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Agence Française de Développement Documento de Trabalho agosto juilletde 2007 2010 93 Participação comunitária no Pantanal, Brasil: estratégias de bloqueio e processo de aprendizado Olivier Charnoz, departamento de pesquisa, AFD ([email protected]) Département de la Recherche Agence Française de Développement 5 rue Roland Barthes 75012 Paris - France Direction de la Stratégie www.afd.fr Département de la Recherche Aviso As análises e conclusões deste documento são formuladas sob a responsabilidade de seu autor. Elas não refletem neces- sariamente o ponto de vista da AFD ou de suas instituições parceiras. Diretor da publicação: Dov ZERAH Diretor de redação: Robert PECCOUD ISSN: 1958-539X Depósito legal: agosto de 2010. Paginação: Anne-Elizabeth COLOMBIER © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 2 Índice 1. Resumo 5 Introdução 7 O Pantana: discursos e prioridades em conflito 11 1.2. Preservar um bem público mundial 18 1.4. Preeminência da « utilização econômica » 22 1.1. 1.3. 1.5. 1.6. Breve descrição da região A domesticação pelo desenvolvimento 11 19 Política de conservação decrescente iniciada pelo estado: leis inteligentes, mas execução insuficiente Conclusão 23 24 2. As várias faces da participação comunitária nas zonas úmidas 25 2.2. A pc considerada como preservação privada: a opinião das ongs ambientais 26 2.1. 2.3. 2.4. 3. 3.1. 3.2. 3.3. 3.4. Pc na iniciativa do estado: consultas para um planejamento estratégico Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de pc Conclusão : a nova proposta do prp 25 28 29 A gênese do prp: uma comunidade em crise à procura de aliados 31 ambiente 32 O prp: uma iniciativa local influenciada por peritos estrangeiros e criticada pelas ONGs 35 A crise dos criadores de animais e a vontade de conter os concorrentes e os protetores do meio O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente Conclusão 34 37 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico 4.2. A delimitação estreita da « comunidade tradicional » 5. Criação do pluralismo: as consequências imprevistas do « projeto preliminar » 47 5.2. Alimentar o processo com « projetos atrativos » 51 4.1. 4.3. 5.1. 5.3. 5.4. 39 Os criadores de gado, protetores do meio ambiente 40 Conclusão 45 Colocar em questão a associação dos fazendeiros através de novas organizações O impacto da ilegitimidade: uma pc em perda de intensidade e inserção Conclusão © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 3 43 47 53 55 Índice 6. 6.1. 6.2. 6.3. O poder constitucional em ação 57 de gestão compartilhada » 59 Uma pc altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um « dispositivo Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras 60 6.4. Uma vã esperança de cuidado comunitário… quem vai acelerar a derrocada final Conclusão 62 7. O papel do capital social e o impacto na pc 65 7.2. Individualismo e informalismo: a inaptidão institucional da maioria dos fazendeiros 67 7.1. 7.3. Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva 64 65 7.4. Conclusão Da lealdade à exposição de opiniões: renovar o capital social local 69 8. Conclusões 73 Referências bibliográficas 75 © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 4 72 Resumo Nós propomos aqui examinar o papel da « participação desorganização da administração provocou gastos Regional do Pantanal (PRP) – uma vasta iniciativa do PRP. Veremos, portanto, como o bloqueio exercido pela comunitária » (PC) no projeto de criação do Parque financeiros desnecessários, e por fim, o desmoronamento participativa começada em 1998, na parte brasileira da PC tomou várias direções incoerentes. Interessamo-nos maior zona úmida do mundo. Voltaremos a falar sobre o igualmente pelos mecanismos que conduziram a este significado estratégico do recurso da PC para os resultado ao mesmo tempo no conceito do projeto e na latifundiários, tidos como líderes do projeto e sobre a natureza do capital social local. Contudo, constataremos estratégia de “bloqueio” de outros atores emergentes como que a experiência do PRP suscitou um processo de grupos de pressão para a proteção do meio ambiente e os aprendizado no seio da comunidade que poderia realmente novos atores econômicos. Além disso, a ausência quase mostrar-se benéfico a médio prazo. Daí uma interrogação total dos trabalhadores agrícolas, os peões, e dos outros ainda válida sobre a vontade e a capacidade dos grupos comunitários locais no processo do PRP revelou investidores internacionais de apoiar os dispositivos quo sociopolítico da região. O projeto do PRP foi finalmente (frequentemente) caótico recoberto de tentativas e de erros dia oficiosas. Os fazendeiros foram desapossados e esta profissional cada vez mais baseadea nos “resultados”. níveis de “bloqueio” suplementares que reforçaram o statu participativos recuperado por políticos locais, para defender as ordens do ao longo de seu andamento – uma abordagem em contradição total com sua cultura © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 5 Introdução No precedente documente de trabalho (Charnoz, 2009), Para prosseguir no campo da pesquisa, fizemos do Parque analisamos a mais célebre incarnação – e em todos os Natural do Pantanal nosso segundo estudo de terreno. A pontos de vista, a mais “vitoriosa” – do discurso sobre a iniciativa do PRP tinha como orientação criar uma vasta área marinha da Soufrière, em Sainte-Lucie, Martinica. coração da América do Sul, segundo um conceito original implementação, os impactos sociais e os efeitos do poder participativa. O parque foi concebido pelo Pantanal – a processos da PC em processos de controle e de bloqueios gestão confiada a uma instituição participativa, o Instituto “participação comunitária” na gestão do meio ambiente: a Uma pesquisa aprofundada sobre as origens, entidade para a gestão do meio ambiente em pleno a e com uma estrutura de administração altamente desse projeto revelou, entretanto, a transformação dos primeira zona úmida de água doce do mundo – e sua sociais, regidos por alianças entre grupos de interesse do Parque do Pantanal, IPP. Com um apoio técnico e mercado. Todavia, se se quer ter uma melhor ideia do que fundos do Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, o PRP (frequentemente estrangeiros à comunidade) e forças do financeiro da França e da Universidade Europeia e dos “é” o discurso mundial sobre a PC e do que “produz” é foi considerado como uma associação voluntária de pela ambiental comum. Por outro lado, o instituto que gere – o preciso também examinar as experiências consideradas comunidade profissional como “menos fazendeiros comprometidos com o respeito à Carta bem sucedidas”, “vãs” ou literalmente “mal sucedidas”. Tais IPP – beneficiou do apoio de uma grande escolha de resultados não são raros na área do desenvolvimento e o parceiros com a finalidade de reforçar “o modo de vida fato de qualificá-los de “insucessos” não exonera em nada tradicional” considerado como “respeitador do meio o projeto em questão de seus outros impactos. Como ambiente”. Ao final de alguns anos, todavia, o IPP teve promotores concebem projetos que eles mesmos interrupção definitiva de suas atividades no verão de 2005. demonstrou Ferguson (1990, p. 18) num texto célebre « os dificuldades de gestão, que aumentaram e levaram à consideram como malogros, mas que todavia produzem Dotado de importantes meios financeiros dados por atores efeitos clássicos e normais e perfeitamente identificáveis ». brasileiros e estrangeiros, o IPP tinha suscitado imensas O fato de os processos serem ou não um sucesso segundo esperanças. Sua derrocada deixou profundas feridas nos seus próprios critérios oficiais pode parecer secundário em habitantes da região assim como nos investidores. Depois de Foucault (1979), Ferguson qualifica esses Um trabalho de terreno foi começado durante o verão de em que, mesmo sendo provavelmente oficialmente estando prontas para falar abertamente. Muitos tinham a se mostra finalmente um exercício de poder” (Ferguson, investidores europeus para compreender “o que aconteceu relação ao desejo de entender sua natureza profunda. efeitos secundários de « efeitos-instrumentos » na medida 2008. Foi difícil coletar informações, as pessoas não involuntários, eles assemelham-se a “instrumentos do que impressão que éramos “da polícia” enviados pelos 1990, p. 255). com o dinheiro” e não um pesquisador realmente © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 7 Introdução interessado pela natureza e o impacto das práticas da PC. socioeconômico inferior, vivendo no Pantanal e que foram tensões ainda eram tangíveis, processos judiciários foram sua administração. Mostraremos assim que, como Três anos depois do fechamento do IIP em 2005, as essencialmente separados da concepção do PRP – e de lançados contra pessoas legalemnte responsáveis do IPP1 aconteceu em Santa Lúcia, a PC funcionou no projeto do PRP como um mecanismo de bloqueio contre certos Estrutura do estudo atores. Nós começaremos por uma apresentação do Pantanal: Interessamo-nos em seguida ao dogma que, querendo veremos que a região não é um sítio fácil para as iniciativas tornar a comunidade local mais democrática, fez da PC um meioambientais, visto que um discurso bastante enraizado instrumento de controle que, ao final, contribuiu para dos brasileiros sobre sua soberania e seu desenvolvimento distanciar do poder, no seio do dispositivo do PRP, os nacional entra em concorrêcia com uma visão cada vez próprios fazendeiros. Este processo começou desde o público oficial do parque, em 2002. A atenção foi dada à mais partilhada no Pantanal considerado como um “bem mundial” necessitando de uma “projeto preliminar” de quatro anos que precedeu a criação atenção internacional e de esforços de presenvação. Em segundo necessidade de “pluralizar” a sociedade civil local e lugar, voltaremos aos diferentes significados, às vezes aumentar o número de organizações locais, primeira etapa opostos, da PC no Pantanal ao longo do tempo – das obrigatória para a criação de um “parque verdadeiramente “consultas do Estado” à “consevação privada” apoiada participativo”. Embora esta “pluralização” tenha sido “utilização sustentável” que reconhece o papel legítimo e em pelas ONGs internacionais em direção de uma ideia de começada em nome da PC, estimamos que tenha sido feita detrimento da comunidade fazendeira. Esse importante dos fazendeiros locais na conservação do meio “pluralismo oficial” que se manifestou através da inovador e o significado estratégico do PRP podem ser associações – fragmentou sua influência e abriu caminho ambiente. É nesta tensão de dinâmicas que o caráter multiplicação rápida e pouco espontânea de pequenas plenamente percebidos. para uma recuperação política ulterior do PRP. Examinaremos em seguida a gênese do projeto PRP e sua A sexta parte será a ocasião de examinar o poder estratégia intrínseca de “bloqueamento”. Os fazendeiros e institucional em ação durante a fase crucial – a saber, a para formar a “aliança original” do projeto diante das forças construção jurídica tenha refletido o ideal de uma PC o Estado local associaram-se à um investidor estrangeiro criação do próprio PRP a partir de 2002. Mesmo se a dos bons oradores cada vez mais potentes. Uma nova marcada por um grau de inclusão, um alcance e uma forma de PC, implicando produtores locais, foi instaurada intensidade muito profundos, mas também pela para conter a influência crescente de uma formação de cooperação com o Estado local, a realidade mostrou-se antenas brasileiras. locais começaram a intervir cada vez mais frequentemente poderes2 conduzidos por ONGs internacionais e suas radicalmente diferente, na medida em que alguns políticos no seio da estrutura do IPP e realizaram nomeações Numa quarta parte analisaremos o discurso fundador da políticas. Do ponto de vista dos fazendeiros, no início, iniciativa do PRP que via nos fazendeiros criadores de devendo ocupar “cargos de pilotagem”, o grau de inclusão, animais o osso duro da comunidade tradicional pantaneira. o alcance e a intensidade da PC, praticamente A maneira como as “tradições” foram definidas e a “criação desapareceram. A administração do PRP desagregou-se, de gado” considerada como “respeitadora do meio ambiente” são uma boa ilustração do poder estrutural e produtivo exercido pelos fazendeiros locais, apoiados 1 Alguns dos antigos responsáveis do IPP foram acusados de sonegação fiscal e outros desfalques financeiros. Rumores de corrupção pura e simples e desvio de fundos a fins pessoais circularam igualmente. 2 Este conceito será definido na seção 2.2.5. pelas autoridades do Estado. Assim, um outro tipo de “bloqueio apareceu” contra grupos tendo um estatuto © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 8 Introdução para seu grande desespero, levando a uma acumulação de Veremos em seguida que o capital social reunido dos atividades ligadas ao PRP cessaram em 2005, por causa individualismo, informalismo, imediatismo e de unidade implicando somas importantes. PRP. Enfim, defenderemos a ideia de que o fracasso deste disfunções técnicas e financeiras. Finalmente, todas as fazendeiros se caracteriza por uma mistura complexa de de uma falência financeira e não pagamento de impostos que contribuiu para sua supressão e desmoronamento do grande dispositivo participativo gerou frustrações e uma Na última parte, veremos qual foi o impacto dos múltiplos tomada de palavra que vieram a alimentar um processo de processos de bloqueio identificados no projeto do PRP e aprendizagem coletiva. A longo prazo, uma parte do como foram facilitados pelo capital social dos habitantes. capital social local poderia realmente renovar-se e permitir Mostraremos em primeiro lugar que o capital social outras ações coletivas bem refletidas. É por esta razão transversal dos trabalhadores agrícolas é caracterizado por uma relação simbiótica paternalista com que em nossa opinião é preciso prolongar o quadro os temporal fixado para a avaliação de um dispositivo de PC, fazendeiros que contribuíram para impedir aqueles de que necessita realmente de mais tempo do que se pensa toda a possibilidade de expressão no processo do PRP. habitualmente. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 9 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Após informações de ordem geral sobre o Pantanal, emos também pelas políticas meioambientais do Brasil e mostraremos como este se encontra doravante no centro a propensão deste país a favorecer a utilização biodiversidade mundial (sublinhando os direitos e conservação. Só uma apreensão precisa deste contexto de dois discursos opostos: um que defende a econômica dos recusos naturais mais do que a deveres da comunidade mundial), outro que predica o e tensões subjacentes permite perceber os desafios do desenvolvimento nacional (insistindo na soberania do projeto de participação comunitária começado no Brasil e suas necessidades econômicas). Interessar-nos- 1.1 Pantanal. Breve descrição da região O Pantanal é o primeiro ecosistema de água doce do Outra característica determinante do Pantanal – as mundo. Com uma superficie superior a 200 000km², é precipitações sazonais e os ciclos de cheias. Além de suas quase tão grande quanto a Inglaterra e a Escócia reunidas. florestas e rios, a região é constituída de redes complexas Sul (mapa1): o Brasil, a Bolívia e o Paraguai (mapa 2), mas pelo homem. As fotos da série 2 dão uma visão geral Três países dividem esta região no coração da América do de pântanos, lagoas e canais de drenagem construídos essencialmente, o Pantanal situa-se no território brasileiro destas paisagens típicas. Com uma altitude inferior a 150 (138 000km²), na confluência de dois Estados: Mato metros, o Pantanal é praticamente plano de maneira que uma planície inundável (em verde no mapa 2) cercado por de seu território são inundados. O ciclo hidrológico bacia do alto Paraguai, irrigado por uma rede densa de rios região5. Com o fluxo e o refluxo das enchentes, as plantas Grosso e Mato Grosso do Sul. O Pantanal é antes de tudo na estação das chuvas (outubro a março), até 80 por cento um planalto sobrelevado (marrom claro). Juntos formam a contribui igualmente para a importante bioprodutividade da potentes religados uns aos outros (diagrama 1) aquáticas e os prados baixos desenvolvem-se Daí esta mistura única de formas de vida. A posição central explica a quantidade de redes tróficas e a abundância da abrigo relativamente seguro para a espécies dos biomas3 fato os ecosistemas mais “bioprodutivos” do planeta (por rapidamente: essa renovação das matérias orgânicas fauna. As zonas úmidas tropicais como o Pantanal, são de do Pantanal no continente constitui um cruzamento e um circunvizinhos, em especial o cerrado, o chaco, a unidade de superfície), com florestas pluviais, campos de Amazônia e a mata atlântica4. Estes meios abrigam uma algas marinhas e recifes de coral. biodiversidade surpreendente, com 2000 espécies de 3 Os biomas são vastas unidades ecológicas de fisionomia heterogênea. 4 O cerrado é uma savana arborizada do planalto central do Brasil. Ela estende-se até a planície inundável a partir dos planaltos oriental e setentrional e abriga as principais espécies vegetais presentes no Pantanal. A vegetação típica do chaco, uma floresta árida, é originária das fronteiras ocidentais do Pantanal na Bolívia e no Paraguai. As espécies das florestas amazônica e atlântica juntam-se respectivamente ao Pantanal a partir dos vales fluviais do Norte e do Sul e limitam-se no essencial às florestas densas ao longo das margens. 5 A bioprodutividade define-se como a quantidade de matéria orgânica produzida pelos plantas, mais de 200 espécies de peixes e 80 espécies de mamíferos, todas sãs apesar de se tornarem raros ou em perigo nas regiões vizinhas (como a lontra gigante e a onça pintada). As fotos da série 1 ilustram bem a diversidade desta fauna visível a olho nu. organismos vivos por hectare por ano. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 11 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Mapa 1. O Pantanal brasileiro, no coração da América do Sul Source: ANA et al Fonte: ANA e al. (2005), p. 3. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 12 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Mapa 2. O Pantanal: uma planície inundável cercada de altos planaltos fonte: ANA e al. (2005), pg. 13. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 13 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Diagrama 1. A coluna vertebral do Pantanal: o rio Paraguai e seus afluentes – rede hidrográfica da bacia do Alto Paraguai no Brasil– fonte: ANA e al. (2005), pg. 35. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 14 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Série de fotos 1. Exemplos da fauna do Pantanal, visível a olho nu fonte: fotos do autor. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 15 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Série de fotos 2. paisagens típicas durante a estação das chuvas fonte: fotos do autor. Acima à esquerda: Earthwatch. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 16 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Série de fotos 3. Criação de gado no Pantanal e peões no trabalho fonte: fotos do autor. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 17 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito 1.2 Preservar um bem público mundial Para a comunidade internacional, o Pantanal é uma região As zonas úmidas representam um papel-chave na e à estabilidade do clima. Este discurso é defendido por o Pantanal baseia-se imensamente neste fato. O Pantanal essencial para o planeta por sua contibuição à biodiversidade conservação da biodiversidade mundial e o discurso sobre diversas convenções e organizações internacionais, mas é, portanto definido como um “ponto importante da para a natureza (WWF, World Wildlife Fund), Conservation – incluindo as principais espécies em perigo, como o também pelas ONGs ativas no Brasil, como o fundo mundial biodiversidade” acolhendo milhares de espécies diferentes International (CI) ou The Nature Conservancy (TNC); ONGs tamanduá, o tatu, a capivara, a anta, a onça pintada, o brasileiras também o adotaram no Estado de Mato Grosso do macaco-prego, o falcão. O Pantanal é também conhecido Sul, para tentar chamar a atenção dos atores federais e por oferecer um habitat vital para a rota migratória de vários internacionais. Uma quantidade de relatórios, artigos, notas peixes e pássaros que passam o verão na América do de informação, comunicados de imprensa e sites Internet são Norte. A biodiversidade do Pantanal estava no centro de alimentados por ONGs meioambientalistas, grupos de estudo praticamente todas as entrevistas com membros de ONGs. igualmente bastante pregnante durante as entrevistas com escala planetária” por sua especificidade biológica, “frágil” e pesquisadores convertidos a esta visão das coisas que era O WWF definiu oficialmente a região como “notável na membros de ONGs. em termos de conservação e “altamente prioritária” do ponto de vista da preservação (Olson e AL., 1998) – uma A visão meioambientalista mundial sobre o Pantanal está avaliação frequentemente retomada. O Patanal é baseada numa categoria definida num plano internacional igualmente considerado por vários defensores do meio – a da “zona úmida”. Um tratado para a conservação e uma ambiente como um bem público mundial importante por utilização sustentável destas zonas foi assinado em 1971 sua contribuição para a estabilidade do clima. As zonas na cidade iraniana de Ramsar. Mas, a “convenção de úmidas são de fato grandes reservatórios de carbono, que Ramsar” só foi ratificada pelo Brasil em 1993, depois da fixam cerca de 15% do carbono do planeta (Patterson, Conferência Mundial sobre a terra organizada um ano 1999). Graças à fotosítese, o Pantanal contribui para antes no Rio de Janeiro. A Unesco fez do Pantanal um capturar os gases do efeito estufa na atmosfera e liberar “sítio Ramsar” antes de declarar em 2000, “reserva mundial oxigênio. consideram o Pantanal como uma zona úmida6 no plano Todos os comentários sublinham a ideia de que a da biosfera” e “patrimônio mundial”. Outras convenções internacional, incluindo a Convenção do Patrimônio humanidade inteira tem um desafio direto na região, o Espécies Migratórias7 (1979), a Convenção sobre a noção de “apropriação mundial” de “responsabilidade” Mundial da Unesco (1972), a Convenção sobre as direito de vê-la preservada e o dever de protegê-la. Daí a Diversidade Biológica (1992) ou a Convenção sobre a defendida por vários de nosssos interlocutores. Para um Mudança Climática (1992). Todos esses textos sublinham a representante de uma ONG local: importância do valor não comercial de zonas úmidas como o Pantanal, na qualidade de ecosistemas. Eles contribuem “O Brasil não deveria ser o único a poder gerir esta região, também com sua presença nas redes de financiamento sobretudo quando se sabe o que ele faz lá.” internacional, ajuda pública e de sensibilização. Como o afirma o membro de uma ONG local: 6 A Convenção de Ramsar define as « zonas úmidas » como extensões de pântanos, de lagoas no cume de uma montanha, de turfeira ou águas naturais e artificiais, permanentes ou temporárias, onde a água é estagnante, doce, salobra ou salgada, compreendendo aí as extensões de água marinha cuja profundidade na maré baixa não vai além de seis metros (artigo1). 7 Ou « Convençao de Bonn ». “No Brasil, a floresta pluvial amazônica é como uma árvore que esconde a floresta. O Pantanal por mais que esteja atrás, tem praticamente a mesma importância”. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 18 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito A noção de “apropriação mundial” defende uma forma de “Um dia o mundo compreenderá o que está perdendo, mas adotada Pantanal.” conservação mais rigorosa – uma opção estratégica há muito tempo por várias ONGs será tarde demais [...] as lágrimas não ressuscitarão o e especialmente a CI. As ONGs sentem fortemente a necessidade de agir rapidamente. Para este biólogo Mas, este ponto de vista suscita o ceticismo de outros voluntário: 1.3 atores especialmente as autoridades federais brasileiras. A domesticação através do desenvolvimento As entrevistas realizadas nos ministérios brasileiros, americano teria previsto “internacionalizar” a Amazônia. mal estar profundo nos altos responsáveis dessas transformada instituições públicas e centros de pesquisa revelaram um Mapas apresentamdo o Brasil “amputado” da Amazônia, em uma região sob o “mandato instituições em relação ao discurso sobre o “Pantanal, bem internacional”, circularam na Internet. Tudo isso poderia ter conservação”. Se a análise meioambiental da região pelas brasileiro anos, a maior parte dos observadores nota – e os projeto dando assim razão aos que consideravam os público mundial, apelando para uma ação internacional de ficado num estágio de farça, se alguns militares do exército autoridades federais tem melhorado nos últimos quinze não tivessem comentado estes mapas publicamente, afirmando que o Brasil se oporia a esse funcionários questionados confirmam-no – que, para o documentos como autênticos. governo brasileiro, o Pantanal é (como a floresta amazônica) uma problemática interna que não merece Essas tensões ainda ressurgiram em 2007, quando um comunidade internacional. Esse sentimento acompanha público mundial” com “apropriação internacional” então o uma implicação maior ou até mesmo importante da ministro afirmou que se a Amazônia se tornasse “bem uma opinião amplamente partilhada pelos responsáveis próprio arsenal nuclear dos Estados Unidos devia também públicos segundo a qual o desenvolvimento econômico é a se tornar “uma propriedade internacional”, visto que os meioambiental é no melhor dos casos, marginal. humanidade A sensibilidade brasileira quanto a sua “soberania A rejeição ao discurso sobre o “bem público mundial” e centro das preocupações internacionais. Uma grande aparece também no caso do Pantanal. Os altos primeira das prioridades do país, toda consideração desafios são no mínimo tão importantes para a ambiental”, data da época em que a Amazônia estava no suas implicações quanto à ingerência internacional quantidade de ONGs, frequentemente financiadas por funcionários que encontramos foram claros: governos estrangeiros, invadiram uma região ainda mal controlada pelas autoridades federais e locais, dada sua - Todas essas ONGs que pretendem nos ensinar a - irritou as autoridades brasileiras. Estas, doravante não Povo brasileiro é soberano e dotado de um Governo superfície e morfologia. Este impulso – e é um eufemismo administrar [o Pantanal] visivelmente esqueceram que o perdem mais uma ocasião para lembrar que só os democrático. governos federais e locais brasileiros têm o direito de decidir o que quer que seja na região. A imprensa propaga - O Pantanal é um tesouro brasileiro. Confiem em nós! Nós regularmente as tensões entre autoridades nacionais e fazemos questão. ONGs estrageiras, como pudemos constatar em nosso trabalho de terreno. Formas de “paranóia pública” e de - As ações internacionais no Pantanal são bem vindas, rumores têm alimentado a ideia de que o governo país se encontram. politização apareceram também. Assim desde 2006, contanto que as ONGs e outros não esqueçam em que © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 19 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Todavia, como para a Amazônia, a questão não é Enquanto as autoridades federais e locais têm, há debate opõe também desenvolvimento econômico e desnvolvimento econômico e, assim “domesticar o interessado as autoridades federais que produziram ambiente e outros grupos não cessam de denunciar o quarenta anos, sublinhado a necessidade de garantir o unicamente a da soberania diante da internacionalização: o Pantanal” em benefício da nação, os defensores do meio conservação. Desde meados dos anos 70, o Panatanal tem impacto quantidades de planos e projetos para fazer da região um das atividades humanas. Um discurso “motor do desenvolvimento”. Vários grandes programas conflituoso – sublinhando numerosas ameaças exercidas o Desenvolvimento do Pantanal (CIDEPAN), o Programa nos argumentos partilhados por ONGs, vários peritos do pelo homem no Pantanal – apareceu, portanto, apoiado foram assim lançados como o Cosórcio Inter-municipal para para o Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN), meio ambiente, certas organizações internacionais (POLOCENTRO), Programa Nacional para a Utilização do Desenvolvimento [PNUD] ou o Programa das Nações Programa para o Desenvolvimento dos (como o Programa das Nações Unidas para o Cerrados álcool (PROALCOOL)8, Programa de Desenvolvimento de Unidas para o Meio Ambiente [PNUMA] e membros do Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto Paraguai diagnóstico preocupante. Estado de Mato Grosso (PRODEAGRO), o e o Programa Hoje, contudo, políticos federais parecem mais sensíveis subprograma batizado “Plano de Conservação da Bacia do recentes acordos feitos com a França sobre a proteção da Grande Dourados (PRODEGRAN), Estudo do Governo brasileiro. O quadro 1 propõe uma síntese deste (EDIBAP), Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Nacional para o Meio Ambiente (PNMA) com seu ao ponto de vista do bem público mundial, como mostra os Alto Paraguai” (PCBAP) (Junk e al., 2009). Alguns biodiversidade. Depois de alguns anos, as autoridades relançaram o complexo agroindustrial – criação de gado, federais têm prestado mais atenção às preocupações da soja e cana-de-açúcar especialmente no planalto que rodeia comunidade internacional. Além disso, o número crescente o Pantanal com consequências ecológicas visíveis para de atores internacionais – como a Agência Francesa de este. Isto provocou atividades de sensibilização e às vezes Desenvolvimento (AFD) – destaca há muito tempo a – como a via fluvial Paraguai-paraná (Paraguai-Paraná desenvolvimento e conservação, um processo racional que campanhas internacionais de peso contra projetos precisos necessidade hidrovia)9, projeto suspenso, mas não abandonado. e a possibilidade de converger facilitou as discussões com o Brasil. Quadro 1. As ameaças humanas no Pantanal: aviso sobre as preocupações Aqui tentamos sintetizar as grandes preocupações suscitadas pelo impacto ambiental do homem no Pantanal (Earthwatch, 2004 ; Junk et de Cunha, 2005). O Pantanal é um ecosistema frágil que já sofre grandes estresses naturais, como os períodos de enchentes e secas bastante perceptíveis, fracos níveis de nutrimento e incêndios. As ameaças antropogênicas não são unicamente mundiais – como a mudança climática. Elas são também locais, com o crescimento econômico da região e os efeitos secundários da agricultura intensiva praticada na bacia vertente. Tradicionalmente, os atores da região são criadores, trabalhadores agrícolas, comunidades indígenas e agências federais. Antes dos anos 70, seu impacto no Pantanal era limitado, visto que não tinha meios de provocar grandes mudanças no meio ambiente (modificação do ciclo das enchentes pela construção de barragens ou da qualidade das água pela acumulação de sedimentos). Contudo, com o desenvolvimento 8 O programa PROALCOOL visava encorajar a utilização do etanol no lugar da gasolina e aumentar a produção de etanol para as indústrias. 