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Agence Française de Développement
Documento
de Trabalho
agosto
juilletde
2007
2010
93
Participação comunitária no Pantanal, Brasil:
estratégias de bloqueio e processo de aprendizado
Olivier Charnoz, departamento de pesquisa, AFD ([email protected])
Département de la Recherche
Agence Française de Développement 5 rue Roland Barthes
75012 Paris - France
Direction de la Stratégie
www.afd.fr
Département de la Recherche
Aviso
As análises e conclusões deste documento são formuladas sob a responsabilidade de seu autor. Elas não refletem neces-
sariamente o ponto de vista da AFD ou de suas instituições parceiras.
Diretor da publicação: Dov ZERAH
Diretor de redação: Robert PECCOUD
ISSN: 1958-539X
Depósito legal: agosto de 2010.
Paginação: Anne-Elizabeth COLOMBIER
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
2
Índice
1.
Resumo
5
Introdução
7
O Pantana: discursos e prioridades em conflito
11
1.2.
Preservar um bem público mundial
18
1.4.
Preeminência da « utilização econômica »
22
1.1.
1.3.
1.5.
1.6.
Breve descrição da região
A domesticação pelo desenvolvimento
11
19
Política de conservação decrescente iniciada pelo estado: leis inteligentes, mas execução insuficiente
Conclusão
23
24
2.
As várias faces da participação comunitária nas zonas úmidas
25
2.2.
A pc considerada como preservação privada: a opinião das ongs ambientais
26
2.1.
2.3.
2.4.
3.
3.1.
3.2.
3.3.
3.4.
Pc na iniciativa do estado: consultas para um planejamento estratégico
Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de pc
Conclusão : a nova proposta do prp
25
28
29
A gênese do prp: uma comunidade em crise à procura de aliados
31
ambiente
32
O prp: uma iniciativa local influenciada por peritos estrangeiros e criticada pelas ONGs
35
A crise dos criadores de animais e a vontade de conter os concorrentes e os protetores do meio
O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente
Conclusão
34
37
4.
« A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
4.2.
A delimitação estreita da « comunidade tradicional »
5.
Criação do pluralismo: as consequências imprevistas do « projeto preliminar »
47
5.2.
Alimentar o processo com « projetos atrativos »
51
4.1.
4.3.
5.1.
5.3.
5.4.
39
Os criadores de gado, protetores do meio ambiente
40
Conclusão
45
Colocar em questão a associação dos fazendeiros através de novas organizações
O impacto da ilegitimidade: uma pc em perda de intensidade e inserção
Conclusão
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3
43
47
53
55
Índice
6.
6.1.
6.2.
6.3.
O poder constitucional em ação
57
de gestão compartilhada »
59
Uma pc altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um « dispositivo
Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras
60
6.4.
Uma vã esperança de cuidado comunitário… quem vai acelerar a derrocada final
Conclusão
62
7.
O papel do capital social e o impacto na pc
65
7.2.
Individualismo e informalismo: a inaptidão institucional da maioria dos fazendeiros
67
7.1.
7.3.
Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva
64
65
7.4.
Conclusão
Da lealdade à exposição de opiniões: renovar o capital social local
69
8.
Conclusões
73
Referências bibliográficas
75
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4
72
Resumo
Nós propomos aqui examinar o papel da « participação
desorganização da administração provocou gastos
Regional do Pantanal (PRP) – uma vasta iniciativa
do PRP. Veremos, portanto, como o bloqueio exercido pela
comunitária » (PC) no projeto de criação do Parque
financeiros desnecessários, e por fim, o desmoronamento
participativa começada em 1998, na parte brasileira da
PC tomou várias direções incoerentes. Interessamo-nos
maior zona úmida do mundo. Voltaremos a falar sobre o
igualmente pelos mecanismos que conduziram a este
significado estratégico do recurso da PC para os
resultado ao mesmo tempo no conceito do projeto e na
latifundiários, tidos como líderes do projeto e sobre a
natureza do capital social local. Contudo, constataremos
estratégia de “bloqueio” de outros atores emergentes como
que a experiência do PRP suscitou um processo de
grupos de pressão para a proteção do meio ambiente e os
aprendizado no seio da comunidade que poderia realmente
novos atores econômicos. Além disso, a ausência quase
mostrar-se benéfico a médio prazo. Daí uma interrogação
total dos trabalhadores agrícolas, os peões, e dos outros
ainda válida sobre a vontade e a capacidade dos
grupos comunitários locais no processo do PRP revelou
investidores internacionais de apoiar os dispositivos
quo sociopolítico da região. O projeto do PRP foi finalmente
(frequentemente) caótico recoberto de tentativas e de erros
dia oficiosas. Os fazendeiros foram desapossados e esta
profissional cada vez mais baseadea nos “resultados”.
níveis de “bloqueio” suplementares que reforçaram o statu
participativos
recuperado por políticos locais, para defender as ordens do
ao
longo
de
seu
andamento
– uma abordagem em contradição total com sua cultura
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5
Introdução
No precedente documente de trabalho (Charnoz, 2009),
Para prosseguir no campo da pesquisa, fizemos do Parque
analisamos a mais célebre incarnação – e em todos os
Natural do Pantanal nosso segundo estudo de terreno. A
pontos de vista, a mais “vitoriosa” – do discurso sobre a
iniciativa do PRP tinha como orientação criar uma vasta
área marinha da Soufrière, em Sainte-Lucie, Martinica.
coração da América do Sul, segundo um conceito original
implementação, os impactos sociais e os efeitos do poder
participativa. O parque foi concebido pelo Pantanal – a
processos da PC em processos de controle e de bloqueios
gestão confiada a uma instituição participativa, o Instituto
“participação comunitária” na gestão do meio ambiente: a
Uma
pesquisa
aprofundada
sobre
as
origens,
entidade para a gestão do meio ambiente em pleno
a
e com uma estrutura de administração altamente
desse projeto revelou, entretanto, a transformação dos
primeira zona úmida de água doce do mundo – e sua
sociais, regidos por alianças entre grupos de interesse
do Parque do Pantanal, IPP. Com um apoio técnico e
mercado. Todavia, se se quer ter uma melhor ideia do que
fundos do Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, o PRP
(frequentemente estrangeiros à comunidade) e forças do
financeiro da França e da Universidade Europeia e dos
“é” o discurso mundial sobre a PC e do que “produz” é
foi considerado como uma associação voluntária de
pela
ambiental comum. Por outro lado, o instituto que gere – o
preciso também examinar as experiências consideradas
comunidade
profissional
como
“menos
fazendeiros comprometidos com o respeito à Carta
bem
sucedidas”, “vãs” ou literalmente “mal sucedidas”. Tais
IPP – beneficiou do apoio de uma grande escolha de
resultados não são raros na área do desenvolvimento e o
parceiros com a finalidade de reforçar “o modo de vida
fato de qualificá-los de “insucessos” não exonera em nada
tradicional” considerado como “respeitador do meio
o projeto em questão de seus outros impactos. Como
ambiente”. Ao final de alguns anos, todavia, o IPP teve
promotores concebem projetos que eles mesmos
interrupção definitiva de suas atividades no verão de 2005.
demonstrou Ferguson (1990, p. 18) num texto célebre « os
dificuldades de gestão, que aumentaram e levaram à
consideram como malogros, mas que todavia produzem
Dotado de importantes meios financeiros dados por atores
efeitos clássicos e normais e perfeitamente identificáveis ».
brasileiros e estrangeiros, o IPP tinha suscitado imensas
O fato de os processos serem ou não um sucesso segundo
esperanças. Sua derrocada deixou profundas feridas nos
seus próprios critérios oficiais pode parecer secundário em
habitantes da região assim como nos investidores.
Depois de Foucault (1979), Ferguson qualifica esses
Um trabalho de terreno foi começado durante o verão de
em que, mesmo sendo provavelmente oficialmente
estando prontas para falar abertamente. Muitos tinham a
se mostra finalmente um exercício de poder” (Ferguson,
investidores europeus para compreender “o que aconteceu
relação ao desejo de entender sua natureza profunda.
efeitos secundários de « efeitos-instrumentos » na medida
2008. Foi difícil coletar informações, as pessoas não
involuntários, eles assemelham-se a “instrumentos do que
impressão que éramos “da polícia” enviados pelos
1990, p. 255).
com o dinheiro” e não um pesquisador realmente
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7
Introdução
interessado pela natureza e o impacto das práticas da PC.
socioeconômico inferior, vivendo no Pantanal e que foram
tensões ainda eram tangíveis, processos judiciários foram
sua administração. Mostraremos assim que, como
Três anos depois do fechamento do IIP em 2005, as
essencialmente separados da concepção do PRP – e de
lançados contra pessoas legalemnte responsáveis do IPP1
aconteceu em Santa Lúcia, a PC funcionou no projeto do
PRP como um mecanismo de bloqueio contre certos
Estrutura do estudo
atores.
Nós começaremos por uma apresentação do Pantanal:
Interessamo-nos em seguida ao dogma que, querendo
veremos que a região não é um sítio fácil para as iniciativas
tornar a comunidade local mais democrática, fez da PC um
meioambientais, visto que um discurso bastante enraizado
instrumento de controle que, ao final, contribuiu para
dos brasileiros sobre sua soberania e seu desenvolvimento
distanciar do poder, no seio do dispositivo do PRP, os
nacional entra em concorrêcia com uma visão cada vez
próprios fazendeiros. Este processo começou desde o
público
oficial do parque, em 2002. A atenção foi dada à
mais partilhada no Pantanal considerado como um “bem
mundial”
necessitando
de
uma
“projeto preliminar” de quatro anos que precedeu a criação
atenção
internacional e de esforços de presenvação. Em segundo
necessidade de “pluralizar” a sociedade civil local e
lugar, voltaremos aos diferentes significados, às vezes
aumentar o número de organizações locais, primeira etapa
opostos, da PC no Pantanal ao longo do tempo – das
obrigatória para a criação de um “parque verdadeiramente
“consultas do Estado” à “consevação privada” apoiada
participativo”. Embora esta “pluralização” tenha sido
“utilização sustentável” que reconhece o papel legítimo e
em
pelas ONGs internacionais em direção de uma ideia de
começada em nome da PC, estimamos que tenha sido feita
detrimento
da
comunidade
fazendeira.
Esse
importante dos fazendeiros locais na conservação do meio
“pluralismo oficial” que se manifestou através da
inovador e o significado estratégico do PRP podem ser
associações – fragmentou sua influência e abriu caminho
ambiente. É nesta tensão de dinâmicas que o caráter
multiplicação rápida e pouco espontânea de pequenas
plenamente percebidos.
para uma recuperação política ulterior do PRP.
Examinaremos em seguida a gênese do projeto PRP e sua
A sexta parte será a ocasião de examinar o poder
estratégia intrínseca de “bloqueamento”. Os fazendeiros e
institucional em ação durante a fase crucial – a saber, a
para formar a “aliança original” do projeto diante das forças
construção jurídica tenha refletido o ideal de uma PC
o Estado local associaram-se à um investidor estrangeiro
criação do próprio PRP a partir de 2002. Mesmo se a
dos bons oradores cada vez mais potentes. Uma nova
marcada por um grau de inclusão, um alcance e uma
forma de PC, implicando produtores locais, foi instaurada
intensidade
muito
profundos,
mas
também
pela
para conter a influência crescente de uma formação de
cooperação com o Estado local, a realidade mostrou-se
antenas brasileiras.
locais começaram a intervir cada vez mais frequentemente
poderes2 conduzidos por ONGs internacionais e suas
radicalmente diferente, na medida em que alguns políticos
no seio da estrutura do IPP e realizaram nomeações
Numa quarta parte analisaremos o discurso fundador da
políticas. Do ponto de vista dos fazendeiros, no início,
iniciativa do PRP que via nos fazendeiros criadores de
devendo ocupar “cargos de pilotagem”, o grau de inclusão,
animais o osso duro da comunidade tradicional pantaneira.
o alcance e a intensidade da PC, praticamente
A maneira como as “tradições” foram definidas e a “criação
desapareceram. A administração do PRP desagregou-se,
de gado” considerada como “respeitadora do meio
ambiente” são uma boa ilustração do poder estrutural e
produtivo exercido pelos fazendeiros locais, apoiados
1 Alguns dos antigos responsáveis do IPP foram acusados de sonegação fiscal e outros
desfalques financeiros. Rumores de corrupção pura e simples e desvio de fundos a fins
pessoais circularam igualmente.
2 Este conceito será definido na seção 2.2.5.
pelas autoridades do Estado. Assim, um outro tipo de
“bloqueio apareceu” contra grupos tendo um estatuto
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8
Introdução
para seu grande desespero, levando a uma acumulação de
Veremos em seguida que o capital social reunido dos
atividades ligadas ao PRP cessaram em 2005, por causa
individualismo, informalismo, imediatismo e de unidade
implicando somas importantes.
PRP. Enfim, defenderemos a ideia de que o fracasso deste
disfunções técnicas e financeiras. Finalmente, todas as
fazendeiros se caracteriza por uma mistura complexa de
de uma falência financeira e não pagamento de impostos
que contribuiu para sua supressão e desmoronamento do
grande dispositivo participativo gerou frustrações e uma
Na última parte, veremos qual foi o impacto dos múltiplos
tomada de palavra que vieram a alimentar um processo de
processos de bloqueio identificados no projeto do PRP e
aprendizagem coletiva. A longo prazo, uma parte do
como foram facilitados pelo capital social dos habitantes.
capital social local poderia realmente renovar-se e permitir
Mostraremos em primeiro lugar que o capital social
outras ações coletivas bem refletidas. É por esta razão
transversal dos trabalhadores agrícolas é caracterizado
por
uma
relação
simbiótica
paternalista
com
que em nossa opinião é preciso prolongar o quadro
os
temporal fixado para a avaliação de um dispositivo de PC,
fazendeiros que contribuíram para impedir aqueles de
que necessita realmente de mais tempo do que se pensa
toda a possibilidade de expressão no processo do PRP.
habitualmente.
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1.
O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Após informações de ordem geral sobre o Pantanal,
emos também pelas políticas meioambientais do Brasil e
mostraremos como este se encontra doravante no centro
a propensão deste país a favorecer a utilização
biodiversidade mundial (sublinhando os direitos e
conservação. Só uma apreensão precisa deste contexto
de dois discursos opostos: um que defende a
econômica dos recusos naturais mais do que a
deveres da comunidade mundial), outro que predica o
e tensões subjacentes permite perceber os desafios do
desenvolvimento nacional (insistindo na soberania do
projeto de participação comunitária começado no
Brasil e suas necessidades econômicas). Interessar-nos-
1.1
Pantanal.
Breve descrição da região
O Pantanal é o primeiro ecosistema de água doce do
Outra característica determinante do Pantanal – as
mundo. Com uma superficie superior a 200 000km², é
precipitações sazonais e os ciclos de cheias. Além de suas
quase tão grande quanto a Inglaterra e a Escócia reunidas.
florestas e rios, a região é constituída de redes complexas
Sul (mapa1): o Brasil, a Bolívia e o Paraguai (mapa 2), mas
pelo homem. As fotos da série 2 dão uma visão geral
Três países dividem esta região no coração da América do
de pântanos, lagoas e canais de drenagem construídos
essencialmente, o Pantanal situa-se no território brasileiro
destas paisagens típicas. Com uma altitude inferior a 150
(138 000km²), na confluência de dois Estados: Mato
metros, o Pantanal é praticamente plano de maneira que
uma planície inundável (em verde no mapa 2) cercado por
de seu território são inundados. O ciclo hidrológico
bacia do alto Paraguai, irrigado por uma rede densa de rios
região5. Com o fluxo e o refluxo das enchentes, as plantas
Grosso e Mato Grosso do Sul. O Pantanal é antes de tudo
na estação das chuvas (outubro a março), até 80 por cento
um planalto sobrelevado (marrom claro). Juntos formam a
contribui igualmente para a importante bioprodutividade da
potentes religados uns aos outros (diagrama 1)
aquáticas
e
os
prados
baixos
desenvolvem-se
Daí esta mistura única de formas de vida. A posição central
explica a quantidade de redes tróficas e a abundância da
abrigo relativamente seguro para a espécies dos biomas3
fato os ecosistemas mais “bioprodutivos” do planeta (por
rapidamente: essa renovação das matérias orgânicas
fauna. As zonas úmidas tropicais como o Pantanal, são de
do Pantanal no continente constitui um cruzamento e um
circunvizinhos, em especial o cerrado, o chaco, a
unidade de superfície), com florestas pluviais, campos de
Amazônia e a mata atlântica4. Estes meios abrigam uma
algas marinhas e recifes de coral.
biodiversidade surpreendente, com 2000 espécies de
3 Os biomas são vastas unidades ecológicas de fisionomia heterogênea.
4 O cerrado é uma savana arborizada do planalto central do Brasil. Ela estende-se até a
planície inundável a partir dos planaltos oriental e setentrional e abriga as principais espécies
vegetais presentes no Pantanal. A vegetação típica do chaco, uma floresta árida, é originária
das fronteiras ocidentais do Pantanal na Bolívia e no Paraguai. As espécies das florestas
amazônica e atlântica juntam-se respectivamente ao Pantanal a partir dos vales fluviais do
Norte e do Sul e limitam-se no essencial às florestas densas ao longo das margens.
5 A bioprodutividade define-se como a quantidade de matéria orgânica produzida pelos
plantas, mais de 200 espécies de peixes e 80 espécies de
mamíferos, todas sãs apesar de se tornarem raros ou em
perigo nas regiões vizinhas (como a lontra gigante e a onça
pintada). As fotos da série 1 ilustram bem a diversidade
desta fauna visível a olho nu.
organismos vivos por hectare por ano.
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11
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Mapa 1.
O Pantanal brasileiro, no coração da América do Sul
Source: ANA et al
Fonte: ANA e al. (2005), p. 3.
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12
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Mapa 2.
O Pantanal: uma planície inundável cercada de altos planaltos
fonte: ANA e al. (2005), pg. 13.
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13
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Diagrama 1. A coluna vertebral do Pantanal: o rio Paraguai e seus afluentes
– rede hidrográfica da bacia do Alto Paraguai no Brasil–
fonte: ANA e al. (2005), pg. 35.
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Série de fotos 1.
Exemplos da fauna do Pantanal, visível a olho nu
fonte: fotos do autor.
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Série de fotos 2.
paisagens típicas durante a estação das chuvas
fonte: fotos do autor. Acima à esquerda: Earthwatch.
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Série de fotos 3.
Criação de gado no Pantanal e peões no trabalho
fonte: fotos do autor.
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17
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
1.2
Preservar um bem público mundial
Para a comunidade internacional, o Pantanal é uma região
As zonas úmidas representam um papel-chave na
e à estabilidade do clima. Este discurso é defendido por
o Pantanal baseia-se imensamente neste fato. O Pantanal
essencial para o planeta por sua contibuição à biodiversidade
conservação da biodiversidade mundial e o discurso sobre
diversas convenções e organizações internacionais, mas
é, portanto definido como um “ponto importante da
para a natureza (WWF, World Wildlife Fund), Conservation
– incluindo as principais espécies em perigo, como o
também pelas ONGs ativas no Brasil, como o fundo mundial
biodiversidade” acolhendo milhares de espécies diferentes
International (CI) ou The Nature Conservancy (TNC); ONGs
tamanduá, o tatu, a capivara, a anta, a onça pintada, o
brasileiras também o adotaram no Estado de Mato Grosso do
macaco-prego, o falcão. O Pantanal é também conhecido
Sul, para tentar chamar a atenção dos atores federais e
por oferecer um habitat vital para a rota migratória de vários
internacionais. Uma quantidade de relatórios, artigos, notas
peixes e pássaros que passam o verão na América do
de informação, comunicados de imprensa e sites Internet são
Norte. A biodiversidade do Pantanal estava no centro de
alimentados por ONGs meioambientalistas, grupos de estudo
praticamente todas as entrevistas com membros de ONGs.
igualmente bastante pregnante durante as entrevistas com
escala planetária” por sua especificidade biológica, “frágil”
e pesquisadores convertidos a esta visão das coisas que era
O WWF definiu oficialmente a região como “notável na
membros de ONGs.
em termos de conservação e “altamente prioritária” do
ponto de vista da preservação (Olson e AL., 1998) – uma
A visão meioambientalista mundial sobre o Pantanal está
avaliação frequentemente retomada. O Patanal é
baseada numa categoria definida num plano internacional
igualmente considerado por vários defensores do meio
– a da “zona úmida”. Um tratado para a conservação e uma
ambiente como um bem público mundial importante por
utilização sustentável destas zonas foi assinado em 1971
sua contribuição para a estabilidade do clima. As zonas
na cidade iraniana de Ramsar. Mas, a “convenção de
úmidas são de fato grandes reservatórios de carbono, que
Ramsar” só foi ratificada pelo Brasil em 1993, depois da
fixam cerca de 15% do carbono do planeta (Patterson,
Conferência Mundial sobre a terra organizada um ano
1999). Graças à fotosítese, o Pantanal contribui para
antes no Rio de Janeiro. A Unesco fez do Pantanal um
capturar os gases do efeito estufa na atmosfera e liberar
“sítio Ramsar” antes de declarar em 2000, “reserva mundial
oxigênio.
consideram o Pantanal como uma zona úmida6 no plano
Todos os comentários sublinham a ideia de que a
da biosfera” e “patrimônio mundial”. Outras convenções
internacional, incluindo a Convenção do Patrimônio
humanidade inteira tem um desafio direto na região, o
Espécies Migratórias7 (1979), a Convenção sobre a
noção de “apropriação mundial” de “responsabilidade”
Mundial da Unesco (1972), a Convenção sobre as
direito de vê-la preservada e o dever de protegê-la. Daí a
Diversidade Biológica (1992) ou a Convenção sobre a
defendida por vários de nosssos interlocutores. Para um
Mudança Climática (1992). Todos esses textos sublinham a
representante de uma ONG local:
importância do valor não comercial de zonas úmidas como
o Pantanal, na qualidade de ecosistemas. Eles contribuem
“O Brasil não deveria ser o único a poder gerir esta região,
também com sua presença nas redes de financiamento
sobretudo quando se sabe o que ele faz lá.”
internacional, ajuda pública e de sensibilização.
Como o afirma o membro de uma ONG local:
6 A Convenção de Ramsar define as « zonas úmidas » como extensões de pântanos, de
lagoas no cume de uma montanha, de turfeira ou águas naturais e artificiais, permanentes ou
temporárias, onde a água é estagnante, doce, salobra ou salgada, compreendendo aí as
extensões de água marinha cuja profundidade na maré baixa não vai além de seis metros
(artigo1).
7 Ou « Convençao de Bonn ».
“No Brasil, a floresta pluvial amazônica é como uma árvore
que esconde a floresta. O Pantanal por mais que esteja
atrás, tem praticamente a mesma importância”.
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18
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
A noção de “apropriação mundial” defende uma forma de
“Um dia o mundo compreenderá o que está perdendo, mas
adotada
Pantanal.”
conservação mais rigorosa – uma opção estratégica
há
muito
tempo
por
várias
ONGs
será tarde demais [...] as lágrimas não ressuscitarão o
e
especialmente a CI. As ONGs sentem fortemente a
necessidade de agir rapidamente. Para este biólogo
Mas, este ponto de vista suscita o ceticismo de outros
voluntário:
1.3
atores especialmente as autoridades federais brasileiras.
A domesticação através do desenvolvimento
As entrevistas realizadas nos ministérios brasileiros,
americano teria previsto “internacionalizar” a Amazônia.
mal estar profundo nos altos responsáveis dessas
transformada
instituições públicas e centros de pesquisa revelaram um
Mapas apresentamdo o Brasil “amputado” da Amazônia,
em
uma
região
sob
o
“mandato
instituições em relação ao discurso sobre o “Pantanal, bem
internacional”, circularam na Internet. Tudo isso poderia ter
conservação”. Se a análise meioambiental da região pelas
brasileiro
anos, a maior parte dos observadores nota – e os
projeto dando assim razão aos que consideravam os
público mundial, apelando para uma ação internacional de
ficado num estágio de farça, se alguns militares do exército
autoridades federais tem melhorado nos últimos quinze
não
tivessem
comentado
estes
mapas
publicamente, afirmando que o Brasil se oporia a esse
funcionários questionados confirmam-no – que, para o
documentos como autênticos.
governo brasileiro, o Pantanal é (como a floresta
amazônica) uma problemática interna que não merece
Essas tensões ainda ressurgiram em 2007, quando um
comunidade internacional. Esse sentimento acompanha
público mundial” com “apropriação internacional” então o
uma implicação maior ou até mesmo importante da
ministro afirmou que se a Amazônia se tornasse “bem
uma opinião amplamente partilhada pelos responsáveis
próprio arsenal nuclear dos Estados Unidos devia também
públicos segundo a qual o desenvolvimento econômico é a
se tornar “uma propriedade internacional”, visto que os
meioambiental é no melhor dos casos, marginal.
humanidade
A sensibilidade brasileira quanto a sua “soberania
A rejeição ao discurso sobre o “bem público mundial” e
centro das preocupações internacionais. Uma grande
aparece também no caso do Pantanal. Os altos
primeira das prioridades do país, toda consideração
desafios são no mínimo tão importantes para a
ambiental”, data da época em que a Amazônia estava no
suas implicações quanto à ingerência internacional
quantidade de ONGs, frequentemente financiadas por
funcionários que encontramos foram claros:
governos estrangeiros, invadiram uma região ainda mal
controlada pelas autoridades federais e locais, dada sua
- Todas essas ONGs que pretendem nos ensinar a
- irritou as autoridades brasileiras. Estas, doravante não
Povo brasileiro é soberano e dotado de um Governo
superfície e morfologia. Este impulso – e é um eufemismo
administrar [o Pantanal] visivelmente esqueceram que o
perdem mais uma ocasião para lembrar que só os
democrático.
governos federais e locais brasileiros têm o direito de
decidir o que quer que seja na região. A imprensa propaga
- O Pantanal é um tesouro brasileiro. Confiem em nós! Nós
regularmente as tensões entre autoridades nacionais e
fazemos questão.
ONGs estrageiras, como pudemos constatar em nosso
trabalho de terreno. Formas de “paranóia pública” e de
- As ações internacionais no Pantanal são bem vindas,
rumores têm alimentado a ideia de que o governo
país se encontram.
politização apareceram também. Assim desde 2006,
contanto que as ONGs e outros não esqueçam em que
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19
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Todavia, como para a Amazônia, a questão não é
Enquanto as autoridades federais e locais têm, há
debate opõe também desenvolvimento econômico e
desnvolvimento econômico e, assim “domesticar o
interessado as autoridades federais que produziram
ambiente e outros grupos não cessam de denunciar o
quarenta anos, sublinhado a necessidade de garantir o
unicamente a da soberania diante da internacionalização: o
Pantanal” em benefício da nação, os defensores do meio
conservação. Desde meados dos anos 70, o Panatanal tem
impacto
quantidades de planos e projetos para fazer da região um
das
atividades
humanas.
Um
discurso
“motor do desenvolvimento”. Vários grandes programas
conflituoso – sublinhando numerosas ameaças exercidas
o Desenvolvimento do Pantanal (CIDEPAN), o Programa
nos argumentos partilhados por ONGs, vários peritos do
pelo homem no Pantanal – apareceu, portanto, apoiado
foram assim lançados como o Cosórcio Inter-municipal para
para o Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN),
meio ambiente, certas organizações internacionais
(POLOCENTRO), Programa Nacional para a Utilização do
Desenvolvimento [PNUD] ou o Programa das Nações
Programa
para
o
Desenvolvimento
dos
(como o Programa das Nações Unidas para o
Cerrados
álcool (PROALCOOL)8, Programa de Desenvolvimento de
Unidas para o Meio Ambiente [PNUMA] e membros do
Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto Paraguai
diagnóstico preocupante.
