Palavra e silêncio na poesia de Astrid Cabral

Transcrição

Palavra e silêncio na poesia de Astrid Cabral
Palavra e silêncio na poesia de Astrid Cabral
Lina Tâmega Peixoto*
Resumo
Palavra na berlinda, coletânea de poemas de Astrid Cabral, busca a essência da palavra posta
em meio a uma dualidade expressiva: o de ser verbo poético – em sua função paradoxal de palavra absoluta, e o de ser silêncio – na reconstrução simbólica da linguagem. Palavra e silêncio
ordenam dois universos aparentemente antitéticos, possibilitando ao leitor penetrar no núcleo
da poesia, concebida como elemento polarizante. Na ambivalência de significados, decifra-se a
ideia onírica da realidade, a solidão que determina a vida, a memória em seus traços afetivo e
sensorial, o sonho do imaginado e a efígie da angústia. Todos esses aspectos convergem para
o exercício de desvendar a consciência criadora e modelar, para o leitor, um mundo de fruição
estética e de participação no uso da inteligência e da vontade criadora. O silêncio não se opõe
à fala. Ele é também linguagem que permite à autora criar uma voz, o silêncio do som, a linha
sonora do sonho, e tornar visíveis seus atributos simbólicos.
Palavras-chave: Astrid Cabral. Palavra na berlinda. Metalinguagem multifacetada. Configurações estéticas do ser. Atributos simbólicos do silêncio.
Transcrevo as palavras de Leo Spitzer (1961, p. 188) ao iniciar o
ensaio sobre “El conceptismo interior de Pedro Salinas”: “Es posible que
el estudio que sigue sea leído com algún prejuicio: se trata de un poeta
contemporáneo que, por añadidura, es um viejo amigo mio [...]”. Prossigo
junto ao pensamento de Spitzer. Espero, “salir triunfante” da tarefa a que
me proponho, por saber que, como ele, não confundo a admiração e a amizade que sinto por Astrid Cabral com sua extraordinária obra poética.
Gaston Bachelard acentua, no trato das imagens poéticas em relação
à exigência fenomenológica, a necessidade de apreender a imagem poética
em seu próprio ser, como um ser da linguagem, “como uma conquista
positiva da palavra” (BACHELARD, 2006, p. 3). É desse modo que vamos
abordar Palavra na berlinda (2012), buscando a essência da palavra que, por
estar na berlinda e posta em meio a uma situação simbólica, carregada de
profuso e multifacetado sentido, é jogada à dispersão linguística. Cabe à
poeta retomar a unidade de sua linguagem, capaz de exprimir a dualidade
em que vive no mundo das coisas, unir os abismos: o de ser verbo poético –
em sua função paradoxal de palavra absoluta, total, e o de ser silêncio – na
reconstrução simbólica da linguagem.
*
Poeta, crítica literária e professora da Universidade de Brasília – UnB. (E-mail: linatamega@
yahoo.co.uk).
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Esse é o caminho que traçamos para vincular os poemas ao movimento semântico que neles vibra por meio da construção da poesia dentro da
poesia. Essa metalinguagem se firma pela sensibilidade e intencionalidade
do imaginário e da consciência do ato criador, e modela, para o leitor, um
mundo de fruição estética e de participação nos atos da inteligência e da
vontade criadora. Amado Alonso nos adverte da impossibilidade de alcançar o centro da “ardente brasa” da poesia. Apesar da afirmação, continuamos, infinitamente, a vivê-la em fascínio e plenitude.
A escolha da “palavra” e do “silêncio” que ordenam dois universos
poéticos, aparentemente antitéticos, nos possibilitará penetrar no núcleo da
poesia, concebida como elemento polarizante. Nessa ambivalência de significações, persiste, constantemente, a decifração da ideia onírica da realidade,
a solidão que determina a vida, a memória em seus aspectos afetivo, sensorial e reconstrutor, a efígie da angústia a desvendar a construção poética.
