7 1 O SOM COMO OBJETO DE ESTUDO, UMA INTRODUÇÃO 1.1

Transcrição

7 1 O SOM COMO OBJETO DE ESTUDO, UMA INTRODUÇÃO 1.1
7
"El concierto de tantos pájaros distintos llegó a ser tan
aturdidor, que Úrsula se tapó los oídos con cera de abejas
para no perder el sentido de la realidad."
Gabriel García Márquez - Cien años de soledad
1 O SOM COMO OBJETO DE ESTUDO, UMA INTRODUÇÃO
1.1 Som, telenovela e recepção
A audição em si é uma forma pura de recepção. O ato de ouvir limita-se a
receber um sinal sonoro e determinar a ele um sentido. O ouvido não emite
nenhum sinal. Quando ouvimos algo e queremos dar uma resposta devemos
utilizar outros caminhos de comunicação: falar, escrever ou gesticular. Ouvir é um
estado passivo e de contemplação, porém, no âmbito da percepção, a audição é
fundamental no contato com o mundo. É pelo ouvido que se percebem os sons da
natureza, do homem e das máquinas. Ao ouvir, também memorizamos e
reconhecemos os objetos e os seres que nos rodeiam. Todos os espaços possuem
um contexto sonoro; a realidade sonora é registrada já desde o ventre materno, de
onde o feto ouve os sons internos do corpo da mãe e os sons externos que, pela
força de seu volume, conseguem chegar até seus ouvidos. A forma de
comunicação mais utilizada pelo homem, a língua falada, só e possível pela
participação "passiva" do ouvir. Igualmente, a música só existe quando é escutada
por alguém. Na audição esconde-se uma essência do perceber para poder agir:
ouvir é uma passividade aparente.
8
O estudo da relação entre o som da telenovela e a passividade aparente do
ouvir, é o objetivo primordial desta pesquisa. Neste sentido, cabe retomar o
momento inicial de nosso trabalho de mestrado: "A intenção deste trabalho é
estudar o som como elemento fundamental nos programas de televisão... Pode
parecer óbvio afirmar que o som é um elemento fundamental na televisão já que
na realidade o é: este é um estudo do óbvio" (Giraldo-Salinas, 1989: 9). Nessa
Dissertação comprovamos não somente que o som é fundamental, mas que seus
elementos são essenciais às relações audiovisuais nos programas de televisão. O
mestrado serviu como ponto de partida a uma inquietação surgida durante os
estudos de graduação: qual o papel do som nos meios audiovisuais? A busca por
uma resposta levou-nos a descobrir que os estudos e a literatura existente sobre
esse tema são bastante limitados, ao ponto de que nossa dissertação de mestrado
foi pioneira na pesquisa acadêmica no Brasil.
O presente trabalho pretende ser uma continuação da busca por uma
resposta à nossa pergunta da graduação, deixando, porém, a amplitude do som na
televisão e buscando a especificidade do som na telenovela. Acrescentaremos,
contudo, outra preocupação: como a pessoa que assiste em casa convive com a
passividade aparente de ouvir uma telelenovela? Esta questão introduz a temática
da
recepção na pesquisa. Configura-se assim o objetivo primordial antes
anotado: este é um estudo sobre o som da telenovela e sobre sua recepção.
Chegamos, assim, a uma inquietação maior: se o som é um elemento essencial nos
programas de televisão, então, qual a relação do som de um programa como a
telenovela e seus receptores, já que as relações dos receptores com a telenovela
estabelecem-se em diferentes esferas, não-limitadas aos indeterminados efeitos de
passividade e consumo. Observar a telenovela, seu som e sua recepção, a partir
9
das formas de circulação do sentido entre os receptores e os produtos da indústria
cultural são um desafio diferente para as pesquisas em comunicação. Estudar a
relação som/telenovela/recepção é a base temática da pesquisa aqui desenvolvida.
Estuda-se a telenovela a partir da vida dos receptores e dos processos
culturais nos quais esta vida se movimenta. Por vida dos receptores, expressamos
todos os aspectos da vida cotidiana daqueles que assistem uma telenovela.
