo, a palavra que falta. Palavra essa que a água
não diz (“água da palavra / água calada pura / água da palavra / água de rosa
dura”), que está presente como ausência (“duro silêncio”), mas que ao mesmo
tempo detém a possibilidade de revelação (“puro silêncio”/ “entre as escuras
duas / margens da palavra / clareira luz madura”). Nesse sentido, observa-se a
sobredeterminação e, mais uma vez, a condensação.
No poema (sonho) e no conto (resto diurno) a água-palavra é o lugar da
ausência do pai, mas também da revelação no sentido de nomeação: “rosa da
palavra”, onde a letra da canção explicita, mais uma vez, a relação fluida entre
significante e significado. A “rosa da palavra” é tanto a flor, símbolo do potencial da fertilidade, local da fecundação para a geração do fruto, quanto o nome
de Rosa, autor da palavra. Assim, rosa condensa a rosa e o Rosa, bem como a
relação poesia e prosa, aqui pensada no diálogo sonho/resto diurno e processo
primário/processo secundário.
A revelação da água/palavra se dá na transformação da mobilidade (a
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– a terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília)
palavra que escapa) em imobilidade (“asa da palavra/asa parada”), seguida da
incandescência e luminosidade (“brasa da palavra/a hora clara”), própria da
revelação. A “casa da palavra” é “onde o silêncio mora”. A revelação se dá, portanto, no não dito, naquilo que subjaz ao ato do pai de não dizer.
“Tora da palavra” remete ao pai, numa referência fálica à função de interdição que aparece às avessas ao “torar” a palavra, destruí-la no silêncio. É a
“proa da palavra”, que toma a frente, que anuncia, penetra e corta a água, mas
o faz para o silêncio, numa denúncia da ausência da interdição. É a ausência
do pai, é a palavra que voa e escapa.
A “tora” fálica “da palavra” (“rio pau enorme nosso pai”) parece colocar no sonho/canção a realização do desejo do filho, por associação ao conto/
resto diurno. Isso porque, no conto há o elemento, menos explícito na canção, do desejo do filho (e da mulher do pai) pelo retorno do pai. Desejo de que
esse pai ausente pudesse estar falicamente potente e cumprindo sua função
de interdição, tão necessária ao filho e à esposa. Contraditória e simultaneamente, a canção/sonho também permite pensar num desejo inconsciente do
filho de que o pai permanecesse longe, na canoa, para que ele próprio pudesse
se tornar potente e fálico no lugar do pai. Numa relação especular, a “risca terceira” é também a “risca certeira”, como se a risca que inscreve a saída do pai
na canoa fosse um tiro certeiro que abre caminho para o terceiro, para o filho.
No conto aparece o conflito e a culpa do filho, possivelmente associados
a tal desejo. Rosa (1988, p.32) fala como a vida da personagem torna-se reclusa e
sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência
do pai: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.”
É também no conto que resgatamos o conflito edípico do desejo de tomar o lugar do pai e do horror quando tal possibilidade se apresenta concretamente. Nas palavras de Rosa (1988, p.32):
E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O
senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo
o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no
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compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água,
proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes,
ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de
tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos,
corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele
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– a terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília)
the word). But it is metaphorically in the relation with the father that the roots
of the associative chain are found. Unconscious desires, inside the river, conduct
the operations and create the texture of the web of associations, sometimes converging sometimes conflicting, denouncing the hidden, disguised presence of the
(il)logic of the unconscious desire.
me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.
Keywords: Psychoanalysis; Poetry; Prose; Dream.
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,
então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem
Referências
também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras:
FREUD, S. (1900). Interpretação dos Sonhos (I). In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, v.4, 776p.
LAPLANCHE, J; PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise – Laplanche e Pontalis. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 552p.
MENESES, A. B. As portas do sonho. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, 176p.
ROSA, J. G. A terceira margem no rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988, p. 77 - 82.
VELOSO, C. A terceira margem no rio. Disponível em: http://letras.terra.com.br/
caetano-veloso/201521/ acesso em 03/03/2010.
e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
A possibilidade de ocupar o lugar do pai, que gera horror ao filho, termina por fazer o filho tomar o lugar do pai, mergulhado dentro do rio, de onde
todo desejo parte e para onde tudo retoma.
Deixo o rio, o mergulho brincadeira de palavras e acordo do poema/
sonho com a incerteza de quem o sonhou. Se não há um sonho no poema de
Caetano, tampouco há um inconsciente sonhador no conto de Rosa, quiçá um
sonho sonhado a quatro, Caetano, Rosa, a personagem e eu... (...) Mas... Afinal,
por que não? Por que mesmo não?
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro
The third shore of the river: a dialogue between
poetry (dream) and prose (vigil)
Abstract: The dialogue between poetry (dream) and prose (vigil), in the homopho-
nous works A Terceira margem do rio, shows the mechanisms of displacement,
condensation and figurability between the words of Caetano Veloso and João
Guimarães Rosa. The idea of a third shore of the river that contains the unspeakable, found in both works, allows one to think the thing-wordthe word in its
materiality that turns looser the relation between referent and meaning (water of
Rua Teodoro Sampaio, 1020, cj 1101
Pinheiros
(11) 8388 9965
[email protected]
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Artigo
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Corpo e Imagem
Leonardo Beni Tkacz
Resumo: O artigo propõe a seguinte discussão: entre corpo e imagem haverá,
sempre, algo inefável, algo indizível. Para discuti-lo, o texto conceitua o que é
corpo e o que é imagem para psicanálise. A partir daí, o eixo teórico percorre
o conceito do estádio do espelho de Jacques Lacan, e os efeitos subjetivos decorrentes do circuito pulsional: olhar e voz.
Palavras-chave: Corpo, Imagem, Psicanálise.
Estava cá com meus botões e me dei conta de que havia proposto um título
para o texto, do qual escrevo dois substantivos ligados por um conectivo. Não
há artigos. Assim ficou: Corpo e Imagem. O dito e o escrito me levaram às seguintes associações: a ausência dos artigos poderia deixar um espaço vazio.
Algo como: ( ) Corpo e ( ) Imagem. Outra ideia surgiu de chofre: entre corpo e
imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. Decido escrever sobre as
duas ideias surgidas do imponderável. Antes disso, penso que se faz necessário percorrer alguns passos.
Freud pretende, quando inventa a psicanálise, no fim do século XIX e
início do XX, criar um novo método para responder aos mistérios da íntima
relação entre corpo e mente; ou, como diziam os antigos filósofos: a relação
entre corpo e alma. Por quase 40 anos, Freud escutou os pacientes e formulou
um campo teórico. O que nos interessa, neste momento, é fazer um recorte a
fim de discutir o que é corpo e o que é imagem para a psicanálise. Para isso,
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Psicanalista, membro da
associação psicanalítica
de Porto Alegre (APPOA),
mestre em psicologia pelo
Instituto de Psicologia da
USP, professor do curso de
Formação em Psicanálise
do Centro de Estudos
Psicanalíticos (C.E.P)
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– leonardo beni tkacz
trago as contribuições de Jacques Lacan para essa discussão.
Corpo, para a psicanálise, não é apenas o corpo com as funções biológicas; senão, também, um corpo que se constitui a partir da experiência do
olhar e a da voz do Outro (ASSOUN, 1999). Explico: Lacan (1949/1998a) influenciado pelas pesquisas sobre os efeitos das observações com bebês entre seis e
18 meses, diante do espelho, elabora uma teoria à qual dá o nome de estádio
do espelho. Em poucas palavras: o bebê tem, como experiência, a antecipação
completa da própria imagem. Por que antecipação? Porque, nesse período de
vida, há incapacidade neurológica para a presciência. E mais: antecipar a imagem permite transpor a condição de um “corpo fragmentado” para um “corpo
unificado”. O espelho lhe dá a ilusão da imagem completa. Algo como um “rejunte” das partes do corpo.
Lacan, então, se interessa pelos efeitos subjetivos decorrentes de uma
experiência especular. Para que esses efeitos possam advir, ele situa o lugar
materno como um lugar central, como condição necessária para tal experiência. Por quê?
Desde o momento da gestação, amamentação e todos os cuidados primários que o rebento recebe fazem do lugar materno o referente para a existência do infans. Um referente que amalgama o corpo biológico e o corpo pulsional.
Quando me refiro ao corpo pulsional, isso quer dizer: algumas zonas do corpo
da criança que vão se constituindo como zonas erógenas, que circunscrevem
algum prazer. Por exemplo: por meio da boca, o bebê suga o seio materno, de
modo que ele obtém, de um lado, a satisfação da necessidade biológica (a fome
pelo leite) e, por outro, o registro psíquico da experiência de satisfação (o prazer). Trata-se de um momento quase poético em que o encontro dos corpos
formaria algo como um “corpo para dois”.
Voltemos ao estádio do espelho. O que Lacan propõe? A imagem que é
refletida no espelho dá ilusão da completude. Isso porque a mãe é colocada, de
forma simbólica, no lugar do espelho. A partir daí, o corpo do bebê é falado, é
olhado e é tocado. Por conseguinte, alguma imagem pode ser refletida, para o
filho. A imagem do corpo que é inscrita pela voz e olhar materno. A inscrição
é a marca do reconhecimento.
Se pudéssemos registrar uma cena que simbolizasse essa inscrição
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artigo
– corpo e imagem
invisível talvez pudesse ser descrita da seguinte forma: quando o bebê, no colo
da mãe, escuta a voz que emana dela, ele faz o movimento de giro, por onde
o olhar se dirige à melodia entoada. No giro, há o encontro dos olhares. E, se
uma mãe pudesse lhe dizer algo, nesse instante, por exemplo: “Que bebê mais
lindo!” A entonação e modulação da voz, e do olhar materno poderiam deixar
uma marca psíquica que se inscreveria, como reconhecimento, na textura da
subjetividade.
Um outro exemplo, quando uma mãe pode dizer ao bebê: “Você tem
olhos que se parecem com os da tia Maria.” Esses olhos não apenas enxergam,
mas trazem uma inscrição psíquica no corpo. Traço de identificação, como outros tantos, todavia um traço primordial que permite a uma criança se constituir em uma cadeia simbólica, cujo efeito a faz pertencer a uma linhagem
familiar. Reconhecendo a mãe, desse modo, o filho se insere numa história.
Corpo tocado pela palavra que vem do Outro. Corpo que vai se constituindo numa história, engendrando alguma imagem. Assim, corpo e linguagem são indissociáveis.
Quais os desdobramentos do estádio do espelho? Aqui há um acréscimo
fundamental na trajetória de um bebê. Por ora, respondo a questão da seguinte
maneira: o olhar e a voz do Outro fazem bordas no corpo. O que isso quer dizer? Voltemos ao exemplo da amamentação. Vimos que a experiência de satisfação engendra uma marca psíquica. Acrescento: só é possível a experiência
de satisfação, quando a zona erógena é contornada por uma “borda” (LACAN,
1962-1963/2005). Resulta daí que, a boca, por exemplo, passa a se constituir não
apenas como lugar por onde entram os alimentos; mais ainda, uma zona erógena contornada por uma borda – efeito da experiência com o Outro. Para que
serve uma borda? Sem dúvida, para circunscrever o prazer; pois, do contrário,
ocorreria certo transbordamento pulsional. E a consequência seria colocar um
corpo em sacrifício. Lembremo-nos dos vários sintomas que alguns sujeitos ficam submetidos: dependência química, bulimia, etc.. Esses sintomas aludem
à ideia de que o sujeito acreditaria em um “a mais” de prazer. O transbordamento pulsional pavimenta o caminho, por onde transita a pulsão de morte.
Na constituição do corpo de um bebê se faz necessário que a mãe, por
meio do olhar e da voz, promova as bordas. Aqui há algo central na questão
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do corpo e imagem. Quando me refiro ao olhar e à voz do Outro (a mãe) que
fazendo as bordas no corpo e que, portanto, têm contornos que possibilitam
algum prazer, destaco o algum prazer. Por quê? Porque o prazer implica em
parcialidades e impõe diques ao prazer absoluto. De acordo com Lacan (19691970/1998, p.46):
Esse saber mostra aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do traço
unário, para começar, ele vem a ser o meio do gozo - do gozo precisamente
na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida.
Os desdobramentos do estádio do espelho remetem, assim, à conquista
do algum prazer na experiência subjetiva. O prazer, quando circunscrito pelas
bordas do corpo, permite ao sujeito olhar-se diante do “espelho” e ver o que é
possível ser visto. Retomo o pensamento que me ocorrera no início do texto:
entre corpo e imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível.
Do lugar do Outro, alguma imagem é refletida. Tal que o que se reflete
deixa o sujeito sem a última resposta esperada: quem ele é e o que o Outro demanda (LACAN, 1998 b). Portanto, a imagem do corpo nunca será simétrica
ao ideal de completude. Haverá sempre uma falta constitutiva. Lacan (19621963/2005, p.49) ensina:
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artigo
– corpo e imagem
Logo, o que o sujeito olha, na imagem, é aquilo que recobre, reveste o
inefável, o indizível. Algo como: o revestimento de uma “mancha” (LACAN,
1964/1985). Essa mancha estará nos “espelhos” para lembrar sobre a impossibilidade de completude entre corpo e imagem.
A indústria cultural e a sociedade de consumo ajudam a revestir a
“mancha”: as roupas, os acessórios, nos vestem para encobrir aquilo que não
se dá para mostrar e que produz um suave engano naquilo que se mostra. Essa
é a ideia que está implícita na impossibilidade de uma imagem completa de si.
Há sempre um resto impossível de ser visto. O que se vê, então? Um invólucro
que recobre o assim chamado objeto (resto, mancha, algo inefável).
Certa vez, numa sessão, uma analisanda diagnosticada pelos médicos com obesidade mórbida, indagou-me: “Quando você me olha, o que vê?”
O enunciado demandava um olhar; que pudesse retornar na forma de uma
imagem. Qual imagem possível a ser refletida? O endereçamento da demanda
colocava-me numa posição, na qual a resposta retornaria como uma “imagem-verdade”. Pareceu-me que a única “imagem-verdade” que poderia dizer,
naquele momento, e com todas as implicações envolvidas na resposta: “Uma
mulher.”
Body and Image
O investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação
Abstract: This paper proposes the following discussion: between body and image
imaginária. É fundamental por ter um limite. Nem todo investimento libidi-
there will always be something ineffable, unspeakable. To address this, the text
conceptualizes body and image to psychoanalysis. There after, the shaft runs
through the theoretical concept of the mirror stage of Jacques Lacan, and the
subjective effects arising from the drive circuit: the look and the voice.
nal passa pela imagem especular. Há um resto. Esse resto, espero ter conseguido fazê-los ter uma ideia de por que ele é o pivô de toda a essa dialética...
em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma
de falta. Em toda a medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de
imagem real, imagem do corpo funcionando na materialidade do sujeito
como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o falo aparece a menos,
como uma lacuna.
Keywords: Body, Image, Psychoanalysis.
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artigo
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Artigo
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Referências
ASSOUN, L.P.. O olhar e a voz: Lições sobre o olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999, 208 p.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Zahar,
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------- (1998a). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p.
-------- (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p.
Leonardo Beni Tkacz
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Revisitando Winnicott em companhia
de Piaget: apontamentos sobre a
noção de imaturidade egóica[1]
Daniel Schor
Resumo: Em suas teorias sobre o desenvolvimento humano, Donald W. Winni-
cott e Jean Piaget assumem a existência de uma indiferenciação primordial
entre as noções de si-mesmo e do mundo externo, a qual seria característica
dos primeiros meses de vida. A partir do reconhecimento do mutualismo com
que se opera a constituição de ambas as noções, o presente artigo propõe o diálogo entre ambas as teorias e busca apontar um dos possíveis planos de articulação entre as mesmas.
Palavras-chave: Desenvolvimento; Piaget; Winnicott; Cognição; Integração.
Em meio ao conjunto dos principais teóricos da psicanálise pós-freudiana,
Donald W. Winnicott foi, certamente, o autor que levou ao extremo o alcance
da noção de desenvolvimento em sua leitura dos fenômenos clínicos. Em sintonia com a tradição freudiana, e com a kleiniana, o psicanalista mantinha o
ponto inicial de suas investigações nas mais incipientes formas de relaciona- Mestre em Psicologia pelo
mento entre a criança e o mundo. No entanto, Winnicott dava um passo além Instituto de Psicologia
1.O presente trabalho é fruto de pesquisa de mestrado realizada com o financiamento do CNPq.
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da USP; Coordenador
Técnico do CAPSi do
município de Osasco
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da tradição que o precedia na busca pela origem das psicopatologias ao afirmar
que sequer a diferenciação entre o bebê e o mundo poderia ser tomada como
um fato óbvio. Tratava-se de uma abordagem cujo foco estava colocado sobre
o estágio anterior àquele em que “o bebê já é capaz de mostrar, através de seu
brincar, que ele compreende que tem um interior, e que as coisas vêm do exterior” (WINNICOTT, 1945/2000, p. 221).
Quando se consideram as contribuições de Winnicott à psicanálise,
deve-se inevitavelmente levar em conta seu ponto de vista a respeito do que
foi por ele denominado como desenvolvimento emocional primitivo. Tal denominação estaria, segundo o autor, referida ao momento anterior à possibilidade de se assumir a existência de relações objetais propriamente ditas, a
partir das quais já seria possível admitir uma verdadeira relação do bebê com
a realidade externa. Nesse estágio primitivo, diz ele,
[...] o objeto comporta-se de acordo com leis mágicas, ou seja, existe quando
desejado, aproxima-se quando nos aproximamos e fere quando o ferimos. Por
fim, desaparece quando não mais o desejamos. (WINNICOTT 1945/2000, p. 228)
Comportando-se “de acordo com leis mágicas”, o lugar do objeto estaria se confundindo com o do próprio sujeito, pois “neste caso o objeto ou ambiente é tão parte do eu quanto são os instintos que o conjuram”, ou seja, “o
indivíduo vive num ambiente que é ele mesmo [...]” (WINNICOTT, 1945/2000,
p. 231). Tal ideia implica que a criança não possuiria ainda uma perspectiva
própria, distinta, um lugar de onde avaliar as coisas.
Cremos que seja nesse sentido que Winnicott afirma que o ego, definido por ele como a parte da personalidade que tende a se integrar em uma
unidade, advém somente “depois que a criança começou a usar o intelecto para
examinar o que os demais veem, sentem ou ouvem e o que pensam quando se
encontram com esse corpo infantil” (WINNICOTT, 1962/1983, p. 55). Ora, “examinar o que os demais veem” implica, mesmo que inicialmente de maneira
muito rudimentar, saber-se como um “eu” que apenas assume um ponto de
vista entre outros.
Seguramente, é possível afirmar que boa parte da teorização
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winnicottiana esteve voltada para o entendimento do que poderia garantir
ao ser humano, seja pelos cuidados maternos, seja pela clínica, a possibilidade
de vir a existir como tal. Entretanto, afirma o autor que, para que venha a existir, um ser humano precisa de
[...] auxílio no sentido de alcançar um status unitário, ou um estado de integração espaço-temporal onde exista um eu (self), que contém tudo, ao invés
de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e abandonados. (WINNICOTT, 1971/1975, p. 98)
Eis aí a descrição de um processo intimamente relacionado, como veremos, àquele que, em 1937, havia sido denominado por Jean Piaget como A
construção do real na criança. Tendo como foco inicial a compreensão das bases
psicológicas do desenvolvimento da racionalidade humana, A construção do
real inaugurava um ponto de vista que jamais seria abandonado ao longo da
obra de Piaget, o qual viria a transformar o campo dos estudos até então produzidos sobre a inteligência humana.
Na referida obra, Piaget (1937/2002, p. 19) se propunha a investigar o que
entendia como sendo uma “elaboração contínua do universo exterior”, elucidando o caminho pelo qual a criança obteria uma compreensão dos objetos
e leis que habitam o meio. Nessa linha, o autor descrevia o que denominava
como uma passagem do caos ao cosmo. Ao nascimento, dizia ele, a criança se
depara com um universo habitado por objetos evanescentes (que desaparecem
quando fora de seu campo perceptivo), com tempo e espaço subjetivamente
sentidos e uma causalidade onipotente porque reduzida ao poder das ações.
Pelo fim do período chamado de sensório-motor, ao contrário, ela já se poderia
conceber dentro de um cosmo, com objetos, tempo, espaço e causalidade objetivados e interligados. Desse modo, ela já se poderia situar como um objeto
entre outros objetos, agente e paciente dos eventos em redor.
A rigor, pode-se dizer que o que Piaget começava a produzir em A construção do real na criança era uma teoria de alcance ainda imprevisível, e a partir
da qual, falar em inteligência, passava a implicar um questionamento acerca da
própria maneira como a criança seria capaz de se situar em um meio ambiente.
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Dito de outro modo, a “inteligência piagetiana” era uma cujo desenvolvimento
estaria diretamente ligado à forma como a criança, ao longo da vida, poderia
conceber a natureza das relações estabelecidas entre ela e o mundo, bem como
sua própria posição em relação a ele. Diz o autor:
Em realidade, por um mecanismo em aparência paradoxal, cujo análogo a respeito do egocentrismo do pensamento da criança mais velha descreveremos,
no momento em que o indivíduo está mais centrado em si-mesmo é que ele menos
se conhece; e, na medida em que ele se descobre, é que se situa em um universo e o
constitui por essa mesma razão. Em outras palavras, egocentrismo significa, ao
mesmo tempo, ausência de consciência de si e ausência de objetividade, enquanto a tomada de posse do objeto como tal caminha lado a lado com a tomada de consciência de si. (PIAGET, 1937/2002 p. 21; grifos nossos)
Bem, mas o que poderia implicar a ideia de que o indivíduo somente se
descobre na medida em que constrói para si próprio a noção de um universo
externo? Precisamente, que, no início de sua existência, o indivíduo não existe
por sua própria consciência, e menos ainda se situa no espaço.
A partir dos estudos cujas conclusões vieram compor A construção do
real na criança, Piaget passaria a defender arduamente a tese de que, no início
da vida, as coisas apenas se ordenariam espacialmente para o sujeito em sua
ação imediata e só se fariam permanentes em função dessa ação. Nessa medida, a criança não seria capaz de dissociar suas ações das próprias coisas. O
processo de assimilação do mundo externo estaria, assim, englobando em um
ato único os dados da percepção exterior e as impressões internas de natureza
afetiva, cinestésica, etc..
Dessa maneira, a existência efetiva do objeto permaneceria subordinada à percepção, o que significa que o universo continuaria sendo, para o sujeito desse estágio, um conjunto de quadros que saem do nada no momento
da ação para a ele retornarem com a extinção desta. Assim, quando a criança
encontra, por exemplo, o bico do seio, o que ela reconhece não é o bico do seio,
mas “uma certa relação entre o objeto e ela própria, um quadro global no qual
intervém todas as sensações ligadas ao ato em curso” (PIAGET, 1937/2002, p. 101).
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Entende-se, portanto, que a criança da referida fase ignora que seu corpo
se encontre no mesmo espaço que um determinado elemento móvel. Os movimentos de um objeto se confundem, em sua consciência, com suas próprias
impressões cinestésicas e proprioceptivas que acompanham seus movimentos oculares, de cabeça ou de tronco.
Segundo Piaget (1937/2002, p. 117), para que a criança reconheça a mudança de posição de determinado objeto, precisa “conceber o universo exterior
como sólido, isto é, composto por objetos substanciais e permanentes, sem o
que o ato de encontrar um quadro deslocado se confundirá, na consciência do
indivíduo, com o ato de recriá-lo”. O universo é, aqui, algo que se desfaz e se
reconstitui sem cessar e, por isso, acompanhar um objeto que se move é confundido com produzi-lo ou fazê-lo durar.
Tratamos, assim, de um momento da vida em que a consciência de
si estaria restrita à sensação de poder recuperar, graças a certos atos globais,
quadros perceptivos exteriores que, no entanto, não possuem uma relação estável entre si, nem com o indivíduo. Dessa forma, diz Piaget (1937/2002, p. 221),
“não há, originalmente, mundo exterior nem mundo interior, mas um universo de
‘apresentações’, cujos quadros estão carregados de qualidades afetivas, cinestésicas
e sensório-motoras, tanto quanto de qualidades físicas” (grifos nossos). Esse universo primitivo constitui, por conseguinte, tanto o “eu” da criança quanto o
objetivo de suas ações.
Tudo isso nos leva a assumir que certas qualidades de experiências
estão diretamente atreladas aos limites de organização do real conferidos por
uma determinada estrutura cognitiva. Ao revelar os contornos de uma determinada estrutura de pensamento ou de apreensão do real, Piaget é, como vimos,
incapaz de escapar à inferência de estados subjetivos aos quais tais estruturas
estão necessariamente associadas.
Contudo, se a tese defendida por Piaget em A construção do real na criança
está correta, deve-se assumir, necessariamente, que os estudos sobre a constituição do indivíduo também terão muito a dizer sobre a evolução de suas
capacidades na assimilação do mundo externo. Eis aí, enfim, o motivo pelo
qual acreditamos que a teoria psicanalítica de Winnicott sobre os processos
de integração e de personalização do desenvolvimento inicial reconhece que
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estes são aspectos inextricavelmente ligados à apreensão que o bebê realiza
do mundo em seu redor.
Segundo Piaget (1937/2002 p. 118),
[...] para uma inteligência que não distingue um mundo exterior formado
por objetos substancias de um mundo interior ligado ao próprio corpo, as
impressões de todo tipo que emanam desse corpo podem ser ligadas aos movimentos percebidos, quaisquer que sejam eles: a partir desse momento, o indivíduo não conseguirá saber quando são as coisas que se deslocam e quando
é apenas ele [...]
Ora, curiosamente, Winnicott (1945/2000, p. 223) ressalta que:
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percebidos objetivamente, ou de objetos ‘não-eu’.
Piaget, por sua vez, entende que até o quinto estágio da inteligência
sensório-motora, a atividade da criança é por esta concebida como um centro
de produção dos movimentos do universo. Essa atividade será, aos poucos, limitada em seu poder por ações independentes do eu (que começará a se distinguir do mundo entre outras coisas por efeito dessa limitação) e submetida a
pressões que emanam do universo externo. Se até então a criança tão somente
comandava a natureza, aos poucos passará a obedecê-la. Nos termos de Winnicott (1963/1983, p. 83), trata-se do momento em que
[...] o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha
indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de simplesmente fi-
A localização do eu no próprio corpo é muitas vezes tida como óbvia, mas uma
car excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar
paciente psicótica em análise deu-se conta de que, na infância, ela achava
a esperar.
que sua irmã gêmea no assento ao lado do carrinho era ela mesma. E até se
surpreendia quando alguém pegava a sua irmã no colo e ela ficava parada
onde estava. Sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não tinha se desenvolvido. (grifos nossos)
Do ponto de vista de Piaget, da mesma maneira que as qualidades percebidas de fora não são ainda concebidas como objetos permanentes externos
situados no espaço, impressões de esforço, expectativa e satisfação não podem
ser ainda atribuídas a um indivíduo substancial, interno, situado na consciência. Temos, portanto, que tanto na perspectiva de Winnicott quanto na de
Piaget, o bebê de poucos meses ainda estaria longe de atribuir suas intenções
e poderes a um eu concebido como diferente do não-eu e oposto ao universo
exterior: ambos ainda formariam um único e mesmo conjunto.
Na visão de Winnicott (1962/1983, p. 56):
Para ambos os autores, em suma, a consolidação do universo consiste
em uma eliminação gradativa do egocentrismo inconsciente inicial e na elaboração de um mundo no seio do qual se situa, finalmente, o próprio indivíduo. Dessa forma, pode-se assumir que, segundo ambas as teorias, a criança se
constitui como uma subjetividade e se reconhece como tal na exata medida em que
concebe a existência de um mundo objetivo, ou vice-versa, sem que se possa atribuir qualquer precedência de um desses polos em relação ao outro. Safra sugere uma ideia semelhante a essa ao afirmar que “no ato de conhecimento, o
sentido do mundo e o sentido de si-mesmo estão necessariamente em questão. A possibilidade de abordar, de recortar o mundo, está intimamente ligada
à minha constituição enquanto ser recortado” (informação verbal)[2].
O mutualismo que acabamos de apontar entre a constituição da noção
de si-mesmo e do mundo externo nos leva, então, a admitir a possibilidade de
um diálogo entre teorias com propósitos bastante distintos, provenientes de
O bebê pode chegar de vez em quando ao princípio de realidade, mas nunca
em toda parte de uma só vez; isto é, o bebê mantém áreas de objetos subjetivos juntamente com outras em que há algum relacionamento com objetos
2.Nota do curso Perspectivas Epistemológicas em Psicologia Clínica e Psicanálise, ministrado no
Instituto de Psicologia da USP no segundo semestre de 2006.
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diferentes tradições do pensamento psicológico. Mais do que isso: pensamos
que, nesse caso, uma teoria passa, necessariamente, a colocar problemas para
a outra, fato que, em tese, as impediria de simplesmente coexistirem pelo argumento de que se referem a “coisas diferentes”.
Se assumimos a existência de uma ligação constitutiva entre os caminhos de objetivação e de subjetivação traçados pelo ser humano desde o nascimento, pode-se questionar até que ponto poderá haver entrecruzamentos entre
esses caminhos, tais como concebidos pelos autores que abordamos. Nosso
intuito na parte seguinte deste artigo será, pois, justamente, o de apontar um
dos planos em que se poderia promover entre tais sistemas teóricos uma parceria no enfrentamento de questões relativas à elucidação do universo infantil.
Cremos que esta proposta se justifica pela possibilidade de que sua realização contribua para ampliar a margem de diálogo entre diferentes teorias
do desenvolvimento, o que parece se tornar cada dia mais necessário, tanto do
ponto de vista clínico quanto educacional, ou mesmo, puramente teórico. Por
uma série de razões que envolvem fatores históricos, institucionais e epistemológicos, os achados de teóricos fundamentais da psicanálise e da psicologia,
de modo geral, foram levados a se organizar dentro de áreas do saber consideradas radicalmente distintas, fazendo com que muitas das intersecções e correlações possíveis entre suas ideias jamais fossem consideradas. A ampliação
desses diálogos se faz ainda mais necessária na medida em que a prática nos
diversos contextos do trabalho com crianças vem aproximando cada vez mais
conhecimentos produzidos por diferentes tradições do pensamento psicológico. A ideia do presente trabalho parte também, portanto, da necessidade iminente de que esse compartilhamento de espaços venha a produzir uma troca
efetiva de saberes, ao invés de admitir mera coexistência ou meras disputas
teórico-institucionais.