No primeiro poema, que dá título à obra, lê-se:
As palavras se contaminam
de cada um de nós.
Bebem nosso único sangue.
Engravidam das vivências
de específicos destinos.
Quando alçadas em abstrações
prévias estagiaram no cerne
de nossa própria carne.
Por isso descaminhos se traçam
e se cavam abismos e abismos
entre bocas e ouvidos.
As palavras corporalizam-se, engravidam das “vivências” e dos “destinos” do ser. Jogadas ao estado abstrato, soltam-se, dissimulam caminhos,
mostram seu perfil, cravado na carne. Mutiladas pelo excesso de significações, criam abismos na fala e na escrita e resistem à translucidez. O poema
nos aponta a dificuldade da comunicação da alma, a feição corrosiva da palavra, a tensão antitética da pele obscura que cobre o sentido, o duplo sentido. Nota-se o tecido acústico dos três últimos versos, em que as unidades
fônicas, exercidas pelo emprego das oclusivas /d/, /k/, /t/, /b/, seguidas do
suporte da fricativa /s/, provocam nos versos um ritmo de andança, de passos cadenciados e sôfregos que remetem à impossibilidade de comunicação
completa. O fio rítmico funciona como elos encantatórios e desloca a segunda metáfora, “abismos”, para uma sensível mudança de significado: mais
doloroso, angustiado e profundo. Esse tipo de composição rítmica, procedimento bastante regular na obra, serve como andaime para a estrutura estrófica, no equilíbrio e na harmonia da construção dos versos, como vemos,
por exemplo, em “Jorro/Relances”:
O poema me transborda.
Palavras abordam-me a boca
e bordam a brancura do papel.
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O efeito aliterante das oclusivas provoca um voluptuoso transbordamento de sentidos que leva a uma sinestesia de ordem visual-acústica. Vemos e ouvimos o poema derramar-se no poeta em jorros de palavras. Esses
sopros de sons plasmam a imagem de uma eriçada luminosidade que borda de brancura o papel.
E vamos acompanhando Astrid, pisando no chão de seu aprendizado.
Em “A poesia me pede a mão”, novamente a palavra comanda a força do
imaginário ao exigir da poeta o despojamento do efêmero e do supérfluo
para que a contemplação se faça em carne viva, sem máscara. Lemos:
A poesia me pede a mão
sussurrando ao pé do ouvido:
pega caneta e folha. Tira
a roupa que te atrapalha.
Joga fora a máscara diária.
Vamos ao recôndito reino
lá pelas ínvias estradas
do soterrado labirinto
onde ardem tuas fogueiras
e tristes se amoitam sombras.
........................................
Depois contempla o papel:
lá estarão em palavras
teus infernos e teus céus.
A mão guiando a escrita, como um ramo de imagens a varrer a palavra para dentro da linguagem. Acumula-se a angústia dos descaminhos. Mergulhada em sua própria profundidade, a poeta está soterrada em seu reino
vocabular. E isso se amplia em “Poetas vão pela sombra”:
Poetas vão clandestinos.
No peito estrela escondida
os guia por labirintos
matas e mares infindos.
Poetas sutis se esgueiram
pelo oco de abismo e frestas
calando coisas sabidas
gritando visões inéditas.
E, ainda, em “Poesia/Ficção”:
Poesia, passeio verbal
por exótica paisagem.
Mergulho sem escafandro
no oceano de si mesmo.
Extravio sem bússola
por labirintos e sendas
de pessoais calabouços.