9 Cinco países estão na origem deste projeto de via fluvial, para fazer do Paraguai e do Paraná um canal para a marinha mercante. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 20 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito econômico, novas atividades apareceram, paralelas à industrialização – agricultura, práticas modernas de criação de animais, indústria do transporte, produção de energia hidrelétrica e extração. A ocupação humana intensificou-se vigorosamente nos Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que partilham a parte brasileira do Pantanal. Paralelamente, vários centros urbanos se desenvolveram rapidamente e têm um impacto na zona através do aumento das necessidades de transporte e a poluição das águas. Mas, a qualidade dos ciclos da água do Pantanal não sofre somente com esta urbanização. A maioria dos rios que drena a região tem suas fontes nos altos planaltos circunvizinhos. Ora, nos anos 70 o Governo brasileiro subvencionou nestas regiões – como no restante do país, incluindo a Amazônia – atividades de agricultura intensiva. Em várias regiões vizinhas do Pantanal, importantes partes da floresta de cerrados originais foram destruídas para desenvolver uma agricultura industrial e produzir soja, cana-de-açúcar, trigo, milho e algodão. Savanas foram transformadas em campos de milhões de quilômetros quadrados. Segundo o relatório da CI de 2006, (Barcellos Harris, 2006), o pasto e a agricultura, compreendendo a transformação de pastos indígenas em terras agrícolas, destruíram praticamente 45% da vegetação original da bacia do rio Paraguai onde se encontra o Pantanal. Em 2004, cerca de 44% da vegetação original da zona tinha sido modificada, certos distritos tendo perdido mais 90% de sua cobertura natural. Em consequência, várias margens foram desmatadas, provocando um aumento da sedimetação na vazante. Como os solos da região dos cerrados são em essencial relativamente pobres e, que é preciso garantir a fertilidade ao mesmo tempo lutando contra os parasitas, as populações recorreram massivamente aos fungicidas, pesticidas e outros adubos. As práticas de gestão da água, bastante rudimentares, provocaram grandes regueiras de produtos agroquímicos levando à erosão dos solos o que prejudica os agricultores do Pantanal. Os esquemas hidrológicos locais foram profundamente atingidos, como no caso do rio São Lourenço. A navegação, as migrações de peixes e as atividades tradicionais de criação de animais tornaram-se difíceis. O pior exemplo é o da bacia do Rio Taquari, onde importantes segmentos do canal se deterioraram ou mudaram, provocando a inundação de 11 000 km² de terras a pastar e uma brusca retirada dos estoques de peixes. A complexidade do canal e do habitat encontra-se consideravelmente reduzida, bloqueando as rotas migratórias dos peixes, modificando as interações entre perímetros de inundação e canal, levando ao desaparecimento de espécies. Mas, as atividades extrativistas e a poluição pelo mercúrio suscitam outras preocupações. Desde os anos 80, a extração do ouro nas baixas terras em torno da cidade de Poconé (mapa2) tem conduzido a poluição pelo mercúrio. Como as jazidas superficiais estão doravante esgotadas, a atividade tem diminuído nesses últimos anos. Apesar disso, as atividades extrativistas ainda podem ter um impacto importante no Pantanal. A extração de ferro, de manganês e de diamantes na bacia vertente implica a destruição da vegetação e do habitat, a erosão do solo e a sedimentação dos cursos da água, sem falar da modificação da topografia do leito dos rios e a poluição das águas. Em algumas partes do Pantanal, a extração do ouro representa um sério risco para o meio ambiente e a saúde humana. Os garimpeiros utilizam grandes quantidades de mercúrio para misturar as partículas de ouro contidas no solo e na lama. Até o momento, vários casos de nível de mercúrio claramente mais elevado do que o normal no peixes e pássaros locais, particularmento no Norte do Pantanal, são revelados. A própria produção de eletricidade tem um impacto no meio ambiente: em 2008 enumerava-se nove centrais hidrelétricas em funcionamento na bacia vertente do Pantanal, para uma capacidade de 323MW. Uma nova central acaba de ser construída no Manso (220MW), um dos principais afluentes do rio Cuiabá, no âmbito de uma iniciativa do Estado federal e dos Estados brasileiros. As mudanças hidrológicas trazidas pela construção de um importante reservatório no Manso (387km²) começam a repercutir na fauna e na flora como também nos pescadores e criadores do Pantanal. No final, 20 novos reservatórios poderiam ser construídos, para uma capacidade total de 1000MW. O efeito acumulado desses reservatórios deveriam profundamente modificar o regime hidrológico da região. (Girard, 2002). Vários grandes projetos de infraestruturas de transporte começaram, para encaminhar mais facilemnte os produtos locais em direção dos grandes centros metropolitanos e aeroportos . Citamos em especial três projetos de via fluvial: vias navegáveis Araguaia-Tocantins e Paraguai-Paraná e a ferrovia Ferronorte. Os industriais da agricultura e da extração fazem pressão, fora do Pantanal, para canalisar o rio Paraguai e garantir assim, um transporte mais barato da soja e minerais em direção do oceano atlântico. O projeto de via fluvial Paraguai- Paraná que envolve o Brasil, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Argentina, é particularmente preocupante. Trata-se de remodelar e dragar o Alto Paraguai a fim de aumentar a capacidade do tráfego. Os defensores do meio ambiente afirmam que este projeto modificará definitivamente as estruturas de escoamento na região e drenará cerca de 50% das zonas húmida, provocando a destruição das redes tróficas mais © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 21 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito produtivas do Pantanal. O projeto original perdeu seus financiamentos e foi abandonado depois das conclusões de um estudo de impacto no meio ambiente e de uma campanha eficaz de sensibilização pelas Coalizão Rios Vivos, o WWF, a CI e outras ONGs. Apesar disso, a hidrovia continua na ordem do dia e uma série de projetos distintos desse tipo, em pequena escala, começaram ao longo do rio Paraguai superior. 1.4 Predominância da « utilização econômica » As políticas ambientalistas do Brasil são estruturadas pelo de 300 apareceram em 2008), cujos 70% são definidos debate e uma tensão permanentes entre a « rigorosa como “áreas de proteção ambiental” (APA), uma categoria naturais – do qual o sistema jurídico se propaga. O primeiro ONGs que acham sua designação “enganadora”. conservação » e a « utilização sustentável » dos recusrsos instaurada pelo SNUC e frequentemente criticada pelas parque protegido do Brasil foi criado em 1937, mas só a partir de meados dos anos 80 é que o número de áreas As bastante variadas. Para organizar uma paisagem jurídica utilização das terras (...). Lá as atividades humanas são um sistema unificado para parques nacionais, estaduais e pequenos espaços reservados a uma estrita conservação (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). O SNUC que os pequenos sítios consagrados a uma estrita protegidas aumentou sensivelmente sob formas jurídicas APAs não são realmente áreas protegidas; assemelham-se mais a um mecanismo de gestão de cada vez mais complexa e hamonizar as legislações locais, limitadas pelos planos ou sistemas de zoneamento, com municipais foi instaurado em 2000 pela lei, com o SNUC (...). Mas isto traz pouco valor adicionado no terreno, visto regulamenta e define as categorias de áreas protegidas em conservação são em geral lugares que, de toda sorte, não diferentes níveis de administração brasileira e organiza-os poderiam ter sido explorados. em dois grandes conjuntos: Por que a estratégia federal de proteção do meio ambiente 1. As « áreas estritamente protegidas »: a preservação da está mais consagrada à “conservação total” do que as biodiversidade é o objetivo principal e as atividades abordagens adotadas do ponto de vista dos Estados? Uma humanas são consideravelmente limitadas das razões propostas por vários de nossos interlocutores está ligada a que os Estados sejam mais dependentes dos 2. As « áreas de utilização sustentável »: a proteção da atores econômicos da região e menos sensíveis às biodiversidade continua a ser importante mas, não é o grandes ONGs internacionais. Além disso, para pregar a único objetivo, abrindo caminho para diferentes conservação, essas ONGs têm tedência a fazer lobby junto atividades econômicas10. às autoridades nacionais e não diretamente às autoridades locais, estimando que a proteção nacional ofereça mais Cada vez mais, os níveis locais de gestão do meio continuidade do que as legislações locais. ambiente se tornam importantes, a medida que a influência 10 A primeira categoria cobre as categorias tipos I a III definidas pela União Internacional para dos Estados aumenta. Enquanto os parques nacionais a Conservação da Natureza (UICN), as mais estritas no que diz respeito à interdição de atividade humana. No Brasil, elas compreendem os “parques naturais”, as “reservas biológicas”, os “munumentos naturais” e os “abrigos para a fauna. Os “parques naturais” são as áreas protegidas mais importantes que autorizam atividades de educação, ,lazer e de pesquisa científica. As “reservas biológicas” são em geral, menos vastas e fechadas ao público, salvo para as atividades de educação para o meio ambiente. As “estações ecológicas” favorecem a pesquisa. A segunda categoria de áreas protegidas para uma utilização durável autoriza diferentes graus de atividade humana. Ela compreende as categorias IV a V da UICN. Menos estrita quanto às atividades humanas possíveis, ele compreende as “florestas nacionais”, as “áreas de proteção ambiental” (APA), as “áreas apresentando um interesse ecológico”, as “reservas de extração”, as “reservas para a fauna”, as reservas para o desenvolvimento durável” e as “reservas particulares do Patrimônio Nacional” (RPPN). 11 Em praticamente 300 áreas protegidas federais, 58% são destinadas a uma utilização protegidos eram predominantes nos anos 80, hoje somente 52% das áreas protegidas do país ainda o são. O Governo federal utiliza de maneira mais equilibrada o SNUC no que considera o dilema “conservação/utilização sustentável”11. De seu lado, os Estados locais preocupam-se bem menos com a conservação, ao ponto de hoje só gerirem 17% dos parques estritamente protegidos. Ao contrário, criaram parques protegidos para uma utilização sustentável (cerca durável e 42% a uma estrita conservação. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 22 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Nem todas as regiões brasileiras manifestam a mesma duas áreas só correspondem a 0,6% da superficie total do tensão entre “conservação e utilização econômica”12. No pantanal, o restante pertencendo aos criadores de animais Pantanal, a estrita conservação aplica-se a 100% das e a outros atores econômicos. É por esta razão que áreas protegidas, mas esse número impressionante traduz durante muito tempo menos de 1% da maior zona úmida simplesmente a ausência quase total de política de do mundo foi rigorosamente protegida. Os Estados de conservação na região. Até 1999, só duas pequenas áreas Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, que se partilham o beneficiavam de uma proteção oficial: o Parque Natural Pantanal são de fato profundamente influenciados pela Regional do Pantanal, que cobre cerca de 1450 km² de ideologia do desenvolvimento sem limite. Eram pouco pouco mais de 111 km². Situadas no Mato Grosso, estas da sociedade civil começassem a pressionar. zonas úmidas e a Estação Ecológica de Taim, que cobre sensíveis às preocupações ambientais até que membros 1.5 Política de conservação descendente iniciada pelo Estado: leis inteligentes, mas uma execução insuficiente Além das áreas protegidas, a política ambiental brasileira Teoricamente, a regulamentação descendente que se caracteriza-se por uma massa de “texto de leis excelentes aplica ao Pantanal é portanto pesada. Na prática a situação no papel” (dito por vários funcionários), mas com pouco é outra. Para começar, a autoridade regulamentar do impacto na prática. O Pantanal não é uma exceção como Pantanal está geograficamente rompida entre os Estados explica Wade (1999) e como o foi confirmado por várias de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Do ponto de vista pessoas questionadas na região e na capital federal. da jurisdição, está também dividida entre as agências O artigo 225 da Constituição brasileira dispõe que o nacionais do meio ambiente e os governos dos Estados. encarregadas do meio ambiente nestes Estados, agências Pantanal é uma das áreas naturais constituindo o Durante anos, o Pantanal sofreu com a incapacidade “patrimônio nacional”. Com mais de 120 leis em vigor sobre relativa das instituições com mandatos e bases diferentes o meio ambiente, o Pantanal é em teoria uma área bem para elaborar uma abordagem integrada – um ponto protegida e bem controlada. As regras de preservação frequentemente evocado por nossos interlocutores oficiais impacto ambiental, exames e comentários públicos, a autoridades também estão enfraquecidades pelo conjunto compreendem as disposições exigindo avaliações de e organizações da sociedade civil. Em dois Estados, as proteção da fauna, controles sobre os afluentes e adubos, de derrogações e lacunas regulamentares, revelando um etc. A lei federal exige dos fazendeiros que preservem a “fenômeno de atribuição” da regulamentção ambiental vegetação nativa ao longo das represas, através das absolutamente nefasto. deixar certa porcentagem de suas propriedades em seu Evidentemente, não faltam estruturas nacionais de famosas “reservas permanentes”. Eles também devem estado natural, (a famosa “reserva legal”) só permitindo realização no país e nos Estados. Desde 2000, a agência regulamentado. Mas é o Estado local que deve determinar ambiente é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de nesta uma atividade de pesquisa ou ecoturismo pública encarregada da aplicação da legislação ao meio Recusos Naturais Renováveis (IBAMA)13, que depende do a porcentagem atribuída à “reserva legal”. Em Mato Grosso do Sul, o Estado impõe a proteção de 20% das terras, enquanto em Mato Grosso (onde se encontra a metade do 12 As políticas visando uma utilização durável concernem mais as áreas na floresta Atlântica Pantanal), a proteção aplica-se a 35% das terras. Isto pode (74%), a Caatinga (72%) e as zonas costeiras e marítimas (74%). Na Amazônia, o equilíbrio é praticamente perfeito entre a estrita proteção e a utilização durável (51%). Estas porcentagens são em função das áreas e não de seu tamanho. 13 Até 1989, os parques e reservas federais eram criados pelo Instituto Brasileiro de parecer importante, mas para comparação, os fazendeiros da Amazônia têm a obrigação de proteger até 80% de suas Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Secretaria Especial para o Meio Ambiente (SEMA). Em 1989, a SEMA e o IBDF fusionaram para a criação do IBAMA. terras. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 23 1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito Ministério do Meio Ambiente. O IBAMA é também região a controlar. O Parque natural do Pantanal em Mato brasileiro para a conservação (SNUC). Paralelamente, a difícil acesso por falta de infraestruturas e meios de responsável pelo controle da implementação do arsenal grosso, por, exemplo, cobre 138 000 hectares, mas é de nível estadual, toda a gama de atores institucionais funcionamento, de maneira que é impossível exercer uma controla a aplicação das legislações federais e locais. Em vigilância completa e constante. No que diz respeito às Mato Grosso do Sul, por exemplo, a gestão do meio legislações ambientais nas fazendas, um sentimento ambiente cabe ao SEMA (Secretaria do Estado para o Meio compartilhado parece preponderar nos ministérios como Ambiente, criada em 1991), e ao IMAP, Instituto do Meio nas agências: Uma política florestal de Estado deve igualmente estar Por mais que tenhamos feito, os fazendeiros do Pantanal Ambiente do Pantanal, seu “braço armado” no Pantanal. incubida de vigiar os caçadores clandestinos continuam senhores de suas terras. especialmente através da fiscalização dos veículos. Além disso, nos cerrados, por exemplo, o Estado encoraja Potencialmente, esses dispositivos deveriam garantir uma uma exploração intensiva das terras ao ponto de as regras inoperantes, por falta de uma vontade política firme e Sem falar da corrupção dos inspetores encarregados do boa proteção dos espaços naturais do Pantanal, mas são ralativas às reservas permanentes e legais serem violadas. meios financeiros adaptados que, em 2008, faltaram. Os meio ambiente – um fenômeno que, segundo vários de funcionários encontrados em Brasília deram-nos uma ideia nossos interlocutores em Mato Grosso do Sul, parece bastante crua do que acontece no terreno. O mínimo que bastante frequente. É, portanto neste contexto de fraca podemos dizer é que a aplicação no Pantanal se apresenta proteção e respeito à lei que as ONGs tentaram, no início como um quebra-cabeça, dada a falta de meios humanos dos anos 90, defender a causa de uma melhor proteção do e financeiros, que náo condizem com a imensidão da 1.6 Pantanal. Conclusão A novidade e a importância do Parque Regional do participar conjuntamente do desenvolvimento interno, que opuseram durante anos atores e visões diferentes da tendem a reinvindicar o Pantanal para a humanidade Pantanal só são concebíveis se conhecermos os debates outros – como as ONGs de defesa do meio ambiente – gestão ambiental no Brasil. inteira. No terreno, estas tensões são traduzidas por leis O primeiro desses debates, destacado aqui, diz respeito e por uma pequena parte da superfície protegida (menos milagrosamente protetoras – mas que não são aplicadas – aos direitos e deveres de cada um quanto ao destino do de 3% beneficiando de uma estrita conservação) Pantanal. Como outras maravilhas do mundo da mesma importância, o Pantanal é o centro de discursos O segundo debate de fundo é abordado na seção seguinte. consideram antes de tudo como um bem nacional que deve procura ver que, na prática, e graças a isso obtém poder. concorrentes. Enquanto as autoridades nacionais o Está ligado ao significado da “participação comunitária” e © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 24 2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas É, portanto, neste pano de fundo de conflito entre os integrando os produtores locais: esta nova geração de campeões do desenvolvimento soberano e os partidários da programas de PC compreende uma partilha crescente do progressivamente no Pantanal. Analisaremos a evolução do sempre no âmbito definido pelas ONGs. Somente conservação que o “discurso participativo” apareceu poder entre as principais ONGs e os produtores locais, mas discurso na PC da região e a maneira como mudou o progressivamente e recentemente o conceito de PC serviu da PC, tomou, em primeiro lugar, uma forma de consulta das produtores. Enquanto o discurso mundial sobre a equilíbrio de poderes para sua gestão ambiental. O discurso às ONGs para destacar a necessidade de aproximar-se dos comunidades, organizadas pela iniciativa do Estado no participação tomou esta direção há muito tempo, só chegou âmbito de vastos exercícios de planejamento sem quase lentamente aos atores do Pantanal. Um novo equilíbrio de Ele em seguida encarnou os esforços privados da estrita Natural Regional do Pantanal”. Este conceito jurídico, efeitos práticos, mas que dava ao Estado o primeiro papel. poderes acabou, contudo, por emergir como o “Parque conservação, oferecendo às ONGs um papel-chave de importado da França, contribuiu amplamente para dar aos apoio e orientação das iniciativas privadas. A PC evoluiu produtores locais um poder crescente de decisão e, em mais uma vez para tomar lentamente a forma de uma consequência, suscitar uma profunda desconfiança na maior abordagem mais colaborativa da gestão do meio ambiente 2.1 parte dos defensores do meio ambiente. PC através da iniciativa do Estado: consultas para um planejamento estratégico Ironicamente, a ineficácia da “conservação” do Pantanal destes exercícios devia dar lugar a outra coisa que a mas com aplicação flutuante”) não impediu as práticas bem maioria dos interlocutores não “levaram a lugar nenhum”. organizada pelo Estado (baseada em “leis exemplares, grandes relatórios e recomendações, que segundo a estabelecidas de “PC consultativa” na região, no âmbito de vastos exercícios regulares de planejamento Desde 1978 o Governo brasileiro, a Organizaçao dos do Estados Americanos (OEA) e o PNUD têm organizado um desenvolvimento. Assim, o Pantanal situa-se na “avant- processo de planejamento de três anos, batizado EDIBAP garde” não somente do planejamento descendente do (Estudo de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto Brasil, mas também no planejamento da PC desde os Paraguai). Uma série de propostas para o desenvolvimento Pantanal é de fato conhecido pela série de processos de nos princípios da conservação do meio ambiente, do primeiros anos de aparecimento deste discurso. O econômico da região do Pantanal foi formulada, baseada “planejamento estratégico” compreendendo um número equilíbrio ecológico e da utilização racional das terras. A garde. De certa maneira, a região foi um “terreno de jogo” especificas para remediar as dificuldades sociais e avaliar incrível de atores nos mecanismos consultivos de avant- estratégia que provinha disto preconizava ações extraordinário para o discurso sobre a PC – passando o impacto dos diferentes projetos de desenvolvimento desenvolvimento às práticas consultivas. Porém, nenhum no Brasil. Ela previa especialmente medidas para o rapidamente de uma abordagem descendente do considerados no regime hidrológico da bacia do Paraguai © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 25 2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas controle das enchentes, com a construção de reservatórios em diferentes navegabilidade pontos, sem que modificar deviam em melhorar demasiado manifestações públicas. Este trabalho, que mobilizou mais a de 4 500 participantes, conduziu a publicação de relatório o de 300 páginas que servirá (se tudo estiver bem) para “as comportamento das águas a jusante. Esse trabalho necessidades das autoridades públicas, decididores e não teve o resultado esperado. sustentável do Pantanal... O que leva o Governo federal a lançar em 1991, um vasto Mas as coisas não param por aí. Em 2007, a UE financia Conservação da Bacia do alto Paraguai” (PCBAP). Pantanal e seus desafios, fundado em contribuições este plano estava baseado num método de zoneamento interessadas. Esse projeto batizado Instituições de sítio em matéria de conservação, reabilitação e proteção das públicas, uma série de trabalhos científicos, uma de alerta às inundações em tempo real, a fim de prevenir o de pesquisa com o objetivo de apoiar as instituições enorme, mensageiro de imensas esperanças, finalmente projeto participativo para preparar um “Plano outras pessoas interessadas pelo desenvolvimento de um diagnóstico participativo de grande importância sobre o Conduzido pelo Governo brasileiro e pelo Banco Mundial, científicas importantes e consultas das partes diretamente ambiental e devia definir diretivas gerais e espécificas no Pesquisa para o Pantanal deu lugar a dezenas de reuniões terras deterioradas. Previa a implementação de um sistema quantidade de relatórios que deviam definir “um programa impacto negativo no meio urbano e rural. Ainda assim políticas, quadros jurídicos e ação social” no Pantanal. Os praticamente nenhuma das recomendações teve efeitos. resultados do projeto foram apresentados no Brasil, no Em 1996, o Governo brasileiro solicita ajuda técnica e habitantes e as organizações do Pantanal ainda estão à Paraguai e na Comissao Europeia em Bruxelas, mas os financeira do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF) espera de resultados concretos. a fim de preparar um programa de gestão integrada da totalidade da bacia que deve aplicar as diretivas As entrevistas realizadas em 2008 mostram claramente estudos e projetos piloto foram concluídos com sucesso, monitorados por “facilitadores” externos (e frequentemente identificadas no PCBAP. Entre 1999 e 2004, cerca de 44 que os exercícios consultivos repetidos, em geral dando lugar a publicação de um novo “programa estrangeiros) quase não são proveitosos. A maioria dos do alto Paraguai”. Mais de 250 organizações federais, e esperança. Seus comentários refletem frequentemente instituições internacionais e órgãos de outros países são às ONGs ou aos fazendeiros. Um deles até descreveu o estratégico de ação para a gestão do Pantanal e da bacia atores que encontramos se considera quase sem paciência estaduais e municipais, ONGs, empresas privadas, um sentimento de desilusão seja em relação aos cientistas, direta ou indiretamente envolvidos nas atividades do Pantanal projeto, essencialmente por sua participação numa série de como “o Triângulo planejamento participativo”. das Bermudas do 2.2 A PC considerada como conservação particular: a opinião das ONGs meioambientalistas No início dos anos 90, ONGs internacionais começaram a associando-se a organizações científicas, a fim de alcançar uma melhor conservação da região. Elas manifestações mais marcantes – uma conferência sobre tempo pela criação de novos parques nacionais e novas em 1998 pela CI e várias organizações locais, como a pressionar o Governo federal e as autoridades locais para fornecer conselhos e propostas técnicas. Uma das defendiam a ideia de “reservas integrais” ao mesmo o Pantanal e os cerrados circunvizinhos – foi organizada “reservas particulares” detidas por ONGs, mecenas ou Universidade de Brasília e a Fundação Biodiversitas. fazendeiros. As ONGs aproximaram-se das autoridades Cerca de 200 cientistas presentes iam identificar uma © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 26 2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas série de corredores e áreas cruciais para a proteção da estratégias evoluem com o tempo e não são estritamente biodiversidade, provocando enfim uma reação do idênticas. Sul criou cinco novas áreas protegidas, cobrindo 140 000 Mesmo se a estratégia mundial da CI tenha mudado ao Governo. Entre 2001 e 2004, o Estado de Mato Grosso do hectares. De seu lado, o Governo federal criou o Parque longo dos anos, ela continua bastante estável no Pantanal. Nacional da Serra da Bodoquena (76 000 hectares) este A CI reconhece em seu site Internet que a linha estratégica globalmente estes sucessos obtidos graças às pressões que ela foi uma das primeiras (em 1987) a evoluir para uma também situado em Mato Grosso do Sul. Contudo, tradicional era favorável a uma “estrita conservação”, mas exercidas, não vão moficar a paisagem da conservação visão da conservação baseada no “desenvolvimento da sua superfície está protegida. interessadas locais (Conservation International, 2009). É por esta razão, paralelamente, que estas ONGs atores econômicos, defendendo mais a criação de novas pública do Pantanal brasileiro, visto que menos de 2,5% sustentável” e a participação das partes diretamente Contudo, no Pantanal, a CI não trabalha realmente com reservas públicas e particulares no seio dos “corredores”15. pregavam também a criação de novas áreas protegidas particulares, aproveitando a legislação brasileira, relativamente sofisticada, que favorece o estabelecimento A TNC (internacional The Nature Conservancy) optou por Até o momento, o Pantanal tem 13 reservas deste tipo, organização de conservação do meio ambiente intervém uma estratégia bastante próxima. Criada em 1951, esta de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN). com 201 255 hectares, ou seja, 1,5% da região. no mundo inteiro. No Pantanal, começou ajudando uma O conceito de reservas naturais detidas por particulares de terra ao longo do Parque Nacional do Pantanal a fim de fundação parceira (Ecotropica) a comprar 60 000 hectares tem sua origem na Europa do século XIX, em especial com fazer reservas particulares. Desde o final dos anos 90 ela Namíbia e em Botswuana. Lançado por decreto em 1990, observar atentamente o PRP. Mais recentemente, a TNC tem ajudado também as instituições locais a avaliar, gerir e grandes reservas criadas pelos Ingleses no Quênia, na estabeleceu uma parceria com a UNESCO, o WWF e o o programa brasileiro foi integrado ao corpo legislativo pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) para Congresso em 2000. As autoridades federais e estaduais conservação dos sítios pertencendo ao patrimônio natural utilizam doravante estes RPPN com aparente entusiasmo, mundial no Pantanal. visto que, senão, elas deveriam apropriar-se destas terras, indenizar seus proprietários e investir na gestão das áreas. Assim, a carga da conservação incumbe mais aos A CI e a TNC, são, portanto, sensíveis ao aspecto Vários grupos de defesa do meio ambiente ajudaram os sobretudo de colaborar com os fazendeiros interessados “conservação” e só praticam uma PC limitada: trata-se, proprietários particulares do que às finanças públicas. fazendeiros a criar RPPNs14, sobretudo quando suas por uma estrita conservação. De seu lado, outras grandes terras se encontram próximas das reservas naturais ONGs trabalham mais – mas sem exclusão/restrição – no de imposto predial, mas devem limitar suas atividades ao continua, vamos ver, bastante limitado. aspecto “utilização sustentável”, no âmbito de uma PC que públicas. Os fazendeiros que o fazem obtêm exonerações ecoturismo e à pesquisa. A área assim decretada beneficia igualmente de uma proteção irrevogável, o que significa que as terras jamais poderão ser desclassificadas. 