A temporalidade na experiência do colapso iminente
[...] ‘medo patológico do colapso é o medo de um colapso que já foi experienciado’. Mas há aí um paradoxo, pois o bebê era muito pequeno – ‘não havia
bebê suficiente’ – ao menos para chamar isto de experiência, uma completa
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experiência. Não havia ego suficiente. (NEWMAN, 1995, p. 61, tradução nossa[3])
Em 1963, Winnicott (1963/1994, p. 70) reuniu em um artigo o que vinha
encontrando em seu trabalho diário, ao longo dos anos, com pessoas que sofriam do que ele chamou de “medo do colapso”. Embora o título do artigo possa
dar a impressão de se referir a algo muito específico, o autor justifica o uso do
termo “colapso” justamente por seu caráter vago, podendo significar uma variedade de coisas, e ressalta que “um estudo desta área limitada conduz a um
reenunciado de diversos outros problemas que nos intrigam quando fracassamos em nos sair tão bem clinicamente quanto queríamos fazê-lo”.
O intuito do artigo, diz Winnicott (1963/1994, p. 74), é chamar a atenção
para a “possibilidade de que o colapso já tenha acontecido, próximo do início
da vida do indivíduo”. Tratar-se-ia de um fato que o paciente carrega consigo,
escondido no inconsciente, mas, neste contexto especial, o inconsciente quer
dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal.
Entretanto, questiona o autor, por que o paciente continua a preocupar-se com
isto que pertence ao passado? Porque a experiência, responde, não pode cair
no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e
atual experiência temporal e do controle onipotente agora. Ou seja, o paciente
tem de continuar procurando este detalhe passado que ainda não foi experienciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro.
Segundo Figueiredo (1998), Medo do Colapso é um dos trabalhos fundamentais que nos obrigam a repensar a noção, ainda muito arraigada em boa
parte do pensamento psicanalítico, de experiência como presentidade, segundo
a qual o que se experimenta é aquilo que se dá em presença. De acordo com
esta noção, o passado seria aquilo que aconteceu, no sentido do que foi presente
outrora, e o futuro é o que acontecerá, no sentido do que virá a ser presente.
Tendo como pressuposto esta concepção, muitos psicanalistas assumem que
3.[…] clinical fear of breakdown is a fear of a breakdown that has already been experienced’. But there is a
paradox because the baby was too small – ‘there was not enough baby’ – fully to call it an experience, a full
experience. There was not enough ego.
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a tarefa da análise seria a de “reorganizar fatos dentro de um todo dotado de
significado”[4] (RICOEUR, 1977, p. 861; tradução nossa), o qual constituiria uma
história contínua e singular, tecendo assim tramas que se estenderiam sem se
romper e garantindo ao presente uma continuidade, durabilidade e extensão.
Ou seja, para muitos, a análise consistiria no tecimento de estruturas narrativas, através das quais se poderia dar ao passado e ao futuro uma certa realidade, na medida em que elas reuniriam, em seu próprio presente, a memória
presente do passado e as expectativas presentes do futuro, “costurando-as ao
presente presente de uma visão imediata”. (FIGUEIREDO, 1998, p. 9)
No entanto, diz Figueiredo, (1998, p. 11)
[...] a presentidade deixa de ser o fundamento da experiência quando o fora
do tempo – o extemporâneo – em todas as suas figuras, é reconhecido como
parte constituinte e indissociável de tudo o que se dá como ‘atualidade vivida’. (grifos nossos)
Esse “extemporâneo” diz respeito aos efeitos devastadores do trauma
que abre feridas incuráveis quando destrói até mesmo os recursos autorregenerativos do psiquismo. Seguindo, neste ponto, o pensamento de Winnicott,
Figueiredo (1988) fala de traumas como não-fatos, não-acontecidos, “acontecimentos inconclusos” após os quais não pode sobrevir uma recomposição do
sentido e da história. Ora, mas para pensar esta experiência que, paradoxalmente, se passa com o indivíduo antes da possibilidade de algo ser experimentado – dele ser o bastante para experimentar algo, a noção corrente de experiência
como presentidade não basta. A questão seria:
Como conceber uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de
fato não aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela
primeira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer? (FIGUEIREDO,
1998, p. 11; grifos nossos)
4. [...] ‘reorganize facts into a meaningful whole which constitutes a single and continuous history […]’
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Segundo Winnicott, embora o colapso temido pelo paciente já tenha
sido por ele experienciado no passado, ele não o foi verdadeiramente, pois, na
época, “não havia bebê suficiente”, ou seja, o ego desse paciente era, e de certa
maneira continuou sendo, incapaz de abranger algo da experiência. Frente a
isso, cabe questionar: quais seriam, então, as condições necessárias para que o
ego fosse capaz de abranger a experiência? O que (ou a falta de que), na constituição e nas características gerais desse ego, faz dele “imaturo demais para
reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal”? Aliás,
o que significa exatamente reunir a experiência “dentro de sua própria e atual
experiência temporal e do controle onipotente”?
Supomos que, se uma experiência é traumática, ou seja, se tem o status
de um “‘acontecimento inconcluso’, após o qual não pode sobrevir uma recomposição do sentido e da história”, isto se deve tanto a vicissitudes do ambiente
quanto às condições do ego que a vivencia. Por exemplo: passar fome ou frio
por mais de uma hora pode ser insuportável ou mesmo enlouquecedor para
um bebê de meses de idade, mas, espera-se, não para uma pessoa de vinte anos.
Se é assim, há que se questionar que diferenças pode haver na constituição
egóica de um e de outro que fazem com que a mesma experiência possa ser
para um enlouquecedora e para o outro um fato corriqueiro.
Aqui é fundamental frisar que estamos tratando de uma condição, e
não de uma garantia. Certamente, devemos levar em conta a possibilidade de
que, por uma infinidade de razões, um adulto também não seja capaz de lidar
de maneira relativamente tranquila com tais situações. Entretanto, diferentemente do adulto, o bebê com certeza não possui os recursos necessários para
organizar sozinho essas experiências, e estará plenamente vulnerável em meio
a elas a menos que outra pessoa esteja presente e possa lhe fornecer de fora as
condições para tanto. Ao contrário do bebê, o adulto provavelmente é alguém
capaz de saber que a dor começa e termina; que a fome não é um estado infinito de angústia generalizada; que a figura cuidadora saiu, mas não deixou de
existir. Para o adulto, é possível compreender que essa figura vai voltar porque ele sabe que, se não a vê no momento presente, é porque ela se encontra
agora num outro lugar. Ou seja, diferentemente do bebê, ele é capaz de conceber
um “outro lugar” fora de seu campo perceptivo.
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Em nosso entendimento, as razões disso não são, absolutamente, óbvias. Frente a isso, nossa aposta é a de que é possível encontrar na obra de Jean
Piaget elementos fundamentais para que ampliemos nossa compreensão sobre os fenômenos descritos por Winnicott em seu referido trabalho e, consequentemente, sobre as formas com que experiências muito precoces podem
ser determinantes da constituição subjetiva.
No último capítulo de A construção do real na criança, intitulado “O
campo temporal”, encontramos a seguinte afirmação de Piaget (1937/1975, p.
299): “O tempo confunde-se, pois, no seu ponto de partida, com as impressões de duração psicológica inerente às atitudes de expectativa, de esforço e
de satisfação, em resumo, à atividade do próprio sujeito.” Segundo o autor, essa
duração será, ao longo do desenvolvimento, relacionada cada vez mais estritamente com os eventos do mundo exterior. Entretanto, no seu ponto inicial, o
tempo ainda não é uma categoria de estruturação objetiva do universo como
tal: a sucessão dos atos do sujeito ainda não se insere como sucessão consumada numa série de acontecimentos recordados, o que permitiria constituir
a história do meio ambiente. Ao invés disso, essa história permanece incoerente
e fragmentada, e seus fragmentos continuam agarrados à ação presente, concebida
esta como realidade única. Mais adiante, o autor afirma, referindo-se ao bebê de
menos de 11/12 meses:
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fenômenos exteriores nem de situar a sua própria duração na das coisas, de avaliar
a extensão dos intervalos; só está em condições de perceber a sucessão elementar das
suas ações já organizadas. (PIAGET, 1937/1975, p. 313, grifos nossos)
Bem, apenas isto já nos traz uma série de elementos cuja consideração
parece crucial na tentativa de responder às questões colocadas por nós anteriormente. Se concordarmos com Piaget quanto ao fato de que tempo e espaço
já estão dados, de certa forma, em toda percepção elementar, o que significa
dizer que toda percepção dura, assim como toda percepção é extensa, já temos
um enorme ganho no entendimento de por que o ego de um bebê de meses
de idade, com uma temporalidade e uma espacialidade organizadas conforme
a descrição de Piaget, poderá ser, dependendo da situação a que for exposto,
imaturo demais para abarcar a experiência.
Agora, tendo em mente tais considerações, propomos atentar para as
seguintes declarações de Winnicott (1971/1975, p. 135):
Talvez valha a pena tentar formular isto de uma forma que dê ao fator temporal seu devido peso. O sentimento da existência da mãe dura x minutos.
Se a mãe fica ausente por mais de x minutos, então sua imagem some, e com
isso a capacidade do bebê de usar o símbolo de união também some. O bebê
está angustiado, mas essa angústia é logo reparada porque a mãe retorna em
[...] sua memória – portanto, a sua percepção do tempo – continua, segundo
x + y minutos. Em x + y minutos o bebê não ficou alterado. Mas em x + y + z
nos parece, inteiramente sujeita aos seus gestos práticos, como quando procu-
minutos o bebê ficou traumatizado. Em x + y + z minutos o retorno da mãe
ramos o nosso relógio no bolso, depois de o termos deposto ainda há instantes
não repara o estado alterado do bebê. Trauma implica que o bebê experien-
sobre a mesa. Com efeito, se a nossa memória só funcionasse como neste úl-
ciou uma quebra na continuidade de vida, de forma que defesas primitivas fi-
timo exemplo, não possuiríamos espaço organizado nem objetos: o universo
caram agora organizadas para defender contra uma repetição da “ansiedade
seria para nós o mesmo que é para a criança da presente fase: um mundo de
impensável” ou contra um retorno do estado confusional agudo que pertence à
reações polarizadas e não de eventos ordenados no espaço e no tempo. (PIAGET,
desintegração da estrutura egóica nascente.
1937/1975, p. 311; grifos nossos)
E conclui:
Devemos assumir que a grande maioria dos bebês nunca experienciou a quantidade x + y + z de privação. Isso significa que a maioria das crianças não car-
[...] a criança da presente fase ainda não é capaz de reconstituir a história dos
rega consigo pela vida o conhecimento da experiência de enlouquecimento.
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artigo – revisitando winnicott em companhia de piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica
Loucura aqui significa simplesmente uma quebra no que quer que possa exis-
que poderia aparecer na mente do indivíduo pertencente a estágios mais de-
tir durante a continuidade pessoal de existência. Depois de se “recuperar” de
senvolvidos se pudesse ocorrer uma rememoração de uma época em que só
x + y + z de privação um bebê tem de começar de novo permanentemente
houvesse o que, de fora, chamaríamos de presente?
privado das raízes que poderiam prover continuidade com iniciação pessoal.
Isso implica a existência de um sistema de memória e de uma organização de memórias. (grifos nossos)
Ora, ao que nos parece, as declarações dos dois autores são bastante
compatíveis. As conclusões piagetianas sobre a forma de organização do universo infantil nos fornecem parâmetros a partir dos quais as afirmações de
Winnicott tornam-se, de nosso ponto de vista, muito mais inteligíveis. Se, para
um bebê de menos de 11 ou 12 meses, a história do meio ambiente permanece
incoerente e fragmentada; se os fragmentos dessa história continuam agarrados à ação presente, concebida esta como realidade única; se ele ainda não é
capaz de reconstituir a história dos fenômenos exteriores nem de avaliar a extensão dos intervalos; se só está em condições de perceber a sucessão elementar das suas ações já organizadas; se, enfim, a sucessão dos eventos em geral
não pode ainda se inserir, para ele, como sucessão consumada numa série de
acontecimentos recordados, abre-se uma cortina para compreendermos por
que é que um bebê exposto a x + y + z de privação “tem de começar de novo
permanentemente privado das raízes que poderiam prover continuidade”, e
por que é que a angústia vivenciada por ele pode ser verdadeiramente impensável, angústia essa que, segundo Winnicott, dará origem às organizações defensivas que chamaremos de psicóticas.
Tendo em mente as considerações de Piaget, podemos agora retornar
à questão de Figueiredo, colocada no início deste item, sobre “Como conceber
uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de fato não
aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela primeira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer?”, e complementá-la com uma outra, trazida por Telles (1997, p. 170):
Segundo Winnicott, a experiência não aconteceu porque o ego do bebê
não foi capaz de reuni-la “dentro de sua própria e atual experiência temporal
e do controle onipotente”. Bem, talvez essa incapacidade refira-se, justamente,
ao fato de que determinados acontecimentos do mundo externo (uma ausência muito prolongada da mãe, experiências de dor, fome, frio, etc.) incidiram
sobre o bebê numa época e em que, por exemplo, a história do meio ambiente
permanecia, para ele, incoerente e fragmentada, de forma que ele não podia
ainda reunir os eventos numa série de acontecimentos recordados. Se uma experiência intensa de angústia e desprazer ocorre num momento da vida em
que as condições cognitivas são de tal ordem, poderíamos dizer que ela é traumática justamente na medida em que extrapola essas condições.
Assim sendo, cremos que “conceber uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de fato não aconteceu” implica, em grande medida, em compreender as condições cognitivas a partir das quais ela foi vivenciada.
Prosseguindo nessa linha de raciocínio, diríamos, muito a grosso modo (pois
esta é uma afirmação que certamente demandaria um detalhamento muito
maior), que fazer com que ela acabe de acontecer ou possa ser vivida pela primeira vez implica em re-significá-la a partir das condições atuais de organização do universo. Isto, no entanto, constitui um novo e imenso problema, o
qual deverá ser abordado em uma nova ocasião.
Revisiting Winnicott in Piaget’s company:
notes on the notion of ego immaturity.
In their theories about human development, Donald W. Winnicott
and Jean Piaget assume the existence of a primordial indifferentiation between
the notions of self and external world, which would be characteristic of the first
Abstract:
Que tipo de memória poderia haver sobre algo que tivesse sido armazenado,
por exemplo, fora de um continuum espaço-temporal (ainda não formado)? O
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artigo
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– daniel schor
months of life. Through the recognition of the mutualism with which both notions
are constituted, the present article proposes a dialog between both theories and
tries to indicate one possible way of connection between them.
Key-words: Development; Piaget; Winnicott; Cognition; Integration.
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______ . Da Pediatria à Psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago,
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Daniel Schor
Rua Ministro Adauto Lúcio Cardoso, 102
Jd. Esmeralda
(11) 3731-2733
[email protected]
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artigo
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Entrevista
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– daniel schor
Bernard Penot
Gabriela Malzyner
Introdução
Bernard Penot é membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris. Foi médico diretor do Hospital dia para adolescentes, CEREP- MONTSOURIS, Paris,
França de 1988 a 2004. Autor de diversos livros publicados no Brasil e na França
como: “A paixão do sujeito Freudiano”, “Figures du Deni”.
O CEREP (Centro de Readaptação Psicoterapêutico) Montsouris é um
hospital dia para adolescentes que tem como principal referencia teórica a psicanálise e o trabalho multidisciplinar. Voltado para o publico de 12 a 20 anos
com problemas psiquiátricos, mas sem comprometimentos intelectuais. O
Hospital busca ser um espaço de convivência terapêutico e de aprendizagem;
visando a integração social e também um projeto terapêutico individual a
cada sujeito.
Em 2009 tive a oportunidade de trabalho por 10 meses no CEREP Montsouris e foi a partir desta experiência que surgiu a curiosidade de entrevistar
Bernard Penot. Há reuniões semanais no CEREP com toda a equipe que atua
junto aos adolescentes, onde são discutidos casos e levantadas questões. Busca-se um espaço de compreensão e reflexão. Em diversos momentos, ao questionar a atuação ou até mesmo a forma como compreendiam o caso, a resposta
que me era dada começava com: Penot afirma que a transferência se dá através
de todos os membros que atuam na equipe, a compreensão de um caso é sempre vista pela junção das visões dos membros da equipe multidisciplinar. Essa
entrevista surge então como possibilidade de dialogar com aquele que fundou
as bases do trabalho que é realizado até hoje neste hospital dia.
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Psicóloga; psicanalista;
membro do Departamento
Formação em Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae;
supervisora da clínica da
Universidade São Marcos;
membro efetivo da CEPPAN.
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entrevista
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– gabriela malzyner
A entrevista foi concedida no consultório particular de Bernard Penot,
à Gabriela Malzyner, em 29 de janeiro de 2010.
Entrevista
Gabriela Malzyner: Na entrevista que o senhor deu em 1999 para a revista
Percurso, o senhor falou da importância da pesquisa na psicanálise, a partir do
seu trabalho no Hospital dia- CEREP Montsouris. O senhor poderia nos falar
um pouco do que considera ser pesquisa em psicanálise?
Bernard Penot: Bem, há várias maneiras, evidentemente, de se fazer pesquisa
em psicanálise. Um psicanalista que trabalha sozinho, classicamente, com o
divã e a poltrona, pode, é claro, ter espírito de pesquisador. Esse foi o caso do
próprio Freud, que nunca fez outra coisa senão o que se chama “cures type”, e,
no entanto, ele foi, certamente, um grande pesquisador. Ele desenvolveu todo
seu dispositivo teórico a partir de sua prática do divã, sempre com essa ideia
de base que é a experiência que deve ditar a teoria (nunca a ideologia). Ele era
então muito experimentalista e pudemos efetivamente vê-lo modificar sua
teoria à medida da experiência que adquiria da cura. Assim, quando ele foi de
encontro à reação terapêutica negativa, por exemplo, depois de 1920, desenvolveu uma teoria que pudesse dar conta disso. É exatamente isso que podemos
chamar de pesquisa, mesmo se, claro, isso não tenha a mesma objetividade
que uma pesquisa no campo da física, por exemplo, ou da química: já que em
psicanálise trabalhamos com material subjetivo e com um instrumento subjetivo, a psique do analista!
Então fica a pergunta: Pode-se fazer pesquisa científica no campo do
subjetivo? Ou seja, tendo a subjetividade como objeto e um instrumento de
observação subjetivo. Veja, eu também faço isso, claro; sou psicanalista com
um divã, no meu consultório. Mas o que falei para Percurso, e sobre o que você
vem me perguntar hoje, diz respeito à pesquisa psicanalítica em grupo – uma
pesquisa conduzida em um quadro institucional. Criamos, efetivamente, no
CEREP Montsouris, um instrumento coletivo, um instrumento institucional, a
saber, este hospital dia que nos permitia conduzir uma pesquisa sobre registros
diferentes daqueles que tratamos em uma cura psicanalítica clássica. Fizemos
uma pesquisa que se poderia dizer nos limites da psicanálise.
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entrevista
– bernard penot
Os pacientes do nosso CEREP eram, principalmente, adolescentes psicóticos. A princípio, antigas psicoses infantis que haviam tido uma boa evolução, mas para quem a adolescência constituiu uma prova importante, de modo
que eles tinham necessidade de serem re-hospitalizados na adolescência; e,
ainda, outras psicoses manifestadas na adolescência sem terem sido detectadas
durante a infância. Nós criamos, então, esse dispositivo de pesquisa marcado
por uma dominante da ótica psicanalítica. Ou seja, ainda que a equipe fosse
completamente multiprofissional, já que comportava psiquiatras, psicólogos,
educadores e, também, artistas, professores. Entretanto, você mesma pode notar, já que chegou a uma síntese, ainda que cada um conserve sua identidade
profissional e seu próprio modo de abordagem ainda assim, fizemos um trabalho psicanalítico em conjunto, porque nos esforçamos em determinar junto
o que em psicanálise chama-se: transferência. É isso. Bem, isso é uma palavra
mestra, evidentemente. E o paradoxo de uma pesquisa desse tipo é que ela tem
um caráter incontestavelmente psicanalítico, ocupando-se em apanhar uma
forma particular de transferência: a transferência que um psicótico pode fazer para várias pessoas.
É claramente um processo psicanalítico já que está centrada no fenômeno absolutamente básico e específico da teoria psicanalítica que se chama
transferência. Lacan tinha uma fórmula que acho bem justa. Ele dizia que o que
especifica o ato do psicanalista é, primeiro e antes de tudo, “suportar a transferência”. Então, é uma fórmula incompleta porque se o fato de se ocupar da
transferência, de suportar a transferência, é, efetivamente, o que caracteriza
a psicanálise em relação a outras formas de psicoterapia (comportamentais,
cognitivas, de suporte do eu...), acredito que essa fórmula é incompleta. E aqui,
evidentemente, nos deparamos com um defeito maior de Lacan, aquilo sobre o
que ele é, em minha opinião, criticável: é que não se trata apenas de suportar a
transferência, nem tampouco de utilizá-la, é preciso também conseguir interpretá-la, elucidá-la, torná-la perceptível para o interessado, ou seja, o paciente.
GM: Pelo paciente?
BP: Pelo paciente! Quer dizer que em uma cura psicanalítica, você não apenas suportar a transferência do seu paciente, você tenta também, suavemente,
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– gabriela malzyner
pouco a pouco, com suas intervenções, suas explicações, suas interpretações,
que o paciente capte, ele mesmo, alguma coisa, que consiga realizar mentalmente o que acontece, de maneira que ele mesmo se aproprie disso. Utilizo
aqui um termo que gosto bastante – ainda que seja considerado estranhamente como não ortodoxo na Associação Psicanalítica Internacional – e que
é o termo de subjetivação. Parece-me que o objetivo central do psicanalista é o
de chegar a que seu paciente consiga subjetivar sua transferência. Ou seja, que
parede se contentar com o agir, indefinidamente, assim em sua vida e também na relação psicanalítica, de se contentar de ali operar uma transferência.
Mas que consiga subjetivá-la no sentido de se apropriar dela, de se apropriar
dela mentalmente, de fazer dela seu negócio e, rapidamente, ser capaz de encontrar um meio para agir sobre isso. Mas isso supõe também se deixar fazer
suficientemente pela transferência. É toda a riqueza ambígua do termo de subjetivação, com sua dupla polaridade: ele comporta a ideia de apropriação, de
acessar certo controle, mas ele implica também a ideia de se reconhecer subjugado/sujeito por alguma coisa que lhe rege – de se deixar, em suma, dominar por seu inconsciente! Há essas duas ideias no termo subjetivação. Assim,
quando alguém está em cura psicanalítica, pode-se dizer que vai aprender a
se deixar levar por seu próprio discurso; e é a regra fundamental da psicanálise, deixar vir às coisas como ela veem, sem procurar muito julgar com seu
eu consciente: o que não vai se dizer, o que é preciso dizer, o que não é preciso
dizer... Trata-se de deixar falar e, pouco a pouco, de se deixar levar, de aceitar a
apropriação de seu discurso sobre si; e por aí, progressivamente, se subjetiva
o inconsciente, se é que posso dizer isso!
Enfim, tudo isso para lhe dizer que a prática do trabalho psicanalítico
em grupo se faz na mesma ótica; quer dizer que em um hospital dia CEREP nos
ocupamos desse fenômeno de transferência que se produz sob nossos olhos e
nossos ouvidos. Vamos perceber que há alguma coisa que o jovem paciente, o
adolescente, vai transferir para a equipe da problemática inicial dele, sua problemática anterior. Então, é isso que vamos nos esforçar para reconhecer em
grupo na equipe, através de nosso trabalho de síntese conjunta cada semana.
Vamos perceber esse fenômeno que toma formas inesperadas e não forçosamente fáceis de suportar (para retomar esse termo de Lacan). Os efeitos disso
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– bernard penot
são, a priori, frequentemente desagradáveis, perturbadores, mais ou menos difíceis de suportar; e há também as transferências que são destruidoras, muito
carregadas de agressividade, por exemplo. Então, nossa experiência particular, no CEREP, começou desde os anos 1970. Nós percebemos que, desde que
um adolescente recentemente admitido começava a investir no hospital dia,
e a aceitar que o hospital dia a equipe, investisse nele, é bem o primeiro sinal
desse investimento era que íamos nos encontrar, nós, as pessoas da equipe encarregadas mais diretamente desse adolescente, em relações muito estranhas,
muito surpreendentes. Digo “nós”, pois o fenômeno pode implicar cada um,
não importa sua profissão – seja professor, terapeuta, artista, ou o que quer que
seja... Digamos que a transferência não escolhe a função!
Então, nos colocando a falar uns com os outros sobre tal adolescente,
percebemos que não falamos mais a mesma linguagem. Face a face com um
colega com quem estamos acostumados a trabalhar e com quem nos entendemos bem, em geral, percebemos, subitamente, que não nos entendemos
mais; ficamos com a impressão que esse outro é idiota ou incompetente; suspeitamos até que ele seja perverso... Já que diz coisas que não correspondem
absolutamente ao que nós mesmos podemos perceber. Então, esse fenômeno,
a princípio, nos surpreende e atormenta. É exatamente ele que elucida a vida
difícil das equipes psiquiátricas: elas não param de se ver nesses fenômenos,
nessa alguma coisa que se transfere para a equipe da dificuldade do paciente.
Isso produz um mundo retalhado, um mundo clivado – à imagem do psiquismo
do paciente. É como uma fórmula desenvolvida, no exterior, da desorganização nele – feita de fragmentos, não apenas contraditórios, como é o caso no
neurótico, mas antes incompatíveis fragmentos que não podem se articular
junto. Pensamos na etimologia da palavra esquizo: isso quer dizer splitting, o
que veicula um esquizofrênico. O adolescente esquizo no interior produz uma
transferência esquizo, clivada; ele pode transferir apenas fragmentos incompatíveis de relação objetal e isso ainda para diferentes pessoas. É por isso que
temos esse efeito primeiro de que as pessoas não possam mais se entender e
iniciem uma relação de rejeição mútua, sobre o mundo “mas o que você está
falando? Você não está bem?”. Isso vai se produzir não apenas entre psicoterapeutas-psicanalistas, mas também entre dois professores do qual um vai achar
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o aluno genial e o outro, um burro...
GM: E como o senhor pode devolver isso ao paciente e também dosar isso?
BP: Da seguinte maneira: nosso primeiro trabalho não é o de devolver isso ao
paciente. Primeiro, temos que acolher isso e fazê-lo trabalhar no dispositivo
de acolhida e observação que fabricamos, ou seja, entre terapeutas. Aqui, digo
terapeutas no sentido amplo; é preciso incluir aqui os educadores, professores, artistas, etc.. Digamos, então, entre cuidadores... É ENTRE esses cuidadores que um trabalho deve, no começo, se fazer, trabalho que secundariamente,
se foi suficientemente efetuado entre os cuidadores, vai beneficiar ao próprio
paciente. Pode parecer um pouco estranho que sem que isso lhe tenha sido
explicado (como se faz em uma cura psicanalítica), nós cheguemos a constatar, após o trabalho de síntese, efeitos sobre o paciente, sobre sua sintomatologia. Não se sabe muito bem por onde passou (através de sinais primários de
cuidadores, sem dúvida), mas já é um resultado. Então, não se trata de começar por devolver ao adolescente o que acontece de estranho entre cuidadores.
Por quê? Bem, lhe responderei que é porque não há ainda assinante para o número, se você entende – ainda não há sujeito podendo receber interpretação.
Se você interpretar prematuramente o paciente psicotizado, você interpreta alguma coisa que ainda não é subjetivável por ele. O que faz justamente
disso um psicótico é que há um defeito de produção de sujeito nele, em certos setores de sua vida psíquica. É preciso que, primeiro, isso seja trabalhado
no que acontece (transferencialmente) de ambiente primário, de matriz subjetivante. Isso remete, certamente, aos progressos que a psicanálise pôde fazer depois de Freud no sentido de desprender as condições pré-individuais
da subjetivação. Eu diria que é preciso que isso seja pré-digerido pelo sujeito
nascente... Lacan tinha, aqui também, um termo que me agrada bastante: ele
dizia que o jovem sujeito humano, o “sujeito novo” como diz Freud em As pulsões e seus destinos, o sujeito novo está banhado em uma espécie de matriz de
discurso familiar (primeiro familiar, mas não somente familiar). Enfim, partindo apenas da família, ela constitui como uma espécie de matriz portadora
– com seu modo de falar, mas não somente com palavras: de interagir com
gestos também, seguramente. O recém-nascido é banhado, no início, em uma
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entrevista
– bernard penot
maneira de significar as coisas que constitui uma espécie de pré-digestão, que
constitui alguma coisa de já proposto ao jovem sujeito para que ele fabrique
sua vida subjetiva a partir daí. Lacan, então, tinha uma bela expressão: você
sabe o que é o prêt-à-porter, quando você compra roupas que já estão prontas,
as chamamos de prêt-à-porter. São roupas que não fizeram apenas para você,
mas que já estão ali e que você experimenta, bom. Ele qualificava o discurso
familiar de pronto a fantasiar para o novo sujeito! Não é ruim como expressão. Já que se vê bem que se esse “discurso” portador inicial comporta falhas,
grandes defeitos de articulação, incompatibilidades, inconsequências, negações, não é (não é à toa que fiz meu primeiro livro sobre a negação), isso que
vai marcar a estrutura do novo sujeito.
Então a negação é quando alguma coisa se recusa a ser articulada de
maneira consequente, que certos dados da vida continuam refratários a tomar
um lugar significativo no discurso. É, em suma, uma recusa de significação, o
que é diferente da repulsa onde é a representação como tal que desaparece; a negação não faz desaparecer a coisa, mas a priva de significação. Quando há essas
coisas em uma família, forçosamente o sujeito novo que nasce nesse contexto
vai ser marcado por isso, vai receber disso a marca – le printing – ser marcado
com isso em sua vida psíquica. Isso começa nas primeiras trocas mãe-filho.