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Em ambos os poemas relacionamos “abismo”, “calabouços”, “labirintos”, “frestas”, “sendas” como exemplos de imagens que descrevem o percurso a que se submetem as ressonâncias da vida. Perder-se no labirinto é
perder-se a si próprio, é estar aprisionado na substância noturna da solidão,
no “oceano de si mesmo”. Com o fio da “estrela escondida”, com os “fios
da vida e da palavra”, tal como o fio de Ariadne a Teseu, mostrando-lhe o
caminho do labirinto de Dédalo, Astrid penetra na verticalidade da vida e a
incorpora à criação da poesia. Bachelard (1966, p. 213, tradução nossa) menciona esse viver: “A síntese que o sonho labiríntico acumula parece ser o
da angústia de um passado de sofrimento e a ansiedade de um futuro de
infelicidade. O ser se coloca entre o passado enclausurado e um futuro
fechado.” O tempo presente é uma vertigem entre os dois estados temporais, em que as camadas da escuridão pesam como armaduras e dificultam
a mobilidade do espírito na construção da linguagem.
O ritual da criação assume, às vezes, feição materna, como se o ventre germinasse o poema para nele criar a forma de suas reminiscências mais
longínquas, puras e primeiras e, também, para abrigá-lo, aguardando a ressurreição. Como lemos em “Parto”:
O poema cresce
silente e sutil
resguardado em ventre
feito ser de carne.
...........................
Até que maduro
lá do escuro aflora.
Mas sem reduzir
o mistério à luz.
E em “Sem batismo”:
Há coisas que existem
sem ossos e nomes
..................................
Avessas à luz são fetos
no escuro ventre do nada.
E, mais, em “Raiz do silêncio”:
Em que cisterna, poço fundo ou lago
mora o silêncio grávido de fala
fantasma de vocábulo em farrapo?
Em qual inóspito ventre se gera
feto sem voz na brisa que navega
muda rima sem integrar poema?
Atentemos para “ventre”, a mais espessa metáfora que pertence às
contradições oníricas da poeta. Gilbert Durand (2007, p. 242) nos fala da voluptuosidade secreta da intimidade destas cavidades, como gruta, caverna,
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“lugar mágico onde as trevas podem revalorizar-se em noite”, como encontramos nos versos “[...] vem desbravar/ matas afundar em rios – penetrar
grutas e estrelas.” É nesses espaços noturnos de memória ancestral que os
poemas consumam-se e constroem sua durabilidade e permanência existencial.
Há um relevo de intenso devaneio em muitos sintagmas. Refiro-me
àqueles de função qualificadora ou de termos binários de latente equivalência de sentido, como “naufrágio de poemas”, “profundo e infinito o caudal da existência”, “turvo coração noturno”, “o que era eterno e obscuro”,
para citar alguns.
Para Astrid não se fabrica o poema com nuvem ou fluidez do ar, mas
com a concretude das experiências e as contradições do tempo, as ideias como massas amorfas a serem moldadas pela linguagem, com as tensões do
esforço intelectual de criar a realidade do objeto a ser decifrado, como lemos em “Pé no chão”:
perdoai-me os poemas
com gosto de barro
perdoai-me o pé na terra
E ainda em “Estéticas”, na abordagem da poesia:
Na que me importa, o verbo
rompe do chão feito cardo
.................................
O que me estremece
é mesmo o chão
endereço certo
de qualquer ilusão.
Percebe-se a carga violenta que expressa o verbo “romper”, como se
a ação verbal levantasse a profundidade e a expusesse à claridade de seu
universo, seu reino, seu ninho, tal como rompe “no ovo a ave/ e na ave o
voo.” Porque a palavra é, também, flor, “flor de palavra/ brotando do vasto/
chão da alma”, a que se hospeda na pele da árvore, “como se fora outra
flor/ de uma nova primavera” e metamorfoseia a dor “na flor do verbo”. Hugo Friedrich (1974, p. 167) assinala que “flor como equivalente de palavra
poética remonta a uma expressão de retórica clássica” e acrescenta que
“Mallarmé conhecia este significado”. Astrid retoma esse simbolismo, em
que a flor, cultivada pelas formas conscientes do fazer literário, se firma no
solo da alma. A flor que busca as mãos e forma o contorno da boca. É com
as mãos que a autora comanda a memória e a invenção poética, as mãos como instrumento mágico da escrita. Lê-se em “Poetas vão pelas sombras”:
E com a magia das mãos
mais tijolos de palavras
constroem estranho universo
povoado de galáxias.