Queremos observá-la em sua integração ao processo humano de conhecimento e
na expressão desse conhecimento nas diversas formas de agir, falar, pensar,
sonhar, rir, lutar, crer, amar: enfim, observar a integração da vida cotidiana dos
receptores de telenovela com os processos culturais nos quais ela existe.
Localizar-nos nessa vida e nesses processos implica pesquisar a telenovela já não
só no mundo do meio ou no mundo da mensagem, mas no âmbito da recepção, no
âmbito da vida do receptor. "A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a
vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho
intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humanogenérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao
contrário, não há nenhum homem, por mais 'insubstancial' que seja, que viva tãosomente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente "(Heller,
1985:17).
Ao encarar a telenovela partindo do som, da vida cotidiana e dos processos
culturais dos receptores, pretende-se empreender um trabalho que nos leve mais à
análise da comunicação sob óticas diferentes das que vêem um emissordominante ativo e um receptor-dominado passivo; das que assumem os meios de
comunicação de massas como ferramentas de ação ideológicas, contra os quais,
10
apocalipticamente, pouco se pode fazer, e das teorias informáticas que encontram
respostas "mágicas" à comunicação através da sistematização, acumulação e
distribuição de informação.
Queremos, antes, realizar um estudo sobre o
fenômeno de comunicação "telenovela" a partir da ótica do receptor, da ótica da
própria forma de conhecer, entender, agir etc. do receptor de telenovela, tratado
não como se fosse apenas um pólo isolado e sim uma parte de um processo.
Pretende-se, assim, entrar em uma área de pesquisa que se vem realizando na
última década na América Latina que se propõe estudar a comunicação a partir da
cultura, da realidade histórica e cultural que configura a sociedade latinoamericana, como adiante se aprofunda.
Um estudo da telenovela partindo do som e dos receptores ganha
importância não pela sua popularidade ou pelo seu IBOPE, mas sim pelos
processos da vida daqueles a partir dos quais ele é lido, compreendido e
utilizado; pelos processos de vida em que a telenovela se instala a cada noite. A
telenovela não representa para um receptor um simples momento de lazer ao final
de mais um dia de trabalho. O receptor realiza uma leitura dela baseando-se em
seu próprio estoque de conhecimentos, lembranças, expectativas e determinações
de sua vida, configurando, assim, sua assistência não somente como um ato
simples de entretenimento, mas sim como uma atividade cotidiana onde está o
homem inteiro frente a um aparelho de TV, e não um objeto passivo que repõe
sua força para um novo dia de trabalho.
As pesquisas de recepção de telenovela são recentes; é a partir dos anos 80
que se desenvolvem estes estudos. Podemos citar os trabalhos de Jesús MartínBarbero (Martín-Barbero, 1987) em Colômbia e de Gillermo Orozco Gómez em
11
México (Orozco, 1991), nos quais se estabelece uma relação entre cultura
popular, vida cotidiana e meios de comunicação. Na mesma década, podem-se
destacar alguns estudos sobre telenovela e recepção no Brasil, o de Rosa Maria
Bueno Fischer em O Mito Na Sala de Jantar (1984), no qual a telenovela é
observada como portadora de um sem-número de mitos que suscitam sua
assistência na ligação com os mitos da vida do receptor. O trabalho A Leitura
Social da Novela das Oito (1986), de Ondina Fachel Leal apresenta a leitura
diferenciada das classes dominante e dominada de uma telenovela. Por sua vez,
Mauro Wilton de Sousa, em A Rosa Púrpura de Cada Dia: Trajetória de vida e
Cotidiano de Receptores de Telenovela (1986), estuda a relação da vida cotidiana
e a dimensão de passado dos receptores com a sintonia de uma novela. Por
último, podemos citar o trabalho de Arim Soares do Bem, Telenovela e
Doméstica: da Catarse ao Distanciamento (1989), onde é analisada a fascinação e
o distanciamento que um grupo de domésticas tem pela novela a partir de suas
próprias vidas.
Porém, o presente estudo enfoca a recepção da telenovela a partir de um
elemento que não foi trabalhado por nenhuma destas pesquisas: o som da
telenovela. Assim, acreditamos que ao realizar um trabalho na linha da
Comunicação e da Cultura, que aprofunda os estudos sobre recepção de
telenovela e a relação do elemento sonoro à recepção, contribuímos no
conhecimento da área da Comunicação Social.