Desse modo, se você constata sinais de autismo inicial em uma criança bem
jovem, ou manifestações somáticas, como um eczema grave ou ainda, uma
anorexia precoce, uma recusa do seio, coisas desse tipo, você vai logo perceber
(sobretudo com a ajuda de uma gravação de vídeo porque ao vivo perdemos,
com frequência, sinais muito discretos, furtivos, coisas bem pequenas feitas
para passar despercebidas) sinais que são enviados ao bebê na interação com o
adulto. E se você colocar o dedo em cima e retomá-lo gentilmente com os pais,
o sintoma pode desaparecer notavelmente depressa – a anorexia, por exemplo.
Percebemos, geralmente, que a mãe de um bebê anoréxico envia sinais muito
discretos do fato que ela não o ama... Que ela não gosta que ele mame em seu
seio... Quando você tem uma mãe um pouco fóbica, por exemplo, isso pode ter
consequências enormes; uma fobia banal, discreta, da parte de uma mãe, é bem
frequente, certamente, mas isso pode ter consequências desproporcionais sobre
o bebê; e isso ainda mais porque a mãe envia esses sinais muito discretos sem
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mesmo perceber e sem que o meio em que vive perceba isso. O importante é
que eles são captados “sem deixar passar nada” pelo bebê e que vai imediatamente adotar uma posição, por exemplo, de rejeição, de recusa, ou de autismo.
Então, o que se encontra em jovens, adolescentes que não estão bem e,
que têm perturbações graves de subjetivação, como acabo de dizer – a psicose
certamente, mas não apenas a psicose, perturbações comportamentais graves também, patologias de comportamentos sem delírio propriamente ditas –
então, alguém que tem perturbações graves da subjetivação, percebe-se acaba
por servir como receptáculo reprodutor, precisamente, para um sistema de
sinalização fragmentado, defeituoso e que envia sinais incompatíveis se neutralizando mutuamente. Mas é preciso antes fazer a experiência disso entre
cuidadores; e não é fácil porque isso supõe que se organize um dispositivo em
que todos os participantes aceitem considerar suas experiências subjetivas
como indicativos do que se trata de trabalhar juntos, a propósito do paciente.
O problema é que as experiências subjetivas são frequentemente difíceis de reconhecer porque elas se revestem de uma tonalidade ruim, repreensível. Meu
amigo psicólogo e colaborador, Guy Scharmann, escreveu um artigo muito
pertinente sobre isso[1]: ele tinha percebido, em relação a um jovem adolescente, que tinha vontade de afogá-lo quando o levava à piscina, que ele tinha
vontade que ele ficasse no fundo! Não é fácil relatar isso em síntese porque se
tem a impressão de estar em falta profissional. Ora, é justamente muito valioso restituir isso para colocar em comum – que haja este dado de um desejo
de morte sobre este jovem, além de outros investimentos positivos. É colocando esses dados que se chega a montar outra vez um pouco de alguma coisa
que se pode jogar na origem para cinzelar esse sujeito, no seio das interações
familiares. Trata-se de fazer desses dados uma retomada – termo felizmente
proposto por esse mesmo colégio.
GM: Nessa mesma entrevista precedente, o senhor mencionou uma preocupação, pintando um panorama pessimista da psicanálise confrontada com
outras terapias existentes. O senhor continua com essas mesmas opiniões? E
1.SCHARMANN, G.. «Narcisse contre narcisse». In: La Psychiatrie de l’Enfant, XXXI, 2, 1988, p.557.
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entrevista
– bernard penot
o que o senhor pensa do futuro da psicanálise?
DP: Ressinto de minha parte apenas um pessimismo funcional. Ou seja, quanto
mais avanço na psicanálise, mais me sinto certo da enorme importância do
ponto de vista psicanalítico, na medida em que ele veio historicamente responder a um número de questões cruciais que não se podia mais deixar de se
fazer sobre o ser humano. Mas o problema é que trabalhar psicanaliticamente
constitui um investimento enorme: é um investimento enorme para um paciente vir durante anos, várias vezes por semana, pagando bem caro... Mas é
também um investimento enorme da parte do psicanalista o de dedicar tanto
tempo a uma só pessoa e de se implicar tanto pessoalmente. Então, quando
se trabalha em uma instituição em grupo, é parecido: o investimento é considerável no plano econômico. Durante essas duas últimas décadas, o poder
público perseguiu literalmente nossas instituições por terem um pequeno efetivo de pacientes e grande efetivo de cuidadores. Exigiam resultados rápidos e
comprovados – verificáveis de modo tangível. Ora, os resultados são com frequência um pouco lentos, com um processo tão complexo, você entende? Então, somos obrigados, sem parar, a dar conta do que fazemos ao poder público
para justificar o dinheiro colocado no hospital dia e isso nos toma grande parte
do nosso tempo terapêutico!
É bem mais fácil aplicar terapias mais simples – cognitivas ou de condicionamento, por exemplo. Efeitos sintomáticos são ali bem rápidos no plano
visível. Enquanto que em psicanálise, visa-se efetuar um trabalho de fundo que
seja durável. Acontece, hoje, você sabe, de receber no meu consultório particular, pacientes na faixa dos 40 anos ou até mais, que são antigos pacientes
do meu hospital dia e que vêm ainda me ver de vez em quando. Posso ver, um
pouco tarde, o caminho que eles fizeram, a partir de seu estado de adolescentes
psicóticos. São agora adultos que têm uma vida pessoal, sem deficiência maior
(sem delirar, por exemplo). Vê-se quanto foi importante para eles o que fizemos
juntos; e, aliás, aos 45 anos me falam ainda do CEREP, porque foi, para eles,
uma experiência matricial. É uma etapa intermediária decisiva na existência
deles, e eles ainda têm como melhores amigos os jovens que conheceram no
hospital dia. Dizemos então que: Fizemos bem de termos feito do modo que
fizemos, mas em termos de rentabilidade, em termo de utilização do dinheiro
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público, é muito difícil de sustentar em relação às terapias mais simples, que
têm resultados mais rápidos no plano sintomático. É nisso que sou um pouco
pessimista e que me questiono: Será que ainda vamos ter a possibilidade de
trabalhar como fazíamos no CEREP Montsouris – de sermos adultos bem qualificados pagos para cuidarmos de tão poucos adolescentes, e tanto tempo...?
É nisso que sou pessimista, porque é um investimento considerável, que evidentemente é essencial se nos colocarmos no ponto de vista do ser humano,
de um ponto de vista humanista. Mas não é o ponto de vista que prevalece
entre aqueles que nos governam hoje, entre nossos gestores de visão míope...
Eles dizem que é muito dinheiro colocado em tão poucas pessoas, que, depois
de tudo, não serão nunca cidadãos de primeira ordem, hiper produtivos... Em
suma, por que pagar tão caro para curar alguns patos mancos, você entende?
Podemos ser pessimistas desse ponto de vista.
GM: É possível pensar em sublimação nos casos de psicose?
BP: Desse ponto de vista, temos muitos exemplos históricos, não? Nós temos
grandes poetas como Antonin Artaud; é um poeta francês que era claramente
psicótico e muito criativo. Você tem também pintores bem conhecidos, como
Vincent Van Gogh, por exemplo... Bom, são personalidades à beira da psicose,
que mostram que a sublimação não é nem um pouco antinômica à psicose.
Aqui, também, é o mérito de Freud dizer que a sublimação é uma solução pulsional; ele a descreve como um destino possível da pulsão (1915). Quer dizer que
no lugar de se concretizar em uma satisfação erótica direta no plano do corpo,
a pulsão vai escolher um objeto não corporal para se satisfazer. É importante
ver bem que essa “solução” sublimatória se instala bem cedo na maior parte
das crianças. Já vemos crianças bem pequenas investirem em objetos como a
pintura, a massa de modelar ou a música... De minha parte, insisti no fato de
que a atividade sublimatória começa no que Winnicott destacou como experiência transicional – com o transitional object dividido entre mãe e bebê. Eles
brincam juntos com um brinquedo, uma coisa qualquer, que seja um pano,
um objeto que faz gling, gling ou qualquer coisa. Ora, já é uma proto-sublimação, no sentido de que não é mais o corpo do bebê ou o corpo da mãe que está
diretamente em questão para a satisfação, mas que essa passa por um objeto
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– bernard penot
inanimado, um objeto transicional. Acho que as sublimações ulteriores se
inspiram todas nessa proto-atividade, e que a aptidão para sublimar depende
da experiência precoce: há bebês que foram colocados na via da sublimação
muito depressa através de interações com sua mãe, que lhe apresentou objetos, que lhes ensinou a tirar satisfações importantes de certos objetos. Aqui
temos alguma coisa que tem chance de durar a vida toda – desembocando na
escritura, na música, etc.. As experiências precoces vão se prolongar na busca
de satisfações sublimatórias ulteriores.
Eu, pessoalmente, mergulhei nisso quando fiz minha tese em medicina,
já faz quase meio século... Meu tema era o futuro das depressões da infância. Fiquei sensibilizado, de fato, ao ver – através da sequência ao longo curso que nós
podíamos fazer em uma estrutura como o Centro Alfred Binet (Paris, XIII) – o
que se tornavam os estados depressivos da primeira infância. É eles podem se
transformar em todo tipo de coisa na adolescência ou na idade adulta – quase
toda a nosografia! Pode, por exemplo, se tornar uma psicose dissociativa, mas
quase nunca uma depressão melancólica (isso destaca o simplismo da visão
míope das classificações com pretensão nosográfica como o DSM IV!). Mas
fui particularmente tocado por uma coisa: descobri o estudo de um inglês, o
Dr. Felix Brown, (1971), que tinha feito um estudo muito importante para saber se a morte precoce de um genitor, ou dos dois genitores, tinha um efeito
sobre o desenvolvimento ulterior – isso poderia favorecer, por exemplo, a depressão melancólica na idade adulta? Ou até, isso favorecia a psicopatia, a delinquência, etc.. Ele realizou, então, um estudo muito longo, em muitos casos,
nas prisões, nos hospitais psiquiátricos, etc.. Ele se interessava, em particular, pelos casos de psicose, maníaco-depressivas para verificar se ali se constatava a perda precoce dos pais. Mas não, isso não dava absolutamente nada
no plano estatístico. Quer dizer que os melancólicos adultos não tinham perdido mais pais que a população média. Parecido para os psicopatas... Ele terminou, entretanto, por encontrar alguma coisa de muito significativo: é que
mais da metade dos grandes escritores da Inglaterra do fim do século XIX e
do início do século XX tinham perdido sua mãe e, com frequência, a mãe e o
pai, muito cedo! Então, isso é muito interessante porque esclarece sua questão
sobre a sublimação. Pode-se deduzir daí que a atividade de escrever constitui
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uma maneira de tratar a perda precoce da mãe, por exemplo. Eu propus considerar que uma sublimação desse tipo prolongava a atividade transicional do
lactente. Penso na história de um escritor conhecido que, sabendo da morte
de sua mãe, trancou-se para escrever ao invés de chorar com seus próximos...
Acredito que até o reprovaram por não ter ido ao enterro! O tempo todo, ao invés de chorar como todo mundo, sua reação foi a de se trancar para escrever,
escrever, escrever, durante todos os dias que seguiram o dia da morte de sua
mãe. Então, minha interpretação disso é a de que esse homem, de fato, se trancou com sua mãe em seu escritório para escrever. Ou seja, o valor transicional
da escritura foi a forma que ele encontrou para se defender de seu luto. Então,
tudo isso para lhe dizer que os psicóticos não são mais entravados que outros
por sublimar; que podemos ter grandes capacidades sublimatórias e sermos
esquizofrênicos. Muitos psicóticos sublimam muito – o problema deles seria
mais o de poder fazer só isso! De serem incapazes de uma vida amorosa.
GM: No seu artigo, “Latence, sublimation, adolescence”, o senhor fala das “soluções pulsionais”; então, como fazer a diferença entre solução pulsional e
sublimação?
BP: Ah, não, eu disse que a sublimação é uma solução pulsional. Freud explica muito claramente. Ele o diz particularmente em As pulsões e seus destinos (Freud, 1915) e também em Narcisismo, uma introdução (Freud, 1914). Você
sabe que Freud construiu, nesses anos, o que chamamos sua metapsicologia.
Então, isso comporta vários artigos importantes. Há A negação, O Inconsciente,
e depois ele aborda as pulsões e o destino das pulsões. Um dos artigos fundadores de sua metapsicologia deveria ser a sublimação e vir bem depois, como
outro “destino” pulsional precisamente. Mas ele não o fez. E, acredito que isso
tenha uma razão bem clara, é que a sublimação é uma satisfação pulsional
sem descarga sexual. Ora, em As pulsões e seus destinos, Freud define o que ele
chama a finalidade da pulsão: a pulsão tem como finalidade se satisfazer, sua
finalidade é a satisfação. Ela não tem como finalidade seu objeto, ela tem como
finalidade obter a satisfação-descarga – não importa o objeto que lhe permita
conseguir isso. Mas a sublimação se caracteriza pelo fato de ser uma satisfação
sem descarga, sem descarga sexual, sem satisfação sexual direta. Está aí o que
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Freud qualifica de “mudança de finalidade”, quer dizer que no lugar de, como
toda pulsão normal, buscar satisfação pela descarga do prazer – a sublimação
é uma satisfação em tensão, um prazer sem descarga. Assim, o escritor escreve,
e ele escreve, escreve – como o pintor pinta e pinta... – e fazendo isso ele não
tem orgasmo, ele persegue uma satisfação em tensão. Logo, é um prazer que
vem contradizer o sacrossanto princípio de prazer que prevalecia ainda para
Freud nessa época, até 1920. Ele ainda estava convencido, em 1915, que toda
a vida psíquica era submetida ao princípio do prazer; ele ainda não tinha começado a teorizar o que vai chamar em 1920, Além do princípio de prazer, com
a consideração determinante da compulsão de repetição como outro princípio
determinante. Vemos, então, que ele não podia teorizar completamente a sublimação já que esta não poderia ser explicada em função do único princípio
de prazer-descarga. Ela realiza uma satisfação em tensão, sem descarga sexual,
e é preciso então estar no Além do princípio de prazer para poder dar conta da
solução sublimatória e Freud só começou a conceber esse Além em 1920 – trazendo o que vamos chamar de a segunda metapsicologia de Freud, com o determinismo de repetição e o Além do princípio do prazer, como organizadores
da vida psíquica, em contradição com o princípio do prazer-descarga. Quando
lhe falei há pouco da transferência psicótica, insisti sobre o fato de que isso, o
mais das vezes, não tinha nada de agradável – não é nem um pouco uma coisa
da qual se possa dar conta em função do princípio do prazer. É desagradável
para todo mundo: para o próprio adolescente, com a impressão que sua vida é
um pesadelo, e é desagradável para as pessoas que recebem essa transferência
e são obrigadas a se arranjarem com ela. Freud tinha começado a perceber isso
bem mais cedo a propósito do paradoxo do pesadelo, precisamente – o que nos
faz produzir pesadelos? Então, para dar conta do pesadelo e da transferência
psicótica, é evidente que é preciso estar além do princípio do prazer; mas para
dar conta da sublimação, também.
A sublimação é uma satisfação além do princípio do prazer, mas é uma
“solução pulsional” de qualquer modo, ou seja, a força pulsional é derivada
de um além do princípio do prazer. Como o escritor do qual eu lhe falava que
foi se trancar sem dormir, sem beber e sem comer, durante cinco dias depois
da morte de sua mãe. Ao fazê-lo, ele está bem no princípio do prazer, ele está
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mobilizado pelo imperativo de sustentar sua relação transicional com sua
mãe. É um imperativo vital, que poderia, no limite, se tornar perigoso para
sua própria vida, para sua auto conservação, levando-o até ao esgotamento.
É um pouco parecido com o caso dos grandes místicos, por exemplo; era preciso que um irmão os forçasse a comer ou a dormir de vez em quando, porque,
senão, eles eram tão tomados pelo seu prazer estático que podiam morrer assim – de fome, de cansaço, de frio... Não nos encontramos aqui no primado do
princípio do prazer, mas em outra coisa que leva a uma manutenção forçosa
de uma relação incondicional ao objeto primeiro da relação transicional. Eu
não sei se estou sendo claro...
GM: Sim, sim, é muito claro. Não..., é apenas uma coisa que eu nunca havia
pensado, é apenas isso.
BP: É mesmo?
GM: Que a sublimação pode ser perigosa.
BP: Sim, a sublimação pode ser perigosa; e acrescentarei alguma coisa que é
muito importante, e que percebemos muito com os psicóticos. É que a sublimação não pode substituir a vida sexual, a vida amorosa. Se você olhar o caso
de uma Virginia Wolf, por exemplo, vemos claramente que ela dá provas de
uma formidável capacidade sublimatória, que é uma escritora muito criativa;
e isso não a impede de se suicidar... Isso faz pensar que a sublimação não permite, não assegura a felicidade. É uma satisfação muito importante, mas se
dispomos apenas dela, podemos morrer por causa dela – não somente como
eu dizia há pouco, por negligência das necessidades vitais, mas por outro definhamento que pode levar ao suicídio. Assim mesmo, muitos escritores se suicidam. É aqui que reconectamos o ponto da psicose. Pois se os psicóticos dão
frequentemente prova de capacidades sublimatórias importantes (eu tive muitas em meu hospital dia), pode ser até mais que na média da população, eles
têm, ao contrário, uma grande dificuldade em realizar uma vida amorosa. É
por isso que, com frequência, os psicóticos se suicidam, como os grandes escritores, como os grandes artistas... e isso sustenta de um lado, acredito o defeito
desesperador na maior parte deles da possibilidade de realização amorosa. É
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– bernard penot
que a satisfação dada pela relação amorosa tem uma virtude vitalizante, que
a sublimação não pode trazer. A realização sublimatória não tem esse caráter
vitalizante – no sentido de fazer bem, de deixar feliz, de dar felicidade, de recarregar as baterias, como se diz. Uma sublimação bem sucedida dá uma satisfação maior, um sentimento de realização entre muitas pessoas, mas com
a falta de outra coisa, e não pode não impedir seus definhamentos. Para mim,
minha atividade psicanalítica, por exemplo, é vital, evidentemente, é muito
preciosa, mas eu me dou o direito de esquecer, de ter uma vida amorosa importante. Estou convencido de que se um psicanalista só fizesse psicanálise e
não tivesse vida amorosa pessoal, seria alguém perigoso – primeiro perigoso
para sua própria saúde, mas não apenas isso.
GM: O senhor acredita que é possível tratar distúrbios graves de subjetivação
fora do hospital dia?
BP: Bem, aqui, vou responder à sua pergunta deformando-a um pouquinho, se
você me permite. Quero dizer que a questão não é a do hospital dia enquanto
tal. A pergunta fundamental é que é difícil tratar um distúrbio grave da subjetivação de outro modo a não ser se colocando em grupo. Então, que isso ocorra
em um hospital dia ou outra coisa, pouco importa. O importante é que os distúrbios graves da subjetivação necessitam de um trabalho em grupo. Por quê?
Tenho um amigo, por exemplo, que se chama Claude Balier e que tem
trabalhado muito a relação terapêutica nas prisões. Para ele, não é o hospital dia é a prisão. Ele trabalhou muito tempo com criminosos perigosos, com
pessoas que tinham cometido graves delitos, grandes erros – sexuais entre
outros... Uma coisa é evidente para ele, é que essas pessoas só podiam realizar
um trabalho psicoterapêutico na prisão! Era necessário para eles o quadro carceral para sustentar o trâmite. Além do mais, ele coloca como princípio para
sua equipe que um terapeuta nunca deve trabalhar totalmente sozinho com
esses pacientes. Pela razão que lhe dizia há pouco: a transferência entre eles
só pode tomar uma forma temível. Quer dizer que os que eles têm a transferir
são coisas terríveis e mal articuladas, de tal modo que uma única pessoa não
vai poder assegurar recepção da transferência apenas para ela. O paciente vai
transferir uma parte de sua experiência tóxica para uma pessoa, e outra parte
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para outra, logo, vai ser necessário trabalhar em grupo.
Em tais casos, um psicanalista sozinho – não apenas na prisão, mas
com um psicótico perigosamente clivado, esquizo – um psicanalista sozinho
com um esquizofrênico, se arrisca muito a ser tomado por uma transferência parcial, parcial e, assim, parcializada, não é? Ele não tem nenhum meio de
perceber isso no começo. Quer dizer que ele vai ter, por exemplo, uma transferência positiva, ou então, ao contrário uma transferência negativa, uma experiência de rejeição, etc.. Mas, o importante é que o que ele pode perceber
ali subjetivamente é apenas um pedaço da transferência. O que é característico, por consequência, quando se trabalha em grupo com distúrbios graves
da subjetivação é que, em um primeiro momento, cada um imagina que sua
experiência subjetiva no contato com o caso (conforme ele começa expô-lo
em síntese) é completamente objetiva e justificada profissionalmente. Se ele
percebe o paciente como genial, ou como um sacana ou um cretino, ou sei lá
o quê, ele acredita que esse olhar é objetivo, profissional. E é apenas perceber
que outro colega, a priori, tão capaz quanto ele, pensa completamente diferente
– que não tem nada de genial, que não é bem um sacana, nem um cretino –
é o fato de ir de encontro a esse desmentido (com surpresa e incompreensão
no início), é ter de vislumbrar que seu ponto de vista não é talvez tão profissional assim, que ele pode estar subjetivamente enganado, um ponto de vista
parcial, você entende?
É por isso que um psicanalista que fica indefinidamente sozinho com
um paciente difícil, com um paciente psicótico, pode durante muito tempo,
ignorar que seu ponto de vista é completamente parcial - um mínimo contato, de troca de ponto de vista, com outro terapeuta, só seria um médico, um
prescripteur, por exemplo, ou outro profissional qualquer... Ele percebe então
quanto os pontos de vista podem divergir sobre o paciente que ele está tratando. Eu lhe dizia a pouco que a primeira reação é habitualmente de tomar o
outro por incompetente, ou pior...
Em todo caso, o analista isolado arrisca-se a ficar indefinidamente com
sua parte clivada da transferência, e de não conseguir suspeitar do resto... Ele
poderá talvez, às vezes, oferecer, entretanto, ajuda ao caso; mas pode também
haver consequências deploráveis em tal desconhecimento de uma parte da
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vida psíquica de alguém. É desse modo que se tem um paciente que, de repente, se suicida, e não se entende por que, alguma coisa assim. Digamos que
trabalhar completamente sozinho, como psicanalista, tratando de distúrbios
graves da subjetivação, é perigoso porque é um dispositivo inconsequente em
relação ao que se sabe hoje da gênese primeira de tais entraves à subjetivação.
É então perigoso trabalhar sozinho com um distúrbio grave da subjetivação, porque sabemos, e para mim isso resulta de trinta e cinco anos de experiência, que esses pacientes permaneceram aquém de uma vida relacional
integrada – tenho vontade de dizer, aquém do limiar antropológico da posição
depressiva, tão genialmente concebida por Melanie Klein na segunda metade
do primeiro ano do desenvolvimento.
GM: Logo, se o senhor tem um paciente com distúrbio grave de subjetivação,
colabora com colegas psiquiatras?
BP: Sim, fazemos isso com frequência quando temos um paciente difícil, necessitando uma ajuda medicamentosa conjunta. Mas isso pode acontecer
também com pacientes psicossomáticos graves; podemos colocar como condição-estrutura da cura psicanalítica que ele veja também, regularmente, um
gastroenterologista, se for uma úlcera de estômago, ou um endocrinologista
se for um hipertireoidismo, ou outra coisa... É muito importante, então, prescrever outro, colocar outro cuidador. O mais difícil é ter um mínimo de articulação com este outro cuidador – como somos regularmente forçados a isso
pela vida em instituição terapêutica. Em todo caso, percebemos, desde então,
que as coisas se tornam menos constrangedoras, mais respiráveis. São verdades também algumas patologias suplementares, ou de comportamento – podemos nos articular com um assistente social, um advogado... Temos vários
casos difíceis, um trabalho psicanalítico é possível com a condição de não se
conceber tudo sozinho – de ser capaz de destotalitarizar o tratamento do caso.
GM: O que o senhor entende como « cura » em psicanálise?
BP: Como cura? Existe o que chamamos cura tipo, aqui, é o divã/poltrona;
então é um dispositivo que foi concebido por Freud para trabalhar com seus
pacientes neuróticos. Mas de modo bem empírico, evidentemente. Freud nos
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diz, aliás, por que ele recorreu a esse processo do divã. Ele diz, a princípio, certamente, que a pessoa deitada vai se encontrar frente as suas próprias representações mentais, bem mais do que em frente às mímicas de seu analista.
Constatamos isso cada vez que passamos alguém da poltrona para o divã: é,
com frequência, uma passagem um pouco sofrida para o paciente que de um
momento para outro se encontra privado da segurança do rosto do analista
– mas ele ouve bem seu analista reagir assim mesmo em suas costas... Mas o
que Freud acrescenta imediatamente, e que, em minha opinião, é decisivo, é
que ele não podia suportar passar oito ou dez horas por dia sendo observado!
Isso também é cansativo. Realmente, eu que tenho uma prática aqui em consultório particular, tenho assim mesmo uma maioria de sessões deitadas no
divã. Mas é verdade que ter dois ou três pacientes em uma situação frente a
frente, em seguida, me cansa mais. Quando o paciente seguinte se deita, posso
relaxar um pouco, deixar à deriva minha escuta; posso até coçar o nariz ou
sei lá, fechar os olhos, etc.. Posso ter outro tipo de atenção e é isso, me parece,
a principal razão do dispositivo divã /poltrona. Mas aqui, me parece que você
me perguntava sobre a cura em geral em psicanálise. E eu direi que é antes de
tudo uma cura conduzida por um psicanalista!
Então, a cura sendo uma coisa designada, precisamente... Queria lhe
falar de maneira um pouco geral do que pode fazer um psicanalista hoje. Começarei pelo fato que Freud gostava muito de se referir à psique de seu tempo.
Ele tem prazer em comparar, em várias passagens de sua obra, o pesquisador
psicanalista ao pesquisador físico. É, para ele, o meio de insistir sobre duas coisas fundamentais. Primeiro, que a psicanálise, apesar de seu objetivo subjetivo,
tem vocação de se situar entre as ciências experimentais, as ciências da natureza. É, talvez, o ponto mais profundo de divergência com Jung: Freud é um
naturalista e repudia qualquer ideia metafísica; ele não tem nenhuma inclinação para as ideias platônicas, fora de todo contexto neuronal ou endócrino.
A física, hoje, mais ainda do que no tempo de Freud, se acostumou à
noção de objetos naturais complexos. Ela entende por isso objetos físicos dos
quais uma única teoria não é suficiente para dar conta e cujas propriedades
não podem ser colocadas em evidência por um único dispositivo experimental
(a luz foi historicamente o primeiro objeto complexo com sua dupla natureza
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– bernard penot
ondulatória e corpuscular que, onde cada elemento necessita de um dispositivo diferente para ser observado). Então, é pouco dizer que a subjetivação é
um objeto complexo!
Mas o ponto importante, que nos diz respeito aqui, e volto à sua pergunta, é que o que observamos depende do dispositivo de observação que utilizamos. Bem, para dizê-lo sumariamente, se utilizarmos um microscópio não
veremos a mesma coisa que se utilizarmos um telescópio, evidentemente. É
claro. Mais um objeto é complexo, mais o dispositivo de observação se verifica decisivo daquilo que observamos. É uma noção evidente hoje para aqueles que buscam observar o trajeto de partículas. Mas é verdade também para
a psicanálise, salvo que aqui, nós nos chocamos com o que Lacan chama “a
imbecilidade realista” (em seu seminário de 1955 sobre A carta roubada, retomado no cabeçalho de seus Escritos). Posso falar da imbecilidade objetivante
dos médicos que conceberam os DSM – com a ilusão míope de pretender isolar dados “simples” e “objetivos” para apreender o psiquismo humano. E isso
desconhecendo completamente, que o dispositivo de observação é constituído
pelo próprio médico, sendo ele decisivo no que elegerá na observação clinica.
Para voltar ao divã, direi que é um dispositivo engenhoso para destacar
a neurose da transferência, e é por isso que Freud fez bem em colocá-lo em uso.
Mas, se você trabalha como lhe dizia há pouco, como psicanalista no hospital
dia, se você trabalha psicanaliticamente em grupo, você vai fabricar um dispositivo que é favorável à observação de registros psicóticos de transferência,
o que não é nem um pouco parecido. Com outros dispositivos, psicanalistas
vão poder observar outras coisas: fazendo psicodrama, por exemplo; ou se trabalhamos em terapias de grupo, podemos ter uma apreensão do imaginário
grupal que escapa se tomamos as pessoas individualmente; e o dispositivo de
terapia familiar leva a enxergar ainda outro ângulo de visão; e a observação
das relações precoces mãe-bebê.
Então, quando você me pergunta sobre a cura, direi que há múltiplos
tipos de cura psicanalítica segundo o dispositivo que utilizamos. E isso me parece uma evolução feliz para melhor responder à diversidade das demandas
terapêuticas de hoje. Falamos cada vez mais em minha sociedade (a Sociedade Psicanalítica de Paris) de trabalho psicanalítico COM a criança, ou COM
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a família, ou COM os doentes psicossomáticos... Quer um psicanalista trabalhe sozinho ou em grupo, quer ele trabalhe em instituição ou em consultório
particular, quer ele trabalhe com vários pacientes, ou em grupo, que ele utilize
o jogo psicodramático ou somente a palavra, todos são dispositivos diferentes,
e são curas. Isso pode ser trabalho psicanalítico. Você entende? De fato, uma
aproximação psicoterapêutica pode ser qualificada de psicanalítica desde que
capture a transferência. Eu lhe dizia ao começar que Lacan, em seu primeiro
seminário L’acte psychanalytique (1968), estima que o que define o ato do psicanalista é antes de tudo “suportar a transferência”. Mas fica, em seguida, a pergunta de como fazê-lo trabalhar, a transferência, como colocá-lo no processo,
deixá-lo subjetivável pelo paciente; e aqui eu divirjo de Lacan. Mas para ter
tempo de desenvolver isso, seria preciso outra entrevista!...