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A metáfora “tijolos de palavras” não pressupõe dureza, impermeabilidade ao dinamismo que ela exerce na construção de “estranho universo”.
Cada tijolo não é um objeto compacto, empedrado na forma; ao contrário,
agrega universos, pluraliza a intertextualidade de significações que conduzem à procura de uma unidade existencial, capaz de realizar a alquimia do
corpo. Iuri Tinianov (1975, p. 42) refere-se a esse conceito de ser o “tijolo de
palavras” não um elemento condensado na forma, mas entendido “como
o tijolo com o qual se constrói o edifício”. É, de fato, um elemento divisível
em “elementos literários muito mais pormenorizados.” Assim, “os tijolos de
palavras” são construídos de fragmentos completos de sentidos que preservam sua própria interioridade expressiva.
Apontamos dois poemas a fim de ressaltar outros aspectos na interpretação do fazer poético da autora. Refiro-me a “Efêmera”:
Que eu não me arvore
a contradizer o efêmero.
Sou artigo perecível.
Escrevo na água.
E a “Motivo”:
Escrevo para me descobrir.
Navego pelas palavras
– caravelas –
até a américa de mim.
Nesses poemas se dá o discurso mais íntimo de perda e reconstituição das raízes do sentir o sonho do imaginário. Gaston Bachelard (1963),
em L’eau et les rêves, formula um extenso e fundamental estudo sobre a força
da imaginação, ligada ao elemento água, que simboliza, predominantemente,
a natureza feminina. Para ele, “a água é também um tipo de destino. Não
apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que
não se extingue, mas um destino que metamorfoseia sempre a substância
do ser” (BACHELARD, 1963, p. 8, tradução nossa). E acrescentamos o que
nos diz Mircea Eliade (1991, p. 151):
[...] a imersão na água simboliza a regressão pré-formal, a
reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A
emersão repete o gesto cosmogônico da manifestação formal;
a imersão equivale a uma dissolução das formas. É por isso
que o simbolismo das Águas implica tanto a Morte como o
Renascimento.
E Astrid sabe dessa transmutação da matéria, quando escreve, em
“A poesia me pede a mão”, que “lá estão em palavras/ teus infernos e teus
céus”; em “Traduções”, “palavra dádiva a emergir das trevas”; e em “Flagrante/ Relances”, “A caneta sangra na poça d’água”/ “Penso no naufrágio
de poemas.”.
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As citações de Bachelard e de Eliade se impõem pelo que nos comunicam de reflexões acerca da interpretação dos poemas citados. Astrid Cabral, como pessoa poética, não é capaz de esvanecer na água as palavras,
apesar de enunciar em “Silêncio” que “cada palavra proferida/ elimina as demais.” O poema, como corpo, não é efêmero, nem perecível, é imensurável
e prescinde do criador. O poema é, como conceitua Valéry, “infinitamente o
que acabou de ser.”
As palavras se umidificam de certa sensualidade, morrem, transformam-se, renovam-se, renascem, desprendem-se do jogo da berlinda, rompem o ventre da alma, num ato de magia, e erguem sua intencionalidade
e carga expressiva. Astrid debruça-se sobre a superfície da água para apanhar a palavra mais perfeita e plena, a que seja a órbita de sua vida, a que é
“Pulo do fundo/ à própria tona” (“Palavra”); “arrebatar/ alguns vocábulos/
meio a dunas d’água” (“Caudal de silêncio”); e traçar a rota de seu espírito
para que as palavras naveguem e ancorem, como “caravelas”, “até a américa de mim” (“Motivo/Relances”), ao “oceano de si mesmo” (“Poesia/Ficção”).