Os estudos sobre recepção de telenovela acima relacionados, apontam na
dimensão de um receptor vivo e atuante na sua cultura e em sua cotidianidade.
Estas pesquisas procuram se distanciar do pessimismo assinalado por Adorno e
12
Horkheimer em seu conceito de indústria cultural, o qual entende os meios de
comunicação como instrumentos de manipulação ideológica que controlam a
massa de espectadores passivos, propiciando nos receptores uma alienação
"profunda e incurável".
A telenovela, então, na visão da indústria cultural, apresenta-se como um
perfeito produto cultural industrializado que, através do envolvimento emocional
do receptor, o abstrai de sua realidade, desarticulando sua capacidade crítica
frente ao mundo: Telenovela seria uma forma de alienação em estado puro. O que
as pesquisas de recepção demonstram nos anos 80, foi que, mesmo observando
elementos explícitos ou implícitos de controle e manipulação manifestos na
telenovela, estes não explicavam o sucesso de sua audiência no Brasil, na
América Hispânica e em mais de cem países de diferentes culturas, regimes
políticos e econômicos.
As pesquisas de recepção apontaram para além de uma simples
manipulação. Apontaram para as ligações com os mitos, com o passado, com a
cultura popular, com o cotidiano, com a fascinação pelas histórias, com os usos e
com as mediações, que a telenovela oferece a seus fiéis seguidores. Vislumbra-se
uma relação telenovela/receptor que tem suas origens em matrizes históricas que
não se deixam encerrar por um estado rígido de manipulação atribuído a um bem
cultural. Vislumbra-se a relação milenar da arte de narrar e do prazer de ouvir
narrações. "O ato de narrar deve envolver narrador e ouvinte numa cadeia singular
de temporalidade: o tempo é vasto, o ritmo é lento e a cadência revela a dimensão
coletiva da reposição dos hábitos, dos costumes e da memória" (Borelli, 1992:
79).
13
No texto "O narrador", Walter Benjamin escreve que "a arte de narrar está
em vias de extinção" (Benjamin, 1987: 197). Na telenovela, porém, observamos
as principais características que o autor atribui ao narrador: além do saber de
"terras distantes" e do saber do "passado" (idem: 198-9), a telenovela apresenta
também o saber de terras próximas e o saber do presente; ela "sabe dar conselhos"
práticos e contar uma história sem acompanhá-la de explicações dos fatos ou de
análises psicológicas (idem: 200-5). "Entre as narrativas escritas, as melhores são
as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos"(idem: 198). Nos atuais meios de comunicação, a telenovela
é o que existe de mais próximo à narração oral; ela reelabora a arte de narrar na
forma eletrônica mais depurada das "mil e uma noites". Talvez um estilo da arte
de narrar estivesse em extinção quando Benjamin escreveu o texto em 1936,
porém, como ele mesmo o expressou em "A Obra de Arte na Era de sua
Reprodutibilidade Técnica", "transformações sociais muitas vezes imperceptíveis
acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas
pelas novas formas de arte" (idem: 185). Sem pretender elevar a telenovela à
categoria de arte, observamos que nesta forma de narrar surge uma nova forma de
expressão, de narrar histórias, produto de um processo de transformações sociais e
de mudanças na estrutura da recepção.
De fato, a transformação social fundamental no contexto em que surge a
telenovela é a instalação definitiva da cultura de massas através da indústria
cultural, tendo como palco o crescimento demográfico das cidades. O receptor
muda sua forma de ouvir narrações, deixando de ouvi-las da boca dos narradores,
para ouvi-las primeiro nas radionovelas e logo nas telenovelas. As histórias
narradas estiveram sempre ligadas à vida das pessoas. Na telenovela a narração
14
apresenta-se por dois caminhos de expressão: o da imagem e o do som. As
situações dramáticas, os cenários, as emoções, as personagens chegam ao receptor
embaladas na linguagem audiovisual da televisão. As pesquisas sobre recepção de
telenovela aqui apontadas realizam suas análises a partir das relações da vida do
receptor e o conteúdo, a trama, a narração da telenovela. Poucas vezes são
estudadas as relações entre os elementos da expressão da imagem e do som com a
própria narração e, menos ainda, com a vida do receptor. Assim, estudar qual o
lugar do elemento "som" em uma estrutura tão complexa como a da
telenovela e qual sua relação com as mediações da recepção, apresenta-se
como a questão central deste trabalho.