Então, eu lhe dizia, no início, que a noção de subjetivação é, em minha
opinião, um conceito chave para definir um trabalho como psicanalítico. Poderíamos dizer, com efeito, que o objeto da psicanálise é a subjetivação, acredito que poderíamos dizer isso hoje. E como se trata de um objeto complexo,
ele necessita de vários ângulos de aproximação, e também uma teorização
complexa. Vemos isso bem pelo autismo, por exemplo: somos obrigados a ter
recursos em várias teorias simultâneas para falar do autismo; um psicanalista
não deve ter medo de afrontar o fator genético ou outras coisas além da própria psicanálise. Não podemos reduzir o autismo a uma só teoria explicativa
– nem reduzi-lo à genética, nem reduzi-lo a uma casualidade relacional, há várias coisas que intervêm para levar um distúrbio tão massivo da subjetivação.
Acredito que a subjetivação é, sem dúvida, o objeto mais complexo que
existe na natureza, a ponto que ele incita a acreditar que não é um objeto natural? As religiões, em particular, não pararam de opor a vida da alma humana
ao mundo natural. Freud emprega, no entanto, esse termo de Seelenleben que
foi, a princípio, traduzido impropriamente por vida psíquica. Ele nunca pensou
que o sujeito humano era de ordem metafísica, que ele escapava aos determinismos do mundo psíquico. E é, ao contrário, a contribuição decisiva de Freud
sobre o determinismo psíquico – causa maior de escândalo, mais que o sexual.
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entrevista
– bernard penot
Gabriela Malzyner
Rua Veiga Filho, 350
Higienópolis
(11) 3822 4046
[email protected]
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entrevista
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– gabriela malzyner
Resenha
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Um facho de intensa escuridão – o
legado de Wilfred Bion à psicanálise[1]
Autor do livro: James S. Grotstein[2]
Emir Tomazelli
A Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre em associação com a Artmed publicaram, em 2010, um livro de importância estrutural no que tange, hoje em dia,
a uma parte da psicanálise. Livro tremendo; obra tremenda. Texto complexamente esclarecedor e complexamente portador da notícia de que precisamos
estudar mais, muito mais.
É livro para ser lido por qualquer psicanalista, mas é obrigatório para
os que respeitam e apreciam a escola inglesa. É particularmente dirigido para
aqueles psicanalistas que foram capazes de ler, com admiração e encanto, o
pensamento que se desenvolveu a partir de Melanie Klein e que foi incrementado pela genialidade e coragem, sem precedentes, de Wilfred B. Bion.
O livro é obrigatório, não só porque é um livro de uma generosidade
teórica, como poucas vezes eu vi num texto de esclarecimento sobre a obra
de um autor, mas também porque é um tributo de Grotstein, aos psicanalistas que gostam de pensar, mais até que de aprender. É um livro sobre o amor
que um discípulo tem por seu mestre, e do amor que um cliente pode desenvolver por seu psicanalista - que depois virou amigo querido. É um legado de
1.Tradução de Maria Cristina Monteiro / Publicação da Artmed, 2010, Porto Alegre/Rio Grande do Sul
2. Grotstein - Analista didata e supervisor no New Center for Psychoanalysys e no Psychoanalytic
Center of California.
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– ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011
Psicanalista, doutor em
Psicologia, professor do
Departamento Formação
em Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae
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boletim formação em psicanálise
resenha
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– emir tomazelli
Grotstein a Bion[3], transformado em um legado de Bion a nós, que está sublinhado por Grotstein. É uma oferta de iluminação delicada e intimista, onde
uma obra respeitosamente lança uma luz, que lhe é própria, na outra. (Grotstein, talvez, se trate de um autor que pode se atrever a pôr sobre Bion um “facho de escuridão”!)
“Um facho de intensa escuridão” – o nome próprio do livro - já ‘esclarece’,
de um modo sucinto a problemática em que seu autor vai nos colocar, para então nos fazer o convite de mergulhar cientificamente, esteticamente, e misticamente no pensamento ‘metapsicanalítico’ de Wilfred Bion.
Grotstein vai oferecer-nos uma chave para olhar um objeto que se
chama Bion, vai nos ajudar a lê-lo, e a estar com ele. Vai nos ajudar a senti-lo
mais possível e mais palpável. Mais cognoscível!
Como com todos seus comentadores, Bion vai fazer Grotstein passar
por apertos para os quais nem sempre oferece boas soluções, principalmente
quando quer fazer novas teorias a partir do que Bion pensa, ou quando quer
evoluir de Bion e se põe a discutir com Kant.
Mas de uma forma ou de outra, todos aqueles que escreveram sobre
Bion, devem ter tido em mente que Bion é um autor sempre em esquiva de ser
lido; sempre evitando ser compreendido, a cada frase; sempre desconfortável
para quem o lê, e sempre em confronto com quem o lê, a cada frase.
Porém, e ainda além deste confronto que acabo de mencionar, emerge
outro confronto nos trabalhos de Bion: o confronto com a psicanálise. Ele raramente deixa brecha ou dá descanso ao leitor psicanalista interessado; mesmo
que escreva para comunicar-lhe questões cruciais sobre a psicanálise; mesmo
que sua escrita seja para organizar o universo sobre o qual se debruça, e mesmo
que o faça o mais metodicamente possível.
E, por falar em método, sempre gosto de dizer que é sob a regência desse
fio de lucidez metódica, e de observação microscopista da realidade clínica, que
ele trabalha. É esta microscopia - atrás da que Bion se protege ou se esconde
para ‘olhar melhor’. É ela que, ao mesmo tempo, lhe permite a observação do
3. Leia-se José Carlos Calich, que escreve a apresentação à edição brasileira.
boletim formação em psicanálise
resenha
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise
‘óbvio não observado’[4], e, ao observá-lo tenta a construção da intuição de onde
esse presente traumático vai dar. Por esta via faz uma investigação do trauma
em seu futuro.
Usa como recurso a projeção, uma projeção com função investigativa
e intuitiva. É com esta que prevê o evento traumático, sendo trazido do futuro
para o presente, invertendo, assim, a teoria temporal do traumático, e a observação clínica da sessão. Seu procedimento de investigação sempre está vinculado à inversão de perspectivas, e está apoiado na máquina que lança o evento,
desconhecido no presente, no futuro do sujeito. Esta máquina se chama: ‘identificação projetiva’. É dela que ele se aproveita para estudar cada convite transferencial, em cada encontro pessoal com cada cliente seu. É pelo uso interno
e técnico, dessa velha parceira – a “identificação projetiva” – com que ele irá
confeccionar a bússola que usará para orientá-lo na sessão com cada cliente.
A esta bússola, ele dará o nome de Grade.
É desse modo que Bion transforma a sessão num mapa, e este mapa
pode - logo que captado no agora do encontro - antecipar um desastre, uma
mudança catastrófica ou uma germinação fecunda e criativa. Isto é: é a partir
do presente da sessão, que se oferece como o fenômeno de um “noumenon” que é o próprio encontro humano - que Bion interpreta. Ou seja, é o presente
da sessão, que ele sustenta como homem, o que indica o que está “pedindo”
aquele que “pede” ajuda. Enquanto ele escuta as previsões do futuro, ele faz
conjecturas simples que tentam pensar onde algo vai dar, ou onde um sujeito,
num estado de emoção como aquele que vive no momento do encontro com
ele, vai acabar parando.
Bion ensina desta forma, como, a cada instante, este “noumenon” que
aguarda e anseia por nova fenomenização, anseia muito por vir à luz e tomar
uma forma. É assim que ele vai trabalhar com a mente do outro, uma vez que
procura, enquanto o escuta fazê-lo sonhar o sonho necessário, isto é, enquanto
4.Esta é a outra definição que Bion dá para o termo freudiano: ‘ inconsciente’. Ou seja, o que está inconsciente pode singelamente ser apenas da ordem do óbvio não observado, e não do esquecido,
nem do reprimido. O óbvio, tanto quanto a “carta roubada”, estão escondidos porque estão à luz e
disponíveis ao olhar, mas não conscientes nem disponíveis para a observação, menos ainda para
a abstração, ou para o conhecimento.
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escuta o cliente ele dá abrigo a pensamentos que precisam de dois pensadores
para serem pensados. Ou seja, para Bion a psicanálise é o processo de sonhar
a dois. E este sonhar é o sonhar de um sonho que só pode ser sonhado a dois,
porque uma parte de nossa mente - sempre desconhecida - nos aguarda no futuro dentro do outro. Ou seja, Bion fala do trabalho como a oferta de um lugar,
e de uma crença que é possível depender de outros humanos que permitam
que passemos por dentro deles, e com isto encontraremos o significado que
ainda não tínhamos em nós, nos momentos que vivemos antes de passar por
dentro de alguém que nos sofreu de verdade. É nisto que ele se apóia - e se aprimora - para pensar o que ele experimenta no encontro com seus analisandos.
É sob esse mesmo comando técnico, o de investigar a dispersão emocional que passa dentro de alguém em seu próprio estado emocional pessoal sem usar o discurso, nem o dispositivo psicanalítico como via de descarga da
tensão criada pelo ato de conhecer - que Grotstein vai procurar trabalhar. Vai
espelhar-se no mestre e auto-impor-se o “não saber” para, sempre em dúvida,
manter-se aberto para o significado que brota do inesperado, quando ouvimos
o mundo com ouvidos de psicanálise.
Esta era uma disciplina que Bion se auto-impunha. E a mantinha ativa
até poder encontrar algo, ou algum sentido, que unificasse a dispersão. Daí então, era só ajustar as distâncias e - pronto! - dar o “pulo do gato”.
É com esta concentração interna com que Grotstein vai trabalhar a
maior parte do tempo. Xeretando em tudo, pegando cada pedacinho, cada
lembrança, cada leitura, cada pesquisa, cada linha escrita e esmiuçando, como
quem digerisse material mais duro, nos devolvendo letras e sentenças mais
palatáveis, e mais possíveis de serem compreendidas, para nós.
Buscar articulações e conexões associativas é o que Grotstein vai, paciente e inteligentemente, procurar fazer, e com isto vai re-descrever seu autor de escolha e seu ex-analista. Sob esta ótica vai (re) lê-lo, (re) pensá-lo, (re)
explorá-lo, (re) desnudá-lo (algumas vezes), perder-se nele mais e mais vezes...
porém, no entanto, todavia, contudo: nunca vai explicá-lo. Quer dizer, vez por
outra vai explicá-lo, mas sem simplificá-lo.
Grotstein respeita Bion, além de admirá-lo - mesmo porque não há
outro jeito quando alguém se interessa por Bion -, e ressalta que o legado que
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– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise
ele deixou foi esse de ampliar horizontes, mas nunca foi esclarecer, menos
ainda, explicar. Como nos diria Blanchot: “a resposta é a doença da pergunta.”
E Bion cria nisto.
Lendo Grotstein, se pode perceber que a função de Bion no interior da
instituição psicanalítica - o establishment, como ele a chamava - não foi observar que seria necessário um retorno a Freud, menos ainda um retorno a Klein,
não tinha a intenção de retornar a ninguém. Pegou de cada um o que lhe interessava para pensar e usar, e foi em frente. E isto aconteceu de tal forma que
ele acabou por se pôr à frente de seu tempo. Neste sentido não é inadequado
pensar que, na psicanálise, Bion poderia ter o mesmo valor que tiveram James Joyce ou Samuel Beckett na literatura inglesa, quanto Guimarães Rosa,
na literatura brasileira; e todos eles na literatura mundial.
Bion não quis, ou melhor, a ele não coube fazer uma escola, onde só
estariam os ‘puros’, menos ainda escrever para dirigir-se ao mundo psicanalítico com vistas a conquistar a Europa, a África, a Ásia, a Oceania, como era o
olhar de Napoleão Bonaparte, sobre o mundo e sobre o outro. Não se encontra
em Bion, o papel de Imperador, mas o de soldado condecorado na primeira
guerra (por prestação de serviços ao povo da Inglaterra, e por ato de bravura
em campo de batalha) e como médico, na segunda. Isto se encontra. Bion o
soldado, Bion o lutador inabalável.
Para quem não sabe - sempre em luta, sempre dando combate -, Bion
esteve nas duas grandes guerras, fazendo jus a sua origem huguenote e aos ancestrais familiares, que lutaram na Índia e na África. O instinto napoleônico:
apossamento e conquista - aniquilamento do velho e implantação da nova
cultura e linguagem - não será o gesto bioniano por excelência. Bion nunca
se dirigiu aos psicanalistas para prescrever-lhes o caminho, nem para alertar-lhes o desvio do mestre, indicando com o dedo todos os que eram impuros, e
onde estavam as letras “verdadeiras”, nem como se escreveriam as “verdadeiras” palavras do psicanalisar.
Bion, essencialmente foi um homem despojado e direto. Foi ele mesmo.
Um homem fechado, contido, auto-determinado e profundo, completamente
incapaz de esconder seus defeitos ou suas falhas, esbarrando em uma franqueza, que poderíamos chamar, por vezes, de psicótica.
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Certamente, não foi um galã e menos ainda um conquistador. Muito
angustiado para relacionar-se com as mulheres, na verdade, foi salvo pelas
duas que o quiseram, lhe deram filhos e o admiraram. Fora disto, se restringiu a ser um militar, formado em literatura, médico, psicanalista e pensador.
Mas seja qual for o lugar pessoal de Bion na história da psicanálise, o
estudo de Grotstein, procura ir onde Bion esteve. E por isto devemos reconhecer que Grotstein fez um trabalho de fôlego. Releu cada livro lido por Bion, se
aprofundou nos campos do saber e da literatura por onde Bion passeou longamente, após as áridas sessões de psicanálise que oferecia a seus clientes; analisou-se com ele, avançou esse relacionamento para uma amizade, se embrenhou
em mundos íntimos e em mundos onde o cógito mais e mais se aprofunda no
ignorado. Mergulhou na epistemologia, geometria, matemática, medicina, filosofia da ciência, artes, estética, mística, o místico, e por fim psicanálise. Leu
tudo ou quase tudo que Bion leu. Tentou compreender as coisas pelo direito e
pelas avessas. Trabalhou e trabalhou.
Tanto Bion como Grotstein, falando sobre Bion, reafirmam que, uma
parte importante do processo de conhecer é ser capaz de desconhecer. Isto é,
conhecer é ser capaz que reconhecer que é impossível e desnecessário que alguém saiba de tudo, e que é necessário ignorar para poder aprender. Donde
se conclui que ensinar é desnecessário. Porque, ou não aprendemos nada que
experimentamos ou, se experimentamos alguma coisa, ninguém precisa nos
ensinar, porque, ao experimentar, já aprendemos.
Talvez por estas questões levantadas acima, é que possamos pensar que
escurecer o olhar é uma das condições necessárias da observação. A não visão
é condição da observação, mesmo porque o óbvio não observado é tão inconsciente quanto algo que foi banido da consciência pela força da repressão. Nem
sempre ver, aquilo que está presente, é possível, mas, talvez, seja possível ver
o que não se oferece à visão na visão. É por isto que inconsciente, como já insistimos tantas vezes, pode ser apenas o óbvio não observado, e Bion era fascinado por esse jogo binocular, de desfocar a figura para ver o que está no fundo,
retorcendo a perspectiva do próprio olhar.
Não ver para ver melhor. Ouvir o ricochetear da imagem no espaço,
que se deriva do rebatimento das ondas infra-sonoras emitidas por um órgão
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– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise
que enxerga, mas não é olho, percebe, mas não é órgão.
Ou seja, para quem vai estudar Bion, melhor será se esse que o estuda
puder mover-se bem na escuridão, sem se aborrecer com a aridez do caminho,
nem com a demora na intelecção.
Os olhos noturnos de Bion nos remetem aos predadores que caçam
no escuro, entre eles, e excepcionalmente metafórico, a coruja é um desses espécimes. O outro é o morcego. Um deles vê no escuro, a coruja; o outro, mais
complexo, “ouve” a visão, ou melhor, capta o escuro por um tipo de audição
que “ouve” o ricochetear da onda do sonar no objeto onde ela toca, e assim o
conhece. É o olho infra-sonoro.
Para nós, mais comuns, Grotstein será luz para nossos olhos cansados
de ler sem entender o que Bion escreve. Grotstein será o nosso Virgílio, é ele
quem nos guiará na escuridão que é ler Bion. É ele que nos auxiliará nesse esforço de ver no escuro. É assim que ele vai tentar “esclarecê-lo” ao longo do livro. Mesmo assim Bion não se fará visível. Mas, de qualquer forma, visível ou
não, a simples leitura de Grotstein já melhora consideravelmente as condição
de um possível entendimento da obra bioniana.
No entanto, mesmo com Grotstein, o que aprendemos ao final da leitura é que quanto mais entramos na obra bioniana, maior a dificuldade de ver,
mais complexa e infinita fica a mente descrita pela veia literária de seu autor.
O purismo determinista de Freud perde todo espaço na teoria de Bion,
apesar de ser um componente essencial dela. Bion é um fenomenólogo, Bion
é um místico. Freud um cientista positivista, um determinista[5]. Este estudou
as causas da doença mental. O outro, Bion, foi por outro caminho, estudou a
construção do conhecimento, e os programas de fracasso da auto-observação
que são superados por programas de auto-ódio e auto-amor, bloqueando e travando a máquina de autoconhecimento.
Com estes novos instrumentos clínico-teóricos Bion desenvolveu uma
técnica de observação que se restringia propositalmente ao que estava ali a sua
frente. Nunca saiu deste ponto. Estudou o agora, nunca o passado. Estudou o
momento e, no momento, quais as possíveis inferências hipotéticas que um
5.Neville Symington, Joan Symington, O Pensamento Clínico do Wilfred Bion.
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‘observador neutro’ poderia realizar para descobrir o futuro daquele evento.
Bion resumiu-se ao observável, ao real da sessão, por isto se interessa
pouco por interpretações de movimento rígido, vai preferir as projetivas, porque estas sim facilitam o estudo dos sistemas mentais, que estão em atividade e
navegam em direção ao desconhecido, em cada momento da sessão. A “Grade”
é valiosa neste momento; é a partir dela que ele “vê” o cliente.
Já que mencionei a grade, gostaria de falar uma última palavra sobre
o livro de Grotstein.
Grotstein esclarece a “Grade”. E isto nos alegra. E isto nos faz ver que é
com ela que Bion pensa. É ela que permite a um observador, que suporta a tensão da não resposta, a aguardar o momento até que uma aglutinação se forme e
faça algum sentido, e então nesse momento se possa fazer a intervenção analítica. É sobre esta aglutinação que Bion procura informar ao cliente. É isto que lhe
autoriza a falar sobre o que cada um está fazendo quando se encontra com ele.
Para o estudioso a “Grade” deve ser tomada como a chave do psíquico,
é ela que permite que haja a mente. A “Grade” é a mãe. A “Grade” permite que
possamos compreender onde começa e até onde vai o psíquico, é ela que nos
dá acesso a realidade, e é ela que define que Realidade Absoluta e Verdade Última são questões que escapam aos estudiosos, e por isto estão fora do perímetro e do alcance da “Grade”.
Bem... e assim vai...
E assim, nós, por aqui ficamos...
Ficamos, e mais uma vez afirmamos a importância de Grotstein, e de
sua leitura ser uma leitura sumamente importante. Se puderem leiam, é um
belíssimo livro. Aproveitem!
É isso aí.
Emir Tomazelli
Rua João Alexandre Rochadel, 62
Brooklin Paulista
[email protected]
Tradução
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A transgressão de Raskolnikov e
a confusão entre destrutividade
e criatividade
Richard J. Rosenthal
Tradução: Julia Paladino
Revisão: Marly T. M. Goulart
Agradecimento à Maria Lucia Mello, que contribuiu para que a tradução e revisão
deste texto fosse possível.
Introdução
A obra Do I Dare Disturbe the Universe? A memorial to Wilfred R. Bion foi editada
por Grotstein como uma celebração aos oitenta anos do importante psicanalista inglês[1]. O livro foi dividido em três partes: contribuições clínicas, contribuições teóricas e contribuições sobre grupos. O presente artigo, inserido
nas contribuições clínicas, é um estudo feito por Rosental que se utilizou de
conceitos bionianos para uma leitura rica e pormenorizada dos aspectos de
funcionamento mental de Raskolnikov, personagem central da obra literária
universal Crime e Castigo de F. Dostoievvski. A decisão de traduzi-lo foi tomada
por um grupo de membros do Departamento Formação em Psicanálise que
se empenha em estudar e difundir as ideias de Bion.
1. Bion e sua esposa cooperaram na preparação da obra, embora Bion tenha falecido antes da sua
publicação.
boletim formação em psicanálise
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Psicóloga clínica, membro
do Departamento Formação
em Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae
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tradução
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– tradução: julia paladino
Tradução
Crime e Castigo é tida como uma das grandes novelas psicológicas da literatura
mundial. Muito frequentemente, Raskolnikov é visto como um homem dirigido por seu sentimento de culpa, pelo medo de ser preso, de confessar e de ser
punido. Eu não sinto, no entanto, que esse aspecto seja realçado no texto, pelo
menos não da forma que é usualmente entendido. Nem concordo com a interpretação edípica da novela que tem sido defendida por uma série de escritores com mentalidade psicanalítica. O primeiro desses é o próprio Freud (1928),
embora a única novela de Dostoievski a que ele se referiu especialmente foi a
última, os Irmãos Karamazov. Joseph Frank (1975) escreveu um artigo muito
reconhecido que revê os erros factuais encontrados em Dostoievski e o parricídio. A acepção de Frank (1976, p. 25 a 28) é que um número de lendas sobre
Dostoievski foi originado ou tem sido perpetuado pelo ensaio de Freud. Oferecendo minha reinterpretação desse grande romance eu espero não somente
orientar a mim mesmo a elementos formais dentro da estrutura narrativa,
mas sugerir como as confusões encontradas na leitura de Crime e Castigo refletem um de seus temas principais.
O romance parece ter provocado reações mais intensas, comentários
mais críticos, na verdade diferenças básicas de interpretação, do que qualquer
outra obra de Dostoievski. O epílogo do romance continua sendo uma das áreas
mais controversas da crítica a Dostoievski, especialmente a questão da regeneração moral de Raskolnikov, de fato, uma boa parte dessas diferenças parece
ser fruto da posição moral dos críticos com relação ao romance.
Philip Rahv (1960) sugeriu que vejamos Crime e Castigo como uma história de detetives, um tipo especial de história, na qual a identidade do assassino
é conhecida desde o começo e o problema para o leitor é desvendar o que motivou Raskolnikov. Rahv vê todo o romance convergindo para a solução desse
mistério, e ele leva sua ideia mais adiante sugerindo que o criminoso é em si
um detetive tentando penetrar no mistério da sua própria motivação. “Nunca
está completamente seguro do que exatamente o induziu a cometer o assassinato, ele deve espionar a si mesmo continuamente num esforço desesperado
para penetrar na sua própria psicologia e alcançar o autoconhecimento que
precisa se for assumir a responsabilidade pelo seu ato absurdo e horrendo.”
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
Alguns outros críticos também enfatizaram essa progressão dual: a
busca pelo autoconhecimento e o movimento na direção da responsabilidade
moral. Raskolnikov é usualmente retratado na crítica literária como um intelectual, um tipo de “homem pensante”. Richard Peace (1971) o resume como
“acima de tudo, um homem cujas ações são baseadas na razão fria e calculista”.
George Lukács (1943) descreve como Raskolnikov comete o assassinato com o
intuito de “se conhecer”, o crime é entendido como um teste de sua capacidade
moral. Edward Wasiolek (1959) também interpreta o romance como uma progressão moral, levando a uma redenção espiritual. “Nós vemos que Raskolnikov
vai do orgulho à humildade, do ódio ao amor, da razão à fé e da separação de
seus companheiros a comunicação com eles.” Ele vê a estrutura do romance
construída em volta de duas cenas principais: o assassinato e a confissão. “A
confissão se torna o ponto central do teste de renascimento de Raskolnikov.”
Isto chegou perto, aparentemente, da intenção inicial de Dostoievski.
Nos Cadernos para Crime e Castigo (1931) onde ele descreve Raskolnikov: “N.B.
O seu desenvolvimento moral começa no próprio crime, a possibilidade de que
tais questões surgissem não teria existido previamente. No último capítulo,
na prisão, ele diz que sem o crime ele não teria alcançado tais questionamentos e nem experimentado tais desejos, sentimentos, necessidades, esforços e
desenvolvimento.”
Nada disso, no entanto, como logo ficara aparente, surge no romance.
A cada novo passo, vemos Raskolnikov se iludindo com o fim de evitar responsabilidades. Ele está tentando não pensar, não sentir e nem se confrontar
com a realidade. O romance é experimentado nos termos desse ritmo de fuga
e confrontação forçada. Quando ele vai para a Sibéria, ele não está mudado, não
sente arrependimento, continua sendo tão arrogante e irritado como quando
ele cometeu o assassinato. Parece que ele não aprendeu nada sobre si mesmo
ou sobre suas motivações para o crime. O porquê ele confessou é um mistério
tão grande quanto à descoberta do motivo do próprio crime.
Tentarei responder a essas questões, e nesse processo espero que surjam outras, através da aproximação ao romance pela perspectiva psicanalítica, tão ricamente realçada pela contribuição de Melanie Klein e Wilfred
Bion. Isso irá nos permitir entender a raiva e destrutividade que Raskolnikov
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– tradução: julia paladino
sente em relação à mãe nutridora, e o ódio de seu próprio ódio que precisa de
suas racionalizações, sua necessidade de ver mãe e irmã – na verdade, todas
as mulheres com as quais ele está em dívida – como roubando-o e, portanto,
merecendo sua hostilidade.
Splitting, operação defensiva essencial que é a base para todas as outras,
dá o nome de Raskolnikov (raskol = separar). Splitting excessivo é usado junto
com idealização e desvalorização, negação, onipotência e projeção primitiva
(identificação projetiva) com o objetivo de evitar sentimentos de inveja e voracidade, abandono e dependência e, sobretudo, culpa, relacionada à sua mãe.
O assassinato psíquico, tentativa de aniquilar os sentimentos e aspectos dolorosos inaceitáveis do self, é a base para o assassinato da velha agiota
e sua irmã. Raskolnikov acredita que a frustração e a dor podem ser evitadas
através de ataques destrutivos ao aparato mental capaz de percebê-los. Os pensamentos são tratados como coisas indesejáveis, aptas apenas para a expulsão. Tal identificação projetiva patológica resulta em violenta fragmentação e
na desintegração da personalidade, as partículas evacuadas são experimentadas como tendo vida própria, ameaçando-o a partir do exterior (Bion, 1957,
1958a, 1962a, 1962b).
Crime e Castigo é mais do que uma descrição das mudanças no estado
mental deste indivíduo. Sem usar a narração em primeira pessoa, Dostoievski
consegue colocar o leitor parcialmente dentro da consciência de Raskolnikov.
A relação entre mecanismos de projeção primitivos e a estrutura de narração
é abordada em um estudo anterior (Rosenthal, 1971). Os críticos podem discordar do significado de Svidrigailov ou Sonia, porém eles geralmente reconhecem que estes dois personagens pretendem representar dois aspectos da
personalidade de Raskolnikov. Existe uma sensação de que Crime e Castigo se
assemelha a um sonho, um pesadelo, na verdade, no qual todos os personagens são o sonhador e toda a ação, os cenários inclusive, são dramatizações de
vários estados mentais de uma única consciência. Entrando naquele mundo
e se tornando o sonhador, o leitor compartilha sua experiência, excitações e
desconforto e, provavelmente, confusão também.
Antes de começar uma análise textual do romance, gostaria de dar mais
uma olhada para a aquisição de conhecimento associada à moralidade, mas
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
vista do ângulo do vinculo menos K (-K) [Bion, 1962b, p. 95-99]. O conhecimento
pode ser usado equivocadamente no sentido de evitar a experiência dolorosa,
a possessão de conhecimento poderá ser usada para afirmar a superioridade
de alguém. O vinculo –K eleva a moralidade sobre uma busca científica pela
verdade, mas o que está realmente sendo afirmado é “superioridade da moral
sem nenhuma moral”. Um objeto superior, que Bion chama um “super” ego,
afirma sua superioridade encontrando faltas em tudo. Logo as relações são desprovidas de vitalidade e significado, tornando-se mutuamente prejudiciais e
destrutivas. O vínculo pode ser chamado de parasitário, um termo que talvez
melhor do que qualquer outro sintetiza a visão das relações humanas apresentadas no romance de Dostoievski.
A principal característica deste “super” ego é seu ódio por qualquer coisa
que ele não conhece, e seu ódio por qualquer coisa nova, inclusive qualquer
novo desenvolvimento dentro de sua própria personalidade, que ele vê como
um rival a ser destruído. O infanticídio é um tema que percorre este e a maioria dos outros trabalhos de Dostoievski. O ódio é direcionado também contra
o próprio ato do nascimento, visto às vezes como uma ejeção hostil que leva à
desintegração ou fragmentação, e outras vezes é culpado pelo sentimento de
inferioridade e desamparo e pela consciência persecutória de perceber quão
pouco se sabe. Crime e Castigo é precisamente sobre esse tipo de destrutividade, é também um romance sobre criatividade incluindo, em algum nível, o
ato de escrever um romance.
I
“Seria interessante saber de que é que os homens têm mais medo. Dar um
novo passo, pronunciar uma nova palavra[2] é o que eles mais temem... mas
eu estou falando demais.” (p. 2)
Raskolnikov, no episódio inicial do romance, expressa o respeito que os
homens têm pela criatividade. O imaginário espacial relacionado com pensar
2.Dostoievski frequentemente usou a mesma expressão: “proferir uma nova palavra” se referindo à
sua própria criatividade. Por exemplo, numa carta para seu amigo, o poeta A.N.Maikov, maio 1527, 1869, ele fala do poeta como “criador e fazedor” e escreve: “somente agora você terá o poder de
proferir a nova palavra, sua nova palavra” (Dostoievski, 1923, p. 71-77).
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algo novo, ir para onde homem algum foi antes, prove um significado da palavra “transgressão” no título do romance. A palavra russa prestuplenie, infelizmente traduzida para “crime”, mais precisamente significa um passo ao outro
lado, ou mais literalmente: um passo sobre uma barreira.