A poeta consubstancia-se, infinitamente, em seu próprio mistério, na
imagem plural e una de cada palavra, frágil e eterna, sujeita à forma poética
com que se projeta e se regenera nas “subterrâneas águas de um oceano
clandestino” (“No oceano clandestino”).
Para completar a leitura da “palavra”, retomamos o aspecto da ambivalência que rege as imagens.
Algumas palavras
pesam feito pedras
e podem estraçalhar
o cristal das almas.
(“Teia do silêncio”)
Já falei palavras plumas
ao percorrer o planeta.
Ouvidos estavam onde?
Hoje grito palavras pedras
e o eco é quem me responde.
(“Na órbita do silêncio”)
As duas forças opositivas: leveza e dureza, desnudam a intimidade
do ser. Elas despertam sensações e devaneios frente à quietude, ao repouso,
ou levam a uma ação que ricocheteia nos gritos de aflição e angústia da
alma. A metáfora “cristal das almas” reúne as substâncias profundas do ser
em seu brilho e luminosidade. Esse simbolismo dimensiona a durabilidade
do “cristal”, a forma perfeita da alma, construída com a permanência do
tempo dentro dela, em que o sonho imaginado nasce.
A segunda parte da obra – “Avessos”– pode pressupor que simbolize
o reverso da palavra, o silêncio oposto à fala, mas a interpretação aponta
para outra direção. O silêncio é a linguagem que permite à poeta romper
a “teia do silêncio”, isto é, capaz de dar a ela, poeta, a sua própria “fala”.
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Dezenove poemas se nutrem da natureza híbrida do silêncio, semanticamente tomado como pesadelo e sonho, presença e solidão, adornados de
lírica reflexão sobre a sedução do nada, com bojos prenhes do sentir e do
conhecer as estranhezas das coisas e do murmurar as angústias, dúvidas,
inquietações e desejos. Astrid vivencia, em “Silêncio”, que, “No silêncio, latentes,/ jazem todas as palavras”; e quer também “o vasto silêncio/ onde a
linguagem se inclua/ total absoluta.”; indaga em “Haverá silêncio”: “Não
será o silêncio apenas/ a ausência da linguagem?”; e, em “Raiz do silêncio”:
“Em que cisterna, poço fundo ou lago/ mora o silêncio grávido de fala/
fantasma de vocábulo em farrapo?”.
Não há resposta certa e definitiva, mas podemos responder que
apreendemos no inquirir o ritual da plenitude da criação. E esse gesto de
triunfo sobre a incerteza margeia os versos de uma franja de conotação religiosa, resultante da procura transcendental dos atributos simbólicos do silêncio.
Em “Celacanto”, a poesia define-se:
Poesia?
Canção de loucos
a expor sem medo
o que é segredo
e assombração.
Em “Interlocutor hipotético”:
Em solidão sem partilhas
o poeta feito outros loucos
fala sempre sozinho.
Alguns autores assemelham, etimologicamente, “poeta” a “louco”,
aquele que está cheio de graça. Só a loucura é capaz de tremer a voz em solidão e buscar no devaneio o diálogo consigo mesmo.
O recurso estético que o silêncio distende é modulação de ordem onírica na indagação da essência da linguagem. Em “Raiz do silêncio”, indaga:
De onde irrompe o silêncio?
De que entranhas
becos esquinas praças avenidas?
Com que saldo das horas já vividas
chega até mim em rastro ou em relíquia?
O discurso interrogativo confere aos versos um lastro mágico que
procura ligar as imagens ao artifício da voz. Em “Com a palavra o poema”,
lemos o pedido:
Não ponha outra música no verso.
Seria equívoco, seria excesso.
O poema pede silêncio.
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Quer proclamar o próprio som.
É canção de outro universo
….
De outra lavra a música do poema.
Astrid separa o que é música do que é musicalidade do verso.