14 Para obter o certificado de qualidade RPPN, uma área deve apresentar características pertinentes para a proteção da biodiversidade ou ficar num lugar onde a valorização do meio ambiente poderia permitir preservar ecosistemas 15 Nesta abordagem, vastas zonas – como os parques nacionais – são religados por Há dez anos que várias ONGs internacionais têm tido um papel maior neste tabuleiro de xadrez do Pantanal e continuam particularmente ativas – como a CI, o WWF, a corredores a reservas menores a fim de facilitar a circulação das espécies num espaço mais vasto e favorecer assim uma diversidade genética crescente. TNC e a Wildlife Conservation Society (WCS). Suas © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 27 2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas 2.3 Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de PC Enquanto a CI e a TNC trabalharam amplamente por uma 150 pessoas são, assim, convidadas a participar de três estrita conservação no Pantanal, outras enfatizaram a campanhas por ano. Elas beneficiam de tratamento da da região são detidos por criadores de gado, a expansão evolução do projeto de proteção das onças pintadas e necessidade de envolver os atores locais. Visto que 97% parte dos médicos e dentistas, são informadas sobre a do sistema de conservação depende a priori de sua podem discutir sobre a conservação dos lugares. Em Como para a criação de reservas particulares, só pode se beneficiam de tratamento de saúde e vêem o modo de vida cooperação, através de novas formas de “participação”. compensação aos esforços de conservação, os nativos tratar – ao menos aparentemente – de um fenômeno pantaneiro valorizado. limitado. Mas a WWF foi mais longe do que as outras ONGs no A WCS (Wildlife Conservation Society) é uma das primeiras trabalho com os produtores locais. Depois de ter apoiado criadores de gado, procurando melhor integrar o programa mais ambicioso batizado “Pantanal Forever”. ONGs a ter começado a trabalhar no Pantanal com os vários projetos de conservação, ela lança em 1998 um desenvolvimento e a proteção da fauna, através de uma Ainda atual, este programa continua ao mesmo tempo com pesquisa aplicada. Desde o final dos anos 90, a WCS tem objetivos de conservação e objetivos de desenvolvimento. se esforçado para mobilizar e formar criadores de gado Em matéria de conservação, este projeto contribui para a com o objetivo de gerir os conflitos com animais selvagens: criação de áeras protegidas e a proteção da arara Ara exercem sua predação nos rebanhos. A WCS dirige um de fotos 1). Em matéria de produção sustentável, ela os criadores matam frequentemente onças pintadas que haicintha (Arara-azul grande) – a maior da espécie (série programa de pesquisa que visa reduzir a taxa de trabalha junto a grupos de mulheres pescadoras para depredação do gado e implementar novas técnicas de desenvolver a arte e o artesanato regionais. Ela ajuda prevenção com várias fazendas parceiras. A WCS propõe também os criadores a adotar práticas menos prejudiciais desenvolvimento do ecoturismo. Ela trabalha para esse fim tem esforçado para promover a carne de boi biológica também recomendações sobre a produção de gado e ao meio ambiente, como o ecoturismo e desde 2002 se com a UNIDERP uma universidade local, para a constituição dos indicadores ambientais ajudando-os a obter um certificado junto do IBD (Instituto e Biodinâmico). socioeconômicos que permitem garantir um melhor acompanhamento das culturas. Abandonando progressivamente sua filosofia A colaboração com os produtores locais aparece, portanto, cada vez mais como a nova vocação da PC no Pantanal e de uma pista a seguir para as ONGs. Mas estas praticaram conservação estrita, a CI esforça-se também para trabalhar mais uma versão atenuada da PC, a saber, dispositivos pintada Conservation Fund, (uma ONG brasileira) e a nenhuma “apropriação pela comunidade”: trata-se somente mais com os criadores de gado. Em parceria com a Onça sobretudo concebidos por peritos externos e não implicando universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), de incitar os produtores a modificar suas atividades num ou concebeu um dispositivo de indenização dos criadores noutro sentido. Estas inciativas estão portanto ainda vítimas das onças pintadas das onze fazendas contíguas, distantes dos projetos « pilotados pela comunidade » na qual acrescentando 150 000 hectares de habitat protegido para a PC local é essencial, em todos os níveis. acordo para parar de matar as onças pintadas. Por outro A própria ideia de criar um “parque regional do Pantanal” médica e dentária gratuita, associada a uma educação do gestão do meio ambiente e intervenções das ONGs. Ela estes animais. Em troca, os fazendeiros assinaram um lado, o projeto apóia um programa social de assistência era, pois, extremamente inovadora na paisagem local da meio ambiente, tudo isto destinado aos criadores. Quase deu a esperança de que a comunidade pantaneira local © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 28 2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas teria meios, especialmente financeiros, para desenvolver associar a tal ou tal projeto iniciado por ONGs programas que teria ela mesma concebido em vez de se 2.4 internacionais. Conclusão : A novidade da proposta do PRP Nós vimos que o conceito de PC tinha evoluído ao longo comunidade e reforçar seu poder de decisão coletivo em entre duas abordagens do meio ambiente – a conservação projeto de um “parque regional” integrado confiado à dos anos no Pantanal, refletindo a tensão permanente diferentes setores ambientais e socioeconômicos. Esse e a utilização sustentável. Nos anos 90, as grandes ONGs comunidade suscitou interrogações entre as ONGs que ativas no Pantanal adotaram a filosofia da participação, tinham muitas dificuldades a ver os fazendeiros como mas uma versão suavizada – a saber, com a participação amigos do meio ambiente. Vários defensores do meio dos fazendeiros em projetos particulares de conservação, ambiente acharam inútil, até mesmo perigoso dar mais em seguida diferentes fazendas em projetos de ONGs poderes e meios financeiros a estes atores. É, pois, contra incitando a modificar certas práticas de produção. Neste um muro de a priori da parte das grandes ONGs de defesa contexto, a proposta de criar um “parque regional” confiado do meio ambiente que um projeto bem mais audacioso de visando envolver diretamente os criadores enquanto deter-nos agora. à comunidade foi considerado como um óvni, a iniciatitiva PC nasceu no Pantanal – é sobre sua gênese que vamos © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 29 3. A gênese do PRP: uma comunidade em crise à procura de aliados A proposta de criação do Parque Regional do Pantanal vontade comum de dois grandes grupos de interesse locais marca uma etapa fundamental no discurso participativo da preocupados em ocupar-se da ascensão potente dos região. Ela implica a criação de um parque participativo em novos atores regionais. fazendeiros e apoia, em lugar de proibir, as diferentes Este objetivo de duplo bloqueio, na base da iniciativa, as chaves aos autóctones”16, deixando-lhes conceber os tornar-se o principal promotor e criador do projeto do PRP. grande escala, fundado na adesão voluntária dos produções econômicas. Oficialmente, trata-se de “entregar cruzou rapidamente o caminho de um outro ator, que ia projetos econômicos, sociais e ambientais que lhes Trata-se da cooperação francesa – que compreende vários convêm em vez de incitá-los a unirem-se a um projeto órgãos como a Embaixada da França, o Ministério das comunidade, como as ONGs internacionais. Ambiente Mundial (FFEM) e vários órgãos públicos Nós voltaremos à gênese deste projeto de PC, aos agentes modelo de gestão do meio ambiente a propor, o dos pronto, concebido por atores não pertencentes à Relações Exteriores, o Fundo Francês para o meio técnicos e de pesquisa. Os atores estrangeiros tinham um da origem do projeto (iniciadores, promotores e os que “parques naturais regionais”. Este modelo que compreende concebem) e a significação estratégica da iniciativa como a cooperação do Estado com os produtores locais, base. Veremos que os principais iniciadores são um grupo em vários países. Esta vontade de exportar a « expertise sobre a configuração dos interesses que lhe servem de apareceu na França nos finais dos anos 60 e já teve mérito de fazendeiros criadores, de certo padrão, preocupados francesa » e exercer uma influência intelectual no Pantanal com a influência crescente de ONGs pregando a – uma zona natural tendo uma importância mundial – conservação, mas também concorrentes econômicos na harmoniza-se com as preocupações dos fazendeiros e região. Os fazendeiros tradicionais do Pantanal tiveram o autoridades locais, que procuravam introduzir uma nova ascensão potente de atores ameaçando sua sobrevivência partidários da conservação e produtores. região, em nome do meio ambiente. É baseado nesta convergência de interesses – e aliança sentimento de ter que dar uma resposta coletiva à iniciativa capaz de modificar o equilíbrio dos poderes entre econômica e a própria legitimidade de sua presença na original – que o projeto do PRP nasceu e obteve Um senador e o Estado de Mato Grosso do Sul fizeram importantes igualmente parte dos inciadores do projeto do PRP. Estes rural importante composto de nacionais e internacionais, compreendendo a EU e contactada pelos peritos atores políticos responderam, assim, às ansiedades de um eleitorado fundos, franceses. grandes fazendeiros. Eles viam nisso um meio de conter a influência das forças a favor da conservação, para a qual o Pantanal se assemelhava mais a um bem público mundial que a uma ferramenta de “desenvolvimento nacional”. A 16 Para retomar a expressão de um de nossos interlocutores iniciativa inicial do projeto do PRP nasceu, portanto, da © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 31 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados 3.1 A crise dos criadores e a vontade de conter os concorrentes e protetores do meio ambiente A crise econômica e de legitimidade que atinge os demasiado pequenas. O nível de inundações impede criadores, instalados há muito tempo nesta zona úmida e frequentemente os animais de deitar-se para descansar: que praticam principalmente a criação de gado, é a base da alguns morrem de cansaço mesmo tendo suficientemente inciativa do PRP. Cada vez mais, estes vêem no forragem para os alimentar. Se os criadores de grandes aparecimento de dois tipos de atores, uma ameaça direta a fazendas e de grandes rebanhos podem permitir-se ter concorrentes econômicos dos criadores tradicionais: beira da falência. O tamanho e o número de fazendas no sua presença durável na região. Os primeiros são os grandes perdas, os pequenos criadores encontram-se à agricultores dos planaltos que cercam o Pantanal e que Pantanal são, pois, variáveis chaves para compreender a outros concorrentes se encontram diretamente no lugar. fundamentais sobre esta questão. beneficiam de uma produtividade bem superior. Mas, história desta comunidade. Wilcox (1992) propõe dados Um número crescente de recém-chegados – que não pertencem à comunidade tradicional pantaneira – compram Por volta do final do século XIX, somente algumas fazendas fazendas em falência e importam modos de produção mais isoladas se desenvolveram no Pantanal, de modo que a ressentida pelos fazendeiros tradicionais, é a das ONGs metade do século XX, contudo, a criação de gado não intensivos exigindo mais capital. A segunda ameaça pressão do homeme continuava fraca. Durante a primeira parou de desenvolver-se17 mesmo se tenha sido pregando a conservação, apoiadas pelas redes e fundos necessário esperar os meados dos anos 50 para se poder internacionais para desenvolver um método “bola de criar cavalos, por causa das doenças locais especificas – o cristal” da conservação que culpabiliza os criadores em que afetou seriamente a expansão da indústria da criação. nome do impacto negativo no meio ambiente. Nós vimos, Este obstáculo acabou por desaparecer nos anos 60, com várias grandes ONGs defendem e financiam uma visão os progressos veterinários. A indústria da criação progrediu estrita da conservação da biodiversidade na região, pondo fortemente, assim como o número de imigrantes vindos em questão a legitimidade da presença dos criadores. instalar-se no pantanal, frequentemente através de redes A crise econômica: as fazendas menores e o preço da familiares. Enquanto o censo de 1920 efetuado no Brasil carne de vaca em recuo estimulam a concorrência enumerava quase 100 fazendas em todo o Pantanal, para cerca de 700 000 cabeças de gado, no início dos anos 70, As raízes da crise da produtividade da criação de gado contava-se mais de 3 500 fazendas para mais de 5 milhões tradicional no pantanal faz parte da própria história dessa de cabeças de gado. em declínio constante, que alcançam frequentemente um As fazendas, bastante importantes no início, foram cada vem do aumento da população e da imigração, aliada à famílias e a instalação de imigrantes18. Atualmente, um comunidade. Elas estão ligadas ao tamanho das fazendas, vez mais fragmentadas com o aumento do tamanho das nível inferior à sobrevivência econômica. Este fenômeno número crescente de fazendas encontra-se aquém do regra tradicional de partilha do patrimônio em partes iguais entre os herdeiros machos. 17 A Nhecolândia, uma das grandes sub-regiões do Pantanal, é particularmente representativa desta evolução.No início do século XX, ela não tinha mais do que uma dezena de famílias que criavam algumas 100 000 cabeças de gado. A partir de 1920, já se enumerava mais de 80 fazendas para quase 200 000 animais. Na metade dos anos 50, as fazendas ultrapassaram a cententa, para uma população humana de 6 000 pessoas. 18 No final do século XIX, as maiores fazendas do Pantanal compreendiam entre 100 000e As condições ambientais e técnicas da região fazem com que seja extremamente difícil e arriscado criar gado em uma fazenda relativamente pequena. Em época de chuva, 400 000 hectares, uma só ultrapassava um milhão de hectares. Nos anos 20, a metade ainda ultrapassaram 100 000 hectares – mas nos anos 50, as fazendas estavam em torno de 8 000 a 65 000 hectares. Nos anos 70, 70% de todas as fazendas do Pantanal tinham entre 1 000 e 10 000 hectares, contra somente 11% (ou seja, cerca de 400 fazendas) estendendo-se ainda em 100 000 hectares. quando a maior parte das terras são inundadas é preciso poder encontrar pastos em quantidade suficiente. Basta um ano difícil com grandes enchentes para arruinar as fazendas © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 32 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados limite de viabilidade econômica com, segundo nossos preocupações dos fazendeiros que o projeto do PRP iria interlocutores, superfícies médias de 7 000 hectares. Em nascer. consequência, muitos cederam a agricultores externos que A crise de legitimidade: a crítica dos defensores do chegam com mais capitais e técnicas intensivas – o que aumenta a produtividade, mas, aparentemente, prejudica meio ambiente e a tomada de contrôle receada fazendeiros de longa data, que ainda são majoritários, Praticamente 80% das terras desflorestadas na Amazônia nem estado de esprito necessários para sobreviverem gado (Greenpeace, 2009). Imagina-se desde então a mais o meio ambiente. Esta evolução é mal vivida pelos entre 1996 e 2006 servem doravante de pastos para o ainda mais porque eles não têm nem meios financeiros reputação dos criadores entre os defensores do meio economicamente. As entrevistas com os fazendeiros ambiente trabalhando no Brasil... Mesmo se a situação não mostram realmente este sentimento de “ameaça”: tenha sido tão grave no Pantanal, vimos (seção 2) que a desconfiança persiste entre as ONGs e os fazendeiros da - não conheço um só fazendeiro (no Pantanal) que esteja região: a ideia de uma colaboração só começou há pouco contente em ver chegar essas pessoas, mesmo se cada vez mais sejam obrigados a lhes vender suas terras tempo – e lentamente – enquanto a visão de uma - Os (novos fazendeiros) não sabem nada sobre nós, sobre grandes ONGs, que militam em especial pela compra e o modo de vida que praticamos aqui depois gerações. proteção particulares. conservação estrita continua a influenciar a ação das encerramento das terras integradas a dispositivos de nossa história e sobre o Pantanal e não querem respeitar o Tudo isto significa que os fazendeiros se sentem - Eles não deveriam estar aqui, mas as regras do mercado ameaçados pelas ONGs ecologistas – um sentimento que dominam. Tudo isso é muito triste era ainda mais forte há 15 anos, quando o projeto do PRP nasceu. As entrevistas realizadas em 2008 revelam ainda - Como quer que concorramos com gente que tem dez estas tensões, mesmo se um numero crescente de vezes mais meios que nós? projetos de ONGs sejam realizados em um espírito de Os criadores de gado do Pantanal também foram vítimas maior cooperação. Várias ONGs ainda lutam abertamente das imprevisões do preço da carne bovina nos mercados contra a ideia mesma de criação sustentável no Pantanal. mundiais. No início, a indústria era próspera graças às Assim, em 2006, a CI publicou um relatório (Barcellos nacional e internacional. Os preços continuaram elevados desenvolvimento dos pastos e da agricultura já tinha exportações de carne salgada e seca para os mercados Harris, 2006) segundo o qual a desflorestação ligada ao até a segunda guerra mundial, mas a atividade começou a destruído 17% da vegetação nativa do Pantanal declinar com o aparecimento das técnicas de refrigeração, (25 000km²). Seus autores afirmam que se ele continuar neste ritmo, a desflorestaçao levará ao desaparecimento que reduziram a demanda de carne em conserva (Junk et daqui a 45 anos de toda a vegetação original da região19. de Cunha, 2005). O Pós-guerra mostrou-se difícil para os Estas análises alimentam a desconfiança entre ONGs e criadores, que tiveram em seguida duas décadas de fazendeiros. Grande número destes últimos receia aumento contínuo de preços, até o início dos anos 70 nos quais a queda brutal dos preços mundiais pôs fim a esta abertamente que no final, as ONGs manteve até meados dos anos 90, reforçado no Brasil, por ... invadam o Pantanal [e os] ponham para fora expansão (Edelman, 1992, p. 195). Este fenômeno se episódios recorrentes da febre aftosa que impediram as exportações para vários mercados internacionais e, em especial, a EU. E neste contexto de perspectivas 19 A taxa de degradação do meio ambiente é de 2,3% por ano. econômicas morosas e tendo como pano de fundo as © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 33 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados A hostilidade é tangível e vários fazendeiros que para permitir aos fazendeiros reforçar sua posição e concluir encontramos têm o sentimento de que as grandes ONGs com sucesso suas atividades em presença de concorrentes da região estejam repletas e defensores do meio ambiente de peso. Uma vontade de duplo bloqueio orienta, então, a criação do projeto. Esta preocupação encontrou em seguida, um modelo estrangeiro [...] de gente vinda do estrangeiro, com salários de 5 000 de gestão do meio ambiente: o princípio de “parque natural dólares por mês e que pensam poder [nos] dizer o que regional” implementado na França. Uma aliança foi, temos de fazer! portanto, travada entre os fazendeiros e o governo É neste contexto perturbado que o projeto do PRP nasceu 3.2 estrangeiro, contente em exportar um modelo nacional. O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente A França orgulha-se de seu passado de gestão do meio pequenas indústrias e o setor do turismo preservando os (setores nos quais este país tem algumas das maiores populações em relação ao meio ambiente... receava-se ambiente. Isto é válido para a água e o tratamento do lixo recursos naturais e culturais e sensibilizando as empresas do mundo), mas também para seu sistema de produzir uma série de políticas setoriais desconectadas e dispositivo vem do conceito de “parque natural regional”, tempo, contudo, o modelo do parque regional impôs-se nas produtores locais, que se comprometem em respeitar desafios socioeconômicos complexos. Hoje, a França tem áreas protegidas. Um dos aspectos originais deste em conflitos, mais ou menos rotuladas de “verde”. Com o que está baseado inteiramente num contrato entre e com regiões francesas de recursos naturais frágeis e de certas regras. A França elaborou este modelo em mais de 40 parques naturais regionais, que cobrem cerca meados dos anos 60 e desde aquela época o tem de 10% do território nacional, quatro milhões de hectares, exportado para vários países (Rússia, Polônia, Portugal, duas comunas e concernem cerca de 2,2 milhões de Bélgica, Chile ou Vietnã). Este dispositivo francês de pessoas. cooperação internacional apóia esta difusão através de financiamentos e programas de pesquisa. Foi o caso no Estes parques são uma forma particular de associação – Brasil, onde as características de um “parque regional” os sindicatos mistos. Eles reúnem representantes eleitos criadores profissionais da região visada. No caso do Pantanal, uma se adaptavam bem às preocupações estratégicas dos de gado do Pantanal: reforçar como sua produtividade e manter os defensores do meio ambiente representações de ONGs e associações associação deste tipo foi criada em 2001: trata-se do longe. Instituto do Parque do Pantanal (IPP), ao qual voltaremos mais em detalhe na sequência deste texto. A própria ideia de « parque regional » vem de 1966, logo que a delegação do Desenvolvimento do Território pediu ao Os sindicatos mistos têm por primeira responsabilidade governo francês para criar um novo instrumento integrado decidir sobre o funcionamento das equipes técnicas do baseado na participação de seus atores locais. Os campos parque. Cada parque se dotou verdadeiramente de sua de gestão econômica, social e ambiental nas zonas rurais, parque e as orientações políticas fixadas na Carta do tinham um “êxodo” contínuo que as autoridades tentaram própria Carta do território que define os princípios e as erradicar por um novo instrumento de PC. O decreto ações a serem respeitadas e que compromete os instituindo os parques regionais é assinado pelo Governo parceiros públicos e particulares. Estas Cartas devem em 1967 – sem acabar totalmente com as dúvidas ser aprovadas pelo Ministério das Finanças e do Meio envolvendo um modo de gestão que devia implicar e Ambiente - mas elas são o fruto de longas negociações satisfazer tudo ao mesmo tempo: artesãos, agricultores, entre as diferentes partes diretamente interessadas © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 34 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados (cinco anos em média). Uma das forças desta das negociações com as autoridades nacionais e outras através do qual os parceiros se comprometem a respeitar públicas. abordagem reside no fato de que a Carta é um “contrato” instituições para a elaboração de textos de leis e políticas os princípios negociados juntos. A obrigação moral de se comprometer com este “contrato” é reforçada pela O modelo de “parque regional” começou a ser exportado necessidade coletiva de obter financiamentos regulares para o Brasil através de uma série de contatos entre a da parte das autoridades nacionais, e em consequência, Embaixada da França e o Estado de Mato Grosso do Sul, de apresentar periodicamente os resultados obtidos. Os que abriga o essencial do Pantanal e onde este modelo de o renovamento de sua Carta no Ministério do Meio assinado que consagra oficialmente a cooperação técnica parques regionais também devem obter a cada dez anos, gestão suscitou muito interesse. Em 1996, um acordo é Ambiente, o que dá lugar a balanços aprofundados. entre a FPNRF e o Governo de Mato Grosso do Sul. A FPNRF ver-se confiada a responsabilidade de levantar Os parques regionais franceses são federados por uma fundos internacionais para criar o “parque regional do entidade central, a Federação dos Parques Naturais da Pantanal” (PRP). França (FPNRF). Esta está encarregada de gerir os programas de parceria, garantir a troca de experiências e A seção seguinte mostrará como a ligação com os também representar globalmente os parques no momento influência essencial na concepção do projeto. favorecer a capitalização dos conhecimentos. Ela deve investidores estrangeiros foi travada e analisará sua 3.3 O PRP: uma iniciativa local influenciada pelos peritos estrangeiros e criticada pelas ONGs Como mostra Charnoz (2009b), a maior parte dos muito tempo na região do Rio Negro do Pantanal. Ele e estatais, quer sejam iniciadores, promotores ou começa a procurar um apoio maior no seio da federação projetos de PC é lançada por agentes internos, externos envolve-se, então, fortemente com os criadores locais e criadores. Ora, como certos atores dominam outros, brasileira, eventualmente nos parceiros estrangeiros. pode-se em geral classificar os projetos segundo sua “proveniência” (“do interior”, “do nível superior” ou do É neste momento que a influência estrangeira começa a “exterior”da comunidade). Às vezes as influências iniciais desenvolver-se. A relação tecida com a França não deve interesses bem compreendidos. É o que se passará com longa tradição de contatos com diferentes peritos técnicos são equilibradas, do fato de uma convergência de nada ao acaso. O Estado de Mato Grosso do Sul tem uma o PRP. franceses em questões de planejamento econômico. Era bastante lógico que o doutor Canale estabelecesse um Os iniciadores do projeto são antes de tudo atores diálogo com a Embaixada da França em Brasília, que lhe a sua criação vem da iniciativa de um homem político local, regionais”. Com a ajuda do embaixador e o apoio da pertencendo à comunidade local. As dinâmicas conduzindo apresentou a experiência francesa de “parques naturais o doutor Mendes Canale, senador a procura de medidas Embaixada do Brasil em Paris, contatos foram feitos com a inovadoras para ajudar os criadores do Pantanal a FPNRF (supra). De 1986 a 1995, reuniões técnicas são crescente. pela Fundação Estadual de Meio Ambiente do Pantanal melhorar seu destino e acalmar o descontentamento organizadas entre a FPNRF e o Estado local, representado (FEMAP). Técnicos da FPNRF vão ao Brasil enquanto A partir de meados dos anos 80, o doutor Canale encontra missões envolvendo FEMAP e vários fazendeiros são regularmente um grupo de fazendeiros instalados desde organizadas em Paris. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 35 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados Um pedido oficial de assistência técnica é formulado pelo As missões na Europa deveriam ter levado representantes Estado de Mato Grosso do Sul em 1995. Um acordo é dos fazendeiros, mas vários de nossos interlocutores assinado em 1996 que instaura uma cooperação entre a indicaram que eram frequentemente membros de uma Fundação do Pantanal (representando os interesses do mesma família que participavam da viagem e não voluntário remunerado pela cooperação francesa é interessadas. Para um de nossos interlocutores, “era a Estado) e a FPNRF (a agência técnica francesa). Um representantes rapidamente nomeado para se consagrar em tempo parceiro”, ao ponto de recuperar diferentes partes diretamente ocasião certa para fazer turismo em família na Europa!” completo ao projeto. A FPNRF torna-se rapidamente o “principal das a A dinâmica a favor da criação de um “parque regional” foi responsabilidade de levantar fundos internacionais com o alvo de uma crítica passiva da maioria das ONGs objetivo de criar um “parque regional” no Pantanal. Não internacionais envolvidas na região. Oficialmente, elas não o que dá aos peritos franceses uma real autoridade, mas, obrigado a criar uma nova categoria jurídica na SNUC. Se somente o projeto é desenvolvido na França durante anos, apreciavam o fato de que este “parque regional” fosse além disso, estes peritos são diretamente responsáveis acreditamos, contudo, em alguns de nossos interlocutores, ter uma influência crucial nos detalhes do projeto. a sua desconfiança em relação aos fazendeiros locais, que pela sua apresentação aos investidores, o que lhes permite a causa real desta reticência está ligada – mais uma vez – estavam longe de serem considerados como “amigos do Um “projeto preparatório para a criação do PRP” é então meio ambiente”. Aqui está o que diz o membro de uma elaborado, o Apoio à Criação do Parque Natural Regional do Pantanal, por um custo total avaliado ONG local: a 1 022 550 ECUS. Ele é submetido à Comissão Europeia e Atenção! Certas ONGs trabalham hoje com os criadores de Exteriores (DGIB). A UE concede-lhe uma contribuição de eles têm um interesse comum pelo Pantanal, suas necessários. Dois outros parceiros dividem-se o resto, o ecologistas não consideram os fazendeiros como seus aprovado em 1998 pela Direção Geral das Relações gado, mas isto não significa que elas apreciem. Mesmo se 776 000 ECUS – ou seja mais de três quartos dos fundos motivações são radicalmente opostas. [...]. As ONGs Estado de Mato Grosso do Sul e a cooperação francesa. aliados, longe disso. O mesmo para os fazendeiros. Vemos aí que este projeto é essencialmente concebido por peritos estrageiros e que além disso, é financiado em Ou ainda: de 1998, a implementação do Projeto de Apoio começa, Por que as ONGs apreciariam um projeto que dá novos o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF. Através desta elas queriam poder melhor controlar ou ver simplesmente grande parte por investidores estrangeiros. Em dezembro com a assinatura de um novo acordo de cooperação entre meios materiais e de expressão às mesmas pessoas que convenção, a FPNRF fornece um perito, o francês, que desaparecer do quadro? [...] Não vemos bem como [elas] intervém como “conselheiro técnico principal”. Esta pessoa poderiam apoiar este projeto. forma uma equipe técnica e deve observar atentamente o desenrolar do projeto. Sua influência ao longo do projeto foi Para um outro, as ONGs têm simplesmente medo de regularmente sublinhada pelas pessoas questionadas. perder sua posição dominante no palco da gestão do meio ambiente com projetos próximos do PRP: No que diz respeito à “participação comunitária” no próprio conceito do projeto, as entrevistas feitas em 2008, Um projeto comunitário como este do Parque Regional do fazendeiros e segundo o qual só um grupo limitado de ecologistas não pertecem à comunidade [...] O PRP não França e discussões com peritos brasileiros e franceses. no Pantanal. Muito pelo contrário. De fato parece bastante enfatizaram um sentimento amplamente partilhado pelos Pantanal é concebido para os nativos e as grandes ONGs notáveis locais foi implicado – no momento das viagens à tinha nenhuma intenção de dar mais peso à CI ou ao WWF © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 36 3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados ilógico que as ONGs ecologistas critiquem a iniciativa do inflexibilidade da legislação, enquanto elas mesmas agem PRP pela simples razão de que ele levaria a uma 3.4 extamente neste sentido em vários contextos. Conclusão Enquanto o impulso inicial a favor do PRP – um um projeto participativo confiado a uma comunidade e às programa de PC – vem da comunidade (e mais estruturas institucionais que daí resultam. Além disso, no precisamente, de algumas famílias privilegiadas), as caso do PRP, os franceses tinham um modelo específico responsabilidades técnicas e financeiras acabaram por de gestão a propor – que parecia em grande parte ser amplamente partilhadas entre o Brasil e os peritos responder às preocupações dos criadores locais no franceses. Como na área protegida marinha da Soufrière centro da gestão do meio ambiente – em lugar de exclui- (SMMA) em Sainte- Lucie, Martinica (Charnoz, 2009c), los – mas além disso, ele abre a perspectiva de projetos um parceiro estrangeiro impôs-se como guia para formar socioeconômicos de apoio. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 37 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico A proposta de criação de um parque natural regional no desencadeia também efeitos de poder estrutural. A « tradições », consideradas como o melhor meio de focaliza-se exclusivamente nos criadores de gado e Pantanal apoia-se no discurso específico em torno das definição da “comunidade tradicional” no projeto do PRP « salvar o Pantanal » de “evoluções indesejáveis”. A ideia fazendeiros: outros grupos importantes da comunidade durante séculos o protetor do Pantanal, dado seu impacto trabalhadores central é a seguinte: a “criação tradicional de gado” foi pantaneira são deixados de lado, como os pescadores e os “fraco até mesmo positivo” no meio ambiente. A agrícolas. Os insvestidores não se interessaram por esses grupos, enquanto até mesmo o manutenção desta atividade é, portanto uma garantia para projeto do PRP devia ser – aos olhos da UE, por exemplo o futuro do Pantanal. Alguns afirmam mesmo que o – exemplar em termos de PC. O discurso sobre a tradição terras deixadas em pousio – uma visão radicalmente aos concorrentes econômicos, mas também a grupos abandono da criação seria prejudicial à biodiversidade das teve, portanto, efeitos de bloqueio de encontro às ONGs e oposta a dos partidários da conservação, que pregam vivendo no pantanal, mas tendo um estatuto inferior. particulares). Os partidários do PRP lançaram-se em um estratégico primordial, este novo nível de bloqueio “reservas estritras” (como os parques nacionais e reservas Mesmo se não se tratasse, neste caso, de um objetivo vasto empreendimento discursivo para dotar os criadores contribuiu para mater o estatuto socioeconômico global da de uma identidade positiva, até mesmo “romântica”, em região. harmonia com a natureza. Interessamo-nos pelos efeitos de poder produtivo do discurso Em um documento precedente (Charnoz, 2009c), nòs na “comunidade tradicional”, antes de abordar seus efeitos de discurso ambiental em Saint-Lucie: a mercantilização e conceituais de análise do discurso já utilizados (Charnoz, deste tipo são observáveis: os efeitos antipolíticos e os Milliken (1999) e Weldes (1999), nós mostraremos como “os identificamos dois efeitos das estruturas de poder no poder estrutural. Assim, recorremos a instrumentos autorregulamentação. No Pantanal, dois outros efeitos 2009a e 2009b). Conforme a abordagem eleborada por efeitos pró-tradição (para uma definição, ver Charnoz sistemas de significação” são aplicados e definem certas de conhecimentos considerados como adquiridos e vão no Nós veremos igualmente a “produção de sentido comum” bloqueio dos partidários da conservação e o dos novos com os corpus de conhecimentos preexistentes e aceitos) e [2009b]). Juntos estes efeitos redefinem o corpus legítimo categorias sociais beneficiando de posições privilegiadas. sentido dos objetivos estratégicos dos fazendeiros: o através de dois processos de articulação (de um discurso atores econômicos. a interpelação (de um grupo de interesse particular pelo discurso). A análise desenvolvida das próximas subseções é Mas isto não para por aí. Este discurso sobre as “tradições” retomada no quadro 1. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 39 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico 4.1 Os criadores de gado, protetores do meio ambiente Todo exercício de “poder produtivo” implica em redefinir a Um discuso assimilando os criadores a “protetores” foi, privilegiada em um dado contexto. Como o poder favor do projeto PRP – reunindo fazendeiros, autoridades identidade de certos atores para lhes dar uma posição mais todavia desenvolvido pelos membros da aliança original a estrutural, esse poder funciona a partir de um corpus de políticas locais, mas também investidores e peritos surgimento do PRP apoiou-se precisamente num discurso que tinha sido reconhecido durante anos, antes da conhecimentos considerados tipo, que adquiridos. adotava uma O franceses. Este discurso não era totalmente novo, visto visão chegada dos partidários da conservação do meio ambiente meio ambiente. Este discurso implicava um “sistema de preocupados diante da chegada de novos atores agrícolas protetores tradicionais” do Pantanal. Nós veremos como tempo a “salvação pela tradição”. Paralelamente, as produtivo deste como profundamente oposta a dos partidários da conservação do na região, que lhe tinha retirado o peso. Cada vez mais significação” fazendo dos “criadores de gado” “guardas e este “sentido comum” diferente foi e industriais, os criadores locais pregavam desde muito sustentado. autoridades locais sempre defenderam a criação de gado, Mostraremos em seguida seu caráter contingente considerando que esta não perturba particularmente o adotando uma perspectiva de criação de gado a mais longo meio ambiente. Para elas (e esta opinião prevalece ainda prazo no Pantanal – uma abordagem antes ausente dos nas entrevistas e documentos de política consultados em discursos e dos documentos ligados ao projeto do PRP. 2008), esta atividade ancestral se desenvolveu em Enfim, descreveremos as implicações políticas deste “harmonia com o meio ambiente” ou, no mínimo, sem discurso produtivo, dando uma atenção especial aos acarretar graves problemas para o Pantanal. A produção efeitos antipoliticos e pró tradição. Nossa análise não deve, deste “sentido comum” era, então, mais uma “reativação” contudo levar a pensar que a ajuda internacional aos criadores locais era injustificada. As que uma pura criação, endereçada aos investidores agências estrangeiros para ajudar a legitimar sua contribuição ao levava em consideração o impacto ambiental bem mais indicaram também que a aceitação rápida do discurso internacionais adotaram uma abordagem pragmática que desenvolvimento local. Várias pessoas interrogadas agressivo dos novos atores e, portanto, decidiram apoiar pelos investidores estrangeiros foi favorecida por uma comparação, mostravam-se como melhores protetores do conceito de “parque regional” os criadores instalados lá há muito tempo que, em vontade a priori de promover a difusão internacional de seu meio ambiente. O poder de interpelação do discurso era, portanto Fazer dos criadores de gado protetores do Pantanal importante para os membros da aliança original, na medida Desde o final dos anos 90, as ONGs ecologistas Quanto a sua articulação com as opiniões preexistentes, é em que ele servia de base a seus interesses profundos. trabalhando no Pantanal acabaram por admitir a preciso lembrar que a opinião pública brasileira tem uma necessidade de aproximarem-se dos criadores (ver seção visão mais positiva dos criadores pantaneiros. Prova disto, 2.3). Não se trata, contudo, de fazer dos fazendeiros locais o imenso sucesso popular de uma novela “ecolo- os protetores preferidos (até mesmo eficazes) do Pantanal, romântica” transmitida na televisão em horário nobre no mas mais parceiros inevitáveis, na medida em que eles início dos anos 90. Para Wilcox (1992, p. 233), esta novela possuem a quase totalidade da região. O clima de tensão e desconfiança entre criadores e ONGs “oferecia as imagens espetaculares de uma natureza nunca soberba, testemunho de atores sobre ‘a volta às origens’ e desapareceu e rapidamente se transformou, nós vimos, em um retrato romântico da vida do criador de gado”. Esta descontentamento das ONGs em relação ao projeto PRP. novela desenvolveu e conservou a ideia segundo a qual os “cowboys do Pantanal” são gente simpática que salvou a © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 40 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico região de um crescimento desenfreado20. ocupação humana particular, dominada há 200 anos por É curioso constatar, como Wilcox (ibid.), como um setor menos sem cercas e uma exploração mínima das terras. A degradação massiva de uma região brasileira (a Amazônia) entre fatores ambientais e socioeconômicos de maneira de uma região (o Pantanal). Para os defensores desta atividade viável – até mesmo indispensável – para o meio uma criação extensiva – com estabulação livre, mais ou econômico (a criação de gado) ao qual atribuímos a conservação do pantanal é fruto de uma interação propícia pôde ser considerado como o salvador do meio ambiente que a criação de gado possa ser assimilada a uma opinião, contudo, as condições ambientais, ainda ambiente do Pantanal. O quadro 2 resume os principais relativamente sãs do Pantanal, se explicam por esta argumentos sustentando esta opinião. Quadro 2. A fraqueza do impacto ambiental dos criadores tradicionais: os argumentos-chave - o Pantanal é constituído de vastos prados naturais que não exigem um grande desmatamento como o realizado na Amazônia: o gado pode pastar em toda liberdade numa terra preservada. - As grandes cheias durante as estações das chuvas limitam a quantidade de bovinos criados numa zona dada em função das pastagens que continuarão acessíveis enquanto as terras estiverem inundadas. - Até os anos 60, as tentativas de racionalização da produção eram raras, mesmo do ponto de vista das medidas relativamente simples como a reprodução seletiva ou cercas entre propriedades. Isto vem em parte do respeito às visões e hábitos tradicionalistas antigos, mas é também consequência dos desafios tecnológicos e de obrigações ligadas ao isolamento próprio à natureza do Pantanal. Os custos de transporte e os rendimentos oferecidos pelos mercados de carne não permitem investir de maneira importante. - Em consequência, a criação no Pantanal está baseada ainda hoje essencialmente nos pastos e ciclos hidrológicos naturais, no respeito ao ritmo e à natureza idiossincrática da região. - A natureza da região limita a si mesma as formas de atividades podendo sobreviver com uma contribuição de capital mínima. As inunda- ções sazonais (rios e chuvas) facilitam o crescimento das plantas nutritivas, oferecendo condições ideais para a criação de gado, mas limitando por isso mesmo a extensão desta atividade, e, portanto, seu impacto. Contudo, o argumento mais forte a favor deste discurso novos proprietários de fazendas tendem a instalar cercas (2004) ou WCS (2009) – segundo a qual os novos dos médios e grandes mamíferos e pássaros que vivem em vem da noção – que partilha ONGs como as Earthwatch de arame farpado a seis fios, o que incomoda a passagem agricultores que compram terras ao fazendeiros em húmus, enquanto os arames farpados tradicionais de falência importam práticas produtivas particularmente quatro fios permitem aos animais circularem. Nas culturas nefastas para o meio ambiente. Para que as fazendas utilizadas de maneira intensiva, a erosão dos solos, a menores continuem viáveis, estes criadores aumentam as degradação da qualidade da água, a queimada incotrolada zonas de pasto procedendo a cortes totais nas florestas dos pastos e os conflitos com a fauna são mais frequentes. nativas. Eles plantam também espécies exóticas (como a braruiária) para aumentar a produtividade durante a estação seca : a substituição de pastos e de florestas nativas por essências exóticas invasivas concerne doravante mais 10 000 Km². A sobrepastagem nas zonas 20 Um outro nível de articulação pode também ser manifestado, como o sugeriu o membro de uma ONG local, ligado ao fato de que os investidores ocidentais tenham, às vezes, uma visão romântica das “comunidades tradicionais” e suas relações supostamente “harmoniosas” com o meio ambiente. limitadas provoca uma concorrência com os animais locais que pastam e perturba a biodiversidade. Além disso, os © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 41 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico Consciente destes argumentos, os responsáveis do projeto solos e a sedimentação dos cursos de água provocando uma defendem a manutenção dos criadores tradicionais de perda de biodiversidade na fauna e na flora. portanto, uma outra orientação mais econômica, em torno O número de animais pastando em uma mesma zona é gado. O discurso sobre a “salvação pela tradição” tomou, da viabilidade das culturas tradicionais – um tema que, nós igualmente problemático. À primeira vista, o tamanho do veremos, está no centro do projeto do PRP. Pantanal e a renovação anual dos prados, parecia garantir a ausência de todo o problema de sobrepasto. Mas o Uma análise histórica da criação extensiva de gado O impacto ambiental da criação extensiva Pantanal não é uniforme, em termos de terreno ou exploração é humana. Certas zonas vítimas da sobrepastagem são doravante cobertas por ervas indiscutivelmente fraco em relação às novas práticas daninhas. A concentração de animais esgotou partes caso dizer que ele é e foi “insignificante”. Nós propomos depois das cheias e criando dificuldades para a introduzidas no Pantanal – mas não se pode em nenhum inteiras do território, reduzindo sua aptidão a regenerar-se aqui elementos que permitirão apreciar em que medida a sobrevivência dos pastos locais. Isto é especialmente visão de uma criação tradicional tendo somente pouco verdadeiro em torno das culturas principais nas quais anos impacto no meio ambiente é na verdade enviesada. Por de calcadura e dejeção animais tornaram o solo isso, nós apoiamo-nos nos relatórios de Wilcox (1992) e impermeável. No passado, as águas das enchentes durante nosso trabalho no terreno por observações diretas mais dificuldade em penetrar no solo. Os pontos de água Seidl e al. (2001) cujas conclusões foram confirmadas subiam para lugares mais próximos de vida; doravante têm e uma série de entrevistas com fazendeiros, peões e naturais membros de ONGs. tornam-se impraticáveis, suas margens lamacentas sendo perigosas. É preciso desde então encontrar outras fontes de água potável – um problema Para começar, os criadores praticam tradicionalmente a que pudemos observar várias vezes durante nosso técnica da queimada durante a estação seca para “limpar” trabalho de terreno. novos brotos. As primeiras queimadas são nos prados, Até os anos 70, os criadores do Pantanal recorriam pouco seca e que o vento sopra, elas ganham frequentemente as 1910 e só ganharam o Mato Grosso no início dos anos 20. a vegetação não consumida pelo gado e favorecer os mas dado que os espaços são abertos, que a vegetação é aos prados artificiais. Eles continuaram raros no Brasil até savanas, zonas arborizadas e florestas. Elas podem Mas onde os pastos exóticos foram introduzidos, eles também destruir partes inteiras do habitat da fauna. O fogo contribui igualmente para o endurecimento tiveram uma influência profunda no ecosistema local – um e processo doravante reforçado pelos “novos agricultores”. A empobrecimento do solo, assim como o deslocamento progressivo da vegetação nativa, substituída presença histórica dos criadores de gado também levou ao por aparecimento de espécies animais exóticas. Os porcos gramíneas e espécies lenhosas resistentes ao fogo. A selvagens, introduzidos em 1800, continuam a destruir os longo prazo, estas espécies invasivas tomam o lugar de solos e a vegetação, disputando com os animais nativos pastos de qualidade. territórios e outros recursos. Em um grande estudo Desde o início dos anos 70, os criadores têm limpado as biodiversidade aquática dos lagos nos sítios em contato empírico a grande escala, Eaton (2006) comparou a terras e plantado os pastos nas zonas mais elevadas com a criação e sítios não tocados pela criação no Sul do disponíveis, a fim de aumentar as superfícies disponíveis Pantanal. Apesar de, digamos, uma fraca intensidade de para o gado durante a estação das chuvas. Estas práticas, criação tradicional, ele pôde observar grandes falhas na bastante divulgadas, são consideradas como bastante composição, riqueza, abundância das espécies e na favoráveis de um ponto de vista econômico, mas acarretaram biomassa para os microvertebrados como para os uma série de desmatamentos, aumentaram a erosão dos pássaros – uma constatação que deixa pouca dúvida sobre © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 42 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico 4.2 A delimitação estreita da « comunidade tradicional » a profundidade do impacto da criação no bioma local. distanciados de uma iniciativa de PC de tamanha A noção de “poder estrutural” reenvia para o reforço da do PRP tenha consistido em “regenerar e apoiar a importância. Mesmo se uma das razões de ser do projeto comunidade pantaneira”22, este ignorou, contudo, os posição social privilegiada de certos atores implicados com relações binárias ou hierárquicas antigas21. Este poder se subgrupos importantes desta comunidade. algumas partes diretamente interessadas das discussões A criação de um “sentido comum” em torno do discurso negociação. sua manifesta em especial através dos discursos que excluem privilegiando os fazendeiros baseava-se fortemente em sobre as questões particulares ou dos espaços de e historiadores célebres que trabalharam abundantemente comunidades de pescadores e trabalhadores agrícolas sobre sua história no Pantanal, contribuindo para trabalhando nas fazendas (os famosos peões). Um popularizá-la. Daí esta reivindicação típica dos fazendeiros “sistema de significação” específico, centrado nas sobre sua “relação especial”, sobre uma apropriação fazendas, foi de fato aplicado ao longo do projeto para “comunidade amplo famílias de fazendeiros têm em suas categorias levados em conta – é o caso especialmente das a sentimento Neste sentido, notamos também que várias grandes no Pantanal foram mal consultados ou nem mesmo localizar um “legitimidade histórica”, impressa em sua cultura comum. surpreendente constatar que importantes atores vivendo e com espontaneamente partilhado pelos fazendeiros: o de sua No projeto do PRP e suas nebulosas discursivas, é identificar articulação histórica e moral do Pantanal, bastante presente em nossas entrevistas: pantaneira”. Evidentemente, esta exclusão pelo poder estrutural é o resultado de uma delimitação errônea dos atores “podendo - o Pantanal não é somente um lugar onde vivemos e falar em nome da comunidade”, dos que “são os mais trabalhamos. É o que somos Para ser justo e defender a posição do investidor francês, - durante gerações, nascemos e morremos aqui. [...] O ‘tradicionais’ da região”, que “incarnam o Pantanal”, etc. é preciso lembrar que a PC não era o ponto de entrada Pantanal faz parte de mim como eu faço parte do Pantanal. desta abordagem, visto que se partia mais sobre um conceito de “parque regional”, como os criados na França, - alguns novos agricultores vêm comprar terras de meus impede que o projeto tenha sido abundantemente Esta gente não faz parte do Pantanal, ela não o conhece, que destacam a cooperação dos municípios. Isso não amigos que já não têm meios [...] Isto me preocupa muito. apresentado pelo investidor europeu, as autoridades locais ela não o ama – porque isto leva gerações. brasileiras, os fazendeiros e os assistentes técnicos De fato, numerosas famílias de fazendeiros estão estrangeiros, como um caso exemplar de “participação instaladas na região desde o fim do século XVIII (quadro 3). comunitária” (ver, por exemplo, Delorme [2004]). Esta anterioridade permite compreender que eles autoidentificam-se com a “comunidade tradicional”. No seio do próprio projeto do PRP, os fazendeiros criadores souberam posicionar-se como representantes principais e legítimos da “comunidade do Pantanal” aos olhos das autoridades locais e parceiros estrangeiros, capturando, assim, esse certificado de qualidade em seu benefício. Assim, atores que teriam merecido atenção (e 21 Ver seção 2.2. 