Estado de Mato Grosso (PRODEAGRO), o e o Programa
Hoje, contudo, políticos federais parecem mais sensíveis
subprograma batizado “Plano de Conservação da Bacia do
recentes acordos feitos com a França sobre a proteção da
Grande
Dourados
(PRODEGRAN),
Estudo
do
Governo brasileiro. O quadro 1 propõe uma síntese deste
(EDIBAP), Programa de Desenvolvimento Agroambiental do
Nacional para o Meio Ambiente (PNMA) com seu
ao ponto de vista do bem público mundial, como mostra os
Alto Paraguai” (PCBAP) (Junk e al., 2009). Alguns
biodiversidade. Depois de alguns anos, as autoridades
relançaram o complexo agroindustrial – criação de gado,
federais têm prestado mais atenção às preocupações da
soja e cana-de-açúcar especialmente no planalto que rodeia
comunidade internacional. Além disso, o número crescente
o Pantanal com consequências ecológicas visíveis para
de atores internacionais – como a Agência Francesa de
este. Isto provocou atividades de sensibilização e às vezes
Desenvolvimento (AFD) – destaca há muito tempo a
– como a via fluvial Paraguai-paraná (Paraguai-Paraná
desenvolvimento e conservação, um processo racional que
campanhas internacionais de peso contra projetos precisos
necessidade
hidrovia)9, projeto suspenso, mas não abandonado.
e
a
possibilidade
de
converger
facilitou as discussões com o Brasil.
Quadro 1. As ameaças humanas no Pantanal:
aviso sobre as preocupações
Aqui tentamos sintetizar as grandes preocupações suscitadas pelo impacto ambiental do homem no Pantanal (Earthwatch, 2004 ; Junk et
de Cunha, 2005).
O Pantanal é um ecosistema frágil que já sofre grandes estresses naturais, como os períodos de enchentes e secas bastante perceptíveis,
fracos níveis de nutrimento e incêndios. As ameaças antropogênicas não são unicamente mundiais – como a mudança climática. Elas são
também locais, com o crescimento econômico da região e os efeitos secundários da agricultura intensiva praticada na bacia vertente.
Tradicionalmente, os atores da região são criadores, trabalhadores agrícolas, comunidades indígenas e agências federais. Antes dos anos
70, seu impacto no Pantanal era limitado, visto que não tinha meios de provocar grandes mudanças no meio ambiente (modificação do ciclo
das enchentes pela construção de barragens ou da qualidade das água pela acumulação de sedimentos). Contudo, com o desenvolvimento
8 O programa PROALCOOL visava encorajar a utilização do etanol no lugar da gasolina e
aumentar a produção de etanol para as indústrias.
9 Cinco países estão na origem deste projeto de via fluvial, para fazer do Paraguai e do
Paraná um canal para a marinha mercante.
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20
1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
econômico, novas atividades apareceram, paralelas à industrialização – agricultura, práticas modernas de criação de animais, indústria do
transporte, produção de energia hidrelétrica e extração. A ocupação humana intensificou-se vigorosamente nos Estados do Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul, que partilham a parte brasileira do Pantanal. Paralelamente, vários centros urbanos se desenvolveram rapidamente e
têm um impacto na zona através do aumento das necessidades de transporte e a poluição das águas.
Mas, a qualidade dos ciclos da água do Pantanal não sofre somente com esta urbanização. A maioria dos rios que drena a região tem suas
fontes nos altos planaltos circunvizinhos. Ora, nos anos 70 o Governo brasileiro subvencionou nestas regiões – como no restante do país,
incluindo a Amazônia – atividades de agricultura intensiva. Em várias regiões vizinhas do Pantanal, importantes partes da floresta de
cerrados originais foram destruídas para desenvolver uma agricultura industrial e produzir soja, cana-de-açúcar, trigo, milho e algodão.
Savanas foram transformadas em campos de milhões de quilômetros quadrados. Segundo o relatório da CI de 2006, (Barcellos Harris,
2006), o pasto e a agricultura, compreendendo a transformação de pastos indígenas em terras agrícolas, destruíram praticamente 45% da
vegetação original da bacia do rio Paraguai onde se encontra o Pantanal. Em 2004, cerca de 44% da vegetação original da zona tinha sido
modificada, certos distritos tendo perdido mais 90% de sua cobertura natural.
Em consequência, várias margens foram desmatadas, provocando um aumento da sedimetação na vazante. Como os solos da região dos
cerrados são em essencial relativamente pobres e, que é preciso garantir a fertilidade ao mesmo tempo lutando contra os parasitas, as
populações recorreram massivamente aos fungicidas, pesticidas e outros adubos. As práticas de gestão da água, bastante rudimentares,
provocaram grandes regueiras de produtos agroquímicos levando à erosão dos solos o que prejudica os agricultores do Pantanal. Os
esquemas hidrológicos locais foram profundamente atingidos, como no caso do rio São Lourenço. A navegação, as migrações de peixes e
as atividades tradicionais de criação de animais tornaram-se difíceis. O pior exemplo é o da bacia do Rio Taquari, onde importantes
segmentos do canal se deterioraram ou mudaram, provocando a inundação de 11 000 km² de terras a pastar e uma brusca retirada dos
estoques de peixes. A complexidade do canal e do habitat encontra-se consideravelmente reduzida, bloqueando as rotas migratórias dos
peixes, modificando as interações entre perímetros de inundação e canal, levando ao desaparecimento de espécies.
Mas, as atividades extrativistas e a poluição pelo mercúrio suscitam outras preocupações. Desde os anos 80, a extração do ouro nas baixas
terras em torno da cidade de Poconé (mapa2) tem conduzido a poluição pelo mercúrio. Como as jazidas superficiais estão doravante
esgotadas, a atividade tem diminuído nesses últimos anos. Apesar disso, as atividades extrativistas ainda podem ter um impacto importante
no Pantanal. A extração de ferro, de manganês e de diamantes na bacia vertente implica a destruição da vegetação e do habitat, a erosão
do solo e a sedimentação dos cursos da água, sem falar da modificação da topografia do leito dos rios e a poluição das águas. Em algumas
partes do Pantanal, a extração do ouro representa um sério risco para o meio ambiente e a saúde humana. Os garimpeiros utilizam grandes
quantidades de mercúrio para misturar as partículas de ouro contidas no solo e na lama. Até o momento, vários casos de nível de mercúrio
claramente mais elevado do que o normal no peixes e pássaros locais, particularmento no Norte do Pantanal, são revelados.
A própria produção de eletricidade tem um impacto no meio ambiente: em 2008 enumerava-se nove centrais hidrelétricas em funcionamento
na bacia vertente do Pantanal, para uma capacidade de 323MW. Uma nova central acaba de ser construída no Manso (220MW), um dos
principais afluentes do rio Cuiabá, no âmbito de uma iniciativa do Estado federal e dos Estados brasileiros. As mudanças hidrológicas
trazidas pela construção de um importante reservatório no Manso (387km²) começam a repercutir na fauna e na flora como também nos
pescadores e criadores do Pantanal. No final, 20 novos reservatórios poderiam ser construídos, para uma capacidade total de 1000MW. O
efeito acumulado desses reservatórios deveriam profundamente modificar o regime hidrológico da região. (Girard, 2002).
Vários grandes projetos de infraestruturas de transporte começaram, para encaminhar mais facilemnte os produtos locais em direção dos
grandes centros metropolitanos e aeroportos . Citamos em especial três projetos de via fluvial: vias navegáveis Araguaia-Tocantins e
Paraguai-Paraná e a ferrovia Ferronorte. Os industriais da agricultura e da extração fazem pressão, fora do Pantanal, para canalisar o rio
Paraguai e garantir assim, um transporte mais barato da soja e minerais em direção do oceano atlântico. O projeto de via fluvial Paraguai-
Paraná que envolve o Brasil, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Argentina, é particularmente preocupante. Trata-se de remodelar e dragar o Alto
Paraguai a fim de aumentar a capacidade do tráfego. Os defensores do meio ambiente afirmam que este projeto modificará definitivamente
as estruturas de escoamento na região e drenará cerca de 50% das zonas húmida, provocando a destruição das redes tróficas mais
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
produtivas do Pantanal. O projeto original perdeu seus financiamentos e foi abandonado depois das conclusões de um estudo de impacto
no meio ambiente e de uma campanha eficaz de sensibilização pelas Coalizão Rios Vivos, o WWF, a CI e outras ONGs. Apesar disso, a
hidrovia continua na ordem do dia e uma série de projetos distintos desse tipo, em pequena escala, começaram ao longo do rio Paraguai
superior.
1.4
Predominância da « utilização econômica »
As políticas ambientalistas do Brasil são estruturadas pelo
de 300 apareceram em 2008), cujos 70% são definidos
debate e uma tensão permanentes entre a « rigorosa
como “áreas de proteção ambiental” (APA), uma categoria
naturais – do qual o sistema jurídico se propaga. O primeiro
ONGs que acham sua designação “enganadora”.
conservação » e a « utilização sustentável » dos recusrsos
instaurada pelo SNUC e frequentemente criticada pelas
parque protegido do Brasil foi criado em 1937, mas só a
partir de meados dos anos 80 é que o número de áreas
As
bastante variadas. Para organizar uma paisagem jurídica
utilização das terras (...). Lá as atividades humanas são
um sistema unificado para parques nacionais, estaduais e
pequenos espaços reservados a uma estrita conservação
(Sistema Nacional de Unidades de Conservação). O SNUC
que os pequenos sítios consagrados a uma estrita
protegidas aumentou sensivelmente sob formas jurídicas
APAs
não
são
realmente
áreas
protegidas;
assemelham-se mais a um mecanismo de gestão de
cada vez mais complexa e hamonizar as legislações locais,
limitadas pelos planos ou sistemas de zoneamento, com
municipais foi instaurado em 2000 pela lei, com o SNUC
(...). Mas isto traz pouco valor adicionado no terreno, visto
regulamenta e define as categorias de áreas protegidas em
conservação são em geral lugares que, de toda sorte, não
diferentes níveis de administração brasileira e organiza-os
poderiam ter sido explorados.
em dois grandes conjuntos:
Por que a estratégia federal de proteção do meio ambiente
1. As « áreas estritamente protegidas »: a preservação da
está mais consagrada à “conservação total” do que as
biodiversidade é o objetivo principal e as atividades
abordagens adotadas do ponto de vista dos Estados? Uma
humanas são consideravelmente limitadas
das razões propostas por vários de nossos interlocutores
está ligada a que os Estados sejam mais dependentes dos
2. As « áreas de utilização sustentável »: a proteção da
atores econômicos da região e menos sensíveis às
biodiversidade continua a ser importante mas, não é o
grandes ONGs internacionais. Além disso, para pregar a
único objetivo, abrindo caminho para diferentes
conservação, essas ONGs têm tedência a fazer lobby junto
atividades econômicas10.
às autoridades nacionais e não diretamente às autoridades
locais, estimando que a proteção nacional ofereça mais
Cada vez mais, os níveis locais de gestão do meio
continuidade do que as legislações locais.
ambiente se tornam importantes, a medida que a influência
10 A primeira categoria cobre as categorias tipos I a III definidas pela União Internacional para
dos Estados aumenta. Enquanto os parques nacionais
a Conservação da Natureza (UICN), as mais estritas no que diz respeito à interdição de
atividade humana. No Brasil, elas compreendem os “parques naturais”, as “reservas
biológicas”, os “munumentos naturais” e os “abrigos para a fauna. Os “parques naturais” são
as áreas protegidas mais importantes que autorizam atividades de educação, ,lazer e de
pesquisa científica. As “reservas biológicas” são em geral, menos vastas e fechadas ao
público, salvo para as atividades de educação para o meio ambiente. As “estações
ecológicas” favorecem a pesquisa.
A segunda categoria de áreas protegidas para uma utilização durável autoriza diferentes
graus de atividade humana. Ela compreende as categorias IV a V da UICN. Menos estrita
quanto às atividades humanas possíveis, ele compreende as “florestas nacionais”, as “áreas
de proteção ambiental” (APA), as “áreas apresentando um interesse ecológico”, as “reservas
de extração”, as “reservas para a fauna”, as reservas para o desenvolvimento durável” e as
“reservas particulares do Patrimônio Nacional” (RPPN).
11 Em praticamente 300 áreas protegidas federais, 58% são destinadas a uma utilização
protegidos eram predominantes nos anos 80, hoje somente
52% das áreas protegidas do país ainda o são. O Governo
federal utiliza de maneira mais equilibrada o SNUC no que
considera o dilema “conservação/utilização sustentável”11.
De seu lado, os Estados locais preocupam-se bem menos
com a conservação, ao ponto de hoje só gerirem 17% dos
parques estritamente protegidos. Ao contrário, criaram
parques protegidos para uma utilização sustentável (cerca
durável e 42% a uma estrita conservação.
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Nem todas as regiões brasileiras manifestam a mesma
duas áreas só correspondem a 0,6% da superficie total do
tensão entre “conservação e utilização econômica”12. No
pantanal, o restante pertencendo aos criadores de animais
Pantanal, a estrita conservação aplica-se a 100% das
e a outros atores econômicos. É por esta razão que
áreas protegidas, mas esse número impressionante traduz
durante muito tempo menos de 1% da maior zona úmida
simplesmente a ausência quase total de política de
do mundo foi rigorosamente protegida. Os Estados de
conservação na região. Até 1999, só duas pequenas áreas
Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, que se partilham o
beneficiavam de uma proteção oficial: o Parque Natural
Pantanal são de fato profundamente influenciados pela
Regional do Pantanal, que cobre cerca de 1450 km² de
ideologia do desenvolvimento sem limite. Eram pouco
pouco mais de 111 km². Situadas no Mato Grosso, estas
da sociedade civil começassem a pressionar.
zonas úmidas e a Estação Ecológica de Taim, que cobre
sensíveis às preocupações ambientais até que membros
1.5 Política de conservação descendente iniciada pelo Estado: leis inteligentes, mas
uma execução insuficiente
Além das áreas protegidas, a política ambiental brasileira
Teoricamente, a regulamentação descendente que se
caracteriza-se por uma massa de “texto de leis excelentes
aplica ao Pantanal é portanto pesada. Na prática a situação
no papel” (dito por vários funcionários), mas com pouco
é outra. Para começar, a autoridade regulamentar do
impacto na prática. O Pantanal não é uma exceção como
Pantanal está geograficamente rompida entre os Estados
explica Wade (1999) e como o foi confirmado por várias
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Do ponto de vista
pessoas questionadas na região e na capital federal.
da jurisdição, está também dividida entre as agências
O artigo 225 da Constituição brasileira dispõe que o
nacionais do meio ambiente e os governos dos Estados.
encarregadas do meio ambiente nestes Estados, agências
Pantanal é uma das áreas naturais constituindo o
Durante anos, o Pantanal sofreu com a incapacidade
“patrimônio nacional”. Com mais de 120 leis em vigor sobre
relativa das instituições com mandatos e bases diferentes
o meio ambiente, o Pantanal é em teoria uma área bem
para elaborar uma abordagem integrada – um ponto
protegida e bem controlada. As regras de preservação
frequentemente evocado por nossos interlocutores oficiais
impacto ambiental, exames e comentários públicos, a
autoridades também estão enfraquecidades pelo conjunto
compreendem as disposições exigindo avaliações de
e organizações da sociedade civil. Em dois Estados, as
proteção da fauna, controles sobre os afluentes e adubos,
de derrogações e lacunas regulamentares, revelando um
etc. A lei federal exige dos fazendeiros que preservem a
“fenômeno de atribuição” da regulamentção ambiental
vegetação nativa ao longo das represas, através das
absolutamente nefasto.
deixar certa porcentagem de suas propriedades em seu
Evidentemente, não faltam estruturas nacionais de
famosas “reservas permanentes”. Eles também devem
estado natural, (a famosa “reserva legal”) só permitindo
realização no país e nos Estados. Desde 2000, a agência
regulamentado. Mas é o Estado local que deve determinar
ambiente é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de
nesta uma atividade de pesquisa ou ecoturismo
pública encarregada da aplicação da legislação ao meio
Recusos Naturais Renováveis (IBAMA)13, que depende do
a porcentagem atribuída à “reserva legal”. Em Mato Grosso
do Sul, o Estado impõe a proteção de 20% das terras,
enquanto em Mato Grosso (onde se encontra a metade do
12 As políticas visando uma utilização durável concernem mais as áreas na floresta Atlântica
Pantanal), a proteção aplica-se a 35% das terras. Isto pode
(74%), a Caatinga (72%) e as zonas costeiras e marítimas (74%). Na Amazônia, o equilíbrio
é praticamente perfeito entre a estrita proteção e a utilização durável (51%). Estas
porcentagens são em função das áreas e não de seu tamanho.
13 Até 1989, os parques e reservas federais eram criados pelo Instituto Brasileiro de
parecer importante, mas para comparação, os fazendeiros
da Amazônia têm a obrigação de proteger até 80% de suas
Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Secretaria Especial para o Meio Ambiente (SEMA). Em
1989, a SEMA e o IBDF fusionaram para a criação do IBAMA.
terras.
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1. O Pantanal: discursos e prioridades em conflito
Ministério do Meio Ambiente. O IBAMA é também
região a controlar. O Parque natural do Pantanal em Mato
brasileiro para a conservação (SNUC). Paralelamente, a
difícil acesso por falta de infraestruturas e meios de
responsável pelo controle da implementação do arsenal
grosso, por, exemplo, cobre 138 000 hectares, mas é de
nível estadual, toda a gama de atores institucionais
funcionamento, de maneira que é impossível exercer uma
controla a aplicação das legislações federais e locais. Em
vigilância completa e constante. No que diz respeito às
Mato Grosso do Sul, por exemplo, a gestão do meio
legislações ambientais nas fazendas, um sentimento
ambiente cabe ao SEMA (Secretaria do Estado para o Meio
compartilhado parece preponderar nos ministérios como
Ambiente, criada em 1991), e ao IMAP, Instituto do Meio
nas agências:
Uma política florestal de Estado deve igualmente estar
Por mais que tenhamos feito, os fazendeiros do Pantanal
Ambiente do Pantanal, seu “braço armado” no Pantanal.
incubida
de
vigiar
os
caçadores
clandestinos
continuam senhores de suas terras.
especialmente através da fiscalização dos veículos.
Além disso, nos cerrados, por exemplo, o Estado encoraja
Potencialmente, esses dispositivos deveriam garantir uma
uma exploração intensiva das terras ao ponto de as regras
inoperantes, por falta de uma vontade política firme e
Sem falar da corrupção dos inspetores encarregados do
boa proteção dos espaços naturais do Pantanal, mas são
ralativas às reservas permanentes e legais serem violadas.
meios financeiros adaptados que, em 2008, faltaram. Os
meio ambiente – um fenômeno que, segundo vários de
funcionários encontrados em Brasília deram-nos uma ideia
nossos interlocutores em Mato Grosso do Sul, parece
bastante crua do que acontece no terreno. O mínimo que
bastante frequente. É, portanto neste contexto de fraca
podemos dizer é que a aplicação no Pantanal se apresenta
proteção e respeito à lei que as ONGs tentaram, no início
como um quebra-cabeça, dada a falta de meios humanos
dos anos 90, defender a causa de uma melhor proteção do
e financeiros, que náo condizem com a imensidão da
1.6
Pantanal.
Conclusão
A novidade e a importância do Parque Regional do
participar conjuntamente do desenvolvimento interno,
que opuseram durante anos atores e visões diferentes da
tendem a reinvindicar o Pantanal para a humanidade
Pantanal só são concebíveis se conhecermos os debates
outros – como as ONGs de defesa do meio ambiente –
gestão ambiental no Brasil.
inteira. No terreno, estas tensões são traduzidas por leis
O primeiro desses debates, destacado aqui, diz respeito
e por uma pequena parte da superfície protegida (menos
milagrosamente protetoras – mas que não são aplicadas –
aos direitos e deveres de cada um quanto ao destino do
de 3% beneficiando de uma estrita conservação)
Pantanal. Como outras maravilhas do mundo da mesma
importância, o Pantanal é o centro de discursos
O segundo debate de fundo é abordado na seção seguinte.
consideram antes de tudo como um bem nacional que deve
procura ver que, na prática, e graças a isso obtém poder.
concorrentes. Enquanto as autoridades nacionais o
Está ligado ao significado da “participação comunitária” e
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24
2.
As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas
É, portanto, neste pano de fundo de conflito entre os
integrando os produtores locais: esta nova geração de
campeões do desenvolvimento soberano e os partidários da
programas de PC compreende uma partilha crescente do
progressivamente no Pantanal. Analisaremos a evolução do
sempre no âmbito definido pelas ONGs. Somente
conservação que o “discurso participativo” apareceu
poder entre as principais ONGs e os produtores locais, mas
discurso na PC da região e a maneira como mudou o
progressivamente e recentemente o conceito de PC serviu
da PC, tomou, em primeiro lugar, uma forma de consulta das
produtores. Enquanto o discurso mundial sobre a
equilíbrio de poderes para sua gestão ambiental. O discurso
às ONGs para destacar a necessidade de aproximar-se dos
comunidades, organizadas pela iniciativa do Estado no
participação tomou esta direção há muito tempo, só chegou
âmbito de vastos exercícios de planejamento sem quase
lentamente aos atores do Pantanal. Um novo equilíbrio de
Ele em seguida encarnou os esforços privados da estrita
Natural Regional do Pantanal”. Este conceito jurídico,
efeitos práticos, mas que dava ao Estado o primeiro papel.
poderes acabou, contudo, por emergir como o “Parque
conservação, oferecendo às ONGs um papel-chave de
importado da França, contribuiu amplamente para dar aos
apoio e orientação das iniciativas privadas. A PC evoluiu
produtores locais um poder crescente de decisão e, em
mais uma vez para tomar lentamente a forma de uma
consequência, suscitar uma profunda desconfiança na maior
abordagem mais colaborativa da gestão do meio ambiente
2.1
parte dos defensores do meio ambiente.
PC através da iniciativa do Estado: consultas para um planejamento estratégico
Ironicamente, a ineficácia da “conservação” do Pantanal
destes exercícios devia dar lugar a outra coisa que a
mas com aplicação flutuante”) não impediu as práticas bem
maioria dos interlocutores não “levaram a lugar nenhum”.
organizada pelo Estado (baseada em “leis exemplares,
grandes relatórios e recomendações, que segundo a
estabelecidas de “PC consultativa” na região, no âmbito de
vastos
exercícios
regulares
de
planejamento
Desde 1978 o Governo brasileiro, a Organizaçao dos
do
Estados Americanos (OEA) e o PNUD têm organizado um
desenvolvimento. Assim, o Pantanal situa-se na “avant-
processo de planejamento de três anos, batizado EDIBAP
garde” não somente do planejamento descendente do
(Estudo de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto
Brasil, mas também no planejamento da PC desde os
Paraguai). Uma série de propostas para o desenvolvimento
Pantanal é de fato conhecido pela série de processos de
nos princípios da conservação do meio ambiente, do
primeiros anos de aparecimento deste discurso. O
econômico da região do Pantanal foi formulada, baseada
“planejamento estratégico” compreendendo um número
equilíbrio ecológico e da utilização racional das terras. A
garde. De certa maneira, a região foi um “terreno de jogo”
especificas para remediar as dificuldades sociais e avaliar
incrível de atores nos mecanismos consultivos de avant-
estratégia
que
provinha
disto
preconizava
ações
extraordinário para o discurso sobre a PC – passando
o impacto dos diferentes projetos de desenvolvimento
desenvolvimento às práticas consultivas. Porém, nenhum
no Brasil. Ela previa especialmente medidas para o
rapidamente de uma abordagem descendente do
considerados no regime hidrológico da bacia do Paraguai
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25
2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas
controle das enchentes, com a construção de reservatórios
em
diferentes
navegabilidade
pontos,
sem
que
modificar
deviam
em
melhorar
demasiado
manifestações públicas. Este trabalho, que mobilizou mais
a
de 4 500 participantes, conduziu a publicação de relatório
o
de 300 páginas que servirá (se tudo estiver bem) para “as
comportamento das águas a jusante. Esse trabalho
necessidades das autoridades públicas, decididores e
não teve o resultado esperado.
sustentável do Pantanal...
O que leva o Governo federal a lançar em 1991, um vasto
Mas as coisas não param por aí. Em 2007, a UE financia
Conservação da Bacia do alto Paraguai” (PCBAP).
Pantanal e seus desafios, fundado em contribuições
este plano estava baseado num método de zoneamento
interessadas. Esse projeto batizado Instituições de
sítio em matéria de conservação, reabilitação e proteção das
públicas, uma série de trabalhos científicos, uma
de alerta às inundações em tempo real, a fim de prevenir o
de pesquisa com o objetivo de apoiar as instituições
enorme, mensageiro de imensas esperanças, finalmente
projeto
participativo
para
preparar
um
“Plano
outras pessoas interessadas pelo desenvolvimento
de
um diagnóstico participativo de grande importância sobre o
Conduzido pelo Governo brasileiro e pelo Banco Mundial,
científicas importantes e consultas das partes diretamente
ambiental e devia definir diretivas gerais e espécificas no
Pesquisa para o Pantanal deu lugar a dezenas de reuniões
terras deterioradas. Previa a implementação de um sistema
quantidade de relatórios que deviam definir “um programa
impacto negativo no meio urbano e rural. Ainda assim
políticas, quadros jurídicos e ação social” no Pantanal. Os
praticamente nenhuma das recomendações teve efeitos.
resultados do projeto foram apresentados no Brasil, no
Em 1996, o Governo brasileiro solicita ajuda técnica e
habitantes e as organizações do Pantanal ainda estão à
Paraguai e na Comissao Europeia em Bruxelas, mas os
financeira do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF)
espera de resultados concretos.
a fim de preparar um programa de gestão integrada da
totalidade da bacia que deve aplicar as diretivas
As entrevistas realizadas em 2008 mostram claramente
estudos e projetos piloto foram concluídos com sucesso,
monitorados por “facilitadores” externos (e frequentemente
identificadas no PCBAP. Entre 1999 e 2004, cerca de 44
que os exercícios consultivos repetidos, em geral
dando lugar a publicação de um novo “programa
estrangeiros) quase não são proveitosos. A maioria dos
do alto Paraguai”. Mais de 250 organizações federais,
e esperança. Seus comentários refletem frequentemente
instituições internacionais e órgãos de outros países são
às ONGs ou aos fazendeiros. Um deles até descreveu o
estratégico de ação para a gestão do Pantanal e da bacia
atores que encontramos se considera quase sem paciência
estaduais e municipais, ONGs, empresas privadas,
um sentimento de desilusão seja em relação aos cientistas,
direta ou indiretamente envolvidos nas atividades do
Pantanal
projeto, essencialmente por sua participação numa série de
como
“o
Triângulo
planejamento participativo”.
das
Bermudas
do
2.2 A PC considerada como conservação particular: a opinião das ONGs
meioambientalistas
No início dos anos 90, ONGs internacionais começaram a
associando-se a organizações científicas, a fim de
alcançar uma melhor conservação da região. Elas
manifestações mais marcantes – uma conferência sobre
tempo pela criação de novos parques nacionais e novas
em 1998 pela CI e várias organizações locais, como a
pressionar o Governo federal e as autoridades locais para
fornecer conselhos e propostas técnicas. Uma das
defendiam a ideia de “reservas integrais” ao mesmo
o Pantanal e os cerrados circunvizinhos – foi organizada
“reservas particulares” detidas por ONGs, mecenas ou
Universidade de Brasília e a Fundação Biodiversitas.
fazendeiros. As ONGs aproximaram-se das autoridades
Cerca de 200 cientistas presentes iam identificar uma
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26
2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas
série de corredores e áreas cruciais para a proteção da
estratégias evoluem com o tempo e não são estritamente
biodiversidade, provocando enfim uma reação do
idênticas.
Sul criou cinco novas áreas protegidas, cobrindo 140 000
Mesmo se a estratégia mundial da CI tenha mudado ao
Governo. Entre 2001 e 2004, o Estado de Mato Grosso do
hectares. De seu lado, o Governo federal criou o Parque
longo dos anos, ela continua bastante estável no Pantanal.