A cena inicial utiliza o imaginário espacial associado com prestuplenie
em pelo menos três níveis diferentes. Enquanto elabora seus pensamentos altivos sobre o instinto epistemofílico dos homens, Raskolnikov está para dar um
passo através de um tipo diferente de barreira. Ele está saindo discretamente
de seu quarto no sótão, tentando evitar sua locatária a quem deve dinheiro e
tem vergonha do confronto. Ele precisa passar pela porta aberta e atravessar a
soleira, com o objetivo de chegar à suposta segurança da rua. No entanto, enquanto ele tenta amedrontadamente passar por ela sem ser visto, ele não está
pensando em como pagar suas dívidas. “A ansiedade da sua posição tinha cessado de pesar sobre ele. Ele tinha desistido de se importar com aspectos práticos,
ele tinha perdido todo desejo de fazê-lo.” Sua locatária representa um tormento.
“Ser surpreendido na escada, ser forçado a ouvir seus julgamentos triviais e irrelevantes, exigindo demandas de pagamento, ameaças e reclamações, e ter que
quebrar a cabeça para encontrar desculpas, prevaricar, mentir - não, em vez
disso ele desceria as escadas como um gato e escaparia sem ser visto.” (p. 1-2)
A dívida de Raskolnikov, sua obrigação para com essa mulher, é vivida
por ele como uma perseguição. Para o leitor, ela é uma presença desconhecida
do outro lado de uma porta aberta; mais tarde, nós veremos que ela é fácil de lidar, até mesmo generosa, e a suposição de que ela estaria cobrando e ameaçando
faz parte da cena que ele constrói em sua cabeça. Sua responsabilidade para com
ela é sentida como um enorme obstáculo bloqueando seu caminho. Ele tenta
lidar com isso evitando ou reduzindo a insignificância. Ele tem uma tomada
de consciência momentânea de que está com medo de tais “ninharias” representadas pelo confronto com a proprietária. Nós estamos agora em posição de
afirmar o segundo significado do símbolo da entrada (soleira da porta). Na noção de Raskolnikov de responsabilidade, ou obrigação, outra pessoa é concebida
como uma barreira. Muitos de seus atos, incluindo os assassinatos, são tentativas onipotentes de passar por cima de sua culpa. Se essa barreira não existisse,
ou se ele conseguisse saltar sobre ela, então ele acredita que poderia ser livre.
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O movimento espacial do episódio inicial é coerente com o imaginário do nascimento notado por alguns críticos ao longo de Crime e Castigo. Esse
movimento de atravessar a soleira da porta separando a segurança do que é
conhecido, dos desafios do que não é, seria representativo, e representado pelo
próprio ato do nascimento! Raskolnikov começa em seu pequeno e sufocante
quarto onde ele permaneceu na cama, não se importando com nada, e um
tanto sem vida. Ele tenta sair e para isso tem que passar por obstáculos. Uma
vez do lado de fora, a vida borbulha à sua volta; há movimentos bruscos e há
sensações fortes. Sua mãe, no entanto, representada pela proprietária que lhe
dá abrigo e alimento, não é vista como a doadora de vida, mas como o obstáculo para o nascimento. Isso é um alerta, quaisquer outros crimes envolvidos,
o roubo será um deles. A mãe foi transformada num obstáculo: as suas virtudes nutritivas e criadoras foram retiradas dela.[3] Com certeza, as reflexões de
Raskolnikov sobre criatividade, em suas primeiras palavras para nós, são precedidas e seguidas de associações com roubo e com o assassinato da velha agiota.
A ideia do assassinato faz com que Raskolnikov se sinta desconfortável; então ao invés de considerar isso, avaliando e talvez rejeitando a ideia, ele
a evita. Ele reduz isso a uma ninharia. “Não é nada sério. É simplesmente uma
fantasia para me divertir; uma brincadeira! Sim, talvez seja uma brincadeira.”
(p. 1) Nós veremos muitas vezes que Raskolnikov lida com pessoas desvalorizando-as e com pensamentos e sentimentos desconfortáveis se livrando deles,
frequentemente através de uma projeção forçada resultando em fragmentação
de partículas chamadas “ninharias”.[4]
3.Esse objeto de fronteira, danoso e persecutório, é um exemplo especial do tipo de objeto obstrutivo
descrito por Bion (1958b). Ele aparecerá nos momentos mais cruciais do romance. Clinicamente, eu
tenho encontrado fantasias desses objetos mais frequentemente associadas com comportamento
perverso e da doença psicossomática. Depois de ter escrito isso, eu descobri que James Grotstein
(1977) refere-se a um objeto de fronteira, que junto com os outros objetos internos, pode ser transformado no que ele chama de objeto de impedimento.
4.Palph Martlaw (1957) reviu um grupo de imagens fortemente relacionadas, os insetos e besouros
que aparecem ao longo dos escritos de Dostoievski, que representam da mesma forma tentativas
de desumanizar ou reduzir a insignificância vários atributos inaceitáveis. Eu estou chamando atenção para a dinâmica envolvida em tal processo, a fragmentação e projeção e os resultantes sentimentos de vazio, de se sentir incapaz de se defender, ou ser facilmente pressionado. “Ninharias”
é talvez a melhor tradução para pustjaiaki, que leva a insignificância, “nada com nada.” A palavra
russa deriva de pustoy, que significa “vazio”. Essa associação está infelizmente perdida na tradução.
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A importância do espaço na estrutura narrativa de Dostoievski foi
notada por Bakhtin, que apontou como ele concentra todas as ações de seus
romances em dois pontos: 1) nas entradas (portas, escadas, corredores) onde
crises e momentos-chave acontecem; ou 2) em regiões, lugares abertos onde
catástrofes e escândalos acontecem (Bakhtin, 1929). O que não foi apontado
ainda é o jeito que Dostoievski usa lugares físicos para representar espaços
mentais, mas para fazer isso precisaríamos de algum entendimento de identificação projetiva (Klein, 1946, Rosenfeld, 1969).
O uso da projeção por Raskolnikov é dramatizado para nós através de
seus esforços por sair do prédio para a segurança que ele imagina encontrar
na rua. O mecanismo recebe representação concreta como o movimento entre dentro e fora, ou através da barreira entre o si-mesmo (self) e o fora-de-si-mesmo (non-self). Essa colocação dos aspectos do si-mesmo onde eles não
pertencem, a intrusão resultante nos outros, é uma transgressão, tanto mais
significativa quando há alguma alusão de que ocorre à custa de outra pessoa.
Esse é o terceiro e o mais básico significado da transgressão simbolizado pela
fuga de Raskolnikov através da soleira da porta de sua locatária[5].
A porta aberta, que irá reaparecer em um dos momentos mais significativos do romance, representa a falha de Raskolnikov em separar dentro e fora,
realidade interna de realidade externa. A utilização excessiva de mecanismos
de projeção resulta em confusão entre si-mesmo e os outros e entre fantasia
e realidade. A identificação projetiva, em sua ênfase na obliteração da separação psicológica envolvida na projeção, traz mais luz à imagem do parasita que
igualmente invade as fronteiras do corpo, e não pode tolerar ou sobreviver à
separação do hospedeiro.
O sentimento de depleção psicológica de Raskolnikov é acompanhado
por uma ansiedade persecutória aumentada, um estado mental que é dramatizado neste episódio e repetido ao longo do romance. Uma vez na rua, Raskolnikov entra em “uma completa escuridão mental; ele andou sem observar o que
5. Ver Roheim (1922) e Federn (1929), para entender algumas descrições psicanalíticas anteriores
do simbolismo da soleira da porta complementar ao que foi usada aqui. Freud (1900) refere-se à
descrição de Silberer sobre o simbolismo da soleira em sonhos que concretamente representam a
transição do sono para a vigília.
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
está ao seu redor e sem se importar com isso” (p. 2). A multidão ao seu redor
contrasta com o vazio de dentro da “sua mente”. A sensação predominante é
o olfato e ele reage com nojo aos odores a sua volta. Seu coração está cheio de
amargura e desconsideração acumulada e ele evita encontrar qualquer conhecido. De repente um homem bêbado em “uma carroça puxada por um cavalo
pesado e seco” grita bem alto: “Hei você, chapeleiro alemão!” e aponta para ele.
Raskolnikov reage com terror e confusão. Ele está tentando ser imperceptível e
seu chapéu é muito notável: um detalhe trivial que pode arruinar todo o plano.
“Ninharias, ninharias são o que importa! Porque, são tais ninharias que sempre
arruínam tudo.” (p.3) Ele evitou a sua proprietária alemã, reduziu-a a uma ninharia, para depois ser ridicularizado por seu chapéu alemão, outra ninharia.
A cena seguinte contrasta com esta, Raskolnikov visita a velha agiota,
um “ensaio” de seu projeto. Ela abre a porta com um estrondo e num primeiro
relance ele vê apenas seus olhos, examinando-o. Ele trouxe algo para penhorar, o relógio de seu pai, o qual ela dispensa como uma ninharia, não vale nada.
Ele a estuda e o seu entorno; eles completam a rápida transação e ele sai. Mas
um confronto surgiu. Ele olhou no rosto dela e para sua intenção, e por causa
disso, ele percebe o quão detestável e imunda é a sua ideia. Ele sente o horror,
a realidade disso. Nesse momento a realidade psíquica é restaurada e ele recupera seu estado mais saudável. Ele reconhece as suas necessidades, sente sede,
lembra que não comeu, experimenta um desejo de estar com outras pessoas, e
se sente amigável com aqueles à sua volta. O Capitulo Um começou com um
evitamento seguido pela sua consequência e terminou com uma confrontação
seguida pela sua consequência. Vendo as pessoas e as coisas como elas são, conhecendo suas necessidades e seus sentimentos, Raskolnikov se torna humano.
Nesse estado de espírito, ele entra numa taverna, onde encontra Marmeladov. A confissão do ex-atendente bêbado é uma repetição do primeiro
tema: dividas com uma mulher, esforços para evitá-la, consequências persecutórias. Marmeladov começa com uma idealização de sua mulher. Para essa
visão permanecer, necessita de uma defesa frequente. “Eu sou um porco, mas
ela é uma dama!” Ele proclama. Nós vemos como ela o compara ao seu primeiro marido e reprova-o pelo que ele não é. Mesmo tendo trabalhado duro e
se esforçado ao máximo, ele não consegue agradá-la. Um objeto idealizado não
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é um objeto amado; é um objeto de demanda! Marmeladov não tem esperança
de aproveitar a vida distante das expectativas de sua esposa, no lugar disso se
sente perseguido pela mesma. A sua resposta é roubar dinheiro dela para se
embebedar. As suas altas proclamações de culpa vêm com muita facilidade e
não levam as atitudes construtivas. Tais maneiras inconvenientes são falsidades. Ele aparenta ter evitado qualquer sentimento de responsabilidade pelo
seu comportamento e talvez pela sua culpa também.
Marmeladov tem uma necessidade de idealizar sua mulher, no entanto,
isso não o impede de apresentar, mesmo que indiretamente, suas acusações
contra ela. Embora alguns críticos “culpem” tanto Marmeladov quanto sua mulher pela catástrofe doméstica, outros tentaram descartar as dificuldades para
somente concluir que eles se merecem. Tanto marido como mulher impõem
um ao outro uma camisa-de-força feita de expectativas; os dois idealizam e
culpam. O que nós testemunhamos é uma mútua identificação projetiva onde
as duas partes se atacam pelos seus próprios defeitos, um casal que se destrói
mutuamente: o que Bion representaria através do signo - (♀ ♂).
Há, no entanto, outro nível do sofrimento de Marmeladov. Em um dado
momento, em meio as suas reclamações, ele se torna real; e se você presta
atenção no seu discurso, os sentimentos afloram. Ele tem evitado ir para casa,
prolongando a sua bebedeira para não confrontar-se com sua mulher. Não o
importa se ela arrancasse seus cabelos; seria até melhor, ele nos diz, se ela o fizesse. “Não é disso que eu tenho medo... é dos seus olhos que eu tenho medo...
sim, seus olhos... a vermelhidão de suas bochechas também me assusta... e sua
respiração também... Você percebeu como as pessoas nesse estado respiram...
quando elas estão excitadas?”[6]
6.Snodgrass (1960) comentou sobre este parágrafo: “Este é o retrato literal da primeira esposa de
Dostoievski, que morreu de tuberculose em 1864 após um longo período de doença envolvendo
omissões pelas quais ele se sentiria culpado.” Esta pode ser também uma referência à mãe do autor, que morreu de maneira semelhante. Parece que o suposto assassinato do pai de Dostoievski
ocorrera enquanto a sua esposa estava grávida dele, ou mesmo durante o parto, ou logo a seguir.
Foi a partir desse episódio que sua tuberculose agravou-se. Ela pode criar Mikhail, nascido um
ano antes, mas não ele ou nenhum outro dos filhos subsequentes. Ver Dave Magarshack (1961, p.
19) e Frank (1976, p. 23). Sabemos que indivíduos nascidos em tais circunstâncias frequentemente
acreditam que seu crescimento e desenvolvimento, e até a sua própria existência, é à custa de alguma outra pessoa e que eles são pessoas enormemente destrutivas.
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
Marmeladov não aguenta olhá-la no rosto e ver o sofrimento que tem
lhe causado; é melhor punir-se externamente do que a experiência da responsabilidade. É para evitar esse reconhecimento da culpa que ele ataca tanto a ela
quanto a si mesmo. Uma das coisas que ele parece evitar é a consciência que
sua mulher está morrendo e isso o torna completamente desamparado. Ele
é incapaz de tolerar o sentimento de culpa por tê-la machucado, no entanto,
seus esforços para fugir da culpa o levam para ações futuras que irão machucá-la ainda mais e eventualmente levarão à destruição tanto dela quanto dele.
No próximo capítulo, Raskolnikov lê a carta de sua mãe e, em uma comunicação que traça um paralelo com a confissão de Marmeladov, surge mais
uma variação do tema dívidas. A mãe de Raskolnikov aponta o fracasso dele
em ajudá-la e a sua irmã e revê toda a dificuldade e humilhação que tiveram
que passar. Esses sacrifícios foram feitos por causa dele, e agora sua irmã Dounia está planejando casar com Luzhin, um ato de escravidão desesperançada
que se assemelha à prostituição de Sonia. A carta não deixa dúvidas quanto ao
sacrifício que tem sido feito por amor a Raskolnikov e por causa de sua “inabilidade de prover qualquer coisa mais substancial”.
Podemos agora rever a sequência narrativa desde a proprietária passando pela agiota, pela esposa de Marmeladov, até a mãe de Raskolnikov. Cada
uma dessas mulheres é alguém a quem um homem tem dívidas; cada uma
delas é vivenciada como uma perseguidora, pois é por culpa de cada uma delas
que o homem persegue a si mesmo. Um movimento progressivo aconteceu:
a proprietária era desconhecida por nós; a agiota é confrontada brevemente;
a esposa de Marmeladov é vivamente descrita mesmo que em terceira pessoa; a mãe de Raskolnikov representa a si mesma através da carta. O efeito no
leitor, como também em Raskolnikov, é da mulher chegando cada vez mais
perto. A experiência de aproximação é ainda mais forte pela progressiva intromissão feminina.
Snodgrass apresenta um excelente delimitador do método com o qual
a mãe provoca a culpa: “ela aprendeu a doce arte materna de introduzir cada
item de acusação como se fosse um cuidado para com seu filho ou uma reclamação sobre si mesma. Dessa forma ela é capaz de insultar o quanto quiser sem
perder nunca o tom convincente de um santo altruísmo e uma preocupação
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para com os outros” (1950, p. 215). Ela sempre lembra Raskolnikov que todos
seus pensamentos e ações são motivados por amor, a mensagem apresentada
é de que o amor escraviza.[7]
Raskolnikov se sente ameaçado pela dívida com sua mãe e percebendo
que ela irá viajar para São Petersburgo e que precisará encarar as suas obrigações, sente-se sufocado e precisa fugir para a rua.
Wasiolek (1974), ao discutir o artigo de Snodgrass, discorda dessa visão
de Raskolnikov como “vítima”, em vez disso aponta o papel do protagonista
de armar tal situação. Os dois pontos de vista dos críticos são bem fundados.
Com relação à Marmeladov, não é uma questão de quem culpar, mas da natureza de destruição mútua da relação. A carta da mãe une uma realidade particular externa e interna (psíquica) até que elas coincidam. Aumentando, assim,
o sufoco de Raskolnikov, as duas realidades têm se aproximado na sequência
narrativa, começando pela grande disparidade na descrição da proprietária no
episódio inicial. Depois de ler a carta de sua mãe, Raskolnikov se sente interna
e externamente perseguido. Ele esta encurralado, expressa isso quando relembra a pergunta de Marmeladov: “Você compreende, senhor, você compreende
o que significa não ter para onde fugir?” (p. 40)
Como Raskolnikov responde ao seu apuro? Sua culpa e desamparo se
transformam em ódio pela sua mãe e irmã, ele sente que elas o estão perseguindo e controlando através de seu amor “sacrificado”. Acima de tudo, ele sente
a necessidade de agir. “Está claro que ele não deveria sofrer passivamente, se
preocupando com questões não resolvidas, mas que ele precisa fazer algo, de
uma vez, e rápido.” (p.40) Essa é uma ideia crucial em todos os escritos de Dostoievski: a solução onipotente. Fazer algo, qualquer coisa, traz a sensação de
poder em vez de desamparo. A ação pode ser totalmente ineficiente e ser meramente um gesto para mostrar que se pode fazer algo. Geralmente, é destrutiva
e provoca o efeito inverso. É neste momento que o pensamento de Raskolnikov
retorna ao seu objetivo assassino.
7.Snodgrass também nos lembra que os personagens do romance frequentemente emprestam dinheiro ou ajudam outros para se sentirem mais poderosos à custa dessas pessoas. Quem recebe a
ajuda ou o empréstimo não se sente agradecido, antes disso sente que foi usado ou roubado.
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
Mas primeiro ele revê as alternativas. Por um momento, considera ir
ver Razumihin, um amigo dos tempos de estudante. O que segue é uma comparação entre a onipotência e a forma legítima de fazer as coisas. Razumihin,
cujo nome significa “razão, bom senso”, demonstra o tipo de força real que falta
em Raskolnikov. Mesmo estando com as mesmas dificuldades financeiras, ele
tem feito pequenos trabalhos: traduções e aulas. Consegue aceitar as coisas
como elas são, faz o melhor delas e, por conta disso, supera as adversidades, é
bem-humorado e todos gostam dele. Raskolnikov, por outro lado, não quer os
frutos do trabalho duro, mas sim “ficar rico rapidamente”. Como ele confessa
para a servente, se ele não pudesse ficar rico de uma vez, ele logo passaria fome.
Além do mais ele é arrogante e reservado, ninguém gosta dele. “Para alguns
de seus colegas, ele parecia vê-los de cima como se fossem crianças, como se
tivesse um desenvolvimento superior, conhecimento e convicções, como se os
credos e interesses dos colegas estivessem abaixo dele.” (p. 46) Pensa que Razumihin o ajuda? Raskolnikov percebe então que teria que se endividar com
ele, essa é a ultima coisa que ele pode tolerar. Ele desiste de vê-lo, até que não
precise dele – depois do assassinato.
Raskolnikov vê uma garota de dezesseis anos, bêbada e desarrumada.
Aparentemente foi seduzida e agora um almofadinha, que se chama Svidrigailov, está prestes a se aproveitar dela, esse é o homem que quis tirar vantagem
da sua irmã. Raskolnikov vai ao socorro dela, chama um policial, oferece dinheiro. De repente, para abruptamente e é picado pela dúvida: “Será que devo
ajudar? Será que tenho o direito de ajudar? Deixe que eles se devorem vivos.” (p.
45) É crucial que ele não diga deixe que ele a tenha, ou deixe que ele a devore,
mas sim deixe eles se devorarem. Desta forma reconhece a perseguição pela
vítima, talvez orientado pela sua própria projeção da voracidade oral. Ele lembra a sua fúria, não somente contra si mesmo, mas contra sua mãe e sua irmã.
Seus esforços para ajudar a garota de dezesseis anos não consistiram
somente em chamar um policial e espantar o almofadinha, ou demonstrar
simpatia, mas lhe dar dinheiro. Ele então pode se perguntar se seria o seu próprio dinheiro e conclui que seus esforços para ajudá-la são à custa da mãe e
da irmã. Ajudar outra pessoa é novamente visto como detrimento para uma
das partes – um roubo! Já que ele não tem direito de fazer boas ações, a única
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saída é fazer más ações.
Os vários elementos do caráter de Raskolnikov são agora resumidos
em seu famoso sonho. No sonho, Raskolnikov tem sete anos e está andando
com seu pai, indo para o cemitério onde sua avó e seu irmão menor estão enterrados. Quando eles passam por uma taverna, um tipo de festividade está
acontecendo, moradores da vila, alegremente vestidos, cantam e bebem. Há
uma carroça puxada não por um cavalo forte, mas por uma velha égua magra
de algum camponês. O dono da carroça, Mikolka, diz para todos seus amigos
bêbados entrarem na carroça e açoita a égua para fazê-la andar. Os camponeses riem dos débeis esforços do pobre animal e instigam Mikolka a açoitá-la
mais. Mikolka entra numa onda de fúria, ele e os outros batem na égua até
a sua morte. O garotinho, aterrorizado, corre para detê-los e coloca seu braço
ao redor do pescoço da égua morta, beijando seus olhos e lábios. Raskolnikov
acorda com horror da ideia de matar a velha agiota, mas com a imagem vívida
de acertar sua cabeça com um machado, partindo seu crânio, o sangue. Seu
corpo sente como se tivesse sido ele o animal açoitado.
Se a égua representa a velha agiota, também representa Raskolnikov.
Sua mãe e irmã farão parte da viagem em uma carroça de camponês e ele,
sendo a cabeça da família desde que seu pai morreu, é incapaz de puxar sua
carga. No primeiro capítulo, um homem passando numa carroça, ridicularizou-o pelo seu chapéu. Marmeladov também foi ridicularizado de forma similar
na Taverna por seus débeis esforços para com sua família. A égua parece ainda
mais ridícula quando comparada com seus predecessores. Similarmente, Marmeladov não consegue competir com o primeiro marido de sua mulher; nem
Raskolnikov consegue se equiparar aos sentimentos de como ele deveria agir.
Claramente essa égua não consegue puxar a carroça por si só, ela precisa de
ajuda. Podemos observar, no entanto, como Raskolnikov vê sua própria inadequação. A égua, que representa sua fraqueza, é feita para ser ridicularizada,
açoitada, aniquilada pelos outros aspectos de sua personalidade, representados por Mikolka e seus bêbados camponeses. Fraqueza e passividade são igualadas à inutilidade e desprezadas. Raskolnikov irá lidar com esses aspectos do
si-mesmo projetados na velha agiota e em uma extensão variável, a todos os
personagens femininos do romance.
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Até agora, identificamos Mikolka com Raskolnikov e a velha égua com
um aspecto inaceitável de Raskolnikov com a velha agiota. Além de representar algumas qualidades do superego, Mikolka personifica um pouco da ganância e do egoísmo de Raskolnikov. Ele insiste em lotar a carroça, ele levará todo
mundo, ele diz, e irá obrigar o velho animal a galopar. Ele continua insistindo
que ela é sua propriedade e que pode tratá-la como quiser. “Minha propriedade!
Minha!” ele repete. Em um dado momento, no entanto, Mikolka admite que o
sofrimento da égua esteja “partindo seu coração,” e é justamente por isso que
ele quer matá-la. No entanto, ele logo se desfaz da sua responsabilidade, desmerecendo a égua: “Ela não vale as rações que come.” Mais tarde, durante o
açoite, os esforços do animal fazem até os observadores mais simpáticos sorrirem. “Pensar nesta bestinha pobre coitada tentando chutar.” (p.51) Essas descrições sugerem um bebê, voraz e com demandas, incapaz de tomar conta de
si ou dos outros e, por isso, inútil. Há mais evidências disso. Depois que a égua
é morta, o garotinho a segura e beija seus lábios, da mesma forma que beijou
o túmulo de seu irmão menor na primeira metade do sonho.
Muitos críticos ignoraram essa primeira parte do sonho: ela está encoberta pelo horror e excitação da imagem dramática da égua sendo açoitada até
a morte. Além disso, a segunda metade do sonho aproxima os assassinos. Eu
acredito que a questão espacial do sonho ajuda a entender o seu significado: A
taverna está localizada no caminho para o cemitério e representa uma defesa
maníaca (uma estrutura psíquica ou um tipo de barreira) contra ansiedades
depressivas mais profundas. Há um sentimento de ter perdido alguém que é
valorizado, duas pessoas, as quais ele relembra periodicamente. Mas diz para
si mesmo, no sonho, que ele nunca viu sua avó e que não tem nenhuma lembrança de seu irmão, enfatizando isso, nunca tendo os visto, ele não poderia
ser responsável pelo que ocorreu a eles. Nós já percebemos como Raskolnikov,
e também Marmeladov, não aguentam ver suas vítimas e quão aterrorizantes
e culposos são os olhos do sofrimento. A égua é açoitada principalmente entre os olhos, para que ela ficasse cega e não pudesse encarar seus agressores.
Raskolnikov pretende se livrar de aspectos inaceitáveis de sua personalidade os projetando na agiota e matando-a a seguir. Isso é feito para se defender da culpa e do temor de que seus impulsos vorazes e destrutivos tenham
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destruído ou destruam a “imago” maternal que ele ama e da qual ele depende.
Depois do sonho, há um flashback onde dois personagens secundários falam
através dos pensamentos de Raskolnikov. O estudante desconhecido, esse outro estudante, descreve a velha agiota como uma pessoa sem valor, um objeto
desprezível. Já que sua vida não tem valor, matá-la e roubá-la seria um ato humanitário, do qual muitos outros se beneficiariam. “Uma morte e cem vidas em
troca, é pura aritmética!” (p. 59) Novamente temos a ideia de que para alguém
se beneficiar, outra pessoa precisa ser sacrificada, neste caso, a velha agiota.
Além disso, esse outro estudante enfatiza que é a agiota que gananciosamente se aproveita dos outros. Ela é uma sanguessuga, um piolho parasita
que usa as vidas dos outros (de novo uma projeção do bebê necessitado e voraz). Ela é maliciosa, outro dia mordeu o dedo de sua irmã só por maldade. Essa
meio-irmã, Lizaveta, é descrita aqui e ao longo do romance como um bebê ou
estando sempre grávida. “Ela era mantida completamente isolada como uma
criança.” (p. 57) Ela é “como um bebezinho” (p. 55), e no momento que Raskolnikov a mata, “sua boca treme penosamente, como a boca de um bebê” (p. 71).
Há uma ambiguidade peculiar no romance, que está em quantas pessoas Raskolnikov matou. Há uma sugestão que se repete de que Lizaveta estava
grávida, então são três as vítimas. No entanto, Raskolnikov, geralmente se refere apenas a sua primeira vítima, a velha mulher, como se tivesse cometido
apenas um assassinato. Nos Cadernos, Dostoievski dá ainda mais atenção ao
fato de Lizaveta estar grávida. Em um dado momento ele escreve: “Eles fizeram uma cesariana nela, ela estava grávida de seis meses. Um menino, nascido
morto!” (p. 96) Em um caderno posterior, ele escreve, “e ela foi morta grávida”.
Isso é seguido por uma nota que está rasurada: “A velha mulher bateu nela
quando ela estava grávida. Eu vi isso com meus próprios olhos. Grávida, grávida no sexto mês.” (p. 165) Em outros escritos, no entanto, Lizaveta já havia
dado à luz e a criança era agora de Raskolnikov e amada por ele.
No sonho, há uma imagem adicional que eu acredito ainda não ter sido
comentada: ao lado da carroça, uma grande mulher gorda com um vestido vermelho está quebrando nozes. Essa figura caricatural é uma futura evidência
da hostilidade contra a mãe grávida. Na conversa entre o estudante e o oficial,
há uma transição peculiar que dá suporte a essa ideia. O estudante, falando de
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Lizaveta, diz, “ela é uma criatura tão doce e gentil, pronta para suportar qualquer coisa”. Quando o oficial ressalta que ele parece estar atraído por ela, ele
responde: “Não. Vou te dizer uma coisa. Eu poderia matar esse diabo de mulher
e me divertir com seu dinheiro.” (p. 58) Eu acredito que o que está sendo expresso são os sentimentos hostis contra a bela mãe doadora de vida, o desejo de
vorazmente atacá-la e roubá-la, dilapidar seu interior e esvaziar seus tesouros.
Um pouco antes da sua jornada assassina, Raskolnikov deita no seu
sofá e tem uma série de estranhos devaneios. Em um deles, aparece um oásis
egípcio, a caravana está descansando; as palmeiras formam um círculo completo. Todos estão fazendo sua refeição, mas ele está bebendo água fria de um
riacho: uma maravilhosa água azul e fria. A areia brilha como ouro. Muitos
críticos interpretaram esse devaneio como um começo de uma benigna regeneração moral, mas eu penso que eles o fizeram por causa de uma falta de
entendimento das vicissitudes da onipotência. Certamente o sonho é ilusório,
fala sobre água e o saciar da sede. Como George Gibian (1967) aponta, a água representa criatividade, uma vida melhor, forças positivas na mitologia de Dostoievski. É irônico pensar que Raskolnikov teria pensamentos criativos numa
época em que está prestes a cometer um ato tão destrutivo. Mas isso é típico
de seu estado mental particular. No caminho para a casa da agiota, ele estará
pensando em construir fontes e aumentar o jardim. Mais adiante no romance,
quando Svidrigailov comete suicídio, ele irá se destruir cercado de imagens de
água, flores, nascimento e criatividade. Parece que Dostoievski compreende,
mesmo que intuitivamente, como a mania e a perversão podem confundir
bem e mal e mascarar a destrutividade à guisa de seu oposto.