Na perspectiva da análise da comunicação e da cultura surge, assim, o
problema que orienta esta pesquisa: qual a importância do som de uma
telenovela em sua apropriação, reelaboração e usos na vida cotidiana do
receptor?
1.2 Comunicação a partir da Cultura
O fato de encarar a telenovela a partir da vida dos receptores e dos processos
culturais nos quais vida se movimenta significa, para nós, assumir um estudo de
Comunicação a partir da Cultura. Significa pensar a comunicação, a telenovela,
partindo dos processos culturais a que está vinculada e nos quais existe. Esta
postura nos inclina para a teoria da "Comunicação e Cultura" e, dentro de seu
vasto campo, trabalharemos especificamente na chamada "Teoria da Recepção".
15
O instrumental teórico com o qual pretendemos elaborar a pesquisa provém
da revisão de reflexões e pesquisas sobre Comunicação na América Latina desde
o final dos anos 70. Tomando de empréstimo elementos teóricos e empíricos da
Antropologia
Cultural,
um
número
considerável
de
pesquisadores
da
Comunicação vem estudando os fenômenos de comunicação a partir do acontecer
cultural do receptor. As conclusões de suas pesquisas estão oferecendo uma visão
crítica com respeito às linhas teóricas da Indústria Cultural, do Funcionalismo e
das
teorias
informáticas.
Estes
trabalhos
estão-nos
mostrando
que
a
heterogeneidade cultural de nossa sociedade complexa não permite realizar
leituras lineares do processo da comunicação e que o receptor não é um simples
objeto, alienado, de consumo, e sim um sujeito social que realiza uma leitura, uma
apropriação e uma utilização dos meios em função de sua competência cultural.
Este empréstimo da Antropologia, porém, não consiste na única ferramenta
teórica com a qual estes pesquisadores vêm trabalhando.
Elementos da
Sociologia da vida cotidiana também estão sendo utilizados na construção de um
referencial teórico que permita compreender o significado da Comunicação no
acontecer cultural, histórico e social de nosso continente.
Contudo, as abordagens da Antropologia e da Sociologia para a
Comunicação não se propõem a deixar de lado as linhas teóricas com as quais ela
era estudada até esse momento. Martín-Barbero assinala a respeito que "pensar os
processos de comunicação a partir da cultura implica deixar de pensá-los partindo
das disciplinas e dos meios. Não se trata de negar o subsídio da Psicologia, da
Semiótica ou da Teoria da Informação, e sim de tornar explícita a contradição que
implica tentar refletir sobre a especificidade histórica, de um campo de problemas
como a comunicação a partir da lógica de qualquer disciplina" (Martín-Barbero,
16
1984: 12). Anos depois, o pesquisador dava prosseguimento a sua proposta,
escrevendo: "não se trata de 'carnavalizar' a teoria - e não significa que tal não
seja necessário -, mas sim de aceitar que os tempos não estão para síntese, que a
razão apenas nos permite sentir e prever com alguns indícios a existência de zonas
na realidade mais próxima que estão ainda por explorar" (idem, 1987: 229).
Martín-Barbero oferece um referencial teórico coerente para a realização de
um estudo da Comunicação a partir da Cultura. No entanto, como ele mesmo o
reconhece, trata-se de um mapa noturno que se inicia com uma análise crítica das
principais linhas teóricas da Comunicação, em especial da Indústria Cultural,
sustentando sua reflexão com a análise de algumas das pesquisas sobre
"Comunicação e Cultura" realizadas nos últimos anos na América Latina. Por
meio de um confronto entre a cultura popular e a cultura culta, assinala o valor
da cultura popular na configuração da cultura de massa. Já não é nos meios ou
nas mensagens onde se deve buscar o sentido da Comunicação, é nos processos
culturais da recepção. Para Martín-Barbero, existe um sem-número de mediações
e de usos que estão para além do massivo, sendo que a partir dessas mediações e
de usos é lido, compreendido, apropriado e utilizado o massivo através de uma
reflexão sobre a relação entre a cultura popular e o melodrama que o mapa
noturno é desenhado. "Em forma de tango ou de telenovela, de cinema mexicano
ou de crônica sensacionalista, o melodrama trabalha nestas terras um veio
profundo de nosso imaginário coletivo, e não há aceso à memória histórica nem
projeção possível do futuro que não passe pelo imaginário. De que veio se
trata?