Nacional da Serra da Bodoquena (76 000 hectares) este
A CI reconhece em seu site Internet que a linha estratégica
globalmente estes sucessos obtidos graças às pressões
que ela foi uma das primeiras (em 1987) a evoluir para uma
também situado em Mato Grosso do Sul. Contudo,
tradicional era favorável a uma “estrita conservação”, mas
exercidas, não vão moficar a paisagem da conservação
visão da conservação baseada no “desenvolvimento
da sua superfície está protegida.
interessadas locais (Conservation International, 2009).
É por esta razão, paralelamente, que estas ONGs
atores econômicos, defendendo mais a criação de novas
pública do Pantanal brasileiro, visto que menos de 2,5%
sustentável” e a participação das partes diretamente
Contudo, no Pantanal, a CI não trabalha realmente com
reservas públicas e particulares no seio dos “corredores”15.
pregavam também a criação de novas áreas protegidas
particulares,
aproveitando
a
legislação
brasileira,
relativamente sofisticada, que favorece o estabelecimento
A TNC (internacional The Nature Conservancy) optou por
Até o momento, o Pantanal tem 13 reservas deste tipo,
organização de conservação do meio ambiente intervém
uma estratégia bastante próxima. Criada em 1951, esta
de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN).
com 201 255 hectares, ou seja, 1,5% da região.
no mundo inteiro. No Pantanal, começou ajudando uma
O conceito de reservas naturais detidas por particulares
de terra ao longo do Parque Nacional do Pantanal a fim de
fundação parceira (Ecotropica) a comprar 60 000 hectares
tem sua origem na Europa do século XIX, em especial com
fazer reservas particulares. Desde o final dos anos 90 ela
Namíbia e em Botswuana. Lançado por decreto em 1990,
observar atentamente o PRP. Mais recentemente, a TNC
tem ajudado também as instituições locais a avaliar, gerir e
grandes reservas criadas pelos Ingleses no Quênia, na
estabeleceu uma parceria com a UNESCO, o WWF e o
o programa brasileiro foi integrado ao corpo legislativo pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) para
Congresso em 2000. As autoridades federais e estaduais
conservação dos sítios pertencendo ao patrimônio natural
utilizam doravante estes RPPN com aparente entusiasmo,
mundial no Pantanal.
visto que, senão, elas deveriam apropriar-se destas terras,
indenizar seus proprietários e investir na gestão das áreas.
Assim, a carga da conservação incumbe mais aos
A CI e a TNC, são, portanto, sensíveis ao aspecto
Vários grupos de defesa do meio ambiente ajudaram os
sobretudo de colaborar com os fazendeiros interessados
“conservação” e só praticam uma PC limitada: trata-se,
proprietários particulares do que às finanças públicas.
fazendeiros a criar RPPNs14, sobretudo quando suas
por uma estrita conservação. De seu lado, outras grandes
terras se encontram próximas das reservas naturais
ONGs trabalham mais – mas sem exclusão/restrição – no
de imposto predial, mas devem limitar suas atividades ao
continua, vamos ver, bastante limitado.
aspecto “utilização sustentável”, no âmbito de uma PC que
públicas. Os fazendeiros que o fazem obtêm exonerações
ecoturismo e à pesquisa. A área assim decretada beneficia
igualmente de uma proteção irrevogável, o que significa
que as terras jamais poderão ser desclassificadas.
14 Para obter o certificado de qualidade RPPN, uma área deve apresentar características
pertinentes para a proteção da biodiversidade ou ficar num lugar onde a valorização do meio
ambiente poderia permitir preservar ecosistemas
15 Nesta abordagem, vastas zonas – como os parques nacionais – são religados por
Há dez anos que várias ONGs internacionais têm tido um
papel maior neste tabuleiro de xadrez do Pantanal e
continuam particularmente ativas – como a CI, o WWF, a
corredores a reservas menores a fim de facilitar a circulação das espécies num espaço mais
vasto e favorecer assim uma diversidade genética crescente.
TNC e a Wildlife Conservation Society (WCS). Suas
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
27
2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas
2.3
Colaborar com os produtores: a lenta gênese de uma nova forma de PC
Enquanto a CI e a TNC trabalharam amplamente por uma
150 pessoas são, assim, convidadas a participar de três
estrita conservação no Pantanal, outras enfatizaram a
campanhas por ano. Elas beneficiam de tratamento da
da região são detidos por criadores de gado, a expansão
evolução do projeto de proteção das onças pintadas e
necessidade de envolver os atores locais. Visto que 97%
parte dos médicos e dentistas, são informadas sobre a
do sistema de conservação depende a priori de sua
podem discutir sobre a conservação dos lugares. Em
Como para a criação de reservas particulares, só pode se
beneficiam de tratamento de saúde e vêem o modo de vida
cooperação, através de novas formas de “participação”.
compensação aos esforços de conservação, os nativos
tratar – ao menos aparentemente – de um fenômeno
pantaneiro valorizado.
limitado.
Mas a WWF foi mais longe do que as outras ONGs no
A WCS (Wildlife Conservation Society) é uma das primeiras
trabalho com os produtores locais. Depois de ter apoiado
criadores de gado, procurando melhor integrar o
programa mais ambicioso batizado “Pantanal Forever”.
ONGs a ter começado a trabalhar no Pantanal com os
vários projetos de conservação, ela lança em 1998 um
desenvolvimento e a proteção da fauna, através de uma
Ainda atual, este programa continua ao mesmo tempo com
pesquisa aplicada. Desde o final dos anos 90, a WCS tem
objetivos de conservação e objetivos de desenvolvimento.
se esforçado para mobilizar e formar criadores de gado
Em matéria de conservação, este projeto contribui para a
com o objetivo de gerir os conflitos com animais selvagens:
criação de áeras protegidas e a proteção da arara Ara
exercem sua predação nos rebanhos. A WCS dirige um
de fotos 1). Em matéria de produção sustentável, ela
os criadores matam frequentemente onças pintadas que
haicintha (Arara-azul grande) – a maior da espécie (série
programa de pesquisa que visa reduzir a taxa de
trabalha junto a grupos de mulheres pescadoras para
depredação do gado e implementar novas técnicas de
desenvolver a arte e o artesanato regionais. Ela ajuda
prevenção com várias fazendas parceiras. A WCS propõe
também os criadores a adotar práticas menos prejudiciais
desenvolvimento do ecoturismo. Ela trabalha para esse fim
tem esforçado para promover a carne de boi biológica
também recomendações sobre a produção de gado e
ao meio ambiente, como o ecoturismo e desde 2002 se
com a UNIDERP uma universidade local, para a
constituição
dos
indicadores
ambientais
ajudando-os a obter um certificado junto do IBD (Instituto
e
Biodinâmico).
socioeconômicos que permitem garantir um melhor
acompanhamento das culturas.
Abandonando
progressivamente
sua
filosofia
A colaboração com os produtores locais aparece, portanto,
cada vez mais como a nova vocação da PC no Pantanal e
de
uma pista a seguir para as ONGs. Mas estas praticaram
conservação estrita, a CI esforça-se também para trabalhar
mais uma versão atenuada da PC, a saber, dispositivos
pintada Conservation Fund, (uma ONG brasileira) e a
nenhuma “apropriação pela comunidade”: trata-se somente
mais com os criadores de gado. Em parceria com a Onça
sobretudo concebidos por peritos externos e não implicando
universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
de incitar os produtores a modificar suas atividades num ou
concebeu um dispositivo de indenização dos criadores
noutro sentido. Estas inciativas estão portanto ainda
vítimas das onças pintadas das onze fazendas contíguas,
distantes dos projetos « pilotados pela comunidade » na qual
acrescentando 150 000 hectares de habitat protegido para
a PC local é essencial, em todos os níveis.
acordo para parar de matar as onças pintadas. Por outro
A própria ideia de criar um “parque regional do Pantanal”
médica e dentária gratuita, associada a uma educação do
gestão do meio ambiente e intervenções das ONGs. Ela
estes animais. Em troca, os fazendeiros assinaram um
lado, o projeto apóia um programa social de assistência
era, pois, extremamente inovadora na paisagem local da
meio ambiente, tudo isto destinado aos criadores. Quase
deu a esperança de que a comunidade pantaneira local
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
28
2. As diferentes faces da participação comunitária nas zonas úmidas
teria meios, especialmente financeiros, para desenvolver
associar a tal ou tal projeto iniciado por ONGs
programas que teria ela mesma concebido em vez de se
2.4
internacionais.
Conclusão : A novidade da proposta do PRP
Nós vimos que o conceito de PC tinha evoluído ao longo
comunidade e reforçar seu poder de decisão coletivo em
entre duas abordagens do meio ambiente – a conservação
projeto de um “parque regional” integrado confiado à
dos anos no Pantanal, refletindo a tensão permanente
diferentes setores ambientais e socioeconômicos. Esse
e a utilização sustentável. Nos anos 90, as grandes ONGs
comunidade suscitou interrogações entre as ONGs que
ativas no Pantanal adotaram a filosofia da participação,
tinham muitas dificuldades a ver os fazendeiros como
mas uma versão suavizada – a saber, com a participação
amigos do meio ambiente. Vários defensores do meio
dos fazendeiros em projetos particulares de conservação,
ambiente acharam inútil, até mesmo perigoso dar mais
em seguida diferentes fazendas em projetos de ONGs
poderes e meios financeiros a estes atores. É, pois, contra
incitando a modificar certas práticas de produção. Neste
um muro de a priori da parte das grandes ONGs de defesa
contexto, a proposta de criar um “parque regional” confiado
do meio ambiente que um projeto bem mais audacioso de
visando envolver diretamente os criadores enquanto
deter-nos agora.
à comunidade foi considerado como um óvni, a iniciatitiva
PC nasceu no Pantanal – é sobre sua gênese que vamos
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
29
3.
A gênese do PRP: uma comunidade em crise à procura de aliados
A proposta de criação do Parque Regional do Pantanal
vontade comum de dois grandes grupos de interesse locais
marca uma etapa fundamental no discurso participativo da
preocupados em ocupar-se da ascensão potente dos
região. Ela implica a criação de um parque participativo em
novos atores regionais.
fazendeiros e apoia, em lugar de proibir, as diferentes
Este objetivo de duplo bloqueio, na base da iniciativa,
as chaves aos autóctones”16, deixando-lhes conceber os
tornar-se o principal promotor e criador do projeto do PRP.
grande escala, fundado na adesão voluntária dos
produções econômicas. Oficialmente, trata-se de “entregar
cruzou rapidamente o caminho de um outro ator, que ia
projetos econômicos, sociais e ambientais que lhes
Trata-se da cooperação francesa – que compreende vários
convêm em vez de incitá-los a unirem-se a um projeto
órgãos como a Embaixada da França, o Ministério das
comunidade, como as ONGs internacionais.
Ambiente Mundial (FFEM) e vários órgãos públicos
Nós voltaremos à gênese deste projeto de PC, aos agentes
modelo de gestão do meio ambiente a propor, o dos
pronto, concebido por atores não pertencentes à
Relações Exteriores, o Fundo Francês para o meio
técnicos e de pesquisa. Os atores estrangeiros tinham um
da origem do projeto (iniciadores, promotores e os que
“parques naturais regionais”. Este modelo que compreende
concebem) e a significação estratégica da iniciativa como
a cooperação do Estado com os produtores locais,
base. Veremos que os principais iniciadores são um grupo
em vários países. Esta vontade de exportar a « expertise
sobre a configuração dos interesses que lhe servem de
apareceu na França nos finais dos anos 60 e já teve mérito
de fazendeiros criadores, de certo padrão, preocupados
francesa » e exercer uma influência intelectual no Pantanal
com a influência crescente de ONGs pregando a
– uma zona natural tendo uma importância mundial –
conservação, mas também concorrentes econômicos na
harmoniza-se com as preocupações dos fazendeiros e
região. Os fazendeiros tradicionais do Pantanal tiveram o
autoridades locais, que procuravam introduzir uma nova
ascensão potente de atores ameaçando sua sobrevivência
partidários da conservação e produtores.
região, em nome do meio ambiente.
É baseado nesta convergência de interesses – e aliança
sentimento de ter que dar uma resposta coletiva à
iniciativa capaz de modificar o equilíbrio dos poderes entre
econômica e a própria legitimidade de sua presença na
original – que o projeto do PRP nasceu e obteve
Um senador e o Estado de Mato Grosso do Sul fizeram
importantes
igualmente parte dos inciadores do projeto do PRP. Estes
rural
importante
composto
de
nacionais
e
internacionais,
compreendendo a EU e contactada pelos peritos
atores políticos responderam, assim, às ansiedades de um
eleitorado
fundos,
franceses.
grandes
fazendeiros. Eles viam nisso um meio de conter a
influência das forças a favor da conservação, para a qual o
Pantanal se assemelhava mais a um bem público mundial
que a uma ferramenta de “desenvolvimento nacional”. A
16 Para retomar a expressão de um de nossos interlocutores
iniciativa inicial do projeto do PRP nasceu, portanto, da
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31
3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
3.1 A crise dos criadores e a vontade de conter os concorrentes e protetores do meio
ambiente
A crise econômica e de legitimidade que atinge os
demasiado pequenas. O nível de inundações impede
criadores, instalados há muito tempo nesta zona úmida e
frequentemente os animais de deitar-se para descansar:
que praticam principalmente a criação de gado, é a base da
alguns morrem de cansaço mesmo tendo suficientemente
inciativa do PRP. Cada vez mais, estes vêem no
forragem para os alimentar. Se os criadores de grandes
aparecimento de dois tipos de atores, uma ameaça direta a
fazendas e de grandes rebanhos podem permitir-se ter
concorrentes econômicos dos criadores tradicionais:
beira da falência. O tamanho e o número de fazendas no
sua presença durável na região. Os primeiros são os
grandes perdas, os pequenos criadores encontram-se à
agricultores dos planaltos que cercam o Pantanal e que
Pantanal são, pois, variáveis chaves para compreender a
outros concorrentes se encontram diretamente no lugar.
fundamentais sobre esta questão.
beneficiam de uma produtividade bem superior. Mas,
história desta comunidade. Wilcox (1992) propõe dados
Um número crescente de recém-chegados – que não
pertencem à comunidade tradicional pantaneira – compram
Por volta do final do século XIX, somente algumas fazendas
fazendas em falência e importam modos de produção mais
isoladas se desenvolveram no Pantanal, de modo que a
ressentida pelos fazendeiros tradicionais, é a das ONGs
metade do século XX, contudo, a criação de gado não
intensivos exigindo mais capital. A segunda ameaça
pressão do homeme continuava fraca. Durante a primeira
parou de desenvolver-se17 mesmo se tenha sido
pregando a conservação, apoiadas pelas redes e fundos
necessário esperar os meados dos anos 50 para se poder
internacionais para desenvolver um método “bola de
criar cavalos, por causa das doenças locais especificas – o
cristal” da conservação que culpabiliza os criadores em
que afetou seriamente a expansão da indústria da criação.
nome do impacto negativo no meio ambiente. Nós vimos,
Este obstáculo acabou por desaparecer nos anos 60, com
várias grandes ONGs defendem e financiam uma visão
os progressos veterinários. A indústria da criação progrediu
estrita da conservação da biodiversidade na região, pondo
fortemente, assim como o número de imigrantes vindos
em questão a legitimidade da presença dos criadores.
instalar-se no pantanal, frequentemente através de redes
A crise econômica: as fazendas menores e o preço da
familiares. Enquanto o censo de 1920 efetuado no Brasil
carne de vaca em recuo estimulam a concorrência
enumerava quase 100 fazendas em todo o Pantanal, para
cerca de 700 000 cabeças de gado, no início dos anos 70,
As raízes da crise da produtividade da criação de gado
contava-se mais de 3 500 fazendas para mais de 5 milhões
tradicional no pantanal faz parte da própria história dessa
de cabeças de gado.
em declínio constante, que alcançam frequentemente um
As fazendas, bastante importantes no início, foram cada
vem do aumento da população e da imigração, aliada à
famílias e a instalação de imigrantes18. Atualmente, um
comunidade. Elas estão ligadas ao tamanho das fazendas,
vez mais fragmentadas com o aumento do tamanho das
nível inferior à sobrevivência econômica. Este fenômeno
número crescente de fazendas encontra-se aquém do
regra tradicional de partilha do patrimônio em partes iguais
entre os herdeiros machos.
17 A Nhecolândia, uma das grandes sub-regiões do Pantanal, é particularmente
representativa desta evolução.No início do século XX, ela não tinha mais do que uma dezena
de famílias que criavam algumas 100 000 cabeças de gado. A partir de 1920, já se
enumerava mais de 80 fazendas para quase 200 000 animais. Na metade dos anos 50, as
fazendas ultrapassaram a cententa, para uma população humana de 6 000 pessoas.
18 No final do século XIX, as maiores fazendas do Pantanal compreendiam entre 100 000e
As condições ambientais e técnicas da região fazem com
que seja extremamente difícil e arriscado criar gado em uma
fazenda relativamente pequena. Em época de chuva,
400 000 hectares, uma só ultrapassava um milhão de hectares. Nos anos 20, a metade ainda
ultrapassaram 100 000 hectares – mas nos anos 50, as fazendas estavam em torno de 8 000
a 65 000 hectares. Nos anos 70, 70% de todas as fazendas do Pantanal tinham entre 1 000
e 10 000 hectares, contra somente 11% (ou seja, cerca de 400 fazendas) estendendo-se
ainda em 100 000 hectares.
quando a maior parte das terras são inundadas é preciso
poder encontrar pastos em quantidade suficiente. Basta um
ano difícil com grandes enchentes para arruinar as fazendas
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
32
3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
limite de viabilidade econômica com, segundo nossos
preocupações dos fazendeiros que o projeto do PRP iria
interlocutores, superfícies médias de 7 000 hectares. Em
nascer.
consequência, muitos cederam a agricultores externos que
A crise de legitimidade: a crítica dos defensores do
chegam com mais capitais e técnicas intensivas – o que
aumenta a produtividade, mas, aparentemente, prejudica
meio ambiente e a tomada de contrôle receada
fazendeiros de longa data, que ainda são majoritários,
Praticamente 80% das terras desflorestadas na Amazônia
nem estado de esprito necessários para sobreviverem
gado (Greenpeace, 2009). Imagina-se desde então a
mais o meio ambiente. Esta evolução é mal vivida pelos
entre 1996 e 2006 servem doravante de pastos para o
ainda mais porque eles não têm nem meios financeiros
reputação dos criadores entre os defensores do meio
economicamente. As entrevistas com os fazendeiros
ambiente trabalhando no Brasil... Mesmo se a situação não
mostram realmente este sentimento de “ameaça”:
tenha sido tão grave no Pantanal, vimos (seção 2) que a
desconfiança persiste entre as ONGs e os fazendeiros da
- não conheço um só fazendeiro (no Pantanal) que esteja
região: a ideia de uma colaboração só começou há pouco
contente em ver chegar essas pessoas, mesmo se cada
vez mais sejam obrigados a lhes vender suas terras
tempo – e lentamente – enquanto a visão de uma
- Os (novos fazendeiros) não sabem nada sobre nós, sobre
grandes ONGs, que militam em especial pela compra e o
modo de vida que praticamos aqui depois gerações.
proteção particulares.
conservação estrita continua a influenciar a ação das
encerramento das terras integradas a dispositivos de
nossa história e sobre o Pantanal e não querem respeitar o
Tudo isto significa que os fazendeiros se sentem
- Eles não deveriam estar aqui, mas as regras do mercado
ameaçados pelas ONGs ecologistas – um sentimento que
dominam. Tudo isso é muito triste
era ainda mais forte há 15 anos, quando o projeto do PRP
nasceu. As entrevistas realizadas em 2008 revelam ainda
- Como quer que concorramos com gente que tem dez
estas tensões, mesmo se um numero crescente de
vezes mais meios que nós?
projetos de ONGs sejam realizados em um espírito de
Os criadores de gado do Pantanal também foram vítimas
maior cooperação. Várias ONGs ainda lutam abertamente
das imprevisões do preço da carne bovina nos mercados
contra a ideia mesma de criação sustentável no Pantanal.
mundiais. No início, a indústria era próspera graças às
Assim, em 2006, a CI publicou um relatório (Barcellos
nacional e internacional. Os preços continuaram elevados
desenvolvimento dos pastos e da agricultura já tinha
exportações de carne salgada e seca para os mercados
Harris, 2006) segundo o qual a desflorestação ligada ao
até a segunda guerra mundial, mas a atividade começou a
destruído 17% da vegetação nativa do Pantanal
declinar com o aparecimento das técnicas de refrigeração,
(25 000km²). Seus autores afirmam que se ele continuar
neste ritmo, a desflorestaçao levará ao desaparecimento
que reduziram a demanda de carne em conserva (Junk et
daqui a 45 anos de toda a vegetação original da região19.
de Cunha, 2005). O Pós-guerra mostrou-se difícil para os
Estas análises alimentam a desconfiança entre ONGs e
criadores, que tiveram em seguida duas décadas de
fazendeiros. Grande número destes últimos receia
aumento contínuo de preços, até o início dos anos 70 nos
quais a queda brutal dos preços mundiais pôs fim a esta
abertamente que no final, as ONGs
manteve até meados dos anos 90, reforçado no Brasil, por
... invadam o Pantanal [e os] ponham para fora
expansão (Edelman, 1992, p. 195). Este fenômeno se
episódios recorrentes da febre aftosa que impediram as
exportações para vários mercados internacionais e, em
especial, a EU. E neste contexto de perspectivas
19 A taxa de degradação do meio ambiente é de 2,3% por ano.
econômicas morosas e tendo como pano de fundo as
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
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3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
A hostilidade é tangível e vários fazendeiros que
para permitir aos fazendeiros reforçar sua posição e concluir
encontramos têm o sentimento de que as grandes ONGs
com sucesso suas atividades em presença de concorrentes
da região estejam repletas
e defensores do meio ambiente de peso. Uma vontade de
duplo bloqueio orienta, então, a criação do projeto. Esta
preocupação encontrou em seguida, um modelo estrangeiro
[...] de gente vinda do estrangeiro, com salários de 5 000
de gestão do meio ambiente: o princípio de “parque natural
dólares por mês e que pensam poder [nos] dizer o que
regional” implementado na França. Uma aliança foi,
temos de fazer!
portanto, travada entre os fazendeiros e o governo
É neste contexto perturbado que o projeto do PRP nasceu
3.2
estrangeiro, contente em exportar um modelo nacional.
O aliado: um investidor estrangeiro oferecendo um modelo de gestão diferente
A França orgulha-se de seu passado de gestão do meio
pequenas indústrias e o setor do turismo preservando os
(setores nos quais este país tem algumas das maiores
populações em relação ao meio ambiente... receava-se
ambiente. Isto é válido para a água e o tratamento do lixo
recursos naturais e culturais e sensibilizando as
empresas do mundo), mas também para seu sistema de
produzir uma série de políticas setoriais desconectadas e
dispositivo vem do conceito de “parque natural regional”,
tempo, contudo, o modelo do parque regional impôs-se nas
produtores locais, que se comprometem em respeitar
desafios socioeconômicos complexos. Hoje, a França tem
áreas protegidas. Um dos aspectos originais deste
em conflitos, mais ou menos rotuladas de “verde”. Com o
que está baseado inteiramente num contrato entre e com
regiões francesas de recursos naturais frágeis e de
certas regras. A França elaborou este modelo em
mais de 40 parques naturais regionais, que cobrem cerca
meados dos anos 60 e desde aquela época o tem
de 10% do território nacional, quatro milhões de hectares,
exportado para vários países (Rússia, Polônia, Portugal,
duas comunas e concernem cerca de 2,2 milhões de
Bélgica, Chile ou Vietnã). Este dispositivo francês de
pessoas.
cooperação internacional apóia esta difusão através de
financiamentos e programas de pesquisa. Foi o caso no
Estes parques são uma forma particular de associação –
Brasil, onde as características de um “parque regional”
os sindicatos mistos. Eles reúnem representantes eleitos
criadores
profissionais da região visada. No caso do Pantanal, uma
se adaptavam bem às preocupações estratégicas dos
de
gado
do
Pantanal:
reforçar
como
sua
produtividade e manter os defensores do meio ambiente
representações
de
ONGs
e
associações
associação deste tipo foi criada em 2001: trata-se do
longe.
Instituto do Parque do Pantanal (IPP), ao qual voltaremos
mais em detalhe na sequência deste texto.
A própria ideia de « parque regional » vem de 1966, logo
que a delegação do Desenvolvimento do Território pediu ao
Os sindicatos mistos têm por primeira responsabilidade
governo francês para criar um novo instrumento integrado
decidir sobre o funcionamento das equipes técnicas do
baseado na participação de seus atores locais. Os campos
parque. Cada parque se dotou verdadeiramente de sua
de gestão econômica, social e ambiental nas zonas rurais,
parque e as orientações políticas fixadas na Carta do
tinham um “êxodo” contínuo que as autoridades tentaram
própria Carta do território que define os princípios e as
erradicar por um novo instrumento de PC. O decreto
ações a serem respeitadas e que compromete os
instituindo os parques regionais é assinado pelo Governo
parceiros públicos e particulares. Estas Cartas devem
em 1967 – sem acabar totalmente com as dúvidas
ser aprovadas pelo Ministério das Finanças e do Meio
envolvendo um modo de gestão que devia implicar e
Ambiente - mas elas são o fruto de longas negociações
satisfazer tudo ao mesmo tempo: artesãos, agricultores,
entre as diferentes partes diretamente interessadas
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
34
3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
(cinco anos em média). Uma das forças desta
das negociações com as autoridades nacionais e outras
através do qual os parceiros se comprometem a respeitar
públicas.
abordagem reside no fato de que a Carta é um “contrato”
instituições para a elaboração de textos de leis e políticas
os princípios negociados juntos. A obrigação moral de se
comprometer com este “contrato” é reforçada pela
O modelo de “parque regional” começou a ser exportado
necessidade coletiva de obter financiamentos regulares
para o Brasil através de uma série de contatos entre a
da parte das autoridades nacionais, e em consequência,
Embaixada da França e o Estado de Mato Grosso do Sul,
de apresentar periodicamente os resultados obtidos. Os
que abriga o essencial do Pantanal e onde este modelo de
o renovamento de sua Carta no Ministério do Meio
assinado que consagra oficialmente a cooperação técnica
parques regionais também devem obter a cada dez anos,
gestão suscitou muito interesse. Em 1996, um acordo é
Ambiente, o que dá lugar a balanços aprofundados.
entre a FPNRF e o Governo de Mato Grosso do Sul. A
FPNRF ver-se confiada a responsabilidade de levantar
Os parques regionais franceses são federados por uma
fundos internacionais para criar o “parque regional do
entidade central, a Federação dos Parques Naturais da
Pantanal” (PRP).