A fantasia de oásis de Raskolnikov é tipicamente uma fantasia maníaca de onipotência, uma reunião oceânica com a boa mãe, com gratificação
oral e sono como resultado. Na fantasia, ele não está sentado comendo com os
outros, mas tem sua própria fonte de nutrientes idealizada. A base para isso
está na pista de que as coisas não são do jeito que aparentam ser; que a areia
é considerada ouro. A fantasia é um jeito de negar a dependência de uma mãe
exterior. Ele pode cuidar de suas próprias necessidades; seu círculo está completo. Já que ele contém a fonte de todos os suprimentos, a mãe exterior, ou
sua substituta, a velha agiota, não tem valor, ou é mesmo uma mãe ruim e,
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como tal, pode ser destruída. Tais fantasias também negam a mortalidade e a
passagem do tempo [8]
Sua preocupação com a fantasia o mantém na cama enquanto deveria
estar executando seus planos. Ele está quase totalmente despreparado para o
que está prestes a fazer, e fica chocado quando o relógio bate às sete e meia e
percebe que já é tarde. Sua reação é negar a realidade externa decidindo que o
relógio andou rápido demais. Nós relembramos que na visita anterior à giota,
ele deu a ela o relógio de seu pai. Porque a fantasia o mantém na cama quando
deveria já ter saído, ele ainda está na casa da velha mulher quando Lizaveta
volta. O aspecto autodestrutivo da fantasia resulta em um segundo assassinato,
a morte da boa Lizaveta, e no risco de quase ser pego.
Raskolnikov passa pelo assassinato de uma forma quase sonâmbula.
Projetar tanto dele na velha mulher e em Lizaveta o deixou desgastado e incapacitado. Ao longo do romance ele desmaia, está fisicamente fraco, febril, delirante, incapaz de pensar. É também óbvio que ele se identifica com suas vítimas
e se sente contaminado, prestes a ser paralisado, separado da vida, morto.[9]
Depois de ter cometido o segundo assassinato e roubado o que podia,
Raskolnikov está prestes a sair, quando ele experimenta um choque de terror: a porta do apartamento foi deixada destrancada e aberta. O momento
mais aterrorizante da cena do assassinato está contido nessa imagem da
porta aberta. Durante o assassinato, muitos leitores se identificam não com
a vítima, mas com Raskolnikov. Neste momento de maior vulnerabilidade,
ele pode ser espionado ou considerado um intruso (mais tarde, em outro momento muito privado, quando ele está confessando o assassinato para Sonia,
Svidrigailov estará ouvindo escondido detrás da porta). A porta aberta, como
eu disse anteriormente, está fortemente relacionada ao mecanismo de identificação projetiva e simbolicamente representa a ruptura da separação entre si-mesmo (self) e a representação do objeto, assim como a confusão entre
8.Dostoievski reconhece a importância das tentativas de transgredir os limites do tempo. Nos Cadernos ele escreveu: “O que é o tempo? O tempo não existe. O tempo são números é número???; o
tempo é a relação da existência com a não-existência.” (p. 195)
9.A identificação de Raskolnikov com suas vítimas, que fica evidente ao longo do romance, é também uma das maneiras que ele encontra para evitar o reconhecimento de sua culpa.
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realidade interna e realidade externa.
Tendo projetado aspectos do si-mesmo na velha agiota e depois a matado, Raskolnikov introjeta e sente-se identificado com a introjeção morta e
presa dentro dele. A próxima parte da narrativa é como um pesadelo. Raskolnikov está preso dentro do apartamento, alguém desconhecido sobe as escadas.
“De repente se transforma numa pedra, é como um sonho no qual alguém está
sendo perseguido, quase pego e será morto e é procurado até o encontrarem e
não pode mexer os braços.” O visitante desconhecido para em frente à porta.
“Eles agora estavam parados um em frente ao outro, da mesma forma que ele
esteve com a velha mulher, quando a porta os separava e ele estava ouvindo”
(p.73) Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.
Agora, parado do lado de fora da porta, com dois cavalheiros desconhecidos batendo na porta para conseguir entrar, Raskolnikov se sente completamente desamparado. “Enquanto eles estavam batendo e falando ao mesmo
tempo, pensou várias vezes na ideia de acabar com tudo de uma vez e atirar
neles através da porta. Por vezes ele era tentado a xingá-los, rir deles, enquanto
eles não podiam abrir a porta!” (p. 78) Essa seria a solução onipotente, autodestrutiva ao extremo, mas dirigido para a ilusão momentânea de poder defensivo contra o reconhecimento de seu desamparo. Deste ponto em diante do
romance, Raskolnikov irá sentir esse poder destrutivo apenas nos momentos
em que está desamparado e longe de tudo.
O leitor tem que concordar que não é através de nenhuma habilidade
pessoal que Raskolnikov consegue escapar da casa da agiota, mas através de
algo completamente fora de seu controle, uma continuação do mesmo acidente
do destino que o ajudou a cometer o crime. Quando ele volta para seu quarto,
deita em sua cama e cai não tanto num sono, mas numa espécie de “amnésia”
(p.78). Esse é o fim da parte I do romance e é um bom momento para parar,
resumir o que aconteceu e prever o que está por vir.
II
A partir da cena inicial até o assassinato: Eu foquei a progressão de eventos
psicológicos que culminaram na tentativa de Raskolnikov aniquilar a agiota e
o que ela representa. O que Raskolnikov apresenta para si mesmo como o ato
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criativo de um super-homem, operando racionalmente na base de “pura aritmética,” eu tentei descrever como termos básicos não racionais que parecem
estar lhe guiando. Sua “transgressão,” como eu apontei, não é simplesmente
o assassinato de outro ser humano, um passo além dos limites da lei e da ordem; é mais uma transgressão psicológica, relacionada com três manobras
defensivas. Como na cena de abertura onde Raskolnikov tenta evitar o reconhecimento de sua dívida e culpa relacionada a uma outra mãe substituta,
sua locatária, ele tenta fugir progressivamente dessa experiência. Em certo
nível, ele transgride a fronteira entre o si-mesmo e o outro pelo uso massivo
do mecanismo de projeção primitiva. Ele lida com sentimentos desconfortáveis projetando-os. Então se sente perseguido quando percebe restos desses
sentimentos no mundo exterior.
Quando as dívidas de Raskolnikov começam a sufocá-lo – particularmente com a chegada da sua mãe e sua irmã –, ele é levado a uma ação externa de natureza cada vez mais onipotente. O ato onipotente significa negar
o desamparo, dependência, ou culpa, torna-se o segundo nível de sua tentativa de encontrar uma solução. Através desse “novo passo”, Raskolnikov não
tenta reparar o dano ou encontrar uma solução interna, mas sim ultrapassar
sua culpa em direção a um mundo imoral. Ao invés de prezar a capacidade de
culpa e compaixão como uma qualidade humana madura e necessária, esta é
vivida como uma fraqueza feminina e infantil, a ser abolida ou desapropriada.
A relação mãe-criança torna-se o protótipo da destruição mútua: uma
dupla peçonhenta, uma visão que, no romance, atinge a relação entre homens
e mulheres. Raskolnikov não somente odeia a si mesmo por se importar, mas
idealiza aqueles que ele pensa estarem livres de tais preocupações; aqueles
que estão acima de tais sentimentos e por isso no controle: os super-homens
onipotentes.
Na sua necessidade de negar o desamparo e a dependência, qualquer
comparação entre o que foi dado a ele e o pouco que foi capaz de dar de volta
torna-se uma dolorosa humilhação. Estes sentimentos se focalizam particularmente no próprio ato de dar à luz. Não somente ele nunca poderá retribuir
sua mãe, mas também nunca poderá imitar seu feito. Em um momento ele
idealiza a criatividade, em outro a reduz de um processo lento e longo a um
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“novo passo” magicamente simples que irá resolver todas as suas dificuldades. Isso serve para a dupla função de desvalorizar a criatividade, enquanto se
coloca como o criador.
Essa terceira estratégia de defesa, então, envolve não somente uma
confusão randômica entre criatividade e destrutividade, mas o reverso das
duas: Eventualmente uma defesa maníaca na qual a culpa para com a mãe é
negada através da visão de si mesmo como contendo a boa mãe; enquanto a
mãe real, ou sua substituta, a agiota, é má e merece ser destruída. Assim a situação que Dostoievski retratou no apartamento da agiota também ocorreu
internamente: Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.
A agiota contém uma projeção dupla: ela não é somente a mãe em
quem Raskolnikov projetou sua hostilidade, para que ela se torne uma caricatura da mãe má; mas por um mecanismo similar, ela também representa o
bebê mau, o piolho parasita. Como resultado do seu crime, Raskolnikov mata
Lizaveta, a mãe generosa e doadora. Na tentativa de destruir seu perseguidor
ele também mata a fonte de vida e esperança dentro dele, o objeto bom internalizado. O restante desse texto está centrado nas consequências de tal ato.
Quando a segunda parte começa, Raskolnikov encara uma situação
que reproduz a fantasia infantil universal de ter vorazmente ou sadicamente
atacado ou destruído o objeto amado. Hanna Segal (1952) descreve essa fantasia, na qual o objeto amado “é destruído, despedaçado e fragmentado”; e não
somente o objeto externo é atacado, mas também o interno; então o mundo
interno sente-se destruído e desolado. “Pedaços desse objeto destruído podem
se tornar persecutórios e há também um temor da perseguição interna na
forma de um lamento pelo objeto perdido e culpa por tê-lo atacado.”
Na falta de acreditar suficientemente na capacidade de restauração,
o objeto perdido é sentido como uma perda irreversível, a situação sem esperanças. Em tais condições o ego se torna um sistema de defesas maníacas,
com intuito de defender-se do desespero total: a negação da realidade psíquica,
controle onipotente, e a regressão para o mais primitivo uso do spliting e da
identificação projetiva. Forma-se um círculo vicioso no qual a regressão leva
a medos persecutórios maiores, que levam a um maior uso de mecanismos
onipotentes. Isso poderia facilmente servir à descrição de Raskolnikov depois
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do assassinato. Quando Dostoievski viu o romance emergir nessa direção, inicialmente planejou que Raskolnikov pensasse ou realmente cometesse outros
crimes (1931, p. 56).
Na discussão sobre o resto do romance vou tentar ilustrar como Raskolnikov continua usando as defesas já citadas, com objetivo de evitar confrontar-se com sua culpa. Vou retratá-lo não como buscando para encontrar o castigo,
mas sim usando o mundo exterior – através de uma provocação onipotente, de
atos de reparação maníaca, de atos de “confissão”, que não contém contrição
nem reparação, mas são tentativas de expressar seus sentimentos de desamparo e desespero aos outros – continuar evitando reconhecer qualquer tipo de
culpa ou responsabilidade em relação à sua mãe. Em outras palavras, eu acredito que ele continua usando as mesmas manobras defensivas que o levaram
a cometer os assassinatos e, conforme vou tentar mostrar, com consequências
que não são diferentes.
III
“Fragmentos e retalhos de pensamentos estavam simplesmente aglomerando-se em seu cérebro...” (p.78). No momento seguinte, a preocupação de Raskolnikov se volta para os fragmentos exteriores, as coisas nas quais esses pensamentos
se transformaram: sua roupa em trapos manchados pelo sangue das vítimas,
as bijuterias roubadas da velha. Ele tenta esconder esses objetos, querendo que
ninguém, exceto ele, os veja. Ele ataca seu aparato perceptivo, de tal forma que
“suas percepções estavam falhando, estavam desmoronando” (p. 81). Ele se torna
obsessivo ao querer se livrar das coisas inanimadas (objetos) nas quais pedaços do self e do objeto foram projetados (Bion 1956, 1957, 1958a, 1962a, 1962b).
Esses fragmentos persecutórios são versões mais recentes das “ninharias” que apareceram ao longo da Primeira Parte e irão continuar aparecendo
ao longo do livro. Nós agora os reconhecemos como o produto de ataque violento ao aparato mental e ao mundo interno. Raskolnikov agarra com força
os fragmentos e as bijuterias, sem saber como se livrar delas. “Por um bom
tempo, durante horas, ele foi perseguido pelo impulso de sair para algum lugar, arremessar as coisas para que elas fiquem fora de alcance, de uma vez por
todas! De uma vez!” (p. 82) Ele sai, esconde os objetos debaixo de uma pedra e
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se sente momentaneamente aliviado.
Pensando que ao conseguir se livrar dessas lembranças externas, ele
se livraria da causa de sua ansiedade, ele sente “uma alegria intensa e quase
insustentável”. “Está tudo acabado! Não há pistas! E ele ri.” (p. 97) Seus bons
sentimentos cessam quando se aproxima do boulevard onde ele havia encontrado a garota bêbada, o almofadinha e o policial. A memória aparece com uma
forma característica. Ele os culpa por existir e por lembrá-lo de seus sentimentos desconfortáveis em relação a eles.
Quando, no momento seguinte, ele tem o primeiro insight dos assassinatos – que ele não os fez por razões financeiras – sua repulsa pelo que fez e
como se sente em relação a si mesmo, é tão intolerável que ele sente que precisa fazer algo para se livrar do sentimento, precisa encontrar outra pessoa
para contê-lo nisso. “E estava buscando alguma distração, mas ele não sabia
o que fazer... o que tentar. Uma nova sensação arrebatadora estava lhe dominando cada vez mais, esse era um impulso imensurável, quase físico por tudo
o que o rodeava, um sentimento de ódio obstinado e maligno.” “Se qualquer
um se dirigisse a ele, sentia que poderia brigar ou bater nessa pessoa...” (p. 98)
Ele procura Razumihin para se distrair, mas se sente chocado pela sua
ira e tenta partir o mais rápido possível. Não há forma de aceitar ajuda de alguém. Antes de conseguir sair, no entanto, acontece um momento engraçado!
Razumihin lhe oferece um texto para traduzir do alemão, um artigo que “discute a questão de se a mulher é um ser humano e, é claro, prova triunfalmente
que ela é” (p. 100). Raskolnikov não aceita o artigo e não há discussão sobre
isso, no entanto, a ideia foi introduzida e podia ser quase um subtítulo do romance. Raskolnikov matou uma mulher e tenta se convencer de que ela não
era um ser humano. Ele pensa que ela era uma coisa sem valor, um verme,
um obstáculo, um princípio ou uma abstração. Sonia, como veremos adiante,
também será desvalorizada ou entendida como uma idealização abstrata. As
mulheres são excelentes continentes para despejar aspectos inaceitáveis das
nossas personalidades.[10]
10.Nos Cadernos Dostoievsky escreveu: “N.B. Uma mulher é sempre apenas aquilo que nós mesmos
queremos fazer dela.” (p. 218)
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Ser mulher significa sofrer, ser mal tratada, depreciada, fraca, passiva
– tudo aquilo que Raskolnikov está tentando evitar e acha desprezível em si
mesmo. Da próxima ida de Raskolnikov à casa de Razumihin, ele dirá, “estou
tão triste, tão triste... como uma mulher” (p. 169), esse é um dos poucos momentos do romance que ele percebe sentimentos depressivos, no entanto, o
romance inteiro é sobre seus esforços para evitá-los.
A próxima série de incidentes confronta Raskolnikov com a perda de
seu bom objeto. Uma senhora e sua filha se apiedam dele e lhe dão dinheiro.
Uma oferta de ajuda, vinda de uma mãe, o faz lembrar-se de seu crime. Ele olha
para as águas azuis e brilhantes do Neva, e a sua mirada descansa no domo arredondado da catedral, uma vista particular que sempre o encheu de prazer, a
fonte de emoções maravilhosas e “misteriosas”, agora aparece fria, negra e sem
vida. Ele havia matado algo dentro de si, a boa imago maternal representado
pela cúpula em forma de seio. Ele olha para a moeda que a mulher lhe dera e
a joga na água. “Parecia-lhe que havia cortado a si mesmo de tudo e todos naquele momento.” (p. 102)
De volta a sua casa, ele entra em um estado de confusão e experimenta
o desamparo e o terror que sentiu no apartamento da agiota. No seu delírio,
ele está tentando lembrar-se de alguém e de algo. Ele vê alguém ao lado de sua
cama. “Alguém que ele parecia conhecer muito bem, no entanto, não consegue lembrar quem ele (sic) era, isso o assustou, até o fez chorar.” (p. 104) Ele
não tinha nenhuma lembrança dos assassinatos, mas “a cada minuto ele sentia que havia esquecido algo que teria que ser lembrado. Ele se preocupou e se
atormentou tentando lembrar, se lamentando. Entra numa onda de fúria, ou
afunda em um terror horrendo e intolerável” (p.105).
Com um pouco de sono, bons cuidados e a ajuda dos outros, o delírio de Raskolnikov vai se limpando; mas depois de estar deitado na sua cama
ouvindo-os discutir os assassinatos, depois de conhecer o noivo de sua irmã,
Luzhin, e depois de saber que sua mãe e irmã chegarão a qualquer minuto,
sente novamente vontade de agir. Seu estado mental é característico: “Calmo,
seguro de si, forte.” “Esse foi o primeiro momento de uma calma estranha e
repentina.” “Um tipo de energia selvagem brilha de repente em seus olhos fervorosos.” “Ele não sabia e não pensava para onde estava indo e tinha apenas
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
um pensamento: ‘Que tudo isso precisa terminar hoje, de uma vez por todas,
imediatamente.’ Porque ele não iria continuar vivendo assim.” Como, de que
forma ele daria um fim? Ele não fazia ideia, ele não queria nem pensar nisso.
Ele afastou seus pensamentos; os pensamentos o torturavam. Tudo o que ele
sabia que sentia é que tudo deveria mudar “de uma forma ou de outra, ele repetia com desespero, determinação e uma imutável confiança em si mesmo”
(p. 136). Logo será óbvio que, tendo “afastado os pensamentos,” ele agora está
louco. Seus sentimentos de poder disfarçam seu desamparo; sua necessidade de
fazer algo, se livrar do doloroso, “aquilo” estabelece um ciclo vicioso tornando-o cada vez mais desamparado.
Raskolnikov gasta dinheiro com um músico de rua, com prostitutas.
Seu discurso é tão peculiar que um transeunte assustado atravessa a rua para
evitá-lo. Acompanhado do policial Zametov, Paskolnikov o provoca. Primeiro
Raskolnikov caçoa dele por causa de sua ganância e por ele estar usando seu
trabalho para ter lucro à custa dos outros. “Você deve ter uma vida muito boa,
Sr. Zametov; entrada franca para os lugares mais agradáveis. Quem está pagando o seu champagne atualmente?... As propinas que recebe?! Você tem lucro com qualquer coisa!” (p. 141) Por debaixo das provocações hostís podemos
sentir certa inveja.
Raskolnikov conta que esteve lendo sobre o assassinato, lembra-se de
seu desmaio no posto policial e apresenta isso de maneira que pareça o mais
suspeito possível “agora você entende?”, ele pergunta e ri na cara do confuso
Zametov. Essa provocação onipotente é um flerte deliberado com o perigo, com
o objetivo de testar seu poder e provar que está tudo sob controle.
Da mesma forma que Raskolnikov sentiu vontade de gritar para os dois
homens que estavam tentando entrar no apartamento da agiota, bater neles
e xingá-los, ele agora experimenta um impulso similar. “Novamente um desejo intenso de extravasar.” Esse gesto revela, por detrás da falsa aparência de
um homem poderoso, uma criança. Quando Zametov menciona outro crime,
Raskolnikov humilha os outros criminosos como sendo crianças tolas. Ele diz
que teria cometido o crime calmamente, deliberadamente, confiante de si, sem
um traço de ansiedade. Claramente, o que é mais importante é estar no controle total. No que Raskolnikov nos traz, e em particular no contraste entre a
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maneira diferente que ele se comportou durante os assassinatos e a forma na
qual continua pressionado, e não sob controle de seus sentimentos, nós começamos a entender a importância ligada ao controle onipotente.
Continuamos seguindo Raskolnikov depois de seu encontro com Zametov, ele ainda está determinado a “dar um fim em tudo isso” (p. 150). Depois de
rejeitar o suicídio, ele está a caminho do posto policial para confessar, quando
algo o faz mudar de ideia. Ele se aproxima de Marmeladov que está morrendo,
pois havia sido atropelado por uma carruagem. Raskolnikov reage “tão seriamente como se fosse seu pai” (p.155). Marmeladov representa o pai ineficiente
e tolo. Mas nessa reversão do sonho, o cavalo matou o pai. Novamente como no
sonho e nos assassinatos da velha agiota, a cabeça é partida. E da mesma forma
que o garotinho agiu no sonho, Raskolnikov cuidadosamente abraça a cabeça
da vítima. Eles vão em direção da casa de Katerina Ivanovna onde Raskolnikov toma conta, tranquiliza a Sra. Marmeladov, dá dinheiro e suporte. Na crise,
assume a responsabilidade da família que Marmeladov não foi capaz de ter e
que ele não foi capaz de ter com sua própria mãe e irmã. Ele sai sentindo-se
rejuvenescido, e é esse, para alguns críticos, o principio de um renascimento.
Minha impressão é que essa atitude serve primeiramente a uma reparação maníaca. Por um momento, Raskolnikov consegue esquecer seu desamparo, fraqueza e sua incapacidade de ajudar sua família. Na verdade, depois de
conseguir uma nova família, se esquece completamente da sua própria. Os assassinatos também estão momentaneamente apagados, talvez cancelados pela
“aritmética”. Há um sentimento temporário de poder e controle. “Nós usaremos
toda nossa força! Ele coloca de forma provocante, como se desafiasse algum
tipo de poder das trevas... ‘Eu acredito que minha enfermidade está curada, eu
sabia que ela se acabaria quando saí... Força, força, é o que nós queremos, sem
ela não se pode fazer nada, e força precisa ser ganha com a própria força – é
isso que eles não sabem’.” (p. 166) Parece que ele está desafiando seus inimigos
e experimenta um sentimento de triunfo sobre eles. Ele soa como um louco.
O objeto do seu desafio, o inimigo invisível, são seus perseguidores.
Quando ele não reconhece conscientemente seus sentimentos de culpa, ele
sente que alguém é responsável por eles. Seus esforços foram direcionados
para se livrar desses sentimentos desconfortáveis, “dar um fim nisso,” e para
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade
expressar raiva contra aqueles que são tidos como os responsáveis. Como consequência de seu ato na casa dos Marmeladov, ele de repente sente-se “orgulhoso,
confiante de si, esses sentimentos cresceram cada vez mais fortes dentro dele,
estava se tornando um homem diferente a cada momento” (p. 166).
Uma reparação normal seria baseada no reconhecimento da realidade
psíquica, a experimentação da dor que essa realidade causa, e a tomada de atitudes que aliviam essa dor na fantasia e na realidade. O objetivo da reparação
maníaca repara o objeto de tal forma que a culpa e a perda nunca existam. A
reparação maníaca, como Hanna Segal (1964, p. 82-83) explica, tem três características: 1) Nunca é feita em relação a objetos primários ou internos, mas
sempre em relação a objetos mais remotos; 2) O objeto relacionado à reparação nunca deverá ser experimentado como danificado pelo próprio individuo;
e 3) O objeto deve ser sentido como inferior, dependente, e mais profundamente, desprezível. Não há amor verdadeiro nem estima pelos objetos reparados; em vez disso, eles estão sendo controlados de forma onipotente. Para
mim, parece que a família Marmeladov, embora não tenha o mesmo significado que a própria família de Raskolnikov ou da agiota e Lizaveta, se encaixa
nessas características.
Raskolnikov vangloria-se por coisas que mais parecem um triunfo
maníaco do que rejuvenescimento moral. Ele não aparenta estar conectado
com a realidade, já que nenhuma afirmação é verdadeira. Sua enfermidade
não acabou. Ele certamente não acreditou que ela acabaria quando saiu. Essa
é uma ilusão da onisciência. Ele usa a retrospecção para se convencer de que
tem mais controle de si do que realmente tem.[11]
Seu sentimento de força é a maior das ilusões. Um pouco mais tarde,
quando ele encara sua família na realidade, ver sua mãe e irmã o levara a um
colapso e a um desmaio.
Se Raskolnikov tivesse, realmente, ajudado os Marmeladov por
11.Há muitos exemplos desse tipo de autodecepção, o mais significante seria o seu ultimo feito: “Eu
sou provavelmente mais asqueroso que o piolho que matei, e eu senti de antemão que deveria ter
dito isso para mim mesmo depois de matá-la.” (p. 239) Alguns críticos erram em ter isso como
evidência de que ele sabia que iria falhar antes dos assassinatos, e os cometeu com o objetivo de
falhar. Seu estado mental é uma pista para a decepção.
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sentimentos reais de compaixão, essa ação o teria feito se sentir mais forte,
no entanto, ele se sentiu mais poderoso. Se ele tivesse se sentido mais forte,
poderia reconhecer sua fragilidade. Se a ajuda dada aos Marmeladov fosse movida pela compaixão, ele teria também entrado em contato com sentimentos
depressivos – preocupações com a futura tristeza, sentimentos relacionados à
morte de Marmeladov, em relação a sua própria família, as suas próprias vítimas, culpa. Com certeza não seria triunfo. Como ocorre em outros lugares do
romance, o tom de triunfo é uma indicação de o que está sendo comemorado é
uma vitória sobre a realidade e geralmente uma vitória à custa de outra pessoa.
Até agora, eu tenho ressaltado os aspectos maníacos de sua relação
com Marmeladov, pois penso que essas características são muito significativas e que não foi levada em conta por outros escritores. Certamente, pode
haver aspectos maníacos e saudáveis no comportamento e os analistas estão
acostumados com pacientes que confundem esses dois aspectos, como por
exemplo, quando eles progridem realmente, ou terminam algo depois de trabalhar duro, atribuem isso a sua onipotência, e então se tornam maníacos. As
ações de Raskolnikov para com Marmeladov contêm tanto aspectos maníacos
quanto saudáveis, e agora, no topo de sua mania, seus sentimentos mudam. A
defesa maníaca raramente é completa, geralmente um pouco de depressão se
expressa. Quando Raskolnikov chega a sua casa, ele já não está mais se vangloriando de seu triunfo. Ele está subjugado, reflexivo, depressivo. Ele quer
contar para Razumihin sua experiência na casa dos Marmeladov, o impacto
disso nele, e de repente admite se sentir fraco. “Estou tão triste.” Ele diz “tão
triste... como uma mulher”.
Há outra relação que me parece representar reparação maníaca: A escolha do objeto amado por Raskolnikov antes dos assassinatos. Nós primeiro
ficamos sabendo da noiva de Raskolnikov através de seu amigo, Razumihin.
“A garota não era bonita mesmo, na verdade posso dizer positivamente que ela
era feia... e tão inválida... e estranha... é inexplicável... ela também não tinha
dinheiro.” (p. 189) Raskolnikov confirma a descrição e dá uma pista sobre a
razão de sua atração. “Ela era uma garota tão doentia... inválida. Ela se orgulhava de ajudar aos pobres e sempre sonhava em cuidar de crianças... Ela era
uma coisinha feia. Eu realmente não sei o que me levou a ela – acho então que
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é porque estava sempre doente. Se ela fosse chata ou corcunda eu acredito então que teria gostado ainda mais dela.” (p. 201)
A namorada de Raskolnikov era considerada inferior, estragada tanto
física quanto mentalmente, e isso parece ser precisamente o que ele gostava
nela. Se ela fosse mais deformada ele gostaria ainda mais dela. O seu problema
não era nada que ele tivesse causado e por isso não era algo que ele precisasse
sentir culpa. Ele poderia se ver como seu benfeitor, resgatando-a e restituindo-a; enquanto ao mesmo tempo, ela poderia funcionar para ele como uma representação de vários de seus aspectos feios e inaceitáveis.
A relação, que teria terminado em casamento se a garota não tivesse
morrido, precedeu o objetivo de Raskolnikov de matar a velha agiota. No entanto, as duas estão claramente relacionadas. Quando discutia seus planos de
casar com a filha inválida da proprietária, a mãe de Raskolnikov disse que o
choque de ouvir isso quase a matou. “ ‘Você acha’, ela disse, ‘que minhas lágrimas, minhas súplicas, minha doença, minha morte talvez pelo sofrimento,
nossa pobreza, teriam o impedido de fazer isso? Ele passaria por cima de todos
esses obstáculos, calmamente’.”[12]
Isso liga o “romance” com a garota inválida aos assassinatos da velha
agiota e de Lizaveta. As duas ações, uma supostamente amorosa e a outra destrutiva, são para evitar a culpa; no entanto, as duas ações levam à coisa mais
importante que elas pretendiam evitar: a morte da mãe de Raskolnikov.
A garota inválida está também ligada à Sonia, que alguns críticos colocam como sua reencarnação. A discussão sobre a noiva é quase que imediatamente seguida da tímida aparição de Sonia na porta. Sonia é descrita como
sendo uma criança, pressionada pela timidez, humilhada na companhia de
sua família, e desperta sentimentos de pena e compaixão em Raskolnikov, fazendo com que ele se sinta rejuvenescido novamente. Ele e os leitores são relembrados da cena previamente descrita na casa dos Marmeladov.
12.Aqui eu difiro de forma substancial da tradução de Garnet, que diz: “Não, ele teria calmamente
desconsiderado todos os obstáculos.” O verbo usado é perestupit, passar por cima, transgredir. O
substantivo deveria ser perestupanie, que significa transgressão, uma variante de prestuplenie. Ver
Molchuski (1947, p. 305). Jessie Coulson (1953) traduz a frase: “Não, ele pisaria friamente sobre cada
obstáculo.”
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No episódio seguinte, Raskolnikov e Razumihin visitam o inspetor da
polícia, Porfiry Petrovich, e a conversa gira em torno do artigo que Raskolnikov
escreveu sobre o crime. No artigo, ele introduz a sua teoria do super-homem:
a humanidade se divide em poucos e extraordinários seres e a maioria que é
composta de pessoas ordinárias, as quais os extraordinários têm o direito e até
a obrigação de, mesmo transcendendo a lei, oferecer algum tipo de bem maior.
O homem comum é limitado pelo seu sentimento de culpa que Raskolnikov
descreve sarcasticamente como “eles castigam a si próprios, pois são muito
conscientes; alguns castigam os outros e têm certos casos em que usam as próprias mãos para isso... Eles impõem atos públicos de autopenitência com um
belo e edificante efeito” (p.228). Seu tom é de desprezo, como se a consciência
fosse uma limitação, uma fraqueza, uma humilhação. Podemos lembrar que
quando Raskolnikov toma consciência de seus sentimentos de culpa, ele imediatamente experimenta um ódio por si mesmo e uma ira contra qualquer um
que seja identificado como responsável por fazer com que perceba seus sentimentos, geralmente sua vítima.
Ninguém pode se sentir culpado por maltratar pessoas comuns, logo,
de acordo com essa teoria, elas existem para serem usadas. Elas “amam ser
controladas. Para mim seu dever é ser controladas, isto porque é a sua vocação, e não há nada de humilhante nisso para elas” (p. 227). Esse é exatamente
o argumento que Svidrigailov apresentará como veremos a seguir, apesar dele
dar um passo adiante comparando e identificando as pessoas comuns com
as mulheres.