Daquele em que se faz
visível a
matriz cultural
reconhecimento popular na cultura de massas" (idem: 243).
que alimenta o
17
Nas mediações e nos usos é que concentramos
nosso trabalho. As
mediações são formas e espaços de comunicação que se encontram fora do
alcance do processo de comunicação dos meios massivos. As mediações são
"pequenos" processos de comunicação que se dão na vida das pessoas e com o
resto do acontecer no mundo. Em trabalho sobre o impacto da televisão nas
crianças, Guillermo Orozco entende as mediações "como o conjunto de
influencias que estruturam o processo de aprendizagem e seus resultados,
provenientes tanto da mente do sujeito como de seu contexto sócio-cultural. Isto
inclui as intervenções dos agentes sociais e instituições no processo de recpção
televisiva das crianças" (Orozco, 1991: 43). Estas mediações têm como palco de
acontecimentos a própria casa, o bairro, o bar da esquina, o trabalho, as
associações de moradores, a torcida, a escola de samba, o sindicato, a praia, os
rodeios etc. Nestas mediações expressam-se formas de usos das próprias
mediações e do massivo. Os usos referem-se às formas de organizar o espaço e o
tempo no cotidiano para a determinação das formas de assistir o massivo e a
apropriação que esse assistir implica no âmbito geral do cotidiano. Estes usos
estão determinados pelas condições de vida das pessoas e pela sua competência
cultural, competência esta que não é outra coisa que o estoque com o qual as
pessoas vivem, lêem, compreendem e reelaboram o massivo. "As mediações são
então esse 'lugar' de onde é possível compreender a interação entre o espaço da
produção e o da recepção: o que se produz na televisão não responde unicamente
a requerimentos do sistema industrial e a estratagemas comerciais, mas também a
exigências que vêm da trama cultural e dos modos de ver" (Martín-Barbero, 1992:
20).
18
O conceito de cultura, com o qual queremos trabalhar, entende-a como um
sistema de símbolos compartilhado por um grupo social, e com o qual os
indivíduos agem, pensam e se comunicam, "um 'sistema de significações' bem
definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em todas as
formas de atividade social" (Williams, 1992: 13). Este sistema simbólico não é,
porém, um todo homogêneo estanque no tempo e no espaço, é antes um sistema
que está em constante processo dinâmico de atualização no decorrer socialhistórico. Assim, ao falarmos de um estoque cultural, referimo-nos ao sistema
simbólico que uma pessoa possui para se movimentar no âmbito do social. Este
estoque determina sua competência cultural, sua capacidade para entender e se
fazer compreender no interior de um grupo social. A realidade complexa de nossa
sociedade não nos oferece um quadro cultural homogêneo, pelo contrário, a
miscigenação que a configura fornece-nos um quadro cultural heterogêneo
(Velho, 1978).
1.3 Um resumo do trabalho
O corpo deste trabalho está dividido em seis capítulos, a saber: 1) a presente
introdução, que aproxima o som na telenovela aos estudos de comunicação e
cultura, definindo o objetivo central da pesquisa; 2) em "o som, uma referência
de estudo" aborda-se a audição humana, o caminho do som na "civilização da
imagem" e o som nos audiovisuais; 3) em "som, telenovela e receptor: hipóteses",
propõe-se a hipótese geral e as específicas;
4) em "o som, o caminho da
pesquisa" são apresentados os procedimentos metodológicos práticos da pesquisa;
5) em "o som na telenovela", realiza-se a análise das falas, os sons e as músicas
19
nas telenovelas, e 6) em "o som e a articulação com o receptor" expõem-se as
falas sobre o som na telenovela e na vida cotidiana dos receptores entrevistados.