22 Entrevista com um funcionário de Mato Grosso do Sul. eventualmente um apoio financeiro) encontraram-se © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 43 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico Quadro 3. A presença europeia no Pantanal: nota histórica Como lembra Earthwatch (2004), em seguida Corrêa (1999), os exploradores europeus (jesuítas e padres espanhóis) chegaram ao Pantanal em meados do século XVI. Os portugueses, a procura de escravos e metais preciosos, começaram a explorar a região mais tarde, no sécu- lo XVII. O ouro é descoberto perto de Cuiabá, no Norte do Pantanal, em 1719 e um certo número de fortes e cidades – como Cuiabá, Cárceres, Coimbra, Poconé e Miranda – são fundadas por volta do século XVIII. Em seguida, o esgotamento das minas de ouro leva as famílias de mercadores a pedir concessões de terras, para lá criar culturas bovinas. Leais ao rei de Portugal, elas são recompensadas com privilégios econômicos e políticos mas são vítimas de motins antiportugueses no distrito de Cuiabá depois da independência, em 1822. Mais tarde, a guerra com o Paraguai provoca destruições na região, as tropas dos dois beligerantes requisitam rebanhos e fazendas, forçando as populações a fugir. Depois da guerra, os primeiros habitantes e suas famílias reganham a região, reconstituem seus estoques introduzindo novas cabeças de gado ou recuperando bovinos que se tornaram selvagens (Wilcox, 1992). A criação é em seguida relançada pelas exportações de carne seca, até 1945 quando a atividade vai declinar com a chegada das téccnicas de refrigeração. Desde então, a vida dos criadores de gado é em função das variações do preço da carne. Ora, outros grupos podem também pretender fazer parte comunidades já não se identificam em absoluto com os índios integrante da comunidade tradicional do Pantanal, a autóctones e formam, portanto uma população diferente. toda a zona ao longo dos rios. As margens são feitas de A definição da “comunidade tradicional” utilizada no projeto podem ser detidos pelos fazendeiros, mesmo quando eles agrícolas. Lembremos que as fazendas são mundos começar pelas populações de pescadores instaladas em espaços públicos reconhecidos como tal pela lei e que não do PRP excluiu também milhares de trabalhadores se encontram em suas propriedades. A maior parte destas praticamente autônomos compostos de dois tipos de pequenas comunidades vive ao longo dos principais rios população: de um lado, os fazendeiros e suas famílias (os são às vezes qualificados de “pescadores profissionais”, suas famílias). Em geral, os peões o são há gerações (Paraguai, Taquari, Negro, etc.). Estes grupos tradicionais proprietários), e, de outro, os empregados (os peões e visto que sua subsistência está totalmente ligada à pesca. como os fazendeiros. Eles estão na origem da maior parte Muitos se deslocam de um lugar a outro em função das do folclore local, com suas tradições e mitos orais. estações. Longe das práticas industriais, sua pesca Enquanto os fazendeiros residem frequentemente nas volume de pesca anual é bem inferior ao da insdústria da nas terras, cuidando do gado. Eles constituem um grupo artesanal tem um só impacto limitado no meio ambiente. O cidades próximas do Pantanal, os peões vivem todo o ano “pesca esportiva”, que leva cada ano um número crescente bastante especial e essencial no seio da comunidade de turistas ao Pantanal. Os pescadores praticam também a pantaneira agricultura limitada na medida em que as terras que e normalmente, exploram não lhes pertencem. são, ser portanto, a principal eles que deveriam, encarnação desta comunidade. De fato são, sobretudo “a cultura e a ética” dos peões que foram enfatizadas pelos investidores Estas políticas públicas locais desinteressam-se pelas estrangeiros do PRP quando estes sublinhavam a “harmonia entre o Homem e a natureza” no Pantanal23. populações – que estão ausentes das narrações habituais sobre a história do Pantanal. Como algumas de suas Dada a importância dos peões na comunidade pantaneira indígena dos Paiaguas, reputados por seus remadores. Mas a estudamos, voltaremos a esta subcomunidade na última e sua total ausência no vasto dispositivo de PC que tradições mostram, elas eram originalmente ligadas à tribo composição racial destes grupos se diversificou ao longo do tempo: cada vez mais, mestiços e antigos trabalhadores agrícolas, que decidiram parar de trabalhar para os 23 Este comentário nos é inspirado por nossas entrevistas com responsáveis do projeto e a fazendeiros, fazem agora parte dele. Atualmente, estas documentação que eles forneceram. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 44 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico seção. Uma análise de seu capital social permitirá, então Para o Estado local, ainda é difícil tecnicamente, até explicar por que sua voz tem sido tão pouco ouvida no mesmo sensível politicamente, gerir e envolver os grupos âmbito do PRP. menos favorecidos do Pantanal – sobretudo em um dispositivo que teria podido lhes permitir reivindicar Vê-se, portanto, que o discurso sobre a “proteção do meio grandes recursos. Quanto aos peritos estrangeiros, o ambiente pela comunidade tradicional” foi construído fato de não levarem em conta subgrupos mais frágeis excluindo importantes subcomunidades. Esta produção lhes permitiu aparentemente mais facilmente aplicar e um processo de interpelação de potentes grupos de mesmo se os índios autóctones, os pescadores e os diferentes observadores locais sugerem na verdade que solicitados para refletir sobre a iniciativa do PRP que enviesada de “sentido comum” também foi originada por exportar seus conhecimentos e modelos. Desde então, interesse. Os dados recolhidos durante as entrevistas com peões vivem no Pantanal há gerações, eles não foram esta exclusão se adaptava também aos interesses das apesar de tudo foi promovida – no Brasil e no resto do autoridades locais implicadas no PRP. 4.3 mundo – como um caso exemplar. Conclusão Nós vimos que o discurso sobre a “comunidade Confrontados com esta realidade, os financiadores perfeitamente adaptado aos interesses estratégicos dos contraste com novos atores, cujas atividades são mais aliança original. Interessando-nos mais pela história tradicionais. Um meio-termo devia ser encontrado na tradicional” servindo de base ao projeto do PRP estava adotaram uma abordagem pragmática destacando o fazendeiros e das autoridades públicas compondo a nefastas para o meio ambiente que as dos criadores social e ambiental a longo prazo do Pantanal, medida em que a conservação estrita era impossível enfatizamos o caráter contingente deste discurso – assim na como a natureza de seus efeitos de poder produtivo e região particulares. estrutural. amplamente detida pelos interesses Examinando os efeitos de poder estrutural do discurso, Examinando os efeitos de poder produtivo do discurso, mostramos que os membros da aliança original só mostramos que a relação entre criação de gado e meio haviam dado pouca atenção aos outros membros ambiente não era certamente estritamente harmoniosa, ao “tradicionais” da comunidade pantaneira – em especial contrário do que se pensava no discurso sobre a “salvação aos pescadores e aos peões. No contexto do PRP, a criação não é uma “parceria favorável” coexistindo com o fazendeiros. Este exercício eficaz de “poder estrutural” pela tradição”. Como mostra Wilcox (1992, p. 255), a “comunidade tradicional” veio coincidir com a dos meio ambiente. A chegada de “milhares de herbívoros contribuiu sobrevivência tiveram realmente um impacto profundo no motivaram esta atitude são bastante evidentes: os fauna local, a introdução de novas doenças, a modificação não tinham vontade de partilhar as vantagens nem vorazes” e os fatores econômicos indispensáveis a sua para reforçar as hierarquias locais predominantes há muito tempo. Os interesses que meio ambiente, compreendendo a luta pelo espaço com a fazendeiros eram os primeiros a beneficiarem do PRP e progressiva da vegetação, a destruição dos habitats mesmo naturais, etc. A prática das queimadas e a instalação de o governo da futura estrutura de PC. Paralelamente, as autoridades locais não queriam se cercas mas também a introdução de essências exóticas preocupar com as subcomunidades mais pobres, difíceis perturbaram os ecosistemas locais. de alcançar e suscetíveis de ter reivindicações políticas. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 45 4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico Quadro1. A « salvação pela tradição » os principais mecanismos dicursivos. Dois sistemaschave de significação Definir os fazendeiros como a própria base da “comunidade tradicional” Rescrever a história da « criação de gado » fazer da mesma uma atividade respeitadora do meio ambiente Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos: - os fazendeiros de ascendência europeia ocupam Produção de sentido comum (como tornar o discurso “natural”) habitualmente um lugar preeminente nos curtos textos históricos consagrados ao Pantanal Interpelação de potentes grupos de interesse: Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos: - a opinião pública brasileira tem uma melhor imagem dos criadores de gado do Pantanal que as ONGs Interpelação de potentes grupos de interesse: - as autoridades locais sempre privilegiaram - para as autoridades locais, é tecnicamente claramente a criação mais que a conservação difícil e politicamente sensível relecionar -se com os subgrupos mais pobres do Pantanal - para os peritos estrangeiros, é mais fácil aplicar seus conhecimentos de « parques regionais » considerando menos subgrupos mais pobres. - se os criadores são definidos como « compatíveis com o meio ambiente », os peritos estrangeiros têm mais facilidade em promover seu modelo de « parque regional » que está baseado num trabalho com produtores Efeitos de poder produtivo: Efeitos políticos Efeito de poder estrutural: quase-invisibilidade no projeto do PRP dos grandes atores tradicionais do Pantanal – especialmente os pescadores, índios e trabalhadores agrícolas a) efeito pró tradição : bloqueamento dos atores econômicos « não tradicionais » e reforço da legitimidade dos atores econômicos « tradicionais » b) efeito antipolítico: - o « enverdecimento » dos criadores lhes permitiu obter fundos internacionais em nome do meio ambiente. Este resultado é particularmente surpreendente para os fundos concedidos pela UE Reprodução do discurso (como ocultar as alternativas no discurso) Opiniões alternativas ocultadas: os fazendeiros são somente um grupo dentre outros na comunidade; o PRP, enquanto dispositivo exemplar de PC, deveria ter Opinião alternativa ocultada: o impacto histórico dos criadores de gado no Pantanal foi claramente negativo integrado os peões e os pescadores no momento de sua concepção e na estrutura de governo A contingência do discurso pode ser demonstrada justapondo os fatos subanalisados (história a longo prazo e análise social) A contingência do discurso pode ser demonstrada por uma análise histórica e ambiental a longo prazo © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 46 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Nós examinamos aqui a primeira fase implementada do Defesa do Pantanal), que, por existir há muito tempo, teria controle social. Desta vez, a política de “bloqueamento” atores – em particular os peritos estrangeiros e as PRP e a maneira como a PC se tornou uma prática de podido em seguida contrabalancear a influência de outros atingiu os próprios fazendeiros, enfraquecendo sua associação principal pela defesa sistemática autoridades locais. A este respeito, a “fabricação de do pluralismo” precipitada e artificial introduziu uma nova famoso “projeto preparatório para a criação do PRP” sobretudo, as elites locais mas também, através delas, a “pluralismo” da parte dos parceiros estrangeiros. O forma de controle e bloqueamento social que tocou, (Apoio à Criação do PRP) é lançado em 1998 para “organizar e mobilizar a população local”. comunidade de fazendeiros. Nós estimamos que este Ele processo colocou as marcas de uma supressão compreende duas grandes partes: a criação rápida de institucional dos fazendeiros – que ia rapidamente toda uma série de novas organizações locais, que deve concretizar-se no seio do parque “participativo”. diversos projetos de desenvolvimento, que devem “atrair” Nós começaremos por examinar o efeito de poder « pluralizar » a sociedade civil local; e o lançamento de os fazendeiros para que se unam a estas novas produtivo do discurso sobre “pluralismo”. Este põe em associações. questão a influência e a legitimidade da associação de fazendeiros, a SODEPAN, criando em marcha forçada toda Como os peritos estrangeiros faziam questão de identificar uma série de organizações. Mostraremos em seguida as “melhores práticas de PC”, eles interessaram-se como este processo foi alimentado pelo recurso a um progressivamente pela (e implicaram-se diretamente) poder penoso e os benefícios esperados de “projetos “fixação da sociedade civil local”, sua “democratização” e atrativos” para os que se uniriam a uma destas novas “diversificação”. Este trabalho devia garantir a construção associações. Finalmente, examinaremos o efeito de de um parque participativo sob as bases sãs de uma PC bloqueio deste « pluralismo artificial », a maneira como ele inclusiva. Contudo, afirmamos que ele arruinou a realidade reduziu o estatuto e o peso da comunidade dos fazendeiros da PC, em especial sua intensidade (o grau de participação no seio do PRP e como estas novas estruturas ativa), desestabilizando a única associação de fazendeiros fracassaram para criar que funcionava corretamente, a SODEPAN (Sociedade de 5.1 na prática grupos de pressão eficazes representando os fazendeiros. Novas organizações põem em questão a associação de fazendeiros Como explica Charnoz (2009b), o « poder produtivo » forma de “poder produtivo” foi exercida pelos parceiros manifesta-se através de novos discursos que redefinem estrangeiros do PRP: estes elaboraram um discurso os valores e os conhecimentos considerados como potente sobre a necessidade de “pluralizar” a sociedade de novos atores ou categorias. Estimamos que uma da SODEPAN. adquiridos, o que leva frequentemente ao reforço social civil local, o que permitiu reduzir o estatuto e a influência © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 47 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Antes de empreender o “trabalho preparatório” sobre a adquiriu sua legitimidade e credibilidade desde esta associação de defesa dos fazendeiros do pantanal, a regulamentação internacional proibindo o comércio de SODEPAN desenvolveu suas atividades em Mato Grosso e parte das dificuldades de desenvolvimento dos habitantes sociedade civil, só existia na verdade, uma única primeira batalha, ajudada pela adoção de uma nova SODEPAN. Criada em 1985 em Campo Grande, a peles de jacaré. Em seguida, vem interessar-se pela maior em Mato Grosso do Sul, tornando-se o principal meio para do Panatal e, em particular, pelas necessidades dos origem a um problema de caça ilegal dos jacarés em terras campo de ação, que se assemelha praticamente a um os fazendeiros de defender causas comuns. Ela deve sua criadores de gado. O quadro 4 mostra a extensão de seu particulares, frequente em meados dos anos 80 e que programa político para a região, mesmo se quase não dê atenção aos pescadores e aos índios. levou a um recuo severo de sua população. A SODEPAN Quadro 4 – Um programa para o Pantanal: a visão da SODEPAN Acesso ao crédito : redução das formalidades administrativas e aumento de apoio financeiro aos criadores de gado através do FCO (Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste), um fundo público que é uma das primeiras fontes de financiamento para os fazendeiros. Saúde animal: Melhor apoio veterinário e melhor proteção dos produtores. Reorganização da IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal), a instituição pública encarregada destas questões. Melhores garantias através de mecanismos tais como o FEFA (Fundo Emergencial da Febre Aftosa), um fundo de urgência destinado a ajudar os produtores confrontados com episódios de febre aftosa. Energia: finalização do programa « luz para todos » no Pantanal. Meio ambiente: revitalização do rio Taquari, bloqueando os sedimentos provindo dos planaltos e criando represas para estabilizar o leito do rio. Procedimentos acelerados para conceder uma etiqueta verde às atividades agrícolas. Definição de períodos durante os quais o fogo controlado é autorizado. Pesquisa: desenvolver a pesquisa aplicada em institutos como a EMBRAPA e as universidades. Políticas sociais: Garantir uma educação de base profissional no Pantanal, obtendo ajudas públicas duráveis para as escolas pantaneiras, em parceria com os agricultores (remuneração dos professores, construção e equipamento de novas salas de aula e novos abrigos para os alunos). Criação de escolas públicas de agronomia (Escolas Rurais Estaduais) em lugares-chave, de maneira a otimizar a frequentação e a propor uma formação de nível de técnico agrícola. Programas de requalificação para os pescadores profissionais a fim de que possam tornar-se guias turísticos, artesãos ou assistentes para o meio ambiente. Telecomunicações: instalação de antenas nos lugares-chave para assegurar uma cobertura de telefonia móvel completa. Turismo: criação de uma ponte aérea entre Foz do Iguaçu e Bonito. Criação de uma companhia aérea regional equipada com pequenos aparelhos (aviões monomotores de onze lugares) para transportar os turistas na região. Criação de linhas de ônibus diretas entre diferentes pontos de interesse. Revestimento dos 77 km de estrada entre os três centros turísticos de Mato Grosso (Porã Tip, Pretty e Corumbá) Transportes: criação ou reabilitação das estradas, pontes e transporte fluviais. Fonte: SODEPAN (2009). © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 48 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Ao longo dos anos, a SODEPAN exerceu um lobby funcionava bem para nós. Estávamos bastante ligados a particularmente ativo junto ao Estado local para obter esta organização. melhores serviços públicos (infraestruturas de transporte ou saúde), mas com resultados modestos. Ela também - por que teríamos tido necessidade de quatro, cinco ou relançou a pesquisa sobre a produção de gado em diferentes universidades locais e promoveu seis associações para encontrar soluções entre nós? Era o realmente insensato. reconhecimento da “cultura pantaneira” através de iniciativas como o Dia do Homem Pantaneiro ou a - os fazendeiros podem se falar quando querem. Eles publicação de obras de referência sobre a hisitória local, não têm realmente necessidade de uma instituição oficial SODEPAN assegurou-se igualmente do apoio técnico e só tem sentido quando devem realmente se confrontar, frequentemente eecritos por membros de famílias locais. A para fazê-lo – aliás, eles não gostam muito da ideia. Isto financeiro de diferentes organizações brasileiras para todos juntos, com um problema ou uma autoridade. Era testar alternativas econômicas – como a produção de mel a ideia da SODEPAN. Por que nos dividir em vários ou o ecoturismo. Neste contexto, esta organização era o grupos? Isto só nos enfraqueceria. parceiro evidente, senão indispensável, do projeto do PRP e ela de fato foi associada à gênese: a organização tinha Como explicou um de nossos interlocutores, a ideia de franceses desde o início e contribuiu para organizar uma provinha, sobretudo, da equipe estrangeira, mesmo se esta representantes no momento das reuniões com peritos “aumentar o pluralismo” através de novas associações série de reuniões de informação sobre o PRP no Pantanal. tivesse o apoio de certos ministros locais que contavam aproveitar a situação para colocar em questão a influência Todavia, nossas diferentes entrevistas com fazendeiros e regional da SODEPAN. Mas, a preocupação dos técnicos funcionários revelaram que, muito cedo, os peritos franceses naõ só tinha inimigos na comunidade fazendeira. a iniciativa para si”. A representatividade social da chegada de novas associações. Algumas entrevistas com estrangeiros temeram que a SODEPAN “recuperasse toda Alguns habitantes viam, na verdade, com bons olhos a associação foi colocada em questão pelos parceiros pequenos fazendeiros nos permitiu reunir os seguintes franceses. É bastante interessante ver que no momento de comentários: uma conferência sobre a experiência do PRP organizada em 2004, os principais peritos estrangeiros não fizeram - Eu estava feliz em saber que a SODEPAN não estaria projeto: “a SODEPAN isso” a “SODEPAN aquilo” e não ter a nehuma alusão à SODEPAN e até afirmaram que antes do [...] não existia nenhuma instituição representando seus habitantes24. no mais sozinha. Alguns dentre nós estavam fartos de ouvir: impressão de ser representados pela organização. território - As pessoas queriam novas caras, mas não sabiam como fazer nem quem poderia fazê-lo. Os parceiros franceses, portanto, apoiaram energicamente a ideia de multiplicar as associações pantaneiras para Para alguns fazendeiros, portanto, a liderança da produção do Pantanal antes da criação do PRP. Esta demais de sua comunidade – unicamente exercida por um representar as diferentes sub-regiões e outros grupos de SODEPAN só correspondia a uma representação estreita proposta, que não era negociável para os franceses, punhado de famílias importantes – “sempre as mesmas suscitou reações mitigadas entre os fazendeiros, vários de famílias”, como nos disse um dentre eles. Alguns - muita gente, como eu, não via interesse em criar outras 24 Delorme (2004, pg. 7) : « Essa primeira fase foi fundamental […] porque num território [...] nossos interlocutores fizeram comentários negativos: associações. Tínhamos a SODEPAN e sabíamos que ela não existia nenhuma instituição que representasse as pessoas”. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 49 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » pensavam também que a organização se tinha tornado sociedade civil local do Panatanl. Segundo a metodologia segmentos mais ricos da comunidade. Um fazendeiro particular a FPNRF – a primeira etapa para a criação de um demasiado formal e institucional, privilegiando os implementada pelos participantes franceses – e em modesto declarou assim, no momento da entrevista: “parque participativo” é a da “preparação da sociedade civil”, o que significava no caso do Pantanal, a reestruturação integral de sua paisagem associativa. [A SODEPAN] tornou-se uma sociedade fechada, Vimos, esta era dominada pela SODEPAN, considerada interessando-se somente pelos “grandes fazendeiros”. Os por alguns habitantes e pela equipe francesa como pequenos não contavam muito. [...] Assim, você deve pagar uma cotização anual para fazer parte, que não pára insuficientemente representativa e pluralista. estas tarifas eram fixadas de propósito para nos excluir. Este aspecto crucial do projeto preliminar foi oficialmente Estes ressentimentos vieram alimentar uma suspeição local”. Ele destacava o discurso sobre o “pluralismo”, uma de aumentar. Nós [os pequenos] começamos a pensar que batizado “trabalho sobre a organização da população crescente dos peritos estrangeiros que receavam que a melhor organização das pessoas”, o aumento da SODEPAN “quisesse recuperar o PRP e controlá-lo representatividade das associações” e a “mobilização da totalmente» 25. Eles consideravam a preeminência desta população”. Através do trabalho de terreno da equipe representativa” e “demasiado concentrada” como se lembra de reuniões e discussões foram organizadas nas diferentes organização como “nociva”, “antidemocrática”, “não técnica conduzida pelo principal perito francês, uma série um dos observadores da época. De outro modo e utilizando sub-regiões do Pantanal, para difundir estas idéias. Este consideravam que a SODEPAN era uma forma de CP associações regionais: o vocabulário definido por Charnoz (2009b), os franceses processo levou à criação, em 1999-2000, de três novas “estreita e concentrada nas elites”, só se interessando pelos l’UNIPAN fazendeiros mais ricos e excluindo numerosos subgrupos (União dos Pantaneiros da Nhecolândia); l’APANMERA pertencendo à comunidade do Pantanal. (Associação dos Pantaneiros da Margem Esquerda do Rio Aquidauana); A fase inicial da implementação do PRP – a saber, o l’AVRN criação do parque com previsão de quatro anos. Ela tinha Duas outras associações regionais nasceram num “projeto preliminar” – foi lançada em 1998 para preparar a (Associação do Vale do Rio Negro). segundo tempo: como primeira responsabilidade delimitar um território (uma área batizada “área de estudo” nos documentos do projeto) para no seio do qual os fazendeiros seriam convidados a se para unirem ao parque voluntariamente. Em seguida, tratava-se de redigir uma “Carta do parque” enunciando uma série de a região do Rio Verde; a região de Taboco. princípios de gestão e objetivos comuns que os membros Estas cinco novas entidades tinham federado cerca de 250 lugar, era necessário decidir o estatuto jurídico, as fontes sucesso (PRP, 2002, pg. 11). O processo também conduziu fazendeiros em 2002 – um número considerado como um do parque se comprometeriam em respeitar. Em terceiro à criação de três associações setoriais: de financiamento, o pessoal e competências da estrutura de gestão. Finalmente, era necessário também pressionar Uma as autoridades federais e vender o conceito de “parque contrato coletivo, a fim de melhor preparar consagrada ao desenvolvimento de instalações e ciclos educativos adaptados ao Pantanal (APPEP, regional” evidenciando o aspecto de “co-gestão” e o o Associação de Parceiros, Pais e Professores da Escola reconhecimento de uma nova categoria jurídica. Mas a Pantaneira); característica mais impressionante do projeto vem, 25 Este parágrafo contém passagens de duas entrevistas – com um fazendeiro e com um membro de uma ONG local. sobretudo, da transformação, julgada indispensável, da © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 50 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Uma outra visando o desenvolvimento do ecoturismo A (APPAN, Associação de Pousadas Pantaneiras); 5.2 última centrada na criação de gado (GTE, Grupo de Troca de Experiências). Alimentar o processo com “projetos atrativos” O “poder de pressão” toma forma não conflituosa logo que “produtos da terra” – a saber, produtos rurais com grande um tipo de comportamento esperado, evitando recorrer à em voga nos parques regionais franceses para federar os os recursos materiais servem para produzir incitações para identidade local. Esta estratégia de produção está bastante obrigação pura e simples. Mas certas incitações podem ser produtores locais, dar certificados de qualidade de seus obrigação – é o caso em especial, quando o fato de não de qualidade comuns (e mais obrigatórias). concorrentes. Estimamos que tal mecanismo serviu de O VITPAN visava a produção de carne a partir de animais âmbito do projeto preliminar do PRP. Desde que este espessura de gordura bem determinada. Estes animais tão imperiosas que se assemelham praticamente a uma produtos e vendê-los sob um certificado único com normas aproveitar disso se torna um entrave em relação aos base para a transformação da sociedade civil local no de 10 meses a um ano, alcançando 180 quilos e tendo uma começou, uma série de projetos de desenvolvimento foi deviam ser criados em pastos naturais, sem antibióticos, para as novas associações. Dado os benefícios que os europeias de agricultura biológica. A comercialização e a lançada que se mostrou crucial para atrair “voluntários” com um mínimo de vacinas e segundo as normas criadores podiam ter, eles suscitaram entusiasmo e distribuição deviam ser revistas de cima a baixo – os funcionaram como “iscas”, como o exprimiu um antigo certificados de qualidade eram dados pelo MAPA, aos diferentes projetos com a condição de que aderissem empresa francesa26. Esta situação não convinha a todos presidente da SODEPAN. As pessoas podiam associar-se Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e uma a uma das novas associações; o fato de pertencer à os parceiros, alguns deles estimavam que os franceses estas “iscas” mobilizaram mais de 250 fazendas a favor da empresa. De qualquer modo, cada um esperava que o hectares (FPNRF, 2002, p. 17). De fato, como vários de produtividade de toda a região. Para se associar ao impunham sem nenhuma obrigação técnica sua própria SODEPAN, em especial, não era suficiente. Com o tempo, VITPAN fosse estimular a utilização econômica e a iniciativa do PRP, representando cerca de dois milhões de projeto, os fazendeiros deviam aderir a uma das novas nossos interlocutores lembraram, o famoso “trabalho de associações regionais e comprometerem-se em respeitar mobilização da população local” resumiu-se a um exercício de propaganda para a criação do parque e suas diferentes as diretivas técnicas. O VITPAN seduziu sobretudo os representava para os fazendeiros a adesão aos diferentes preocupados em aumentar rapidamente sua produtividade. pequenos fazendeiros (menos de 10 000 hectares) associações, destacando o interesse imediato que Com a promessa de valor adicionado e melhoramento da projetos piloto. comercialização das carnes produzidas localmente, este O projeto VITPAN projeto alimentou nos “pequenos” a esperança de serem “salvos”. No final de 2002, o vitelo pantaneiro alcançava um O VITPAN (Vitelo pantaneiro) mostrou-se ser o projeto preço de venda de 700 BRL por cabeça, ou seja, mais de mais sedutor para os fazendeiros. Foi também o mais duas vezes o preço de um animal normal. Cinco por cento do preço de venda era transferido ao novo IPP (o importante. A ideia principal consistia em desenvolver uma mecanismo institucional administrando o parque regional) nova linha de produtos cárneos (o vitelo pantaneiro) dotada para seus gastos de funcionamento. de uma identidade local visível e comercializável a um preço superior às tarifas médias. Ainda neste sentido, o 26 Ecocert/Brasil. conceito era importado da França, inspirado pelos © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 51 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Se para os locais, o VITPAN era um projeto guia do PRP, criando especialmente um site Internet e participando de notamos que não era diretamente financiado pelos fundos estrangeiros, mas unicamente pelo Ministério diferentes feiras profissionais. Mas o ecoturismo não é da realmente desenvolvido no Pantanal nos anos seguintes 100 000 EUR suplementares). Quanto ao apoio cientifico, sempre pesadas (entre outros exemplos, o custo dos Agricultura (80 000 EUR para a primeira fase, em seguida era assegurado pelas universidades locais e após sua criação, por causa das obrigações logísticas transportes) e fortes riscos do turismo americano29. Várias a EMBRAPA27. Vê-se neste sentido que as prioridades dos pousadas fecharam desde aquela época e o número de financiadores em 2008, no momento em que nós efetuamos este trabalho fazendeiros não eram exatamente as mesmas que a dos estrangeiros. Enquanto os aderentes da APPAN tinha diminuído de mais da metada primeiros estavam, sobretudo preocupados com a viabilidade de terreno. econômica da produção de gado, os segundos procuravam O programa procurava também diversificar a produção de conduzi-los em direção a novas preocupações e carne além do gado, a fim de “mercantilizar” a fauna e ter atividades. Outros projetos, contudo, não diretamente ligados à produção de gado, nasceram com o apoio de lucro. Tratava-se quer capturar espécies selvagens, quer os habitantes. De qualquer modo, os peritos estrangeiros brasileiros, o projeto piloto interessou-se pela produção de criá-las. Com a ajuda de pesquisadores franceses e fundos estrangeiros, mas interessaram claramente menos conseguiram fazer de maneira que a adesão a uma porco monteiro, mobilizando rapidamente 21 fazendas. Ele VITPAN. capivara, o cateto, a ema e o jacaré. Novos circuitos voltou-se também para outras espécies selvagens, como a associação fosse uma condição para beneficiar do projeto comerciais foram identificados para vender estes produtos. Interesse e expectativas menores dos nativos: os Mesmo se não podemos falar de fracasso, este projeto Uma série de outras iniciativas foi empenhada no âmbito espécies30. A criação em 2004-2005 de uma instalação biodiversidade da região do Rio Negro do Pantanal”. Este de diferentes espécies foi uma etapa decisiva – a estação outros projetos teve somente um sucesso limitado. Em 2008, a produção era ainda bastante modesta e só dizia respeito a algumas de um “projeto de ações piloto para a valorização da último grito em matéria de tratamento de carnes provindo programa beneficiava de um financiamento da cooperação experimental Campo Grande Meat Technology francesa (58%) e, em menor medida, da UE (14%) e de Experimental Station, sob a responsabiliodade do CIRAD e nossos interlocutores, o programa suscitou o interesse de mesmo tempo comerciais e de pesquisa, mas ela levou ao outros parceiros locais28 (28%). Como o explicou um de financiada pelo FFEM. Até hoje ela serve para fins ao “alguns fazendeiros mais originais voltados para o futuro desenvolvimento sólido de uma insdústria da carne de A primeira dimensão do programa dizia respeito à A terceira parte deste programa visava reduzir os conflitos para os pequenos fazendeiros. Isto conduziu à criação, em único projeto ligado à proteção do meio ambiente. As [...], que não tinham medo de se lançar no desconhecido”. espécies selvagens. promoção do ecoturismo, apresentada como alternativa entre onças pintadas, onças pardas e criadores de gado. O fevereiro de 2001, de uma associação setorial, a APPAN, que reunia no início 16 fazendas, cuja maior parte, já 27 A EMBRAPA (empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola) é um órgão federal cuja missão é realizar pesquisas aplicadas e transferância de tecnologia em apoio ao desenvolvimento durável da agroindústria brasileira. 