Agora, quem são as pessoas extraordinárias? Elas são “pessoas com
ideias novas, pessoas com a fantástica capacidade de dizer algo novo” (p. 229).
“Homens que possuem o dom ou o talento de pronunciar uma nova palavra.” (p.
227) E como essas pessoas fazem seu trabalho? Elas destróem; suas ações são
destrutivas! Já que estamos falando da inveja da criatividade, naturalmente
aqueles que são destruídos são nada mais, nada menos, que os representantes
inconscientes daqueles que se consideram os mais criativos - a mulher com
seu fruto, a mulher grávida.
Ao chegar a casa, Raskolnikov continua essa discussão consigo mesmo.
“O verdadeiro mestre a quem tudo é permitido joga uma tempestade sobre Toulon,
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faz um massacre em Paris, esquece um exército no Egito, gasta meio milhão de
homens na expedição a Moscou” (p. 236), e não tem problemas com isso, até
existem altares feitos para ele. Por que ele teria que pagar; por que ele deveria
se sentir culpado por um pequeno crime? Continuando sua comparação de si
mesmo com Napoleão, é forçado a reconhecer sua limitação, ele não consegue
transpor a culpa e se sente humilhado por isso.
Ele continua negando a culpa desvalorizando suas vítimas e negando
qualquer significação para o crime,[13]e reconhecendo a culpa, uma limitação
que o faz imediatamente atacar-se e atacar sua vítima. “A velha mulher era
insignificante! Ele pensa de forma inconsciente e exacerbada... a velha mulher era somente uma doença... eu estava com pressa de ultrapassar... eu não
matei um ser humano, mas um princípio! Eu matei o princípio, mas eu não
ultrapassei, eu fiquei deste lado... Eu fui só capaz de matar.” (p. 238-239) Aqui
ele está claramente nos dizendo que o ato de matar não era a barreira - não
era a lei dos homens, mas o sentimento de culpa por ferir outro ser humano.
Ele então lembra que não foi somente a velha mulher que matou, mas
também Lizaveta. “Pobre Lizaveta! Por que ela teve que entrar... é um pensamento estranho, por que eu penso nela tão raramente, como se não a tivesse
matado? Lizaveta! Sonia, pobres coisas gentis com olhos gentis... Mulheres
queridas! Por que elas não choram? Por que elas não murmuram? Elas desistem de tudo... seus olhos são macios e gentis... Sonia! Sonia! Doce Sonia.” (p.
240) Lizaveta, Sonia, que são gentis e boas, mas que inspiram culpa. Por que
elas nem mesmo reclamam? Elas se deixam esgotar, serem usadas, “elas desistem de tudo”.
Essa passagem nos faz lembrar da confissão de Marmeladov, quando
depois de sua pseudoculpa, ele descreve a dor de olhar nos olhos de sua esposa
e reconhecer o que fez com ela. Aqui Raskolnikov, assim como Marmeladov,
está cara a cara com sua culpa. A resposta de Marmeladov foi se sentir desconfortável e beber mais ainda, ficar mais tempo longe, machucar mais a sua
13.Como Segal aponta: “Um objeto de desprezo não é um objeto merecedor de culpa, e o desprezo, que
é experimentado relacionado a tal objeto, se torna a justificativa para mais ataques a este.” (1965,
p. 71)
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mulher, com o objetivo de evitar essa culpa.
O estudante, cuja conversa Raskolnikov ouviu por alto, e Mikolka, no
sonho, expressam a mesma ideia. É como se cada um dissesse: parti meu coração ao ver o que fiz a ela, então eu a matei.
Raskolnikov tem dificuldade de entender que essas mulheres aceitam
as coisas sem questionar, sem reclamar. As mulheres, pela sua passividade e
aceitação, fazem com que ele se sinta desconfortável, porque elas não podem
ser vistas, então, como perseguidoras externas com quem poderia ficar irritado.
Tal irritação seria uma indignação genuína, na verdade, experimentada como
libertadora. No lugar disso, os sentimentos ruins atacam-no internamente; ele
não pode nem fugir deles nem aniquilá-los dentro de si.
Esses sentimentos são vividos como ataques a ele, e quando perde a
consciência, seus pesadelos representam sua vitimização por esses perseguidores internos e os seus sentimentos de não ter para onde escapar. Raskolnikov se vê numa batalha de vida ou morte que provoca a necessidade de uma
ação mais efetiva. No sonho, ele está batendo na cabeça da velha com um machado e a cada machadada a velha treme e gargalha parecendo zombar da sua
impotente tentativa de silenciá-la, de aniquilá-la. Como no sonho de bater no
cavalo, a fragilidade está sendo ridicularizada. Neste caso, no entanto, é a sua
suposta vítima que está rindo da sua fraqueza e que é vista como um tormento.
Ele percebe que a porta do quarto está aberta e ouve risadas e sussurros. Ele
começa a bater nela com toda a força, e as risadas simplesmente ficam mais
altas. Ele tenta fugir, mas percebe que todas as portas estão abertas. O corredor está cheio de gente, pessoas por toda parte – no térreo, nas escadas – todos
em silêncio, olhando-o com expectativa. Ele congela num ponto, incapaz de
se mexer; essa paralisia só termina quando grita e acorda.
Dostoievski apresenta esse sonho de tal forma que nós primeiramente
acreditamos que ele é real. No sonho, a porta aberta representa uma ruptura na
capacidade de distinguir a realidade interna da externa. Quando Raskolnikov
acorda pensa ainda estar dormindo, e demora um tempo para perceber que
está acordado. A primeira coisa que vê quando abre os olhos é que a porta de
seu quarto está aberta; Svidrigailov está de pé na entrada, observando-o. Uma
mosca está zumbindo dentro do quarto, outro elemento trazido do sonho. Duas
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vezes Raskolnikov se pergunta se ainda está dormindo. Essa divisão, a reversão
da realidade para o mundo dos sonhos, é usada para nos apresentar Svidrigailov e este a Raskolnikov. Esse personagem demoníaco pretende representar a
forma mais bem sucedida da onipotência de Raskolnikov, i.e., destrutiva. Não
por acaso, ele aparece no momento que Raskolnikov se sente mais fraco e desamparado. Medidas extraordinárias, na forma de um super-homem onipotente, são usadas para negar a realidade psíquica.
A primeira ação de Svidrigailov no romance é de ultrapassar a soleira da
porta para dentro do quarto, e Dostoievski usa o mesmo verbo, perestupit, um
momento antes havia usado esse verbo para descrever a falha de Raskolnikov.
O símbolo da soleira da porta converge novamente para os três significados
descritos anteriormente. Svidrigailov despertou a curiosidade de Raskolnikov
dizendo que os seres humanos, especificamente as mulheres, amam ser insultadas. As mulheres gostam de ser espancadas; na verdade, “podemos dizer que
é a única diversão delas” (p. 245). Que Svidrigailov acredita nisso e ao mesmo
tempo não acredita, isso é evidenciado pela sua paixão por jovens garotas inocentes. Sua perversão é violentá-las, por maldade e inveja. O prazer da perversão é que ele sabe que elas não gostam de sofrer. A atração pelas inocentes é
para negar isso, ou seja, fazê-las sofrer.
Svidrigailov pretende representar um dos aspectos da personalidade de
Raskolnikov, a idealização da destrutividade, levada ao extremo. Sua perversão
é baseada em uma reversão do bem e do mal. Criatividade e destrutividade,
com uma escolha deliberada da última. Svidrigailov fascina Raskolnikov, não
por causa de uma latente atração homossexual, nem por que ele materializa
os desejos incestuosos deste para com sua irmã, como muitas interpretações
sugerem, mas porque personaliza o super-homem onipotente, que tem controle sobre seus sentimentos, ultrapassa suas limitações e, mais importante,
é livre de culpa. Svidrigailov diz a Raskolnikov precisamente o que ele mais
queria ouvir: Que ele não precisa se sentir culpado por ferir sua mãe e irmã.
Ele descreve Dounia como uma mártir. “Ela está sedenta por ser torturada por
alguém, e se não conseguir, irá se jogar da janela.” (p. 409) As mulheres querem
sofrer; elas amam isso; então em vez de sentir culpa, podemos pensar nisso
como o dever de se aproveitar delas.
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Um momento depois, no entanto, nós temos uma imagem de Svidrigailov relacionada à Dounia bem diferente. Ele está dizendo que a ama. “Deixe-me
beijar a bainha de seu vestido, deixe-me, deixe-me... a sua seda seria demais
para mim. Diga-me ‘faça isso’ e eu farei. Eu farei tudo. Eu farei o impossível. O
que você acredita, eu também acreditarei. Eu farei qualquer coisa - qualquer
coisa mesmo!” (p. 425) Ele está se declarando para ela, mas seu tom é muito
penoso. Ele a idealiza enquanto nega a si mesmo. Ele está se rebaixando, implorando para ser seu escravo, completamente fora de controle. Novamente
somos relembrados que, no mundo desse romance, amar significa ser dominado tanto pela sua própria paixão quanto pelo outro.
Mas então uma mudança recai sobre ele, e “ele retorna a si mesmo”.
Ele está novamente no controle, isento de emoções espontâneas - e agora Dounia está assustada e desamparada. Mesmo quando ela aponta uma arma carregada para ele – na verdade, particularmente nessa hora – está sob controle.
Svidrigailov está afirmando sua bravura, apagando sua humilhação previa.
Ele controla suas emoções, sobretudo quando vê a morte cara a cara. Sua dominação e controle aparecem completamente. Quando ela larga a arma, ele
sente como se tivesse sido salvo de seu isolamento sombrio, mas no momento
seguinte os olhos dela dizem outra coisa. “Então você não me ama?”, ele perguntou suavemente. Dounia abanou a cabeça. “E... você não poderá? Nunca?”
Ele sussurrou com desespero. “Nunca!” (p. 428). Seu destino está selado após o
reconhecimento da realidade psíquica e da realidade exterior, todas as tentativas para se aproveitar da sua sexualidade, dominá-la ou usá-la, são descartadas. O confronto ilustrou dramaticamente a diferença entre controlar outra
pessoa como um objeto a parte e ter uma relação real baseada no reconhecimento da separação e da independência. É tal reconhecimento que torna
Svidrigailov mais heróico, realmente mais saudável, do que Raskolnikov, no
entanto, curiosamente, é nesse ponto que aquele personagem está “condenado” e este está “salvo”.
O próximo capítulo contém a preparação e os detalhes do suicídio de
Svidrigailov. Ele primeiro visita Sonia com o objetivo de assegurar seu futuro,
como também de sua pequena irmã e irmão. Ele então visita sua noiva de dezesseis anos para explicar-lhe sua falta e também para provê-la. Sua generosidade,
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seus bons atos, leva os críticos a apontar sua indiferença com a moralidade,
que ele não distingue entre bem e mal e é perfeitamente capaz dos dois. Nós
lembramos Raskolnikov, pensando em fontes e flores embelezando a cidade,
enquanto estava a caminho para cometer o assassinato. A ação de Svidrigailov,
no entanto, beneficia os outros, e como é o primeiro a reconhecê-lo, serviria
para manter as crianças das duas famílias fora do alcance de alguém como ele.
Ele pensa em Dounia. “Quem sabe? – Talvez de algum modo ela tivesse
feito de mim um novo homem...” (p. 435) Ela teria sido a sua salvação. A relação com uma mulher é vista como uma forma de conectar-se com a vida. A
impossibilidade disso só aumenta a sua inveja, então seus pensamentos focalizam no ódio do nascimento, das crianças e da criatividade. “Como eu detesto
o som das árvores... Eu nunca gostei de água.” (p. 435) Ele cochila e no seu sono
continua sendo perturbado por múltiplas pequenas coisas e variadas imagens
de fecundidade que o perseguem. Um rato corre por seu corpo. Ele pensa em
flores, muitas flores em abundância. Ele ouve o som da chuva caindo e, numa
perversão maravilhosa do símbolo do nascimento, pensa em como o rio irá
transbordar e os ratos do celeiro serão arrastados para fora pelas águas. Ele
imagina que se mata debaixo de um grande arbusto, encharcado pela chuva,
com milhões de pingos caindo em sua cabeça. Há moscas em sua carne. A revolta da paixão representada por ninharias.
Ele sonha com uma garota de catorze anos vestida de branco, deitada
em um caixão forrado com seda branca e circundada por uma profusão de flores. Lembra-se da garota que tirou sua própria vida depois que ele a seduziu.
Nesta hora sentimos o mesmo que ele: o fim da sua inocência e esperança,
a aniquilação da sua capacidade de sentir. Então ele tem um segundo sonho,
este com uma criança negligenciada, uma menina de cinco anos que se transforma em uma desavergonhada meretriz, o rosto dela sendo a face que ri da
depravação dele.
O par de sonhos se assemelha de diversas formas aos dois primeiros
sonhos de Raskolnikov. Nós relembramos que Svidrigailov apareceu pela primeira vez quando Raskolnikov estava acordando de seu segundo sonho, como
se fosse a resposta ao reconhecimento por parte de Raskolnikov do seu próprio desamparo. Agora Svidrigailov reconhece o seu próprio desamparo. Nessa
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última ação antes do suicídio, ele não consegue pegar nem uma mosca.
O suicídio se dá do lado de fora de uma grande casa. Seus grandes portões estão fechados como uma confirmação de que o corpo da mãe é inválido
e que a separação do bom objeto é permanente.[14]
Na entrada da casa há um pequeno homem, um judeu usando um
casaco de soldado e um capacete de Aquiles. A imagem deste homem fraco e
ineficiente, disfarçado de soldado, é a imagem da onipotência, um menininho
que pretende ser poderoso. Ao ser descrito como Aquiles, ele se identifica com
o herói invencível, o super-homem todo-poderoso que não pode ser tocado
pelos outros, não pode ser derrotado, exceto pelo seu próprio erro fatal. Svidrigailov venceu as barreiras. Seu erro? Tomando conhecimento da futilidade
do controle onipotente, ele reconhece seu vazio e seu isolamento. Percebe que
suas forças destrutivas destruíram o objeto que ele amava e do qual ele dependia, não só como um objeto externo, mas interno também. Sua agressão destruiu a própria capacidade de dar e receber amor. A fragmentação resultante
e a reorganização paranóica do seu mundo não o impedem de reconhecer o
que fez. É por essa razão, penso eu, que Svidrigailov nos toca. Ele é simpático e
bem diferente da encarnação do mal que foi o intento inicial de Dostoievski.
Uma ideia central, que percorre todo o romance e se incorpora respectivamente aos destinos de Svidrigailov e Raskolnikov, é que não importa se
no fim há salvação ou morte, isso depende do relacionamento com uma mulher. A mulher é vista como absolutamente essencial para a sobrevivência; o
homem é dependente dela já que ela dá a ele algo que ele não consegue dar
a si mesmo. A vulnerabilidade envolvida no reconhecimento é vencida através da negação da independência da mulher ou separação de si mesmo; ela
é desvalorizada, tratada como um objeto separado, controlada. Não há gratidão pelo que foi recebido. E há uma absoluta necessidade de evitar qualquer
14.O local é cuidadosamente escolhido por Svidrigailov, depois de considerar algumas outras possibilidades. Num dado momento, ele percebe a importância de tal escolha: “Eu me tornei mais
particular, como um animal que escolhe um lugar especial... para tal ocasião.” (p. 435) As últimas
palavras que ele então ouve são do pequeno judeu repetindo: “Você não pode fazer isso aqui, este
não é o lugar.” (p. 440) Há uma ironia particular. Svidrigailov tem um censo de locação, contrastando
com a intromissão de Raskolnikov; é este último censo de seu local psicológico que determina o
suicídio.
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sentimento de culpa relacionado à forma como a trata. Juntamente com Svidrigailov e Raskolnikov, variações do mesmo tema são encontradas em Marmeladov, Luzhin e Razumihin.
Luzhin é claramente o personagem mais negativo e antipático do romance, e Razumihin é o mais saudável. Luzhin nos diz “Dounia era simplesmente essencial para ele; estar sem ela seria impensável”, ele se regozija com
seu plano de reverter a disputa no relacionamento deles, de forma que seja
ele quem estará no pedestal, venerado e admirado por ela, colocado como seu
salvador. A posição desamparada dela o excita, já que isso o impele a trocar de
papel com ela, a virar a mesa em cima dessa mulher que tinha tanto mais do
que ele. “Aqui está uma garota de caráter, virtude e educação superiores aos
seus (ele sentia isso), e essa criatura estaria eternamente grata pela heróica
condescendência dele, se atiraria na poeira do chão antes dele, e ele teria absoluto poder sobre ela.” (p. 267) Em todas as relações entre homem e mulher
ou se domina ou se é escravo.
O papel de escravo pertence à Razumihin, que se apaixonou por Dounia à primeira vista, e no seu primeiro encontro murmura: “Estou falando
bobagens, eu não mereço você... eu não mereço você absolutamente!” (p. 175)
“... Você é uma fonte de bondade, pureza e sentido... e perfeição... eu gostaria
de beijar suas mãos agora, aqui de joelhos...” (p. 176), e nesse momento ele cai
de joelhos na calçada e tenta beijar as mãos dela, enquanto Dounia e sua mãe
protestam e se perguntam sobre sua sanidade. Tentativas são feitas para atribuir seu comportamento e sua fala ao fato dele estar bêbado. Razumihin idealizou Dounia desde a primeira vez que pôs seus olhos nela, ele a tem em um
pedestal onde está marcado “bondade, pureza, sentido e perfeição”, e ele se
põe de joelhos para adorá-la e servi-la. Naturalmente, ele sente que não merece tal perfeição. Há diversas razões para idealização, incluindo a proteção do
objeto idealizado para que ele não sofra dano, ou seja ferido, o que iria mexer
em sentimentos como perda, tristeza e culpa. Uma mulher em um pedestal é
mantida a uma distância segura. Nós vemos que não importa o quão ridículo e
fora de controle o comportamento de Razumihin tenha sido, ele se sente mais
seguro com sua idealização. Será que Dounia deveria “estar vestida de rainha,
ele percebeu que não teria medo dela, mas talvez pelo fato de estar pobremente
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vestida, e assim ele perceber toda a miséria do entorno, seu coração estava
cheio de horror e ele começou a ter medo de qualquer palavra que pronunciasse, qualquer gesto que fizesse” (p. 188).
Diferente de Raskolnikov, entretanto, Razumihin não culpa a mulher
por provocar tais sentimentos nele, nem pretende controlá-los. Não há nenhuma tentativa de manipular Dounia e nem de reverter a relação deles; em
resumo não há associação com o controle onipotente e nem com os mecanismos projetivos de Raskolnikov. Razumihin aceita a responsabilidade, não só
por si mesmo, mas para ajudar Dounia, seu irmão e mãe. Ele é o único dos
cinco homens capaz de fazer reparação.
Nos três encontros que Raskolnikov tem com Sonia, ele faz uso extensivo da projeção, e há uma recapitulação de muito que já descrevi. No começo
ele está frio, tenta quebrar todas as defesas dela e mostrar o pior da realidade
de sua situação, a futilidade de todos seus esforços. Ele a atormenta com aquilo
que o atormentava: Seu fracasso em sustentar sua família. “Você precisa encarar as coisas de frente” (p. 286), ele diz para ela, isso é precisamente aquilo
que não consegue fazer.
Ele não se relaciona com ela como um indivíduo, mas como um tipo
de privada psíquica onde ele pode evacuar. Essa é frequentemente a função
da prostituta. Ele tenta fazê-la sentir-se desamparada, inútil, culpada e humilhada por se revelar. Manipulando esses sentimentos nela, ele pode manter-se
distante e em controle, mas então percebe que todas suas cruéis desaprovações, sua previsão de um futuro terrível, suas sugestões para que se mate – todas essas coisas que ela havia pensado antes, talvez repetidas vezes: Ela nem
percebe a crueldade dele, Sonia aparece incorrupta por suas experiências; ela
permanece pura entre toda sujeira. Ele fica intrigado pela sua habilidade em
resistir a todos os ataques.
Raskolnikov descobre a solução dela: “Deus! Ela é uma maníaca religiosa.” Ele a força a ler a história de Lázaro, do novo testamento. Sua motivação
é perversa, destrutiva. Ela costuma ler para Lizaveta e agora está revelando seu
“tesouro secreto” para ele. “Via em parte por que Sonia não conseguia ler para
ele, e quanto mais via isso, mais insistia de forma grosseira e irritada para que
ela lesse. Ele entendia bem o quão doloroso era para ela trair e revelar algo que
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era seu.” (p. 283) No fim, ele acaba revelando seu doloroso segredo a ela. Que
conseguiu se aliviar à custa dela e ao reverter seus papéis, se sente momentaneamente triunfante, mas também confuso em relação à separação de suas
identidades. “Nós somos o mesmo” (p. 288), ele lhe diz.
Em um dado momento, Raskolnikov se relaciona com o sofrimento de
Sonia com desprezo e ódio, enquanto no outro o idealiza. A responsabilidade
também não é diretamente ligada à Sonia. No meio de seu cruel abuso, de repente se agacha no chão e beija os pés dela. “Não é pessoal”, diz ele; “eu não
me curvei a você, eu me curvei a todo sofrimento da humanidade” (p. 279). Depois explica que ela está perto de ouvir o que tinha a dizer antes de encontrá-la, antes dos assassinatos, quando seu pai falou pela primeira vez sobre ela.
Depois de confundi-la e assustá-la, ele sai no mesmo espírito de triunfo
maníaco com o qual saiu da casa dos Marmeladov. “Quebre o que deve ser quebrado, de uma vez por todas... Liberdade e poder e. sobretudo, Poder! Sobre todo
tremor da criação, sobre todo formigueiro!... Esse é o objetivo, lembre disso! Essa
é minha mensagem de despedida.” (p. 287) Percebemos que, particularmente
nesse estado de espírito, sua metáfora final é destrutiva. Raskolnikov nunca
fala em reparação, a necessidade de arrumar as coisas, colocá-las em ordem.
Na segunda vez que Raskolnikov visita Sonia, ele vai lhe dizer quem
matou Lizaveta. As respostas que Raskolnikov dá à Sonia alternam, dependendo
das respostas dela, aumentam ou diminuem a ansiedade e culpa. Quando ela
lhe mostra que não se fere com seus ataques, e que consegue aceitá-lo, seu desconforto se torna mais tolerável e ele pode enxergar melhor suas dificuldades.
Mas primeiro ele percebe que ela está esperando algo dele, que sente ser inadequado entregar, se sente desconfortável, e a culpa. “De repente, uma estranha
e surpreendente sensação de ódio por Sonia passou por seu coração.” (p. 351)
Ele levanta a cabeça e olha diretamente nos olhos dela, e para sua surpresa não
vê nem uma vítima, nem uma perseguidora. “Havia amor em seus olhos, seu
ódio se desfez como um fantasma.” Como uma boa mãe, ela é capaz de conter
seus sentimentos de ódio e transformá-los através do amor.
Ele reconhece seu erro; sentiu-se desamparado e imediatamente teve
a urgência de se livrar desse sentimento, projetou-o de forma violenta, através do ódio. “Não era o sentimento real, ele trocou um sentimento por outro.
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Isso significa que o minuto chegou.” Esse “minuto” significa que está na hora
de confessar; mas com um intento ambíguo, pois se refere ao que foi para ele
uma experiência similar. “Sua sensação naquele momento era terrivelmente
parecida com o momento em que ele estava na frente da velha com o machado
na mão e sentiu que ‘não poderia perder nem mais um minuto’.”
Significativamente, ele foi contar a ela sobre Lizaveta. Lizaveta e Sonia
são similares, e pedir perdão à Sonia de certa forma cancela os assassinatos. É
importante, também, que Raskolnikov não fale realmente para Sonia, mas comunique como o fez com uma série de sentimentos importantes e estados de
espírito - nós chamaríamos de projeções - através dos olhos, olhando no rosto
do outro e experimentando o que está sendo comunicado. “Pode adivinhar?”
ele pergunta. “De uma boa olhada.” Então, “ele olha para ela e de repente parece ver no rosto dela o rosto de Lizaveta.” Ela o olha como fez Lizaveta, como
uma criança assustada. “Seu terror o infectou. O mesmo medo se mostrou em
seu rosto.” (p. 353) Quando ela percebe o que ele fez, não diz nada. Novamente
ela intencionalmente o olha nos olhos. Ele não aguenta seu olhar e implora
que pare de torturá-lo.
Esse não foi o jeito que ele imaginou que aconteceria. Mas, então, ela se
atira de joelhos na frente dele. “Não há ninguém, ninguém nesse mundo mais
infeliz do que você!” O coração dele amolece e lágrimas enchem seus olhos.
“Então você não vai me deixar, Sonia?” (p. 354) Até agora, ela aceitou tudo, não
o fez se sentir culpado, até mesmo o fez sentir que precisava dele. Da mesma
forma que ele sempre tentou se livrar de qualquer fraqueza, de qualquer sentimento desconfortável, chegou à conclusão de que ela, sua família, qualquer
um, assim que soubessem, não iriam querer nada com ele. Ela o aceitou.
Mas agora ela diz que ele está se entregando. Ele recua e se torna hostil.
Além disso, ela espera uma explicação. Ela tenta tornar os assassinatos compreensíveis, percebe que ele mesmo não entende, e que não tem uma explicação para lhe dar. Quando ela faz um comentário, que novamente demonstra
sua aceitação, sua ansiedade diminui, e ele é capaz de refletir e momentaneamente ter um insight. “Eu vim até você para uma coisa – não para me deixar...
Porque eu não aguento meu fardo e vim despejá-lo em outro; você também
sofre, e eu devo me sentir melhor!” Ele esteve buscando alivio sem reparação,
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sem nenhum arrependimento. A resposta dela, que é apontar que ele também
sofre, de novo faz com que se sinta mais tolerável. “Nós somos tão diferentes”,
ele percebe finalmente. “Nós não somos parecidos.” (p. 356)
Ainda tentando encontrar uma explicação, ele conta a ela sobre sua teoria do Napoleão. Sonia repele a falha dele de não enxergar o que fez. “Eu apenas matei um piolho, Sonia, uma criatura danosa, inútil e asquerosa.” (p. 358)
Ela não o aceita, e salienta que ele é responsável por matar outro ser humano.
Isso ele não quer ouvir – e responde à dolorosa realidade da intervenção dela
como se esta fosse um ataque. Sua resposta é atacar a si mesmo, do mesmo
jeito que percebemos primeiramente com Marmeladov. Tudo que Raskolnikov
diz aqui está correto; mas é, em certo sentido, irrelevante. Primeiramente, ele
evita falar qualquer coisa sobre o ponto crucial que ela apontou: Que ele tirou
uma vida humana. Segundo, seu ataque verbal contra si mesmo é uma caricatura da consciência e não o coloca em contato com qualquer responsabilidade
pelo que fez, ou leva a uma atitude positiva, qualquer desejo de mudança. Eu
sou pior do que isso, ele disse a ela “eu sou fútil, invejoso, malicioso, baixo, vingativo e... bem... talvez com uma tendência para a insanidade”. Ele poderia ter
ficado na Universidade, poderia trabalhar como Razumihin, “me tornei mal-humorado e não fiz nada (Sim, mal-humor, essa é a palavra certa para isso!).
Fiquei sentado no meu quarto como uma aranha” (p. 359).
Como isso não é uma aceitação da culpa ou da responsabilidade, não
nos surpreendemos quando abruptamente se transforma em um ataque contra os outros. Ele acredita que os outros são idiotas, que eles nunca vão mudar, e que “não vale a pena gastar esforços para isso... e eu sei Sonia que aquele
que é forte tanto na mente quanto no espírito terá poder sobre eles. Qualquer
um que seja muito audaz estará na frente deles. Aquele que despreza a maioria
das coisas será um legislador entre eles e aquele que for mais audacioso de todos estará mais certo!” (p. 359. Itálico do autor). Qual é a expressão mais clara
que poderíamos receber do “super” ego que afirma sua superioridade encontrando erros em tudo?!
Quando Sonia o interrompe e acalma seu desvario, ele se tranquiliza e,
penso eu, momentaneamente retorna ao profundo estímulo criminoso. Ele insiste que não era relacionado à culpa por sua mãe e sua irmã, mas “por matar
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seguindo meus próprios motivos, para mim mesmo... não foi para ajudar a minha mãe que eu cometi os assassinatos – isso não faz sentido... cometi o crime
para mim mesmo, só para mim”. Se não estivéssemos pensando que ele está
protestando demais, sua próxima negação é ainda mais sugestiva. “Ou eu me
transformei em um bem-feitor para os outros, ou passei minha vida inteira
como uma aranha pegando os homens na minha teia e sugando a vida dos
homens (sic), eu não teria aguentado até esse momento.” (p. 360) De novo, o
símbolo da sua voracidade oral e culpa a aranha e o piolho, que vivem dos outros e sugam até secarem.[15]
Ele decide, no fim desse encontro, que esteve com muita pressa para
se condenar, que deveria ter lutado por isso. Ele também sente algo diferente
por Sonia. Antes ele sentiu que poderia usá-la para se livrar de seu sofrimento,
agora sente que adicionou mais um fardo e que agora tem que se preocupar em
se sentir culpado por ela. “Ele sentiu mais uma vez que talvez pudesse odiar Sonia, agora que a fez ainda mais miserável. Por que ele foi até ela implorar pelas
suas lágrimas? Por que ele precisava envenenar sua vida?” (p. 365)
A confissão de Raskolnikov para Sonia não só o fez lembrar de seus sentimentos na hora dos assassinatos, mas repetiu a mesma dinâmica que o levou
a cometê-lo. Tendo ido ao encontro de Sonia em uma necessidade desesperada,
ele agora percebe que a sua relação está arruinada. Seus sentimentos misturam culpa e ira; ele não sabe a quem culpar. Ele se sente fraco e inadequado
na frente de uma mulher que percebeu estar esperando mais do que poderia
dar. De forma característica, ele responde a isso com raiva. Quase, simultaneamente, suspeita que fosse ele quem estava demandando, que estava pedindo
demais para ela. Já que o uso de mecanismos projetivos resulta em confusão
entre si mesmo e os outros, ele não sabe qual desses dois foi longe demais.