É importante ressaltar que esta Tese está acompanhada de uma fita de vídeo
que contém os onze fragmentos de telenovelas utilizados nas entrevistas,
capítulo 1 de Pedra sobre Pedra e o capítulo 57 de Fera Ferida.
o
20
2 O SOM, UMA REFERÊNCIA DE ESTUDO
2.1 Ouvir, alguns tópicos sobre a audição
Sem essa passividade aparente do ato de ouvir não teríamos a unidade da
recepção audiovisual. Uma das formas primordiais como um indivíduo se
incorpora dentro de uma cultura é através da audição. É por intermédio da
imitação dos sons fonéticos que aprendemos a falar. Assim, uma telenovela, que é
assistida na simultaneidade do ver e do ouvir, oferece no som uma carga de
elementos significativos que de alguma forma são percebidos por cada receptor.
"Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite
para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que nosso ouvido é
capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e
sentidos" (Wisnik, 1989: 15). Uma pessoa que possua sua capacidade normal de
ouvir focaliza sua atenção, discrimina, memoriza e analisa os sons ao seu redor.
Neste trabalho interessa-nos verificar como o som, que sai das caixas
sonoras dos aparelhos de televisão, é ouvido e quais as relações dele com a
imagem. O ponto chave, portanto, é o que chega ao ouvido e como é sua
interpretação no momento em que se assiste uma telenovela. Analisemos, então,
alguns tópicos que a Fonoaudiologia nos oferece para entender a audição.
"A atenção auditiva é a capacidade do indivíduo de apresentar uma resposta
voluntária a um estímulo sonoro" (Russo, 1985: 16). Todos os sons provocam
uma resposta, seja ela de passividade ou de atividade. O ouvido, diferentemente
dos olhos, está aberto de forma constante aos estímulos sonoros; não existe, como
21
nos olhos, nada semelhante a uma pálpebra que impeça a entrada do som no
ouvido. Na mais completa escuridão, o ouvido e o tato tornam-se chaves na
orientação espacial. Mesmo quando se dorme o ouvido continua registrando e
estimulando atividades cerebrais. Ambientes com máquinas possuem uma ampla
gama de sons programados os quais indicam a seu operador diversos estágios de
funcionamento: em operação, próxima fase, espera, erro, perigo etc. Em um
diálogo, a atenção auditiva permite a interação pergunta resposta entre os
interlocutores.
"A figura/fundo auditiva é a capacidade de selecionar um estímulo sonoro
significativo dentro de uma gama de sons apresentados simultaneamente"(idem:
17) A simultaneidade e a quantidade de estímulos sonoros registrados pode chegar
a milhares, o que obriga a mente a gerar uma seleção auditiva. Murray Schafer
chama de paisagem sonora "o ambiente acústico (...) o campo sonoro total dentro
do qual estamos" (Murray, 1992: 1). Essa paisagem sonora contrapõe-se tanto dos
sons internos e externos do local onde nos encontramos, quanto aos sons internos
do nosso próprio corpo. Nessa paisagem sonora o ouvinte apresenta duas formas
de audição, a audição focalizada (figura) e a audição periférica (fundo). A
primeira refere-se aos sons aos quais se presta atenção e, a segunda, corresponde
aos sons que continuam sendo ouvidos mas com uma atenção passageira. Na
paisagem sonora de uma cidade do mundo moderno, a audição periférica
transformou-se em um escudo eficaz para evitar a loucura auditiva.
"A discriminação auditiva é o processo de detectar diferenças e
semelhanças nos sons que percebemos" (Russo, 1985: 16). A capacidade de
discriminação do ouvido é a forma mais sofisticada dos órgãos dos sentidos. Além
22
de ser o sentido mais rápido na reação estímulo-resposta, a audição reconhece
uma gama quase infinita de combinações harmônicas. Na música encontra-se um
exemplo claro de discriminação no reconhecimento das notas, no seu balé de
alturas graves, médias e agudas, bem como na distinção de um instrumento pelo
timbre (no item 1.2.4 realiza-se uma análise dos elementos básicos da música). Na
vida, a discriminação auditiva está ligada à cotidianidade e ao próprio
conhecimento e reconhecimento das pessoas e dos objetos.