França (FPNRF). Esta está encarregada de gerir os
programas de parceria, garantir a troca de experiências e
A seção seguinte mostrará como a ligação com os
também representar globalmente os parques no momento
influência essencial na concepção do projeto.
favorecer a capitalização dos conhecimentos. Ela deve
investidores estrangeiros foi travada e analisará sua
3.3 O PRP: uma iniciativa local influenciada pelos peritos estrangeiros e criticada pelas
ONGs
Como mostra Charnoz (2009b), a maior parte dos
muito tempo na região do Rio Negro do Pantanal. Ele
e estatais, quer sejam iniciadores, promotores ou
começa a procurar um apoio maior no seio da federação
projetos de PC é lançada por agentes internos, externos
envolve-se, então, fortemente com os criadores locais e
criadores. Ora, como certos atores dominam outros,
brasileira, eventualmente nos parceiros estrangeiros.
pode-se em geral classificar os projetos segundo sua
“proveniência” (“do interior”, “do nível superior” ou do
É neste momento que a influência estrangeira começa a
“exterior”da comunidade). Às vezes as influências iniciais
desenvolver-se. A relação tecida com a França não deve
interesses bem compreendidos. É o que se passará com
longa tradição de contatos com diferentes peritos técnicos
são equilibradas, do fato de uma convergência de
nada ao acaso. O Estado de Mato Grosso do Sul tem uma
o PRP.
franceses em questões de planejamento econômico. Era
bastante lógico que o doutor Canale estabelecesse um
Os iniciadores do projeto são antes de tudo atores
diálogo com a Embaixada da França em Brasília, que lhe
a sua criação vem da iniciativa de um homem político local,
regionais”. Com a ajuda do embaixador e o apoio da
pertencendo à comunidade local. As dinâmicas conduzindo
apresentou a experiência francesa de “parques naturais
o doutor Mendes Canale, senador a procura de medidas
Embaixada do Brasil em Paris, contatos foram feitos com a
inovadoras para ajudar os criadores do Pantanal a
FPNRF (supra). De 1986 a 1995, reuniões técnicas são
crescente.
pela Fundação Estadual de Meio Ambiente do Pantanal
melhorar seu destino e acalmar o descontentamento
organizadas entre a FPNRF e o Estado local, representado
(FEMAP). Técnicos da FPNRF vão ao Brasil enquanto
A partir de meados dos anos 80, o doutor Canale encontra
missões envolvendo FEMAP e vários fazendeiros são
regularmente um grupo de fazendeiros instalados desde
organizadas em Paris.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
35
3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
Um pedido oficial de assistência técnica é formulado pelo
As missões na Europa deveriam ter levado representantes
Estado de Mato Grosso do Sul em 1995. Um acordo é
dos fazendeiros, mas vários de nossos interlocutores
assinado em 1996 que instaura uma cooperação entre a
indicaram que eram frequentemente membros de uma
Fundação do Pantanal (representando os interesses do
mesma família que participavam da viagem e não
voluntário remunerado pela cooperação francesa é
interessadas. Para um de nossos interlocutores, “era a
Estado) e a FPNRF (a agência técnica francesa). Um
representantes
rapidamente nomeado para se consagrar em tempo
parceiro”,
ao
ponto
de
recuperar
diferentes
partes
diretamente
ocasião certa para fazer turismo em família na Europa!”
completo ao projeto. A FPNRF torna-se rapidamente o
“principal
das
a
A dinâmica a favor da criação de um “parque regional” foi
responsabilidade de levantar fundos internacionais com o
alvo de uma crítica passiva da maioria das ONGs
objetivo de criar um “parque regional” no Pantanal. Não
internacionais envolvidas na região. Oficialmente, elas não
o que dá aos peritos franceses uma real autoridade, mas,
obrigado a criar uma nova categoria jurídica na SNUC. Se
somente o projeto é desenvolvido na França durante anos,
apreciavam o fato de que este “parque regional” fosse
além disso, estes peritos são diretamente responsáveis
acreditamos, contudo, em alguns de nossos interlocutores,
ter uma influência crucial nos detalhes do projeto.
a sua desconfiança em relação aos fazendeiros locais, que
pela sua apresentação aos investidores, o que lhes permite
a causa real desta reticência está ligada – mais uma vez –
estavam longe de serem considerados como “amigos do
Um “projeto preparatório para a criação do PRP” é então
meio ambiente”. Aqui está o que diz o membro de uma
elaborado, o Apoio à Criação do Parque Natural Regional
do
Pantanal,
por
um
custo
total
avaliado
ONG local:
a
1 022 550 ECUS. Ele é submetido à Comissão Europeia e
Atenção! Certas ONGs trabalham hoje com os criadores de
Exteriores (DGIB). A UE concede-lhe uma contribuição de
eles têm um interesse comum pelo Pantanal, suas
necessários. Dois outros parceiros dividem-se o resto, o
ecologistas não consideram os fazendeiros como seus
aprovado em 1998 pela Direção Geral das Relações
gado, mas isto não significa que elas apreciem. Mesmo se
776 000 ECUS – ou seja mais de três quartos dos fundos
motivações são radicalmente opostas. [...]. As ONGs
Estado de Mato Grosso do Sul e a cooperação francesa.
aliados, longe disso. O mesmo para os fazendeiros.
Vemos aí que este projeto é essencialmente concebido por
peritos estrageiros e que além disso, é financiado em
Ou ainda:
de 1998, a implementação do Projeto de Apoio começa,
Por que as ONGs apreciariam um projeto que dá novos
o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF. Através desta
elas queriam poder melhor controlar ou ver simplesmente
grande parte por investidores estrangeiros. Em dezembro
com a assinatura de um novo acordo de cooperação entre
meios materiais e de expressão às mesmas pessoas que
convenção, a FPNRF fornece um perito, o francês, que
desaparecer do quadro? [...] Não vemos bem como [elas]
intervém como “conselheiro técnico principal”. Esta pessoa
poderiam apoiar este projeto.
forma uma equipe técnica e deve observar atentamente o
desenrolar do projeto. Sua influência ao longo do projeto foi
Para um outro, as ONGs têm simplesmente medo de
regularmente sublinhada pelas pessoas questionadas.
perder sua posição dominante no palco da gestão do meio
ambiente com projetos próximos do PRP:
No que diz respeito à “participação comunitária” no próprio
conceito do projeto, as entrevistas feitas em 2008,
Um projeto comunitário como este do Parque Regional do
fazendeiros e segundo o qual só um grupo limitado de
ecologistas não pertecem à comunidade [...] O PRP não
França e discussões com peritos brasileiros e franceses.
no Pantanal. Muito pelo contrário. De fato parece bastante
enfatizaram um sentimento amplamente partilhado pelos
Pantanal é concebido para os nativos e as grandes ONGs
notáveis locais foi implicado – no momento das viagens à
tinha nenhuma intenção de dar mais peso à CI ou ao WWF
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3. A gênese do PRP : uma comunidade em crise a procura de aliados
ilógico que as ONGs ecologistas critiquem a iniciativa do
inflexibilidade da legislação, enquanto elas mesmas agem
PRP pela simples razão de que ele levaria a uma
3.4
extamente neste sentido em vários contextos.
Conclusão
Enquanto o impulso inicial a favor do PRP – um
um projeto participativo confiado a uma comunidade e às
programa de PC – vem da comunidade (e mais
estruturas institucionais que daí resultam. Além disso, no
precisamente, de algumas famílias privilegiadas), as
caso do PRP, os franceses tinham um modelo específico
responsabilidades técnicas e financeiras acabaram por
de gestão a propor – que parecia em grande parte
ser amplamente partilhadas entre o Brasil e os peritos
responder às preocupações dos criadores locais no
franceses. Como na área protegida marinha da Soufrière
centro da gestão do meio ambiente – em lugar de exclui-
(SMMA) em Sainte- Lucie, Martinica (Charnoz, 2009c),
los – mas além disso, ele abre a perspectiva de projetos
um parceiro estrangeiro impôs-se como guia para formar
socioeconômicos de apoio.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
37
4.
« A salvação pela tradição »: a construção de um discurso
estratégico
A proposta de criação de um parque natural regional no
desencadeia também efeitos de poder estrutural. A
« tradições », consideradas como o melhor meio de
focaliza-se exclusivamente nos criadores de gado e
Pantanal apoia-se no discurso específico em torno das
definição da “comunidade tradicional” no projeto do PRP
« salvar o Pantanal » de “evoluções indesejáveis”. A ideia
fazendeiros: outros grupos importantes da comunidade
durante séculos o protetor do Pantanal, dado seu impacto
trabalhadores
central é a seguinte: a “criação tradicional de gado” foi
pantaneira são deixados de lado, como os pescadores e os
“fraco até mesmo positivo” no meio ambiente. A
agrícolas.
Os
insvestidores
não
se
interessaram por esses grupos, enquanto até mesmo o
manutenção desta atividade é, portanto uma garantia para
projeto do PRP devia ser – aos olhos da UE, por exemplo
o futuro do Pantanal. Alguns afirmam mesmo que o
– exemplar em termos de PC. O discurso sobre a tradição
terras deixadas em pousio – uma visão radicalmente
aos concorrentes econômicos, mas também a grupos
abandono da criação seria prejudicial à biodiversidade das
teve, portanto, efeitos de bloqueio de encontro às ONGs e
oposta a dos partidários da conservação, que pregam
vivendo no pantanal, mas tendo um estatuto inferior.
particulares). Os partidários do PRP lançaram-se em um
estratégico primordial, este novo nível de bloqueio
“reservas estritras” (como os parques nacionais e reservas
Mesmo se não se tratasse, neste caso, de um objetivo
vasto empreendimento discursivo para dotar os criadores
contribuiu para mater o estatuto socioeconômico global da
de uma identidade positiva, até mesmo “romântica”, em
região.
harmonia com a natureza.
Interessamo-nos pelos efeitos de poder produtivo do discurso
Em um documento precedente (Charnoz, 2009c), nòs
na “comunidade tradicional”, antes de abordar seus efeitos de
discurso ambiental em Saint-Lucie: a mercantilização e
conceituais de análise do discurso já utilizados (Charnoz,
deste tipo são observáveis: os efeitos antipolíticos e os
Milliken (1999) e Weldes (1999), nós mostraremos como “os
identificamos dois efeitos das estruturas de poder no
poder estrutural. Assim, recorremos a instrumentos
autorregulamentação. No Pantanal, dois outros efeitos
2009a e 2009b). Conforme a abordagem eleborada por
efeitos pró-tradição (para uma definição, ver Charnoz
sistemas de significação” são aplicados e definem certas
de conhecimentos considerados como adquiridos e vão no
Nós veremos igualmente a “produção de sentido comum”
bloqueio dos partidários da conservação e o dos novos
com os corpus de conhecimentos preexistentes e aceitos) e
[2009b]). Juntos estes efeitos redefinem o corpus legítimo
categorias sociais beneficiando de posições privilegiadas.
sentido dos objetivos estratégicos dos fazendeiros: o
através de dois processos de articulação (de um discurso
atores econômicos.
a interpelação (de um grupo de interesse particular pelo
discurso). A análise desenvolvida das próximas subseções é
Mas isto não para por aí. Este discurso sobre as “tradições”
retomada no quadro 1.
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4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
4.1
Os criadores de gado, protetores do meio ambiente
Todo exercício de “poder produtivo” implica em redefinir a
Um discuso assimilando os criadores a “protetores” foi,
privilegiada em um dado contexto. Como o poder
favor do projeto PRP – reunindo fazendeiros, autoridades
identidade de certos atores para lhes dar uma posição mais
todavia desenvolvido pelos membros da aliança original a
estrutural, esse poder funciona a partir de um corpus de
políticas locais, mas também investidores e peritos
surgimento do PRP apoiou-se precisamente num discurso
que tinha sido reconhecido durante anos, antes da
conhecimentos
considerados
tipo,
que
adquiridos.
adotava
uma
O
franceses. Este discurso não era totalmente novo, visto
visão
chegada dos partidários da conservação do meio ambiente
meio ambiente. Este discurso implicava um “sistema de
preocupados diante da chegada de novos atores agrícolas
protetores tradicionais” do Pantanal. Nós veremos como
tempo a “salvação pela tradição”. Paralelamente, as
produtivo
deste
como
profundamente oposta a dos partidários da conservação do
na região, que lhe tinha retirado o peso. Cada vez mais
significação” fazendo dos “criadores de gado” “guardas e
este
“sentido
comum”
diferente
foi
e industriais, os criadores locais pregavam desde muito
sustentado.
autoridades locais sempre defenderam a criação de gado,
Mostraremos em seguida seu caráter contingente
considerando que esta não perturba particularmente o
adotando uma perspectiva de criação de gado a mais longo
meio ambiente. Para elas (e esta opinião prevalece ainda
prazo no Pantanal – uma abordagem antes ausente dos
nas entrevistas e documentos de política consultados em
discursos e dos documentos ligados ao projeto do PRP.
2008), esta atividade ancestral se desenvolveu em
Enfim, descreveremos as implicações políticas deste
“harmonia com o meio ambiente” ou, no mínimo, sem
discurso produtivo, dando uma atenção especial aos
acarretar graves problemas para o Pantanal. A produção
efeitos antipoliticos e pró tradição. Nossa análise não deve,
deste “sentido comum” era, então, mais uma “reativação”
contudo levar a pensar que a ajuda internacional aos
criadores
locais
era
injustificada.
As
que uma pura criação, endereçada aos investidores
agências
estrangeiros para ajudar a legitimar sua contribuição ao
levava em consideração o impacto ambiental bem mais
indicaram também que a aceitação rápida do discurso
internacionais adotaram uma abordagem pragmática que
desenvolvimento local. Várias pessoas interrogadas
agressivo dos novos atores e, portanto, decidiram apoiar
pelos investidores estrangeiros foi favorecida por uma
comparação, mostravam-se como melhores protetores do
conceito de “parque regional”
os criadores instalados lá há muito tempo que, em
vontade a priori de promover a difusão internacional de seu
meio ambiente.
O poder de interpelação do discurso era, portanto
Fazer dos criadores de gado protetores do Pantanal
importante para os membros da aliança original, na medida
Desde o final dos anos 90, as ONGs ecologistas
Quanto a sua articulação com as opiniões preexistentes, é
em que ele servia de base a seus interesses profundos.
trabalhando no Pantanal acabaram por admitir a
preciso lembrar que a opinião pública brasileira tem uma
necessidade de aproximarem-se dos criadores (ver seção
visão mais positiva dos criadores pantaneiros. Prova disto,
2.3). Não se trata, contudo, de fazer dos fazendeiros locais
o imenso sucesso popular de uma novela “ecolo-
os protetores preferidos (até mesmo eficazes) do Pantanal,
romântica” transmitida na televisão em horário nobre no
mas mais parceiros inevitáveis, na medida em que eles
início dos anos 90. Para Wilcox (1992, p. 233), esta novela
possuem a quase totalidade da região. O clima de tensão
e
desconfiança
entre
criadores
e
ONGs
“oferecia as imagens espetaculares de uma natureza
nunca
soberba, testemunho de atores sobre ‘a volta às origens’ e
desapareceu e rapidamente se transformou, nós vimos, em
um retrato romântico da vida do criador de gado”. Esta
descontentamento das ONGs em relação ao projeto PRP.
novela desenvolveu e conservou a ideia segundo a qual os
“cowboys do Pantanal” são gente simpática que salvou a
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
40
4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
região de um crescimento desenfreado20.
ocupação humana particular, dominada há 200 anos por
É curioso constatar, como Wilcox (ibid.), como um setor
menos sem cercas e uma exploração mínima das terras. A
degradação massiva de uma região brasileira (a Amazônia)
entre fatores ambientais e socioeconômicos de maneira
de uma região (o Pantanal). Para os defensores desta
atividade viável – até mesmo indispensável – para o meio
uma criação extensiva – com estabulação livre, mais ou
econômico (a criação de gado) ao qual atribuímos a
conservação do pantanal é fruto de uma interação propícia
pôde ser considerado como o salvador do meio ambiente
que a criação de gado possa ser assimilada a uma
opinião, contudo, as condições ambientais, ainda
ambiente do Pantanal. O quadro 2 resume os principais
relativamente sãs do Pantanal, se explicam por esta
argumentos sustentando esta opinião.
Quadro 2. A fraqueza do impacto ambiental dos criadores tradicionais: os argumentos-chave
- o Pantanal é constituído de vastos prados naturais que não exigem um grande desmatamento como o realizado na Amazônia: o gado pode
pastar em toda liberdade numa terra preservada.
- As grandes cheias durante as estações das chuvas limitam a quantidade de bovinos criados numa zona dada em função das pastagens
que continuarão acessíveis enquanto as terras estiverem inundadas.
- Até os anos 60, as tentativas de racionalização da produção eram raras, mesmo do ponto de vista das medidas relativamente simples
como a reprodução seletiva ou cercas entre propriedades. Isto vem em parte do respeito às visões e hábitos tradicionalistas antigos, mas
é também consequência dos desafios tecnológicos e de obrigações ligadas ao isolamento próprio à natureza do Pantanal. Os custos de
transporte e os rendimentos oferecidos pelos mercados de carne não permitem investir de maneira importante.
- Em consequência, a criação no Pantanal está baseada ainda hoje essencialmente nos pastos e ciclos hidrológicos naturais, no respeito
ao ritmo e à natureza idiossincrática da região.
- A natureza da região limita a si mesma as formas de atividades podendo sobreviver com uma contribuição de capital mínima. As inunda-
ções sazonais (rios e chuvas) facilitam o crescimento das plantas nutritivas, oferecendo condições ideais para a criação de gado, mas limitando por isso mesmo a extensão desta atividade, e, portanto, seu impacto.
Contudo, o argumento mais forte a favor deste discurso
novos proprietários de fazendas tendem a instalar cercas
(2004) ou WCS (2009) – segundo a qual os novos
dos médios e grandes mamíferos e pássaros que vivem em
vem da noção – que partilha ONGs como as Earthwatch
de arame farpado a seis fios, o que incomoda a passagem
agricultores que compram terras ao fazendeiros em
húmus, enquanto os arames farpados tradicionais de
falência importam práticas produtivas particularmente
quatro fios permitem aos animais circularem. Nas culturas
nefastas para o meio ambiente. Para que as fazendas
utilizadas de maneira intensiva, a erosão dos solos, a
menores continuem viáveis, estes criadores aumentam as
degradação da qualidade da água, a queimada incotrolada
zonas de pasto procedendo a cortes totais nas florestas
dos pastos e os conflitos com a fauna são mais frequentes.
nativas. Eles plantam também espécies exóticas (como a
braruiária) para aumentar a produtividade durante a
estação seca : a substituição de pastos e de florestas
nativas por essências exóticas invasivas concerne
doravante mais 10 000 Km². A sobrepastagem nas zonas
20 Um outro nível de articulação pode também ser manifestado, como o sugeriu o membro
de uma ONG local, ligado ao fato de que os investidores ocidentais tenham, às vezes, uma
visão romântica das “comunidades tradicionais” e suas relações supostamente
“harmoniosas” com o meio ambiente.
limitadas provoca uma concorrência com os animais locais
que pastam e perturba a biodiversidade. Além disso, os
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
41
4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
Consciente destes argumentos, os responsáveis do projeto
solos e a sedimentação dos cursos de água provocando uma
defendem a manutenção dos criadores tradicionais de
perda de biodiversidade na fauna e na flora.
portanto, uma outra orientação mais econômica, em torno
O número de animais pastando em uma mesma zona é
gado. O discurso sobre a “salvação pela tradição” tomou,
da viabilidade das culturas tradicionais – um tema que, nós
igualmente problemático. À primeira vista, o tamanho do
veremos, está no centro do projeto do PRP.
Pantanal e a renovação anual dos prados, parecia garantir
a ausência de todo o problema de sobrepasto. Mas o
Uma análise histórica da criação extensiva de gado
O
impacto
ambiental
da
criação
extensiva
Pantanal não é uniforme, em termos de terreno ou
exploração
é
humana.
Certas
zonas
vítimas
da
sobrepastagem são doravante cobertas por ervas
indiscutivelmente fraco em relação às novas práticas
daninhas. A concentração de animais esgotou partes
caso dizer que ele é e foi “insignificante”. Nós propomos
depois das cheias e criando dificuldades para a
introduzidas no Pantanal – mas não se pode em nenhum
inteiras do território, reduzindo sua aptidão a regenerar-se
aqui elementos que permitirão apreciar em que medida a
sobrevivência dos pastos locais. Isto é especialmente
visão de uma criação tradicional tendo somente pouco
verdadeiro em torno das culturas principais nas quais anos
impacto no meio ambiente é na verdade enviesada. Por
de calcadura e dejeção animais tornaram o solo
isso, nós apoiamo-nos nos relatórios de Wilcox (1992) e
impermeável. No passado, as águas das enchentes
durante nosso trabalho no terreno por observações diretas
mais dificuldade em penetrar no solo. Os pontos de água
Seidl e al. (2001) cujas conclusões foram confirmadas
subiam para lugares mais próximos de vida; doravante têm
e uma série de entrevistas com fazendeiros, peões e
naturais
membros de ONGs.
tornam-se
impraticáveis,
suas
margens
lamacentas sendo perigosas. É preciso desde então
encontrar outras fontes de água potável – um problema
Para começar, os criadores praticam tradicionalmente a
que pudemos observar várias vezes durante nosso
técnica da queimada durante a estação seca para “limpar”
trabalho de terreno.
novos brotos. As primeiras queimadas são nos prados,
Até os anos 70, os criadores do Pantanal recorriam pouco
seca e que o vento sopra, elas ganham frequentemente as
1910 e só ganharam o Mato Grosso no início dos anos 20.
a vegetação não consumida pelo gado e favorecer os
mas dado que os espaços são abertos, que a vegetação é
aos prados artificiais. Eles continuaram raros no Brasil até
savanas, zonas arborizadas e florestas. Elas podem
Mas onde os pastos exóticos foram introduzidos, eles
também destruir partes inteiras do habitat da fauna. O fogo
contribui
igualmente
para
o
endurecimento
tiveram uma influência profunda no ecosistema local – um
e
processo doravante reforçado pelos “novos agricultores”. A
empobrecimento do solo, assim como o deslocamento
progressivo
da
vegetação
nativa,
substituída
presença histórica dos criadores de gado também levou ao
por
aparecimento de espécies animais exóticas. Os porcos
gramíneas e espécies lenhosas resistentes ao fogo. A
selvagens, introduzidos em 1800, continuam a destruir os
longo prazo, estas espécies invasivas tomam o lugar de
solos e a vegetação, disputando com os animais nativos
pastos de qualidade.
territórios e outros recursos. Em um grande estudo
Desde o início dos anos 70, os criadores têm limpado as
biodiversidade aquática dos lagos nos sítios em contato
empírico a grande escala, Eaton (2006) comparou a
terras e plantado os pastos nas zonas mais elevadas
com a criação e sítios não tocados pela criação no Sul do
disponíveis, a fim de aumentar as superfícies disponíveis
Pantanal. Apesar de, digamos, uma fraca intensidade de
para o gado durante a estação das chuvas. Estas práticas,
criação tradicional, ele pôde observar grandes falhas na
bastante divulgadas, são consideradas como bastante
composição, riqueza, abundância das espécies e na
favoráveis de um ponto de vista econômico, mas acarretaram
biomassa para os microvertebrados como para os
uma série de desmatamentos, aumentaram a erosão dos
pássaros – uma constatação que deixa pouca dúvida sobre
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4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
4.2
A delimitação estreita da « comunidade tradicional »
a profundidade do impacto da criação no bioma local.
distanciados de uma iniciativa de PC de tamanha
A noção de “poder estrutural” reenvia para o reforço da
do PRP tenha consistido em “regenerar e apoiar a
importância. Mesmo se uma das razões de ser do projeto
comunidade pantaneira”22, este ignorou, contudo, os
posição social privilegiada de certos atores implicados com
relações binárias ou hierárquicas antigas21. Este poder se
subgrupos importantes desta comunidade.
algumas partes diretamente interessadas das discussões
A criação de um “sentido comum” em torno do discurso
negociação.
sua
manifesta em especial através dos discursos que excluem
privilegiando os fazendeiros baseava-se fortemente em
sobre as questões particulares ou dos espaços de
e
historiadores célebres que trabalharam abundantemente
comunidades de pescadores e trabalhadores agrícolas
sobre sua história no Pantanal, contribuindo para
trabalhando nas fazendas (os famosos peões). Um
popularizá-la. Daí esta reivindicação típica dos fazendeiros
“sistema de significação” específico, centrado nas
sobre sua “relação especial”, sobre uma apropriação
fazendas, foi de fato aplicado ao longo do projeto para
“comunidade
amplo
famílias de fazendeiros têm em suas categorias
levados em conta – é o caso especialmente das
a
sentimento
Neste sentido, notamos também que várias grandes
no Pantanal foram mal consultados ou nem mesmo
localizar
um
“legitimidade histórica”, impressa em sua cultura comum.
surpreendente constatar que importantes atores vivendo
e
com
espontaneamente partilhado pelos fazendeiros: o de sua
No projeto do PRP e suas nebulosas discursivas, é
identificar
articulação
histórica e moral do Pantanal, bastante presente em
nossas entrevistas:
pantaneira”.
Evidentemente, esta exclusão pelo poder estrutural é o
resultado de uma delimitação errônea dos atores “podendo
- o Pantanal não é somente um lugar onde vivemos e
falar em nome da comunidade”, dos que “são os mais
trabalhamos. É o que somos
Para ser justo e defender a posição do investidor francês,
- durante gerações, nascemos e morremos aqui. [...] O
‘tradicionais’ da região”, que “incarnam o Pantanal”, etc.
é preciso lembrar que a PC não era o ponto de entrada
Pantanal faz parte de mim como eu faço parte do Pantanal.
desta abordagem, visto que se partia mais sobre um
conceito de “parque regional”, como os criados na França,
- alguns novos agricultores vêm comprar terras de meus
impede que o projeto tenha sido abundantemente
Esta gente não faz parte do Pantanal, ela não o conhece,
que destacam a cooperação dos municípios. Isso não
amigos que já não têm meios [...] Isto me preocupa muito.
apresentado pelo investidor europeu, as autoridades locais
ela não o ama – porque isto leva gerações.
brasileiras, os fazendeiros e os assistentes técnicos
De fato, numerosas famílias de fazendeiros estão
estrangeiros, como um caso exemplar de “participação
instaladas na região desde o fim do século XVIII (quadro 3).
comunitária” (ver, por exemplo, Delorme [2004]).
Esta anterioridade permite compreender que eles
autoidentificam-se com a “comunidade tradicional”.
No seio do próprio projeto do PRP, os fazendeiros
criadores souberam posicionar-se como representantes
principais e legítimos da “comunidade do Pantanal” aos
olhos das autoridades locais e parceiros estrangeiros,
capturando, assim, esse certificado de qualidade em seu
benefício. Assim, atores que teriam merecido atenção (e
21 Ver seção 2.2.
22 Entrevista com um funcionário de Mato Grosso do Sul.
eventualmente um apoio financeiro) encontraram-se
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4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
Quadro 3. A presença europeia no Pantanal: nota histórica
Como lembra Earthwatch (2004), em seguida Corrêa (1999), os exploradores europeus (jesuítas e padres espanhóis) chegaram ao Pantanal
em meados do século XVI. Os portugueses, a procura de escravos e metais preciosos, começaram a explorar a região mais tarde, no sécu-
lo XVII. O ouro é descoberto perto de Cuiabá, no Norte do Pantanal, em 1719 e um certo número de fortes e cidades – como Cuiabá,
Cárceres, Coimbra, Poconé e Miranda – são fundadas por volta do século XVIII. Em seguida, o esgotamento das minas de ouro leva as
famílias de mercadores a pedir concessões de terras, para lá criar culturas bovinas. Leais ao rei de Portugal, elas são recompensadas com
privilégios econômicos e políticos mas são vítimas de motins antiportugueses no distrito de Cuiabá depois da independência, em 1822. Mais
tarde, a guerra com o Paraguai provoca destruições na região, as tropas dos dois beligerantes requisitam rebanhos e fazendas, forçando
as populações a fugir. Depois da guerra, os primeiros habitantes e suas famílias reganham a região, reconstituem seus estoques introduzindo novas cabeças de gado ou recuperando bovinos que se tornaram selvagens (Wilcox, 1992). A criação é em seguida relançada pelas
exportações de carne seca, até 1945 quando a atividade vai declinar com a chegada das téccnicas de refrigeração. Desde então, a vida
dos criadores de gado é em função das variações do preço da carne.