28 Mais precisamente, 44% do programa foram financiados pelo FFEM, 14% pelo CIRAD funcionava como pousadas. Esta nova organização tem como objetivo federar as pousadas, propor ofertas (rede francesa pública de pesquisa), 14% pela EU e 28% pela EMBRAPA e o estado local do Mato Grosso do Sul. 29 Sobretudo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 – um fenômeno igualmente turísticas coordenadas, vender mais amplamente a destinação do Pantanal, assegurar a formação de guias e melhor negociar com os viajantes nacionais observado na Soufrière. 30 Uma das dificuldades encontradas vem do fato que o « consumo » de espécies selvagens e internacionais. Ela também apostou na comunicação, no Brasil está amplamente assimilada à caça ilegal e tabu. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 52 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » perdas inflingidas por esses animais selvagens representa de três a onze, recebendo praticamente 500 alunos. Sua cerca de 0,2% do total de cabeças por ano, ou seja, ação ganhou vários prêmios brasileiros. Mas a derrocada centenas de cabeças por fazendeiro, o que torna do PRP depois de 2005 perturbou gravemente este numerosos fazendeiros bastante sensíveis a esta questão movimento, que o Estado local decidiu não mais manter. A foram apresentadas aos criadores para reduzir este algumas funcionavam ainda no momento em que daí uma caça ilegal da onça pintada. Algumas técnicas problema. Profissionais zimbabuanos maior parte das escolas pantaneiras fechou, portanto, e só também efetuamos este trabalho de terreno. asseguraram uma formação para os guias turísticos, a fim de ensinar-lhes a praticar uma “caça racional”. Este projeto Globalmente, a mobilização dos fazendeiros a favor do se mostrou ao mesmo tempo útil e frutuoso. A WCS ainda parque regional através de projetos “atrativos” mostrou-se trabalha sobre estas questões. eficaz, mas se chocou com alguns obstáculos. Os fazendeiros estavam bem mais interessados pelos Enfim, o “projeto preliminar” do PRP comprometeu-se aspectos produtivos do que pelos aspectos ambientais e com ações educativas, apoiando-se na rede de escolas sociais, como o lembra o primeiro presidente do PRP: pantaneiras que tinha necessidade de ser reforçada. Projeto mais “social” de todos os projetos “atrativos”, ele O projeto VITPAN era para os fazendeiros o projeto guia motivados. Desde os meados dos anos 90, alguns questões, como a conservação, o ecoturismo ou a responder às necessidades das famlilias de seus reuniões. Para uma reunião sobre o VITPAN, você chega a suscitou o interesse de um punhado de fazendeiros já […] mas no momento em que nós quisemos abordar outras fazendeiros têm criado escolas no Pantanal para melhor educação, tivemos muitas dificuldades para organizar trabalhadores e evitar um êxodo para a cidade no mobilizar 40 a 50 pessoas enquanto para uma reunião momento em que as crianças atingem a idade de serem sobre a educação, a assitência reduzia-se a seis ou oito escolarizadas. Os fazenderos encarregam-se de todas as pessoas. O sucesso ainda era menor para o ecoturismo. cargas de funcionamento, o Estado assumindo os salários dos professores nas mesmas base que em outro Em 1998 e com a desvalorização progressiva da moeda brasileira31, os preços da carne viram uma nova melhoria lugar. momentânea. Esta situação incitou fortemente os criadores a privilegiar a produção de carne, o que explica em parte a A influência do “projeto preliminar” do PRP para a criação importância constante dada pelo projeto do PRP a este de novas associações teve importância na criação da aspecto e a falta de entusiasmo dos participantes para APPEP, em 1998. Até 2003 e com o apoio financeiro do projetos mais “aventurosos”. projeto do PRP, o número de escolas pantaneiras passou 5.3 O impacto da deslegitimação: uma PC em perda de intensidade e de inclusão Em alguns anos, oito novas organizações saíram do nada, dos fazendeiros a unirem-se a associações oficiais e a reunindo centenas de fazendeiros – um resultado que a comprometerem-se com um empreendimento coletivo. O A situação parecia de fato excepcional em relação à falta solidariedade entre eles. Tradicionalmente, os fazendeiros equipe francesa reivindicava na época como um “sucesso”. que não quer dizer, porém, que não praticam a tradicional de espírito associativo na comunidade ajudam-se, de maneira pontual, como o fazem os bons fazendeira. A criação da SODEPAN, nos anos 80, já tinha sido bastante notável neste sentido. Durante nosso 31 A moeda brasileira passou de 1,2 BRL para um dólar em dezembro de 1998 a uma taxa de 3,6/1 em dezembro de 2002. Durante este período, o preço do boi brasileiro dobrou na moeda local enquanto seu preço em dólar desabava. trabalho de terreno, numerosas pessoas interrogadas sublinharam a reticência típica e profundamente enraizada © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 53 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » vizinhos – uma atitude que era vital no passado, dado o autoridades locais – que até mesmo praticamente isolamento geográfico de numerosas fazendas32. Por esta abandonaram o projeto depois de 2005. Quanto a APPAN, propensão e vontade de sentir-se “donos de seu reino”. sem nenhuma ajuda do Estado nem mesmo um início de razão, os fazendeiros do Pantanal têm também a esta se esforçou para promover o ecoturismo no Pantanal Eles querem preservar esta autonomia. Eles resmungam, coordenação entre seus membros. os quais devem tomar decisões. Em todas as áreas, a No final, esse “pluralismo artificial” fez nascer associações levar a bom termo juntos um projeto de importância. Como e conchas vazias”, para retomar a expressão de um portanto, quando têm um patrão, até mesmo parceiros com escolha é a deles. Esta comunidade não tem o hábito de criadas demasiado rápido que pareciam muito com “anões nos disse um dos fazendeiros: membro de uma ONG. Não somente elas se mostraram ineficazes em termos de mobilzação e de organização das populações locais em torno de diferentes causas, mas, Aderir a uma cooperativa, uma associação ou a um além disso, elas se mostraram prejudiciais para a sindicato significa que você perde uma parte de sua comunidade fazendeira em seu conjunto, destruindo o liberdade. estatuto e a legitimidade da única associação de Para a mentalidade local, o aparecimento de oito novas fazendeiros que funcionava bem, a saber a SODEPAN. Ao associações era praticamente inconcebível. Esta “mania contrário destas novas associações, a SODEPAN, não era interlocutores, parecia até suspeita para os que conhecem uma organização comunitária mesmo se, na prática, associativa”, como o qualificou um de “uma experiência de laboratório”33 e se aparentava mais a nossos estivesse sob o controle das grandes famílias locais. bem a aversão dos locais a todo compromisso coletivo. Contudo, vimos, centenas de “voluntários” foram levados a unir-se a estas novas associações visto que era a única O desejo de evitar que o projeto do PRP não fosse oferecia Mas relativamente pouco representativa adaptava-se bem a vontade de participar regularmente das reuniões ou definir pelos técnicos estrangeiros. Todavia, ela fez a única recuperado por uma única associação comunitária maneira para eles de participar do projeto VITPAN, o qual a perspectiva de ganhos rápidos. priori, à lógica das “melhores práticas PC” acompanhadas rapidamente ficou claro que estes “voluntários” não tinham organização bem implantada perder sua legitimidade e representar juntos as espectativas de sua comunidade. enquanto “voz dos fazendeiros”, assim com sua aptidão Os anos seguintes iam revelar o lastimável funcionamento para considerar o peso da comunidade fazendeira durante vez menos pessoas para suas raras reuniões – ao paralelamente organizações credíveis para efetivamente as negociações com o Estado, por exemplo, sem criar destas novas “associações regionais”, que atraiam cada representar os interesses desta comunidade. Aqui, o modo contrário da SODEPAN. Sua função de representação de bloqueamento é o da deslegitimação. perdeu-se, assim como sua aptidão a, por exemplo, coordenar os comportamentos dos fazendeiros, Com essas « associações representativas » instaladas no compreendendo nisto a sobrevivência do projeto VITPAN. Nenhuma dentre elas ganhou suficientemente influência centro do sistema de governo do PRP, a PC era na prática Estado. Como sugeriram várias pessoas interrogadas, participação para ter um poder de negociação no seio da comunidade nossos interlocutores, que o processo abriu a via para uma as duas associações culturais, apesar de sua extrema 32 A vida moderna na cidade (onde reside a maior parte dos fazendeiros) assim como as estradas e os automóveis mudaram em parte a situação. 33 Entrevista com um fazendeiro. de fraca intensidade34 para os fazendeiros, sua em qualquer área, especialmente para obter fundos do sendo mais formal ou, no máximo, consultativa. Nós estamos de acordo, como para vários de cada associação era “demasiado pequena e inexperiente” fazendeira ou fora dela. Esta observação vale também para especificidade. Assim, a APPEP teve de administrar seu 34 Segundo a definição dada na seção 4.2.3. programa educativo sem obter um apoio suficiente das © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 54 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » recuperação do projeto PRP por outros atores influentes – fazendeiros o centro da “comunidade tradicional”. Esta um fenômeno que devia manifestar-se ulteriormente, como situação se concretizou enquanto que os criadores do sentimento que sua marginalização era um “complô”, em matéria de PC. Comentando este trabalho, o principal veremos na seção seguinte. Alguns fazendeiros têm até o projeto afirmavam terem tido recurso às melhores práticas previsto desde o início. Como o diz um dentre eles: perito estrangeiro do PRP indicou que sua equipe tinha começado por recensear todas as pessoas vivendo e trabalhando na região, de maneira a garantir a integração Os políticos queriam enfraquecer a SODEPAN para tomar tão ampla como possível dos atores sociais no dispositivo. o controle do parque e fazer disso um instrumento a sua disposição. Para garantir a participação, é necessario saber quem Outro observador vem fortalecer esta tese do “complô” da vive no local e o que fazem. De fato, desde a primeira parte dos técnicos estrangeiros: fase do projeto, nós demos um diagnóstico institucional para saber quem vivia na região e quais eram suas atividades35. Os estrangeiros e o Estado destruíram nossa comunidade com uma demagogie contínua [...] Eles queriam nos Por essa razão, as novas organizações não associaram marginalizar de uma maneira ou de outra a fim de terem as alguns dos grandes grupos vivendo e trabalhando na área mãos livres. prevista para o parque. Os trabalhadores agrícolas e os pescadores, em especial, nunca foram mobilizados, até Não somente o processo de “pluralização” ocasionou uma mesmo contatados para definir uma visão comum. O número PC de fraca intensidade no parque participativo – visto que limitado de subgrupos comunitários implicados no “processo ele enfraqueceu desde o início a voz dos fazendeiros – de pluralização” transpôs o grau estreito de inclusão da PC mas, além disso endossou seu medíocre grau de inclusão do discurso “tradicionalista” em prática institucional. já presente no discurso sobre as “tradições” que faziam dos 5.4 Conclusão Nós vimos que a perícia estrangeira tinha pesado no suficientes quatro anos para destruir a influência da “projeto preliminar” de maneira fundamental e que não era SODEPAN sem por essa razão conseguir impor as novas necessariamente conforme à exigência das populações associações fantasmas. Entretanto, este “pluralismo locais: o destaque foi sobretudo a obrigação de começar artificial” abraçou a ideia de uma comunidade local por “fixar a sociedade civil local”, de pluralizá-la em lugar exclusivamente centrada nos fazendeiros, deixando de de construir o PRP em instituições comunitárias existentes. lado os outros grupos sociais presentes no Pantanal. Tudo Esta atitude era provavelmente louvável do ponto de vista isso se voltou contra o princípio próprio de PC que se do discurso geral sobre a PC, mas, assim como o “inferno tornou, como sempre, um instrumento propício a um mostrou prejudicial para os próprios fazendeiros. Ele inclusivo. está cheio de boas intenções”, este “projeto preliminar” se controle e um bloqueio sociais e não um modo de governo colocou em questão a legitimidade, e, por conseguinte a influência da única associação de fazendeiros digna deste nome, a SODEPAN, que teria podido em seguida neutralizar alguns atores. A curto prazo, o “projeto preparatório” reduziu sobretudo a liderança e a capacidade 35 Delorme (2004, pg. 6): « para conseguir a participação é necessário saber quais são as pessoas que estão vivendo nesse lugar e o que elas estão fazendo. Foi feito, no primeiro momemnto, na primeira fase do prjeto, um diagnóstico institucional para saber quem eram as pessoas que viviam lá e o que elas estavam fazendo”. dos fazendeiros de resistir às forças não comunitárias para a gestão do parque que ia em breve nascer. Foram © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 55 5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar » Como nós veremos, a SODEPAN conseguiu preservar fazendeiros de perderem rapidamente o controle de “seu certa influência nos primeiros momentos de funcionamento parque”. o primeiro presidente do parque. Mas isso não impede os seguinte. do parque, visto que seu presidente se tornou naturalmente O processo de recuperação política e desapossamento que se seguiu é estudado na seção © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 56 6. O poder institucional em ação Nós examinaremos a evolução do parque natural regional de fato marcada pela presença contínua de peritos em sua instituição central, o IPP. Esta instituição é “projeto preliminar” e depois da criação oficial do PRP. Estes do Pantanal a fim de comparar a teoria e a prática do poder estrangeiros que jamais desapareceram, mesmo no final do considerada como uma “formação de poder” (para uma técnicos ficaram lá, ultrapassando amplamente seu papel de definição ver Charnoz [2009b]) que reúne diferentes atores “animadores” dotados de um forte poder institucional do fato locais, nacionais e internacionais visando partilhar uma de suas relações estreitas com os investidores . série de responsabilidades. Assim, nós nos interessaremos pelo “poder institucional” e pela capacidade, viável, destes Em terceiro lugar, identificaremos um processos paralelo diferentes atores de explorar esta instituição. de « recuperação política » ativa cuja origem fazemos remontar a 1999, pouco depois do lançamento do “projeto Nós veremos primeiro que a constituição jurídica do parque preliminar”. Através de diferentes canais formais e instaurava um sistema de co-gestão na qual as decisões informais de poder publico, um punhado de políticos locais deviam ser tomadas ao mesmo tempo pelos fazendeiros e começou a exercer uma influência direta crescente na das forças era claramente favorável aos fazendeiros locais, impuseram – a nomeação de várias pessoas ao mesmo diferentes níveis do poder brasileiro. No papel, o equilíbrio estrutura da IPP. Eles, “sugeriram” especialmente – e visto que o IPP devia “deixá-los dirigir” e garantir um real tempo nas instâncias dirigentes do IPP e na equipe técnica. de PC. A este respeito, o IPP era a incarnação do discurso relação aos membros do parque. Além disso, eles tradição » e dava prioridade às necessidades da “recuperação política” do IPP ocasionou uma série de erros grau de inclusão, de alcance e de intensidade em matéria Esses novos responsáveis eram pouco devedores em fundador da aliança original, que pregava a « salvação pela defendiam uma ordem do dia bastante obscura. Esta “comunidade local” (seção 7.4). e irregularidades de gestão que acabaram por provocar a falência do parque. Em seguida, mostraremos como as práticas institucionais levaram a destituir os fazendeiros de sua autoridade e a Finalmente, mostraremos que esta derrocada foi acelerada estrangeiros ocupavam um lugar central. Para nós, trata-se presidente para o parque – um artista pantaneiro conhecido que ele é menos o resultado de uma vontade deliberada de explorar a notoriedade para ganhar novamente o controle que da inércia da gestão regularmente combinada com a controle político, levando à supressão total da comunidade fazer emergir uma “formação de poder” na qual os atores e não retardada pela eleição, em abril de 2003, de um novo de um processo “passivo” e não “ativo”, porque estimamos em todo o país e de quem os fazendeiros esperavam desapossar as populações locais de suas prerrogativas do da situação. Na verdade, esta eleição abriu as veias do influência dos atores estrangeiros. A governância da IPP foi local. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 57 6. O poder institucional em ação 6.1 Uma PC altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um « dispositivo de gestão compartilhada » Em 2 de agosto de 2002, o Estado de Mato Grosso do sociedade civil. O decreto estipulava explicitamente que: Sul criava em seu território uma nova categoria jurídica para a proteção do meio ambiente, a AEPA (Área A área especial de proteção do meio ambiente [deve ser] assinado pelo governador36 consagra imediatamente a participativa. Especial de Proteção Ambiental). O mesmo decreto inteiramente existência desta categoria criando o “parque natural regional do Pantanal”. Em relação ao quadro jurídico gerida de maneira democrática e O PRP mostrou-se, portanto, como uma “inciativa conjunta” brasileiro – o sistema SNUC – a AEPA é revolucionária reunindo o Estado e as partes diretamente interessadas de vários pontos de vista. através de um dispositivo de co-gestão (gestão compartilhada). Cinco municípios foram integrados Primeiramente, ao contrário da maior parte das categorias igualmente: Aquidauna, Corguinho, Miranda, Rio Negro e SNUC, a AEPA não baseia sua proteção do meio ambiente Rio Verde de Mato Grosso. sua promoção. Ela não acarreta, portanto, a retirada de Enfim, Ela procura mais reforçar sua presença e instaurar um tipo livremente aderir ou não. Este aspecto é particularmente em uma limitação das atividades humanas, mas mais em direitos de propriedade e de pagamento de indenização. a AEPA é definida como um dispositivo exclusivamente voluntário ao qual os fazendeiros podem de desenvolvimento mais sustentável. Como o exprime inovador na paisagem jurídica brasileira, tomando para si o oficialmente o decreto fundador, o objetivo do PRP consiste discurso sobre a PC. Por conseguinte, o território do PRP em: não seria necessariamente contínuo visto que ele representava o total das terras dos fazendeiros que teriam escolhido aderir. […] manter a população pantaneira que exerce uma atividade de produção no Pantanal ao mesmo tempo preservando seu equilíbrio econômico, social e ecológico; Alguns estados da federação brasileira já tinham defendido humano e natural da comunidade. ambiente, diferente do quadro padrão do SNUC. O Estado novas categorias jurídicas para a conservação do meio […] basear seu desenvolvimento econômico no patrimônio de Rondônia também criou duas outras classes, a das A AEPA tinha como objetivo específico de: “florestas públicas destinadas à extração” e a das “florestas públicas destinadas à proteção sustentável” autorizando novas práticas produtivas nas áreas protegidas. Mas […] demonstrar a viabilidade da criação extensiva de gado. nenhum Estado foi mais longe que o de Mato Grosso do Tudo isso provava o apego à nova construção do Sul para tentar confiar o controle aos produtores locais com discurso sobre « a salvação pela tradição », analisada a adaptação do conceito francês de “parque natural anteriormente, e cuja existência tinha como objetivo regional”. Mesmo se se fala de “área protegida” para o quo. fazendeiros – afora a verificação do respeito às leis reforçar a comunidade fazendeira e preservar o statu PRP, não se tratava de interferir na gestão ambiental dos habituais. Além disso, o PRP queria mais implicar os atores A segunda característica importante desta nova categoria vem da natureza participativa. A gestão da AEPA devia ser feita baseada na partilha implicando três níveis de governo do Brasil: o Governo Federal, o Estado local 36 Decreto n° 10.906, Estado do Mato Grosso do Sul. (compreendendo municípios) e as organizações locais da © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 58 6. O poder institucional em ação locais do que os parques naturais franceses na medida em recentemente criadas; um representante da SODEPAN; iniciativa enquanto na França, ela cabe às municipalidades parque; um representante de cada um dos municípios que os fazendeiros eram os principais parceiros desta todos os fazendeiros diretamente interessados pelo implicados39; um representante do governo do Mato rurais. Grosso do Sul; um representante do governador e um Nesta base, um “território de estudo” foi definido, e representante do “sindicato regional dos trabalhadores correspondia à superfície máxima do parque, que cobria agrícolas”. A assembleia geral incarnava, portanto, o quatro sub-regiões do Pantanal. Estas escolhas foram espírito de co-gestão do PRP. Mesmo os trabalhadores realizadas, a priori, pela equipe técnica a fim de conceder agrícolas, apenas evocados no processo até então, deviam ao parque uma “coerência e uma diversidade ecológicas” ser representados. Mas a composição da assembleia assim como o explica os documentos do projeto. Este enfatizava fortemente os fazendeiros, representados ao plano previa uma possível extensão do parque de 5 mesmo tempo a título coletivo de maneira individual. milhões de hectares para uma população potencial de O segundo mecanismo de governância do IPP era 14 000 pessoas – o que teria sem dúvida feito disto a área protegida mais vasta do mundo. O essencial desse espaço garantido pelo Conselho de Administração, bem mais 3000 a 50 000 hectares) praticando sobretudo a criação Conselho devia supervisionar e aprovar o orçamento, a próximo da gestão do parque que a Assembleia. O (98%) era constituído de propriedades particulares (de estratégia e o plano de trabalho do PRP, mas também, extensiva de gado. Todos os fazendeiros considerados a priori pelo projeto não se juntou: só 250 o fez, para uma certificar-se de sua boa execução pelos altos responsáveis zona úmida do Pantanal. Para os primeiros anos de “associações fundadoras” de proprietários (incluindo a satisfatório. representantes do Estado (FPNRF, 2002, p. 17) e um Em 15 de fevereiro de 2001, ou seja, um ano antes da A este nível, os trabalhadores agrícolas não eram mais do IPP. Um representante de cada uma das nove superfície total de 2 milhões de hectares – ou seja, 15% da SODEPAN) tomava parte do Conselho, assim como dois funcionamento, este resultado foi julgado bastante representante de cada um dos municípios considerados40. constituição oficial do PRP, o órgão encarregado de sua representados. Pantanal (IPP). O IPP vai em seguida ser reconhecido37 O IPP dotou-se em seguida de um presidente, eleito pela público” (ou OSCI – Organização da Sociedade Civil de implicava, todavia pesadas obrigações legais. Sua gestão é criado – trata-se do Instituto do Parque do Assembleia Geral41. Este cargo não remunerado pelo parlamento local como uma “ONG de interesse Interesse Público) o que o assemelha a uma entidade influência no funcionamento do IPP era ligada ao estilo de pública/privada comparada a SMMA da Soufrière. Como a gestão do titular e de sua capacidade/incapacidade para SMMA igualmente, o IPP baseia sua estrutura e sua delegar. legitimidade em um trabalho prévio de “mobilização das populações locais”. A governância do IPP era assegurada por vários órgãos. Primeiro foi colocado sob a autoridade da Assembleia Geral do parque, encarregada de aprovar a Carta do 37 Em novembro de 2002 um plano de desenvolvimento plurianual e de verificar a dos municípios 40 Aquidauana, Miranda, Corumbá, Rio Verde e Rio Negro 41 Durante os primeiros meses, o IPP tinha um “conselho de direção”, diretoria executiva que 38 Como o vimos, a Carta nunca foi, com efeito, concluída Parque no momento da primeira sessão anual38, de validar 39. Mais precisamente, um representante do Coselho de Desenvolvimento Rural de cada um coerência das ações e despesas. A assembleia devia devia reunir-se uma vez por mês. Ora, esse ritmo levou a atrasos no trabalho da equipe técnica. Em dezembro de 2002, a Assembleia confirmou a criação da função de “presidente” a caráter permanente. reunir-se três vezes por ano e era composta como se segue: um representante de cada uma das associações © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 59 6. O poder institucional em ação Enfim, o IPP era composto de uma Equipe Técnica, como um espaço de partilha do poder entre o governo do reunindo diferentes peritos, trabalhadores de terreno e Estado, o município e a comunidade rural, reduzida no secretário executivo encarregado da gestão cotidiana. A sobretudo, se certificar do grau de inclusão da PC em assistentes administrativos colocados sob a alçada de um essencial aos fazendeiros. A Assembleia Geral devia, equipe associou-se a um coordenador executivo relação aos fazendeiros locais enquanto o Conselho de continuvam imprecisos e que finalmente exerceu uma PC. Todos esses elementos refletiam bem o acordo francês, cujas responsabilidades e estatuto hierárquico Administração devia cuidar da intensidade e do alcance da influência determinante. fundador da aliança original que apoiou o PRP, convencida da eficácia da “salvação pela tradição” e da necessidade A estrutura de governo do IPP foi, portanto, concebida 6.2 de gerir os fazendeiros tradicionais. Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras Enquanto o conceito jurídico do PRP parece ligado a uma competências técnicas para controlar efetivamente o que o governância fortemente participativa, na realidade, as IPP fazia. Na verdade, em quatro anos de atividade, o radicalmente diferente. presidente. Como várias entrevistas o confirmou, a Em primeiro lugar, mesmo se o IPP retirasse sua descontentamento no seio do IPP limitava-se, sobretudo a reuniria na prática. Só alguns fazendeiros assistiam a cada presidente. tempo. A Assembleia não representou seu papel de fórum Quanto à presidência do parque, sua prática institucional incarnar a visão do PRP e os compromissos comuns existência do IPP (2001-2003), o cargo foi ocupado pelo instituições e as pessoas trabalharam de maneira Conselho, confiou a vigilância das operações ao margem legitimidade de sua assembleia geral, esta raramente se de manobra do conselho em caso de falar – mais frequentemente de maneira informal – ao uma das sessões, cada vez menos numerosos com o para discutir a Carta do parque – o documento devia evoluiu com o tempo. Durante os dois primeiros anos de assumidos por seus membros. De fato, esta Carta nunca antigo presidente da SODEPAN. Este fazendeiro originário foi finalizada nem adotada, além de uma seção de trabalho de uma velha família pantaneira assumiu um papel Assim, a Assembleia só fez apenas eleger os presidentes um dos interlocutores, “ele queria assinar o mínimo organizada durante o “projeto preliminar” (Gouveia, 2006). bastante ativo na gestão cotidiana da estrutura. Segundo e nem isso, visto que na curta história do parque, só houve cheque”, mas tensões aparecem rapidamente quando o eleições. Quanto ao grau de inclusão social da assembleia, beneficio dos peritos estrangeiros ainda implicados no um único cadidato declarado para cada uma das duas presidente começou a perder seu poder de gestão em não tivemos a possibilidade de confirmar a existência de processo. enviar um representante. Nenhum dos trabalhadores A equipe técnica do IPP tinha efetivamente vários técnicos fazendeiros nunca evocou tal organização. praticamente levar em conta a gestão e a estrutura do IPP. um “sindicato de trabalhadores rurais”, que tivesse podido questionados conhecia a existência disso – e nenhum dos estrangeiros que acompanhavam seu programa sem Pouco a pouco, além disso, o Estado local aumentou sua O Conselho de Administraçao tinha mais influência do que influência no IPP, ocasionando uma perda de controle para a Assembleia na gestão do IPP, mas este também se o Conselho de Administração e o presidente. Através das reuniu menos que o previsto, com uma taxa de participação secretarias de Estado, um punhado de políticos influentes flutuante. As pessoas que faziam parte do Conselho parecia agir ao mesmo tempo no interesse do partido e ao tinham, na prática, pouco tempo ou não bastante serviço de indivíduos tendo “boas relações”. Segundo © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 60 6. O poder institucional em ação diferentes interlocutores, esta “recuperação política” tinha Como o IPP teria podido recusar as ordens e as pessoas sido cuidadosamente preparada ao longo do “projeto enviadas por seus investidores? preparatório” de 1998-2000. No início, tratava-se de aproximar a iniciativa do PRP das mais altas autoridades do Durante os dois primeiros anos, o presidente do IPP teve alguns indivíduos. Em seguida, logo que o IPP se tornou organização parece ter funcionado bem, graças a uma progressivamente pela nomeação de algumas pessoas no continuasse ainda restrito, todos os fundos internacionais Estado, para garantir a influência mais direta e pessoal de efetivamente um papel concreto na gestão cotidiana. A operacional, esta tomada de poder, manifestou-se gestão financeira rigorosa, mesmo se o orçamento global seio da equipe de gestão – um processo que, depois de não tendo sido pagos. Mas, vimos, o presidente tinha 2003, tornou-se desproporcional e incontrolável. Desde começado a dividir seu poder de decisão com os técnicos mostrou-se cada vez mais interessado pelo prjeto do PRP, importância, o das pessoas, sempre mais numerosas, 1999, depois de um período de hesitação, o governo local estrangeiros. Visto que outro grupo começava a tomar que conseguia mobilizar fundos estrangeiros. No que diz nomedas por suas relações políticas e que consideravam respeito à implicação do Estado, lembremos que o projeto não serem de nenhuma maneira devedoras perante o tinha, no início, sido confiado a FEMAP – uma fundação presidente. local encarregada de implementar a política de meio ambiente definida pela Secretaria de Meio Ambiente, mas No fim de 2003, o presidente compreendeu que tinha autoridades não estavam suficientemente associadas – “coalização objetiva de interesses” foi constituída contra posicionamento institucional do PRP não lhe permitia estavam à vontade com um presidente vindo da rapidamente, alguns estimaram que as principais perdido praticamente todo o poder de gestão e que uma uma preocupação que, oficialmente, provinha do fato que o ele, composta de dois grupos: 1) os franceses, que não “assegurar-se da implicação total de todos os ministérios SODEPAN; 2) e os trabalhadores cada vez mais (finanças, infraestruturas, produção ou meio ambiente), numerosos enviados pelo Estado para constituir a “equipe dado seu “modo de funcionamento vertical42”. Por técnica do IPP” e que viam em tudo a vantagem de do projeto PRP com o Estado local”, uma nova convenção maior parte dos fazendeiros interrogados, não teve trabalhar lá (bons salários ou veículos de serviço43). A conseguinte e para garantir a “melhor cooperação possível palavras bastante duras para denunciar este processo. entre o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF foi Escutemos um antigo vice-presidente do IPP: assinada em 28 de junho de 2000. A responsabilidade do PRP ia caber a um nível superior – o da Secretaria do Estado e do Governo, que exercia uma autoridade direta em A maior parte das pessoas enviadas pelo Governo não fez todos os outros ministérios. Entretempo a responsabilidade nada [...] Elas contentavam-se em fingir. Mas era do apoio administrativo era também transferida da FEMAP necessário pagá-las! para a agência de desenvolvimento econômico sob controle político estreito – a CODEMS (Companhia Desenvolvimento Econômico de Mato Grosso do Sul). Sua nomeação o inspirou o seguinte comentário: de Você sabe, quando um político diz: um vai trabalhar lá, é É, portanto, nesta base de forte supervisão estatal que o ponto final. O que você pode dizer? Essa pessoa tem IPP foi criado em 2001, com um conselho de administração influência nos ministérios do qual o IPP depende [...] que tinha dois representantes do Estado, incluindo o do governador. O IPP devia igualmente ser apoiado financeiramente pelo Estado, através de uma dotação anual, o que dava ainda mais poder às autoridades públicas 42 As passagens deste parágrafo são tiradas de uma entrevista com um funcionário local. 43 Não somos responsáveis por este julgamento, exprimidos por dois de nossos interlocutores. na estrutura. Como o comentou um antigo funcionário do IPP, que via bem como as coisas iam evoluir: © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 61 6. O poder institucional em ação Outros observadores acrescentaram: O Governo serviu-se da estrutura do IPP para “triangular” os recursos. Ele dava fundos ao IPP, a responsabilidade - Eles davam os cargos a seus amigos e às pessoas que para o IPP de recrutar algumas pessoas, por razões e ajudavam o partido. filiações políticas, ou de lançar-se em projetos públicos sem relação direta com o parque regional. Segundo os cálculos deste professor, entre cinco e seis - Era a distribuição de prêmios […] Tudo dependia de uma milhões de BRL (ou seja 2 milhões de euros) foram assim estratégia eleitoral. “triangulados” durante toda a duração de vida do IPP. O Um professor de universidade, aliás fazendeiro, estimou objetivo preciso desta « triangulação » ainda não foi que este processo ia mais longe do que o simples determinado, mas um inquérito público está em nepotismo: 6.3 andamento (em 2009). Uma vã esperança de cuidado comunitária … quem vai acelerar a derrocada final Estes jogos de poder tiveram que rapidamente ser uma segunda fase”, durante a qual o projeto ia tomar mais com uma gestão eficaz – muito pelo contrário – levando comunidade queria também aproveitar o peso do nome Em seguida, a estrutura de governância tornando-se atores não locais. Em seguida, o slogan “Almir Sater” fazia interrompidos. Primeiro, a recuperação política não rimou importância e encontrar seu ritmo normal. Mas a cada vez mais obsevadores a constatar certa confusão. célebre para contrabalancear a influência crescente dos cada vez mais complexa, o IPP começou a encontrar consenso na comunidade dividida na maneira de gerir o dificuldades técnicas para a implementação dos projetos projeto VITPAN. se tratasse do projeto guia do PRP para a maior parte Mas há mais: esta eleição tinha também uma significação de desenvolvimento, em especial o VITPAN – mesmo se dos fazendeiros e o que suscitou mais expectativas. Os estratégica para os membros do pessoal nomeados pelo conduzindo este candidato. Como nos explicou um de nossos erros de gestão repercutiram na comunidade inteira, a um descontentamento praticamente geral no início de 2003. poder político que, paradoxalmente, apoiavam igualmente tornado interlocutores: Preocupada em remediar esses problemas técnicos e de Não somente a candidatura de Almir Sater fazia governância, a Assembleia Geral reuniu-se para eleger um consenso e parecia garantir a unidade entre fazendeiros, novo presidente, em 23 de abril de 2000. Esta data marca mas, além disso, ela tinha preferência pela equipe uma reviravolta na curta história do IPP. A Assembleia vai técnica do IPP porque esta gente sabia bem que Sater eleger Almir Sater, um cantor pantaneiro conhecido em não se implicaria localmente, ao contrário do presidente Pantanal. Várias razões explicam a escolha de uma figura cheques! todo o Brasil e proprietário de 25 000 hectares de terras no anterior. Sobretudo, ele não pediria para assinar todos os pública por excelência, elucidada por um bom número de interlocutores. Aqui está o que diz outro: Em primeiro lugar, a comunidade dos fazendeiros queria Todo mundo estava contente em eleger Sater presidente: também atrair mais a atenção e a simpatia e, portanto, de ‘pai’ e as pessoas do IPP porque sabiam que seria um restabelecer a situação de seu parque regional, mas os fazendeiros, porque recuperariam neste caso, um tipo mais meios financeiros. Falava-se, então de “passar para ‘pai’ ausente. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 62 6. O poder institucional em ação Desde sua eleição, o novo presidente deu uma autonomia Como testemunham os processos em andamento em total à equipe técnica do IPP, visto que ele escolhe confiar 2009, casos de má gestão financeira aparecem também. executivo, sem exercer verdadeiramente controle. Para políticos. Para começar, os diferentes secretários todas as responsabilidades de gestão ao secretário Alguns falam até de desvio de fundos para fins pessoais ou um dos fazendeiros: executivos pagaram regularmente as despesas ligadas ao projeto com fundos concedidos a outros projetos. Alguns observadores estimam também que eles financiaram A eleição de Almir Sater ocasionou uma deserção total de despesas de importância secundária (viagens, reuniões, cargo, em beneficio dos ‘técnicos’, que não tinham nenhum fazendeiro entre eles! equipamento O secretário executivo é oficialmente escolhido por e federais, que totalizam montantes enormes. As escolha tinha sido fortemente inspirada por alguns não mais assumir seus compromissos financeiros, a partir do Conselho eles de 2003. nomeado, o qual é pouco conhecido pelos fazendeiros, é Através Sobretudo, dificuldades vão agravar-se quando o Estado começa a políticos. A administração do IPP pelo Secretario contestada. escritório...). “esqueceram” de liquidar certo número de impostos locais Sater, mas, para vários de nossos interlocutores, esta bastante de de Tudo isso leva à interrupção de todas as atividades do IPP vão reclamar várias vezes seguidas ao presidente das terrano, o IPP ainda tinha uma existência jurídica, mas era Administração ou das reuniões informais, os fazendeiros em julho de 2005. Em 2008, durante nosso trabalho de tramóias evidentes reinando no IPP. O presidente vai, objeto de um inquérito público e estava pesadamente sem nenhum efeito tangivel – sempre influenciado por impostos e salários atrasados) avizinhava um milhão BRL portanto, mudar duas vezes de secretário executivo – endividado. O restante de sua dívida (compreendendo os alguns políticos. Os titulares sucessivos não parecem ter na metade de 2008 (ou seja 400 000 EUR), um outro suscitado qualquer confiança nos fazendeiros. milhão tendo já sido reembolsado. Sob influência, o IPP continua a aumentar seus efetivos ao As frustrações dos fazendeiros diante do “escândalo do longo do período, alcançando 50 permanentes, enquanto PRP” são imensas. Eles atacam, sobretudo o Estado e os mesmo suas finanças estão longe de aumentar tão políticos que, por intervenções que estimam exageradas, rapidamente. Vários funcionários são integrados em bases provocaram esta catástrofe. Sua raiva é também dirigida, técnicas obscuras, mas com salários superiores ao dos mas em menor escala, contra a influência estrangeira administradores locais. Duas Secretarias locais (Produção constante, que “complicou tudo”. Em 2009, Almir Sater e Meio Ambiente) vão especialmente recorrer a este ainda era presidente do que restava do IPP. Ele será sem mecanismo. dúvida chamado para se explicar perante a justiça. Hoje, ele é abertamente criticado mesmo se a maior parte dos Todas estas pressões vão mostrar-se pesadas demais para fazendeiros continua a respeitar esta figura pública que, uma nova organização ainda frágil. Como o comenta um para vários brasileiros, incarna o Pantanal. Um bom observador: número de frazendeiros pensa que Almir Sater é “ingênuo” Nessa fase, o IPP tornou-se uma grande desordem para o seus sentimentos diante do fracasso do IPP: demais e que foi manipulado. Um dos fazendeiros resumiu Estado. [ele tinha] aberto numerosas frentes, mas nenhuma funcionava corretamente. Cabe a nós pagarmos esta dívida, doravante, mesmo sabendo que ela é do Governo. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 63 6. O poder institucional em ação 6.4 Conclusão Interessamo-nos pela gestão e a história do parque, pescadores) – uma situação perfeitamente bem ilustrada criação, em agosto de 2002, e a interrupção de suas “recuperação política” progressiva do IPP, através da mesmo tão curta: 36 meses de existência entre sua pela estrutura institucional do parque. Em seguida, houve a operações, em julho de 2005. Nós vimos que a prática nomeação imposta pelo Estado de pessoas pouco institucional da “participação comunitária” tinha sido competentes em gestão, mas tendo as relações pessoais, falsificada desde o início pela noção ambígua de contavam. Globalmente, estes processos sucessivos de enviesada em vários níveis. Em primeiro lugar, ela foi as filiações políticas e os interesses particulares que “comunidade local” que, no final designava simplesmente poder produtivo e institucional conduziram a uma os “fazendeiros”, sem levar em conta os trabalhadores supressão total dos nativos, distanciados da gestão desse rurais (os peões) e outras comunidades (como os tipo de “parque comunitário”. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 64 7. O papel do capital social e seu impacto na PC Nós vimos, a história do Pantanal oferece uma mistura nossa opinião, para sua própria marginalização do intenções ou de efeitos concretos contra os partidários da os atores a par do funcionamento institucional em particular complexa de dinâmicas de bloqueamento, que se trate de funcionamento institucional do PRP – aproveitaram-no mais conservação do meio ambiente, os novos atores os políticos e peritos franceses. Enfim, nós sugerimos que econômicos da região, os trabalhadores agrícolas, os o “fracasso do PRP” poderia muito bem, ter plantado, grupos de pescadores e os próprios fazendeiros. Veremos apesar de tudo, as sementes de um renovamento do capital como esta “mil-folhas” encontrou sua origem no capital social local. Em todo o caso, ele suscitou uma autocrítica e social. Nós começaremos por interessarmo-nos pelos significação, dos elementos para fazer evoluir no modo de excluídos dos processos do PRP: esta separa çãoé, na termos de implicação do Estado nos dispositivos de PC. social da comunidade e os efeitos que teve neste capital uma reflexão em torno da ação coletiva e da sua trabalhadores agrícolas do Pantanal que foram totalmente cooperação entre fazendeiros e das precauções a tomar em verdade, apoiada por sua relação simbiótica com um Este processo é particularmente patente na evolução da paternalismo antigo da parte dos fazendeiros que explica estratégia de resposta dos fazendeiros diante do que seu capital social seja totalmente estrangeiro a toda desmoronamento do PRP, que passaram da lealdade à forma de instituição e ação coletiva. Nós analisaremos em tomada de posição – demasiado tarde, contudo, para poder seguida o capital social da grande maioria dos fazendeiros inverter a situação. Vemo-lo ainda no funcionamento atual do Pantanal. Seu individualismo visceral e sua preferência de uma associação relativamente recente de produtores, por modos de comunicação informais contribuíram em 7.1 que parece ter tirado as lições da experiência do PRP. Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva A ausência total de peões na concepção e a governância integrar de uma maneira ou de outra no projeto PRP reflete característico do capital social (CS) específico e da posição pequeno mundo da fazenda; sua dominação estrutural do ambicioso projeto de PC previsto para o Pantanal é várias características sociais: absorção total dos peões no estrutural deste subgrupo da comunidade. Nós definimos pelos fazendeiros do fato de um paternalismo antigo; sua unem os membros de um grupo dado e este grupo com ações e as reivindicações coletivas; sua retirada de um de CS (Charnoz, 2009b) como as “laços coletivos” que falta de hábito (e de capacidade aparente) para decidir as outros. No caso dos peões, é o CS transversal (bridging) “mundo moderno e agressivo à margem do Pantanal; e seu que parece particularmente concernido – a saber, a sentimento subjetivo de relativa liberdade e de satisfação maneira como eles criam laços com grupos externos. Os diante da vida que levam. de uma maneira estruturalmente dependente. Por Durante toda a duração do processo do PRP, nem os comunidade autônoma digna de consideração e de se estrangeiros se interessaram pela natureza interna da peões estão de fato estreitamente ligados aos fazendeiros, conseguinte, sua incapacidade de afirmar-se como uma defensores brasileiros do projeto, nem seus apoios © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 65 7. O papel do capital social e seu impacto na PC fazenda pantaneira tradicional para a sobrevivência da qual próprias crenças e, em especial, um folclore bastante vivo eles trabalhavam. As profundas desigualdades sociais e o no Pantanal, povoado de personagens e espíritos míticos. paternalismo instalado há séculos nos espaços sociais que Fundamentalmente, os peões vivem em um mundo são as fazendas não foram nem abordados nem espiritual distinto do dos fazendeiros que, hoje, são baseados em uma distinção binária e hierárquica entre, de permitiram captar sua visão do tempo, bastante circular, e questionados. Como tal, as fazendas constituem universos cidadãos modernos. As entrevistas com os peões uma parte, os fazendeiros e suas famílias (os proprietários) sua falta de percepção das evoluções que os cercam. É e, de outra, os trabalhadores rurais e suas famílias (os particularmente surpreendente constatar que nenhum Estas pessoas trabalham por salários medíocres e um se desenrolava, de positivo ou negativo, na região do peões). A vida dos peões está banhada no paternalismo. podia ter um discurso estruturado e informado sobre o que alojamento modesto proposto pelo proprietário assim como Pantanal. Enquanto poderia se pensar que são os caso de dificuldades pontuais (problemas de saúde a região pareceu seriamente limitada por uma falta de por produtos cárneos, gêneros alimentícios e ajuda em melhores peritos para o pantanal, sua compreensão sobre especialmente). Alguns fazendeiros tentaram até, nós educação, de sensibilização, até mesmo de vontade de vimos, desenvolver serviços educativos para as crianças descobrir o “mundo exterior”. Sua relação simbiótica com de seus trabalhadores, com resultados mitigados. os fazendeiros está baseada não somente no fato de que eles são uma mão-de-obra barata, mas também na Para alguns observadores locais, esta relação parece vantagem considerável que eles representam para as saudável. Para os antropólogos que nós encontramos, os relações públicas quando os fazendeiros precisam de peões têm até um forte sentimento subjetivo de sua própria atenção e de dinheiro. Se a maior parte dos fazendeiros liberdade: vive doravante na cidade e só vêm a suas terras por obrigação ou durante seu tempo livre, os peões vivem lá todo o tempo e compõem estas imagens magníficas Os peões vivem fora, sem ter todos os dias um patrão nas conhecidas em todo o Brasil de « cowboys » a cavalo, costas […] se não estão contentes com seu destino ou com seu empregador, eles sabem que sempre podem subir em conduzido rebanhos (comitivas) nos espaços infinitos, Esta capacidade de passar de um empregador a outro externa da comunidade pantaneira e alimenta a reputação contando histórias tiradas de um folclore único, etc. É, seu cavalo e ir bater à porta de uma outra fazenda. portanto, o peão que carrega o essencial da identidade alimentou visivelmente nos peões, um sentimento de positiva e a afeição pública da qual ela beneficia. Também interrogar-se sobre a verdadeira autonomia que ela atribui. do financiadores – este sentimento que a vida continua autonomia durante gerações. O que não impede de ele mantém na opinião pública – e nas direções europeias Quando mudam de fazenda, os peões encontram-se em “tradicional e em harmonia com o meio ambiente”. um mundo idêntico que lhes oferece as mesmas Contudo, eles não tinham nada a ganhar com o vasto oportunidades, limitadas, de desenvolvimento pessoal. Seu projeto do PRP – e não puderam dar suas opiniões. Sua nível de educação é habitualmente bastante fraco e um presença resumiu-se a uma menção nos “folhetos bom número dentre eles quase não sabe ler e escrever. informativos e apresentações PowerPoint consagrados ao Mesmo se a maioria aprendeu os rudimentos da língua na modo de vida na região”44. ler e escrever. A este respeito, eles estão muito próximos Os peões não são exigentes. Apesar dos séculos uma educação formal esquecida há muito tempo. um grupo à parte, eles nunca organizaram qualquer escola, seu modo de vida não lhes dar quase a ocasião de passados nas fazendas e sua identificação clara como dos pescadores de Saint-Lucie, cuja maioria tinha recebido Nossas entrevistas com antropólogos locais confirmam que 44 Segundo um membrpo de um ONG trabalhando no Pantanal. os peões constituem uma sociedade à parte, com suas © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 66 7. O papel do capital social e seu impacto na PC forma de ação coletiva para discutir, enquanto grupo, em um pequeno mundo circular no qual eles não têm problemas são tratados de maneira informal e entre poucos meios ou vontade de se libertarem deste « mundo com os fazendeiros sobre qualquer questão. Todos os nehuma ocasião de se desenvolverem. Eles parecem ter indivíduos. Os peões com os quais falamos disseram seguro, mas fechado », para retomar a expressão do lugar. claramente que ignoravam a existência de um sindicato Mesmo se é difícil denunciar uma forma de “exploração defendendo seus interesses – um traço típico das pura e simples”, as fazendas são sociedade autárquicas sociedades paternalistas. Durante nossas entrevistas, onde a coesão e as desigualdades andam de mãos dadas. tímida e aparentemente habituada a baixar a cabeça Nós evocamos (Charnoz, 2009b) a definição que dá que os fazendeiros são claramente mais “claros” de pele “conscientemente articulados e observáveis”), em descobrimos gente simples e tranquila, profundamente quando discutem com brancos. É necessário lembrar Lukes que os peões, que têm frequentemente sangue índio nas dos “interesses subjetivos” (interesses oposição a “interesses objetivos” (que são os objetivos e veias. Eles sempre responderam brevemente a nossas os desejos que os atores “gostariam e prefereriam questões, sem jamais fornecer informações além do que alcançar se pudessem decidir por si mesmos). (Lukes, que dizia respeito a sua vida, seu trabalho e sua relação particularmente bem adaptado à aplicação destes era perguntado. Eles sempre mostraram reservas, no 1975, pg. 34). O mundo das fazendas parece estar com os fazendeiros. A impressão geral é a de um conceitos. A relação paternalista entre peões e temperamento tipicamente “passivo”, uma percepção fazendeiros é tão constitutiva de sua identidade que confirmada por diferentes pessoas que questionamos, nenhuma vontade de mudança parece surgir. membros de ONGs ou turistas contatados ao acaso. Como um dispositivo de PC poderia conseguir implicar as Nosso trabalho de terreno nas fazendas deu-nos um populações tendo tal estado de espírito e em presença de sentimento difuso sobre peões, mais ou menos fechados 7.2 um poder estrutural tão forte e tão eficaz? Individualismo e informalismo: inaptidão institucional da parte dos fazendeiros A implementação do processo do PRP acompanha, nós comportamentos oportunistas que desorganizaram a vimos, duas dinâmicas potentes de bloqueamento, que implementação de projetos importantes. primeira deu vantagem aos técnicos estrangeiros quando a Nós vimos que o CS transversal era essencial para punhado de políticos e pessoas com relações convenientes. PRP. Nós afirmamos agora que o CS soldado é o que acabaram por suprimir todo o poder dos fazendeiros. A segunda favoreceu a recuperação institucional do IPP por um compreender a situação dos peões no seio do dispositivo Nós afirmamos aqui que estes dois exercícios de poder institucional foram amplamente facilitados exprime melhor a posição e a evolução dos fazendeiros pelo no seio do projeto. Esta forma de CS (Charnoz, 2009b) enfraquecimento da SODEPAN (seção 4.3), mas também reenvia para a natureza e para a força dos laços no seio fazendeiros. Entendemos com isto a dificuldade e a relativa amalgamadas que contaram e, juntas, fazem com que: 1) pela « inaptidão institucional » da grande maioria dos de dado grupo. No PRP, são as diferentes normas sociais incapacidade destes últimos a empreender ações coletivas os fazendeiros sejam incapazes de cooperar e formais e a unir-se a instituições oficiais. Esta característica coordenar-se em torno de projetos importantes do PRP; conduziu a uma falta crônica de acompanhamento 2) eles não souberam se comprometer junto às governância do PRP. Ela também deixou correr livre os responsabilidade destas relações a uma única pessoa. institucional da parte dos fazendeiros do ponto de vista da instituições formais (como o IPP), preferindo confiar a © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 67 7. O papel do capital social e seu impacto na PC Esta falta de hábito de cooperação flagrante nos produção. Durante uma entrevista, o primeiro presidente segundo a qual “eles são os únicos em suas terras” e só “diferendo político nasceu entre os fazendeiros, em torno fazendeiros parece instalada em sua convicção tradicional do IPP lembrou-se de que no fim de seu mandato, um podem contar com eles mesmos. Todos os fazendeiros que nós encontramos mostram francamente do vitelo, com três ou quatro grupos opostos”. As tensões seu eram tais que o IPP nem pôde, em dois anos completos, “individualismo”, que apresentam de maneira positiva como