Mikel Dufrenne (1969), ao explanar a relação da música com a poesia, nos
lembra que, em sua origem, a palavra servia apenas para apoio da voz, confundindo-se, portanto, a poesia com o canto. Modernamente distintas, mas
não isoladas da matéria poética, a linguagem adquire, pela estrutura formal
peculiar, outros conceitos, valores e ideias. Valéry, citado por Dufrenne
(1969, p. 104, grifo do autor), observa que objetos e coisas, representadas
pelas ideias,
[...] chamam-se uns aos outros, asssociam-se de maneira diversa dos modos comuns; eles acham-se musicalizados, ressoando um pelo outro, e correspondendo entre si harmonicamente. O universo poético, assim definido, apresenta grandes analogias com o que podemos supor acerca do universo
do sonho.
Relemos os versos. Eles necessitam de sua própria voz. Esse arrulhar
que se escuta, provocado pelo atrito das palavras umas nas outras, é o
silêncio do som que penetra nos traços mais sensíveis da linguagem, para
que alcance outro universo onde ele é linha sonora do sonho.
Palavra na berlinda parece-me semelhante a um tratado poético da
autora, que nos revela como se estrutura a forma e a linguagem de sua expressão literária: a palavra e o silêncio como elementos rituais de um ato de
magia, como processo de dessacralização da vida, reunindo e articulando
as configurações estéticas do ser, envolto em fiapos de sentidos.
A leitura que fizemos da obra, com profundo maravilhamento e
emoção, com apoio do prazer e da acuidade crítica, nos trouxe o apreender
e o conhecer a realidade do viver no que ela é invisível e essencial ao corpo
dos poemas. Uma releitura, necessária, nos deu a interpretação do discurso
poético de Palavra na berlinda – no que emerge de imagens em intensa expressividade, de configurações simbólicas e desdobramentos estilísticos. O
debruçar sobre os poemas escolhidos nos levou a uma direção mais aguda,
em relevo e em conjunção, com a substância da alma poética da Autora. Somos, agora, cúmplices da beleza, do encrespado campo do imaginário e do
mistério da poesia de Astrid Cabral.
“No fundo de cada palavra, assisto ao meu nascimento” – Alain
Bosquet1.
Recebido em março de 2013.
Aprovado em abril de 2013.
1
Verso citado por Gaston Bachelard em A poética do devaneio (2006, p. 27).
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Word and silence in the poetry of Astrid Cabral
Abstract
Palavra na berlinda. a collection of poems by Astrid Cabral, seeks the essence of the word set
in the midst of a expressive duality: the poetic verb in its paradoxical function of absolute
word and of silence – within the symbolic reconstruction of language. Word and silence rule
two seemingly antithetical universes, allowing the reader to penetrate in the core of poetry,
conceived as a polarizing element. In the ambivalence of meanings, it deciphers the oneiric
idea of reality, the loneliness that determines life, the memory in its sensory and affective
traces, the dream of the imagined and the effigy of anguish. All these aspects converge to
the exercise of unveiling the consciousness and modeling creativity; to the reader, a world of
aesthetic fruition and participation in the use of intelligence and creative will. Silence is not
opposed to speech. It is also language that allows the author to create a voice, the silence of the
sound, the sound line of dream and make their symbolic attributes visible.
Keywords: Astrid Cabral. Palavra na berlinda. Multifaceted. Metalanguage. Aesthetic
configuration of the human being. Symbolic attributes of silence.
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
______. La Terre et les revêries du repos. Paris: Librairie José Corti, 1966.
______. L’eau et les rêves. 5e. réimp. Paris: Librairie José Corti, 1963.
CABRAL, Astrid. Palavra na berlinda. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2012.
DUFRENNE, Mikel. O Poético. Porto Alegre: Globo, 1969 .
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FRIEDRICH, Hugo. Estructura de la lírica moderna. Barcelona: Seix Barral,
1974.
SPITZER, Leo. Linguistica e Historia Literaria. 2. ed. Madrid: Editorial Gredos,
1961.
TINIANOV, Iuri . O problema da linguagem poética I: o ritmo como elemento
construtivo do verso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
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