Ora, outros grupos podem também pretender fazer parte
comunidades já não se identificam em absoluto com os índios
integrante da comunidade tradicional do Pantanal, a
autóctones e formam, portanto uma população diferente.
toda a zona ao longo dos rios. As margens são feitas de
A definição da “comunidade tradicional” utilizada no projeto
podem ser detidos pelos fazendeiros, mesmo quando eles
agrícolas. Lembremos que as fazendas são mundos
começar pelas populações de pescadores instaladas em
espaços públicos reconhecidos como tal pela lei e que não
do PRP excluiu também milhares de trabalhadores
se encontram em suas propriedades. A maior parte destas
praticamente autônomos compostos de dois tipos de
pequenas comunidades vive ao longo dos principais rios
população: de um lado, os fazendeiros e suas famílias (os
são às vezes qualificados de “pescadores profissionais”,
suas famílias). Em geral, os peões o são há gerações
(Paraguai, Taquari, Negro, etc.). Estes grupos tradicionais
proprietários), e, de outro, os empregados (os peões e
visto que sua subsistência está totalmente ligada à pesca.
como os fazendeiros. Eles estão na origem da maior parte
Muitos se deslocam de um lugar a outro em função das
do folclore local, com suas tradições e mitos orais.
estações. Longe das práticas industriais, sua pesca
Enquanto os fazendeiros residem frequentemente nas
volume de pesca anual é bem inferior ao da insdústria da
nas terras, cuidando do gado. Eles constituem um grupo
artesanal tem um só impacto limitado no meio ambiente. O
cidades próximas do Pantanal, os peões vivem todo o ano
“pesca esportiva”, que leva cada ano um número crescente
bastante especial e essencial no seio da comunidade
de turistas ao Pantanal. Os pescadores praticam também a
pantaneira
agricultura limitada na medida em que as terras que
e
normalmente,
exploram não lhes pertencem.
são,
ser
portanto,
a
principal
eles
que
deveriam,
encarnação
desta
comunidade. De fato são, sobretudo “a cultura e a ética”
dos peões que foram enfatizadas pelos investidores
Estas políticas públicas locais desinteressam-se pelas
estrangeiros do PRP quando estes sublinhavam a
“harmonia entre o Homem e a natureza” no Pantanal23.
populações – que estão ausentes das narrações habituais
sobre a história do Pantanal. Como algumas de suas
Dada a importância dos peões na comunidade pantaneira
indígena dos Paiaguas, reputados por seus remadores. Mas a
estudamos, voltaremos a esta subcomunidade na última
e sua total ausência no vasto dispositivo de PC que
tradições mostram, elas eram originalmente ligadas à tribo
composição racial destes grupos se diversificou ao longo do
tempo: cada vez mais, mestiços e antigos trabalhadores
agrícolas, que decidiram parar de trabalhar para os
23 Este comentário nos é inspirado por nossas entrevistas com responsáveis do projeto e a
fazendeiros, fazem agora parte dele. Atualmente, estas
documentação que eles forneceram.
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4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
seção. Uma análise de seu capital social permitirá, então
Para o Estado local, ainda é difícil tecnicamente, até
explicar por que sua voz tem sido tão pouco ouvida no
mesmo sensível politicamente, gerir e envolver os grupos
âmbito do PRP.
menos favorecidos do Pantanal – sobretudo em um
dispositivo que teria podido lhes permitir reivindicar
Vê-se, portanto, que o discurso sobre a “proteção do meio
grandes recursos. Quanto aos peritos estrangeiros, o
ambiente pela comunidade tradicional” foi construído
fato de não levarem em conta subgrupos mais frágeis
excluindo importantes subcomunidades. Esta produção
lhes permitiu aparentemente mais facilmente aplicar e
um processo de interpelação de potentes grupos de
mesmo se os índios autóctones, os pescadores e os
diferentes observadores locais sugerem na verdade que
solicitados para refletir sobre a iniciativa do PRP que
enviesada de “sentido comum” também foi originada por
exportar seus conhecimentos e modelos. Desde então,
interesse. Os dados recolhidos durante as entrevistas com
peões vivem no Pantanal há gerações, eles não foram
esta exclusão se adaptava também aos interesses das
apesar de tudo foi promovida – no Brasil e no resto do
autoridades locais implicadas no PRP.
4.3
mundo – como um caso exemplar.
Conclusão
Nós vimos que o discurso sobre a “comunidade
Confrontados com esta realidade, os financiadores
perfeitamente adaptado aos interesses estratégicos dos
contraste com novos atores, cujas atividades são mais
aliança original. Interessando-nos mais pela história
tradicionais. Um meio-termo devia ser encontrado na
tradicional” servindo de base ao projeto do PRP estava
adotaram uma abordagem pragmática destacando o
fazendeiros e das autoridades públicas compondo a
nefastas para o meio ambiente que as dos criadores
social e ambiental a longo prazo do Pantanal,
medida em que a conservação estrita era impossível
enfatizamos o caráter contingente deste discurso – assim
na
como a natureza de seus efeitos de poder produtivo e
região
particulares.
estrutural.
amplamente
detida
pelos
interesses
Examinando os efeitos de poder estrutural do discurso,
Examinando os efeitos de poder produtivo do discurso,
mostramos que os membros da aliança original só
mostramos que a relação entre criação de gado e meio
haviam dado pouca atenção aos outros membros
ambiente não era certamente estritamente harmoniosa, ao
“tradicionais” da comunidade pantaneira – em especial
contrário do que se pensava no discurso sobre a “salvação
aos pescadores e aos peões. No contexto do PRP, a
criação não é uma “parceria favorável” coexistindo com o
fazendeiros. Este exercício eficaz de “poder estrutural”
pela tradição”. Como mostra Wilcox (1992, p. 255), a
“comunidade tradicional” veio coincidir com a dos
meio ambiente. A chegada de “milhares de herbívoros
contribuiu
sobrevivência tiveram realmente um impacto profundo no
motivaram esta atitude são bastante evidentes: os
fauna local, a introdução de novas doenças, a modificação
não tinham vontade de partilhar as vantagens nem
vorazes” e os fatores econômicos indispensáveis a sua
para
reforçar
as
hierarquias
locais
predominantes há muito tempo. Os interesses que
meio ambiente, compreendendo a luta pelo espaço com a
fazendeiros eram os primeiros a beneficiarem do PRP e
progressiva da vegetação, a destruição dos habitats
mesmo
naturais, etc. A prática das queimadas e a instalação de
o
governo
da
futura
estrutura
de
PC.
Paralelamente, as autoridades locais não queriam se
cercas mas também a introdução de essências exóticas
preocupar com as subcomunidades mais pobres, difíceis
perturbaram os ecosistemas locais.
de alcançar e suscetíveis de ter reivindicações políticas.
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4. « A salvação pela tradição »: a construção de um discurso estratégico
Quadro1. A « salvação pela tradição » os principais mecanismos dicursivos.
Dois sistemaschave de
significação
Definir os fazendeiros como
a própria base da “comunidade
tradicional”
Rescrever a história da « criação de gado »
fazer da mesma uma atividade respeitadora
do meio ambiente
Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos:
- os fazendeiros de ascendência europeia ocupam
Produção de sentido
comum
(como tornar o discurso
“natural”)
habitualmente um lugar preeminente nos curtos textos
históricos consagrados ao Pantanal
Interpelação de potentes grupos de interesse:
Articulação com discursos preexistentes e aceitos por todos:
- a opinião pública brasileira tem uma melhor imagem
dos criadores de gado do Pantanal que as ONGs
Interpelação de potentes grupos de interesse:
- as autoridades locais sempre privilegiaram
- para as autoridades locais, é tecnicamente
claramente a criação mais que a conservação
difícil e politicamente sensível relecionar
-se com os subgrupos mais pobres do Pantanal
- para os peritos estrangeiros, é mais fácil
aplicar seus conhecimentos de « parques regionais »
considerando menos subgrupos mais pobres.
- se os criadores são definidos como
« compatíveis com o meio ambiente », os peritos estrangeiros
têm mais facilidade em promover seu modelo de « parque
regional » que está baseado num trabalho com produtores
Efeitos de poder produtivo:
Efeitos políticos
Efeito de poder estrutural: quase-invisibilidade no projeto do
PRP dos grandes atores tradicionais do Pantanal –
especialmente os pescadores, índios e trabalhadores agrícolas
a) efeito pró tradição : bloqueamento dos atores econômicos
« não tradicionais » e reforço da legitimidade dos atores
econômicos « tradicionais »
b) efeito antipolítico:
- o « enverdecimento » dos criadores lhes permitiu obter fundos
internacionais em nome do meio ambiente. Este resultado é
particularmente surpreendente para os fundos concedidos
pela UE
Reprodução do
discurso
(como ocultar as
alternativas no discurso)
Opiniões alternativas ocultadas: os fazendeiros são
somente um grupo dentre outros na comunidade;
o PRP, enquanto dispositivo exemplar de PC, deveria ter
Opinião alternativa ocultada: o impacto histórico dos criadores
de gado no Pantanal foi claramente negativo
integrado os peões e os pescadores no momento de sua
concepção e na estrutura de governo
A contingência do discurso pode ser demonstrada justapondo
os fatos subanalisados (história a longo prazo e análise social)
A contingência do discurso pode ser demonstrada por uma
análise histórica e ambiental a longo prazo
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46
5.
Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto
preliminar »
Nós examinamos aqui a primeira fase implementada do
Defesa do Pantanal), que, por existir há muito tempo, teria
controle social. Desta vez, a política de “bloqueamento”
atores – em particular os peritos estrangeiros e as
PRP e a maneira como a PC se tornou uma prática de
podido em seguida contrabalancear a influência de outros
atingiu os próprios fazendeiros, enfraquecendo sua
associação
principal
pela
defesa
sistemática
autoridades locais. A este respeito, a “fabricação de
do
pluralismo” precipitada e artificial introduziu uma nova
famoso “projeto preparatório para a criação do PRP”
sobretudo, as elites locais mas também, através delas, a
“pluralismo” da parte dos parceiros estrangeiros. O
forma de controle e bloqueamento social que tocou,
(Apoio à Criação do PRP) é lançado em 1998 para
“organizar
e
mobilizar
a
população
local”.
comunidade de fazendeiros. Nós estimamos que este
Ele
processo colocou as marcas de uma supressão
compreende duas grandes partes: a criação rápida de
institucional dos fazendeiros – que ia rapidamente
toda uma série de novas organizações locais, que deve
concretizar-se no seio do parque “participativo”.
diversos projetos de desenvolvimento, que devem “atrair”
Nós começaremos por examinar o efeito de poder
« pluralizar » a sociedade civil local; e o lançamento de
os fazendeiros para que se unam a estas novas
produtivo do discurso sobre “pluralismo”. Este põe em
associações.
questão a influência e a legitimidade da associação de
fazendeiros, a SODEPAN, criando em marcha forçada toda
Como os peritos estrangeiros faziam questão de identificar
uma série de organizações. Mostraremos em seguida
as “melhores práticas de PC”, eles interessaram-se
como este processo foi alimentado pelo recurso a um
progressivamente pela (e implicaram-se diretamente)
poder penoso e os benefícios esperados de “projetos
“fixação da sociedade civil local”, sua “democratização” e
atrativos” para os que se uniriam a uma destas novas
“diversificação”. Este trabalho devia garantir a construção
associações. Finalmente, examinaremos o efeito de
de um parque participativo sob as bases sãs de uma PC
bloqueio deste « pluralismo artificial », a maneira como ele
inclusiva. Contudo, afirmamos que ele arruinou a realidade
reduziu o estatuto e o peso da comunidade dos fazendeiros
da PC, em especial sua intensidade (o grau de participação
no seio do PRP e como estas novas estruturas
ativa), desestabilizando a única associação de fazendeiros
fracassaram para criar
que funcionava corretamente, a SODEPAN (Sociedade de
5.1
na prática grupos de pressão
eficazes representando os fazendeiros.
Novas organizações põem em questão a associação de fazendeiros
Como explica Charnoz (2009b), o « poder produtivo »
forma de “poder produtivo” foi exercida pelos parceiros
manifesta-se através de novos discursos que redefinem
estrangeiros do PRP: estes elaboraram um discurso
os valores e os conhecimentos considerados como
potente sobre a necessidade de “pluralizar” a sociedade
de novos atores ou categorias. Estimamos que uma
da SODEPAN.
adquiridos, o que leva frequentemente ao reforço social
civil local, o que permitiu reduzir o estatuto e a influência
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5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
Antes de empreender o “trabalho preparatório” sobre a
adquiriu sua legitimidade e credibilidade desde esta
associação de defesa dos fazendeiros do pantanal, a
regulamentação internacional proibindo o comércio de
SODEPAN desenvolveu suas atividades em Mato Grosso e
parte das dificuldades de desenvolvimento dos habitantes
sociedade civil, só existia
na verdade, uma única
primeira batalha, ajudada pela adoção de uma nova
SODEPAN. Criada em 1985 em Campo Grande, a
peles de jacaré. Em seguida, vem interessar-se pela maior
em Mato Grosso do Sul, tornando-se o principal meio para
do Panatal e, em particular, pelas necessidades dos
origem a um problema de caça ilegal dos jacarés em terras
campo de ação, que se assemelha praticamente a um
os fazendeiros de defender causas comuns. Ela deve sua
criadores de gado. O quadro 4 mostra a extensão de seu
particulares, frequente em meados dos anos 80 e que
programa político para a região, mesmo se quase não dê
atenção aos pescadores e aos índios.
levou a um recuo severo de sua população. A SODEPAN
Quadro 4 – Um programa para o Pantanal: a visão da SODEPAN
Acesso ao crédito : redução das formalidades administrativas e aumento de apoio financeiro aos criadores de gado através do FCO (Fundo
Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste), um fundo público que é uma das primeiras fontes de financiamento para os fazendeiros.
Saúde animal:
Melhor apoio veterinário e melhor proteção dos produtores. Reorganização da IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e
Vegetal), a instituição pública encarregada destas questões. Melhores garantias através de mecanismos tais como o FEFA (Fundo
Emergencial da Febre Aftosa), um fundo de urgência destinado a ajudar os produtores confrontados com episódios de febre aftosa.
Energia: finalização do programa « luz para todos » no Pantanal.
Meio ambiente: revitalização do rio Taquari, bloqueando os sedimentos provindo dos planaltos e criando represas para estabilizar o leito
do rio. Procedimentos acelerados para conceder uma etiqueta verde às atividades agrícolas. Definição de períodos durante os quais o fogo
controlado é autorizado.
Pesquisa: desenvolver a pesquisa aplicada em institutos como a EMBRAPA e as universidades.
Políticas sociais: Garantir uma educação de base profissional no Pantanal, obtendo ajudas públicas duráveis para as escolas pantaneiras, em parceria com os agricultores (remuneração dos professores, construção e equipamento de novas salas de aula e novos abrigos
para os alunos). Criação de escolas públicas de agronomia (Escolas Rurais Estaduais) em lugares-chave, de maneira a otimizar a frequentação e a propor uma formação de nível de técnico agrícola. Programas de requalificação para os pescadores profissionais a fim de que
possam tornar-se guias turísticos, artesãos ou assistentes para o meio ambiente.
Telecomunicações: instalação de antenas nos lugares-chave para assegurar uma cobertura de telefonia móvel completa.
Turismo: criação de uma ponte aérea entre Foz do Iguaçu e Bonito. Criação de uma companhia aérea regional equipada com pequenos
aparelhos (aviões monomotores de onze lugares) para transportar os turistas na região. Criação de linhas de ônibus diretas entre diferentes
pontos de interesse. Revestimento dos 77 km de estrada entre os três centros turísticos de Mato Grosso (Porã Tip, Pretty e Corumbá)
Transportes: criação ou reabilitação das estradas, pontes e transporte fluviais.
Fonte: SODEPAN (2009).
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5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
Ao longo dos anos, a SODEPAN exerceu um lobby
funcionava bem para nós. Estávamos bastante ligados a
particularmente ativo junto ao Estado local para obter
esta organização.
melhores serviços públicos (infraestruturas de transporte
ou saúde), mas com resultados modestos. Ela também
- por que teríamos tido necessidade de quatro, cinco ou
relançou a pesquisa sobre a produção de gado em
diferentes
universidades
locais
e
promoveu
seis associações para encontrar soluções entre nós? Era
o
realmente insensato.
reconhecimento da “cultura pantaneira” através de
iniciativas como o Dia do Homem Pantaneiro ou a
- os fazendeiros podem se falar quando querem. Eles
publicação de obras de referência sobre a hisitória local,
não têm realmente necessidade de uma instituição oficial
SODEPAN assegurou-se igualmente do apoio técnico e
só tem sentido quando devem realmente se confrontar,
frequentemente eecritos por membros de famílias locais. A
para fazê-lo – aliás, eles não gostam muito da ideia. Isto
financeiro de diferentes organizações brasileiras para
todos juntos, com um problema ou uma autoridade. Era
testar alternativas econômicas – como a produção de mel
a ideia da SODEPAN. Por que nos dividir em vários
ou o ecoturismo. Neste contexto, esta organização era o
grupos? Isto só nos enfraqueceria.
parceiro evidente, senão indispensável, do projeto do PRP
e ela de fato foi associada à gênese: a organização tinha
Como explicou um de nossos interlocutores, a ideia de
franceses desde o início e contribuiu para organizar uma
provinha, sobretudo, da equipe estrangeira, mesmo se esta
representantes no momento das reuniões com peritos
“aumentar o pluralismo” através de novas associações
série de reuniões de informação sobre o PRP no Pantanal.
tivesse o apoio de certos ministros locais que contavam
aproveitar a situação para colocar em questão a influência
Todavia, nossas diferentes entrevistas com fazendeiros e
regional da SODEPAN. Mas, a preocupação dos técnicos
funcionários revelaram que, muito cedo, os peritos
franceses naõ só tinha inimigos na comunidade fazendeira.
a iniciativa para si”. A representatividade social da
chegada de novas associações. Algumas entrevistas com
estrangeiros temeram que a SODEPAN “recuperasse toda
Alguns habitantes viam, na verdade, com bons olhos a
associação foi colocada em questão pelos parceiros
pequenos fazendeiros nos permitiu reunir os seguintes
franceses. É bastante interessante ver que no momento de
comentários:
uma conferência sobre a experiência do PRP organizada
em 2004, os principais peritos estrangeiros não fizeram
- Eu estava feliz em saber que a SODEPAN não estaria
projeto:
“a SODEPAN isso” a “SODEPAN aquilo” e não ter a
nehuma alusão à SODEPAN e até afirmaram que antes do
[...]
não
existia
nenhuma
instituição
representando seus habitantes24.
no
mais sozinha. Alguns dentre nós estavam fartos de ouvir:
impressão de ser representados pela organização.
território
- As pessoas queriam novas caras, mas não sabiam
como fazer nem quem poderia fazê-lo.
Os parceiros franceses, portanto, apoiaram energicamente
a ideia de multiplicar as associações pantaneiras para
Para alguns fazendeiros, portanto, a liderança da
produção do Pantanal antes da criação do PRP. Esta
demais de sua comunidade – unicamente exercida por um
representar as diferentes sub-regiões e outros grupos de
SODEPAN só correspondia a uma representação estreita
proposta, que não era negociável para os franceses,
punhado de famílias importantes – “sempre as mesmas
suscitou reações mitigadas entre os fazendeiros, vários de
famílias”, como nos disse um dentre eles. Alguns
- muita gente, como eu, não via interesse em criar outras
24 Delorme (2004, pg. 7) : « Essa primeira fase foi fundamental […] porque num território [...]
nossos interlocutores fizeram comentários negativos:
associações. Tínhamos a SODEPAN e sabíamos que ela
não existia nenhuma instituição que representasse as pessoas”.
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49
5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
pensavam também que a organização se tinha tornado
sociedade civil local do Panatanl. Segundo a metodologia
segmentos mais ricos da comunidade. Um fazendeiro
particular a FPNRF – a primeira etapa para a criação de um
demasiado formal e institucional, privilegiando os
implementada pelos participantes franceses – e em
modesto declarou assim, no momento da entrevista:
“parque participativo” é a da “preparação da sociedade
civil”, o que significava no caso do Pantanal, a
reestruturação integral de sua paisagem associativa.
[A SODEPAN] tornou-se uma sociedade fechada,
Vimos, esta era dominada pela SODEPAN, considerada
interessando-se somente pelos “grandes fazendeiros”. Os
por alguns habitantes e pela equipe francesa como
pequenos não contavam muito. [...] Assim, você deve
pagar uma cotização anual para fazer parte, que não pára
insuficientemente representativa e pluralista.
estas tarifas eram fixadas de propósito para nos excluir.
Este aspecto crucial do projeto preliminar foi oficialmente
Estes ressentimentos vieram alimentar uma suspeição
local”. Ele destacava o discurso sobre o “pluralismo”, uma
de aumentar. Nós [os pequenos] começamos a pensar que
batizado “trabalho sobre a organização da população
crescente dos peritos estrangeiros que receavam que a
melhor organização das pessoas”, o aumento da
SODEPAN “quisesse recuperar o PRP e controlá-lo
representatividade das associações” e a “mobilização da
totalmente» 25. Eles consideravam a preeminência desta
população”. Através do trabalho de terreno da equipe
representativa” e “demasiado concentrada” como se lembra
de reuniões e discussões foram organizadas nas diferentes
organização como “nociva”, “antidemocrática”, “não
técnica conduzida pelo principal perito francês, uma série
um dos observadores da época. De outro modo e utilizando
sub-regiões do Pantanal, para difundir estas idéias. Este
consideravam que a SODEPAN era uma forma de CP
associações regionais:
o vocabulário definido por Charnoz (2009b), os franceses
processo levou à criação, em 1999-2000, de três novas
“estreita e concentrada nas elites”, só se interessando pelos
l’UNIPAN
fazendeiros mais ricos e excluindo numerosos subgrupos
(União dos Pantaneiros da Nhecolândia);
l’APANMERA
pertencendo à comunidade do Pantanal.
(Associação dos Pantaneiros da Margem
Esquerda do Rio Aquidauana);
A fase inicial da implementação do PRP – a saber, o
l’AVRN
criação do parque com previsão de quatro anos. Ela tinha
Duas outras associações regionais nasceram num
“projeto preliminar” – foi lançada em 1998 para preparar a
(Associação do Vale do Rio Negro).
segundo tempo:
como primeira responsabilidade delimitar um território (uma
área batizada “área de estudo” nos documentos do projeto)
para
no seio do qual os fazendeiros seriam convidados a se
para
unirem ao parque voluntariamente. Em seguida, tratava-se
de redigir uma “Carta do parque” enunciando uma série de
a região do Rio Verde;
a região de Taboco.
princípios de gestão e objetivos comuns que os membros
Estas cinco novas entidades tinham federado cerca de 250
lugar, era necessário decidir o estatuto jurídico, as fontes
sucesso (PRP, 2002, pg. 11). O processo também conduziu
fazendeiros em 2002 – um número considerado como um
do parque se comprometeriam em respeitar. Em terceiro
à criação de três associações setoriais:
de financiamento, o pessoal e competências da estrutura
de gestão. Finalmente, era necessário também pressionar
Uma
as autoridades federais e vender o conceito de “parque
contrato
coletivo,
a
fim
de
melhor
preparar
consagrada ao desenvolvimento de instalações e
ciclos educativos adaptados ao Pantanal (APPEP,
regional” evidenciando o aspecto de “co-gestão” e o
o
Associação de Parceiros, Pais e Professores da Escola
reconhecimento de uma nova categoria jurídica. Mas a
Pantaneira);
característica mais impressionante do projeto vem,
25 Este parágrafo contém passagens de duas entrevistas – com um fazendeiro e com um
membro de uma ONG local.
sobretudo, da transformação, julgada indispensável, da
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5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
Uma
outra visando o desenvolvimento do ecoturismo
A
(APPAN, Associação de Pousadas Pantaneiras);
5.2
última centrada na criação de gado (GTE, Grupo de
Troca de Experiências).
Alimentar o processo com “projetos atrativos”
O “poder de pressão” toma forma não conflituosa logo que
“produtos da terra” – a saber, produtos rurais com grande
um tipo de comportamento esperado, evitando recorrer à
em voga nos parques regionais franceses para federar os
os recursos materiais servem para produzir incitações para
identidade local. Esta estratégia de produção está bastante
obrigação pura e simples. Mas certas incitações podem ser
produtores locais, dar certificados de qualidade de seus
obrigação – é o caso em especial, quando o fato de não
de qualidade comuns (e mais obrigatórias).
concorrentes. Estimamos que tal mecanismo serviu de
O VITPAN visava a produção de carne a partir de animais
âmbito do projeto preliminar do PRP. Desde que este
espessura de gordura bem determinada. Estes animais
tão imperiosas que se assemelham praticamente a uma
produtos e vendê-los sob um certificado único com normas
aproveitar disso se torna um entrave em relação aos
base para a transformação da sociedade civil local no
de 10 meses a um ano, alcançando 180 quilos e tendo uma
começou, uma série de projetos de desenvolvimento foi
deviam ser criados em pastos naturais, sem antibióticos,
para as novas associações. Dado os benefícios que os
europeias de agricultura biológica. A comercialização e a
lançada que se mostrou crucial para atrair “voluntários”
com um mínimo de vacinas e segundo as normas
criadores podiam ter, eles suscitaram entusiasmo e
distribuição deviam ser revistas de cima a baixo – os
funcionaram como “iscas”, como o exprimiu um antigo
certificados de qualidade eram dados pelo MAPA,
aos diferentes projetos com a condição de que aderissem
empresa francesa26. Esta situação não convinha a todos
presidente da SODEPAN. As pessoas podiam associar-se
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e uma
a uma das novas associações; o fato de pertencer à
os parceiros, alguns deles estimavam que os franceses
estas “iscas” mobilizaram mais de 250 fazendas a favor da
empresa. De qualquer modo, cada um esperava que o
hectares (FPNRF, 2002, p. 17). De fato, como vários de
produtividade de toda a região. Para se associar ao
impunham sem nenhuma obrigação técnica sua própria
SODEPAN, em especial, não era suficiente. Com o tempo,
VITPAN fosse estimular a utilização econômica e a
iniciativa do PRP, representando cerca de dois milhões de
projeto, os fazendeiros deviam aderir a uma das novas
nossos interlocutores lembraram, o famoso “trabalho de
associações regionais e comprometerem-se em respeitar
mobilização da população local” resumiu-se a um exercício
de propaganda para a criação do parque e suas diferentes
as diretivas técnicas. O VITPAN seduziu sobretudo os
representava para os fazendeiros a adesão aos diferentes
preocupados em aumentar rapidamente sua produtividade.
pequenos fazendeiros (menos de 10 000 hectares)
associações, destacando o interesse imediato que
Com a promessa de valor adicionado e melhoramento da
projetos piloto.
comercialização das carnes produzidas localmente, este
O projeto VITPAN
projeto alimentou nos “pequenos” a esperança de serem
“salvos”. No final de 2002, o vitelo pantaneiro alcançava um
O VITPAN (Vitelo pantaneiro) mostrou-se ser o projeto
preço de venda de 700 BRL por cabeça, ou seja, mais de
mais sedutor para os fazendeiros. Foi também o mais
duas vezes o preço de um animal normal. Cinco por cento
do preço de venda era transferido ao novo IPP (o
importante. A ideia principal consistia em desenvolver uma
mecanismo institucional administrando o parque regional)
nova linha de produtos cárneos (o vitelo pantaneiro) dotada
para seus gastos de funcionamento.
de uma identidade local visível e comercializável a um
preço superior às tarifas médias. Ainda neste sentido, o
26 Ecocert/Brasil.
conceito era importado da França, inspirado pelos
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5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
Se para os locais, o VITPAN era um projeto guia do PRP,
criando especialmente um site Internet e participando de
notamos que não era diretamente financiado pelos fundos
estrangeiros,
mas
unicamente
pelo
Ministério
diferentes feiras profissionais. Mas o ecoturismo não é
da
realmente desenvolvido no Pantanal nos anos seguintes
100 000 EUR suplementares). Quanto ao apoio cientifico,
sempre pesadas (entre outros exemplos, o custo dos
Agricultura (80 000 EUR para a primeira fase, em seguida
era
assegurado
pelas
universidades
locais
e
após sua criação, por causa das obrigações logísticas
transportes) e fortes riscos do turismo americano29. Várias
a
EMBRAPA27. Vê-se neste sentido que as prioridades dos
pousadas fecharam desde aquela época e o número de
financiadores
em 2008, no momento em que nós efetuamos este trabalho
fazendeiros não eram exatamente as mesmas que a dos
estrangeiros.