Os esforços de Raskolnikov em escapar de qualquer compreensão da sua
posição requerem outras pessoas que ele pode usar como continentes das suas
15.A aranha que está no pensamento de Raskolnikov sobre si-mesmo é também usada para representar Svidrigailov, é talvez o símbolo mais conhecido de destrutividade oral e medo de ser amado.
A aranha está associada à ameaça da teia materna baseada na projeção dos impulsos agressivos
orais da criança. Ver Abraham (1922), Esterba (1950) e Little (1966). No parágrafo Raskolnikov evita
saber que as mulheres, representantes das mães, são os alvos de suas agressões.
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projeções, e culpá-las por suas dificuldades. Identificação com esses aspectos
projetados do si- mesmo resultam em sentimentos de sufocação e claustrofobia. É significante que Svidrigailov e Porfiry Petrovich, as únicas duas pessoas
que entendem alguma coisa de sua estrutura psicológica, repetidamente lhe
dizem que o que ele precisa é de ar fresco.
Sua necessidade de adversários, outras pessoas com as quais ele possa
ficar com raiva, é plenamente afirmado: “Não, melhor a luta novamente! Melhor Porfiry de novo... ou Svidrigailov... melhor ter algum novo desafio... algum ataque.” (p. 380) Pensar em sua mãe e irmã, e agora em Sonia, o reduz ao
pânico; desta forma, ele precisa de alguém como Porfiry ou Svidrigailov para
insultar. Eles são perseguidores externos, e o seu contra-ataque é diretamente
exterior. Ele se sente certo, vingado, e forte.
Quando, depois de uma conversa com Razumihin, ele acredita que Porfiry suspeita dele e que armou um plano para pegá-lo. Ele sente “renovada de
novo à luta, uma forma de escapar apareceu”. Perceba as palavras que ele usa
para descrever a mudança entre tormento interior e luta exteriorizada. “Sim,
uma forma de escapar apareceu! Foi duro e fiquei paralisado, o fardo foi muito
agonizante... desde o momento da cena com Nikolay na casa de Porfiry ele esteve sufocado, cercado sem esperanças de escapar.” (p. 384. Itálico do autor) Porfiry
diz a ele: “Se você fugisse você voltaria por si mesmo. Você não fica sem nós.” (p.
397) É por causa disso, e particularmente porque ele não pode arriscar perder
ou ferir Sonia, que confessa.
Logo antes de ir confessar, ele é visitado por sua irmã. Quando Dounia
fala sobre pagar pelo seu crime encarando seu sofrimento, Raskolnikov explode.
“Ele grita furioso: Crime? Qual crime? Se eu matei um inseto vil e nocivo, uma
velha agiota, sem utilidade para ninguém... que não serve para nada, matá-la
foi um pagamento para quarenta pecados. Ela estava sugando a vida de pessoas pobres... só agora eu vejo claramente a imbecilidade da minha covardia,
agora que eu decidi encarar essa desgraça supérflua. - E só porque eu sou desprezível.” (p. 466) De acordo com Raskolnikov ele é desgraçado porque é fraco
e covarde. O crime é estúpido e mal feito porque falhou. “Eu estou mais longe
do que nunca de pensar que o que eu fiz foi um crime”, ele argumenta (p. 447).
Depois que Dounia vai embora, ele pensa consigo mesmo, “mas por
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que eles se preocupam comigo se eu não mereço? Oh, se ao menos eu estivesse
sozinho e ninguém me amasse e eu nunca tivesse amado ninguém! Nada disso
teria acontecido” (p.448). Até agora, podemos apreciar a verdade do ponto de
vista de Raskolnikov, e saber qual fardo de culpa está classificado como amor.
Nós também percebemos que ele ainda está culpando os outros. A agiota por
ser tão gananciosa, sua família por amá-lo; e ele ainda fala da necessidade de
quebrar coisas ao invés de repará-las.
Quando Raskolnikov vai ao posto policial, sua covardia se apodera dele
e vai embora sem confessar. A fuga é momentânea, no entanto, para o que o
espera lá fora é mais do que ele poderia suportar. “Lá, não muito longe da entrada, estava Sonia, pálida e horrorizada. Ela olha ferozmente para ele. Ele ficou parado na sua frente. Havia um olhar em sua face de agonia pujante, de
desespero.” (p. 457) Esse momento é o clímax do romance, pois justapõe o olhar
amedrontado de Marmeladov para sua esposa, e as reclamações de Svidrigailov sobre o olhar mortífero de Dounia. O movimento espacial da cena de abertura também é reprisado, a mulher esperando na soleira da porta, obstruindo
seu caminho. Raskolnikov não aguenta encarar Sonia e, por meio disso, experimenta o que está fazendo com ela; ele perde a coragem. “Seus lábios construíram um sorriso feio e vazio. Ele fica parado por um instante, arreganha os
dentes e volta para o posto policial.” (p. 457)
IV
O epílogo, como mostra Wasiolek (1959), é uma “fonte de perpétuo embaraço
para os apologistas de Dostoeviski”. Pode ser artisticamente fraco, porém é
psicologicamente consistente com os capítulos anteriores do romance. Podemos apreciar a sabedoria de não acabar com a confissão, já que a obrigação de
confessar nas circunstâncias descritas dão para Raskolnikov a oportunidade
de sentir-se novamente irritado. Além disso, agora que ele parou de correr fisicamente, os aspectos narcisistas de sua personalidade se tornam mais discerníveis (Rosenfeld, 1964).
A mãe de Raskolnikov ficou seriamente enferma. Seus pensamentos
estão completamente voltados para seu filho, e ela enlouquece nos seus esforços de se certificar que ele irá voltar. Ela não sabe sobre seu julgamento ou sua
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prisão, e não lhe foi dada nenhuma explicação sobre seu desaparecimento. É-nos dito que Raskolnikov se preocupa muito com ela, mas mesmo assim ele
prevê que sua depressão progressiva logo acabará, fatalmente; nem ele nem os
outros pensam em lhe contar nem mesmo a verdade parcial. O conhecimento
do que aconteceu é-lhe negado, e o que ela não sabe a mata.
Da mesma forma que Raskolnikov lidou com aspectos inaceitáveis de
sua personalidade através da tentativa de se livrar deles ou aniquilá-los, ele
acredita que sua família iria tratá-lo da mesma forma, e iria querer se livrar
dele se for culpado, ou fraco, ou mesmo se estiver errado. Ao antecipar a rejeição de sua mãe, ele a deixa primeiro. Ela acaba sentindo que seu filho a abandonou, fica louco e sucumbe por causa disso. Há quase um sentido de revanche
neste ponto, uma virada de mesa. Aquilo parece tão desnecessário adicionado
à crueldade. Poderia seu destino ter sido pior se ela soubesse a verdade? Isso
geralmente passa sem ser notado, mesmo por aqueles leitores que reconhecem a morte da agiota como um símbolo ou um assassinato deslocado da mãe.
Há mais uma razão para essa morte aparentemente sem sentido. A necessidade de Raskolnikov de destruir a fonte original de amor e gratificação
para eliminar a fonte de inveja. Essa ideia se apoia na forma com que as coisas
são trazidas. A mãe de Raskolnikov espera que ele volte em nove meses e ela
começa a preparar a sua chegada, arruma seu quarto, etc.. Ela morre de desapontamento; seu desejo é negado. O nascimento, ou renascimento, não acontece, pelo menos não para ela. O nascimento, ou renascimento subsequente
contrasta com a esterilidade dela, suas esperanças e expectativas frustradas.
A ressurreição de Raskolnikov reproduz os assassinatos em vários aspectos. Os dois eventos são imediatos, precedidos de fantasias de uma reunião
oceânica, desta forma a fusão com uma mãe interna, idealizada, torna a mãe
externa desnecessária. É como se Raskolnikov estivesse dizendo que não precisa mais dela; ele pode ficar melhor sozinho. Esse seria o último roubo. Primeiro uma hostil substituta da mãe foi morta, e agora a própria mãe.
Na segunda metade do Epílogo, Raskolnikov já não está mais lutando
contra sentimentos de culpa; tão pouco demonstra uma capacidade de se
preocupar com os outros. Como ele próprio declara, “minha consciência está
descansando” (p. 467). Raskolnikov está isolado de todos os outros homens.
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Ele pode ficar confortável em seu isolamento precisamente porque todas suas
necessidades são satisfeitas por Sonia, que controla e trata como uma parte
de si-mesmo. Afora do crime de Raskolnikov e seu estado de prisioneiro, ela se
considera abaixo dele em todos os aspectos. Ela está sempre disponível, não
espera nada dele, está satisfeita em ser sua escrava. Os outros prisioneiros
referem-se a ela como a “boa mãezinha”, uma pista adicional ao que Raskolnikov conseguiu com sua dominação e controle sobre ela. Ela está disposta a
aguentar tudo (“Lizaveta, Sonia... Elas aguentam tudo”), e esta não pede absolutamente nada em troca. Se ele olhar para ela, ou notar sua existência, ela
é grata. Enquanto isso, ele a trata com desprezo e não percebe nenhum reconhecimento da necessidade por ela de fato, ela é experimentada como quem
precisa dele. Uma relação narcísica perfeita, onde tanto a dependência quanto
a necessidade são ou negadas ou projetadas nela.
O sonho com micróbios é difícil de interpretar como uma evidência
de redenção moral. Shaw (1973) aponta que Razumihin havia anteriormente
perguntado para Raskolnikov: “Pegou a peste ou o quê?” Uma expressão folclórica que pode ser mais ou menos traduzida por “Está louco?”. Diferentemente
dos sonhos anteriores de Raskolnikov o sonho dos micróbios não é um sonho,
é uma fábula ou um mito.[16]
Ele recapitula os argumentos apresentados no seu artigo e na discussão com Porfiry Petrovich, e é talvez a mais explícita afirmação do que eu me
referi na introdução quando discuti o conceito – K de Bion. Os micróbios de
Raskolnikov “eram dotados de inteligência e vontade. Homens atacados por
eles ficam rapidamente loucos e furiosos. Mas nunca os homens consideraram-se tão inteligentes e tão completamente donos da verdade como esses sofredores, nunca consideraram suas decisões, suas conclusões científicas, sua
convicção moral tão infalível... Cada pensamento que ele tinha sozinho continha a verdade” (p. 469).
Esses micróbios são a ultima versão da perseguição. Partículas
16.Se nós considerarmos que a capacidade de sonhar preserva a personalidade da psicose (Bion, 1962
b, p. 16), então a pergunta de Razumihim seria respondida afirmativamente, e Raskolnikov está
provavelmente longe da verdade nesta fábula sobre a obtenção do autoconhecimento. Oportunamente, ele tem essa experiência dentro do hospital.
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mínimas estilhaçadas que resultaram de uma projeção primitiva forçada
e atacaram tanto Raskolnikov quanto Svidrigailov nos seu momento mais
desesperado. Holquist (1974), na sua discussão sobre o sonho, aponta que as
partículas infecciosas, traduzidas na maioria das edições inglesas como micróbios, são mais especificamente os vermes trichinae, para os Russos trixiny.
Esse é não só um parasita conhecido, mas também é associado a porcos ou
suínos, o que restabelece o tema da voracidade oral e espoliação, os fatores
emocionais de – K. Não nos surpreendemos quando ouvimos como esse conhecimento é usado, “que todos os homens e todas as coisas estavam envolvidas na destruição”.
O resto do mito de Dostoevski descreve a relação entre o individuo
que possui esse conhecimento e seu grupo. Bion escreveu sobre três histórias
como esta, os mitos do Éden, Édipo e Babel, cada um destes lida com a busca
do homem pelo conhecimento e sua punição subsequente por um deus irado
(Bion, 1963). Eu gostaria de comparar o mito de Dostoevski com aquele que,
eu penso se assemelha mais:
“Todos estavam excitados e não se entendiam... As trocas mais comuns
foram abandonadas, por que cada um propunha suas próprias ideias, suas próprias melhoras, eles não conseguiam concordar... Homens se encontram em
grupos, concordavam em algumas coisas, juravam manterem-se juntos, mas
de repente começam algo completamente diferente do que haviam proposto.
Eles se acusam, brigam e se matam.”
“... Imediatamente os construtores se envolveram em incompreensão.
Se o mestre-de-obras dissesse para o pedreiro ’me dê argamassa‘!” O pedreiro
iria lhe dar no lugar um martelo, com o qual o mestre-de-obras iria matá-lo
enfurecido. “Muitos eram os assassinatos cometidos na Torre; e também no
chão, por causa dessa confusão; até que finalmente o trabalho diminuiu seu
ritmo e parou.”
Enquanto cada um dos três mitos tradicionais lida com um tipo específico de conhecimento, eu sugiro que o mito de Babel, citado por último (Graves,
1963, p.126), fala sobre criatividade artística. Sob a supervisão do arquiteto Mirod, os homens tentam construir uma torre que alcance aonde ninguém jamais
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chegou, cruzando o linear do próprio paraíso para o domínio dos deuses.[17]
A punição deles para essa transgressão é a fragmentação da linguagem.
Se considerarmos que, a punição se adapta ao crime, qual a maior punição para
um poeta ou artista do que ser desprovido da oportunidade de se comunicar
através da linguagem, ser reduzido a balbucios?
Onde esses três mitos tradicionais começam com a premissa de que
buscar o conhecimento é um pecado, Dostoevski nos apresenta as consequências da busca do conhecimento a serviço da inveja e da voracidade. Não é
desejável que a noção de intrusividade seja tão persistente, e o saber sempre
é sentido como alcançado a custa de outra pessoa. O sonho dos micróbios é
uma reafirmação da teoria de Raskolnikov sobre a criatividade, que também
é uma teoria do super-homem. Não é surpreendente, que esse sonho de destruição do mundo tenha uma fenda, os poucos escolhidos que são salvos da
praga, homens excepcionais, “destinados a achar uma nova raça e uma nova
vida, a renovar e purificar a terra”. Estes super-homens são invisíveis; em uma
colocação que eu penso prenuncia o fim do Epílogo nos é dito que “ninguém
viu esses homens, ninguém ouviu suas palavras e suas vozes”.
Depois do sonho, Sonia não está lá, e pela primeira vez desde sua confissão Raskolnikov está preocupado com ela. Ele percebe que ela está doente,
com gripe. Será que ela foi infectada pelos micróbios do seu sonho? É forçado a
reconhecer sua necessidade por ela, particularmente quando teme que aquele
mal chegou até ela como um resultado da forma com que foi tratada por ele.
Isso é ainda mais explicitado pelo jeito que ele fica sabendo da doença dela.
A carta dela para ele faz um paralelo com a carta prévia de sua mãe; nos dois
casos, uma mulher sofreu por conta dele, e não lhe contou nada sobre isso até
que fosse tarde.
Quando Raskolnikov olha para fora da janela do hospital, a visão de
17.No seu artigo “A Orestéia” 1963, Klein discutiu Hubris, a qual ela sentiu primariamente pecaminosa
devido à voracidade e espoliação da mãe. “A voracidade se liga ao conceito da moira, que representa a porção repartida para cada homem pelos deuses. Quando a moira é exacerbada, os deuses
punem. O medo de tal punição volta ao fato de que a voracidade e inveja são experimentados contra a mãe, que é sentida como sendo injuriada por essas emoções e que por projeção se torna na
mente da criança uma figura voraz e ressentida. Ela é, portanto, temida como uma fonte de punição, o protótipo de Deus.”
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Sonia, parada na entrada, esperando por ele “apunhalou seu coração”. O romance começou e acabou com tal configuração espacial e mental; no episódio
de abertura em relação à proprietária, e no fechamento do romance quando Sonia o espera na saída do posto policial. Em cada caso, a mulher é um objeto que
está na fronteira, e lembrar de como ele a tratou é mais do que pode aguentar.
Na primeira instância, ele foi levado ao assassinato, na segunda à confissão.
Agora novamente Raskolnikov sente que precisa fazer algo!
O que segue é sua ressurreição e repentina consciência do amor. Ele é
conduzido pelo seu segundo devaneio místico. O imaginário é bem parecido
com aquele que precedeu ao assassinato. A caravana no deserto, com seus camelos descansando, é agora uma tribo de nômades, como Abraão e seu rebanho. Há raios de Sol, cânticos, e de novo um sentimento de atemporalidade.
Os nômades, esses andarilhos, que devem fidelidade a ninguém mais além
deles próprios, dão a Raskolnikov um sentimento de liberdade. É esse sentimento de liberdade que Raskolnikov esteve buscando ao longo do romance;
libertar-se da responsabilidade para com os outros, libertar-se da dependência, libertar-se da culpa.
A fantasia é seguida por um inesperado sentimento de alegria, o sentimento de desistir como parte da experiência mística. De forma característica,
também o amor de Raskolnikov por Sonia não é dito, é comunicado visualmente através do olhar de um para o outro. É uma experiência de tudo ou nada
imediata e total. Leva Raskolnikov para longe da redenção moral, pois ele não
lida com seu crime, os assassinatos, e nem com sua maneira prévia de tratar
os outros; ele esquece tudo isso. Quando começa a pensar sobre seu prévio tormento com Sonia, ele imediatamente se detém. “Mas essas lembranças mal o
perturbam agora; ele sabia que com amor infinito iria agora apagar todos os sofrimentos dela.” (p. 471) Seus feitos futuros irão cancelar suas desfeitas passadas.
No fim, ele tinha razão, era tudo aritmética! “Tudo, até mesmo seu crime, sua
sentença e prisão, pareciam para ele agora no primeiro ímpeto de sentimento
como um fato estranho e externo com qual ele não tinha relação.” (p. 471-472)
Essa falta de relação ecoa a cena do romance quando Raskolnikov experimentou sentimentos similares (ou falta deles) em relação à proprietária e
sua dívida com ela. Repetindo o nascimento imaginário, nós também somos
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trazidos de volta à cena de abertura, talvez tendo percorrido um círculo completo. Sonia e Raskolnikov passam mais sete anos na Sibéria; mas sobre a regeneração do caráter de Raskolnikov, Dostoievski nos diz que seria uma outra
história.
Normas
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO[1]
Marly T. M. Goulart
Rua Pará, 65, cj. 82
Higienópolis
(11) 3129-5415
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Julia Paladino
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1. Linha Editorial
O Boletim Formação em Psicanálise, revista do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, tem por proposta editorial a divulgação
de trabalhos relacionados à psicanálise e campos afins, numa tendência contemporânea de integração e complementaridade. Nesse sentido, valorizamos
a diversidade na busca de articulações com outras áreas de conhecimentos,
tendo como finalidade maior a busca da compreensão do sofrimento humano
e a constante (re)construção metapsicológica.
2. Normas Gerais
Os originais devem ser enviados para a Comissão Editorial da Revista Boletim
Formação em Psicanálise (endereço logo abaixo). Se o material estiver de acordo
com as normas estabelecidas pela revista, ele será submetido à avaliação do
Conselho Editorial. O artigo será lido por dois membros do Conselho, que poderão rejeitar ou recomendar a publicação de forma direta ou com sugestões
para reformulações. Caso não haja consenso, haverá uma terceira avaliação.
Se dois conselheiros recusarem o material, este será rejeitado para publicação.
Os originais não serão devolvidos, mesmo quando não aprovados. Sendo o artigo aprovado, sua publicação dependerá do programa editorial estabelecido.
1. Baseadas no estilo de normalizar de acordo com as Normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas – NBR 10.520, 2002).
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Folha de rosto
Deverá constar o título do trabalho em português; nome do autor e sua qualificação (3 linhas no máximo); endereço (com CEP); telefone/fax (com DDD);
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autor durante o processo de avaliação do seu trabalho.
3. Tipos de Trabalhos
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máximo 10 linhas) com palavras-chave (no mínimo 3 e no máximo 5); título
do trabalho em inglês; abstract com keywords (no mínimo 3 e no máximo 5).
Os resumos e as palavras-chave devem ser digitados em itálico.
Além de artigos, a revista publica leituras (comunicações, comentários), resenhas de livros, conferências, entrevistas e traduções.
A tradução deve apresentar também uma cópia do trabalho original,
com todas as indicações sobre a edição e versão de que foi traduzida, acompanhada da autorização do autor.
5. Citações
4. Apresentação dos Originais
Os originais deverão ser enviados em três cópias impressas, acompanhadas
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Padrão gráfico indispensável na digitação do texto
▪▪ o texto deverá ser digitado em uma só face (frente);
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seções.
As citações são feitas pelo sobrenome do autor ou pela instituição responsável
ou ainda, caso a autoria não seja declarada, pelo título de entrada, seguido da
data de publicação do documento, separado por vírgulas e entre parênteses.
Citação textual
▪▪ Até 3 linhas – deve ser inserida no corpo do texto, entre aspas e com
indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de referência. Exemplo: Ferraz (2000, p. 20) considera “como tipicamente
perversos certos atos ou rituais praticados com o consentimento
formal do parceiro”.
▪▪ Com mais de 3 linhas – deve aparecer em destaque e com recuo de
margem esquerda de 4 cm, sem aspas, espaço simples, corpo 11 e
com indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de
referência. Exemplo:
Freud (1905/1980, p.86) ensina:
Esse último exemplo chama atenção para o fato de que é essencialmente a
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unificação que jaz ao fundo dos chistes que podem ser descritos como “respostas prontas”. Pois a réplica consiste em que a defesa, ao se encontrar com
a agressão, “vira a mesa sobre alguém” ou “paga a alguém com a mesma moeda” – ou seja, consiste em estabelecer uma inesperada unidade entre ataque
e contra-ataque.
Citação indireta
O sobrenome do autor é apresentado dentro dos parênteses em letras maiúsculas seguidas, seguido do ano da publicação. Exemplo: Em O mal-estar na civilização Freud faz um esforço para circunscrever o mal-estar na modernidade ao
tecer seus comentários sobre as relações entre sujeito e cultura (BIRMAN, 1997).
Citação de autor
▪▪ No caso de autores cuja obra é antiga e foi reeditada, citar o sobrenome do autor com a data publicação original, seguida da data
da edição consultada. Exemplo: Freud (1915/1980) ou (FREUD,
1915/1980).
▪▪ No corpo do texto deverá constar o sobrenome do autor acrescido
do ano da obra. Exemplo: Reik (1948).
▪▪ Fora do corpo do texto (citação indireta) o sobrenome do autor deve
vir em letras maiúsculas, seguido do ano da publicação entre parênteses. Exemplo: (REIK, 1948).
▪▪ No caso de dois ou três autores os sobrenomes devem ser ligados
por “&” no corpo do texto e por “;” fora do corpo do texto. Exemplo:
Ades & Botelho (1993) ou (ADES; BOTELHO, 1993).
▪▪ Caso tenha mais de três autores, deverá aparecer somente o sobrenome do primeiro, seguido da expressão “et al.”. Laing et al. (1974)
ou (LAING et al., 1997). Obs.: Na lista final de referências todos os
nomes dos autores deverão ser citados.
▪▪ Em caso de autores com o mesmo sobrenome, indicar as iniciais
dos prenomes. Exemplo: Oliveira, L. C. (1983) e Oliveira V. M. (1984)
ou (OLIVEIRA, L. C., 1983; OLIVEIRA V. M., 1984).
▪▪ Se houver coincidência de datas de um texto ou obra do mesmo
autor, distinguir com letra minúscula, respeitando a ordem alfabética do artigo. Exemplo: Freud (1915a, 1915b, 1915c) ou (FREUD,
1915a, 1915b, 1915c).
▪▪ Caso o autor seja uma entidade coletiva, deve ser citado o nome
da entidade por extenso. Exemplo: American Psychological Association (2000).
Citação de citação
Utilizar a expressão “citado por”. Exemplo: Para Rank (1923) citado por Costa
(1992)...
Citação de depoimento ou entrevista
As falas são apresentadas no texto seguindo-se as orientações para “citações
textuais” e devem vir em itálico. Exemplo: O relato a seguir ilustra bem esse aspecto: “O fim da gestação é uma morte”.
Citações de informações obtidas por meio de canais informais
(aulas, conferências, comunicação pessoal, endereço eletrônico
Acrescentar a expressão “informação verbal” entre parênteses após a citação
direta ou indireta, mencionando os dados disponíveis em nota de rodapé. Exemplo: Freud foi influenciado pelas idéias de Darwin. (Informação verbal).
Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.
Citação de trabalhos em vias de publicação
Cita-se o sobrenome do(s) autor(es) seguido da expressão “em fase de elaboração”. Exemplo: Besset (em fase de elaboração) ou (BESSET, em fase de elaboração)
Obs.: É necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.
Citação de eventos científicos (Seminários, Congressos,
Simpósios, etc) que não foram publicados
Proceder da mesma maneira que para canais informais.
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Citação de Homepage ou Website
Cita-se o endereço eletrônico de preferência após a informação e entre parênteses. Exemplo: (www.bvs-psi.org.br)
Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.
6. Notas de rodapé
Caso sejam indispensáveis, as notas devem vir na mesma página em que forem indicadas, usando o programa automático do Word. As referências dos
autores citados no texto devem ser apresentadas no final do texto, NÃO em
notas de rodapé.
7. Referências
Devem vir no final do texto, com o título ‘Referências’, relacionadas em ordem alfabética pelos sobrenomes dos autores em letras maiúsculas, seguido
das iniciais do prenome e cronologicamente por autor. Quando há várias obras
do mesmo autor, substitui-se o nome do autor pelo equivalente a seis espaços,
seguido de ponto. Exemplo:
Referências
BIRMAN, J. … 1992. (com apenas um autor)
______ . … 1997a.
______ . … 1997b.
JERUSALINSKY, A.; TAVARES, E. E.; SOUZA, E. L. A. … (com dois ou três autores)
LAING, P. et al … (com três ou mais autores)
ROUANET, S.P. …
Quando houver indicação explícita de responsabilidade pelo conjunto
da obra em coletâneas de vários autores, a entrada deve ser feita pelo nome do
responsável seguida pela abreviatura singular do mesmo (organizador, coordenador, editor, etc.) entre parênteses. Exemplo:
BARTUCCI, G. (Org.) Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2001, 408p.
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normas
Livro
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s)
prenome(s), título do livro em itálico, ponto, edição (a partir da segunda:
“2.ed”), cidade, dois pontos, editora, ano de publicação e número de páginas.
Se for uma reedição, colocar o ano em que foi escrito logo depois do nome do
autor. Exemplo:
CECARELLI, P. R. (Org.) Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 2000, 295 p.
FIGUEIREDO, L.C.M. & COELHO JUNIOR, N. Ética e técnica em psicanálise. São
Paulo: Escuta, 2000, 237 p.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário livro 7, A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988, 358 p.
Capítulo de livro e ou coletâneas
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do capítulo, ponto, In:, título do livro em itálico, ponto, cidade, editora,
ano de publicação e página. Quando for coletânea logo após o “In:” colocar sobrenome e iniciais do organizador e “(Org)” logo após. Exemplo:
DUARTE, L.F.D. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental
moderna. In: ÁRAN, M. (Org.) Soberanias. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2003, p.179-93.
Artigos de periódicos
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do artigo, ponto, título do periódico em itálico, vírgula, cidade, volume,
número, página e ano de publicação. Exemplo:
ROSA, M.D. O discurso e o laço social nos meninos de rua. Psicologia USP, São
Paulo, v.1, n.1, p.205-17, 1990.
Dissertações e Teses
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título da Dissertação ou Tese em itálico, ponto, ano, ponto, número de folhas,
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normas
identificação se é Tese de Doutorado ou Dissertação de Mestrado, o nome da
Instituição onde foi defendida e cidade. Exemplo:
LOFFREDO, A. M. Angústia e repressão: um estudo crítico do ensaio “Inibição, sintoma e angústia”. 1975. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
– Faculdade de Psicologia, PUC, Rio de Janeiro.
Trabalhos publicados em eventos científicos (Congressos,
Seminários, Simpósios, etc.) publicados em anais ou como artigo
Autor(es), título do trabalho, In:, título do evento, numeração do evento, ano
e local de realização, tipo de documento (Anais, Atas, resumo) editora, ano de
publicação e página. Exemplo:
MARAZINA, I. A clínica em Instituições. In: CONPSIC – II Congresso de Psicologia,. 1991, São Paulo. Anais. São Paulo: Oboré, 1992, p.25-43.
Trabalhos que não foram publicados
Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da mesma
maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “Texto não publicado”.
Trabalhos que estão em vias de publicação
Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da
mesma maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “no prelo”.
Resenhas
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do prenome, título do livro, ponto, cidade, dois pontos, editora e ano de publicação. Resenha de sobrenome em letras maiúsculas, seguido das iniciais
do prenome do autor da resenha, título da resenha (se houver), ponto,
nome do periódico em itálico, volume, número, páginas e data de publicação da revista.
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normas
Referências de Freud
Sobrenome do autor em caixa alta, seguido da inicial do prenome, título
da edição utilizada em itálico, cidade, editora e ano de publicação da edição consultada. Abaixo, ano em que o artigo foi escrito, título e volume.
Exemplo:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
(1895). Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia, v. 3.
(1896). Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, v. 3.
(1897). Sinopses dos escritos científicos do Dr. Sigmund Freud, v. 3.
________. Gesammelte Werke Chronologisch Geordnet. Frankfurt, S.Fischer
Verlag, 1987.
(1917). Die Verdrängung, v. 10.
(1917). Das Unbewusste, v. 10.
Documentos extraídos de fontes eletrônicas
Proceder da mesma maneira seja para livro, capítulo de livro e artigos de periódicos, entretanto, adicionar no final “recuperado em (data)”, seguido do endereço eletrônico. Exemplo:
PAIVA, G.J. (2000) Dante Moreira Leite: Um pioneiro da psicologia social
no Brasil. Psicologia USP, n. 11, v. 2. recuperado em 5 de fevereiro
de 2006, da Scielo (Scientific Eletronic Library Online): http://
www.scielo.br.
8. Imagens e ilustrações
Tabelas, gráficos, fotografias, figuras e desenhos devem ser referidos no texto
em algarismos arábicos e vir anexos, em preto e branco, constando o respectivo título e número. Se alguma imagem enviada já tiver sido publicada, mencionar a fonte e a permissão para reprodução, quando necessário.
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9. Direitos autorais
Os direitos autorais de todos os trabalhos publicados pertencem à revista Boletim Formação em Psicanálise. A reprodução dos trabalhos em outras publicações
requer autorização por escrito da Comissão Editorial da Revista.