"A memória auditiva envolve a habilidade de armazenar e de evocar o
material auditivo" (idem). O processo de memorização sonora manifesta-se ao
longo de toda a vida de um indivíduo. No ventre materno o feto ouve os sons do
coração, da respiração, da digestão da mãe. Essa paisagem sonora permanece tão
gravada como um estado de bem-estar e segurança intra-uterina, que um eficiente
travesseiro que reproduz sons similares aos do ventre, é utilizado para acalmar os
bebês no berço. O desenvolvimento da fala depende da memória para o
reconhecimento e a reprodução das palavras. A memória sonora também esta
ligada aos lugares, aos objetos e aos períodos da vida. A cada ocorrência sonora
não somente grava-se a relação som-fonte como também o contexto, a paisagem
sonora. Assim, a cada nova ocorrência do mesmo som-fonte, a memória
recuperará todo um conjunto de experiências acumuladas para dar um novo
sentido ao que está sendo ouvido.
"A análise auditiva é a operação que decompõe as informações sonoras
recebidas. Já a síntese auditiva é a operação que une as partes para compor uma
informação sonora" (idem: 17). Assim, na síntese reconhecemos a paisagem
sonora como um todo, como uma unidade; na análise procuramos reconhecer os
23
elementos que compõem a paisagem sonora. Ao ouvir os acordes sucessivos de
uma peça musical realiza-se uma síntese auditiva; já a análise ocorre quando se
ouve a peça reconhecendo a participação de cada instrumento. A audição
focalizada é uma operação de análise que contrapõe a audição periférica que é
uma operação de síntese.
"A seqüenciação auditiva é a função que depende da memória, uma vez que
é a capacidade de lembrar a ordem dos itens em seqüência" (idem). Dois aspectos
sonoros dependem na base dessa capacidade: a audição e emissão de falas, e a
criação, interpretação e apreciação da música. As seqüências de fonemas nas
palavras e de notas nas melodias somente ganham sentido quando memorizadas
para serem repetidas e novamente ouvidas. No cotidiano, também, múltiplas
seqüências sonoras interferem na vida das pessoas. O canto do galo seguido do
canto dos passarinhos é uma das seqüências sonoras mais bucólicas que a
natureza fornece para anunciar o amanhecer.
Outro elemento do processo auditivo é a localização sonora (idem). O
estratégico posicionamento das orelhas permite ao cérebro o reconhecimento
imediato da direção onde a fonte sonora está localizada, acrescentando o cálculo
aproximado da distância da fonte. "Ouvir" configura-se em um sentido
omnidirecional com o qual o indivíduo se orienta no espaço, onde a grande
maioria dos acontecimentos são primeiro ouvidos, antes de ser vistos, tocados,
cheirados ou degustados.
Cada um destes tópicos sobre a audição sugere questinamentos sobre a
relação entre o som da telenovela e seu vídeo-ouvinte. Como já anotamos, o
24
processo de ouvir além de seus elementos auditivos naturais está vinculado a um
processo histórico, cultural e social. Um grupo social ouve de acordo com
aspectos espaciais, temporais, políticos, religiosos, familiares e de lazer. A fala e a
música são os únicos legados sonoros da história que possuímos, seu
conhecimento representa uma aproximação sobre como o mundo era ouvido nas
diferentes épocas. Somente a partir do final do século passado o homem
conseguiu registrar e reproduzir tecnicamente os sons, assim a memória-técnicosonora do mundo limita-se quase que exclusivamente a nosso século.
A telenovela é uma das formas de expressão em que a possibilidade de
registro e reprodução do som são empregados. E é evidente que o som da
telenovela está constantemente pulsando a atenção auditiva, brincando com as
relações de figura e fundo, aproveitando a discriminação, a memória e a
seqüenciação auditivas, cutucando a análise e a síntese auditiva, e denunciando a
localização sonora das fontes. Porém, a capacidade auditiva é um dom do
receptor, a telenovela só pode instigar esse dom. Encontra-se aqui um dos
desafios pontuais desta pesquisa: a telenovela tem som, o receptor tem audição;
mas o que é ouvido, como é ouvido e o que faz o receptor com o que foi ouvido?

Documentos relacionados