Enquanto
os
aderentes da APPAN tinha diminuído de mais da metada
primeiros
estavam, sobretudo preocupados com a viabilidade
de terreno.
econômica da produção de gado, os segundos procuravam
O programa procurava também diversificar a produção de
conduzi-los em direção a novas preocupações e
carne além do gado, a fim de “mercantilizar” a fauna e ter
atividades. Outros projetos, contudo, não diretamente
ligados à produção de gado, nasceram com o apoio de
lucro. Tratava-se quer capturar espécies selvagens, quer
os habitantes. De qualquer modo, os peritos estrangeiros
brasileiros, o projeto piloto interessou-se pela produção de
criá-las. Com a ajuda de pesquisadores franceses e
fundos estrangeiros, mas interessaram claramente menos
conseguiram fazer de maneira que a adesão a uma
porco monteiro, mobilizando rapidamente 21 fazendas. Ele
VITPAN.
capivara, o cateto, a ema e o jacaré. Novos circuitos
voltou-se também para outras espécies selvagens, como a
associação fosse uma condição para beneficiar do projeto
comerciais foram identificados para vender estes produtos.
Interesse e expectativas menores dos nativos: os
Mesmo se não podemos falar de fracasso, este projeto
Uma série de outras iniciativas foi empenhada no âmbito
espécies30. A criação em 2004-2005 de uma instalação
biodiversidade da região do Rio Negro do Pantanal”. Este
de diferentes espécies foi uma etapa decisiva – a estação
outros projetos
teve somente um sucesso limitado. Em 2008, a produção
era ainda bastante modesta e só dizia respeito a algumas
de um “projeto de ações piloto para a valorização da
último grito em matéria de tratamento de carnes provindo
programa beneficiava de um financiamento da cooperação
experimental
Campo
Grande
Meat
Technology
francesa (58%) e, em menor medida, da UE (14%) e de
Experimental Station, sob a responsabiliodade do CIRAD e
nossos interlocutores, o programa suscitou o interesse de
mesmo tempo comerciais e de pesquisa, mas ela levou ao
outros parceiros locais28 (28%). Como o explicou um de
financiada pelo FFEM. Até hoje ela serve para fins ao
“alguns fazendeiros mais originais voltados para o futuro
desenvolvimento sólido de uma insdústria da carne de
A primeira dimensão do programa dizia respeito à
A terceira parte deste programa visava reduzir os conflitos
para os pequenos fazendeiros. Isto conduziu à criação, em
único projeto ligado à proteção do meio ambiente. As
[...], que não tinham medo de se lançar no desconhecido”.
espécies selvagens.
promoção do ecoturismo, apresentada como alternativa
entre onças pintadas, onças pardas e criadores de gado. O
fevereiro de 2001, de uma associação setorial, a APPAN,
que reunia no início 16 fazendas, cuja maior parte, já
27 A EMBRAPA (empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola) é um órgão federal cuja missão é
realizar pesquisas aplicadas e transferância de tecnologia em apoio ao desenvolvimento
durável da agroindústria brasileira.
28 Mais precisamente, 44% do programa foram financiados pelo FFEM, 14% pelo CIRAD
funcionava como pousadas. Esta nova organização tem
como objetivo federar as pousadas, propor ofertas
(rede francesa pública de pesquisa), 14% pela EU e 28% pela EMBRAPA e o estado local do
Mato Grosso do Sul.
29 Sobretudo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 – um fenômeno igualmente
turísticas coordenadas, vender mais amplamente a
destinação do Pantanal, assegurar a formação de guias e
melhor
negociar
com
os
viajantes
nacionais
observado na Soufrière.
30 Uma das dificuldades encontradas vem do fato que o « consumo » de espécies selvagens
e
internacionais. Ela também apostou na comunicação,
no Brasil está amplamente assimilada à caça ilegal e tabu.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
52
5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
perdas inflingidas por esses animais selvagens representa
de três a onze, recebendo praticamente 500 alunos. Sua
cerca de 0,2% do total de cabeças por ano, ou seja,
ação ganhou vários prêmios brasileiros. Mas a derrocada
centenas de cabeças por fazendeiro, o que torna
do PRP depois de 2005 perturbou gravemente este
numerosos fazendeiros bastante sensíveis a esta questão
movimento, que o Estado local decidiu não mais manter. A
foram apresentadas aos criadores para reduzir este
algumas funcionavam ainda no momento em que
daí uma caça ilegal da onça pintada. Algumas técnicas
problema.
Profissionais
zimbabuanos
maior parte das escolas pantaneiras fechou, portanto, e só
também
efetuamos este trabalho de terreno.
asseguraram uma formação para os guias turísticos, a fim
de ensinar-lhes a praticar uma “caça racional”. Este projeto
Globalmente, a mobilização dos fazendeiros a favor do
se mostrou ao mesmo tempo útil e frutuoso. A WCS ainda
parque regional através de projetos “atrativos” mostrou-se
trabalha sobre estas questões.
eficaz, mas se chocou com alguns obstáculos. Os
fazendeiros estavam bem mais interessados pelos
Enfim, o “projeto preliminar” do PRP comprometeu-se
aspectos produtivos do que pelos aspectos ambientais e
com ações educativas, apoiando-se na rede de escolas
sociais, como o lembra o primeiro presidente do PRP:
pantaneiras que tinha necessidade de ser reforçada.
Projeto mais “social” de todos os projetos “atrativos”, ele
O projeto VITPAN era para os fazendeiros o projeto guia
motivados. Desde os meados dos anos 90, alguns
questões, como a conservação, o ecoturismo ou a
responder às necessidades das famlilias de seus
reuniões. Para uma reunião sobre o VITPAN, você chega a
suscitou o interesse de um punhado de fazendeiros já
[…] mas no momento em que nós quisemos abordar outras
fazendeiros têm criado escolas no Pantanal para melhor
educação, tivemos muitas dificuldades para organizar
trabalhadores e evitar um êxodo para a cidade no
mobilizar 40 a 50 pessoas enquanto para uma reunião
momento em que as crianças atingem a idade de serem
sobre a educação, a assitência reduzia-se a seis ou oito
escolarizadas. Os fazenderos encarregam-se de todas as
pessoas. O sucesso ainda era menor para o ecoturismo.
cargas de funcionamento, o Estado assumindo os
salários dos professores nas mesmas base que em outro
Em 1998 e com a desvalorização progressiva da moeda
brasileira31, os preços da carne viram uma nova melhoria
lugar.
momentânea. Esta situação incitou fortemente os criadores
a privilegiar a produção de carne, o que explica em parte a
A influência do “projeto preliminar” do PRP para a criação
importância constante dada pelo projeto do PRP a este
de novas associações teve importância na criação da
aspecto e a falta de entusiasmo dos participantes para
APPEP, em 1998. Até 2003 e com o apoio financeiro do
projetos mais “aventurosos”.
projeto do PRP, o número de escolas pantaneiras passou
5.3
O impacto da deslegitimação: uma PC em perda de intensidade e de inclusão
Em alguns anos, oito novas organizações saíram do nada,
dos fazendeiros a unirem-se a associações oficiais e a
reunindo centenas de fazendeiros – um resultado que a
comprometerem-se com um empreendimento coletivo. O
A situação parecia de fato excepcional em relação à falta
solidariedade entre eles. Tradicionalmente, os fazendeiros
equipe francesa reivindicava na época como um “sucesso”.
que não quer dizer, porém, que não praticam a
tradicional de espírito associativo na comunidade
ajudam-se, de maneira pontual, como o fazem os bons
fazendeira. A criação da SODEPAN, nos anos 80, já tinha
sido bastante notável neste sentido. Durante nosso
31 A moeda brasileira passou de 1,2 BRL para um dólar em dezembro de 1998 a uma taxa
de 3,6/1 em dezembro de 2002. Durante este período, o preço do boi brasileiro dobrou na
moeda local enquanto seu preço em dólar desabava.
trabalho de terreno, numerosas pessoas interrogadas
sublinharam a reticência típica e profundamente enraizada
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
53
5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
vizinhos – uma atitude que era vital no passado, dado o
autoridades locais – que até mesmo praticamente
isolamento geográfico de numerosas fazendas32. Por esta
abandonaram o projeto depois de 2005. Quanto a APPAN,
propensão e vontade de sentir-se “donos de seu reino”.
sem nenhuma ajuda do Estado nem mesmo um início de
razão, os fazendeiros do Pantanal têm também a
esta se esforçou para promover o ecoturismo no Pantanal
Eles querem preservar esta autonomia. Eles resmungam,
coordenação entre seus membros.
os quais devem tomar decisões. Em todas as áreas, a
No final, esse “pluralismo artificial” fez nascer associações
levar a bom termo juntos um projeto de importância. Como
e conchas vazias”, para retomar a expressão de um
portanto, quando têm um patrão, até mesmo parceiros com
escolha é a deles. Esta comunidade não tem o hábito de
criadas demasiado rápido que pareciam muito com “anões
nos disse um dos fazendeiros:
membro de uma ONG. Não somente elas se mostraram
ineficazes em termos de mobilzação e de organização das
populações locais em torno de diferentes causas, mas,
Aderir a uma cooperativa, uma associação ou a um
além disso, elas se mostraram prejudiciais para a
sindicato significa que você perde uma parte de sua
comunidade fazendeira em seu conjunto, destruindo o
liberdade.
estatuto e a legitimidade da única associação de
Para a mentalidade local, o aparecimento de oito novas
fazendeiros que funcionava bem, a saber a SODEPAN. Ao
associações era praticamente inconcebível. Esta “mania
contrário destas novas associações, a SODEPAN, não era
interlocutores, parecia até suspeita para os que conhecem
uma organização comunitária mesmo se, na prática,
associativa”,
como
o
qualificou
um
de
“uma experiência de laboratório”33 e se aparentava mais a
nossos
estivesse sob o controle das grandes famílias locais.
bem a aversão dos locais a todo compromisso coletivo.
Contudo, vimos, centenas de “voluntários” foram levados a
unir-se a estas novas associações visto que era a única
O desejo de evitar que o projeto do PRP não fosse
oferecia
Mas
relativamente pouco representativa adaptava-se bem a
vontade de participar regularmente das reuniões ou definir
pelos técnicos estrangeiros. Todavia, ela fez a única
recuperado por uma única associação comunitária
maneira para eles de participar do projeto VITPAN, o qual
a
perspectiva
de
ganhos
rápidos.
priori, à lógica das “melhores práticas PC” acompanhadas
rapidamente ficou claro que estes “voluntários” não tinham
organização bem implantada perder sua legitimidade
e representar juntos as espectativas de sua comunidade.
enquanto “voz dos fazendeiros”, assim com sua aptidão
Os anos seguintes iam revelar o lastimável funcionamento
para considerar o peso da comunidade fazendeira durante
vez menos pessoas para suas raras reuniões – ao
paralelamente organizações credíveis para efetivamente
as negociações com o Estado, por exemplo, sem criar
destas novas “associações regionais”, que atraiam cada
representar os interesses desta comunidade. Aqui, o modo
contrário da SODEPAN. Sua função de representação
de bloqueamento é o da deslegitimação.
perdeu-se, assim como sua aptidão a, por exemplo,
coordenar
os
comportamentos
dos
fazendeiros,
Com essas « associações representativas » instaladas no
compreendendo nisto a sobrevivência do projeto VITPAN.
Nenhuma dentre elas ganhou suficientemente influência
centro do sistema de governo do PRP, a PC era na prática
Estado. Como sugeriram várias pessoas interrogadas,
participação
para ter um poder de negociação no seio da comunidade
nossos interlocutores, que o processo abriu a via para uma
as duas associações culturais, apesar de sua extrema
32 A vida moderna na cidade (onde reside a maior parte dos fazendeiros) assim como as
estradas e os automóveis mudaram em parte a situação.
33 Entrevista com um fazendeiro.
de fraca intensidade34 para os fazendeiros, sua
em qualquer área, especialmente para obter fundos do
sendo
mais
formal
ou,
no
máximo,
consultativa. Nós estamos de acordo, como para vários de
cada associação era “demasiado pequena e inexperiente”
fazendeira ou fora dela. Esta observação vale também para
especificidade. Assim, a APPEP teve de administrar seu
34 Segundo a definição dada na seção 4.2.3.
programa educativo sem obter um apoio suficiente das
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
54
5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
recuperação do projeto PRP por outros atores influentes –
fazendeiros o centro da “comunidade tradicional”. Esta
um fenômeno que devia manifestar-se ulteriormente, como
situação se concretizou enquanto que os criadores do
sentimento que sua marginalização era um “complô”,
em matéria de PC. Comentando este trabalho, o principal
veremos na seção seguinte. Alguns fazendeiros têm até o
projeto afirmavam terem tido recurso às melhores práticas
previsto desde o início. Como o diz um dentre eles:
perito estrangeiro do PRP indicou que sua equipe tinha
começado por recensear todas as pessoas vivendo e
trabalhando na região, de maneira a garantir a integração
Os políticos queriam enfraquecer a SODEPAN para tomar
tão ampla como possível dos atores sociais no dispositivo.
o controle do parque e fazer disso um instrumento a sua
disposição.
Para garantir a participação, é necessario saber quem
Outro observador vem fortalecer esta tese do “complô” da
vive no local e o que fazem. De fato, desde a primeira
parte dos técnicos estrangeiros:
fase do projeto, nós demos um diagnóstico institucional
para saber quem vivia na região e quais eram suas
atividades35.
Os estrangeiros e o Estado destruíram nossa comunidade
com uma demagogie contínua [...] Eles queriam nos
Por essa razão, as novas organizações não associaram
marginalizar de uma maneira ou de outra a fim de terem as
alguns dos grandes grupos vivendo e trabalhando na área
mãos livres.
prevista para o parque. Os trabalhadores agrícolas e os
pescadores, em especial, nunca foram mobilizados, até
Não somente o processo de “pluralização” ocasionou uma
mesmo contatados para definir uma visão comum. O número
PC de fraca intensidade no parque participativo – visto que
limitado de subgrupos comunitários implicados no “processo
ele enfraqueceu desde o início a voz dos fazendeiros –
de pluralização” transpôs o grau estreito de inclusão da PC
mas, além disso endossou seu medíocre grau de inclusão
do discurso “tradicionalista” em prática institucional.
já presente no discurso sobre as “tradições” que faziam dos
5.4
Conclusão
Nós vimos que a perícia estrangeira tinha pesado no
suficientes quatro anos para destruir a influência da
“projeto preliminar” de maneira fundamental e que não era
SODEPAN sem por essa razão conseguir impor as novas
necessariamente conforme à exigência das populações
associações fantasmas. Entretanto, este “pluralismo
locais: o destaque foi sobretudo a obrigação de começar
artificial” abraçou a ideia de uma comunidade local
por “fixar a sociedade civil local”, de pluralizá-la em lugar
exclusivamente centrada nos fazendeiros, deixando de
de construir o PRP em instituições comunitárias existentes.
lado os outros grupos sociais presentes no Pantanal. Tudo
Esta atitude era provavelmente louvável do ponto de vista
isso se voltou contra o princípio próprio de PC que se
do discurso geral sobre a PC, mas, assim como o “inferno
tornou, como sempre, um instrumento propício a um
mostrou prejudicial para os próprios fazendeiros. Ele
inclusivo.
está cheio de boas intenções”, este “projeto preliminar” se
controle e um bloqueio sociais e não um modo de governo
colocou em questão a legitimidade, e, por conseguinte a
influência da única associação de fazendeiros digna deste
nome, a SODEPAN, que teria podido em seguida
neutralizar alguns atores. A curto prazo, o “projeto
preparatório” reduziu sobretudo a liderança e a capacidade
35 Delorme (2004, pg. 6): « para conseguir a participação é necessário saber quais são as
pessoas que estão vivendo nesse lugar e o que elas estão fazendo. Foi feito, no primeiro
momemnto, na primeira fase do prjeto, um diagnóstico institucional para saber quem eram as
pessoas que viviam lá e o que elas estavam fazendo”.
dos fazendeiros de resistir às forças não comunitárias para
a gestão do parque que ia em breve nascer. Foram
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
55
5. Criação do pluralismo: consequências imprevistas do « projeto preliminar »
Como nós veremos, a SODEPAN conseguiu preservar
fazendeiros de perderem rapidamente o controle de “seu
certa influência nos primeiros momentos de funcionamento
parque”.
o primeiro presidente do parque. Mas isso não impede os
seguinte.
do parque, visto que seu presidente se tornou naturalmente
O
processo
de
recuperação
política
e
desapossamento que se seguiu é estudado na seção
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
56
6.
O poder institucional em ação
Nós examinaremos a evolução do parque natural regional
de fato marcada pela presença contínua de peritos
em sua instituição central, o IPP. Esta instituição é
“projeto preliminar” e depois da criação oficial do PRP. Estes
do Pantanal a fim de comparar a teoria e a prática do poder
estrangeiros que jamais desapareceram, mesmo no final do
considerada como uma “formação de poder” (para uma
técnicos ficaram lá, ultrapassando amplamente seu papel de
definição ver Charnoz [2009b]) que reúne diferentes atores
“animadores” dotados de um forte poder institucional do fato
locais, nacionais e internacionais visando partilhar uma
de suas relações estreitas com os investidores .
série de responsabilidades. Assim, nós nos interessaremos
pelo “poder institucional” e pela capacidade, viável, destes
Em terceiro lugar, identificaremos um processos paralelo
diferentes atores de explorar esta instituição.
de « recuperação política » ativa cuja origem fazemos
remontar a 1999, pouco depois do lançamento do “projeto
Nós veremos primeiro que a constituição jurídica do parque
preliminar”. Através de diferentes canais formais e
instaurava um sistema de co-gestão na qual as decisões
informais de poder publico, um punhado de políticos locais
deviam ser tomadas ao mesmo tempo pelos fazendeiros e
começou a exercer uma influência direta crescente na
das forças era claramente favorável aos fazendeiros locais,
impuseram – a nomeação de várias pessoas ao mesmo
diferentes níveis do poder brasileiro. No papel, o equilíbrio
estrutura da IPP. Eles, “sugeriram” especialmente – e
visto que o IPP devia “deixá-los dirigir” e garantir um real
tempo nas instâncias dirigentes do IPP e na equipe técnica.
de PC. A este respeito, o IPP era a incarnação do discurso
relação aos membros do parque. Além disso, eles
tradição » e dava prioridade às necessidades da
“recuperação política” do IPP ocasionou uma série de erros
grau de inclusão, de alcance e de intensidade em matéria
Esses novos responsáveis eram pouco devedores em
fundador da aliança original, que pregava a « salvação pela
defendiam uma ordem do dia bastante obscura. Esta
“comunidade local” (seção 7.4).
e irregularidades de gestão que acabaram por provocar a
falência do parque.
Em seguida, mostraremos como as práticas institucionais
levaram a destituir os fazendeiros de sua autoridade e a
Finalmente, mostraremos que esta derrocada foi acelerada
estrangeiros ocupavam um lugar central. Para nós, trata-se
presidente para o parque – um artista pantaneiro conhecido
que ele é menos o resultado de uma vontade deliberada de
explorar a notoriedade para ganhar novamente o controle
que da inércia da gestão regularmente combinada com a
controle político, levando à supressão total da comunidade
fazer emergir uma “formação de poder” na qual os atores
e não retardada pela eleição, em abril de 2003, de um novo
de um processo “passivo” e não “ativo”, porque estimamos
em todo o país e de quem os fazendeiros esperavam
desapossar as populações locais de suas prerrogativas do
da situação. Na verdade, esta eleição abriu as veias do
influência dos atores estrangeiros. A governância da IPP foi
local.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
57
6. O poder institucional em ação
6.1 Uma PC altamente inclusiva, ampla e intensa: o compromisso fundador de um
« dispositivo de gestão compartilhada »
Em 2 de agosto de 2002, o Estado de Mato Grosso do
sociedade civil. O decreto estipulava explicitamente que:
Sul criava em seu território uma nova categoria jurídica
para a proteção do meio ambiente, a AEPA (Área
A área especial de proteção do meio ambiente [deve ser]
assinado pelo governador36 consagra imediatamente a
participativa.
Especial de Proteção Ambiental). O mesmo decreto
inteiramente
existência desta categoria criando o “parque natural
regional do Pantanal”. Em relação ao quadro jurídico
gerida
de
maneira
democrática
e
O PRP mostrou-se, portanto, como uma “inciativa conjunta”
brasileiro – o sistema SNUC – a AEPA é revolucionária
reunindo o Estado e as partes diretamente interessadas
de vários pontos de vista.
através
de
um
dispositivo
de
co-gestão
(gestão
compartilhada). Cinco municípios foram integrados
Primeiramente, ao contrário da maior parte das categorias
igualmente: Aquidauna, Corguinho, Miranda, Rio Negro e
SNUC, a AEPA não baseia sua proteção do meio ambiente
Rio Verde de Mato Grosso.
sua promoção. Ela não acarreta, portanto, a retirada de
Enfim,
Ela procura mais reforçar sua presença e instaurar um tipo
livremente aderir ou não. Este aspecto é particularmente
em uma limitação das atividades humanas, mas mais em
direitos de propriedade e de pagamento de indenização.
a AEPA é
definida
como
um
dispositivo
exclusivamente voluntário ao qual os fazendeiros podem
de desenvolvimento mais sustentável. Como o exprime
inovador na paisagem jurídica brasileira, tomando para si o
oficialmente o decreto fundador, o objetivo do PRP consiste
discurso sobre a PC. Por conseguinte, o território do PRP
em:
não seria necessariamente contínuo visto que ele
representava o total das terras dos fazendeiros que teriam
escolhido aderir.
[…] manter a população pantaneira que exerce uma
atividade de produção no Pantanal ao mesmo tempo
preservando seu equilíbrio econômico, social e ecológico;
Alguns estados da federação brasileira já tinham defendido
humano e natural da comunidade.
ambiente, diferente do quadro padrão do SNUC. O Estado
novas categorias jurídicas para a conservação do meio
[…] basear seu desenvolvimento econômico no patrimônio
de Rondônia também criou duas outras classes, a das
A AEPA tinha como objetivo específico de:
“florestas públicas destinadas à extração” e a das “florestas
públicas destinadas à proteção sustentável” autorizando
novas práticas produtivas nas áreas protegidas. Mas
[…] demonstrar a viabilidade da criação extensiva de gado.
nenhum Estado foi mais longe que o de Mato Grosso do
Tudo isso provava o apego à nova construção do
Sul para tentar confiar o controle aos produtores locais com
discurso sobre « a salvação pela tradição », analisada
a adaptação do conceito francês de “parque natural
anteriormente, e cuja existência tinha como objetivo
regional”. Mesmo se se fala de “área protegida” para o
quo.
fazendeiros – afora a verificação do respeito às leis
reforçar a comunidade fazendeira e preservar o statu
PRP, não se tratava de interferir na gestão ambiental dos
habituais. Além disso, o PRP queria mais implicar os atores
A segunda característica importante desta nova categoria
vem da natureza participativa. A gestão da AEPA devia ser
feita baseada na partilha implicando três níveis de governo
do
Brasil:
o
Governo
Federal,
o
Estado
local
36 Decreto n° 10.906, Estado do Mato Grosso do Sul.
(compreendendo municípios) e as organizações locais da
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
58
6. O poder institucional em ação
locais do que os parques naturais franceses na medida em
recentemente criadas; um representante da SODEPAN;
iniciativa enquanto na França, ela cabe às municipalidades
parque; um representante de cada um dos municípios
que os fazendeiros eram os principais parceiros desta
todos os fazendeiros diretamente interessados pelo
implicados39; um representante do governo do Mato
rurais.
Grosso do Sul; um representante do governador e um
Nesta base, um “território de estudo” foi definido, e
representante do “sindicato regional dos trabalhadores
correspondia à superfície máxima do parque, que cobria
agrícolas”. A assembleia geral incarnava, portanto, o
quatro sub-regiões do Pantanal. Estas escolhas foram
espírito de co-gestão do PRP. Mesmo os trabalhadores
realizadas, a priori, pela equipe técnica a fim de conceder
agrícolas, apenas evocados no processo até então, deviam
ao parque uma “coerência e uma diversidade ecológicas”
ser representados. Mas a composição da assembleia
assim como o explica os documentos do projeto. Este
enfatizava fortemente os fazendeiros, representados ao
plano previa uma possível extensão do parque de 5
mesmo tempo a título coletivo de maneira individual.
milhões de hectares para uma população potencial de
O segundo mecanismo de governância do IPP era
14 000 pessoas – o que teria sem dúvida feito disto a área
protegida mais vasta do mundo. O essencial desse espaço
garantido pelo Conselho de Administração, bem mais
3000 a 50 000 hectares) praticando sobretudo a criação
Conselho devia supervisionar e aprovar o orçamento, a
próximo da gestão do parque que a Assembleia. O
(98%) era constituído de propriedades particulares (de
estratégia e o plano de trabalho do PRP, mas também,
extensiva de gado. Todos os fazendeiros considerados a
priori pelo projeto não se juntou: só 250 o fez, para uma
certificar-se de sua boa execução pelos altos responsáveis
zona úmida do Pantanal. Para os primeiros anos de
“associações fundadoras” de proprietários (incluindo a
satisfatório.
representantes do Estado (FPNRF, 2002, p. 17) e um
Em 15 de fevereiro de 2001, ou seja, um ano antes da
A este nível, os trabalhadores agrícolas não eram mais
do IPP. Um representante de cada uma das nove
superfície total de 2 milhões de hectares – ou seja, 15% da
SODEPAN) tomava parte do Conselho, assim como dois
funcionamento, este resultado foi julgado bastante
representante de cada um dos municípios considerados40.
constituição oficial do PRP, o órgão encarregado de sua
representados.
Pantanal (IPP). O IPP vai em seguida ser reconhecido37
O IPP dotou-se em seguida de um presidente, eleito pela
público” (ou OSCI – Organização da Sociedade Civil de
implicava, todavia pesadas obrigações legais. Sua
gestão é criado – trata-se do Instituto do Parque do
Assembleia Geral41. Este cargo não remunerado
pelo parlamento local como uma “ONG de interesse
Interesse Público) o que o assemelha a uma entidade
influência no funcionamento do IPP era ligada ao estilo de
pública/privada comparada a SMMA da Soufrière. Como a
gestão do titular e de sua capacidade/incapacidade para
SMMA igualmente, o IPP baseia sua estrutura e sua
delegar.
legitimidade em um trabalho prévio de “mobilização das
populações locais”.
A governância do IPP era assegurada por vários órgãos.
Primeiro foi colocado sob a autoridade da Assembleia
Geral do parque, encarregada de aprovar a Carta do
37 Em novembro de 2002
um plano de desenvolvimento plurianual e de verificar a
dos municípios
40 Aquidauana, Miranda, Corumbá, Rio Verde e Rio Negro
41 Durante os primeiros meses, o IPP tinha um “conselho de direção”, diretoria executiva que
38 Como o vimos, a Carta nunca foi, com efeito, concluída
Parque no momento da primeira sessão anual38, de validar
39. Mais precisamente, um representante do Coselho de Desenvolvimento Rural de cada um
coerência das ações e despesas. A assembleia devia
devia reunir-se uma vez por mês. Ora, esse ritmo levou a atrasos no trabalho da equipe
técnica. Em dezembro de 2002, a Assembleia confirmou a criação da função de “presidente”
a caráter permanente.
reunir-se três vezes por ano e era composta como se
segue: um representante de cada uma das associações
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
59
6. O poder institucional em ação
Enfim, o IPP era composto de uma Equipe Técnica,
como um espaço de partilha do poder entre o governo do
reunindo diferentes peritos, trabalhadores de terreno e
Estado, o município e a comunidade rural, reduzida no
secretário executivo encarregado da gestão cotidiana. A
sobretudo, se certificar do grau de inclusão da PC em
assistentes administrativos colocados sob a alçada de um
essencial aos fazendeiros. A Assembleia Geral devia,
equipe associou-se a um coordenador executivo
relação aos fazendeiros locais enquanto o Conselho de
continuvam imprecisos e que finalmente exerceu uma
PC. Todos esses elementos refletiam bem o acordo
francês, cujas responsabilidades e estatuto hierárquico
Administração devia cuidar da intensidade e do alcance da
influência determinante.
fundador da aliança original que apoiou o PRP, convencida
da eficácia da “salvação pela tradição” e da necessidade
A estrutura de governo do IPP foi, portanto, concebida
6.2
de gerir os fazendeiros tradicionais.