um desejo de “autonomia”. esclarecimento suplementar: Um deles deu levar os produtores do projeto VITPAN a constituir uma um simples cooperativa – etapa, contudo indispensável para organizar este novo setor econômico. Não, nós não temos o hábito de nos associar. As Para muitos, esta incapacidade de agir coletivamente frágeis no Pantanal. Por uma simples razão: aqui, nós sobre os responsáveis do IPP, visto que isto prejudicava impediu os fazendeiros de ter uma verdadeira influência associações, as cooperativas, etc., todas essas coisas são gravemente sua credibilidade e sua liderança moral como estamos na cultura do instante. Nós queremos que as coisas sejam imediatamente proveitosas. [...] Nós não parceiros fiáveis. Mas de toda a maneira, a influência dos resultado imediato. incapacidade de implicar-se em uma qualquer instituição, fazendeiros ia ser contrariada por um outro problema: sua gostamos de agir em grupos – a não ser que isso tenha um comum à maioria dos fazendeiros. Um observador local Durante a duração de vida do IPP, certo número de falou-nos a este próposito de « informalismo » - uma situação recorrentes ligados à dificuldade de coordenação. Esta organizações comunitárias (seção 4.3), mas também por crítico VITPAN. Os problemas encontrados atestam para organizações que procuram fornecer-lhes serviços. projetos que foi lançado se chocou com problemas que se traduz primeiro pela existência rara e frágil de deficiência foi particularmente flagrante no caso do projeto uma falta de interesse de interação, da parte dos criadores, efetivamente a profundidade da implantação deste “individualismo” e deste “imediatismo” na comunidade. Os problemas encontrados no Pantanal pela EMBRAPA, coordenação e boa vontade da parte dos produtores. Ele são reveladores. Há décadas, a EMBRAPA tem trabalhado produção de carne, para poder comercializar esta produção e à conservação. As entrevistas realizadas em Projeto complexo, o VITPAN exigia certo grau de primeiro instituto público de pesquisa agronômica no Brasil, necessitava, sobretudo, de uma padronização rigorosa da na região em diferentes aspectos técnicos ligados à produção coletiva sob uma marca única e na qual os 2008 em Campo Grande mostram que hoje, seu principal consumidores tivessem confiança. Acordos rapidamente problema não é de encontrar novas soluções para os apareceram em torno de técnicas e padrões de produção – criadores, mas de implementar e difundir as que foram até memso para itinerários de coleta de carne, mais ou identificadas há muito tempo. A transferência de uma menos cômodos para os diferentes produtores. Os inovação do instituto para os produtores pantaneiros procedimentos eram pouco ou mal aplicados, de maneira mostrou-se particularmente difícil. rapidamente de interessar os distribuidores. Este quebra-cabeça conduziu a EMBRAPA a consagrar Os produtores rapidamente desconfiaram uns dos outros, que estas parecem proibir a apropriação local das técnicas que o produto – de qualidade decepcionante – cessou mais recursos à pesquisa sobre dinâmicas sociais, visto por causa de comportamentos oportunistas. Cada um tinha agrícolas e dos institutos de pesquisa. O órgão interessa- de fato interesse em não respeitar a idade a qual os vitelos se especialmente cada vez mais pela maneira como as podiam ser enviados ao matadouro. A incitação financeira evoluções intervêm na comunidade tradicional dos conduzia os produtores a levar os animais mais velhos, criadores, voltando a uma sociologia de conhecimento e mais pesados e, portanto, mais caros para a venda. Mas redes de informação. Os pesquisadores analisaram os sua carne, demasiado gorda, estragava toda a linha de processos de adoção, de indiferença ou rejeição diante das © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 68 7. O papel do capital social e seu impacto na PC novas tecnologias (ver, por exemplo, Cezar, 2000). Eles participativo não levam em conta as fontes formais de saber e de fazendeiros preferem os modos informais de comunicação. possibilidades de formação. fazendas vizinhas para obter informações. Por outro lado, mostram que, globalmente, os fazendeiros do Pantanal de difusão de conhecimentos e de informações que iria além dos quadros formais. Os conselho técnico – como a informaçao escrita ou Eles discutem entre si e observam o que acontece nas as redes de aprendizado são estruturadas em torno de um Para começar, as pessoas não gostam de ler ou ter o número restrito de “pessoas de confiança” que servem de sentimento de “voltar à escola”. Além disso, a esmagante modelos para outros fazendeiros e se tornam mais ou maioria dos fazendeiros estima não ter meios de participar menos “líderes de opinião”. Em geral, estas “pessoas de causa de sua idade frequentemente avançada ou do fato vasta, compreendem melhor a utilidade das instituições pessoalmente de processos formais – falta de tempo, por confiança” apóiam-se numa rede de informação bem mais da distância cultural entre criador tradicional e um perito formais e são mais aptas a servir-se dela. técnico – um sentimento que valia também para o IPP. Enquanto a EMBRAPA tinha concebido uma política Nós deduzimos a partir desta discussão que no seio do visando fazer participar os fazendeiros das decisões de IPP, os fazendeiros também se voltaram para estas pesquisa, o balanço que ele fez mostra que fracassou pessoas de confiança que devem controlar em seu nome a permite aos fazendeiros vir a qualquer momento discutir esta confiança depositada nos presidentes sucessivos do não “abrem a porta”. Ela por outro lado, impediu o Conselho de Administração amplamente. Mesmo sua política de “portas abertas”, que institução e fazer ouvir sua voz junto aos dirigentes. Mas com pesquisadores, não tem nenhum efeito: os criadores IPP não foi suficiente para contrabalançar as outras forças. de A EMBRAPA está atualmente refletindo sobre um sistema 7.3 desempenhar permanente. seu papel-chave de supervisão Da lealdade à exposição de opinião: renovar o capital social local Apesar de seus defeitos – e na verdade por causa destes exposição de opinião depois do fracasso da PC no projeto no seio da comunidade fazendeira sobre a necessidade de termos renovados e mais eficazes – como testemunha os – o projeto do PRP engrenou um processo de introspecção do PRP, abrindo o caminho para uma cooperação segundo reforçar sua capacidade de ação coletiva. Isso transparece, sucessos recentes de uma organização local de criadores consecutivo do desmoramento do IPP encontrou novos final do projeto do PRP já possa ser avaliado em 2009. antes de tudo, na maneira como o descontentamento de gados biológicos. Mas isso não significa que o impacto modos de expressão. Nós detalhamos (Charnoz, 2009b) Mesmo se a comunidade fazendeira pareça orientar-se os três tipos de resposta de uma comunidade provocados para uma curva de aprendizagem positiva, só o tempo por uma frustração social ela mesma causada por poderá dizer se as inércias serão vencidas. dispositivos de PC decepcionantes: a defecção (retirada efetiva ou psicológica); a lealdade (silêncio e resignação, A escolha da lealdade exposição de opinião (agravos abertos e ações para fazer Depois de 2003 e diante da via tomada pelo IPP, de exposição de opinião era a melhor da mesma forma que desmoronamento. Diante desta perspectiva e diante da em nome de um princípio superior de unidade); ou a nomerosos mudar as coisas). Nós afirmamos então, que a estratégia fazendeiros já previam seu inação relativa do presidente, os membros do Conselho levar a uma renovação do capital social local e, por Administrativo conseguinte, mais ação coletiva. Aqui, nós mostramos que não escolheram exprimir-se, mas continuar leais, refletindo aí uma estratégia amplamente os fazendeiros passaram da lealdade efetivamente à © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 69 7. O papel do capital social e seu impacto na PC partilhada pela comunidade fazendeira. Depois de várias Nós vemos aí o quanto os laços sociais impedem o Almir organizaçao comunitária, conduzindo a optar por uma discussões para advertir do perigo com o presidente Sater, eles renunciaram a assistir equilíbrio do poder de exercer corretamente em uma como espectadores a esta “tragédia anunciada”, como lembra lealdade mais do que por uma expressão de opinião, um dos protagonistas da época. Nós vimos, Almir Sater mesmo reagiu nomeando por duas vezes um novo secretário diante de uma catástrofe anunciada. A necessidade de unidade, a vontade de não manchar a executivo seguindo as recomendações políticas que reputação de um íntimo importante mas também a regra nada fizeram para acalmar os fazendeiros. Estas tácita que recusa todo conflito público no seio da mudanças não conduziram a nenhuma melhora na comunidade uniram-se para dar maus mecanismos gestão, como temiam, muito pelo contrário. regulamentares ao IPP. À primeira vista, esta estratégia de lealdade pode parecer incoerente diante do individualismo Os membros do Conselho teriam podido exercer seu direito furioso – que nós já analisamos – da comunidade de veto em relação aos responsáveis do IPP, mas eles não fazendeira. Mas se pode muito bem imaginar uma e as amizades ultrapassaram as dificuldades a este conflito público baseado, para um bom número de outras o fizeram, para não desapoiar Sater. As lealdades pessoais comunidade regida por normas estritas para evitar todo estado. Como lembra um fazendeiro: interações numa forma afirmada de individualismo. A expressão da opinião: empreender um processo de A um dado momento, paramos de reclamar a Almir. Ninguém queria criticá-lo severamente e encurralá-lo. [...] aprendizagem coletiva controlaria nada. Se Ou como diz outro : suscitando outra forma de resposta nos anos seguintes, Nós tinhámos de toda a maneira o sentimento que ele não os fazendeiros optaram pela lealdade, o desmoronamento do PRP não foi fácil de “digerir”, feita de discussões sobre o que não tinha dado certo, o que Para muitos dentre nós, Almir é um amigo de infância. teria de ser feito, mas também o que deveria fazer em queremos fazer ouvir nossa comunidade. Não podemos expressão de opinião. seguida – ou seja uma estratégia que se aparenta a Fomos à escola juntos. [...] Ele é o melhor quando fazer-lhe mal. Isso seria nos fazer mal. Uma série de entrevistas de fato revelou que a experiência do PRP tinha suscitado esperanças e expectativas que não Este grupo comunitário encontrou-se, portanto em uma desapareceram com ele. Acima de tudo, a “catástrofe” – situação esquizofrênica, de um lado inquieto com o futuro como de “seu parque”, mas sem nenhum recurso jurídico para eles qualificam frequentemente este fazer partir o presidente ou impor-lhe um secretário desmoronamento – levou os membros da comunidade a um fazendeiro: sua cultura dualista de coesão e de individualismo. Para interrogarem-se sobre as vantagens e os incovenientes de executivo que este grupo teria escolhido. Como o explica começar, numerosos fazendeiros parecem doravante admitir que o individualismo e o opoturnismo prejudicaram O Conselho Administrativo tinha poder sobre o presidente, os projetos do PRP e que as “coisas deverão mudar no suficientemente para fazer balançar todo o edificio. Mas a futuro”. Assim: decisão de exercer ou não este poder é função das relações pessoais. O poder é uma coisa, as relações pessoais outra. [...] Os membros do conselho disseram-se As coisas levam tempo para evoluir aqui. Os pantaneiros utilizar meu direito de veto para demitir quem quer que Devemos parar de trabalhar cada um em seu canto. devem organizar-se mais e de maneira eficaz. [...] “eu não posso arruinar a reputação do presidente; não vou Devemos unir esforços […] O parque era a melhor ideia seja; poderia fazê-lo, mas não o farei” © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 70 7. O papel do capital social e seu impacto na PC considerada oportunidade. para nós, mas despediçamos processo que tem o risco de levar tempo e que poderia nossa realmente comprometer a responsabilidade penal do último presidente. Como o exprimiu, de maneira poética, um Quanto ao principío de lealdade (em nome de uma dentre eles: aparente unidade ou amizades pessoais), parece-nos que os fazendeiros não terão nisto mais recursos de maneira O IPP é como um bebê que amamos e que está dormindo. automática se forem novamente confrontados com um Nós o cobrimos ternamente esperando que ele se acorde. exprimir seu descontentamento em tempo útil, mesmo se Um futuro escrito vários se arrependem de não ter adotado. Globalmente, as entrevista no terreno convenceu-nos de A existência de um processo coletivo de aprendizagem contudo, incitar a mudança – mesmo se isso levar tempo, dilema deste tipo. Da próxima vez, eles optarão mais por isto signifique desapoiar um dos seus – uma atitude que que o fracasso de um dispositivo participativo podia, especialmente no Pantanal. Evidentemente, a evolução transparece também na maneira como os fazendeiros far-se-á lentamente na região. Como o explica um consideram o Estado: eles estão ainda mais circunspectos fazendeiro: diante de sua ingerência em seus negócios. As “instruções e interferências políticas” mostradas no caso do IPP desde a época foram abundantemente comentadas pelos Quando alguém concebe um novo sistema, um novo é simplesmente inevitável: investimento, um período de transição e, frequentemente, fazendeiros. Alguns consideram que a recuperação política modelo, é necessário prever um tempo para o de decepção. Você deve fortemente investir-se, intelectual e praticamente. Mas você também deve fazer evoluir as Num IPP nova fórmula, nós teríamos dificuldades para mentalidades. Isto pode produzir-se no Pantanal, mas fazer realmente melhor (quanto à influência dos políticos]. muito, muito lentamente […] Será necessário sem dúvida Chega sempre um momento no qual você depende de uma de dez a quinze anos para que as coisas evoluam. decisão municipal, estatal ou federal. Que isso se manifeste pelo imposto ou por outros meios, sempre existe As práticas de transmissão de terra são uma boa ilustração uma ligação estreita [de maneira que os políticos] disto. Enquanto a comunidade local tem dificuldades para conseguem sempre fazer fracassar um projeto se eles têm sobreviver, suas normas sociais em matéria de partilha de vontade! terras herdadas só evoluem lentamente. A prática da repartição das terras entre herdeiros machos quase não Outros fazendeiros estimam que as transgressões políticas evoluiu enquanto até mesmo numerosas propriedades se estão diretamente ligadas à “corrupção do Governo atual”, encontram aquém do limite de viabilidade (cerca de 7 000 “uma situação que poderia muito bem mudar com as hectares). Alguns fazendeiros interrogados aparentemente próximas eleições”. Outros pensam ainda que se pode pediram a seus filhos para não “dividirem a terra e o impedir a influência do Estado se o recurso aos fundos trabalho” mas esse processo, mal aceito e um pouco públicos num projeto de PC for reduzido ao mínimo estrito. caótico, não parece fazer o consenso. A perspectiva de uma co-gestão com o Estado perdeu o essencial de sua credibilidade mas isso não quer dizer que Estas inércias interrogam sobre a capacidade de a ideia do PRP tenha sido abandonada. Ao contrário: a maior parte das pessoas interrogadas estima que seria sobrevivência desta comunidade nas próximas décadas. ainda mais “comunitária”. Nós encontramos vários do tempo a adotar para avaliar o impacto final de uma Paralelamente, elas levantam também a questão da escala necessário avançar fazendo do PRP uma “organização” intervenção de PC, mesmo em caso de “fracasso” (como o fazendeiros que defendem ativamente o relançamento do PRP), visto que ela terá, contudo, “revelado” à comunidade PRP uma vez que a dívida tenha sido apagada – um © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 71 7. O papel do capital social e seu impacto na PC algumas dessas fraquezas. De fato, esse processo já parece apoio do WWF. Esta cooperativa tem-se saído bem até dar seus frutos. Depois da interrupção do projeto VITPAN, agora, instaurando regras comuns de produção e uma rede pôde-se observar o crescimento potente de uma nova comercial. Os fazendeiros evitaram cuidadosamente ter de exclusivamente a partir de fundos particulares e beneficia do carne de vaca biológica com algumas 100 000 cabeças. associação de produtores de gados biológicos. Esta trabalha 7.4 apelar para fundos públicos. Até hoje, 30 fazendas produzem Conclusão Nós vimos como os diferentes processos de bloqueio desempenharam um papel no desmoronamento do PRP. capital social da comunidade e eram, de fato, ligados a este de um projeto participativo tão ambicioso tinha engrenado inerentes ao projeto do PRP tinham tido um efeito no Enfim, nós sugerimos que a mais longo prazo, o fracasso capital social. Nós mostramos a imbricação estreita do CS um processo de aprendizagem que, reforçando as transversal dos peões numa relação simbiótica e capacidades locais, era propício a novas iniciativas. Em procurar) qualquer meio de expressão no processo do de resposta alternativa às frustrações parece ter provocado paternalista com os fazendeiros e que os impediu de ter (de 2009, a escolha da expressão de opinião como estratégia PRP. Nós demonstramos em seguida a natureza complexa uma “introspecção comunitária” para retraçar as causas do CS soldando os fazendeiros que, combina imediatismo, deste fracasso – um processo que poderia mostrar-se individualismo, informalismo e unidade – tantos fatores que benéfico em termos de ação coletiva. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 72 8. Conclusões Assim, da gênese ao desmoronamento do projeto do governância do IPP acompanhou rapidamente o reforço enquanto mesmo este projeto teria de ser o exemplo pessoal trabalhando em tempo completo. Paralelamente, PRP, vários processos de bloqueio tiveram lugar, do poder institucional concedido aos membros do perfeito de um dispositivo participativo. Esses processos, uma simultâneos ou sucessivos, terão tido um impacto verdadeira “recuperação política” interveio, conduzida por alguns políticos da terra com intenções profundo ou terão continuado puramente institucionais. A obscuras, primeira camada dessa “mil-folhas” encontra-se na mas extremamente governância do IPP. vontade dos produtores locais instalados há muito, de nefastas para a impedir os esforços crescentes dos partidários da Contudo, para reaalmente compreender esses processos econômicos que põem em perigo sua sobrevivência. de seus efeitos de poder para se interessar pelos agentes discursos em torno da “salvação pela tradição” cujo É aí onde o capital social entra em consideração. Nós etiqueta “verde” aos fazendeiros, esta postura também estão envolvidos lhes cortou toda a possibilidade de conservação do Pantanal e os dos novos atores múltiplos de bloqueio, é necessário ultrapassar a análise Essas intenções fundamentais eram apoiadas pelos « catalisadores » que lhes permitiu ter uma tal ressonância. espírito impregnou todo o PRP. Concedendo uma mostramos que o paternalismo simbiótico no qual os peões reforçou sua posição estrutural visto que eles acabaram expressão duante o processo do PRP. Ao mesmo tempo, o segundo que informalismo de suas relações sociais explica a inaptidão e grupos de pescadores instalados no Pantanal há fracasso do PRP, extremamente embarassante para os por incarnar a comunidade tradicional inteira. Daí um nível de bloqueio, menos visível, antigo apego dos fazendeiros ao individualismo e ao praticamente sufocou as vozes dos trabalhadores rurais institucional no princípio de sua própria supressão. O gerações. fazendeiros, parece, contudo, ter engrenado um processo de introspecção no seio desta comunidade que bem Mas as coisas foram ainda mais longe. Como nós vimos, poderia, no futuro, relançar sua capacidade de ação um terceiro processo de bloqueio apareceu durante a coletiva. fase de implementação que, em vários níveis, atingiu os próprios fazendeiros. Trata-se em primeiro lugar da As implicações operacionais de nosso trabalho de terreno aumentar o “pluralismo” da sociedade civil e que sublinhamos em nosso estudo de casos sobre Saint-Lucie vontade, defendida pelos peritos estrangeiros, de no Pantanal vêm completar e reforçar as que nós enfraqueceu e totalmente desconsiderou a única (Charnoz, 2009c) : o aparecimento desse tipo de entidades é ao mesmo 1. A avaliação de dispositivos de PC está longe de ser institucionalização da PC num órgão oficial como o IPP, que o habitualmente fixado pelos investidores organização de fazendeiros eficaz num contexto no qual tempo raríssimo e frágil. Trata-se em seguida da cômoda e exige um horizonte temporal mais vasto do que distancia a grande maioria dos fazendeiros de seu implicados funcionamento cotidiano. Essa falta de implicação na na gestão do meio ambiente. Os investidores deveriam aceitar investir mais tempo e © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 73 Conclusões dinheiro nestes dispositivos, ser mais tolerantes diante também todo seu sentido em caso de problemas de sucesso apesar dos fracassos aparentes. Os apóiam sociedades paternalistas; dos altos e baixos inevitáveis e conservar a esperança deontológicos – quando, por exemplo, os investidores investidores deveriam aceitar a ideia de que os dispositivos de PC são apostas que não se podem 3. Os investidores deveriam também se esforçar para tempo para se concretizarem. A evolução do capital das partes diretamente interessadas menos preparadas tais avaliações; devem resumir-se às fases iniciais de consulta, nem ganhar com certeza ou cujos benefícios levam muito encontrar soluções para melhor defender os interesses social deve beneficiar de uma atenção crescente em para um processo participativo. Estes esforços não mesmo de criação de associações, mesmo se isto 2. A « participação institucional » conduz frequentemente pareça os grupos mais pobres e mais frágeis « à saída », sua proibição em participar do processo de tomada de “perito” externo encarregado de representar ou Governo e dos investidores internacionais. No caso do observar atenta e constantemente os jogos de poder no parque regional do Pantanal, os trabalhadores rurais e seio das instituições . os pescadores foram os grandes ausentes do estes problemas, A atores menos potentes, como o fato de designar um dispositivo, uma legitimidade “local” aos olhos do remediar necessidades. garantir o equilíbrio dos poderes e a influência dos superar as dificuldades. Ela concede também ao Para às três noções distintas. Várias soluções podem permitir decisão, enquanto os grupos mais potentes vão processo. corresponder representação, a participação e a influência efetiva são os Dada às dinâmicas que participam do capital social local do investidores podiam reforçar a dimensão sociopolítica Pantanal, reforçadas pela experiência do PRP, a principal assim como os mecanismos de acompanhamento aparecimento da “maturidade institucional”, que só implicados nos dispositivos participativos de gestão do desde então de saber se os investidores internacionais de seus processos de avaliação ex ante e ex post lição a tirar deste projeto parece estar realcionada ao lento permanente. Idealmente, os investidores internacionais intervém depois de algumas tentativas e erros. Trata-se meio ambiente deveriam ter mais consciência de suas estão prontos e financeiramente aptos a acompanhar tais implicações sociais e políticas nas sociedades locais, processos a longo prazo e a aceitar os fracassos como um por motivos ao mesmo tempo de ética e eficacidade. fenômeno normal em toda tentativa de desenvolvimento Este ponto é particularmente importante quando o institucional. Isto é a atitude radicalmente oposta a sua à comunidade comprometer-se eficazmente nas compromisso político em demonstrar a “eficácia do capital social local parece ter a possibilidade de permitir cultura cada vez mais orientada para os resultados e a seu instituições que ela acabará por apropriar-se. Ele toma desenvolvimento”. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 74 Referências bibliográficas Albuquerque de Vargas, I. 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Série “Documents de travail” publicadas desde janeiro de 2009 Os números anteriores são consultáveis no site http://recherche.afd.fr. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 77 Documentos de trabalho Publicados desde janeiro de 2009 Os números anteriores podem ser consultados no site: http://recherche.afd.fr N° 78 « L’itinéraire professionnel du jeune Africain » Les résultats d’une enquête auprès de jeunes leaders Africains sur les « dispositifs de formation professionnelle post-primaire » Richard Walther, consultant ITG, Marie Tamoifo, porte-parole de la jeunesse africaine et de la diaspora N° 79 N° 80 Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - janvier 2009. Le ciblage des politiques de lutte contre la pauvreté : quel bilan des expériences dans les pays en développement ? Emmanuelle Lavallée, Anne Olivier, Laure Pasquier-Doumer, Anne-Sophie Robilliard, DIAL - février 2009. Les nouveaux dispositifs de formation professionnelle post-primaire. Les résultats d’une enquête terrain au Cameroun, Mali et Maroc Richard Walther, Consultant ITG N° 81 N° 82 Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - mars 2009. Economic Integration and Investment Incentives in Regulated Industries Emmanuelle Auriol, Toulouse School of Economics, Sara Biancini, Université de Cergy-Pontoise, THEMA, Comments by : Yannick Perez and Vincent Rious - April 2009. Capital naturel et développement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 1. Mesures de la « richesse totale » et soutenabilité du développement de la Nouvelle-Calédonie Clément Brelaud, Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri, Armand Taranco, Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV N° 83 N° 84 N° 85 N° 86 N° 87 N° 88 Contact : Valérie Reboud, département de la Recherche, AFD - juin 2009. The Global Discourse on “Participation” and its Emergence in Biodiversity Protection Olivier Charnoz. - July 2009. Community Participation in Biodiversity Protection: an Enhanced Analytical Framework for Practitioners Olivier Charnoz - August 2009. Les Petits opérateurs privés de la distribution d’eau à Maputo : d’un problème à une solution ? Aymeric Blanc, Jérémie Cavé, LATTS, Emmanuel Chaponnière, Hydroconseil Contact : Aymeric Blanc, département de la recherche, AFD - août 2009. Les transports face aux défis de l’énergie et du climat Benjamin Dessus, Global Chance. Contact : Nils Devernois, département de la Recherche, AFD - septembre 2009. Fiscalité locale : une grille de lecture économique Guy Gilbert, professeur des universités à l’Ecole normale supérieure (ENS) de Cachan Contact : Réjane Hugounenq, département de la Recherche, AFD - septembre 2009. Les coûts de formation et d’insertion professionnelles - Conclusions d’une enquête terrain en Côte d’Ivoire Richard Walther, expert AFD avec la collaboration de Boubakar Savadogo (Akilia) et de Borel Foko (Pôle de Dakar) Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - octobre 2009. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 79 Documentos de trabalho N° 89 Présentation de la base de données. Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009) Institutional Profiles Database III - Presentation of the Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009) Denis de Crombrugghe, Kristine Farla, Nicolas Meisel, Chris de Neubourg, Jacques Ould Aoudia, Adam Szirmai N° 90 Contact : Nicolas Meisel, département de la Recherche, AFD - décembre 2009. Migration, santé et soins médicaux à Mayotte Sophie Florence, Jacques Lebas, Pierre Chauvin, Equipe de recherche sur les déterminants sociaux de la santé et du recours aux soins UMRS 707 (Inserm - UPMC) N° 91 Contact : Christophe Paquet, département Technique opérationnel (DTO), AFD - janvier 2010. Capital naturel et developpement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 2. Soutenabilité de la croissance néo- calédonienne : un enjeu de politiques publiques Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri, Armand Taranco Université de Versailles – Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV N° 92 Contact : Valérie Reboud, département Technique opérationnel, AFD - janvier 2010. La participation communautaire par delà l’idéalisation et la diabolisation : Protection de la biodiversité à Soufrière, Sainte-Lucie Community Participation Beyond Idealisation and Demonisation: Biodiversity Protection in Soufrière, St. Lucia Olivier Charnoz, Research Department, AFD - January 2010. © AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010 80