Uma verdadeira recuperação política a serviço de ordens do dia obscuras
Enquanto o conceito jurídico do PRP parece ligado a uma
competências técnicas para controlar efetivamente o que o
governância fortemente participativa, na realidade, as
IPP fazia. Na verdade, em quatro anos de atividade, o
radicalmente diferente.
presidente. Como várias entrevistas o confirmou, a
Em primeiro lugar, mesmo se o IPP retirasse sua
descontentamento no seio do IPP limitava-se, sobretudo a
reuniria na prática. Só alguns fazendeiros assistiam a cada
presidente.
tempo. A Assembleia não representou seu papel de fórum
Quanto à presidência do parque, sua prática institucional
incarnar a visão do PRP e os compromissos comuns
existência do IPP (2001-2003), o cargo foi ocupado pelo
instituições e as pessoas trabalharam de maneira
Conselho, confiou a vigilância das operações ao
margem
legitimidade de sua assembleia geral, esta raramente se
de
manobra
do
conselho
em
caso
de
falar – mais frequentemente de maneira informal – ao
uma das sessões, cada vez menos numerosos com o
para discutir a Carta do parque – o documento devia
evoluiu com o tempo. Durante os dois primeiros anos de
assumidos por seus membros. De fato, esta Carta nunca
antigo presidente da SODEPAN. Este fazendeiro originário
foi finalizada nem adotada, além de uma seção de trabalho
de uma velha família pantaneira assumiu um papel
Assim, a Assembleia só fez apenas eleger os presidentes
um dos interlocutores, “ele queria assinar o mínimo
organizada durante o “projeto preliminar” (Gouveia, 2006).
bastante ativo na gestão cotidiana da estrutura. Segundo
e nem isso, visto que na curta história do parque, só houve
cheque”, mas tensões aparecem rapidamente quando o
eleições. Quanto ao grau de inclusão social da assembleia,
beneficio dos peritos estrangeiros ainda implicados no
um único cadidato declarado para cada uma das duas
presidente começou a perder seu poder de gestão em
não tivemos a possibilidade de confirmar a existência de
processo.
enviar um representante. Nenhum dos trabalhadores
A equipe técnica do IPP tinha efetivamente vários técnicos
fazendeiros nunca evocou tal organização.
praticamente levar em conta a gestão e a estrutura do IPP.
um “sindicato de trabalhadores rurais”, que tivesse podido
questionados conhecia a existência disso – e nenhum dos
estrangeiros que acompanhavam seu programa sem
Pouco a pouco, além disso, o Estado local aumentou sua
O Conselho de Administraçao tinha mais influência do que
influência no IPP, ocasionando uma perda de controle para
a Assembleia na gestão do IPP, mas este também se
o Conselho de Administração e o presidente. Através das
reuniu menos que o previsto, com uma taxa de participação
secretarias de Estado, um punhado de políticos influentes
flutuante. As pessoas que faziam parte do Conselho
parecia agir ao mesmo tempo no interesse do partido e ao
tinham, na prática, pouco tempo ou não bastante
serviço de indivíduos tendo “boas relações”. Segundo
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
60
6. O poder institucional em ação
diferentes interlocutores, esta “recuperação política” tinha
Como o IPP teria podido recusar as ordens e as pessoas
sido cuidadosamente preparada ao longo do “projeto
enviadas por seus investidores?
preparatório” de 1998-2000. No início, tratava-se de
aproximar a iniciativa do PRP das mais altas autoridades do
Durante os dois primeiros anos, o presidente do IPP teve
alguns indivíduos. Em seguida, logo que o IPP se tornou
organização parece ter funcionado bem, graças a uma
progressivamente pela nomeação de algumas pessoas no
continuasse ainda restrito, todos os fundos internacionais
Estado, para garantir a influência mais direta e pessoal de
efetivamente um papel concreto na gestão cotidiana. A
operacional, esta tomada de poder, manifestou-se
gestão financeira rigorosa, mesmo se o orçamento global
seio da equipe de gestão – um processo que, depois de
não tendo sido pagos. Mas, vimos, o presidente tinha
2003, tornou-se desproporcional e incontrolável. Desde
começado a dividir seu poder de decisão com os técnicos
mostrou-se cada vez mais interessado pelo prjeto do PRP,
importância, o das pessoas, sempre mais numerosas,
1999, depois de um período de hesitação, o governo local
estrangeiros. Visto que outro grupo começava a tomar
que conseguia mobilizar fundos estrangeiros. No que diz
nomedas por suas relações políticas e que consideravam
respeito à implicação do Estado, lembremos que o projeto
não serem de nenhuma maneira devedoras perante o
tinha, no início, sido confiado a FEMAP – uma fundação
presidente.
local encarregada de implementar a política de meio
ambiente definida pela Secretaria de Meio Ambiente, mas
No fim de 2003, o presidente compreendeu que tinha
autoridades não estavam suficientemente associadas –
“coalização objetiva de interesses” foi constituída contra
posicionamento institucional do PRP não lhe permitia
estavam à vontade com um presidente vindo da
rapidamente,
alguns
estimaram
que
as
principais
perdido praticamente todo o poder de gestão e que uma
uma preocupação que, oficialmente, provinha do fato que o
ele, composta de dois grupos: 1) os franceses, que não
“assegurar-se da implicação total de todos os ministérios
SODEPAN; 2) e os trabalhadores cada vez mais
(finanças, infraestruturas, produção ou meio ambiente),
numerosos enviados pelo Estado para constituir a “equipe
dado seu “modo de funcionamento vertical42”. Por
técnica do IPP” e que viam em tudo a vantagem de
do projeto PRP com o Estado local”, uma nova convenção
maior parte dos fazendeiros interrogados, não teve
trabalhar lá (bons salários ou veículos de serviço43). A
conseguinte e para garantir a “melhor cooperação possível
palavras bastante duras para denunciar este processo.
entre o Estado de Mato Grosso do Sul e a FPNRF foi
Escutemos um antigo vice-presidente do IPP:
assinada em 28 de junho de 2000. A responsabilidade do
PRP ia caber a um nível superior – o da Secretaria do
Estado e do Governo, que exercia uma autoridade direta em
A maior parte das pessoas enviadas pelo Governo não fez
todos os outros ministérios. Entretempo a responsabilidade
nada [...] Elas contentavam-se em fingir. Mas era
do apoio administrativo era também transferida da FEMAP
necessário pagá-las!
para a agência de desenvolvimento econômico sob controle
político
estreito
–
a
CODEMS
(Companhia
Desenvolvimento Econômico de Mato Grosso do Sul).
Sua nomeação o inspirou o seguinte comentário:
de
Você sabe, quando um político diz: um vai trabalhar lá, é
É, portanto, nesta base de forte supervisão estatal que o
ponto final. O que você pode dizer? Essa pessoa tem
IPP foi criado em 2001, com um conselho de administração
influência nos ministérios do qual o IPP depende [...]
que tinha dois representantes do Estado, incluindo o do
governador. O IPP devia igualmente ser apoiado
financeiramente pelo Estado, através de uma dotação
anual, o que dava ainda mais poder às autoridades públicas
42 As passagens deste parágrafo são tiradas de uma entrevista com um funcionário local.
43 Não somos responsáveis por este julgamento, exprimidos por dois de nossos
interlocutores.
na estrutura. Como o comentou um antigo funcionário do
IPP, que via bem como as coisas iam evoluir:
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
61
6. O poder institucional em ação
Outros observadores acrescentaram:
O Governo serviu-se da estrutura do IPP para “triangular”
os recursos. Ele dava fundos ao IPP, a responsabilidade
- Eles davam os cargos a seus amigos e às pessoas que
para o IPP de recrutar algumas pessoas, por razões e
ajudavam o partido.
filiações políticas, ou de lançar-se em projetos públicos
sem relação direta com o parque regional.
Segundo os cálculos deste professor, entre cinco e seis
- Era a distribuição de prêmios […] Tudo dependia de uma
milhões de BRL (ou seja 2 milhões de euros) foram assim
estratégia eleitoral.
“triangulados” durante toda a duração de vida do IPP. O
Um professor de universidade, aliás fazendeiro, estimou
objetivo preciso desta « triangulação » ainda não foi
que este processo ia mais longe do que o simples
determinado, mas um inquérito público está em
nepotismo:
6.3
andamento (em 2009).
Uma vã esperança de cuidado comunitária … quem vai acelerar a derrocada final
Estes jogos de poder tiveram que rapidamente ser
uma segunda fase”, durante a qual o projeto ia tomar mais
com uma gestão eficaz – muito pelo contrário – levando
comunidade queria também aproveitar o peso do nome
Em seguida, a estrutura de governância tornando-se
atores não locais. Em seguida, o slogan “Almir Sater” fazia
interrompidos. Primeiro, a recuperação política não rimou
importância e encontrar seu ritmo normal. Mas a
cada vez mais obsevadores a constatar certa confusão.
célebre para contrabalancear a influência crescente dos
cada vez mais complexa, o IPP começou a encontrar
consenso na comunidade dividida na maneira de gerir o
dificuldades técnicas para a implementação dos projetos
projeto VITPAN.
se tratasse do projeto guia do PRP para a maior parte
Mas há mais: esta eleição tinha também uma significação
de desenvolvimento, em especial o VITPAN – mesmo se
dos fazendeiros e o que suscitou mais expectativas. Os
estratégica para os membros do pessoal nomeados pelo
conduzindo
este candidato. Como nos explicou um de nossos
erros de gestão repercutiram na comunidade inteira,
a
um
descontentamento
praticamente geral no início de 2003.
poder político que, paradoxalmente, apoiavam igualmente
tornado
interlocutores:
Preocupada em remediar esses problemas técnicos e de
Não somente a candidatura de Almir Sater fazia
governância, a Assembleia Geral reuniu-se para eleger um
consenso e parecia garantir a unidade entre fazendeiros,
novo presidente, em 23 de abril de 2000. Esta data marca
mas, além disso, ela tinha preferência pela equipe
uma reviravolta na curta história do IPP. A Assembleia vai
técnica do IPP porque esta gente sabia bem que Sater
eleger Almir Sater, um cantor pantaneiro conhecido em
não se implicaria localmente, ao contrário do presidente
Pantanal. Várias razões explicam a escolha de uma figura
cheques!
todo o Brasil e proprietário de 25 000 hectares de terras no
anterior. Sobretudo, ele não pediria para assinar todos os
pública por excelência, elucidada por um bom número de
interlocutores.
Aqui está o que diz outro:
Em primeiro lugar, a comunidade dos fazendeiros queria
Todo mundo estava contente em eleger Sater presidente:
também atrair mais a atenção e a simpatia e, portanto,
de ‘pai’ e as pessoas do IPP porque sabiam que seria um
restabelecer a situação de seu parque regional, mas
os fazendeiros, porque recuperariam neste caso, um tipo
mais meios financeiros. Falava-se, então de “passar para
‘pai’ ausente.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
62
6. O poder institucional em ação
Desde sua eleição, o novo presidente deu uma autonomia
Como testemunham os processos em andamento em
total à equipe técnica do IPP, visto que ele escolhe confiar
2009, casos de má gestão financeira aparecem também.
executivo, sem exercer verdadeiramente controle. Para
políticos. Para começar, os diferentes secretários
todas as responsabilidades de gestão ao secretário
Alguns falam até de desvio de fundos para fins pessoais ou
um dos fazendeiros:
executivos pagaram regularmente as despesas ligadas ao
projeto com fundos concedidos a outros projetos. Alguns
observadores estimam também que eles financiaram
A eleição de Almir Sater ocasionou uma deserção total de
despesas de importância secundária (viagens, reuniões,
cargo, em beneficio dos ‘técnicos’, que não tinham nenhum
fazendeiro entre eles!
equipamento
O secretário executivo é oficialmente escolhido por
e federais, que totalizam montantes enormes. As
escolha tinha sido fortemente inspirada por alguns
não mais assumir seus compromissos financeiros, a partir
do
Conselho
eles
de 2003.
nomeado, o qual é pouco conhecido pelos fazendeiros, é
Através
Sobretudo,
dificuldades vão agravar-se quando o Estado começa a
políticos. A administração do IPP pelo Secretario
contestada.
escritório...).
“esqueceram” de liquidar certo número de impostos locais
Sater, mas, para vários de nossos interlocutores, esta
bastante
de
de
Tudo isso leva à interrupção de todas as atividades do IPP
vão reclamar várias vezes seguidas ao presidente das
terrano, o IPP ainda tinha uma existência jurídica, mas era
Administração ou das reuniões informais, os fazendeiros
em julho de 2005. Em 2008, durante nosso trabalho de
tramóias evidentes reinando no IPP. O presidente vai,
objeto de um inquérito público e estava pesadamente
sem nenhum efeito tangivel – sempre influenciado por
impostos e salários atrasados) avizinhava um milhão BRL
portanto, mudar duas vezes de secretário executivo –
endividado. O restante de sua dívida (compreendendo os
alguns políticos. Os titulares sucessivos não parecem ter
na metade de 2008 (ou seja 400 000 EUR), um outro
suscitado qualquer confiança nos fazendeiros.
milhão tendo já sido reembolsado.
Sob influência, o IPP continua a aumentar seus efetivos ao
As frustrações dos fazendeiros diante do “escândalo do
longo do período, alcançando 50 permanentes, enquanto
PRP” são imensas. Eles atacam, sobretudo o Estado e os
mesmo suas finanças estão longe de aumentar tão
políticos que, por intervenções que estimam exageradas,
rapidamente. Vários funcionários são integrados em bases
provocaram esta catástrofe. Sua raiva é também dirigida,
técnicas obscuras, mas com salários superiores ao dos
mas em menor escala, contra a influência estrangeira
administradores locais. Duas Secretarias locais (Produção
constante, que “complicou tudo”. Em 2009, Almir Sater
e Meio Ambiente) vão especialmente recorrer a este
ainda era presidente do que restava do IPP. Ele será sem
mecanismo.
dúvida chamado para se explicar perante a justiça. Hoje,
ele é abertamente criticado mesmo se a maior parte dos
Todas estas pressões vão mostrar-se pesadas demais para
fazendeiros continua a respeitar esta figura pública que,
uma nova organização ainda frágil. Como o comenta um
para vários brasileiros, incarna o Pantanal. Um bom
observador:
número de frazendeiros pensa que Almir Sater é “ingênuo”
Nessa fase, o IPP tornou-se uma grande desordem para o
seus sentimentos diante do fracasso do IPP:
demais e que foi manipulado. Um dos fazendeiros resumiu
Estado. [ele tinha] aberto numerosas frentes, mas
nenhuma funcionava corretamente.
Cabe a nós pagarmos esta dívida, doravante, mesmo
sabendo que ela é do Governo.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
63
6. O poder institucional em ação
6.4
Conclusão
Interessamo-nos pela gestão e a história do parque,
pescadores) – uma situação perfeitamente bem ilustrada
criação, em agosto de 2002, e a interrupção de suas
“recuperação política” progressiva do IPP, através da
mesmo tão curta: 36 meses de existência entre sua
pela estrutura institucional do parque. Em seguida, houve a
operações, em julho de 2005. Nós vimos que a prática
nomeação imposta pelo Estado de pessoas pouco
institucional da “participação comunitária” tinha sido
competentes em gestão, mas tendo as relações pessoais,
falsificada desde o início pela noção ambígua de
contavam. Globalmente, estes processos sucessivos de
enviesada em vários níveis. Em primeiro lugar, ela foi
as filiações políticas e os interesses particulares que
“comunidade local” que, no final designava simplesmente
poder produtivo e institucional conduziram a uma
os “fazendeiros”, sem levar em conta os trabalhadores
supressão total dos nativos, distanciados da gestão desse
rurais (os peões) e outras comunidades (como os
tipo de “parque comunitário”.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
64
7.
O papel do capital social e seu impacto na PC
Nós vimos, a história do Pantanal oferece uma mistura
nossa opinião, para sua própria marginalização do
intenções ou de efeitos concretos contra os partidários da
os atores a par do funcionamento institucional em particular
complexa de dinâmicas de bloqueamento, que se trate de
funcionamento institucional do PRP – aproveitaram-no mais
conservação do meio ambiente, os novos atores
os políticos e peritos franceses. Enfim, nós sugerimos que
econômicos da região, os trabalhadores agrícolas, os
o “fracasso do PRP” poderia muito bem, ter plantado,
grupos de pescadores e os próprios fazendeiros. Veremos
apesar de tudo, as sementes de um renovamento do capital
como esta “mil-folhas” encontrou sua origem no capital
social local. Em todo o caso, ele suscitou uma autocrítica e
social. Nós começaremos por interessarmo-nos pelos
significação, dos elementos para fazer evoluir no modo de
excluídos dos processos do PRP: esta separa çãoé, na
termos de implicação do Estado nos dispositivos de PC.
social da comunidade e os efeitos que teve neste capital
uma reflexão em torno da ação coletiva e da sua
trabalhadores agrícolas do Pantanal que foram totalmente
cooperação entre fazendeiros e das precauções a tomar em
verdade, apoiada por sua relação simbiótica com um
Este processo é particularmente patente na evolução da
paternalismo antigo da parte dos fazendeiros que explica
estratégia de resposta dos fazendeiros diante do
que seu capital social seja totalmente estrangeiro a toda
desmoronamento do PRP, que passaram da lealdade à
forma de instituição e ação coletiva. Nós analisaremos em
tomada de posição – demasiado tarde, contudo, para poder
seguida o capital social da grande maioria dos fazendeiros
inverter a situação. Vemo-lo ainda no funcionamento atual
do Pantanal. Seu individualismo visceral e sua preferência
de uma associação relativamente recente de produtores,
por modos de comunicação informais contribuíram em
7.1
que parece ter tirado as lições da experiência do PRP.
Paternalismo simbiótico: manter os peões fora das instituições e da ação coletiva
A ausência total de peões na concepção e a governância
integrar de uma maneira ou de outra no projeto PRP reflete
característico do capital social (CS) específico e da posição
pequeno mundo da fazenda; sua dominação estrutural
do ambicioso projeto de PC previsto para o Pantanal é
várias características sociais: absorção total dos peões no
estrutural deste subgrupo da comunidade. Nós definimos
pelos fazendeiros do fato de um paternalismo antigo; sua
unem os membros de um grupo dado e este grupo com
ações e as reivindicações coletivas; sua retirada de um
de CS (Charnoz, 2009b) como as “laços coletivos” que
falta de hábito (e de capacidade aparente) para decidir as
outros. No caso dos peões, é o CS transversal (bridging)
“mundo moderno e agressivo à margem do Pantanal; e seu
que parece particularmente concernido – a saber, a
sentimento subjetivo de relativa liberdade e de satisfação
maneira como eles criam laços com grupos externos. Os
diante da vida que levam.
de uma maneira estruturalmente dependente. Por
Durante toda a duração do processo do PRP, nem os
comunidade autônoma digna de consideração e de se
estrangeiros se interessaram pela natureza interna da
peões estão de fato estreitamente ligados aos fazendeiros,
conseguinte, sua incapacidade de afirmar-se como uma
defensores brasileiros do projeto, nem seus apoios
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
65
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
fazenda pantaneira tradicional para a sobrevivência da qual
próprias crenças e, em especial, um folclore bastante vivo
eles trabalhavam. As profundas desigualdades sociais e o
no Pantanal, povoado de personagens e espíritos míticos.
paternalismo instalado há séculos nos espaços sociais que
Fundamentalmente, os peões vivem em um mundo
são as fazendas não foram nem abordados nem
espiritual distinto do dos fazendeiros que, hoje, são
baseados em uma distinção binária e hierárquica entre, de
permitiram captar sua visão do tempo, bastante circular, e
questionados. Como tal, as fazendas constituem universos
cidadãos modernos. As entrevistas com os peões
uma parte, os fazendeiros e suas famílias (os proprietários)
sua falta de percepção das evoluções que os cercam. É
e, de outra, os trabalhadores rurais e suas famílias (os
particularmente surpreendente constatar que nenhum
Estas pessoas trabalham por salários medíocres e um
se desenrolava, de positivo ou negativo, na região do
peões). A vida dos peões está banhada no paternalismo.
podia ter um discurso estruturado e informado sobre o que
alojamento modesto proposto pelo proprietário assim como
Pantanal. Enquanto poderia se pensar que são os
caso de dificuldades pontuais (problemas de saúde
a região pareceu seriamente limitada por uma falta de
por produtos cárneos, gêneros alimentícios e ajuda em
melhores peritos para o pantanal, sua compreensão sobre
especialmente). Alguns fazendeiros tentaram até, nós
educação, de sensibilização, até mesmo de vontade de
vimos, desenvolver serviços educativos para as crianças
descobrir o “mundo exterior”. Sua relação simbiótica com
de seus trabalhadores, com resultados mitigados.
os fazendeiros está baseada não somente no fato de que
eles são uma mão-de-obra barata, mas também na
Para alguns observadores locais, esta relação parece
vantagem considerável que eles representam para as
saudável. Para os antropólogos que nós encontramos, os
relações públicas quando os fazendeiros precisam de
peões têm até um forte sentimento subjetivo de sua própria
atenção e de dinheiro. Se a maior parte dos fazendeiros
liberdade:
vive doravante na cidade e só vêm a suas terras por
obrigação ou durante seu tempo livre, os peões vivem lá
todo o tempo e compõem estas imagens magníficas
Os peões vivem fora, sem ter todos os dias um patrão nas
conhecidas em todo o Brasil de « cowboys » a cavalo,
costas […] se não estão contentes com seu destino ou com
seu empregador, eles sabem que sempre podem subir em
conduzido rebanhos (comitivas) nos espaços infinitos,
Esta capacidade de passar de um empregador a outro
externa da comunidade pantaneira e alimenta a reputação
contando histórias tiradas de um folclore único, etc. É,
seu cavalo e ir bater à porta de uma outra fazenda.
portanto, o peão que carrega o essencial da identidade
alimentou visivelmente nos peões, um sentimento de
positiva e a afeição pública da qual ela beneficia. Também
interrogar-se sobre a verdadeira autonomia que ela atribui.
do financiadores – este sentimento que a vida continua
autonomia durante gerações. O que não impede de
ele mantém na opinião pública – e nas direções europeias
Quando mudam de fazenda, os peões encontram-se em
“tradicional e em harmonia com o meio ambiente”.
um mundo idêntico que lhes oferece as mesmas
Contudo, eles não tinham nada a ganhar com o vasto
oportunidades, limitadas, de desenvolvimento pessoal. Seu
projeto do PRP – e não puderam dar suas opiniões. Sua
nível de educação é habitualmente bastante fraco e um
presença resumiu-se a uma menção nos “folhetos
bom número dentre eles quase não sabe ler e escrever.
informativos e apresentações PowerPoint consagrados ao
Mesmo se a maioria aprendeu os rudimentos da língua na
modo de vida na região”44.
ler e escrever. A este respeito, eles estão muito próximos
Os peões não são exigentes. Apesar dos séculos
uma educação formal esquecida há muito tempo.
um grupo à parte, eles nunca organizaram qualquer
escola, seu modo de vida não lhes dar quase a ocasião de
passados nas fazendas e sua identificação clara como
dos pescadores de Saint-Lucie, cuja maioria tinha recebido
Nossas entrevistas com antropólogos locais confirmam que
44 Segundo um membrpo de um ONG trabalhando no Pantanal.
os peões constituem uma sociedade à parte, com suas
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
66
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
forma de ação coletiva para discutir, enquanto grupo,
em um pequeno mundo circular no qual eles não têm
problemas são tratados de maneira informal e entre
poucos meios ou vontade de se libertarem deste « mundo
com os fazendeiros sobre qualquer questão. Todos os
nehuma ocasião de se desenvolverem. Eles parecem ter
indivíduos. Os peões com os quais falamos disseram
seguro, mas fechado », para retomar a expressão do lugar.
claramente que ignoravam a existência de um sindicato
Mesmo se é difícil denunciar uma forma de “exploração
defendendo seus interesses – um traço típico das
pura e simples”, as fazendas são sociedade autárquicas
sociedades paternalistas. Durante nossas entrevistas,
onde a coesão e as desigualdades andam de mãos dadas.
tímida e aparentemente habituada a baixar a cabeça
Nós evocamos (Charnoz, 2009b) a definição que dá
que os fazendeiros são claramente mais “claros” de pele
“conscientemente articulados e observáveis”), em
descobrimos gente simples e tranquila, profundamente
quando discutem com brancos. É necessário lembrar
Lukes
que os peões, que têm frequentemente sangue índio nas
dos
“interesses
subjetivos”
(interesses
oposição a “interesses objetivos” (que são os objetivos e
veias. Eles sempre responderam brevemente a nossas
os desejos que os atores “gostariam e prefereriam
questões, sem jamais fornecer informações além do que
alcançar se pudessem decidir por si mesmos). (Lukes,
que dizia respeito a sua vida, seu trabalho e sua relação
particularmente bem adaptado à aplicação destes
era perguntado. Eles sempre mostraram reservas, no
1975, pg. 34). O mundo das fazendas parece estar
com os fazendeiros. A impressão geral é a de um
conceitos. A relação paternalista entre peões e
temperamento tipicamente “passivo”, uma percepção
fazendeiros é tão constitutiva de sua identidade que
confirmada por diferentes pessoas que questionamos,
nenhuma vontade de mudança parece surgir.
membros de ONGs ou turistas contatados ao acaso.
Como um dispositivo de PC poderia conseguir implicar as
Nosso trabalho de terreno nas fazendas deu-nos um
populações tendo tal estado de espírito e em presença de
sentimento difuso sobre peões, mais ou menos fechados
7.2
um poder estrutural tão forte e tão eficaz?
Individualismo e informalismo: inaptidão institucional da parte dos fazendeiros
A implementação do processo do PRP acompanha, nós
comportamentos oportunistas que desorganizaram a
vimos, duas dinâmicas potentes de bloqueamento, que
implementação de projetos importantes.
primeira deu vantagem aos técnicos estrangeiros quando a
Nós vimos que o CS transversal era essencial para
punhado de políticos e pessoas com relações convenientes.
PRP. Nós afirmamos agora que o CS soldado é o que
acabaram por suprimir todo o poder dos fazendeiros. A
segunda favoreceu a recuperação institucional do IPP por um
compreender a situação dos peões no seio do dispositivo
Nós afirmamos aqui que estes dois exercícios de poder
institucional
foram
amplamente
facilitados
exprime melhor a posição e a evolução dos fazendeiros
pelo
no seio do projeto. Esta forma de CS (Charnoz, 2009b)
enfraquecimento da SODEPAN (seção 4.3), mas também
reenvia para a natureza e para a força dos laços no seio
fazendeiros. Entendemos com isto a dificuldade e a relativa
amalgamadas que contaram e, juntas, fazem com que: 1)
pela « inaptidão institucional » da grande maioria dos
de dado grupo. No PRP, são as diferentes normas sociais
incapacidade destes últimos a empreender ações coletivas
os fazendeiros sejam incapazes de cooperar e
formais e a unir-se a instituições oficiais. Esta característica
coordenar-se em torno de projetos importantes do PRP;
conduziu a uma falta crônica de acompanhamento
2) eles não souberam se comprometer junto às
governância do PRP. Ela também deixou correr livre os
responsabilidade destas relações a uma única pessoa.
institucional da parte dos fazendeiros do ponto de vista da
instituições formais (como o IPP), preferindo confiar a
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
67
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
Esta falta de hábito de cooperação flagrante nos
produção. Durante uma entrevista, o primeiro presidente
segundo a qual “eles são os únicos em suas terras” e só
“diferendo político nasceu entre os fazendeiros, em torno
fazendeiros parece instalada em sua convicção tradicional
do IPP lembrou-se de que no fim de seu mandato, um
podem contar com eles mesmos. Todos os fazendeiros que
nós
encontramos
mostram
francamente
do vitelo, com três ou quatro grupos opostos”. As tensões
seu
eram tais que o IPP nem pôde, em dois anos completos,
“individualismo”, que apresentam de maneira positiva como
um
desejo
de
“autonomia”.
esclarecimento suplementar:
Um
deles
deu
levar os produtores do projeto VITPAN a constituir uma
um
simples cooperativa – etapa, contudo indispensável para
organizar este novo setor econômico.
Não, nós não temos o hábito de nos associar. As
Para muitos, esta incapacidade de agir coletivamente
frágeis no Pantanal. Por uma simples razão: aqui, nós
sobre os responsáveis do IPP, visto que isto prejudicava
impediu os fazendeiros de ter uma verdadeira influência
associações, as cooperativas, etc., todas essas coisas são
gravemente sua credibilidade e sua liderança moral como
estamos na cultura do instante. Nós queremos que as
coisas sejam imediatamente proveitosas. [...] Nós não
parceiros fiáveis. Mas de toda a maneira, a influência dos
resultado imediato.
incapacidade de implicar-se em uma qualquer instituição,
fazendeiros ia ser contrariada por um outro problema: sua
gostamos de agir em grupos – a não ser que isso tenha um
comum à maioria dos fazendeiros. Um observador local
Durante a duração de vida do IPP, certo número de
falou-nos a este próposito de « informalismo » - uma situação
recorrentes ligados à dificuldade de coordenação. Esta
organizações comunitárias (seção 4.3), mas também por
crítico VITPAN. Os problemas encontrados atestam
para organizações que procuram fornecer-lhes serviços.
projetos que foi lançado se chocou com problemas
que se traduz primeiro pela existência rara e frágil de
deficiência foi particularmente flagrante no caso do projeto
uma falta de interesse de interação, da parte dos criadores,
efetivamente a profundidade da implantação deste
“individualismo” e deste “imediatismo” na comunidade.
Os problemas encontrados no Pantanal pela EMBRAPA,
coordenação e boa vontade da parte dos produtores. Ele
são reveladores. Há décadas, a EMBRAPA tem trabalhado
produção de carne, para poder comercializar esta
produção e à conservação. As entrevistas realizadas em
Projeto complexo, o VITPAN exigia certo grau de
primeiro instituto público de pesquisa agronômica no Brasil,
necessitava, sobretudo, de uma padronização rigorosa da
na região em diferentes aspectos técnicos ligados à
produção coletiva sob uma marca única e na qual os
2008 em Campo Grande mostram que hoje, seu principal
consumidores tivessem confiança. Acordos rapidamente
problema não é de encontrar novas soluções para os
apareceram em torno de técnicas e padrões de produção –
criadores, mas de implementar e difundir as que foram
até memso para itinerários de coleta de carne, mais ou
identificadas há muito tempo. A transferência de uma
menos cômodos para os diferentes produtores. Os
inovação do instituto para os produtores pantaneiros
procedimentos eram pouco ou mal aplicados, de maneira
mostrou-se particularmente difícil.
rapidamente de interessar os distribuidores.
Este quebra-cabeça conduziu a EMBRAPA a consagrar
Os produtores rapidamente desconfiaram uns dos outros,
que estas parecem proibir a apropriação local das técnicas
que o produto – de qualidade decepcionante – cessou
mais recursos à pesquisa sobre dinâmicas sociais, visto
por causa de comportamentos oportunistas. Cada um tinha
agrícolas e dos institutos de pesquisa. O órgão interessa-
de fato interesse em não respeitar a idade a qual os vitelos
se especialmente cada vez mais pela maneira como as
podiam ser enviados ao matadouro. A incitação financeira
evoluções intervêm na comunidade tradicional dos
conduzia os produtores a levar os animais mais velhos,
criadores, voltando a uma sociologia de conhecimento e
mais pesados e, portanto, mais caros para a venda. Mas
redes de informação. Os pesquisadores analisaram os
sua carne, demasiado gorda, estragava toda a linha de
processos de adoção, de indiferença ou rejeição diante das
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68
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
novas tecnologias (ver, por exemplo, Cezar, 2000). Eles
participativo
não levam em conta as fontes formais de saber e de
fazendeiros preferem os modos informais de comunicação.
possibilidades de formação.
fazendas vizinhas para obter informações. Por outro lado,
mostram que, globalmente, os fazendeiros do Pantanal
de
difusão
de
conhecimentos
e
de
informações que iria além dos quadros formais. Os
conselho técnico – como a informaçao escrita ou
Eles discutem entre si e observam o que acontece nas
as redes de aprendizado são estruturadas em torno de um
Para começar, as pessoas não gostam de ler ou ter o
número restrito de “pessoas de confiança” que servem de
sentimento de “voltar à escola”. Além disso, a esmagante
modelos para outros fazendeiros e se tornam mais ou
maioria dos fazendeiros estima não ter meios de participar
menos “líderes de opinião”. Em geral, estas “pessoas de
causa de sua idade frequentemente avançada ou do fato
vasta, compreendem melhor a utilidade das instituições
pessoalmente de processos formais – falta de tempo, por
confiança” apóiam-se numa rede de informação bem mais
da distância cultural entre criador tradicional e um perito
formais e são mais aptas a servir-se dela.
técnico – um sentimento que valia também para o IPP.
Enquanto a EMBRAPA tinha concebido uma política
Nós deduzimos a partir desta discussão que no seio do
visando fazer participar os fazendeiros das decisões de
IPP, os fazendeiros também se voltaram para estas
pesquisa, o balanço que ele fez mostra que fracassou
pessoas de confiança que devem controlar em seu nome a
permite aos fazendeiros vir a qualquer momento discutir
esta confiança depositada nos presidentes sucessivos do
não “abrem a porta”.
Ela por outro lado, impediu o Conselho de Administração
amplamente. Mesmo sua política de “portas abertas”, que
institução e fazer ouvir sua voz junto aos dirigentes. Mas
com pesquisadores, não tem nenhum efeito: os criadores
IPP não foi suficiente para contrabalançar as outras forças.
de
A EMBRAPA está atualmente refletindo sobre um sistema
7.3
desempenhar
permanente.
seu
papel-chave
de
supervisão
Da lealdade à exposição de opinião: renovar o capital social local
Apesar de seus defeitos – e na verdade por causa destes
exposição de opinião depois do fracasso da PC no projeto
no seio da comunidade fazendeira sobre a necessidade de
termos renovados e mais eficazes – como testemunha os
– o projeto do PRP engrenou um processo de introspecção
do PRP, abrindo o caminho para uma cooperação segundo
reforçar sua capacidade de ação coletiva. Isso transparece,
sucessos recentes de uma organização local de criadores
consecutivo do desmoramento do IPP encontrou novos
final do projeto do PRP já possa ser avaliado em 2009.
antes de tudo, na maneira como o descontentamento
de gados biológicos. Mas isso não significa que o impacto
modos de expressão. Nós detalhamos (Charnoz, 2009b)
Mesmo se a comunidade fazendeira pareça orientar-se
os três tipos de resposta de uma comunidade provocados
para uma curva de aprendizagem positiva, só o tempo
por uma frustração social ela mesma causada por
poderá dizer se as inércias serão vencidas.
dispositivos de PC decepcionantes: a defecção (retirada
efetiva ou psicológica); a lealdade (silêncio e resignação,
A escolha da lealdade
exposição de opinião (agravos abertos e ações para fazer
Depois de 2003 e diante da via tomada pelo IPP,
de exposição de opinião era a melhor da mesma forma que
desmoronamento. Diante desta perspectiva e diante da
em nome de um princípio superior de unidade); ou a
nomerosos
mudar as coisas). Nós afirmamos então, que a estratégia
fazendeiros
já
previam
seu
inação relativa do presidente, os membros do Conselho
levar a uma renovação do capital social local e, por
Administrativo
conseguinte, mais ação coletiva. Aqui, nós mostramos que
não
escolheram
exprimir-se,
mas
continuar leais, refletindo aí uma estratégia amplamente
os fazendeiros passaram da lealdade efetivamente à
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
69
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
partilhada pela comunidade fazendeira. Depois de várias
Nós vemos aí o quanto os laços sociais impedem o
Almir
organizaçao comunitária, conduzindo a optar por uma
discussões para advertir do perigo com o presidente
Sater,
eles
renunciaram
a
assistir
equilíbrio do poder de exercer corretamente em uma
como
espectadores a esta “tragédia anunciada”, como lembra
lealdade mais do que por uma expressão de opinião,
um dos protagonistas da época. Nós vimos, Almir Sater
mesmo
reagiu nomeando por duas vezes um novo secretário
diante
de
uma
catástrofe
anunciada.
A
necessidade de unidade, a vontade de não manchar a
executivo seguindo as recomendações políticas que
reputação de um íntimo importante mas também a regra
nada fizeram para acalmar os fazendeiros. Estas
tácita que recusa todo conflito público no seio da
mudanças não conduziram a nenhuma melhora na
comunidade uniram-se para dar maus mecanismos
gestão, como temiam, muito pelo contrário.
regulamentares ao IPP. À primeira vista, esta estratégia de
lealdade pode parecer incoerente diante do individualismo
Os membros do Conselho teriam podido exercer seu direito
furioso – que nós já analisamos – da comunidade
de veto em relação aos responsáveis do IPP, mas eles não
fazendeira. Mas se pode muito bem imaginar uma
e as amizades ultrapassaram as dificuldades a este
conflito público baseado, para um bom número de outras
o fizeram, para não desapoiar Sater. As lealdades pessoais
comunidade regida por normas estritas para evitar todo
estado. Como lembra um fazendeiro:
interações numa forma afirmada de individualismo.
A expressão da opinião: empreender um processo de
A um dado momento, paramos de reclamar a Almir.
Ninguém queria criticá-lo severamente e encurralá-lo. [...]
aprendizagem coletiva
controlaria nada.
Se
Ou como diz outro :
suscitando outra forma de resposta nos anos seguintes,
Nós tinhámos de toda a maneira o sentimento que ele não
os
fazendeiros
optaram
pela
lealdade,
o
desmoronamento do PRP não foi fácil de “digerir”,
feita de discussões sobre o que não tinha dado certo, o que
Para muitos dentre nós, Almir é um amigo de infância.
teria de ser feito, mas também o que deveria fazer em
queremos fazer ouvir nossa comunidade. Não podemos
expressão de opinião.
seguida – ou seja uma estratégia que se aparenta a
Fomos à escola juntos. [...] Ele é o melhor quando
fazer-lhe mal. Isso seria nos fazer mal.
Uma série de entrevistas de fato revelou que a experiência
do PRP tinha suscitado esperanças e expectativas que não
Este grupo comunitário encontrou-se, portanto em uma
desapareceram com ele. Acima de tudo, a “catástrofe” –
situação esquizofrênica, de um lado inquieto com o futuro
como
de “seu parque”, mas sem nenhum recurso jurídico para
eles
qualificam
frequentemente
este
fazer partir o presidente ou impor-lhe um secretário
desmoronamento – levou os membros da comunidade a
um fazendeiro:
sua cultura dualista de coesão e de individualismo. Para
interrogarem-se sobre as vantagens e os incovenientes de
executivo que este grupo teria escolhido. Como o explica
começar, numerosos fazendeiros parecem doravante
admitir que o individualismo e o opoturnismo prejudicaram
O Conselho Administrativo tinha poder sobre o presidente,
os projetos do PRP e que as “coisas deverão mudar no
suficientemente para fazer balançar todo o edificio. Mas a
futuro”. Assim:
decisão de exercer ou não este poder é função das
relações pessoais. O poder é uma coisa, as relações
pessoais outra. [...] Os membros do conselho disseram-se
As coisas levam tempo para evoluir aqui. Os pantaneiros
utilizar meu direito de veto para demitir quem quer que
Devemos parar de trabalhar cada um em seu canto.
devem organizar-se mais e de maneira eficaz. [...]
“eu não posso arruinar a reputação do presidente; não vou
Devemos unir esforços […] O parque era a melhor ideia
seja; poderia fazê-lo, mas não o farei”
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
70
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
considerada
oportunidade.
para
nós,
mas
despediçamos
processo que tem o risco de levar tempo e que poderia
nossa
realmente comprometer a responsabilidade penal do último
presidente. Como o exprimiu, de maneira poética, um
Quanto ao principío de lealdade (em nome de uma
dentre eles:
aparente unidade ou amizades pessoais), parece-nos que
os fazendeiros não terão nisto mais recursos de maneira
O IPP é como um bebê que amamos e que está dormindo.
automática se forem novamente confrontados com um
Nós o cobrimos ternamente esperando que ele se acorde.
exprimir seu descontentamento em tempo útil, mesmo se
Um futuro escrito
vários se arrependem de não ter adotado.
Globalmente, as entrevista no terreno convenceu-nos de
A existência de um processo coletivo de aprendizagem
contudo, incitar a mudança – mesmo se isso levar tempo,
dilema deste tipo. Da próxima vez, eles optarão mais por
isto signifique desapoiar um dos seus – uma atitude que
que o fracasso de um dispositivo participativo podia,
especialmente no Pantanal. Evidentemente, a evolução
transparece também na maneira como os fazendeiros
far-se-á lentamente na região. Como o explica um
consideram o Estado: eles estão ainda mais circunspectos
fazendeiro:
diante de sua ingerência em seus negócios. As “instruções
e interferências políticas” mostradas no caso do IPP desde
a época foram abundantemente comentadas pelos
Quando alguém concebe um novo sistema, um novo
é simplesmente inevitável:
investimento, um período de transição e, frequentemente,
fazendeiros. Alguns consideram que a recuperação política
modelo,
é
necessário
prever
um
tempo
para
o
de decepção. Você deve fortemente investir-se, intelectual
e praticamente. Mas você também deve fazer evoluir as
Num IPP nova fórmula, nós teríamos dificuldades para
mentalidades. Isto pode produzir-se no Pantanal, mas
fazer realmente melhor (quanto à influência dos políticos].
muito, muito lentamente […] Será necessário sem dúvida
Chega sempre um momento no qual você depende de uma
de dez a quinze anos para que as coisas evoluam.
decisão municipal, estatal ou federal. Que isso se
manifeste pelo imposto ou por outros meios, sempre existe
As práticas de transmissão de terra são uma boa ilustração
uma ligação estreita [de maneira que os políticos]
disto. Enquanto a comunidade local tem dificuldades para
conseguem sempre fazer fracassar um projeto se eles têm
sobreviver, suas normas sociais em matéria de partilha de
vontade!
terras herdadas só evoluem lentamente. A prática da
repartição das terras entre herdeiros machos quase não
Outros fazendeiros estimam que as transgressões políticas
evoluiu enquanto até mesmo numerosas propriedades se
estão diretamente ligadas à “corrupção do Governo atual”,
encontram aquém do limite de viabilidade (cerca de 7 000
“uma situação que poderia muito bem mudar com as
hectares). Alguns fazendeiros interrogados aparentemente
próximas eleições”. Outros pensam ainda que se pode
pediram a seus filhos para não “dividirem a terra e o
impedir a influência do Estado se o recurso aos fundos
trabalho” mas esse processo, mal aceito e um pouco
públicos num projeto de PC for reduzido ao mínimo estrito.
caótico, não parece fazer o consenso.
A perspectiva de uma co-gestão com o Estado perdeu o
essencial de sua credibilidade mas isso não quer dizer que
Estas inércias interrogam sobre a capacidade de
a ideia do PRP tenha sido abandonada. Ao contrário: a
maior parte das pessoas interrogadas estima que seria
sobrevivência desta comunidade nas próximas décadas.
ainda mais “comunitária”. Nós encontramos vários
do tempo a adotar para avaliar o impacto final de uma
Paralelamente, elas levantam também a questão da escala
necessário avançar fazendo do PRP uma “organização”
intervenção de PC, mesmo em caso de “fracasso” (como o
fazendeiros que defendem ativamente o relançamento do
PRP), visto que ela terá, contudo, “revelado” à comunidade
PRP uma vez que a dívida tenha sido apagada – um
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
71
7. O papel do capital social e seu impacto na PC
algumas dessas fraquezas. De fato, esse processo já parece
apoio do WWF. Esta cooperativa tem-se saído bem até
dar seus frutos. Depois da interrupção do projeto VITPAN,
agora, instaurando regras comuns de produção e uma rede
pôde-se observar o crescimento potente de uma nova
comercial. Os fazendeiros evitaram cuidadosamente ter de
exclusivamente a partir de fundos particulares e beneficia do
carne de vaca biológica com algumas 100 000 cabeças.
associação de produtores de gados biológicos. Esta trabalha
7.4
apelar para fundos públicos. Até hoje, 30 fazendas produzem
Conclusão
Nós vimos como os diferentes processos de bloqueio
desempenharam um papel no desmoronamento do PRP.
capital social da comunidade e eram, de fato, ligados a este
de um projeto participativo tão ambicioso tinha engrenado
inerentes ao projeto do PRP tinham tido um efeito no
Enfim, nós sugerimos que a mais longo prazo, o fracasso
capital social. Nós mostramos a imbricação estreita do CS
um processo de aprendizagem que, reforçando as
transversal dos peões numa relação simbiótica e
capacidades locais, era propício a novas iniciativas. Em
procurar) qualquer meio de expressão no processo do
de resposta alternativa às frustrações parece ter provocado
paternalista com os fazendeiros e que os impediu de ter (de
2009, a escolha da expressão de opinião como estratégia
PRP. Nós demonstramos em seguida a natureza complexa
uma “introspecção comunitária” para retraçar as causas
do CS soldando os fazendeiros que, combina imediatismo,
deste fracasso – um processo que poderia mostrar-se
individualismo, informalismo e unidade – tantos fatores que
benéfico em termos de ação coletiva.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
72
8.
Conclusões
Assim, da gênese ao desmoronamento do projeto do
governância do IPP acompanhou rapidamente o reforço
enquanto mesmo este projeto teria de ser o exemplo
pessoal trabalhando em tempo completo. Paralelamente,
PRP, vários processos de bloqueio tiveram lugar,
do poder institucional concedido aos membros do
perfeito de um dispositivo participativo. Esses processos,
uma
simultâneos ou sucessivos, terão tido um impacto
verdadeira
“recuperação
política”
interveio,
conduzida por alguns políticos da terra com intenções
profundo ou terão continuado puramente institucionais. A
obscuras,
primeira camada dessa “mil-folhas” encontra-se na
mas
extremamente
governância do IPP.
vontade dos produtores locais instalados há muito, de
nefastas
para
a
impedir os esforços crescentes dos partidários da
Contudo, para reaalmente compreender esses processos
econômicos que põem em perigo sua sobrevivência.
de seus efeitos de poder para se interessar pelos agentes
discursos em torno da “salvação pela tradição” cujo
É aí onde o capital social entra em consideração. Nós
etiqueta “verde” aos fazendeiros, esta postura também
estão envolvidos lhes cortou toda a possibilidade de
conservação do Pantanal e os dos novos atores
múltiplos de bloqueio, é necessário ultrapassar a análise
Essas intenções fundamentais eram apoiadas pelos
« catalisadores » que lhes permitiu ter uma tal ressonância.
espírito impregnou todo o PRP. Concedendo uma
mostramos que o paternalismo simbiótico no qual os peões
reforçou sua posição estrutural visto que eles acabaram
expressão duante o processo do PRP. Ao mesmo tempo, o
segundo
que
informalismo de suas relações sociais explica a inaptidão
e grupos de pescadores instalados no Pantanal há
fracasso do PRP, extremamente embarassante para os
por incarnar a comunidade tradicional inteira. Daí um
nível
de
bloqueio,
menos
visível,
antigo apego dos fazendeiros ao individualismo e ao
praticamente sufocou as vozes dos trabalhadores rurais
institucional no princípio de sua própria supressão. O
gerações.
fazendeiros, parece, contudo, ter engrenado um processo
de introspecção no seio desta comunidade que bem
Mas as coisas foram ainda mais longe. Como nós vimos,
poderia, no futuro, relançar sua capacidade de ação
um terceiro processo de bloqueio apareceu durante a
coletiva.
fase de implementação que, em vários níveis, atingiu os
próprios fazendeiros. Trata-se em primeiro lugar da
As implicações operacionais de nosso trabalho de terreno
aumentar o “pluralismo” da sociedade civil e que
sublinhamos em nosso estudo de casos sobre Saint-Lucie
vontade, defendida pelos peritos estrangeiros, de
no Pantanal vêm completar e reforçar as que
nós
enfraqueceu e totalmente desconsiderou a única
(Charnoz, 2009c) :
o aparecimento desse tipo de entidades é ao mesmo
1. A avaliação de dispositivos de PC está longe de ser
institucionalização da PC num órgão oficial como o IPP,
que o habitualmente fixado pelos investidores
organização de fazendeiros eficaz num contexto no qual
tempo raríssimo e frágil. Trata-se em seguida da
cômoda e exige um horizonte temporal mais vasto do
que distancia a grande maioria dos fazendeiros de seu
implicados
funcionamento cotidiano. Essa falta de implicação na
na
gestão
do
meio
ambiente.
Os
investidores deveriam aceitar investir mais tempo e
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
73
Conclusões
dinheiro nestes dispositivos, ser mais tolerantes diante
também todo seu sentido em caso de problemas
de sucesso apesar dos fracassos aparentes. Os
apóiam sociedades paternalistas;
dos altos e baixos inevitáveis e conservar a esperança
deontológicos – quando, por exemplo, os investidores
investidores deveriam aceitar a ideia de que os
dispositivos de PC são apostas que não se podem
3. Os investidores deveriam também se esforçar para
tempo para se concretizarem. A evolução do capital
das partes diretamente interessadas menos preparadas
tais avaliações;
devem resumir-se às fases iniciais de consulta, nem
ganhar com certeza ou cujos benefícios levam muito
encontrar soluções para melhor defender os interesses
social deve beneficiar de uma atenção crescente em
para um processo participativo. Estes esforços não
mesmo de criação de associações, mesmo se isto
2. A « participação institucional » conduz frequentemente
pareça
os grupos mais pobres e mais frágeis « à saída », sua
proibição em participar do processo de tomada de
“perito” externo encarregado de representar ou
Governo e dos investidores internacionais. No caso do
observar atenta e constantemente os jogos de poder no
parque regional do Pantanal, os trabalhadores rurais e
seio das instituições .
os pescadores foram os grandes ausentes do
estes
problemas,
A
atores menos potentes, como o fato de designar um
dispositivo, uma legitimidade “local” aos olhos do
remediar
necessidades.
garantir o equilíbrio dos poderes e a influência dos
superar as dificuldades. Ela concede também ao
Para
às
três noções distintas. Várias soluções podem permitir
decisão, enquanto os grupos mais potentes vão
processo.
corresponder
representação, a participação e a influência efetiva são
os
Dada às dinâmicas que participam do capital social local do
investidores podiam reforçar a dimensão sociopolítica
Pantanal, reforçadas pela experiência do PRP, a principal
assim como os mecanismos de acompanhamento
aparecimento da “maturidade institucional”, que só
implicados nos dispositivos participativos de gestão do
desde então de saber se os investidores internacionais
de seus processos de avaliação ex ante e ex post
lição a tirar deste projeto parece estar realcionada ao lento
permanente. Idealmente, os investidores internacionais
intervém depois de algumas tentativas e erros. Trata-se
meio ambiente deveriam ter mais consciência de suas
estão prontos e financeiramente aptos a acompanhar tais
implicações sociais e políticas nas sociedades locais,
processos a longo prazo e a aceitar os fracassos como um
por motivos ao mesmo tempo de ética e eficacidade.
fenômeno normal em toda tentativa de desenvolvimento
Este ponto é particularmente importante quando o
institucional. Isto é a atitude radicalmente oposta a sua
à comunidade comprometer-se eficazmente nas
compromisso político em demonstrar a “eficácia do
capital social local parece ter a possibilidade de permitir
cultura cada vez mais orientada para os resultados e a seu
instituições que ela acabará por apropriar-se. Ele toma
desenvolvimento”.
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Série “Documents de travail” publicadas desde janeiro de 2009
Os números anteriores são consultáveis no site http://recherche.afd.fr.
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Documentos de trabalho
Publicados desde janeiro de 2009
Os números anteriores podem ser consultados no site: http://recherche.afd.fr
N° 78
« L’itinéraire professionnel du jeune Africain » Les résultats d’une enquête auprès de jeunes leaders Africains sur
les « dispositifs de formation professionnelle post-primaire »
Richard Walther, consultant ITG, Marie Tamoifo, porte-parole de la jeunesse africaine et de la diaspora
N° 79
N° 80
Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - janvier 2009.
Le ciblage des politiques de lutte contre la pauvreté : quel bilan des expériences dans les pays en développement ?
Emmanuelle Lavallée, Anne Olivier, Laure Pasquier-Doumer, Anne-Sophie Robilliard, DIAL - février 2009.
Les nouveaux dispositifs de formation professionnelle post-primaire. Les résultats d’une enquête terrain au Cameroun,
Mali et Maroc
Richard Walther, Consultant ITG
N° 81
N° 82
Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - mars 2009.
Economic Integration and Investment Incentives in Regulated Industries
Emmanuelle Auriol, Toulouse School of Economics, Sara Biancini, Université de Cergy-Pontoise, THEMA,
Comments by : Yannick Perez and Vincent Rious - April 2009.
Capital naturel et développement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 1. Mesures de la « richesse totale »
et soutenabilité du développement de la Nouvelle-Calédonie
Clément Brelaud, Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri,
Armand Taranco, Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV
N° 83
N° 84
N° 85
N° 86
N° 87
N° 88
Contact : Valérie Reboud, département de la Recherche, AFD - juin 2009.
The Global Discourse on “Participation” and its Emergence in Biodiversity Protection
Olivier Charnoz. - July 2009.
Community Participation in Biodiversity Protection: an Enhanced Analytical Framework for Practitioners
Olivier Charnoz - August 2009.
Les Petits opérateurs privés de la distribution d’eau à Maputo : d’un problème à une solution ?
Aymeric Blanc, Jérémie Cavé, LATTS, Emmanuel Chaponnière, Hydroconseil
Contact : Aymeric Blanc, département de la recherche, AFD - août 2009.
Les transports face aux défis de l’énergie et du climat
Benjamin Dessus, Global Chance.
Contact : Nils Devernois, département de la Recherche, AFD - septembre 2009.
Fiscalité locale : une grille de lecture économique
Guy Gilbert, professeur des universités à l’Ecole normale supérieure (ENS) de Cachan
Contact : Réjane Hugounenq, département de la Recherche, AFD - septembre 2009.
Les coûts de formation et d’insertion professionnelles - Conclusions d’une enquête terrain en Côte d’Ivoire
Richard Walther, expert AFD avec la collaboration de Boubakar Savadogo (Akilia) et de Borel Foko (Pôle de Dakar)
Contact : Nicolas Lejosne, département de la Recherche, AFD - octobre 2009.
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79
Documentos de trabalho
N° 89
Présentation de la base de données. Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009)
Institutional Profiles Database III - Presentation of the Institutional Profiles Database 2009 (IPD 2009)
Denis de Crombrugghe, Kristine Farla, Nicolas Meisel, Chris de Neubourg, Jacques Ould Aoudia, Adam Szirmai
N° 90
Contact : Nicolas Meisel, département de la Recherche, AFD - décembre 2009.
Migration, santé et soins médicaux à Mayotte
Sophie Florence, Jacques Lebas, Pierre Chauvin, Equipe de recherche sur les déterminants sociaux de la santé et
du recours aux soins UMRS 707 (Inserm - UPMC)
N° 91
Contact : Christophe Paquet, département Technique opérationnel (DTO), AFD - janvier 2010.
Capital naturel et developpement durable en Nouvelle-Calédonie - Etude 2. Soutenabilité de la croissance néo-
calédonienne : un enjeu de politiques publiques
Cécile Couharde, Vincent Géronimi, Elodie Maître d’Hôtel, Katia Radja, Patrick Schembri, Armand Taranco
Université de Versailles – Saint-Quentin-en-Yvelines, GEMDEV
N° 92
Contact : Valérie Reboud, département Technique opérationnel, AFD - janvier 2010.
La participation communautaire par delà l’idéalisation et la diabolisation : Protection de la biodiversité à Soufrière,
Sainte-Lucie
Community Participation Beyond Idealisation and Demonisation: Biodiversity Protection in Soufrière, St. Lucia
Olivier Charnoz, Research Department, AFD - January 2010.
© AFD Documento de trabalho n° 93 • Participação comunitária no Pantanal, Brasil • agosto de 2010
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